Definir e Exemplificar: estratégias didáticas no Curso ... · 2 LYGIA RACHEL TESTA TORELLI...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS LYGIA RACHEL TESTA TORELLI Definir e Exemplificar: estratégias didáticas no Curso de Linguística Geral (1907) VERSÃO CORRIGIDA São Paulo 2015

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

LYGIA RACHEL TESTA TORELLI

Definir e Exemplificar:

estratgias didticas no Curso de Lingustica Geral (1907)

VERSO CORRIGIDA

So Paulo

2015

2

LYGIA RACHEL TESTA TORELLI

Definir e Exemplificar:

estratgias didticas no Curso de Lingustica Geral (1907) So Paulo

Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de mestre em Letras.

rea de Concentrao:

Semitica e Lingustica Geral

Orientadora: Profa. Dra.

Cristina Altman

So Paulo

2015

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Nome: Lygia Rachel Testa Torelli

Ttulo: Definir e Exemplificar: estratgias didticas no Curso de Lingustica Geral (1907)

Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de mestre em Letras

Aprovada em: __________

Banca examinadora

Titulares

Prof. Dr. Jos Luiz Fiorin, Universidade de So Paulo

Julgamento: ____________Assinatura: ____________________________

Prof. Dr. Arnaldo Cortina, Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho

Julgamento: ___________ Assinatura: ____________________________

Suplentes

Profa. Dra. Eliane Gouva Lousada, Universidade de So Paulo

Julgamento: ___________ Assinatura: ____________________________

Profa. Dra. Maria Helena de Moura Neves, Universidade Presbiteriana Mackenzie

Julgamento:___________ Assinatura: _____________________________

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Ao Joo Frana, o monchri, pelo carinho e pela

criatividade com que lidou com as descobertas da vida a

dois e da presente dissertao.

Rosemari Testa, a minha me, pela curiosidade

intelectual afiada e por ver Beleza em toda parte.

Ao Jos Testa (in memoriam), o meu av, inteligente e

palmeirense, pela admirao que tinha pelos estudos,

apesar da intimidao que eles lhe causavam.

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Agradecimentos

Agradeo Profa. Dra. Cristina Altman, uma mulher incrvel, que me proporcionou a ocasio e a energia de realizar o presente trabalho, na estrutura institucional do Departamento de Lingustica, com a equipe de rica, Denise e Robson, e com o apoio financeiro da CAPES. Agradeo os comentrios e incentivos decisivos dirigidos ao meu trabalho, pelos professores doutores Jos Luiz Fiorin e Eliane Gouva Lousada, durante o exame de qualificao. Agradeo a gentileza de Franois Vincent, pelo envio do primeiro volume de sua tese sobre o Curso I. Agradeo aos meus alunos, pela disponibilidade em criar, en franais, algo parecido com um bem comum. Agradeo o apoio financeiro e o reconhecimento de minha me, Rosemari Testa. Os incentivos entusiasmados de minha tia Regina, de minha madrinha Nrma e de minhas primas Jlia e Layla, assim como o realismo companheiro de minha prima Anita no podem ser esquecidos. Agradeo aos professores que, durante meus estudos de Letras, foram exemplos da coerncia que pode haver entre ensino e docncia: Alcides Villaa, Claudia Pino, Christian Puech, Eliane Lousada, Esmeralda Negro, Evani Viotti, Gildo Magalhes, Irne Fenoglio, Jean-Marie Fournier, Joo Angelo O. Neto, Livia Scheller, Natalia La Valle, Olga Sansone, Manoel L. G. Corra, Mauricio Ramos, Paola Poma, Sabina Kundmann. Agradeo aos colegas, alguns deles professores, que, durante meus estudos de Letras, foram exemplos das muitas (boas) maneiras de se conjugarem as vidas acadmica e pessoal: Adriana Ramos, Aline de Palma, Ana Jastrebzky, Ana Seeleander, Arlette Marmier, Bruna Polachini, Bruno Matrangano, Carla Renard, Carolina Lemos, Dsire Klingbeil, Edgard Bikelis, Elisa Diamantopoulou, rica Bertolon, Estanislao Sofa, Giuseppe DOttavi, Ivan Zanni, Isabelle Probst, Jaci Tonelli, Joo Cortese, Joana Franco, Jlia de Crudis, Luiz Peres-Neto, Marcos Tibau, Osvaldo Ceschin, Patrcia Borges, Paulo Vigarinho, Pedro Schmidt, Priscila Melo, Renata Hermann, Stela Danna, Simone Dantas, Sulen Rocha, Suleiman Altabara, Thais Bolgheroni, Vivian Vieira, Wellington Silva. Agradeo, ainda, os indispensveis apoios de Elias Fagundes, na tcnica e, na emoo, de Gabriela Galvn. Agradeo a torcida dos amigos vitalcios Cau Polla, Cristina Agostini, Drio Jos, Elenice Peixoto, Faouzi Makhloufi, Ligia Carriel, Margarida Curti, Maria Amlia Arajo, Marina Nascimento, Pauline Atlan, Thais Gurgel, e dos amigos incrveis da Patrulha Psicodlica. Agradeo a Washington L. N. Fernandes, pelo exemplo de diligncia edificante que, ainda por cima, a ningum constrange. Acredito que uma lista de agradecimentos dificilmente consiga ser exaustiva. Pelo estado presente de minha memria, agradeo aos familiares e amigos que no citei. Agradeo minha av, Ignez Maciel (in memoriam), cuja enfermidade revelou, sim, uma alegria que eu no conhecia. Agradeo aos meus professores de ioga e de meditao, que me levam quilo que sinto como Deus, por caminhos que eu tambm desconhecia, e de que me regojizo muito.

6

[...] je vous poserai plutt cette simple

question: pensez-vous srieusement que

ltude du langage ait besoin, pour se justifier

ou pour se disculper dexister, de prouver

quelle est utile dautres sciences ?

Ferdinand de Saussure

(ELG :144)

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RESUMO

TESTA TORELLI, L. R. Definir e Exemplificar: estratgias didticas no Curso de Lingustica Geral (1907). 2015. 228 f. Dissetao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2015.

Esta dissertao tem por objetivo analisar a atividade docente de Ferdinand de Saussure (1857-1913) relativa Lingustica Geral, em 1907, quando o ento experiente professor assumiu, pela primeira vez, o ensino da disciplina (Curso I). Nossos pressupostos tericos provm da Historiografia Lingustica, tal como praticada por Auroux (1994), Koerner (1996) e Swiggers (2004). Nossa problemtica parte do reconhecimento de que uma das maneiras de perpetuar a presena de Saussure no cnone dos estudos lingusticos consiste em repetir metforas e exemplos a ele creditados, como a clebre metfora do jogo de xadrez para ilustrar o conceito de lngua. A partir de estudos historiogrficos das funes semitica e argumentativa de definies e de exemplos de lngua (Rey, 1995; Quijada Van den Berghe e Swiggers, 2009; Chevillard et al., 2007), repartimos o material de anlise (Saussure, 1996[1907]) em trs pores, a que chamamos domnios (Caussat, 1978): Fonologia, Fontica e Analogia, temas do Curso I, para os quais estabelecemos trs objetivos principais de pesquisa [1 a 3], e um objetivo secundrio [4]: [1] levantar e caracterizar definies nos trs domnios; [2] levantar e caracterizar os exemplos de lngua nos trs domnios; [3] correlacionar o uso de definies e de exemplos de lngua nos trs domnios; [4] correlacionar os dados apurados em [3] com com o contexto imediato de emergncia do Curso I, ou seja, com o ensino da disciplina Lingustica Geral na Facult de Lettres et Sciences Sociales, em Genebra, em 1907 (Vincent, 2013). Nossas anlises, que abarcaram 60 (sessenta) definies, apontam para a preferncia de se construir uma definio pelo termo (definitio nominis), e no pela coisa (definitio rei), quando se trata de apresentar definies prioritrias ao assunto. Quanto aos exemplos, foram apuradas mais de 2000 (duas mil) ocorrncias, com saliente revezamento entre francs e alemo nos trs domnios, acompanhados por latim e grego, em uma representao das lnguas-objeto feita principalmente por compreenso, ou seja, pelo uso generalizvel dos exemplos de lngua, que ilustram o contedo temtico de maneira no-exaustiva. A unidade majoritria dos exemplos a palavra, e sua disposio espacial preferencial so sries paralelas, ora em contraste simultneo, ora em relao de sucesso temporal, com poucos paradigmas e declinaes. As perguntas retricas desempenham papel didtico frequente e flexvel, desde o teste de hipteses at a apresentao de definies. Observamos, ainda, a ocorrncia de definies que apresentam diretamente exemplos de lngua, em uma relao bastante forte de interdependncia. Reunimos, ainda, mecanismos de organizao dos contedos temticos (numerais, grafemas alfabticos) e de esquematizao (tabelas, smbolos e outras rupturas com a linearidade da exposio oral e da anotao escrita). Por fim, observamos estruturas de negao em todos os mecanismos investigados: definies que apresentam aquilo que no antes daquilo que , exemplos de lngua que no ilustram determinado assunto, perguntas retricas com respostas frequentemente negativas e oposies entre conceitos, de modo que as relaes de oposio, algumas antinmicas, parecem caracterizar de maneira geral a didtica de Saussure antes mesmo da formulao explcita do conceito de signo lingustico, que ocorreu, como sabemos, no curso de 1910-1911. Palavras-chave: Historiografia, Saussure, Lingustica Geral, exemplos, definies.

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ABSTRACT

TESTA TORELLI, L. R. Defining and Exemplifying: teaching strategies in the Course on General Linguistics (1907). 2015. 228 f. Dissetao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2015.

This paper aims to examine the teaching activity of Ferdinand de Saussure (1857-1913) as to General Linguistics, in 1907, when the experient professor first started a course on the subject. Our work assumes that one way of perpetrating the canon consists of repeating some metaphors and examples accredited to him, as it goes to the famous saussurian chess game metaphor which illustrates the concept of langue. Our theoretical background lies on the Historiography of Linguistics, as professed by Auroux (1994), Koerner (1996) and Swiggers (2004), and the same applies for our methodological assumptions (Rey, 1995). Having established three separate domains within the first course (Saussure, 1996[1907]), Phonology, Phonetics and Analogy, we have then settled three main goals [1 to 3] and one secondary objective [4]: [1] to describe the definitions given in the three domains; [2] to describe and assess the language examples provided by the three domains; [3] relate the uses of definitions to those of language examples; [4] to relate [3] to the immediate context of emergence of the first course, the institutional background of General Linguistics at the Facult de Lettres et Sciences Sociales, (Geneva, 1907). In order to accomplish the first step [1], we have adopted the classification of definitio rei, definitio nominis, as far as the definition incidence is concerned, and essencial, formal and functional definition, as to its content (Quijada Van den Berghe e Swiggers, 2009). The language examples [2] were analysed through their dmarcation, the way they appear in the text; the way the languages being described are represented in the text, which can assume two forms: either par extension, when the totality of the cases are listed, either par comprhension, when the examples are models from which one can generate new instances (Chevillard et al., 2007). Our corpus comprises 60 (sixty) definitions and over two thousand examples. In general terms, the definitio nominis is enhanced when it comes to define priority terms, such as phonology. As to the examples, four languages appear intensely in the domains: french, german, greek and latin. These languages entertain a kind of representation mainly in comprehension.These instances occur as words, in horizontal and parallel series, scarcely in paradigms or declensions. There are definitions which exemplify overtly and directly, with no more material to accomplish a definition, which shows the strict interdependence of these constructions, together with a different mechanism, the rethorical questions. We have gathered, as well, organizing mechanisms (items, topics) and schematization procedures (tables, symboles and strategies that lessen the linearity of the text). Eventually, we have spotted the wide-spread use of negative strategies, such as defining something by what it is not, or excluding elements from a definition, as well as providing language examples which uncorrectly illustrate what is being said, in order to anticipate possible mistakes. Such procedures seem to be a hallmark on Saussures teaching.

Key-words: Historiography, Saussure, General Linguistics, examples, definitions.

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RESUME

TESTA TORELLI, L. R. Dfinir et exemplifier: stratgies didactiques dans le Cours de Linguistique Gnrale (1907). 2015. 228 f. Dissetao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2015.

Ce mmoire vise analyser lactivit enseignante de Ferdinand de Saussure (1857-1913) par rapport la Linguistique gnrale, en 1907, lorsque le professeur confirm dans plusieurs spcialits a profess, pour la premire fois, le cours de ladite discipline (Cours I). Notre cadre thorique relve de lHistoriographie linguistique, telle que pratique par Auroux (1994), Koerner (1996) et Swiggers (2004). Notre problmatique se construit partir du constat selon lequel certains exemples ou mtaphores attribus Saussure sont constamment repris dans des cours universitaires aussi que dans des textes acadmiques, linstar de la mtaphore du jeu dchecs accompagnant le concept de langue. A partir dtudes historiographiques consacres aux fonctions smiotique et argumentative des dfinitions et des exemples (Rey, 1995; Quijada Van den Berghe e Swiggers, 2009; Chevillard et al., 2007), nous avons tri le matriel danalyse (Saussure, 1996[1907]) en trois portions, que nous avons convenu nommer domaines (Caussat,1978): Phonologie, Phontique et Analogie, items au programme du Cours I, en fonction de trois objectifs principaux [1 3] et dun objectif secondaire [4]: [1] relever et caractriser des dfinitions prsentes dans les trois domaines; [2] relever et caractriser les exemples linguistiques proposs dans les trois domaines; [3] mettre en corrlation lemploi de dfinitions et dexemples linguistiques dans les trois domaines; [4] mettre en corrlation [3] et le contexte immdiat dmergence du Cours I, la strucuture institutionnelle de la Facult de Lettres et Sciences Sociales, Genve, en 1907 (Vincent, 2013). Nos analyses portent sur 60 (soixante) dfinitions, dans lesquelles nous avons constat la prfrence pour la construction definitio nominis, au dtriment de definitio rei, lorsquil tait question de prsenter des dfinitions prioritaires du thme. Quant aux exemples linguistiques, qui comprennent plus de 2000 (deux mille) occurrences, nous avons constat que le franais et lallemand se relayent dans les trois domaines et y sont accompagns par le latin et le grec. La reprsentation des langues se ralise surtout par comprhension, dans le cadre du mot comme unit exemplifiante majoritaire, qui sorganise dans des sries horizontales et parallles, tantt dans un rapport dopposition, tantt dans um rapport de succesion, selon le thme. Les questions oratoires jouent un rle didactique non ngligeable, de tester des hypothses prsenter des dfinitions. On remarquera, en outre, des dfinitions ou lexemple est le seul constituant, ce qui montre la relation troite entre les deux catgories. Nous avons pu reunir et proposer une premire systmatisation des mcanismes comme les organisateurs des contenus thmatiques (numraux, items) e des stratgies de rupture et de restitution de la linarit du texte, les schmas. En dernier lieu, nous avons repr des stratgies ngatives, telles que des dfinitions misant sur ce qui nest pas le concept tre dfini, des rponses frquemment ngatives aux questions oratoires, et des manires erronnes de comprendre quelques exemples linguistiques. Ces occurrences semblent tre un trait didactique de Saussure.

. Mots-cl: Historiographie, Saussure, Linguistique gnrale, exemples, dfinitions.

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Lista de Quadros

QUADRO 1 PRINCPIOS DA PRTICA HISTORIOGRFICA ............................................................. 29

QUADRO 2 EXEMPLOS COR E CIVITAS ENTRE O CURSO I (1907) E A BIOGRAFIA SAUSSURE (2012)

........................................................................................................................................... 39

QUADRO 3 EXEMPLOS DE LNGUA NAS ANOTAES DE RIEDLINGER, GAUTIER E CONSTANTIN 41

QUADRO 4 SUMRIO DO CURSO I (1996 [1907]:V) [GRIFO NOSSO] ........................................... 76

QUADRO 5 RESUMO DOS PARMETROS METODOLGICOS DA DISSERTAO ............................. 78

QUADRO 6 DEFINIES ANALISADAS EM FONOLOGIA (22) ....................................................... 90

QUADRO 7 SMBOLOS USADOS NO DOMNIO FONOLOGIA (8) ................................................... 108

QUADRO 8 DEFINIES ANALISADAS EM FONTICA (17) ........................................................ 117

QUADRO 9 SMBOLOS NO DOMNIO FONTICA (18) ................................................................. 146

QUADRO 10 DEFINIES ANALISADAS EM ANALOGIA (21) ...................................................... 158

QUADRO 11 SMBOLOS NO DOMNIO ANALOGIA (15) ............................................................... 178

QUADRO 12 DOMNIOS NEOGRAMTICOS [ADAPTADO DE CAUSSAT (1978:32)] ..................... 189

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Lista de tabelas

TABELA 1 TESES E/OU DISSERTAES NOS BANCOS VIRTUAIS DA CAPES, DA UNESP E DA USP,

CUJOS RESUMOS CITAM SAUSSURE ..................................................................................... 17

TABELA 2 CONTEDOS TEMTICOS DO CURSO I (1907), NA EDIO DE 1996 DE E. KOMATSU E

G. WOLF ............................................................................................................................ 77

TABELA 3 EXEMPLOS DE LNGUA NO DOMNIO FONOLOGIA .................................................... 101

TABELA 4 EXEMPLOS DE LNGUA NO DOMNIO FONTICA ....................................................... 133

TABELA 5 EXEMPLOS DE LNGUA NO DOMNIO ANALOGIA ....................................................... 167

TABELA 6 CONTRASTE DE IDIOMAS NOS DOMNIOS FONOLOGIA, FONTICA E ANALOGIA ......... 197

Lista de figuras

FIGURA 1 FOLHA DE ABERTURA DO MANUSCRITO DE LESSENCE DOUBLE DU LANGAGE ........ 33

FIGURA 2 QUIZ DA TRIBUNE DE GENVE (13/7/2013) ........................................................... 36

FIGURA 3 EXEMPLOS DE LNGUA NO CLG (2005/1972[1916]:178) .......................................... 41

FIGURA 4 ENCENAO DE AULA DE SAUSSURE ........................................................................ 46

FIGURA 5 MATERIAL DE ANLISE: ORDENAO (ICLG:29) ..................................................... 80

FIGURA 6 MATERIAL DE ANLISE: CATLOGO (ICLG:29) ........................................................ 81

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Sumrio

Introduo ............................................................................................................................... 13 i. Saussure em estudo: ainda ou finalmente? ........................................................................ 13 ii. Trajetria do recorte de pesquisa ...................................................................................... 20 iii. Perguntas e objetivos de pesquisa ................................................................................... 22 iv. Organizao da dissertao .............................................................................................. 24

Captulo 1 / Problemtica ...................................................................................................... 26 1.1 Pressupostos tericos ...................................................................................................... 26 1.2 O cnone e seus exemplos .............................................................................................. 34 1.3 Aspectos da atividade docente de Saussure .................................................................... 42 1.4 Estudos da definio e do exemplo ................................................................................. 50 1.5 Estudos Comparativos e Lingustica Geral ..................................................................... 56

Captulo 2 / Metodologia ........................................................................................................ 69 2.1 Objetivos ......................................................................................................................... 70 2.2 Periodizao .................................................................................................................... 70 2.3 Material de anlise .......................................................................................................... 72

2.3.1 Critrios de escolha do Curso I ................................................................................ 74 2.3.2 Estabelecimento dos domnios Fonologia, Fontica, Analogia .............................. 75 2.3.3 Estabelecimento dos parmetros de anlise ............................................................. 77

Captulo 3 / Fonologia ............................................................................................................ 87 3.1 Resumo do contedo temtico ........................................................................................ 87 3.2 Definies ....................................................................................................................... 89 3.3 Exemplos de lngua ....................................................................................................... 101 3.4 Organizadores ............................................................................................................... 106 3.5 Esquematizaes ........................................................................................................... 107

Captulo 4 / Fontica ............................................................................................................ 112 4.1 Resumo do contedo temtico ...................................................................................... 112 4.2 Definies ..................................................................................................................... 115 4.3 Exemplos de lngua ....................................................................................................... 133 4.4 Organizadores ............................................................................................................... 142 4.5 Esquematizaes ........................................................................................................... 144

Captulo 5 / Analogia ............................................................................................................ 152 5.1 Resumo do contedo temtico ...................................................................................... 152 5.2 Definies ..................................................................................................................... 156 5.3 Exemplos de lngua ....................................................................................................... 167 5.4 Organizadores ............................................................................................................... 175 5.5 Esquematizaes ........................................................................................................... 176

Captulo 6 / Anlises Cruzadas e Concluses ..................................................................... 182 6.1 Contedo temtico e Estrutura Institucional ................................................................. 183 6.2 Definies e Exemplos de lngua .................................................................................. 190 6.3 Organizadores, Esquematizaes e Perguntas Retricas .............................................. 204 6.4 Concluses .................................................................................................................... 211

Consideraes finais ............................................................................................................. 214 Referncias bibliogrficas .................................................................................................... 222

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Introduo

i. Saussure em estudo: ainda ou finalmente?

Lire Saussure aujourdhui1 (1967)

Por que ainda ler Saussure? 2 (2013)

O Curso de Lingustica Geral: ainda3 (2014)

Calvet, em posfcio edio de 1967 do Curso de Lingustica Geral, revisa as interpretaes

que a obra e a figura de Saussure vieram sofrendo at ento; Fiorin, Flores e Barbisan, em

2013, escolhem a forma interrogativa e o modalizador ainda para compor ttulo de artigo que

convida o leitor brasileiro contemporneo a apostar na pertinncia de Saussure; por fim,

Butturi Jr. e Silva optam, em 2014, pelo mesmo modalizador, desta vez em forma afirmativa,

como aposto, para conclamar a comunidade de linguistas profissionais e em formao a

enviar propostas de comunicaes para simpsio temtico de congresso internacional.

Entre os trs ttulos enxergamos uma gradao, em que diminui a certeza sobre a hegemonia

de Saussure nos estudos lingusticos. Na primeira citao, Calvet atualiza o cnone; na

segunda, os autores apostam com o leitor na relevncia de autor e obra; na terceira, os dois

professores parecem simplesmente constatar certo desconforto com a permanncia (ou com a

insistncia?) de uma obra, o que, reconhecemos, pode ser visto como encantador e

estimulante enigma por parte de alguns pesquisadores, especialmente os novatos, mas que no

deixa de carregar, em nossa opinio, certo mal-estar, sintetizado pelo lacnico ainda.

1 Ttulo do posfcio de Jean-Louis Calvet para o Curso de Lingustica Geral, obra doravante referida simplesmente pela sigla CLG, eventualmente acompanhada da pgina da edio consultada, como em CLG: 23. SAUSSURE, F. de. Cours de Linguistique Gnrale. (1916) Ed. Tullio de Mauro (1967). Paris: Payot, 2005. 2 Ttulo do artigo de J.L.Fiorin, V.F. Nascimento e L.B. Barbisan que abre a obra Saussure: a inveno da Lingustica, organizada pelos referidos autores, publicada em 2013. 3 Ttulo de um dos 99 simpsios aprovados para o IX Congresso Internacional da Abralin, transcorrido em fevereiro do presente ano. Inserido no eixo Historiografia da Lingustica, o simpsio em destaque se propunha a discutir o CLG, a nos valermos do descritivo publicado no stio do congresso. Com efeito, s vsperas do centenrio da primeira edio do Curso de Lingustica Geral (1916), o simpsio no conquistou adeso considerada suficiente, de modo que veio a ser cancelado, ao mesmo tempo em que as comunicaes a ele atinentes foram transferidas para o simpsio que tratou de Historiografia Lingustica brasileira. Fonte: http://ixcongresso.abralin.com.br/ix-congresso-internacional/simposios-aprovados.php. Consulta realizada em 18/04/2015, s 10h29.

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Muito antes do centenrio de publicao do CLG, a obra j desfrutava de receptividade no-

hegemnica, no entender de Chiss e de Puech (1994):

[...] cest ds la (premire) constitution du texte et de sa parution en 1916 que le rituel ambigu de lhommage ( ambigu parce quil nest sans doute pas dexclusion plus radicale que lexclusion par lhommage) sest dploy, immdiatement accompagn des remises en cause, mises au jour des lacunes, propositions de dpassement ... par lesquelles la rception sest mue, insensiblement et trs tt, en hritage. (Chiss e Puech, 1994:42) [grifo nosso]

O fato de que os autores apresentam o Curso de 1916 como obra cujo default o de ser

controversa nos permite afirmar que tamanha polivalncia do livro que, caso a polmica seja

por demais inconcilivel, existe tambm a possibilidade de encar-lo simplesmente como

herana, a ser, como tal, incensada e preservada, mas no levada to a srio. Evidentemente

que o CLG foi e continua sendo levado a srio desde sua publicao. Pesquisadores como

Fehr (2000) definem um movimento que consistiu em interpretar ideias autgrafas de

Saussure na medida em que elas ajudariam a iluminar passagens, supostamente obscuras, do

pstumo e lacunar Curso de Lingustica Geral (1916):

[...] la tentative [...] de ne retenir, dans les notes autographes de Saussure, que ce qui, vu rtrospectivement dans la perspective du Cours, passait pour pertinent et de gommer tout ce qui rsistait apparemment se laisser intgrer au Cours, rig en tlos implicite de Saussure. (Fehr,2000:23) [grifo nosso]

Precisamos que a crtica de Fehr no se refere aos projetos de reconstruo da gnese do

CLG, por meio de fontes manuscritas, como os de Robert Godel (1957) e Rudolf Engler

(1967, 1974), mas antes aponta que o CLG foi sujeito a um roteiro de leitura precoce, que

privilegiou suas teses (thses) em detrimento de seus procedimentos (dmarches) (Colombat

et al., 2010:213). Nesse sentido, lembramos que a sala de aula um dos espaos em que

ocorre, no dia a dia da prtica de ensino, a consolidao de certas leituras do CLG4.

A despeito da imensido da literatura crtica sobre Saussure, o CLG, em suas muitas e no

coincidentes interpretaes, continua a ser a primeira grande fonte de pesquisa da rea (Fiorin

4 Portela (2013) props estudo baseado em categorias greimassianas de anlise do discurso didtico, para um corpus a que chamou de manuais de lingustica saussuriana. As obras, repartidas nas lnguas francesa (8), inglesa (3) e portuguesa do Brasil (1), foram publicadas entre 1964 e 2009. Tivemos, ainda, notcia da defesa da dissertao de mestrado intitulada A recepo do Curso de Lingstica Geral nos manuais de lingstica brasileiros: um acontecimento discursivo, realizada na Universidade Federal de So Carlos, em 19/02/2015, sob a orientao do Prof. Dr. Roberto Leiser Baronas, mas no tivemos acesso ao trabalho.

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et al., 2003:12), mas h, tambm, trabalhos contnuos e expressivos especialmente

consagrados a manuscritos de linguistas (Institut de Textes et Manuscrits Modernes - Paris)

no mbito da gentica textual (Chidichimo, 2011; Sofa, 2012; Fenoglio, 2012; DOttavi,

2012). O aparato crtico, somado aos manuscritos autgrafos, progressivamente

disponibilizados, catalogados e estudados, configuram um verdadeiro corpus saussuriano,

definido como

[...] o conjunto de documentos constitudo por fontes de natureza heterognea cuja existncia no parece ser negada por nenhuma das partes que integram a arena da polmica. (Fiorin et al., 2013:16).

Como vemos, a definio inclui, constitutivamente, os leitores de Saussure, responsveis por

legitimar tal herana. Os mesmos autores sintetizam, ainda, a primeira postura que

recomendam a um pesquisador diante de precioso esplio:

A magnitude do corpus saussuriano argumento inconteste de nossa tese relativa a trabalhos com fontes documentrias complexas, qual seja: eleger um corpus de pesquisa do conjunto que o corpus saussuriano com vistas a objetivos especficos condio sine qua non para o estudo de Saussure hoje. (Fiorin et al., 2013:14) [grifo nosso]

assim que a empiria do caso, por assim dizer, nos compele a construir uma problemtica e a

recortar um corpus com ela condizente. Ao mesmo tempo, o domnio da Historiografia

Lingustica, fonte de nossos pressupostos tericos, sempre trabalhou com a atividade de

seleo (ou eleio) como condio sine qua non de estudo.

Como se pode imaginar, a atividade de seleo ser eterno objeto de discusso e de valorao

por parte da comunidade cientfica. Como exemplo de seleo, destacamos abaixo um trecho

de artigo, publicado em 2012, dedicado gnese de um manuscrito saussuriano de 1906, em

que se aponta um contraste entre a grande importncia do snscrito na carreira de Saussure, e

a pouca expressividade deste fato para a historiografia padro do mestre genebrino:

Saussure tait [...] titulaire du cours de sanskrit lUniversit de Genve: ce cours aura t le plus rgulier et durable de toute sa carrire acadmique. De ces plus de vingt ans comme spcialiste de sanskrit, lhistoriographie saussurienne ne retiendra que les aspects concernant lusage de la langue sanskrite utilise dans le cadre de ltude de lindo-europen reconstitu, et les effets de cet usage sur llaboration dune pense linguistique gnraliste. Pourtant comme en tmoignent diverses donnes biographiques et documentaires lexpertise technique a toujours t accompagne, chez Saussure, par des comptences indianistes et par un intrt marqu pour ce domaine. (DOttavi, 2012:129) [grifo nosso]

16

DOttavi justifica sua deciso, como pesquisador, em retraar a gnese textual de uma resenha

feita por Saussure de obra indianista, por diverses donnes biographiques et

documentaires. Nosso critrio de seleo, por outro lado, est baseado no contexto de

produo do CLG: as aulas proferidas e, posteriormente, anotadas. A partir da, propomos

uma investigao da atividade docente de Saussure no que diz respeito ao uso de definies e

de exemplos de lngua, nas aulas de Lingustica Geral do Curso I (1907), na Universidade de

Genebra, ento Facult de Lettres et Sciences Sociales.

Observemos algumas selees de pesquisa realizadas em nvel de ps-graduao brasileira, a

partir de buscadores eletrnicos, sem o intuito de tirar concluses definitivas sobre os dados a

seguir recenseados. Em consulta aos bancos virtuais de teses e dissertaes da CAPES5, da

UNESP6 e da USP7, buscamos o nmero de trabalhos que contivessem, em seus resumos, a

expresso Saussure ou a mesma expresso combinada com outras.

A expresso Saussure foi registrada no resumo de 58 (cinquenta e oito) trabalhos, em nvel

nacional (CAPES), de 7 (sete) trabalhos, na UNESP, e de 13 (treze) trabalhos, no mbito da

USP. No primeiro banco de dados, encontramos, como temas, produo escrita na escola,

ensino de lnguas estrangeiras, redes sociais, subjetividade na lngua; Saussure

acompanhado por Meillet, Benveniste, Whitney, Labov, Morris, Greimas, Psicanlise

lacaniana, Lexicografia, Anlise do Discurso, entre as reas de Letras, Educao e Psicologia.

A base de dados digitais da UNESP computou 5 dissertaes e 2 teses contendo pelo menos a

expresso Saussure. Dos sete trabalhos registrados, trs provm da Anlise do Discurso. Os

outros quatro provm de diferentes reas (estudos de oralidade e escrita, de Semitica e

5 A agncia Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) alimenta um banco virtual de teses e dissertaes defendidas no Brasil a partir de 1987. Seu buscador composto por uma linha, se a busca for bsica ou, se a busca for avanada, por trs colunas em uma mesma linha, com a possibilidade de se acrescentarem linhas, a critrio do usurio. A primeira coluna apresenta treze critrios de pesquisa, que vo desde agncia financiadora at ttulo, passando-se por data da defesa, autor, resumo, dentre outros. Nas consultas que realizamos, optamos por comandar a busca das expresses em resumos de teses e dissertaes, provindas das mais diversas reas do saber. A segunda coluna apresenta duas opes: contm e exato; a terceira coluna destinada ao preenchimento com a(s) expresso(es) desejada(s). Consulta realizada em 24/6/14, 0h20, no endereo http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/. 6 C@thedra o atual nome da biblioteca digital de teses e dissertaes da UNESP, base de dados que se iniciou em 2000. Fonte: http://www.athena.biblioteca.unesp.br/F/?func=find-b-0&local_base=BDTD. No encontramos informaes relativas quantidade de documentos abrigada pela base de dados.Seu buscador se assemelha ao da CAPES.Consulta realizada em 08/05/2015, s 22h39. 7 A Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes da USP, inaugurada em 2001, computou 43 752 documentos em 2013. Seu buscador se assemelha ao da CAPES, quanto aos critrios (ano de publicao, autor etc). Consulta realizada em 25/6/14, 12h32, no endereo http://www.teses.usp.br/.

17

Direito, de msica eletroacstica) e, um deles, do campo da Biologia, o que pode remeter, na

verdade, a Horace-Bndict de Saussure, celbre ancestral de Ferdinand de Saussure no

campo do que viria a ser a Geologia.

Na biblioteca digital da USP, os 13 trabalhos cujos resumos mencionam Saussure se

concentram em Semitica, Anlise do Discurso, ensino de lngua materna, aquisio de

linguagem e psicanlise. Nenhum dos trabalhos, mesmo nos resultados minoritrios como

Saussure e curso (9, CAPES; 7, USP), Saussure e ensino (13, CAPES), Saussure e estratgia

(1, USP), Saussure e exemplo (3, CAPES), Saussure e metfora (2, CAPES), apresenta o

tema que desenvolvemos, o que pode evidenciar uma oportunidade de estudo de outras

dimenses da atividade de Saussure. Abaixo resumimos as contagens apuradas:

Tabela 1 Teses e/ou dissertaes nos bancos virtuais da CAPES, da Unesp e da USP, cujos resumos citam Saussure

Expresses contidas em resumos

Nmero de trabalhos CAPES

Nmero de trabalhos UNESP

Nmero de trabalhos USP

Saussure 58 7 13 Saussure e analogia zero Zero zero Saussure e curso 9 7 7 Saussure e ensino 13 1 zero Saussure e estratgia zero Zero 1 Saussure e exemplo 3 Zero zero Saussure e fontica zero Zero zero Saussure e fonologia zero Zero zero Saussure e metfora 2 Zero zero Saussure e 1907 zero Zero zero

Parece-nos oportuno apontar, ademais, que Saussure consta no ttulo de um mestrado em

Filosofia (1975) e de um doutorado em Lingustica (2000), na apurao de um terceiro banco

de dados8. Enquanto que, no primeiro, Saussure apresentado como inovador Saussure,

uma revoluo na Lingustica9 -, no segundo, o autor inserido em uma tradio, chamada

cientificista, a julgar pelo ttulo Humboldt, Whitney e Saussure : Romantismo e

Cientificismo Simbolismo na histria da Lingustica.10 Por meio dos ttulos destes dois

trabalhos, desenvolvidos com intervalo de vinte e cinco anos, enxergamos um procedimento

condizente com a polivalncia do corpus saussuriano : em 1975, uma alegada ruptura de

8 O buscador digital do servio de ps-graduao da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo se apresenta como um dos itens do menu do referido setor : Defesa de Mestrado e Doutorado desde o ano de 1937. Consulta realizada em 25/6/14, 12h32, no endereo http://pos.fflch.usp.br/node/44874 9 De autoria de Neidson Rodrigues, o trabalho foi orientado pela Profa. Dra. Marilena Chau. 10 De autoria de Sebastio Elias Milani, o trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Carlos Alberto da Fonseca.

18

Saussure em relao a sua poca; em 2000, uma provvel alegada continuidade do professor

com seu tempo.

Entre ruptura e continuidade, o pesquisador e editor E.Komatsu (1996), ao analisar o primeiro

curso de Lingustica Geral ministrado por Saussure, por exemplo, considera a classificao

que o professor fez dos fonemas como expediente precursor daquilo a que se chamou mtodo

estruturalista, o que colocaria nosso autor, em uma interpretao forte, em ruptura com sua

poca. Ao mesmo tempo, a definio de fonema interpretada como no estando ainda (still)

em ruptura com o que posteriormente ficaria consagrado:

With regard to structural method, the Principles of phonology foreshadow a new position in two ways: (1) Saussure classifies linguistic sounds according to the notion aperture, using a scale from zero to six. This reflects the beginnings of a structuralist method in that the whole situation of sounds can be surveyed in a single view, by means of a classification table. [] still the phoneme is defined as the sum of acoustic impressions and articulatory acts [] (ICLG:viii) [grifo nosso]

Em perspectiva diferente da que adotou Komatsu, poderamos ns tomar como hiptese de

trabalho, que onde o editor enxerga um expediente precursor de conceitos importantes para a

posteridade, ns enxergamos uma estratgia didtica, supostamente em sintonia com os

alunos do Curso I (1907).

O pesquisador J.Joseph, o mais recente bigrafo de Saussure, considera idiossincrtica a

apresentao dos fonemas no referido curso (Joseph, 2012:492). Ele aponta, ainda, a

continuidade do professor em relao a sua cultura escolar, no que diz respeito ao

entendimento de Saussure sobre a histria da Lingustica. O trecho que destacamos a seguir

retoma o incio dos estudos superiores de nosso autor:

much of the impact of Saussures lectures lay in his bringing back to the attention [...] certain traditional perspectives [...] he never claimed to invent them.[...] the history of linguistics as he taught was essentially the received history in Leipzig by Herman Osthoff in 1876. (Joseph, 2012:70-71) [grifo nosso]

Com os exemplos de Komatsu e de Joseph desejamos ilustrar que a compreenso da maneira

como os problemas so colocados e desenvolvidos em um campo do saber no completa se

nos contentarmos em localizar inventores. Ao menos esta a orientao do tipo de

19

historiografia lingustica que alicera nossa dissertao. No dizer de Koerner (2004), a

importncia dos autores considerados fundadores

[...] does not lie in having been so inventive and utterly original, but in having produced a synthesis of the [...] knowledge and having established a framework of their own, irrespective of the provenience of particular ingredients. (Koerner, 2004:8) [grifo nosso]

Quando Joseph (2012:71) defende que a originalidade, em Saussure, reside na maneira de

fazer interagir os elementos dentro de um sistema, e quando Koerner nos lembra que a

provenincia dos ingredientes no o mais relevante para se estabelecer a originalidade de

uma contribuio, recordamos que exemplos usados em sala de aula por Saussure so, como

outros, ingredientes do complexo processo de desenvolvimento e transmisso de prticas e

idias atinentes linguagem.

Insistimos que a sala de aula um dos terrenos em que a questo da continuidade e da ruptura

vem baila, quando se trata, por exemplo, de expor o aluno, em dois semestres letivos11, a um

condensado de problemas e instrumentos das cincias da linguagem elaborados ao longo de

sculos.

A equipe docente lida, dessa forma, com a seleo e a fabricao de contedos, alm das

prprias estratgias de leitura de textos como o CLG. Para os alunos, o efeito de tal exposio

pode ser passageiro, segundo Koerner: However, once a student has grasped the basics, there

is the likelihood that the history of the subject, the genesis of its concept-formation, [...] tends

to be dropped. (Koerner, 2004:7) Suas ideias sugerem que os contedos apresentados como

bsicos so perecveis, facilmente interpretados como algo a ser decorado, ultrapassado

ou, com boa-vontade, preservado como patrimnio da Lingustica. Sua crtica parece

evidenciar a falta de conscincia histrica e a fragmentao cacofnica que pode atingir os

pesquisadores e, certamente, os alunos.

Como foi sintetizado por Chiss e Puech, os estudos saussurianos so, ao mesmo tempo, um

campo de pesquisas, sujeito, assim, ao debate, refutao, e um domnio de memria, um

inestimable objet de transmission (Chiss e Puech, 1994:2) Nesse sentido, o exerccio de

revisitar ideias fundadoras, onipresentes em manuais de Lingustica, como as de Saussure, pe

11Tal como se configuram as disciplinas semestrais de Elementos de Lingustica, nos mdulos I e II, no ciclo bsico da graduao de Letras, na Universidade de So Paulo.

20

prova a capacidade dos professores-pesquisadores de dialogar com o passado e, assim, de

construir projetos. De tudo o que expusemos at agora, vemos que o cnone precisa ser

continuamente vivificado. Koerner lamenta, ainda, aquilo que entende como falta de

priorizao de disciplinas relativas histria dos estudos lingusticos:

[...] whereas [...] natural sciences have enjoyed the establishment of courses devoted to the history of their own discipline, no comparable arrangement exists with regard to linguistics, a discipline in which the coexistence of diverging theoretical views and possibly contrasting methodological procedures constitutes perhaps the most important element, something which should make the History of Linguistics more, not less, important than, say, the History of Medicine for the present understanding and practice of the health science today [...] (Koerner, 2004:6) [grifo nosso]

Constatar que a diversificao de mtodos, procedimentos, pressupostos e teorias

constitutiva das cincias da linguagem no facilita, por si s, a reflexo sobre a disciplina,

tanto menos seu ensino de maneira no compartimentalizada. Uma das maneiras de se lidar

com tal situao, e mesmo com as dificuldades de intercompreenso entre as subreas,

consiste em evocar a figura de um pai fundador, figura esta que se constri pelas estratgias

de leitura do CLG.

O Curso se torna o terreno comum sobre o qual podem discorrer todos os linguistas, a

despeito das mais dspares especialidades. Como nos lembra Altman, [...] Saussure cumpre

[...] com brilhantismo o destino dos mitos, que o de nos fazer reconhecer a todos, na origem,

coparticipantes de um mesmo projeto de cincia. (2013:31). No recente centenrio de

falecimento de nosso mito (1913-2013), a ele nos rendemos: Saussure continua a ser parte do

cnone, um pensador em relao ao qual precisam se posicionar aqueles que pretendem

participar do campo de estudos da linguagem: ainda ou finalmente?

ii. Trajetria do recorte de pesquisa

A dissertao aqui desenvolvida fruto de curiosidade e inquietao sobre dois temas: a

necessidade, da parte da Lingustica, de construir um cnone para si, como disciplina e rea

do saber que e, em segundo lugar, a complexidade do trabalho de ensino. No breve relato

que apresento sobre o percurso deste recorte de pesquisa, ser inevitvel e, a meu ver,

21

bastante afortunado, poder citar tantos professores inspiradores, alguns mais de perto, outros

mais de longe, incansveis todos.

Em 2007, na condio de caloura de Letras, fiquei bastante intrigada com a conferncia

acerca da coletnea de manuscritos saussurianos, Escritos de Lingustica Geral, proferida pelo

Prof. Dr. Waldir Beividas (DL-USP), durante o Encontro dos Alunos de Ps-Graduao em

Lingustica. No ano seguinte, j inscrita nas habilitaes de Portugus e de Francs, tomei

conhecimento, durante um mini-curso proferido na prpria faculdade pelo Prof. Dr. Pierre

Swiggers (Universidade Catlica de Louvain, Blgica), de que o Curso de Lingustica Geral

gerava no poucos estudos, reconstrues e polmicas; estas atividades me pareceram mais

interessantes que a prpria leitura da obra, que eu havia feito de forma fragmentada e

incompleta.

J em 2010, li um nico artigo em nossa biblioteca, sobre a arbitrariedade do signo lingustico

saussuriano, Lessentiel de larbitraire, de autoria do renomado crtico norte-americano

Jonathan Culler, dentro de volumosa coletnea da editora LHerne, o que apenas fez crescer

minha curiosidade sobre a impresso de que toda e qualquer pessoa de Cincias Humanas

tinha que se pronunciar a respeito do mestre genebrino. Decidida a estudar aquele tema,

transmiti meu entusiasmo Profa. Dra. Evani Viotti (DL-USP), que o colocou em imediata

relao com sua pesquisa sobre motivao e arbitrariedade nas lnguas de sinais.

Meu entusiasmo inicial se converteu em um projeto de pesquisa dois anos mais tarde, quando

pude cursar um Master 1 na universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3), junto ao professor

Prof. Dr. Christian Puech, que me havia sido recomendado por Irne Fenoglio (ITEM-Paris) e

por Claudia Pino (DLM-USP), ambas estudiosas de crtica gentica, a primeira por

manuscritos de linguistas e, a ltima, por escritores literrios.

Da graduao at o incio do mestrado, paralelamente descoberta da rede de estudos

saussurianos, dediquei-me ao exerccio e ao aprendizado do ofcio de professora de francs

como lngua estrangeira, sob o fiel e enrgico acompanhamento da Profa. Dra. Eliane

Lousada (DLM-USP). Relembro, ainda, que meu olhar para Historiografia Lingustica foi

inicialmente construdo pela Profa. Dra. Olga Sansone (DL-USP).

22

Quando ingressei no programa de ps-graduao do Departamento de Lingustica da USP,

meu projeto inicial previa o estudo da circulao de exemplos dentro do manuscrito De

lessence double du langage (Genebra, Arch. de Saussure, 372/1). Pouco a pouco, com as

intervenes lcidas, prticas e sempre entusiasmantes da Profa. Dra. Cristina Altman,

chegamos ao presente recorte: o primeiro dos trs cursos, os contedos relativos a fonologia,

fontica e a analogia, as definies e, desde sempre, os exemplos de lngua. Friso, ademais,

que o uso de ns para a autorreferncia na dissertao reflete uma real dificuldade em

separar minhas ideias das conversas, dos ensinamentos e dos incentivos constantes que recebi

de minha orientadora.

Minha insistncia na procura por traos da didtica de Saussure em minha atividade de

aprendiz de pesquisadora se deveu, evidentemente, descoberta, paralela, como disse, do

trabalho de professora. Percebo claramente que o ensino e a pesquisa demandam seus

prprios tempos, seus prprios espaos e, por muitas vezes, estive convencida de que no era

possvel levar em frente ambos os ofcios. A depender do momento, minha preferncia pendia

para um ou outro deles. O que no se alterava, entretanto, era o desconforto em ler ou ouvir

afirmaes que por mim eram interpretadas da seguinte maneira, que assim caricaturizo:

Saussure foi brilhante, apesar de seu didatismo, apesar de ter tido que dar aulas sobre to

complexos temas, quase apesar de ter sido professor, como se a atividade de ensino

rebaixasse a capacidade intelectual do pesquisador.

Se eu percebo alguma ideologia em meu trabalho e se posso explicit-la, ela consiste em

acreditar que dar aulas sobre um tema repercute decisivamente na maneira de pensar sobre

ele, embora o prestgio do pensamento, em detrimento do ensinamento, continue a me

incomodar.

iii. Perguntas e objetivos de pesquisa

Uma vez que nossa perspectiva a de se analisarem definies e exemplos de lngua no

Curso I como estratgias didticas, perguntamo-nos: podemos, efetivamente, cham-las

didticas, tcnicas, metodolgicas e mesmo estratgicas? O fato de que um texto como o

Curso I seja fruto de anotaes de aula nos autoriza a tudo ler como informao didatizada?

Diante de tal material de anlise, aproximamo-nos das consideraes de Swiggers (1990a)

23

acerca da historiografia do ensino de lngua francesa, que julgamos proveitosas para nosso

tema:

Lhistorien de lenseignement dune langue (maternelle ou trangre) est en premier lieu un observateur de pratiques: sa situation est donc comparable celle de lethnomthodologue, qui est confront un ensemble de comportements dont il sagit de comprendre, dexpliciter et darticuler le contexte thorique sous-jacent. (Swiggers 1990a: 27)

O primeiro paralelo entre a didtica do francs e a do Curso I, nos limites de nosso estudo, o

prprio uso da lngua francesa, tomada como objeto de descrio quase que exclusivo na

primeira, convivendo com outras lnguas-objeto no segundo; tomada, tambm, como lngua

majoritria de trabalho, na primeira, e exclusiva, no segundo. O paralelo seguinte diz respeito

organizao das aulas de Lingustica Geral ou, nos termos de Swiggers, de uma prtica

pedolingustica:

[...] Ce contenu est une structure complexe, dans la mesure o il peut englober des noncs thoriques (sur lanalyse des donnes) et mtathoriques (sur la technique denseignement), et des stratgies pragmatiques (par ex. dans les exercices) et idologiques (attitudes lgard dune langue ; peinture de la socit ; charge thique des exemples, etc.). (Swiggers, 1990a:28) [grifo nosso]

No Curso I, encontramos inmeros enunciados que analisam exemplos de lnguas para os

alunos (ICLG:25); observamos comentrios sobre a maneira de ensinar, como quando

Riedlinger compara as convenes fonticas diferentes usadas por dois professores, o prprio

M. de Saussure e Karl Brugmann (ICLG:25); vemos, ainda, nomenclaturas fortemente

carregadas ideologicamente, como idiomes ngres (ICLG:14).

O objetivo central da dissertao consistiu em identificar e descrever definies e exemplos

de lnguas empregados por Saussure no Curso I (1907) no que diz respeito aos domnios de

Fonologia, Fontica e Analogia, tal como designados no texto que nos serve de material de

anlise. O objetivo, cuja tarefa de anlise eminentemente interna, foi desdobrado nas

seguintes etapas:

1. Levantamento e caracterizao de definies propostas por Saussure no tratamento dos

diferentes contedos de cada um dos domnios;

24

2. Levantamento e caracterizao dos exemplos de lngua propostos por Saussure no

tratamento dos diferentes contedos de cada um dos domnios;

3. Correlao entre as definies e os exemplos de lnguas, nos trs domnios em estudo;

4. Correlao dos resultados obtidos em 3. com o contexto institucional imediato do

Curso I, ou seja, o ensino da disciplina Lingustica Geral na Facult de Lettres et

Sciences Sociales em 1907. Frisamos que este ltimo objetivo secundrio em nossa

dissertao, de modo que ele foi inserido no trabalho como um ponto de partida para a

compreenso da dimenso externa do texto.

Os quatro objetivos se apoiaram em um corpus que compreendeu, no total, 60 (sessenta)

definies, 2424 (dois mil, quatrocentos e vinte e quatro) exemplos de lngua12, 7 (sete)

mecanismos de organizao do contedo temtico, 41 (quarenta e um) smbolos implicados

em esquematizaes e 59 (cinquenta e nove) perguntas retricas.

iv. Organizao da dissertao

O captulo 1 expe nossos pressupostos tericos, em estreita relao com o tipo de

problemtica que construmos, apresentada na sequncia. Analisamos, assim, algumas

retomadas de exemplos e de metforas creditados a Saussure em textos acadmicos de autores

outros, para tratar da vivificao do cnone atravs, justamente, de seus exemplos.

Prosseguimos com algumas consideraes sobre a atividade docente de Saussure, sobre

estudos saussurianos de retrica e adotamos a distino entre saberes epilingusticos e

metalingusticos para abordar nosso objeto. Em seguida, apresentamos estudos

historiogrficos que nos forneceram os parmetros metodolgicos de anlise de definies e

de exemplos de lngua. Encerramos o primeiro captulo com um panorama dos estudos

comparativistas e de Lingustica Geral no final do sculo XIX, entre Alemanha, Frana e

Sua.

No captulo 2, expomos a metodologia de nosso estudo e a organizao das anlises,

repartidas em quatro captulos. Nos trs captulos subsequentes 3, 4 e 5 , apresentamos

12 Pedimos desculpas pela ausncia de traduo dos exemplos de lngua. A profuso das ocorrncias e a ausncia de glosas no Curso I nos informam, evidentemente, sobre o repertrio presumido de sua audincia. Embora reconheamos que uma anlise dos exemplos com suas tradues pudesse ter levado a pesquisa a outro nvel de profundidade, contentamo-nos em investigar a maneira como eles foram inseridos na argumentao da aula.

25

as anlises de cada um dos domnios selecionados; respectivamente Fonologia, Fontica e

Analogia. O captulo 6 agrupa a sntese dos trs domnios e a Estrutura Institucional, assim

como nossas concluses. As Consideraes Finais retomam em ampliam as concluses a

que chegamos.

26

Captulo 1 / Problemtica

1.1 Pressupostos tericos

La science qui sest constitue autour des fais de langue a pass par trois phases successives avant de reconnatre quel est son vritable et unique objet. (Saussure, 1916/1972[1995]: 13) 13 [grifo nosso] [le jugement] suppose lexistence et lidentit de la chose juge, prsente en personne dans la singularit dune histoire autonome. Postulat ici refus : il y a histoire, mais multiple et fourmillant de multiples ractivits, elles-mmes suspendues des origines et des prolongements arbitrairement slectionns [...] (Caussat, 1978:43) [grifo nosso]

O julgamento sobre a cincia dos fatos de lngua que encontramos no Curso de Lingustica

Geral de 1916 nos conta que o objeto legtimo da referida cincia tem uma histria, j

organizada, alis, em trs sucessivas fases. A partir do CLG, uma delas compreende os

estudos ditos comparativos, cujo marco simblico a publicao, em 1816, de Systme de la

conjugaison du sanscrit, de F. Bopp (1791-1867). Entre essa obra e o curso, cem anos

transcorreram at que Saussure (1857-1913) tomasse como coisa julgada a Lingustica e a

ela conferisse objeto de estudo no apenas verdadeiro, mas nico. Nessa histria, que

pretendeu ser definitiva, Bopp teria inaugurado um mtodo de comparao de idiomas que

teria conferido autonomia ao campo, ao passo que, os neogramticos, pesquisadores tambm

germanfonos, teriam tido o mrito de colocar em perspectiva histrica todos os resultados

da comparao, no final do sculo XIX (CLG:19).

P. Caussat (1978), antes de apresentar suas prprias concluses sobre o evento a que chamou

de querela das leis fonticas, alerta seus leitores para a inevitvel arbitrariedade embutida

em sua histria dos neogramticos, escrita em 1978, no centenrio de publicao do manifesto

de K. Brugmann (1849-1919) e H. Osthoff (1847-1909), no prefcio da revista Investigaes

Morfolgicas (1878). Nos trechos que selecionamos como epgrafes, Saussure e Caussat

agem sobre um domnio a que chamamos, em provisria homogeneizao, de passado. No

trecho que apresenta uma histria da Lingustica como a histria, supostamente lastreada no

verdadeiro e nico objeto da cincia em questo, encontramos, de nosso ponto de vista, dois

13 SAUSSURE, F. de. Cours de Linguistique Gnrale. (1916) Ed. Tullio de Mauro (1967). Paris: Payot, 2005.

27

procedimentos inevitveis em qualquer ato de conhecimento: a escolha do passado e a

idealizao do futuro. Nas palavras de Auroux,

Le savoir (les instances qui le mettent en oeuvre) ne dtruit pas son pass comme on le croit souvent tort, il lorganise, le choisit, loublie, limagine ou lidalise, de la mme faon quil anticipe son avenir en le rvant tandis quil le construit. Sans mmoire et sans projet, il ny a tout simplement pas de savoir. (Auroux, 1994:13) [grifo nosso]

assim que o pai da Lingustica como disciplina autnoma encarou o seu prprio tempo

como o pice de uma srie acumulada de erros sobre a natureza da linguagem, cimo que se

tornou, na verdade, grande fardo a ser desanuviado pelos linguistas de sua poca, heris ou

mrtires, s voltas com a caa ao verdadeiro objeto. Caussat, por sua vez, recusa certa

coisificao do passado ao chamar nossa ateno para o fato de que no evidente que se

esteja falando sobre a mesma coisa apenas pelo fato de a coisa estar localizada no

passado, evidncia tanto menor quanto mais longnquos so os agentes, que no podem mais

responder em vida s caractersticas, aos mritos e demritos que lhes imputamos.

O olhar histrico de Saussure difere, nesse sentido, do olhar historiogrfico de Caussat, na

medida em que o historigrafo trabalha com o pressuposto de que todo ato de conhecimento

possui limites, e limites no necessariamente consensuais; na terminologia de que se serve

Auroux, o limite para o passado chamado horizonte de retrospeco; o limite para o futuro,

horizonte de prospeco, de modo que

Toute connaissance est une ralit historique, son mode dexistence rel nest pas la-temporalit idale de lordre logique du dploiement du vrai, mais la temporalit ramifie de la constitution au jour le jour du savoir. (Auroux, 1994:13)

O conhecimento das formas de estabelecimento do passado a que se prope o campo da

Historiografia nos prov de um ponto de vista, para usar termo recorrente em Saussure, no de

uma metodologia fixa:

I prefer to call the Historiography of the Language Sciences, [...] a principled manner of dealing with our linguistic past, or Linguistic Historiography for short, [which] furnishes the practing linguist with the material for acquiring a knowledge of the development of his/her own field. (Koerner, 2004:9) [grifo nosso]

A citao acima nos mostra uma viso processual do campo de estudos, no sentido de

pressupor que podemos lidar com o passado lingustico atravs da noo de desenvolvimento.

Entretanto, Saussure, ao esquematizar trs fases precursoras do verdadeiro objeto da

28

Lingustica, no opera, porventura, com a noo de desenvolvimento? Sim, se concordarmos

que progresso, em tom melhorativo, uma espcie de desenvolvimento. De qualquer modo, a

Historiografia que embasa a presente dissertao no adota o tom melhorativo de progresso

como fio condutor do processo de conhecimento. Ao assumir que o objetivo da atividade

historiogrfica o de reconstruir o passado a partir de certos princpios, em vez de descobrir

sua verdade, assume-se que a interpretao faz parte do ofcio:

Linguistic historiography can be defined as the discipline which describes and explains how linguistic knowledge was gained, formulated, and communicated, and how it developed through time. Description and explanation are closely linked in this reconstruction of the past. (Swiggers, 1990b:21) [grifo nosso]

O mesmo pesquisador nos d exemplo de investigao da maneira pela qual o conhecimento

lingustico foi formulado, comunicado e como se desenvolveu com o tempo. Ele aponta que

os sculos 17 e 18 so tratados de maneira muito negativa, quando no ignorados, pelas

histrias da Lingustica elaboradas no sculo 19. Este sculo, para o historigrafo, incorreu na

armadilha da lingustica herica (le pige de la linguistique hroque 2013a), como se o

passado tivesse que e pudesse ser superado, no entendimento moderno da temporalidade,

como vimos quando Saussure analisa sua tradio.

Apesar da retrica geral de ruptura do sculo 19, a herana que o Renascimento deixou a ele

foi entendida e sintetizada, pelo prprio Swiggers (2013a), nos cinco pontos que se seguem:

(1) o reconhecimento de regularidades paralelas; inevitvel evocar a preocupao genealgica na

investigao das mais diversas lnguas, como foi o caso do administrador colonial britnico W.

Jones (1746-1794), que difundiu a hiptese de que as semelhanas entre os idiomas cltico,

gtico, grego, latino, persa e snscrito apontariam para origem comum;

(2) o postular de princpios heursticos, metodolgicos e explicativos do trabalho etimolgico, a

exemplo dos primeiros dicionrios etimolgicos produzidos na Europa, que forneceram matria-

prima aos comparatistas;

(3) a reflexo sobre o princpio das mudanas lingusticas;

(4) a continuidade da linguagem como forma oral;

(5) o interesse pelos tipos de estrutura lingustica e sua evoluo.

(adaptado de Swiggers, 2013a:3)

29

Se so cinco, trs ou dois os pontos de herana, o que nos parece importante frisar a

relativizao de um discurso de ruptura do sculo XIX em relao ao seu passado,

proporcionada pelo trabalho historiogrfico. A Historiografia no nos autoriza, entretanto, que

encaremos as heranas como precursoras do sculo XIX, o que seria incorrer na impreciso

segundo a qual o passado est, necessariamente, a servio do presente. Em termos gerais, a

Historiografia procede por documentao, assimilada de maneira crtica e sistemtica em

relao a um quadro de tratamento, confrontado com uma literatura secundria (Swiggers,

2004:12). A despeito de classificaes, tipologias e modalizaes, a Historiografia uma

disciplina que subordina a sistematizao exaustividade da informao (Swiggers, 2004:1),

o que significa que detalhes podem ser mais decisivos do que concluses generalizantes. A

sntese de Altman retoma a seleo e a arbitrariedade do ofcio do historiador, e a ele

acrescenta a exigncia de coerncia para a reconstruo proposta:

A atividade historiogrfica que ambiciona compreender os movimentos de histria da cincia, resume, inevitavelmente, uma atividade de seleo, ordenao, reconstruo e interpretao dos fatos relevantes [...] para o quadro de reflexo que constri o historigrafo. No se trata, pois, de incluir quaisquer fatos passados, s por serem passados. [...] Deste ponto de vista, a arbitrariedade do investigador que seleciona nomes, fatos e datas encontra seu limite na consistncia e coerncia da rede de relaes estabelecidas entre eles. (Altman, 2004:28-29) [grifo nosso]

Selecionamos trs historigrafos das cincias da linguagem, S. Auroux (1947-), K. Koerner

(1939 -) e P. Swiggers (1955 -), como fontes relativamente independentes, na tentativa de

contrastar trs noes, a que chamaremos princpios, que cada um deles elaborou ao longo

de suas trajetrias:

Quadro 1 Princpios da prtica historiogrfica Princpio 1 Princpio 2 Princpio 3 Auroux (1994)

definio fenomenolgica do objeto

neutralidade epistemolgica

historicismo moderado

Koerner (1996)

contextualizao

imanncia

adequao

Swiggers (2004)

heurstica

hermenutica

reconstruo

Auroux (1994), em prefcio de obra sobre o nascimento das metalinguagens lingusticas

ocidentais e orientais, prope o princpio das definies puramente fenomenolgicas do

30

objeto (1) como maneira de se lidar com a diversidade das lnguas e dos saberes sobre as

mesmas ao longo dos sculos, sem aplicar-lhes rtulos historicamente situados como o

substantivo Lingustica, denominao que considera pertinente apenas para o sculo XIX. Em

outras palavras, o objeto de estudo situado em um campo de fenmenos perceptveis por

nossa conscincia cotidiana (Auroux, 1994:15), como o caso das anotaes de aula de

alunos de Saussure, que deram origem sntese pstuma do CLG. Alm disso, o cotidiano da

situao de ensino (organizao do currculo, carga horria, recursos, modalidades de

avaliao, nmero de alunos por turma etc) traz consequncias marcantes para a maneira

como o saber construdo e, portanto, transmitido.

O segundo princpio, decorrente do primeiro, o da neutralidade epistemolgica (2), no

sentido de que no se hierarquizam os saberes sobre as lnguas em escalas como

cientificidade, primitivismo etc. Desta forma, cincia passa a ser uma noo descritiva e,

em nosso tema de pesquisa, ela conferir a mesma legitimidade ao estudo das habilidades

didticas, Saussure como professor, funo frequentemente desprestigiada na Lingustica

terica, e investigao dos prprios contedos ministrados, a Saussure como pensador. Por

fim, o princpio do historicismo moderado (3) afirma a possibilidade de se construir uma

histria que abarque as mais diferentes lnguas e tradies, ao preo de certa homogeneizao:

[...] les stratgies cognitives pour multiples et diffrentes quelles soient ne varient pas linfini. Cest pourquoi on peut reconnatre, par del la diversit, des analogies, [...] (Auroux, 1994:16)

Embora nossos objetivos de pesquisa no se aproximem da comparao entre prticas de

ensino de Saussure com o ensino das Letras no Brasil, precisamos reconhecer que o tema, em

princpio, estudvel, ainda que requeira extrema prudncia e abundante documentao. A

ttulo de exemplo das analogias de que trata Auroux, destacamos, abaixo, o testemunho de

um dos tradutores do CLG no Brasil (1971), o Prof. Dr. Izidoro Blikstein:

[...] Qual era o tipo de ensino? Tomava-se, por exemplo, Os Lusadas (em Filologia Portuguesa) e o professor ia explicando palavra por palavra, o contexto cultural, a origem, etc. Era um ensino diacrnico. E de repente, comeou a avalanche da Lingustica, os livros, os estudiosos, as teses, comearam a chegar no Brasil. (BLIKSTEIN,2013:104) [grifo nosso]

Na lembrana do professor, mobilizada no contexto de uma entrevista, o ensino de Filologia

Portuguesa se baseava no que podemos chamar de explicao de texto. No nos interessa

investigar a acepo de diacronia em pauta na citao nem o teor da avalanche que imputou

31

Lingustica, porque seu depoimento tem o valor de testemunho, cuja pertinncia s pode ser

auferida dentro de uma historiografia. Nesse sentido, o trabalho de Altman (2004) sobre a

pesquisa lingustica no Brasil, no perodo de 1968 a 1988, que pode efetivamente dar conta do

relato do tradutor. Completando nosso exemplo de possvel analogia, tal como Auroux a

generalizou, observamos, abaixo, a descrio de uma prtica de ensino atribuda a Saussure,

da qual a explicao de texto faria parte:

In his first year as lecturer at the cole des Hautes tudes [1881] Saussure taught a course on Gothic Grammar, and another on the fourth-century translation of the Bible attributed to Bishop Wulfila, the principal text from which the Gothic language is known. [...] On Saturdays [...] he devoted half the period to morphology and the other half to explicating Wulfila . In his annual report for the year Saussure described the contents of the course:

The first lectures weren taken up with an introduction to the Gothic nation, the life of Wulfila [...] and the origin, [...], of the Scripture translation of which we possess fragments.

(Joseph, 2012:283) [grifo nosso]

Nesse sentido, adotamos o sintagma explicao de texto para capturar dois relatos a

propsito de duas prticas de ensino distantes de mais de oitenta anos. O nvel de

compatibilidade ou de divergncias das prticas pode, assim, se tornar tema de pesquisa,

dentro do historicismo moderado que prope Auroux.

Segundo Koerner (1996), o primeiro princpio de apresentao de uma teoria lingustica o

da contextualizao (1), deve restituir o que ele define como clima de opinio do perodo, ou

seja, o dilogo entre as correntes intelectuais da poca. Tal conceito importante na medida

em que leva em conta no apenas a lgica interna dos argumentos como critrio de

aceitabilidade em certos tempo e espao sociais, mas tambm as concepes implicitamente

sustentadas. Como j apontamos na Introduo, nosso trabalho se configurou em uma anlise

eminentemente interna, pela proporo que a tarefa de anlise tomou, dentro dos limites da

dissertao.

O segundo princpio, chamado de imanncia (2), toma o texto como uma unidade de sentido

completa e autnoma, imersa dentro de certo clima de opinio. Atravs desse princpio fica

bastante saliente a anlise da metalinguagem do corpus de estudo, na tentativa de se

minimizarem interferncias do repertrio do historiador na compreenso do passado, atravs

da tentativa de compreend-lo em seus prprios termos.

32

Por fim, o princpio da adequao (3) trata da maneira como o historiador traa eventuais

correspondncias entre ideias passadas e o presente, momento em que deve assumir sua

responsabilidade pelas aproximaes terminolgicas eventualmente propostas. Este princpio

no faz parte de nossos objetivos, a no ser como eventual concluso provisria de nossa

dissertao, mas a questo da metalinguagem se nos apresenta desde o tema do estudo. No

Curso I, fonologia, por exemplo, o estudo do som em relao fisiologia do ato fonatrio,

enquanto que, fontica, o estudo histrico da mudana lingustica (ICLG:viii; 12).

Swiggers (2004) sintetiza em trs passos metodolgicos sua discusso sobre modelos,

mtodos e problemas em historiografia da lingustica. O primeiro passo, heurstico (1),

demanda a seleo de um corpus de pesquisa e de um conjunto crtico sobre o corpus, que

promovemos na sequncia do presente captulo. O segundo passo apontado por Swiggers

chamado hermenutico (2), e visa a devolver ao corpus seu contexto, colocando-o em relao

com textos, autores, grupos e tradies, passo menos expressivo em nossa dissertao, como

j afirmamos. O terceiro e ltimo passo, reconstrutivo (3), como o prprio nome diz,

reconstri sistematicamente os dados auferidos, o que certamente ultrapassa nossos objetivos.

A definio puramente fenomenolgica do objeto (Auroux 1) e a neutralidade epistemolgica

(Auroux 2) nos preparam a aproximao a Saussure, uma vez que nos compelem a deixar em

suspenso certos rtulos (o pai da Lingustica, o fundador do estruturalismo) e certos

hbitos interpretativos (as dicotomias saussurianas, o alijamento do falante no modelo

saussuriano). A contextualizao (Koerner 1), a imanncia (Koerner 2), a heurstica

(Swiggers 1) e a hermenutica (Swiggers 2) do conta da maneira pela qual o texto que nos

servir como fonte primria ser estudado. Por fim, o historicismo moderado (Auroux 3), a

adequao (Koerner 3) e a reconstruo (Swiggers 3) admitem ser vivel a generalizao

sobre prticas do passado, sempre em relao ao presente que delas trata, ao mesmo tempo

que propem limites a concluses demasiado gerais sobre a histria de toda a humanidade

em todos os tempos.

Os princpios da prtica historiogrfica convivem com os temas do geral e do particular,

inevitveis no estudo de qualquer idioma e, exponencialmente, no conhecimento produzido

nos e sobre os inumerveis idiomas de nosso planeta. A tarefa de empreender tal

33

conhecimento pode ser encarada como questo de encontrar um mtodo, uma verdade. Em

momentos como a dcada de 1890, tal como vivida por Saussure em sua procura por um

objeto de estudo apropriado para a Lingustica, encontramos, de sua pluma, o sintagma

cincia da linguagem, no singular, o que sinaliza para seu projeto de unificao sintetizadora

de alguma coisa:

Figura 1 folha de abertura do manuscrito De lessence double du langage

De acordo com Colombat e equipe, o problema da generalidade pode propiciar uma

indeterminao desconfortvel ao campo:

[...] la fin du XIXe. sicle, [...] cest le syntagme pluriel de sciences du langage qui sest impos peu peu. Derrire ce changement terminologique rcent, [...] nest-ce pas cette indtermination troublante de la gnralit en linguistique qui fait retour ? (Colombat et al., 2010:214) [grifo nosso]

A atestada diversidade de abordagens, modelos, mtodos e validaes no seio das prprias

Cincias da Linguagem (Swiggers 1984; Colombat et al. 2010) ensejou comparaes com

reflexes desenvolvidas para outros campos do saber, como o das cincias fsicas. O que nos

interessa, neste ponto da dissertao, aderir leitura que faz Altman sobre a relao entre

ruptura e continuidade, em sua investigao sobre a pesquisa lingustica no Brasil. No se

trata de imputar uma suposta anomalia ou fragilidade aos estudos lingusticos, mas de

reconhecer um modo de funcionamento menos homogeneizado do que aquele de outras reas:

Parece razovel admitir que o avano [...] do conhecimento que produzimos em cincia(s) da linguagem ocorre no s por rupturas e descontinuidades, mas tambm por acumulao e continuidades. Ou seja, h momentos de divergncia e diversificao, como tambm h os de convergncia e unificao, e ambos parecem ser igualmente importantes para o refinamento do conhecimento produzido no mbito da disciplina. (Altman, 2004:38) [grifo nosso]

34

Como Altman, encaramos a variedade lingustica e, em nossos tempos, a pluralidade nos

estudos lingusticos, como constitutivas do campo.

1.2 O cnone e seus exemplos [...] la diversit successive des combinaisons linguistiques (dites tats de langue) [...] sont minemment comparables la diversit des situations dune partie dchecs.(Saussure,2002:206)14 [grifo nosso] La langue est um systme de signaux : ce qui fait la langue est le rapport qutablit lesprit entre ces signaux. La matire, en elle-mme, de ces signaux, peut tre considre comme indiffrente. (Saussure, 1907/1996:23) [grifo nosso] [...] la langue est un systme qui ne connat que son ordre propre. Une comparaison avec le jeu dchecs le fera mieux sentir. [...] si je remplace des pices de bois par des pices divoire, le changement est indiffrent pour le systme. (Saussure, 1916/1972[1995]: 43) [grifo nosso]

Em nossa faculdade, o ingresso do estudante de Letras no universo heterclito e

multifacetado das Cincias da Linguagem passa pelo estudo do legado de Ferdinand-Mongin

de Saussure (1857-1913), tomado como ponto de partida na formao do ingressante.

Lanado em 2013, na senda da divulgao cientfica, a obra Lingustica? Que isso?15,

apresenta Saussure ao leitor alheio aos estudos lingusticos:

[...] vamos tratar de um dos objetos tericos criados pela Lingustica: a lngua. Esse objeto foi estabelecido por Ferdinand de Saussure, considerado o criador da Lingustica moderna. Saussure era suo, faleceu no dia 27 de fevereiro de 1913, aos 56 anos. Sua obra mais importante o Curso de Lingustica Geral, cuja primeira edio de 1916. Na verdade, no foi o linguista suo quem escreveu o Curso. Ele exps suas ideias sobre a cincia da linguagem em trs cursos ministrados na Universidade de Genebra, em 1907, 1908-1909 e em 1910-1911. A partir de notas dos alunos, Charles Bally e Albert Sechehaye, com a colaborao de Albert Riedlinger, organizaram esse texto que influenciou, de maneira decisiva, o rumo dos estudos lingusticos. (Fiorin, 2013:46) [grifo nosso]

O trecho em destaque revela, sem tardar e como no poderia deixar de ser, o carter coletivo

da obra, alm de situar essa produo em espao e tempo definidos. Certamente que a

profuso de publicaes de manuscritos autgrafos e de seus respectivos estudos tende a

14 SAUSSURE, F. de. Ecrits de Linguistique Gnrale. d. Simon Bouquet et Rudolf Engler. Paris: Editions Gallimard, 2002. Na presente dissertao, o compndio de manuscritos ser doravante referido como ELG, sigla eventualmente acompanhada da pgina da referida edio, como em ELG: 23. 15 FIORIN, J.L. (org.) Lingustica? Que isso? So Paulo: Contexto, 2013.

35

produzir novas interpretaes sobre Saussure, alm do Curso. O caso que, para o estudante

brasileiro de Letras, a comparao com o jogo de xadrez, celebrizada na vulgata16 para ilustrar

o conceito de lngua, faz parte do repertrio dos nefitos at nossos dias.

O Curso recebeu traduo em portugus no ano de 1971, por Antnio Chelini, Jos Paulo

Paes e Izidoro Blikstein, equipe ligada ento editora Cultrix, que j vinha traduzindo e

traduziria obras consideradas ps-estruturalistas, como as de Jakobson (1968), Dubois (1970)

e Barthes (1974). Na percepo de Blikstein, tambm professor de Letras, a chegada de

Saussure juntamente com as outras obras no foi motivo de confuso:

Eu diria que no dificultou a divulgao da traduo [do Curso] porque o texto que era considerado leitura obrigatria, bsica, continuou figurando na bibliografia universitria, sendo sempre citado. Mas evidente que ns no podemos parar em Saussure, para citar o caso de Benveniste, ele um herdeiro de Saussure, evidente que ele desenvolveu, por exemplo, a noo da enunciao, [...] E o que me parecia uma atitude prudente, sbia, da parte dos professores e especialistas, era entender tudo isso como um processo, de intertextualidade, de crescimento, de desdobramento, portanto era importante conhecer Saussure, mas era importante conhecer o que veio depois tambm. Mesmo porque me parece que o texto de Saussure, apesar de tantos trabalhos, tanto empenho, tanta dedicao estudando os manuscritos de Saussure, eu diria o seguinte, o texto de Saussure no foi ainda totalmente perscrutado. Cada nova leitura implica novas descobertas. (BLIKSTEIN, 2013:104) [grifo nosso]

Com o valor de testemunho a ser ponderado por uma historiografia, Blikstein encara a

chegada do CLG ao currculo universitrio como um elo de uma cadeia de desenvolvimento

sem que, entretanto, o elo mais antigo seja encarado como ultrapassado. Voltando-nos para

a obra de Fiorin, acima referida, o jogo de xadrez retomado e parafraseado, o que refora a

eficcia epistemolgico-pedaggica da j clebre comparao:

Saussure compara a linguagem a um jogo de xadrez (1969: 31-32). O jogo constitui um sistema, em que no importam o material de que so feitas as peas, o lugar onde o jogo apareceu, etc. O que importa ao sistema so as peas (seu nmero, suas funes), bem como as regras do jogo. Cada partida um acontecimento, que manifesta o sistema. (Fiorin, 2013:47) [grifo nosso]

16 De forma alguma aderimos a qualquer conotao pejorativa para o termo vulgata. Em nosso estudo, o referido termo tem valor descritivo, atestando to somente o nvel de adeso alegada e de reconhecimento atestado de que o Curso de Lingustica Geral desfrutou nas comunidades cientficas de cincias humanas, sobretudo a partir dos anos 50 do sculo XX.

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No centenrio de falecimento de Saussure, o dossi biogrfico que a Tribune de Genve

publicou a seu respeito o apresenta aos leitores como [...] un gant de la linguistique,

imediatamente caracterizado como [...] un pre espigle et un mari aimant17. A reportagem,

que no hesitou em abordar episdios da vida privada do mestre, props aos leitores um teste

de dez perguntas, relativas a gostos pessoais de juventude e a ideias famosas de nosso gnie

pluriel. Respondamos primeira delas:

Figura 2 Quiz da Tribune de Genve (13/7/2013)

A consagrada comparao acompanhava Saussure, ao que sabemos, desde, no mnimo, o

decnio de 1890. No trecho apresentado logo abaixo, autgrafo, o jogo de xadrez aparece de

maneira nuanada. Meditando consigo sobre a metfora do jogo, Ferdd duvida que o

contraste entre os termos posio (position) e jogada (coup), traga algo de efetivamente

relevante e operacional ao conceito de lngua:

Il ny a aucune analogie en effet pour lesprit entre ce quest une position dchecs et un coup dchecs. [...] il est impossible de dire laquelle de ces deux choses, totalement dissemblables, constitue plutt que lautre le ct dcisif de lensemble, de manire permettre de le classe quelque part. (ELG:208) [grifo nosso]

17 Pai espoleta e marido adorvel (traduo nossa).

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A nuance entre posio e jogada apenas uma das variantes da metfora sobre a qual

Saussure meditou18. Em artigo que trata dos conceitos de diacronia e sincronia, J.-L. Chiss

reprodruz, em apud, uma afirmao de um dos grandes difusores iniciais do CLG, o linguista

R. Jakobson. O expoente da fonologia de Praga toma como ponto de partida de sua reflexo a

comparao entre lngua e jogo de xadrez, chamada de analogia, explicitamente creditada a

Saussure, desta vez para compreender o mecanismo das mudanas lingusticas em termos de

uma provvel inteno ou finalidade:

L'analogie saussurienne entre la langue et le jeu d'checs peut tre pousse jusqu'au bout. Il existe des changements linguistiques qui, pareillement aux dplacements dans le jeu d'checs, ont l'intention d' exercer une action sur le systme [...] (Chiss, 1978:110) [grifo nosso]

Nesse sentido, aquilo a que vimos chamando genericamente de exemplo, a despeito de uma

terminologia mais precisa, se revela valioso expediente pedaggico, informativo e retrico,

tanto para seus destinatrios, na condio de alunos e leitores, quanto para aqueles que o

reformulam, na condio de autores. Desta maneira, Jakobson leva at o fim o que ele

chama de analogia entre lngua e jogo de xadrez.

Do mesmo modo, A. Sechehaye, em seu livro Programme et Mthodes de la Linguistique

Thorique (1908), debate a questo da mudana lingustica apresentando os mesmos

exemplos de Saussure anotados por A. Riedlinger sobre o curso de 1907 (Joseph, 2012:505).

Adotando-se por ponto de partida o CLG, o rpido exame de citaes que retomam o jogo de

xadrez nos permite afirmar que os exemplos so uma via de investigao pela qual [...] les

noncs saussuriens continuent tre admis, explicits, comments et discuts, definir un

corps de vrits et um domaine de validit [...] (Chiss e Puech, 1994 :41). Quando Chiss e

Puech constatam a contnua admisso dos enunciados saussurianos na pauta dos estudos

lingusticos, ns nos perguntamos se, a repetio de exemplos como o do jogo de xadrez no

chega a provocar certo efeito de verdade na leitura da obra, como se pudssemos testemunhar

parte das aulas do professor M. de Saussure, atravs de exemplos originais.

Se assim for, a replicao de exemplos contribui para a preservao do cnone, sobretudo no

caso de Saussure, reverenciado pela comunidade acadmica menos no que toca filologia

18 Para uma anlise da metfora do jogo de xadrez nos Escritos de Lingustica Geral, consultar Vincent (2013:89-90).

38

comparatista do sculo XIX, ramo em que efetivamente publicou, e mais como teoria da

lingustica geral e da semiologia do sculo XX, embora se saiba, neste caso, que ele no tenha

sido o autor efetivo do que foi publicado postumamente em seu nome (Altman, 2013).

Para ns, leitores, aprendizes, pesquisadores, os exemplos so mecanismos que credenciam

uma teoria, legitimando sua argumentao. Um bom exemplo provoca um efeito de

naturalidade, de aparente evidncia que apenas demoramos a descobrir, que esteve sempre

l. Em ltima instncia, o que est em jogo, na questo dos exemplos, se estes so mais um

efeito da teoria ou se, em outro sentido, so ocorrncias do mundo dos fenmenos, mais ou

menos bem capturadas pela prpria teoria. Saussure, por sua vez, pende para a primeira

opo, quando nos lembramos de que o ponto de vista precede o objeto (CLG:23), assim

como [...] le lien quon tablit entre les choses pr-existe aux choses (ELG:200).

Sabemos que o jogo de xadrez apenas uma das ocorrncias de exemplos e comparaes

tematizados por Saussure que a tradio insiste em retomar, no ensino e na divulgao das

Cincias da linguagem, como pudemos observar nas citaes que compuseran esta seo.

Mais adiante, na mesma obra de Fiorin, flagramos outra herana do CLG, a palavra nu:

No incio da obra [CLG], Saussure pergunta-se qual o objeto da Lingustica. Para refletir sobre ele, toma a palavra nu e diz que ela pode ser trs ou quatro coisas diferentes conforme o que se leva em considerao: um conjunto de sons, a expresso de uma ideia, a forma atual que corresponde ao latim nudum, etc. (Fiorin, 2013:46) [grifo nosso]

intrigante que alguns dos exemplos possivelmente empregados em sala de aula tenham no

apenas sobrevivido, mas que continuem atuantes nas sucessivas snteses feitas a partir dos

ensinos de Saussure, como o emblemtico caso da vulgata de 1916 e da obra de divulgao

cientfica - Lingustica? Que isso? -, por ns citadas. Na biografia Saussure (Joseph, 2012),

encontramos inmeras reprodues de exemplos que o mestre genebrino teria empregado

em aulas ou que foram registradas em manuscritos. Tais retomadas demandam, por parte do

bigrafo, uma textualizao diferente daquela que a fonte apresentou. assim que

encontramos, ao longo da volumosa obra, reorganizaes