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DEFINIÇÃO DE PESSOA E HUMANIZAÇÃO
A Problemática do Aborto
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Rafael ULIANO
DEFINIÇÃO DE PESSOA E HUMANIZAÇÃO
A PROBLEMÁTICA DO ABORTO
III Impressão 11/2014
Humanitas Vivens Ltda
Uma Instituição a serviço da Vida!
Sarandi (PR) 2009
6
Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda
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Prof. Dr. José Francisco de Assis DIAS
CONSELHO EDITORIAL:
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CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:
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Uliano, Rafael
U39d Definição de pessoa e humanização: a
problemática do aborto. [recurso eletrônico] /
Rafael Uliano -- Sarandi, Pr :
Humanitas Vivens,2009. 75p.
ISBN: 978-85-61837-10-5
Modo de acesso:
<www.humanitasvivens.com.br>.
1. Pessoa - Humanização. 2. Vida. 3.
Aborto.
CDD 21. ed. 241.6976
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7
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho de modo especial a meus pais
Adelmo e Valéria, a meus formadores, colegas e amigos.
8
9
“[...], o ser humano mais infeliz, mais feroz, mais
inimigo de Deus e das crianças, é aquele que tem a louca
coragem de matar o próprio filho no ventre materno.
Nem as cobras fazem isto!”
Prof. Felipe Aquino.
“O respeito aos indefesos e à vida frágil é
expressão de verdadeira cultura e humanidade.”
Cardeal Geraldo Magella Agnelo, pela CNBB.
“A audácia dos maus se alimenta da covardia e da
omissão dos bons.”
Papa Leão XIII.
“Não podendo convencer-me, como biólogo, que o
ovo, o embrião ou o feto são menos corpo humano que a
criança nascida ou ancião, devo a todos o mesmo
respeito ético, absoluto, pela vida humana que neles se
manifesta”.
Prof. Daniel Serrão.
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11
Sumário
1 INTRODUÇÃO ................................................................................
2 PESSOA E HUMANIZAÇÃO ........................................................
2.1 DEFINIÇÃO ................................................................................
2.2 ELABORAÇÕES HISTÓRICAS DO
CONCEITO DE PESSOA ...........................................................
2.2.1 Filosofia Grega ..............................................................
2.2.2 Cristianismo ....................................................................
2.2.3 A Contribuição de Kant ................................................ 2.3 DIALÉTICA ENTRE
SAGRADO E PROFANO .........................................................
3 O PROBLEMA DECORRENTE DA DEFINIÇÃO
DE PESSOA E HUMANIZAÇÃO
E A REFLEXÃO ACERCA DE SUA
JUSTIFICAÇÃO MORAL ............................................................
3.1 VIA ESSENCIALISTA OU VITALISTA ...................................
3.1.1 Perspectiva Metafísico-Personalista ....................................
3.1.2 Perspectiva Teológica .................................................... 3.2 VIA PRAGMÁTICA .................................................................
4 CONSIDERAÇÕES SOBRE
A ORIGEM DA VIDA HUMANA ............................................
4.1 QUANDO INICIA A VIDA HUMANA? .....................................
4.1.1 A Tendência Biológica ....................................................
4.1.2 A Tendência Filosófica ....................................................
5 ABORDAGEM FILOSÓFICA DOS
ARGUMENTOS E PERSPECTIVAS SOBRE
O PROBLEMA ÉTICO DO ABORTO ......................................
5.1 UMA DEFESA DO ABORTO:
JUDITH JARVIS THOMSON ....................................................
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5.2 RESTAURAÇÃO DA CREDIBILIDADE
DO ARGUMENTO PRÓ-VIDA:
STHEPHEN D. SCHWARZ ....................................................
5.2.1 A Primeira Refutação ....................................................
5.2.2 A Segunda Refutação ....................................................
5.2.3 A Terceira Refutação .................................................... 5.3 OS FETOS NÃO TÊM DIREITO À VIDA:
MICHAEL TOOLEY ..............................................................
5.4 CRÍTICA ÀS PERSPECTIVAS
DE THOMSON E TOOLEY:
HARRY GENSLER ...................................................................
6 CONCLUSÃO ...............................................................................
REFERÊNCIAS ................................................................................
61
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73
77
13
1 INTRODUÇÃO
A bioética, ramo da ética que investiga os problemas
que derivam especificamente da prática médica e biológica,
é controversa. Discute os limites das intervenções e
experiências, aceitáveis ou não, no que diz respeito à pessoa
humana, à vida.
O aborto direto, procurado como um fim ou como um
meio, bem como a cooperação formal para esse ato, é
considerado falta grave pela Igreja Católica e também por
outras Igrejas. Vê-se, pois, que a luta pela defesa da vida é
constante.
A Constituição Federal do Brasil protege a vida. Toda
e qualquer agressão ao feto, em quase todas as hipóteses, é
passível de ser penalizada. A vida do embrião, portanto, está
protegida constitucionalmente.
Como o que é proibido parece ser sempre também o
que é mais cobiçado, o que se pode observar no cenário
brasileiro atualmente é um grande número de abortos,
realizados clandestinamente em “clínicas” ou mesmo em
casa por pessoas altamente despreparadas, sem
conhecimento algum de medicina.
Esse grave e controverso problema – e também crime
– faz parte da atualidade e com certeza deve ser tratado com
muita seriedade. Daqui deriva a necessidade de um estudo
14
de qualidade quanto ao início da vida humana, bem como a
respeito das vias para a justificação moral de qualquer
atitude a favor ou contra a prática do aborto.
A pesquisa elaborada, que agora segue em forma de
texto, não tem a pretensão de abordar o tema com
ineditismo.
Quando se trata de questões relativas à vida correta,
somente coisas erradas podem ser realmente novas.
Ainda assim, aquilo que as pessoas já sabem precisa
ser repensado de tempos em tempos, já que as
condições reais da vida se transformam, assim como
os conceitos de que dispomos para nossa
autocompreensão. 1
A proposta é colocar o tema “em evidência”, de
maneira científica, no desejo de uma valorização maior da
vida.
1 SPAEMANN, Robert. Felicidade e benevolência: ensaio sobre
ética. São Paulo: Loyola, 1996, p. 9.
15
2 PESSOA E HUMANIZAÇÃO
2.1 DEFINIÇÃO
Aventurar-se a definir os termos pessoa e
humanização é uma tarefa altamente arriscada; afinal de
contas, além da delicadeza da questão em si mesma, trata-se
de abrir caminho também a profundas discordâncias.
O campo da bioética é por essência conflitante, dado
que o alvo que se tem em mira é sempre a vida. Sabemos
que todos os questionamentos que põem em jogo a vida nos
causam inquietação.
Nesta reflexão, queremos situar-nos desde o ponto de
vista metafísico, esforçando-nos por valorizar a dignidade
da pessoa humana e, relacionado com ela, tratar do
problema do aborto.
Assim, pois, antes de tudo, falemos da dignidade da
pessoa humana.
Segundo Sgreccia,2 “a pessoa é unidade de espírito e
corpo”.
2 SGRECCIA, Elio. Manual de bioética I: fundamentos e ética
biomédica. São Paulo: Loyola, 1996, p. 113.
16
Para melhor compreender esta realidade, é importante
alargar um pouco mais este campo, buscando compreender
como a “espiritualidade” do ser humano está em íntima
unidade com a sua “corporeidade”, criando-se, assim, a base
para a humanização.
A humanização se dá na conciliação da dimensão
espiritual com a corpórea. O ponto central da humanização
do homem consiste primeiramente no fato de ele existir e
depois na capacidade intrínseca de não estar sujeito ao
determinismo do mundo.
Com isso, pode-se dizer que, sendo unidade de
espírito e corpo, pessoa é cada ser humano observado desde
a ótica de sua individualidade. A isso se somam também
propriedades que se atribuem exclusivamente à espécie
humana, como a consciência de si, a racionalidade, a
capacidade de agir de maneira determinada...
Relação que interliga os fenômenos de forma tão rigorosa que, em
dado momento, cada fenômeno é completamente condicionado pelos
que o precedem e acompanham; ele mesmo, em seguida, condiciona
com o mesmo rigor os que lhe sucedem.
17
2.2 ELABORAÇÕES HISTÓRICAS DO
CONCEITO DE PESSOA
“A idéia de que os indivíduos e grupos humanos
podem ser reduzidos a um conceito ou categoria geral, que a
todos engloba, é de elaboração recente na História”.3 Há
muitos anos já se fala em pessoa, entretanto, de modo
sistemático, trata-se de uma reflexão recente. Consideremos,
pois, as diferentes elaborações históricas do conceito de
pessoa humana.
2.2.1 Filosofia Grega
“O elemento comum que une todos os seres humanos
no mesmo gênero seria a natureza (physis), como princípio
universal de organização do cosmo”. 4
Com Aristóteles, o mundo sensível não é posto de
lado, como fora feito por Platão. De fato, o estagirita
sustentou a possibilidade de discernir em cada ser
humano, [...] um elemento comum a todos os
indivíduos; [este elemento] corresponde à função
própria do homem no mundo, consistente em viver
3 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no
mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 453. 4 ibid. Antonomásia de Aristóteles.
18
segundo a excelência (aretê) da sua condição animal
capaz de agir racionalmente. 5
Já para os sofistas e os estóicos, o que une “todos os
seres humanos no mesmo gênero seria a natureza (physis),
como princípio universal do cosmos”. 6
Segundo o pensamento de Sócrates, a profundeza do
ser humano está na alma, não no corpo, nem mesmo na
união do corpo e da alma, pois o homem serve-se de seu
corpo como de um simples instrumento.
2.2.2 Cristianismo
Dentro de uma concepção cristã do mundo, sabe-se
que não é pleonasmo a expressão pessoa humana. De fato:
No primeiro concílio ecumênico, reunido em Nicéia
em 325, cuidou-se de decidir sobre [...] duas
interpretações antagônicas da identidade de Jesus: a
que o apresentava como possuidor de uma natureza
exclusivamente divina (daí o nome de monofisitas
atribuído aos partidários dessa crença: physis =
natureza), e a doutrina ariana, segundo a qual Jesus
fora efetivamente gerado pelo Pai, não tendo,
portanto, uma natureza consubstancial a este. Os
padres conciliares estabeleceram, como dogma de fé,
que a hypóstasis de Jesus Cristo apresentava uma
5 ibid. 6 ibid.
19
dupla natureza, humana e divina, numa única pessoa
(prósopon), vale dizer, numa só aparência. 7
O cristianismo constituiu-se num fator importante na
gênese e desenvolvimento da noção e valorização do
homem como pessoa. O conceito de pessoa tem uma origem
pré-cristã, mas foi o cristianismo que lhe deu seu caráter
específico, ou seja, foi através dele que a palavra pessoa
alcançou seu traço característico com referência à
singularidade da individualidade humana. Desde a forma de
vivência religiosa do cristão em relação com Deus, até às
formulações teológicas sobre a Trindade, o cristianismo
ofereceu um campo propício para o desenvolvimento do
conceito metafísico e axiológico da pessoa humana.8 É o
que também Joseph Ratzinger-Bento XVI afirma:
O conceito de pessoa e a idéia em que se funda são
produtos da teologia cristã; em outras palavras, essa
noção se originou inicialmente do debate do
pensamento humano com os dados da fé cristã,
entrando na história do espírito por este caminho.
Logo, para falar com Gilson, no conceito de pessoa,
temos uma daquelas contribuições ao pensamento
humano que a fé cristã possibilitou e realizou; que
não se originaram simplesmente do filosofar do
homem mesmo, mas do debate da filosofia com os
dados prévios da fé e principalmente da Sagrada
Escritura. Mais exatamente, o conceito de pessoa se
7 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no
mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 456-
457. 8 VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes. Aparecida: Santuário, 1981,
v.2.
20
originou de duas perguntas que desde o início se
impuseram ao pensamento cristão como questões
centrais, a saber: Quem é Deus (o Deus que
encontramos na Bíblia)? Quem é Cristo? Para a
solução desses dois problemas básicos, que com o
início do pensamento imediato surgiram na fé, a
reflexão empregou a palavra prósopon, que até então
era filosoficamente irrelevante ou absolutamente
ausente, dando-lhe assim um novo sentido e abrindo
uma nova dimensão do pensamento humano. 9
Boécio também teve participação na elaboração do
conceito de pessoa. Abrindo novamente a polêmica do
concílio ecumênico de Nicéia, afirmava:10 “diz-se
propriamente pessoa a substância individual de natureza
racional”. Essa idéia foi também adotada por Santo Tomás
de Aquino na Summa Theologica. A partir desta concepção
medieval de pessoa, deu-se início à elaboração do princípio
da igualdade entre os seres humanos, dando origem, na
modernidade, aos direitos humanos.
Segundo afirma o Catecismo da Igreja Católica, a
pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao
mesmo tempo corporal e espiritual. O corpo do homem é
corpo humano precisamente porque é animado pela alma
espiritual. A alma não é produzida pelos pais e é imortal: ela
9 JOSEPH RATZINGER-BENTO XVI, 2007, p. 177-178. 10 BOÉCIO apud COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito,
moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, p. 457.
21
não perece quando se separa do corpo no momento da morte
deste, e se unirá novamente ao corpo na ressurreição final. 11
2.2.3 A Contribuição de Kant
O homem é tido como um valor absoluto (não
relativo) e um fim (não um meio, do qual esta ou aquela
vontade possa servir-se conforme seus caprichos). Este é o
resumo de toda a elaboração teórica do conceito de pessoa
dentro da filosofia kantiana.
Kant12 assim se expressa: “Age de maneira que
sempre tomes a humanidade, tanto em tua pessoa como na
de qualquer outro, como fim e nunca como puro meio”.
Desse modo, pessoas são entes racionais, marcados pela sua
própria natureza, com fins em si mesmos. Os entes que
dependem da vontade da natureza, que são irracionais,
possuidores de valor relativo (que se pode substituir), são
denominados coisas. Se pessoa fosse tida como meio,
estaríamos limitando o livre-arbítrio. A pessoa possui
dignidade, as coisas um preço. 13
11 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (C. I. C.). Edição Típica
Vaticana. São Paulo: Loyola, 2000, n. 362-363. 12 KANT apud VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes. Aparecida
(SP): Santuário, 1981, v.2, p. 92. 13 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no
mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
22
Além dessas linhas de pensamento que predominam
desde os gregos até Kant, percebe-se também que o Direito,
refletindo sobre essas idéias, ajudou muito na elaboração do
conceito de pessoa, bem como a Filosofia e a Teologia. Se
se ignora a busca da compreensão da realidade, torna-se
difícil pensar pessoa, assim como se torna inviável pensar
humano, sem o auxílio da ciência.
2.3 DIALÉTICA ENTRE SAGRADO E
PROFANO
Por se tratar do estudo do aborto, problema
relacionado com a dignidade da pessoa humana, será
interessante tratar da dialética entre o sagrado e o profano.
Vidal14 declara que “a estrutura da instância ética da
pessoa não [é] simples, mas complexa. Por isso, [...] o
estudo de seus problemas morais não [pode] ser uma
metodologia simples, mas complexa”. Assim sendo, talvez a
capacidade e o conhecimento humano de que se dispõe não
sejam suficientes para uma busca tão complexa sobre o
assunto abordado. Entretanto, a dialética é o meio mais
viável para tanto, pois a mesma mantém a “riqueza da
complexidade, [...] ao mesmo tempo [que traz] a clareza da
unidade [entre cada uma das polaridades da dialética]”. 15 14 VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes. Aparecida: Santuário,
1981, v.2, p. 106. 15 ibid.
23
Vale ressaltar que existem outras estruturas éticas
que poderiam ser apontadas juntamente com a dialética
entre sagrado e profano.
Todo o cuidado proposto pela religião a respeito da
dignidade da pessoa não ocorre por mera exigência
dogmática ou por qualquer tipo de imposição a fim de
manter a Sagrada Tradição. Como a consciência do ser
humano é “elástica”, faz-se necessário manter a moderação,
pois se assim não se fizer, tudo vai se tornando comum e
indiferente perante a virtude da preservação da dignidade da
pessoa humana.
Não só dentro da religião, mas também no contexto
da sociedade em geral, nota-se a existência desse modelo de
preservação da vida, que é o que garante de maneira mais
vasta a vida humana, evitando violar os direitos humanos.
Entretanto, diante de toda a realidade que o horizonte
nos oferece, Sebastian,16 afirma que:
Nada e ninguém no mundo tem um valor sagrado no
sentido de estar isento das leis da natureza e da
racionalidade... Tudo o que há no mundo está aberto
à exploração do homem e submetido ao seu domínio.
Não há deuses. Estamos a sós dentro do nosso
mundo. A presença do Deus verdadeiro é a presença
Apesar de várias religiões se manifestarem sobre o assunto, aqui
faremos referência específica à religião cristã, tal como a professa a
Igreja Católica. 16 SEBASTIAN (1970) apud VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes.
Aparecida: Santuário, 1981, v.2, p. 113.
24
de um Deus ausente, um Deus que nos deixa carregar
o peso e a responsabilidade de nossa vida no mundo,
um Deus que quer que vivamos no mundo sem Ele e
isto em ação de graças e como glória sua.
Estas palavras, que poderiam dar oportunidade a
algum mal-entendido, devem ser compreendidas em sua
exatidão. O que Sebastian quer deixar claro é que a pessoa
humana não pode ser considerada como uma realidade
puramente “sagrada”, pois se assim fosse, seria contraditório
falar de responsabilidades, racionalidade do ser humano,
nem mesmo da validade de um pensamento antropocêntrico
– o que é próprio do pensamento cristão. 17
No âmbito da profanidade da pessoa, fica clara a total
aversão a toda e qualquer manipulação técnica e objetivação
científica do ser humano, pois:
Sempre que nos enfrentamos com o mundo da pessoa
humana, topamos com o “mistério”, um mistério que
não pode ser escamoteado, já que se volta sempre
contra quem o “profana”. [...] A compreensão da
pessoa como fim (e não como meio) e como valor
absoluto (não como valor relativo) impede-nos de
considerar o homem como uma realidade puramente
“profana”. 18
17 VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes. Aparecida: Santuário,
1981, v.2, p. 113. 18 ibid., p. 114.
25
Não se podendo formular uma ética da pessoa a partir
de uma total sacralização do ser humano, nem mesmo de
uma incondicional profanidade, faz-se necessária uma
síntese entre essas duas tensões.
Segundo Vidal,19 a modernização da moral cristã,
funda a secularização da pessoa humana. Desse modo, o
grande questionamento que se faz é o modo de como
entender a relação entre secularidade e ética cristã da
pessoa.
Parece-nos que o postulado de uma ‘moral cristã
secular’ pode ser banalizado e convertido numa
moda passageira para a apresentação da dimensão
ética cristã. Nesse sentido, a secularidade em relação
com a moral cristã não significaria outra coisa que a
‘modernização’ desta, tanto no modo de falar como
nos conteúdos. Seria a aplicação do
‘desenvolvimentismo’ no campo moral. Não seria
demais dizer que não entendemos neste nível a
relação entre secularidade e ética cristã. 20
Diante dessa reflexão, conclui-se que a moral da
pessoa humana deve ser compreendida a partir da idéia da
responsabilidade pessoal, pois assim, pode-se formular uma
moral da pessoa humana como valor absoluto dentro da
atual situação secularizada. 21
19 ibid. 20 VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes. Aparecida: Santuário,
1981, v.2, p. 115. 21 ibid.
26
Disto deriva que o estudo da problemática do aborto e
a metodologia de estudos acerca da pessoa humana, não
devem atingir os extremos opostos. Faz-se necessário
permanecer num equilíbrio dialético entre sagrado e
profano, de modo a evitar uma queda por uma “ladeira
escorregadia”.
Trata-se de um raciocínio levado indevidamente ao extremo. Um
simples empurrão por sobre esta “ladeira escorregadia” seria
suficiente para que se perca totalmente o controle.
27
3 O PROBLEMA DECORRENTE DA
DEFINIÇÃO DE PESSOA E HUMANIZAÇÃO E
A REFLEXÃO ACERCA DE SUA
JUSTIFICAÇÃO MORAL
Diante da definição dos termos pessoa e
humanização, bem como de toda a discussão do início da
vida humana, surgem reflexões filosóficas envolvendo a
pessoa humana. Uma dessas questões é a do aborto, atitude
que visa à destruição da vida humana. Por isso, reafirme-se
aqui desde já que a vida humana possui “caráter sagrado e
inviolável, no qual se reflete a própria inviolabilidade do
Criador”.22
A história da formação da problemática do aborto
mostra que a extensão e a crescente aceitação da
prática do aborto no final do século XX no mundo
ocidental é uma situação artificialmente provocada
pelo trabalho de entre uma e duas dezenas de
entidades de âmbito internacional. O trabalho que
estas entidades desenvolvem iniciou-se há
aproximadamente 200 anos atrás, na virada do
século XVIII para o século XIX, tendo sido
desenvolvido, durante cerca de 150 anos, por grupos
marginalizados dentro da sociedade sem uma linha
de atuação claramente definida. Após o término da
22 PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas, 1995, p.
107.
28
Segunda Guerra Mundial, quando o problema
demográfico foi levantado através da ONU, estes
grupos conseguiram atrelar suas idéias sobre
planejamento familiar e aborto à problemática do
controle populacional. A partir deste momento
deixaram de ser vistos como grupos marginais,
ganharam respeitabilidade, financiamento e o
controle quase total das instituições de pesquisa e das
agências governamentais do primeiro mundo e das
Nações Unidas que se dedicam ao estudo e às
atividades com problemas populacionais. [...] A
história mostra [...] que, embora a Igreja Católica
seja vista [...] como a única entidade que se
manifesta contra os métodos artificiais de controle da
natalidade, isto não foi sempre assim. Até a Segunda
Guerra Mundial a maioria dos países civilizados
adotavam também esta posição. Nos Estados Unidos,
desde o fim do século XIX, quando a influência
católica naquele país era insignificante, a divulgação
de métodos artificiais para a prevenção da gravidez,
mesmo que partisse da iniciativa de um médico, era
considerada crime passível de prisão. 23
Percebe-se, assim, como a expansão da sociedade
civilizada e a necessidade quase urgente de um controle de
natalidade e planejamento familiar, levou à prática do
aborto. Entretanto, caso se perder o controle da mesma,
pode-se estar no princípio de um problema que acarretará
23“Uma reflexão sobre a história da formação da problemática do
aborto”
Disponível em
<http//:www.accio.com.br/nazare/1946/hstrab2.htm>. Acesso em 02
ago. 2007.
29
“conseqüências pelo menos tão graves quanto as que
haveria, se ocorresse a perda do controle sobre a produção e
o uso do arsenal de armas nucleares.” 24
Segundo Pessini e Barchifontaine,25 a conceituação
clássica do aborto consiste na expulsão ou extração de toda
e qualquer parte da placenta ou das membranas, sem um
feto identificável, ou com um recém-nascido vivo ou morto
que pese menos de quinhentos gramas. No caso de não
identificação do peso, pode ser utilizada uma estimativa da
duração da gestação de menos de vinte semanas completas,
contando desde o primeiro dia do último período menstrual
normal.
O aborto pode ocorrer naturalmente, não dependendo
da vontade da gestante ou de qualquer vontade humana. É o
chamado aborto espontâneo, que ocorre por distúrbio do
organismo materno ou do próprio embrião, bem como por
algum acidente sofrido pela mãe durante a gravidez.
É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar
reveste para a mãe um caráter dramático e doloroso:
a decisão de se desfazer do fruto concebido não é
tomada por razões puramente egoístas ou de
comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar
alguns bens importantes como a própria saúde ou um
nível de vida digno para os outros membros da
família. Às vezes, temem-se para o nascituro
condições de existência tais que levam a pensar que
seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras
razões semelhantes, por mais graves e dramáticas 24 ibid. 25 PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P. Problemas atuais de
Bioética. São Paulo: Loyola, 1991.
30
que sejam, nunca podem justificar a spressão
deliberada de um ser humano inocente. 26
Entretanto, também ocorre o aborto voluntário, ou
seja, o aborto provocado, doloso, que sofre intervenção
externa, tendo por objetivo a morte do feto. Sobre esta ação,
o papa João Paulo II, assim declarou:
[...] a Igreja aponta este crime [aborto voluntário]
como um dos mais graves e perigosos, incitando,
deste modo, quem o comete a ingressar
diligentemente pelo caminho da conversão. Na
Igreja, de fato, a finalidade da pena de excomunhão é
tornar plenamente consciente da gravidade de um
determinado pecado e, conseqüentemente, favorecer
a adequada conversão e penitência. 27
As causas do aborto provocado costumam ser
chamadas de “indicações”. Pessini28 subdivide-as em:
a) indicação eugênica, quando o aborto é provocado
para livrar-se de um feto com problemas físicos;
b) indicação médica ou terapêutica, se a causa for pôr
fora de perigo a vida ou saúde da mãe;
c) indicação social, quando se interrompe a gravidez
para não arcar com a carga social e econômica que
comporta;
26 PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas, 1995, p.
117. 27 ibid., p. 124-125. 28 op. cit.
31
d) indicação ética, quando com a interrupção da
gravidez se pretende atenuar um erro moral ou eliminar uma
desonra social.
No intuito de discernir com prudência entre a
aceitação ou não da prática do abortamento, dispõe-se de
duas vias de justificação moral, dado que “no âmbito da
bioética normativa, o ponto questionável não é o do limite
ético, mas o das razões que justificam as regras, os juízos
morais”. 29
Faz-se necessário o auxílio dessas vias de justificação
moral, pois o elemento crítico de um debate bioético é
sempre indicar aquilo que é lícito ou ilícito, ou seja, ir em
busca da razão que justifique ser lícito ou não. Como relata
de maneira extraordinária Silva30, o questionamento que
intriga a vida moral e a reflexão ética é a busca de
fundamentos nos quais se define se um juízo moral, de fato,
é lícito ou ilícito, honesto ou desonesto, obrigatório ou
proibido. A vida moral é um apelo sucessivo à realização do
valor como qualidade positiva, ou seja, é algo que vem para
humanizar a pessoa e consequentemente a sociedade.
No sentido de buscar a vida e a autonomia da pessoa,
estabelecendo-as como valores fundamentais, é que se
dispõe de tais vias – tidas como seguras – que logicamente
levarão a posições diferentes. São elas: a via essencialista ou
vitalista e a via pragmática.
29 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação
moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 39. 30 ibid.
32
3.1 VIA ESSENCIALISTA OU VITALISTA
Os adeptos desta corrente de pensamento, como é o
caso da Igreja Católica, bem como dos movimentos pró-vida
e demais grupos sociais que são contra a prática do aborto,
partem da idéia de que o discurso bioético precisa estar
fundamentado em valores básicos essenciais e absolutos.
Isso quer dizer que o fundamento dessa via não tem como
pano de fundo o utilitarismo, mas sim, a obediência do ciclo
natural da vida e a sacralidade da mesma.
Sendo as razões que justificam as regras, e não as
regras em si, quanto ao ponto questionável da bioética,
deve-se afirmar que parece evidente ser a via essencialista a
mais adequada como linha de pensamento, haja vista que
esta possui embasamento na natureza humana, ao amparar a
idéia do nascimento, crescimento e morte natural da pessoa.
Assim, se o aborto vier a acontecer de maneira espontânea,
nada se oporia a essa linha de pensamento que defende a
vida, a essência do ser humano, pois em condições naturais,
seria algo comum, devido a vários aspectos biológicos da
gestante ou do próprio feto.
Jean-François Malherbe31 diz que “não se pode fazer
bioética seriamente se não se apoiar sobre um fundamento
antropológico”. Desse modo, a bioética procura entender a
pessoa em sua globalidade, para assim ter base segura na
No sentido daquilo que constitui a natureza de um ser. 31 MALHERBE apud SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão
da justificação moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 42.
33
definição do comportamento moral verdadeiramente
humano. Sendo a pessoa o ponto de referência para concluir
se certos atos são lícitos ou ilícitos, a dignidade humana
deve ser levada sempre em consideração. Dignidade supõe
necessariamente respeito, daí o firme propósito da via
essencialista, que é o respeito para com a pessoa humana.
Mas, como definir o momento inicial da vida
humana? Dentre as várias posições existentes que tentam
dar conta de uma explicação plausível para o início da vida
humana, destacam-se as duas grandes tendências apontadas
por Silva,32 a biológica e a filosófica, bem como a
concepção filosófica de Bergson sobre a vida. Elas serão
objeto de atenção no próximo capítulo.
A via essencialista tem como base a compreensão de
pessoa dentro de uma visão muito ampla, integral, bem
maior do que a sugerida pelo método científico, onde a
análise é feita “em partes”. Isso se dá pelo fato de que nesta
ótica, o natural e o moral estão estritamente ligados. A
importância dessa globalidade está em que essa via de
justificação moral busca a essência fundamental do
comportamento moral humano, apresentando e focando a
vida num todo e não em partes, o que torna difícil afirmar
que a vida tenha um ponto que se possa denominar como o
“início da vida”. O adepto da via essencialista acredita na
possibilidade de chegar à essência da realidade humana.
Trata-se de uma via segura pelo motivo da base do ser
humano ser entendida a partir dele mesmo. Isso proporciona
firmeza ao critério. Segundo Silva, o critério é firme:
32 ibid.
34
[...] porque se apresenta substancial. E o que é
substancial subsiste em si. E o que está em si, assim o
é por que está em posse de suas propriedades
específicas. Logo, o que está apropriado de si, só
pode ser e agir segundo a sua natureza. Nesse sentido,
natureza é princípio de ser e de operação.33
A pessoa, manifestando-se sempre como ser humano,
logicamente deverá agir segundo a sua natureza humana.
Desse modo, parece que se está fazendo uma justificativa
moral apropriada, tendo em vista que “[...] a ordem natural é
o fundamento inconcusso da ordem moral”. 34
O adepto da corrente essencialista ou vitalista sempre
se coloca do lado oposto das escolhas e posições morais que
possam vir a colocar em risco a vida humana em seu ciclo
natural, desde a concepção até seu fim natural. A encíclica
do papa João Paulo II, Evangelium Vitae,35 afirma que “a
morte direta e voluntária de um ser humano inocente é
sempre gravemente imoral”. Aceitando-se o aborto, estar-
se-á adentrando numa profunda crise do sentido moral,
“afinal, é ao princípio de sacralidade que está implícita a
idéia de intocabilidade da vida humana”. 36
Em suma, o vitalista abraça a convicção até aqui
apresentada, amparado, é claro, pelos argumentos
teológicos, filosóficos e morais que defendem a vida.
33 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação
moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 45. 34 ibid. 35 PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas, 1995, p.
113. 36 op. cit., p. 57.
35
Dentro da visão vitalista, a vida é sagrada. Este é um
princípio supremo, inviolável pelos homens, de maneira que
os demais princípios, normas e regras devem ser-lhe
subordinados. Se assim não fosse, por ter uma consciência
“elástica”, o ser humano expandiria cada vez mais a idéia de
passar por cima de certos princípios, normas e regras,
tornando-os comuns e banais, de modo que a “gravidade [do
aborto, por exemplo] vai-se obscurecendo progressivamente
em muitas consciências”. 37
É importante ressaltar e mostrar o caminho pelo qual
se chega à justificação moral da via essencialista, tida como
verdadeira, incondicional e fundamental. Para tanto, Daniel
Callahan,38 identificou cinco critérios que comprovam a
sacralidade da vida humana:
a) sobrevivência da espécie humana;
b) preservação das linhas familiares;
c) o direito de os seres humanos terem proteção de
seus companheiros;
d) respeito por escolhas pessoais e autodeterminação;
e) inviolabilidade corporal.
É lógico que esses critérios só são aplicáveis em sua
totalidade aos seres humanos – não aos animais: daí a
valorização da vida humana.
Dispomos de duas perspectivas que fundamentam a
via essencialista, através da qual “[...] o percurso que se
37 op. cit., p. 115.
38 CALLAHAN apud PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P.
Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Loyola, 1991, p. 23-24.
36
realiza pode chegar à compreensão do valor com
fundamento na realidade metafísica”. 39
3.1.1 Perspectiva Metafísico-Personalista
O ponto de partida para a reflexão desde este ângulo é
a pessoa. Esta possui justificação de teor absoluto, pois:
[...] com relação à pessoa, o corpo é co-essencial, é
sua encarnação primeira, o fundamento único no
qual e por meio do qual a pessoa se realiza e entra no
tempo e no espaço, se expressa e se manifesta,
constrói e exprime os demais valores, inclusive a
liberdade, a socialidade e até o próprio projeto
futuro.40
Nota-se aqui como o valor da pessoa, ligado
intimamente ao respeito do corpo, é posto como princípio de
tudo, transcendendo a tudo, sendo anterior a qualquer outro
valor ou direito que possa existir. O vitalista não coloca o
conceito de “transcendência” ligado a Deus, mas como uma
verdade metafísica, de transcendência da pessoa, dada a
superioridade do ser humano em relação aos seres infra-
humanos.
39 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação
moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 58. 40 SGRECCIA, Elio. Manual de bioética I: fundamentos e ética
biomédica. São Paulo: Loyola, 1996, p. 157.
37
Essa reflexão encontra base na propriedade mais
específica do ser humano, que é sua natureza espiritual,
destacando-o como o único ser vivo dotado de razão.
Silva esclarece a questão afirmando que:
‘Des-cobrir’ a realidade do espírito, a natureza
racional da pessoa é vê-la a partir de dentro, da
riqueza de sua essência única e distinta em relação a
todos os outros seres vivos. O que é mais importante
ainda é o fato de que a ‘des-coberta’ a partir da
interioridade faz emergir verdades que ampliam a
compreensão do princípio da vida humana. 41
Na ótica vitalista, através da perspectiva metafísico-
personalista, observa-se a existência de um duplo
fundamento: o respeito absoluto à vida humana, apresentada
como sagrada, e a dignidade da pessoa. Estes fundamentos
não serão aqui analisados em detalhe; serão apenas
apresentados estruturalmente.
3.1.2 Perspectiva Teológica
Este ponto de vista possui rumo semelhante ao
metafísico-personalista, entretanto, distancia-se dele ao
41 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação
moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 61.
38
atribuir a Deus a propriedade da vida. Trata-se de uma
compreensão teândrica, onde o divino transparece no
humano.
Sendo a vida no mundo a manifestação da presença
de Deus, este é posto como fonte da vida do ser humano.
Esse modelo de reflexão alicerça com segurança as
verdades afirmadas na Encíclica Evangelium Vitae, de que a
vida humana é sempre um bem, um dom, é sagrada e
inviolável. Essas verdades, segundo Silva,42 podem ser
sistematizadas assim:
a) a vida humana é sempre um bem – Se comparada
à vida de qualquer outro ser vivo, damo-nos conta da
grande diferença, frente à originalidade de
manifestação da presença de Deus. No Concílio
Vaticano II recordou-se que “pela sua encarnação,
ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada
homem”.43 Também Santo Irineu44 evidencia que “a
glória de Deus é o homem vivo”. A dignidade
humana, que tanto é afirmada e prezada pela
perspectiva teológica, tem sua raiz na íntima ligação
existente da pessoa com o seu Criador. É Deus quem
proporciona este bem inestimável. O ser humano
possui e exala essência divina. Logo, se este se
assemelha Àquele, só pode ser também um bem
inestimável;
42 ibid. 43 COMPENDIO DO VAT II, Gaudium et spes. 10. ed., Petrópolis:
Vozes, 1976, n. 22. 44 IRINEU apud PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo:
Paulinas, 1995, p. 68.
39
b) a vida humana é um dom – Só se pode afirmar essa
verdade da vida como dom, se for compreendida à luz
da relação com Deus. De acordo com esta visão, a
condição primeira que se estabelece é a de que a vida
é uma oferta divina. Deus a oferece ao ser humano de
forma gratuita, como autêntico dom. Este gesto é
expressão da bondade divina, pelo qual Ele comunica
algo de si mesmo à sua criatura, confiando a ela um
bem de valor incomensurável;
c) a vida humana é sagrada – Baseando-se nas
verdades de que a vida é sempre um bem inestimável
e um dom, pode-se, pois, intuir que a sacralidade da
vida tem seu fundamento em Deus e na sua ação
criadora. “A vida humana é sagrada porque, desde a
sua origem, supõem ‘a ação criadora de Deus’ e
mantém-se para sempre numa relação especial com o
Criador, seu único fim”.45 É clara a preocupação do
papa João Paulo II, na encíclica Evangelium Vitae,
em destacar que o sentido de sacralidade, revertido à
sua fonte mais genuína, indica que a origem da vida
humana provém de Deus. Ele, dando vida ao homem,
não lhe permite domínio “absoluto, mas ministerial
[da mesma]”.46 Assim cabe ao ser humano
administrar o dom da vida, que é recebido de Deus,
fazendo emergir deste, toda a riqueza e
potencialidades inerentes, não se dispondo do direito
de abreviá-la ou tolhê-la;
d) a vida humana é inviolável – “Da sacralidade da
vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita desde as
45 PAULO II, João. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas, 1995, n.
53. 46 ibid, n. 52.
40
origens no coração do homem, na sua consciência”.47
O caráter inviolável pelo qual se molda a sacralidade
da vida é reflexo da inviolabilidade de Deus. Este
critério é o limite máximo. Nenhum outro critério no
âmbito humano tem consistência para justificar sua
violação.
Diante do núcleo de pensamento da encíclica sobre a
sacralidade da vida humana, até aqui abordado, surgem
alguns contrapontos, se assim se podem chamar, que
colocam em questionamento algumas das afirmações
apresentadas.
Dentro da própria Teologia Moral se afirma que “a
dignidade e o valor da vida se justificam em si e não só a
partir de sua origem em Deus”.48 Este, detendo o senhorio
absoluto da vida e fazendo do homem um mero
administrador, faz com que este perca ou pelo menos reduza
sua autonomia de protagonista de sua própria vida.
Azpitarte49 ressalta que:
Alguns setores cristãos pensam que a soberania de
Deus pode ser perfeitamente harmonizável com a
autonomia do homem para decidir sobre a sua
própria vida e acreditam que a interpretação
comumente dada ao senhorio de Deus sobre a vida é
uma alternativa aceitável, mas questionável.
47 ibid, n. 40. 48 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação
moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 75. 49 AZPITARTE apud ibid., p. 76.
41
Diante dos conflitos que por ventura possam aparecer,
dos riscos que se podem encontrar, bem como das ameaças
a essas justificações, as duas vias mantém-se como que
intransponíveis, sendo prescritas de modo inflexível,
incondicional, não comportando nenhum tipo de exceção.
Nada tem forças para violar um princípio. Ser vitalista é
estar à serviço da vida. Entretanto, a integridade da vida é
mais importante que a realidade física. Por isso, a citada
incondicionalidade perde o caráter de inflexibilidade,
quando, por exemplo, se busca preservar a vida física da
gestante, num todo ou por um bem moral superior. Aí está o
ponto frágil que se nota na argumentação acerca da
“incondicionalidade” do princípio de sacralidade da vida. 50
3.2 VIA PRAGMÁTICA
Dotada de característica utilitarista, a via pragmática,
como do próprio nome se deduz, adota uma postura tal em
relação às decisões a serem tomadas diante de certas
deliberações de cunho moral que sempre convergem para o
mais prático. Trata-se de descobrir a solução boa ou mais
adequada perante um problema moral concreto, deixando de
lado o caráter ontológico, como sugere a via essencialista.
A via pragmática, segundo Silva,51 está mais voltada
para os fatos da vida das pessoas e instituições. Confrontada 50 ibid. 51 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação
moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
42
com a outra via, nota-se imediatamente a tensão entre o
plano ideal-normativo e prático-situacional da moral.
Essencialista e pragmática são duas vias que desde as bases
apresentam divergências bastante grandes. Entretanto,
qualquer posicionamento moral deve ser desprovido de
“lacunas” que possam deixar imprecisão, ambigüidade,
impressão.
Desse modo, partindo de duas vias de justificação
moral (essencialista e pragmática), tem-se aberto, no ponto
de chegada da reflexão, um leque de três perspectivas (de
defesa, de oposição e de admissão de exceção). De modo a
evitar tais “lacunas”, a via essencialista diz resolver a crise
da reflexão ética atual fazendo um retorno à convicção
ontológica, ou seja, colocando um princípio que firme
metafisicamente a justificação moral. “Pela via
essencialista, é possível chegar ao ‘ponto sólido’, como
elemento imutável, sobre o qual se fundam a objetividade e
a universalidade dos valores e das normas”. 52
Para os adeptos da via pragmática, ao contrário, os
impasses devem ser resolvidos a partir de medidas e
soluções práticas. Buscar solução num ideal seria estar
caminhando em busca da solução do problema pelo lado
oposto. O pragmático procura sempre a aproximação com a
realidade, daí tantos serem adeptos desse modo de pensar.
Pela via pragmática não existe um ponto invariável, valores
imutáveis, mas sim flexibilidade, de modo que se disponha
do “máximo de prazer ou felicidade em detrimento do
mínimo de dor ou sofrimento”, como indica a divisa
utilitarista.
52 ibid., p. 50.
43
Para a reflexão dessa via de justificação moral não
existe algo que seja bom ou ruim, e sim uma avaliação
prática; buscam-se benefícios e utilidade.
Assim, pois, a partir da reflexão até aqui exposta:
Os que denominamos de ‘pragmáticos’ interpretam o
valor da vida [...] [entendendo] que a noção de
sacralidade da vida é um princípio abstrato,
indeterminado, que não responde de modo
satisfatório às questões bioéticas concretas. É vago e
dogmatista demais para se extrair dele regras
práticas com o intento de iluminar as questões
cruciais que assolam, principalmente, o setor
biomédico. 53
O modelo pragmático, ao contrário do essencialista,
não peca pela falta de realismo. Esse coloca a ação
conforme as circunstâncias práticas, o que faz abrir um
conjunto diversificado de idéias, de critérios valorativos, em
que a qualidade da ação pode ser avaliada ou medida com
base nos objetivos e fins, nas conseqüências, no cálculo dos
custos, dos benefícios, das vantagens ou desvantagens, do
aumento da felicidade, como sugere Silva.54 Não existe uma
verdade moral universal tida como norma para todos. A
justificação moral não se limita à aplicação incondicional de
um princípio ou de uma simples norma.
53 ibid., p. 91. 54 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação
moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
44
A reflexão ética deve sempre levar em conta a
complexidade da realidade, por isso a perspectiva em
discussão procura sintetizar o maior grau de realismo em
relação às conseqüências, aos fins, aos interesses, aos
valores que estão em jogo na circunstância concreta. A
fortiori, o papel do juízo moral é orientar a prática.
Viver com qualidade é a questão fundamental através
da qual se entende a reflexão voltada para a ação prática. A
vida, portanto, seria um valor relativo, em que se coloca em
cena a questão da “qualidade de vida”.
Dentre as tendências que assumem o princípio da
“qualidade de vida” vale ressaltar aquela que aparece em
contraposição ao conceito de “sacralidade da vida”. Esta
afirma que a vida só é sagrada quando possui qualidade.
Entretanto, tal consideração aparenta ser simplista e
relativista, pois não se assenta num fundamento de verdade,
numa base sólida, num ponto imutável. Seria mais viável
dizer que são dois princípios que se complementam, ao
invés de se oporem entre si; como ressaltavam os antigos,
“in medio virtus”.
Do latim: “A virtude está no equilíbrio”.
45
4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ORIGEM DA
VIDA HUMANA
Este capítulo tem por finalidade apresentar os estudos
e discussões acerca da origem da vida humana. Não se trata
de incluir na consciência do leitor uma posição, e sim, a
partir da explanação dos pontos de vista, que o leitor –
consciente de sua origem e embasado em seus fundamentos
morais, recebidos desde o berço – possa reafirmar sua
posição ou mesmo acrescentar a ela alguma idéia nova.
4.1 QUANDO INICIA A VIDA HUMANA?
Os tratados de medicina continuam afirmando que o
início da vida humana acontece no momento da união do
óvulo e do espermatozóide. Mesmo grandes defensores do
direito da mulher ao aborto concordam com esta afirmativa.
Por exemplo, Peter Singer, interrogado sobre o início da
vida humana, respondeu que não tinha dúvidas de que esta
começasse no momento da concepção. É importante
esclarecer desde o princípio que não há possibilidade de
dúvida quanto ao início da vida humana. 55
55 “Não há possibilidade de dúvida quanto ao início da vida
humana”
46
No caso de afirmar que o início da vida não ocorre no
instante da fecundação, a grande problemática está em
definir cientificamente quando, então, inicia a vida humana,
bem como em dizer o que se é antes de se ter vida. Se a vida
não iniciar no instante da fecundação, o que seria aquele
zigoto? Adubo para o acaso produzir vida? Lixo humano
para ser jogado fora? Os próprios abortistas confessam que
não sabem o tempo verdadeiro e, por isso, não são unânimes
na discussão da linha divisória entre o humano e o não-
humano. Os donos da verdade não encontram sua própria
verdade e não cedem, diante do princípio universal da
consciência humana, o direito da dúvida à vida.
Tem-se a impressão de que os pragmáticos pensam
como os vitalistas, entretanto, alguns variam o tempo para o
início da vida, de acordo com os interesses casuísticos do
momento.
As características indeléveis de cada ser humano
estão presentes em potência já na fecundação. 56
Disponível em
http://www.presbiteros.com.br/Moral/Bio%E9tica/N%E3o%20h%E1
%20possibilidade%20de%20d%FAvida%20quanto%20ao%20in%ED
cio%20da%20vida%20humana.htm>. Acesso em 02 set. 2007.
“Potência” significa a própria estrutura do ser, sendo já aquilo que se
revelará mais tarde; é a parte do ser que já é em si, mas ainda não se
atualizou, porque depende do tempo, de circunstâncias, motivações,
maturidade, esforço, vontade. 56 “Somos, desde a concepção”
Disponível em
47
A embriologia moderna pode afirmar com segurança
que o processo evolutivo embriológico é um processo
contínuo, que vai desde o momento da concepção até
o momento do nascimento, e prossegue depois deste.
Por isso, o feto deve ser considerado geneticamente
autônomo, único e irrepetível. Daqui a ignorância
daqueles que põem no mesmo plano a extração dum
tumor, dum fibroma e o aborto. 57
Diante das discussões acerca da origem da vida
humana deparamo-nos com algumas clássicas visões que
focam o assunto:
4.1.1 A Tendência Biológica
Possui três grupos, ao redor dos quais, giram opiniões
de cunho biológico.
a) A fecundação: os partidários deste critério
afirmam que desde a concepção existe um ser
humano, “[...] que necessita apenas de crescimento e
http://www.presbiteros.com.br/Moral/Bio%E9tica/SOMOSDESDE.ht
m>. Acesso em 02 set. 2007). 57 LEJEUNE apud AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Aborto?...
Nunca!... 40 razões. Lorena: Cléofas, 2005, p. 11.
48
desenvolvimento para explicitar-se”.58 Por se tratar
de um complemento cromossômico das células
germinativas, masculina e feminina, do ponto de vista
genético, este novo ser difere-se dos pais. Dessa
forma, a dependência biológica da mãe, por parte do
novo indivíduo, “não afeta sua autonomia
genética”.59 Assim, conclui-se que no momento da
fecundação começa uma nova vida que requer tempo
para desenvolver cada uma de suas habilidades,
capacidades e disposições.
b) A nidação: são duas as razões que esta teoria
apresenta. A principal é o dado da ciência de que,
antes do zigoto abrigar-se no útero (processo de
implantação), poderá ocorrer a divisão do óvulo
fecundado, originando gêmeos univitelinos
(monozigóticos idênticos), ou ainda poderá ocorrer
aquilo que a ciência chama de “quimerismo”,
quando ocorre a fusão de dois embriões em um único.
Um segundo dado, decorre da observação de que
muitos embriões são abortados espontaneamente
antes de estar concluída a implantação. A nidação
também aponta para a individualização, ou seja,
depois que ocorre a implantação do zigoto no útero,
ele não é mais capaz de se dividir ou se unir,
tornando-se verdadeiramente único. 60
58 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação
moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 83. 59 ibid., p. 84. 60 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação
moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
49
c) A formação do córtex cerebral: não aceitando
o momento da fecundação, nem o momento da
implantação, os adeptos deste critério afirmam que a
formação do córtex cerebral é que proporciona a
vida ao ser humano. Os autores dessa visão afirmam
que “é o cérebro o órgão mais especificamente
humano, pois, centrado nele, é que se desenvolve o
psiquismo humano”. 61
Uma pessoa poder ser considerada morta quando o
cérebro deixa de funcionar de modo irreversível. Um
cérebro que, observado nas devidas condições, não
dá qualquer sinal elétrico, é um cérebro morto: a
pessoa já deixou de existir. 62
Observa-se que, na visão biológica, é propriamente a
área do desenvolvimento biológico que serve de parâmetro
para definir se existe ou não vida.
4.1.2 A Tendência Filosófica
A partir desta tendência, a reflexão que se segue leva
a crer que “o ser humano é muito mais que suas estruturas
biológicas e, portanto, não pode ser definido pela existência
de tais estruturas”.63 Com essa afirmação, sustenta-se uma
idéia contrária aos pontos expostos anteriormente. Se a
61 ibid., p. 86. 62 AZPITARTE apud SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão
da justificação moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 86. 63 FERNANDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética. São
Paulo: Paulinas, 2000. 2000, p. 53.
50
solução para a problemática do estatuto humano do embrião
fosse reduzida aos problemas biológicos, estaria sendo
discutido um problema amplo e crítico dentro de uma visão
muito limitada.
Toda a discussão da questão de pessoa e
humanização, exposta no primeiro capítulo deste trabalho
comprova que “o ser humano é muito mais que suas
estruturas biológicas e, portanto, não pode ser definido pela
existência de tais estruturas”.64 É importante levar em conta
que o ser humano é modelado pelo ambiente sociocultural
que o rodeia. São as relações inter-humanas que colaboram
diretamente no processo de formação da humanização e
personalização do indivíduo.
A visão filosófica foca mais a centralidade de sua
reflexão dentro da visão antropológica, social e cultural.
Silva65 afirma essa idéia dizendo que “desde a concepção já
existe vida humana, porém é uma vida que necessariamente
passa pelo processo de humanização”. No conceito de
humanização, faz-se uma distinção clara entre vida humana
e vida humanizada. Reforçando-se a idéia já anteriormente
exposta, a humanização do ser humano se dá em sua relação
com o outro.
É notório que toda a problemática está em aplicar o
conceito de pessoa ao embrião, o que não é uma questão
64 FERNANDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética. São
Paulo: Paulinas, 2000. 2000, p. 53. 65 SILVA, Márcio Bolda da. Bioética e a questão da justificação
moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 87.
51
antropológica, mas deve também envolver a discussão sobre
o estatuto jurídico da vida humana.
O pensador francês Henri-Louis Bergson, que se opôs
ao racionalismo, enfatizando a força criadora do espírito,
expõem também em sua filosofia a problemática da vida.
Bergson é um vitalista. Admite um impulso da vida (elã
vital) que perpassa o ser humano e que quer elevá-lo à vida
divina. Sendo o ser humano o veículo por excelência através
do qual esse impulso pode desenvolver-se plenamente e
fazer com que retorne ao centro dinâmico, interromper esse
impulso, destruindo o corpo humano, seria cortar pela raiz o
próprio movimento criativo de Deus. 66
O conhecimento científico tem uma visão de vida
diferente da visão bergsoniana. A ciência não admite o
impulso da vida a que se alude. Para ela, o ser humano é
uma máquina em que a física e a química seriam a chave
dos processos biológicos, ou seja, não se levaria em conta o
elemento interno: o impulso da vida que cria a alma e a
matéria num movimento concomitante.
A visão filosófica da vida apresentada por Bergson
chama a atenção por não analisar o ser humano “em partes”
delimitadas, como a ciência faz; mas, filosoficamente, lança
um olhar integral, mostrando que não se pode dizer que há
um momento específico em que a vida é infundida no ser
humano.
66 HABITZREUTER, Valdemar. Mística em Bergson: intuição da
força criadora, 2007. Monografia (Bacharelado em Filosofia) –
Curso de Filosofia, Centro Universitário de Brusque.
52
Assim, pode-se dar por esclarecido que a vida, para
Bergson, é oriunda de um centro dinâmico de ininterrupta
criatividade. Trata-se de um movimento evolutivo que
almeja transpor patamares de consciência cada vez mais
elevados.
53
5 ABORDAGEM FILOSÓFICA DOS
ARGUMENTOS E PERSPECTIVAS SOBRE O
PROBLEMA ÉTICO DO ABORTO
Após a reflexão em torno da definição filosófica de
pessoa e humanização, de uma reflexão acerca de sua
justificação moral, bem como das considerações acerca da
origem da vida humana, pode-se avançar no trabalho
refletindo sobre os argumentos favoráveis e contrários ao
aborto.
Neste capítulo procurar-se-á fazer uma abordagem
estritamente filosófica das visões vitalista (pró-vida) e
pragmática (pró-escolha). Os autores que serão
mencionados defendem uma posição ética que apela
unicamente à racionalidade, deixando de lado qualquer
convicção religiosa, doutrina feminista ou posição
parlamentar de uma nação, de modo a proporcionar uma
percepção clara da dialética gerada pelo problema ético do
aborto.
Trata-se de um diversificado grupo de autores: alguns
apóiam o aborto, outros são contrários a esta prática.
Apesar das divergências [...], não deixa de existir
uma demarcação clara entre os defensores das
“Dialética”, pois se trata de desenvolver a problemática do aborto a
partir de processos de oposições (a favor e contra o abortamento).
54
posições pró-vida e pró-escolha. Os primeiros
pensam que, logo no primeiro trimestre da gravidez,
o aborto é profundamente errado, pelo menos na
grande maioria dos casos. Os segundos advogam a
permissividade geral do aborto, e, mesmo que
considerem errado matar deliberadamente o feto
numa fase avançada da gravidez, isso levá-los-á a
reprovar apenas uma pequena parte dos abortos
efetivamente realizados. 67
O problema ético e o problema político sobre a
proibição do aborto não podem ser confundidos, pois neste
caso, se estaria fugindo do foco da discussão.
O problema ético é o fundamental, o que significa
que podemos investigá-lo sem atender ao problema
político, mas não fazer o inverso. A resposta correta
ao problema político depende crucialmente da
resposta correta ao problema ético. 68
A prioridade na discussão deve ser sempre o
problema ético. O aborto não pode ser descriminalizado,
como alguns afirmam, por um motivo de injustiça social,
quando pessoas de melhores condições econômicas dispõem
de meios para praticar o aborto, nos países em que há
liberdade para isso. Se assim fosse, muitos outros crimes
também cairiam nessa “ladeira escorregadia”, ou seja,
estariam sendo justificados a partir de um “argumento de
67 GALVÃO, Pedro. A ética do aborto. Lisboa, Portugal: Dinalivro,
2005, p. 10. 68 ibid., p. 12. cf. p. 18
55
derrapagem”. Discutir essa questão é altamente complicado,
pois:
No debate sobre a questão do aborto, nem só os que
defendem a sua descriminalização incorrem no erro
de fugir ao problema ético. De um modo geral, quem
sustenta que a lei deve proibir o aborto também se
limita a pressupor que a sua perspectiva ética é a
correta, abordando o assunto como se a simples
referência à ‘humanidade’ do feto a tornasse evidente
e dispensasse qualquer clarificação ou justificação. 69
É notória a discussão que se faz em torno da
humanidade do feto ou mesmo ainda do concepto, para
a discussão da liberação ou não do aborto. É diversificada a
visão dos autores sobre esse ponto crucial da bioética, como
se verá pelos argumentos propostos.
69 GALVÃO, Pedro. A ética do aborto. Lisboa, Portugal: Dinalivro,
2005, p. 14. Para a embriologia, corresponde ao organismo humano em
desenvolvimento, no período que vai da nona semana de gestação ao
nascimento. A obstetrícia afirma ser um conjunto de formações que compõem
um ovo fertilizado em qualquer fase de seu desenvolvimento, desde a
fertilização até o parto.
56
5.1 UMA DEFESA DO ABORTO – JUDITH
JARVIS THOMSON
De início, Judith Jarvis Thomson, apesar de não
compartilhar com a idéia, ressalta que grande parte dos
argumentos desfavoráveis ao aborto origina-se do
pressuposto básico de que no momento da fecundação o
concepto já possui vida humana. A oposição a esta
afirmação apóia-se no fato análogo ao desenvolvimento de
um carvalho, por exemplo, que se dá a partir de uma
semente, mas nem por isso as sementes o são em ato, apenas
em potência, para usar aqui a linguagem aristotélica.
Percebe-se a oposição entre o que é de fato e o que poderia
ter sido ou o que pode vir a ser no futuro. Compreende-se
assim que Thomson não considera o concepto como pessoa
humana desde o momento da fecundação.
Para suscitar a reflexão em torno do assunto,
Thomson apresenta a seguinte situação:
De manhã [o leitor] acorda e descobre que está numa
cama adjacente à de um violinista inconsciente – um
violinista inconsciente famoso. Descobriu-se que ele
sofre de uma doença renal fatal. A Sociedade dos
Melômanos investigou todos os registros médicos
disponíveis e descobriu que só o leitor possui o tipo
de sangue apropriado para ajudar. Por esta razão, os
Melômanos raptaram-no, e na noite passada o
sistema circulatório do violinista foi ligado ao seu, de
maneira a que os seus rins possam ser usados para
57
purificar o sangue de ambos. O diretor do hospital
diz-lhe agora: ‘Olhe, lamento que a Sociedade dos
Melômanos lhe tenha feito isto – nunca o teríamos
permitido se estivéssemos a par do caso. Mas eles
puseram-no nesta situação e o violinista está ligado a
si. Caso se desligasse, matá-lo-ia. Mas não se
importe, pois isto dura apenas nove meses. Depois ele
ficará curado e será seguro desligá-lo de si’. 70
Este exemplo coloca em questão o direito à vida.
Todas as pessoas possuem esse direito. Sendo os violinistas
também pessoas, usufruirão desta prerrogativa para que
também disponham do mesmo direito. Entretanto, parece
inconcebível ser obrigado a permanecer em tal situação, por
mais que se tenha consciência de que todos possuem direito
absoluto à vida.
Transpondo a situação anteriormente elucidada para a
situação de uma gestação, por exemplo, Thomson pergunta-
se sobre a possibilidade de abrir-se uma exceção para a
gravidez resultante de estupro. Entretanto, ele mesmo já dá
resposta a este questionamento dizendo que “as pessoas que
se opõem ao aborto [...] não abrem uma exceção para os
casos de violação”.71 Certamente este exemplo do violinista
é uma tentativa de convencer que, pelo menos nos casos de
violência sexual, seja admissível o abortamento. De fato,
alguns:
70 THOMSON, Judith Jarvis. A ética do aborto: perspectivas e
argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,
p. 27. 71 ibid., p. 28.
58
não abririam uma exceção [nem] para os casos em
que, miraculosamente, a gravidez se prolongasse por
nove anos ou mesmo pelo resto da vida da mãe.
Alguns nem sequer abririam uma exceção para os
casos em que a continuação da gravidez
provavelmente encurtaria a vida da mãe; há quem
pense que o aborto é impermissível mesmo para
salvar a vida da mãe. 72
Diante de uma situação extrema, quando uma mulher
grávida descobre que tem um problema cardíaco grave que
provocará sua morte, caso não interrompa a gravidez,
Thomson apresenta um dos argumentos que estimulam a
reflexão acerca da admissão ou não do aborto. Este leva em
conta o fato de que “fazer o aborto seria matar diretamente a
criança, ao passo que nada fazer não seria matar a mãe –
seria apenas deixá-la morrer”. 73 Entretanto, a posição em
questão, para a autora, é que não haverá um assassinato, se a
mulher abortar tendo em vista o desejo de salvar sua vida,
não concordando também com o fato dessa mesma mulher
ter que esperar de uma maneira cruel sua morte, pois a ela
estaria “condenada”..
Para Thomson,74 “uma mulher pode seguramente
defender sua vida da ameaça colocada pelo nascituro,
mesmo que fazê-lo implique a sua morte”. Neste caso, a
vida da mãe está, de certo modo, em jogo. Entretanto,
quando isso não acontece, o argumento “toda a gente tem o
72 ibid., p. 28-29. 73 ibid., p. 29. 74 THOMSON, Judith Jarvis. A ética do aborto: perspectivas e
argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,
p. 33.
59
direito à vida, por isso, a pessoa nascitura tem o direito à
vida”, possui muito mais força. Aqui entraria em questão
toda uma discussão sobre o “direito à vida”, que mereceria
um longo e detalhado exame, existindo diversas
perspectivas.
Analogamente à questão do abortamento, o fato de o
citado violinista precisar continuar a utilizar-se dos rins do
leitor, mostra que o primeiro não possui o direito de exigir
que o segundo continue a deixá-lo usar seus rins. Ninguém
possui o direito de usar os rins do outro, a não ser que este
tenha concedido este direito a alguém. Thomson defende
que “o direito à vida não garante o direito a começar a usar,
ou o direito de continuar a usar, o corpo de outra pessoa,
mesmo que seja preciso usá-lo para assegurar a própria
vida”. 75
Ainda analogamente à questão do abortamento, se o
“leitor” se desliga do “violinista”, após descobrir que terá
que ficar acamado durante nove meses ou nove anos por
causa do mesmo, parece que não será injusta a atitude de
desligar-se dele, tanto mais que não houve permissão para
isso. A autora, com esse modo de pensar, deseja dizer que
num caso de estupro, por exemplo, a mãe teria o direito de
praticar o aborto, pois a mesma não deu direito a um homem
de violentá-la sexualmente. Tanto o leitor quanto a mãe,
neste caso, estariam indo contra o direito do violinista ou do
bebê, isto é, de viverem, todavia, não estariam agindo
injustamente. 76
Conforme ilustração anteriormente citada. 75 ibid., p. 37. 76 ibid.
60
Diante dessa situação, admitamos que existam casos
em que seria indecente recusar “emprestar” os rins durante
uma hora, mesmo no caso em que uma pessoa tivesse sido
raptada para isso, levando em conta que não havia
equipamentos disponíveis para efetuar a hemodiálise. Isso
ocorre da mesma forma com a gravidez. Mesmo que esta
perdure nove meses ou apenas uma hora, seria indelicado da
parte da mulher praticar o aborto. Entretanto Thomson77
esclarece que:
[...] mesmo que admitamos um caso no qual uma
mulher que engravidou por ter sido violada deve
permitir que a pessoa nascitura use o seu corpo
durante uma hora, não podendo concluir que o
nascituro tem direito ao seu corpo – devemos antes
concluir que, caso a mulher se recuse a permitir-lhe
que use o seu corpo, estará a ser egoísta, insensível e
indecente, mas não injusta.
Como se vê, a perspectiva apresentada por Thomson
não desemboca num “sim” geral, nem em um “não” geral.
Respeita-se a opinião e o desejo de abortar por iniciativa de
uma mulher que foi violentada sexualmente ou deseja salvar
sua vida, entretanto é recusada a idéia de uma mulher
abortar apenas para evitar incômodos da gravidez.
O argumento fundamental de Thomson é o de que, tal
como qualquer pessoa poderia se desligar do violinista,
também a mulher pode desligar-se do feto. O aborto 77 THOMSON, Judith Jarvis. A ética do aborto: perspectivas e
argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,
p. 43.
61
consiste em pôr fim à ligação existente entre a mulher e o
feto.
A discussão em torno da questão do aborto no artigo
de Thomson encerra-se com a afirmação de que “um aborto
realizado na fase inicial da gravidez não consiste
seguramente em matar uma pessoa”. 78
5.2 RESTAURAÇÃO DA CREDIBILIDADE DO
ARGUMENTO PRÓ-VIDA - STHEPHEN D.
SCHWARZ
A argumentação elaborada por Schwarz tem o
objetivo de restaurar a credibilidade do argumento pró-vida,
que fora de certa maneira desconsiderado por Thomson
quando ela argumenta a favor da inexistência do dever de
sustentar a vida.
Schwarz sustenta que os dois casos – o do violinista
ligado à pessoa e o da criança ligada à sua mãe – são radical
e essencialmente diferentes, basicamente por três razões
diferentes.
78 ibid., p. 49.
62
5.2.1 A Primeira Refutação
Assim como Thomson afirma que “há alturas em que
podemos desligar-nos de outras pessoas, mesmo que isso
resulte na sua morte”,79 Schwarz também o concede. Essa
asserção é assim ilustrada por Schwarz:
Imagine um nadador-salvador que tenta reanimar um
banhista que está entre a vida e a morte. Ele continua
a tentar durante muito tempo, mas a vítima não reage
nem morre. Permanece à beira da morte. Num certo
momento, o nadador-salvador acaba por desistir –
ele não pode continuar indefinidamente. E a vítima
morre. Suponha que o nadador-salvador se esforçou
durante um período de tempo considerável e que
agora se justifica ele desistir. Suponha também que o
seu esforço sustentou a vida da vítima, apesar de ela
estar quase morta. [...]. Deste modo, também não
seria errado, pelo menos na maioria das condições,
Thomson desligar-se do violinista: ela poderia
recusar o seu apoio, não teria de sustentar a sua
vida. 80
A questão é que se considera plausível recusar apoio
vital à pessoa, entretanto, matá-la seria inadmissível.
79 SCHWARZ, Stephen D.. A ética do aborto: perspectivas e
argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,
p. 54. 80 ibid., p. 54.
63
De início, Thomson garante força ao seu argumento
que tenta justificar o aborto, apresentando-o como um
simples ato de retirada do apoio vital. Contudo, Schwarz
ressalta que abortar é também primariamente um ato de
matar. Desse modo pode-se concluir que “mesmo que [o
aborto] fosse justificável enquanto exemplo de ‘retirar o
apoio vital’, não é justificável porque também constitui um
exemplo de ‘matar’”.81 Ainda que se tenha outra intenção ao
fazer-se o aborto, o que se pode concluir é que se estará
matando alguém. O apoio vital não pode ser retirado
mediante o ato de matar.
[...] mesmo que a criança não tenha o direito positivo
de receber apoio vital da sua mãe, tem o direito
negativo de não ser morta. Um mendigo pode não ter
o direito positivo de ser alimentado e acolhido por
mim; eu posso não lhe dar esse apoio. Contudo, ele
tem seguramente o direito negativo de não ser
assassinado por mim. Podemos dizer o mesmo da
criança. 82
O fato de o aborto ser primeiramente o ato de matar
uma pessoa torna-o errado, apesar de poder não ser
considerado assim, se analisado sob outra ótica relacionada
à recusa de se dar apoio vital. Entretanto, esta opção de
recusa não parece plausível num primeiro momento, pois, se
a única maneira de exercer o direito de retirar o apoio vital é
matando uma pessoa, então este direito não pode ser
exercido. A vida possui precedência absoluta sobre qualquer
outro direito.
81 ibid., p. 55. 82 ibid., p. 57.
64
5.2.2 A Segunda Refutação
Voltando ao exemplo ilustrativo do nadador-salvador
e do violinista, pondera-se o fato de sua desistência da até
então insistência em reanimar a vítima ou de permanecer
ligada a ela. Entretanto, no caso do aborto, trata-se do laço
biológico existente entre pais e filhos, que cria a obrigação
destes cuidarem deles, bem como zelarem pelos direitos que
acompanham os que eles geraram e fizeram existir. Segundo
Schwarz:
a pessoa que está presa ao violinista não tem o dever
de sustentar a sua vida, [...], já que ele é um estranho
que mantém consigo uma relação extremamente
artificial. [...], mas temos a obrigação de sustentar os
nossos próprios filhos. 83
De maneira muito especial, a mulher grávida tem o
dever de deixar seu filho viver no único lugar onde no
momento específico da gestação ele está protegido, sendo
alimentado e desenvolvendo-se – o útero. O dever de
sustentar os filhos, bem como a vida de cada um, impede
que a mãe se desligue dele. Assim, a mulher deve sustentar
a vida de seu filho, pois é mãe dele. A pessoa ligada ao
violinista, pelo contrário, não tem o dever de sustentar sua
vida, já que não é mãe dele, não o está gerando, a não ser
que queira ser generosa.
83 SCHWARZ, Stephen D.. A ética do aborto: perspectivas e
argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,
p. 59.
65
Mesmo diante de um estupro, parece ser razoável que
a mulher ainda tenha que sustentar a vida da criança, haja
vista que esta é absolutamente inocente e possui o direito
absoluto de viver. “A criança é real e inocente, e tem a
mesma preciosidade e dignidade que todos nós”.84 Deste
modo, fica clara a posição contra o aborto, elaborada por
Schwarz, a partir da defesa deste, elaborada por Thomson.
5.2.3 A Terceira Refutação
É sustentada por Thomson a idéia de que o feto
aparece como um intruso, diante do direito da mulher
controlar seu corpo. Entretanto Schwarz frisa que “a criança
não é um intruso. Ela está precisamente onde deve estar, no
lugar apropriado para a primeira fase da sua vida”. 85
Se o feto fosse um intruso, isso justificaria sua
remoção do útero da mulher, como também é justo remover
um assaltante dentro de casa. Mas essa remoção não se pode
dar através do ato de matar. Por isso, o aborto é condenado,
pois consiste em matar. Teria alguém coragem de fazer isso
com um intruso? Salvo no caso de um ladrão, quando se
estaria agindo em legítima defesa.
Um outro raciocínio que se pode fazer em torno da
questão do aborto é a acusação de o feto ter uma relação
84 ibid., p. 60. 85 SCHWARZ, Stephen D.. A ética do aborto: perspectivas e
argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,
p. 65.
66
parasitária com a mulher. Trata-se de uma distorção de
idéias, dado que um parasito é essencialmente estranho, e o
feto, a criança que vai nascer não é um estranho, é filho da
mulher que a concebeu, que possui seu sangue. O feto está
no local apropriado para o seu desenvolvimento.
5.3 OS FETOS NÃO TÊM DIREITO À VIDA –
MICHAEL TOOLEY
A problemática exposta por Tooley é a de que o
aborto geralmente é tido como uma prática que pressupõem
o direito à vida aos fetos humanos e bebês. Diante deste
paradigma, o autor procura mostrar o princípio moral básico
que apresenta as condições necessárias para que exista esse
direito.
É notório o fato de que toda a discussão dessa
problemática do aborto está intimamente relacionada com o
termo pessoa. Tanto é verdade, que a questão básica em
foco é a interrogação sobre quando é que um membro da
espécie homo sapiens é uma pessoa. Que propriedades,
predicados, características deve possuir uma coisa para ser
pessoa, para ter direito à vida? Tooley assim se posiciona,
Michael Tooley prefere evitar o termo “humano”, e usar em seu
lugar a expressão “membro da espécie Homo sapiens”, de modo que
seja interpretada mais naturalmente como algo que se refere a um
certo tipo de organismo biológico caracterizado em termos
fisiológicos.
67
diante de tamanhos questionamentos: “[...] julgo ser
possível indicar um princípio moral muito plausível que diz
respeito à questão das condições necessárias para algo ter
direito à vida”. 86
O argumento básico da tese de Tooley é o fato de se
dispor da “condição da consciência de si”:
um organismo possui um forte direito à vida somente
se possui o conceito de um eu enquanto sujeito
contínuo de experiências e de outros estados mentais,
e acredita que ele próprio é uma entidade contínua
desse gênero.87
Portanto, faz-se necessária a consciência de si,
segundo Tooley, pois:
ter o direito à vida pressupõe a capacidade de
desejarmos continuar a existir enquanto sujeitos de
experiências e de outros estados mentais. [...]. Por
isso, uma entidade que careça desta consciência de si
enquanto sujeito contínuo de estados mentais não
possui direito à vida. 88
Muito ligado à visão filosófica,89 Tooley acusa os
defensores da corrente conservadora (que dentre outros
aspectos é contra o aborto) de quererem demarcar estágios
86 SCHWARZ, Stephen D.. A ética do aborto: perspectivas e
argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,
p. 78. 87 ibid. 88 ibid., p. 84. 89 cf. p. 33-35.
68
no processo de desenvolvimento, a partir dos quais
supostamente seria errado cometer o abortamento. De
acordo com ele, nenhum dos cinco estágios apontados pelos
conservadores (1. concepção; 2. aquisição da forma
humana; 3. aquisição da capacidade de realizar movimentos;
4. viabilidade; 5. nascimento) são admissíveis para indicar
algum princípio moral básico, “[...] nenhum desses traços de
separação pode ser defendido através de princípios morais
básicos plausíveis”. 90
Como síntese que permeia o pensamento de Tooley,
pode-se afirmar que sua conclusão é a de que os fetos não
gozam do direito à vida, já que este atributo é dado apenas
aos indivíduos conscientes de si. Logo, para o autor em
discussão, os recém-nascidos, que por acaso não possuírem
consciência de si, também não possuem direito à vida.
5.4 CRÍTICA ÀS PERSPECTIVAS DE
THOMSON E TOOLEY – HARRY GENSLER
O objetivo de Gensler é ressaltar a questão da
consciência, a partir da Regra de Ouro apontada por Kant.
Esta pode ser compreendida a partir do seguinte exemplo:
Se é consistente e pensa que nada haveria de errado
em alguém fazer A a X, então pensa que nada haveria 90 TOOLEY, Michael. A ética do aborto: perspectivas e
argumentos. In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005,
p. 85.
69
de errado em alguém fazer-lhe A em circunstâncias
similares.
Se é consistente e pensa que nada haveria de errado
em alguém fazer-lhe A em circunstâncias similares,
então admite a idéia de alguém fazer-lhe A em
circunstâncias similares.
Logo, se é consistente e pensa que nada haveria de
errado em fazer A a X, então admite a idéia de
alguém lhe fazer A em circunstâncias similares. (RO
[Regra de Ouro]). 91
Segundo Gensler, o aborto é um ato errado. Kant
auxilia muito na interpretação dessa visão quando propõe a
máxima “não faças aos outros o que não quiseres que façam
a ti”. Desse modo, se uma pessoa pensa que nada haveria de
errado num certo ato, mas não admite a sua realização, de
modo a sofrer suas conseqüências, ela estaria sendo
inconsistente. Para ilustrar: “se penso que nada haveria de
errado em roubar João, mas não admito (ou aprovo) a idéia
de alguém me roubar em circunstâncias similares, então [...]
estou a ser inconsistente”. 92
Análoga à questão do assalto é a do aborto. Quereria
talvez uma mãe que pensa em abortar, conseqüentemente
tirando a vida do feto, ter sido abortada por sua mãe?
Gensler propõe que, “se uma mulher grávida está prestes a
fazer algo de prejudicial para o feto [...], parece apropriado
que ela pergunte a si própria: ‘como reagiria [eu] à idéia de
91 GENSLER, Harry. A ética do aborto: perspectivas e argumentos.
In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005, p. 115. 92 ibid., p. 115-116.
70
a minha mãe ter feito a mesma coisa enquanto estava
grávida de mim?’” 93
Supõe-se que a maior parte das pessoas não admite ou
aprova a idéia de morrer por causa da prática de um
hipotético aborto praticado por sua mãe. Logo, a maior parte
das pessoas, na medida em que assumir uma posição
consistente, não irá continuar a pensar que é permissível
praticar o aborto.
Colocando em evidência alguns argumentos a favor
do aborto, tal como o adotado pelos utilitaristas que
afirmam poder justificar matar um ser humano inocente
sempre que fazer isso fosse prazeroso, Gensler afirma que
“isto é verdadeiramente bizarro”. 94
A crítica dirigida a Michael Tooley está ligada ao fato
de que este admite que os fetos humanos não gozam do
direito à vida. Todavia, concomitantemente, afirma que só
os seres humanos racionais, que possuem consciência de si,
é que gozam deste direito. Logo, o aborto seria algo correto
de se praticar, sem quaisquer problemas de ordem moral,
biológica ou emocional.
A apreciação feita a partir do argumento de Judith
Jarvis Thomson também resulta em algo negativo, por isso
também é refutada por Gensler. Thomson enfatiza que:
93 ibid., p. 119-120.
94 GENSLER, Harry. A ética do aborto: perspectivas e argumentos.
In GALVÃO, Pedro. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005, p. 109.
71
uma mulher que engravida com a intenção de ter uma
criança está a aceitar voluntariamente uma
obrigação para com ela. No entanto, se a gravidez
for acidental [...], então a mulher não assumiu
qualquer obrigação especial, e, se a continuação da
gravidez implica um grande custo pessoal, então a
mulher não tem a obrigação de continuar grávida. 95
Gensler refuta essa argumentação quando afirma que
“nem todas as obrigações especiais para com os outros são
‘voluntariamente assumidas’”.96 A gestante sempre deve
assumir a obrigação de proporcionar ao feto que ele tenha a
possibilidade de nascer, desenvolver-se, crescer, passar
pelos processos de aprendizagem, maturação e evolução,
garantindo o direito aos pais, de gozarem do dever de seu
filho cuidar dos mesmos em suas necessidades especiais
durante a vida.
Como remate da discussão acerca dos argumentos
contra o aborto elaborados por Gensler, pode-se destacar a
seguinte posição:
Defendo que, na maior parte das ocasiões, o pró-
abortista descobrirá que é realmente inconsistente –
ele apóia certos princípios morais para o tratamento
dos outros que não gostaria que fossem observados
em ações que o afetassem. 97
Nota-se o desejo de Gensler em deixar manifesta a
idéia de que o ser humano será incoerente, caso não condene 95 ibid., p. 113. 96 ibid., p. 113-114. 97 ibid., p. 124.
72
a grande maioria dos abortos, a não ser que se tenham
desejos particulares bizarros.
73
6 CONCLUSÃO
Após a procura dos mais diversos materiais
disponíveis sobre a questão do aborto, chega-se ao término
desta gratificante pesquisa, com um bom entendimento
sobre as questões explicitadas no trabalho e também sobre
as que permeiam a reflexão sobre pessoa e humanização e a
problemática do aborto.
É notório o difícil consenso dentro do campo da
bioética. As opiniões são tão divergentes que, se as pessoas
que discutem o assunto, não possuírem clara e distintamente
sua posição quanto à justificação moral a que aderem,
acabam por “migrar” facilmente de uma posição para outra.
Dessa forma, percebe-se a necessidade de ampliar
ainda mais o debate bioético, de modo que este ultrapasse o
âmbito universitário. É de fundamental importância pensar
mais, analisar melhor, ponderar outros pontos, para que,
diante do mistério da Vida se erre o menos possível.
Em 2002, o programa de governo do candidato Lula
previa a prática de abortos pelo SUS. Em um dos cadernos
temáticos do programa, dizia-se claramente que “agora, o
governo vai mais além: pretende mudar a lei, para permitir o
aborto. E essa meta é prioritária”.98 Sendo 75% católica a
98 AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Aborto?... Nunca!... 40
razões. Lorena: Cléofas, 2005, p. 7.
74
população do Brasil, e bem mais do que isso, cristã, essa
imensa maioria não teria o direito e dever de exigir que as
leis do país estivessem mais de acordo com o Evangelho
que a maioria segue?
Diante de toda a reflexão feita neste trabalho,
aprofundando vários pontos de vista, pode-se concluir que é
inadmissível permitir que um laicismo pernicioso pretenda
eliminar Deus e o sagrado da sociedade. A Constituição
Federal99, no artigo 5º, estabelece que “todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida [...]”. Como
pretender violar o desenvolvimento natural da pessoa
humana que as leis do país reafirmam?
Nos países em que o aborto é permitido, o número de
casos vem aumentando, fazendo com que cresça também o
número de mulheres que carregam problemas psicológicos e
traumatismos graves pelo fato de terem tomado a infeliz
decisão de abortar.
Os cientistas mais objetivos e livres de ideologias ou
preconceitos afirmam categoricamente que a vida tem início
com a fecundação e prossegue até a morte. O nascimento é
somente o começo de uma nova etapa. Outras se sucederão,
tais como a puberdade, a idade adulta, a velhice.
Se hoje se pretende dar à mãe o direito de matar
legalmente seu filho não nascido, por ser um estorvo para
ela, amanhã se deverá dar ao filho o direito, também legal, 99 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 2005.
75
de matar sua mãe que se tornou um peso para ele. Tudo isso,
evidentemente, é um grande absurdo: a vida humana deve
ser sempre protegida, desde o ventre da mãe até o último
suspiro.
Desse modo, adotar um posicionamento, ou tentar
convencer um interlocutor a respeito de uma ou outra
posição, dependerá de vários fatores, dentre os quais, as
convicções religiosas e as perspectivas éticas por este
adotadas.
O importante para o momento presente é dispor de
meios que levem a uma reflexão embasada das justificações
morais. Este foi justamente o objetivo perseguido neste
trabalho. Já alcançado, um novo horizonte se abre para
posteriores discussões. Ou seja: “O resto nasce aqui”. 100
100 NIETZSCHE, F. O Anticristo. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.
110.
76
77
REFERÊNCIAS
AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Aborto?... Nunca!...
40 razões. Lorena: Cléofas, 2005.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de
1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (C. I. C.). Edição
Típica Vaticana. São Paulo: Loyola, 2000.
COMPENDIO DO VAT II, Gaudium et spes. 10. ed.,
Petrópolis: Vozes, 1976.
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e
religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
FERNANDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em
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80
A bioética discute questões relativas a pontos lícitos ou ilícitos,
morais ou imorais, permitidos ou proibidos no campo da
“manipulação” da vida humana. O presente estudo procura definir
filosoficamente o que é pessoa e humanização, dado que se trata de
conceitos que levantam uma série de problemáticas, entre elas, a do
aborto. Nesse contexto, há a preocupação de apresentar o valor e a
dignidade da pessoa e debater um problema muito presente na
sociedade. Com o intuito de tornar mais sólidos os fundamentos da
questão de modo a manter atualizada a definição anteriormente
mencionada de “pessoa”, serão expostas as concepções históricas
do conceito “pessoa” para os gregos, para os cristãos e também a
partir de Kant, bem como a dialética existente entre o sagrado e o
profano que gira em torno deste termo. Quanto à problemática do
aborto, duas são as vias para sua justificação moral: uma se
fundamenta em valores básicos essenciais e absolutos (essencialista
ou vitalista); a outra é de cunho utilitarista (pragmática). É também
necessária a abertura para discutir a origem da vida, a fim de dispor
dos meios mínimos para a discussão sobre a permissibilidade ou
não do aborto. Com o objetivo de despertar ainda mais a reflexão a
respeito do assunto, serão apresentados alguns argumentos e
algumas perspectivas em relação ao problema ético do aborto.
PALAVRAS-CHAVE: pessoa, humanização, vida, aborto.