DEFOE, D. Uma História Dos Piratas

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    Apresentao edio brasileira

    LUCIANOFIGUEIREDO*

    Bando de ladres, vermes, vagabundos, celerados que nada tmde humano. Parece dicil acreditar que o mesmo autor de deinies to

    fortes e sinceras a respeito dos piratas tenha tambm contribudo parailustrar a aura romntica, heroica e s vezes at libertria que essespersonagens viriam a merecer sculos depois. Esse sinal trocado, algoinvoluntrio, uma das dimenses mais fascinantes da obra que sepublica.

    O livro original, do qual selecionamos alguns captulos, nasceu naInglaterra em 1724 com o quilomtrico e sensacionalista ttulo de Histria

    eral dos roubos e assassinatos dos mais conhecidos piratas, e tambm suas

    regras, sua disciplina e governo desde o seu surgimento e estabelecimento nailha de Providence em 1717, at o presente ano de 1724. Com as notveisaes e aventuras de dois piratas do sexo feminino, Mary Read e Anne Bonnyantecedida pela narrativa do famoso capito Avery e de seus comparsas,seguida da forma como ele morreu na Inglaterra . Era assinado por certocapito Charles Johnson, o que ajudou a sustentar a verso de que foraescrito por um marinheiro ou por um ex-pirata. Isso at os anos 1930,quando foi estabelecida a autoria de ningum menos que Daniel Defoe(1661?-1731), escritor prolico de libelos polticos e de algumas obrasconsagradas, dentre as quais Robinson Cruso(1717).

    O ttulo e as aventuras cativaram o pblico, transformando-se em umretumbante sucesso que assegurou recursos muito bem-vindos aoeternamente endividado Defoe, protegido pela falsa autoria. O originalcompleto formado por trechos mal costurados pela urgncia daquelesque, vivendo da agilidade da sua pena, precisavam lanar com frequncia

    novos livros. Pouco lembra a fluncia que marcou seu nome na literatura.Se escondia o autor, eram claros os objetivos do livro: oferecer

    subsdios crticos bem fundamentados para a poltica de destruiodeinitiva dos piratas. Daniel Defoe promove um verdadeiro ajuste decontas com o passado da Inglaterra. O reino que tanto dependera dapirataria, incentivando e patrocinando suas aes nos mares que seabriram com a expanso martima europeia, tem pressa em extermin-laquando a situao internacional se redefine no incio do sculo XVIII. Com o

    im da Guerra de Sucesso da Espanha e o reconhecimento, pela Paz deUtrecht em 1713, dos direitos das naes europeias sobre o comrcio nasAntilhas e Amrica, assiste-se ao reluxo da pirataria. A trajetria dos

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    pequenos lobos que outrora frequentavam a corte como no perodo deElizabeth I, quando fustigavam a exclusividade de espanhis e portuguesesna Amrica e na frica com os clebres John Hawkins e Francis Drake converte-se em lagelo. Apesar das aes isoladas, foi determinante a aorepressiva movida pela Inglaterra e a Frana, defendendo agora ocomrcio legal e regular por um lado e, por outro, investindo noaperfeioamento das defesas dos navios de comrcio.

    Nesses novos tempos, o mar de Defoe no o cenrio de romances eaventuras para distrair leitores. Coalhado de piratas, ali prosperam osvcios e as ambies que ameaam a Inglaterra, exposta lenincia damonarquia em combat-los. Ao avisar no prefcio que a movimentao dospiratas estava sujeita s estaes do ano, atacando na costa da Amrica do

    Norte no vero e descendo para o Caribe no inverno, Defoe provoca: Jque temos plena cincia de todos os seus movimentos, no posso entenderpor que as nossas fragatas, sob uma regulamentao adequada, nopodem tambm dirigir-se para o sul, em vez de permanecerem inativasdurante todo o inverno. Ele tambm no perdoa, nesse escrito deinterveno a favor do sucesso do comrcio martimo ingls, osgovernadores coloniais por sua confortvel permissividade. Ainda quedescreva um bando de ladres, como acredita Defoe, o livro merece trazer

    no ttulo a nobre palavra histria, pois encerra lies que poderiam salvaro Imprio da destruio. No por outro motivo que evoca o que sepassara na Antiguidade com os romanos e sua atitude para com os piratasdo Mediterrneo.

    As narrativas que o autor produz esto irrigadas com bebida muitabebida , constantes traies, crueldades, precariedade e misria,naufrgios, saques de riquezas fabulosas, tempestades devastadoras,combates navais espetaculares, abordagens, duelos, prostituio edevassido moral. Uma histria dos piratas expe vidas sem qualquervirtude, expostas a situaes plenamente verossmeis em cidades,provncias ultramarinas, tavernas e rotas reconhecidas pelos leitores. Aliqualquer um sucumbia irremediavelmente pirataria: oiciais de marinha,comerciantes, fidalgos, mulheres.

    Todos esses traos ilustram este livro, que tomou como base acuidadosa e completa edio crtica de Histria geral... feita em 1972 e

    corrigida e aumentada em 1999 por Manuel Schonhorn. Desse volumosomaterial, selecionamos alguns captulos que procuram oferecer ao leitoruma combinao de registros familiares sobre a pirataria com documentos

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    de poca e situaes relevantes apesar de pouco conhecidas. Esto aquiiguras clebres como o Barba-Negra, o capito Kid, John Smith e outrosque marcaram seu tempo por exemplo, o eiciente Bartho. Roberts, queaprisionou mais de 400 navios, e Mary Read e Anne Bonny, mulheres queatuaram como piratas. Pelos quadrantes da geograia comercial inglesa,esses personagens circularam na Europa, Amrica do Norte, Caribe, fricae Oriente.

    As valiosas notas da edio de Schonhorn, aqui reproduzidas, ajudam acompreender os fundamentos da obra de Daniel Defoe, desenhando comgrande preciso as fontes originais dos relatos, alm de situarpersonagens, lugares e fatos.

    No deixamos escapar tambm a possibilidade de divulgar alguns

    documentos preciosos na presente edio, como a proclamao damonarquia inglesa concedendo o perdo aos piratas em 1718 eprometendo pesada represso aos que insistissem na atividade;transcries dos depoimentos feitos durante o julgamento de russuspeitos de pirataria, assim como suas punies; e os cdigos de condutaformalizados pelos prprios piratas para ordenar seu modo de vida. Ou,como diz o autor, os principais costumes e a forma de administraodaquela comunidade de bandidos.

    No escapou da escolha a passagem tomada emprestada de umviajante ingls em que Defoe trata da situao do Brasil (repleta deequvocos na ixao das datas) no sculo XVII e incio do XVIII, comalgumas lutas entre piratas e portugueses na costa, descries sobre aconduta dos colonos e a situao das cidades de Salvador, Rio de Janeiro ePernambuco. Claramente, ele sinaliza oportunidades comerciais comdicas para assegurar aos ingleses um bom relacionamento por aqui.

    A seleo feita sugere tambm um convite para aqueles que j foramconquistados pelo fascnio dessas histrias: ao percorrer as passagensescolhidas, o leitor aos poucos poder identiicar a origem dospersonagens e das cenas apresentadas em peras, no teatro, nos romanceshistricos e no cinema, responsveis por formar o vasto imaginrio dapirataria. Sobre essa pedra fundamental, quem sabe tambm opesquisador brasileiro descubra esse tema to negligenciado por aqui,malgrado a abundncia de documentos e o indiscutvel papel que as aes

    desses grupos desempenharam no vasto e rico litoral da Amricaportuguesa.

    J hora de iar ncora e navegar por algumas extraordinrias

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    histrias de piratas. Brutais e gananciosos, eles no tm o charmeromntico de Erol Flinn, Johnny Depp ou Geena Davis, mas suas trajetrias,contadas aqui no calor da hora, alertam para valores universais. E melhorainda: so capazes de nos divertir e surpreender.

    * Luciano Figueiredo professor do Departamento de Histria daUniversidade Federal Fluminense e editor da Revista de Histria daBiblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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    Prefcio

    Depois de enfrentarmos diiculdades maiores que o normal para reuniros materiais desta histria, no estaramos satisfeitos se a ela faltasse algoque izesse o pblico aceit-la integralmente. Por este motivo que lhe

    acrescentamos um pequeno resumo da lei ora em vigor contra os piratas, eselecionamos alguns casos particulares (os mais curiosos que pudemosencontrar) que j chegaram ao tribunal, e atravs dos quais icaroevidentes os atos considerados como pirataria, e os que no o foram.

    possvel que este livro venha a cair entre as mos honestas decomandantes de navios e de outros homens do mar, que vivemenfrentando grandes alies por ventos adversos ou outros acidentes tocomuns nas viagens longas, tais como a escassez de provises ou a falta de

    estoques. Acho que o livro poder servir-lhes como uma orientao, sejamquais forem as distncias a que se aventurarem sem violar a Lei dasNaes, no caso de serem lanados a alguma praia inspita ou sedepararem com outros navios no mar, que se recusem a negociar o que forextremamente necessrio preservao da vida, ou segurana do navioe da carga.

    No decorrer desta histria, forneceremos instncias de algunsrecrutamentos, quando os homens no encontram outra opo seno a demergulharem num tipo de vida que para eles to cheia de perigos e, paraa navegao comercial, to devastadora. Para remediar esse mal, pareceno haver mais que dois caminhos: ou se arranja emprego para o grandenmero de marujos que icaram sem destino aps o im da guerra impedindo assim que eles recorram a tais solues ou se exerce umavigilncia satisfatria nas costas da frica, das ndias Ocidentais e deoutros locais aos quais costumam recorrer os piratas.

    Devo registrar aqui que durante esta longa Paz 1 quase no ouvi falarde algum pirata holands. No que eu considere os holandeses maishonestos que os seus vizinhos, mas, quando vamos dar uma explicaopara esse fato, talvez ela represente para ns uma censura pela nossainatividade. A razo disso, a meu ver, que depois de uma guerra, quandoos navios holandeses icam inativos, recorre-se ali ao exerccio da pesca, noqual em pouco tempo os marujos vo encontrar trabalho e ganho togarantido quanto antes. Tivssemos ns esses mesmos recursos nos

    tempos de necessidade, e estou certo de que chegaramos a resultadosequivalentes. Pois a pesca um comrcio que no pode ser estocado em

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    excesso. O mar suicientemente grande para todos, no h necessidadede se brigar por espao. So ininitas as suas reservas, que sempre irorecompensar a quem trabalha. Alm disso, a maior parte das nossas costasabastece os holandeses, que esto constantemente empregando centenasde barcos nesse comrcio e, dessa forma, vendendo para ns o nossoprprio peixe. Digo o nosso peixe, porque a soberania das guas britnicas at hoje reconhecida pelos holandeses, como por todas as naesvizinhas; pelo que, se existisse algum esprito pblico entre ns, muitovaleria a pena que estabelecssemos uma pesca nacional, o querepresentaria o melhor recurso do mundo para se impedir a pirataria,para dar emprego a muitos pobres e tambm aliviar a nao desse grandefardo, baixando o preo geral dos mantimentos, alm de diversos outros

    artigos.No necessrio apresentar prova alguma do que estou insinuando, ouseja, que hoje existem centenas de marujos desempregados. Isso ica logoevidente ao se considerar a sua perambulao e mendicncia por todo oReino Unido. E tampouco se deve atribuir o fato de serem desprezadosaps a concluso do trabalho, de passarem fome ou praticarem roubos, aalguma inclinao natural pela inrcia, ou ao seu prprio destino dicil. Hmuitos anos no chega ao meu conhecimento de alguma fragata

    encarregada de uma misso, porm j por trs vezes, num perodo de 24horas, toda uma tripulao se ofereceu para trabalhar. Os comerciantes seaproveitam disso, diminuindo os salrios, e os poucos (marujos) ematividade so mal pagos, e praticamente mal alimentados. Tal costumeaumenta os descontentes, fazendo-os ansiarem por mudanas.

    No vou repetir o que disse nesta histria sobre os navios corsrios dasndias Ocidentais nos quais, segundo eu soube, eles sobrevivem graas aosbutins de guerra. Uma vez que o hbito se torna uma segunda natureza,no nos surpreende que, diante das diiculdades em se conseguir ummodo honesto de vida, eles recorram a algum outro meio to semelhanteao anterior. Tanto que se pode dizer que os navios corsrios, nos temposda guerra, so um verdadeiro berrio de piratas, nos tempos da paz.

    Agora que demos uma explicao para a sua origem e proliferao, sernatural pesquisar o porqu de no serem eles presos e aniquilados antesde ocuparem alguma posio eminente. Devemos observar que

    diicilmente se encontram menos que doze fragatas estacionadas emnossas colnias na Amrica, mesmo durante os perodos de paz. Essa fora suiciente para enfrentar um inimigo poderoso. A presente investigao

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    talvez no resulte muito favorvel aos que se relacionam com essetrabalho. Entretanto, espero que me desculpem, pois as minhasinsinuaes visam apenas a servir ao pblico.

    Quero dizer que acho muito estranho uns poucos piratas poderem

    devastar os mares durante anos, sem que nem ao menos sejam localizadospor algum dos nossos navios de guerra. Enquanto isso, eles (os piratas)podem apossar-se de frotas inteiras. como se aqueles fossem muito maiseicientes em seus negcios do que estes ltimos. S Roberts, com os seustripulantes, se apoderou de quatrocentos barcos, antes de ser derrotado.

    Provavelmente irei expor esse tema adequadamente em outra ocasio.Agora limito-me apenas a observar que os piratas tm, no mar, umasagacidade equivalente dos ladres em terra. Assim como eles, sabem

    quais estradas so mais frequentadas e onde h maior probabilidade deencontrar butim e tambm conhecem bem a latitude em que devem icarpara interceptarem os navios. Uma vez que os piratas esto sempreprecisando de provises, estoques ou qualquer outro tipo de carregamentoe circulam sempre em busca dos navios que os transportam, animadospela certeza de encontr-los; pelo mesmo motivo, se as fragatas navegarempor aquelas latitudes, podero ter tanta certeza de ali encontrarem piratasquanto os piratas tm de ali se depararem com navios mercantes. Se as

    fragatas no encontrarem piratas naquelas determinadas latitudes, entocom toda certeza os navios mercantes podero chegar a salvo a seusportos, navegando por elas.

    A im de tornar isso um pouco mais simples para os leitores do meupas, devo observar que todos os nossos navios que seguem para oexterior, s vezes pouco depois de se afastarem da costa, dirigem-se para alatitude do local aonde se destinam: se para as ilhas das ndias

    Ocidentais, ou qualquer parte do continente da Amrica, como Nova York,Nova Inglaterra, Virgnia etc., eles ento velejam na direo do oeste jque a nica certeza que se pode ter nessas viagens a da latitude atchegarem a seu porto sem que o seu curso sofra qualquer alterao. nesse caminho para o oeste que se encontram os piratas, seja na direoda Virgnia etc., seja na de Nevis, So Cristvo, Montserrat, Jamaica etc., demaneira que se os navios mercantes com tal destino no se tornarem umdia vtimas de algum deles, em algum momento fatalmente se tornaro. Por

    isso, sabendo-se que ali onde est a caa, tambm se encontram os vermes,airmo que se as fragatas seguirem pela mesma trilha, infalivelmente ospiratas iro cair-lhes nas mos, ou sero afugentados para longe. Se isso

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    acontecer, os navios mercantes, como falei antes, podero passar a salvo,sem serem molestados, e os piratas no tero outra opo seno a de serefugiarem naqueles buracos onde costumam icar espreita, nas ilhasdesertas, e nos quais o seu destino ser como o da raposa na toca:arriscando-se a sair, sero caados e presos, e se permanecerem l dentro,morrero de fome.

    Preciso fazer notar ainda uma outra coisa: geralmente os piratas vivemmudando seus trajetos de acordo com a estao do ano: no vero, elescirculam principalmente ao longo da costa do continente americano, masno inverno, que um tanto frio demais para eles, seguem em busca do sole se encaminham para as ilhas. Qualquer pessoa com experincia nocomrcio com as ndias Ocidentais sabe que isso verdade. Por isso, j que

    temos plena cincia de todos os seus movimentos, no posso entender porque as nossas fragatas, sob uma regulamentao adequada, tambm nopodem dirigir-se para o sul, em vez de permanecerem inativas durantetodo o inverno. Porm eu poderia ir longe demais nessa investigao, eassim devo deix-la agora para falar algo a respeito das pginas seguintes.Aventuro-me a airmar ao meu leitor que elas possuem algo que muito asrecomenda: a verdade. Os fatos dos quais eu mesmo no fui testemunhaocular, obtive atravs de relatos autnticos de pessoas relacionadas com a

    captura dos piratas, como tambm pelos prprios piratas aps serempresos, e acho que ningum poderia produzir melhores testemunhos emapoio credibilidade de qualquer histria.

    Poder observar-se que a narrativa das aes do pirata Roberts maislonga que as demais, e isto por dois motivos: primeiro, por ele ter assoladoos mares por mais tempo que os outros piratas, e consequentemente,haver um cenrio maior de atividades em sua vida; em segundo lugar,porque resolvi no aborrecer o leitor com repeties cansativas. Quandoconstatamos que certas circunstncias so as mesmas tanto na vida deRoberts quanto na de outros piratas, quer seja sobre assuntos de pirataria,quer de qualquer outra coisa, achamos melhor apresent-las apenas umavez, e a vida de Roberts foi escolhida com este propsito, por ter provocadono mundo maior alarde do que muitos outros.

    Quanto s vidas das duas piratas femininas, devemos confessar queelas podem parecer um tanto extraordinrias, mas no menos verdicas

    por isso. Como as duas foram julgadas publicamente por seus atos depirataria, existem testemunhas vivas em nmero suiciente que poderoconirmar tudo o que registramos sobre elas. verdade que apresentamos

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    alguns detalhes menos conhecidos por parte do pblico porque fomos maisinvestigativos sobre as circunstncias do passado delas do que outrospesquisadores, os quais no tinham outro desgnio seno o de satisfazersua curiosidade particular. Se nessas histrias temos incidentes e lancesque lhes podem conferir um certo ar romanesco, estes no foraminventados ou tramados com tal propsito. Esse um tipo de leitura com aqual este autor no tem muita familiaridade, mas, assim como eu mediverti imensamente quando me foram relatados, achei que poderiamcausar igual efeito sobre o leitor.

    Presumo no ser necessrio nos desculparmos por atribuir o nome deHistria s pginas que se seguem, embora elas no contenham seno osfeitos de um bando de ladres. So a bravura e a estratgia na guerra que

    fazem com que as aes meream ser relatadas. Neste sentido, pode-sepensar que as aventuras narradas aqui merecem esse nome. Plutarco muito circunstancial quando descreve as aes de Spartacus, o escravo, efaz da vitria sobre ele uma das maiores glrias de Marcus Crassus. E provvel, caso aquele escravo tivesse vivido um pouco mais, que Plutarco

    nos tivesse dado a sua vida mais extensamente.2 Roma, a senhora domundo, inicialmente no passava de um refgio de ladres e de fora da lei.E, se o progresso dos nossos piratas equivalesse sua fase inicial, se todos

    se tivessem unido para se estabelecerem em alguma daquelas ilhas, elesagora poderiam estar sendo honrados com o nome de nao, sem quenenhum poder nestas regies do mundo pudesse contest-lo.

    Se demos a impresso de alguma liberdade quanto ao comportamentode certos governadores de provncia no exterior, foi com cautela que oizemos. E possvel mesmo que no tenhamos declarado tudo o quesabamos. No entanto, esperamos que os que ocupam tal posio, e que

    jamais deram motivo para censura, no se sintam ofendidos, embora apalavra governador seja aqui empregada vrias vezes.

    P.S. necessrio incluir ainda uma ou duas palavras neste Prefcio,para informar ao leitor sobre os diversos acrscimos de material queforam feitos nesta segunda edio, os quais, dilatando o tamanho do livro,aumentaram tambm uma pequena parcela do seu preo,

    consequentemente.3

    Tendo a primeira impresso conseguido tanto sucesso com o pblico,isto levou a uma demanda muito grande para uma segunda. Nesseintervalo, vrias pessoas que haviam sido levadas por piratas, como

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    tambm outras que atuaram na captura destes, tiveram a amabilidade denos comunicar diversos fatos e circunstncias que nos haviam escapado naprimeira edio. Isso causou um certo atraso, e assim, se esta edio nochegou ao pblico to cedo quanto espervamos, foi para que pudssemostorn-la mais completa.

    No vamos entrar em detalhes sobre o novo material inserido aqui,porm a descrio das ilhas de So Tom etc., como tambm a do Brasil,no devem passar sem uma pequena nota. Deve-se observar que osnossos to especulativos matemticos e gegrafos cuja erudio, semdvida alguma, grande , entretanto, quando querem obter suasinformaes etc., vo pouco alm do que aos seus prprios gabinetes deestudo, sendo incapazes de nos fornecer uma descrio satisfatria dos

    pases. Por esta razo todos os nossos mapas e atlas contm erros togrosseiros, pois eles s podem conseguir seus relatrios atravs dedescries de gente ignorante.

    Deve-se notar tambm que quando os comandantes de naviodescobrem algum novo percurso, eles no tm muita inclinao emdivulg-los. O fato de algum conhecer melhor do que outros este ouaquele litoral geralmente o recomenda em seus negcios, tornando-o maisnecessrio, e, assim como o comerciante prefere no revelar os segredos

    do seu comrcio, tampouco o navegador ir faz-lo.O cavalheiro que se deu ao trabalho de fazer estas observaes o sr.

    Atkins,4 cirurgio, homem muito habilidoso em sua proisso, algum queno se prende a escrpulos menores para prestar algum servio aopblico, e que icou generosamente satisfeito por comunic-las pelo bemda sociedade. No tenho dvidas de que as suas observaes seroconsideradas interessantes e de muita utilidade para o comrcio com

    aquelas regies, e, alm disso, aqui apresentado um mtodo de comrciosegundo os portugueses, o qual poder ser de grande proveito para algunsconterrneos nossos, caso seja seguido literalmente.

    Esperamos que tais informaes possam satisfazer ao pblico. O autordestas pginas no considerou nada mais importante do que tornar o livrotil, apesar de ter sido informado de que certos senhores levantaramobjees quanto verdade do seu contedo, como, por exemplo, que esteparece ter sido calculado com o ito de entreter e de divertir o pblico. Se

    os fatos nele relacionados assumem um certo tom agradvel e vvido,esperamos que isto no seja imputado como defeito. Mas, em nome de sua

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    credibilidade, podemos garantir que os senhores navegantes, isto ,aqueles que conhecem bem a natureza dessas coisas, no puderam opor amenor objeo a essa mesma credibilidade. E o autor airma, com a maiorfranqueza, que em todo o livro diicilmente se encontrar algum fato oucircunstncia que no possa ser provado por confiveis testemunhos.

    Alm dos piratas cuja histria aqui relatada, houve ainda outros, queposteriormente sero mencionados, e cujas aventuras so to repletas deextravagncias e maldades quanto as que so tema deste livro. O autor jdeu incio sua compilao metdica, e assim que receber os materiaisnecessrios para complet-la (os quais espera chegarem em breve dasndias Ocidentais), caso o pblico lhe d estmulos para isso, ele tem ainteno de se aventurar em um segundo volume.

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    Introduo

    Uma vez que os piratas nas ndias Ocidentais tm se mostrado terrveise numerosos a ponto de interromperem o comrcio europeu naquelasregies e que os nossos comerciantes ingleses, particularmente, tm

    sofrido mais com as suas depredaes do que com as foras reunidas daFrana e da Espanha na ltima guerra, 1 no temos dvidas de que omundo ter curiosidade de conhecer a origem e a evoluo dessesfacnoras, que foram o terror da atividade comercial do mundo.

    Mas, antes de penetrarmos em sua histria particular, ser oportuno, guisa de introduo, demonstrar, por alguns exemplos, a grande maldade eo perigo que ameaam reinos e naes provenientes do desenvolvimentodesse tipo de ladro, quando, quer por problemas da poca em particular,

    quer pela negligncia dos governos, eles no so esmagados antes deganharem fora.

    At agora, o que vinha acontecendo que, ao se tolerar que um simplespirata percorresse livremente os mares como se no merecessenenhuma ateno por parte dos governos ele crescia gradativamenteat se tornar to poderoso que, antes que o pudessem eliminar, despendia-se muito sangue e riquezas. No iremos analisar como se passou o

    constante crescimento dos nossos piratas nas ndias Ocidentais, atrecentemente. Esta investigao cabe Legislatura, aos representantes dopovo no Parlamento, e a deixaremos a seu encargo.

    Nosso trabalho ser demonstrar brevemente como outras naes jsofreram tambm do mesmo problema, iniciado de forma igualmentetrivial.

    Nos tempos de Mariusa e de Sylla,2 Roma se encontrava no auge do

    poder, e mesmo assim foi to dilacerada pelas faces daqueles doisgrandes homens, que tudo o que se relacionava ao bem pblico tambm foinegligenciado. Foi quando irromperam na regio certos piratasprovenientes da Cilcia, pas da Asia Minor situado na costa doMediterrneo, entre a Sria, a leste, da qual se separa pelo monte Tauris, ea Armenia Minor, a oeste. Esse incio foi medocre e insigniicante: no maisque dois ou trs barcos e uns poucos homens, com os quais elescirculavam pelas ilhas gregas apossando-se dos navios que se

    encontravam desarmados e desprotegidos. Entretanto, ao capturaremgrandes quantidades de despojos, logo eles cresceram em riqueza e poder.Sua primeira ao a icar famosa foi o sequestro de Jlio Csar, ento ainda

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    um jovem e que, vendo-se forado a fugir das crueldades de Sylla, quepretendia acabar com a sua vida, partiu para a Bitnia. Ali permaneceu poralgum tempo com Nicomedes, rei daquele pas. Em seu retorno por mar foi

    interceptado e preso por alguns piratas, perto da ilha de Pharmacusa. 3

    Esses piratas tinham o brbaro costume de amarrar os prisioneiros uns aooutros pelas costas e depois atir-los ao mar. Porm, percebendo queCsar deveria ser algum de alta linhagem, a julgar pelas suas vestesprpura e pelo grande nmero de criados que o cercavam, acharam queseria mais lucrativo poup-lo, podendo receber uma grande soma por seuresgate. Assim, disseram-lhe que ele obteria sua liberdade se lhes pagassevinte talentos, o que achavam ser uma exigncia bem elevada em nossamoeda, cerca de trs mil e seiscentas libras. Csar sorriu e, por sua livre

    vontade, prometeu-lhes cinquenta talentos. Eles icaram muito satisfeitos eao mesmo tempo surpresos com a resposta, consentindo em que vrioscriados dele partissem com as suas instrues para levantar o dinheiro. Eassim Csar foi deixado no meio daqueles ruies, com trs criados apenas.Ficou ali por trinta e oito dias, e parecia to despreocupado e sem medoque muitas vezes, ao ir dormir, costumava ordenar que ningum izessebarulho, ameaando enforcar quem o perturbasse. Tambm jogava dadoscom eles, e algumas vezes escreveu versos e dilogos que costumava

    repetir em voz alta, obrigando-os tambm a repeti-los, e se eles no oselogiassem e os admirassem xingava-os de animais e brbaros, declarandoque os cruciicaria. Eles interpretavam aquilo como meras tiradas dehumor juvenil, e mais se divertiam com a coisa do que se desagradavam.

    Passado o tempo, os criados retornaram, trazendo o resgate, que foidevidamente pago, e Csar foi libertado. Velejou ento para o porto de

    Miletum4 onde, to logo chegou, concentrou toda sua arte e diligncia na

    preparao de uma esquadra naval, equipada e armada sua prpriacusta. E, iando suas velas na busca dos piratas, foi surpreend-losancorados entre as ilhas. Prendeu aqueles que o haviam sequestrado, almde mais alguns outros, tomou-lhes como butim todo o dinheiro quepossuam para reembolsar suas despesas no empreendimento, e ostransportou para Prgamo ou Troia deixando-os presos l. Emseguida, recorreu a Junius, que ento governava a sia, e a quem cabiajulgar e determinar a punio devida queles homens. Mas Junius,

    percebendo que no lhe caberia nenhum dinheiro com aquilo, respondeuque ia pensar com calma no melhor a fazer com os prisioneiros. Csardespediu-se dele e retornou a Prgamo, onde ordenou que lhe trouxessem

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    os prisioneiros e os executassem, segundo a lei prpria para aquele caso, aqual vem referida em um captulo ao inal deste livro sobre osregulamentos nos casos de pirataria. E assim, com toda a seriedade, elelhes aplicou a mesma punio com que, brincando, tantas vezes os haviaameaado.

    Csar partiu diretamente para Roma, onde passou a empenhar-se nosdesgnios de sua prpria ambio, como faziam quase todos os homensimportantes de Roma, e dessa forma, os piratas que restaram tiveramtempo suiciente para crescerem at atingir um poder prodigioso. Pois,enquanto perdurava a guerra civil, os mares icavam desprotegidos, tanto

    que Plutarco nos conta5que os piratas puderam construir vrios arsenais,com todo o tipo de estoques de guerra, amplos portos, erguer torres de

    observao e faris ao longo de toda a costa da Cilcia; que dispunham deuma poderosa frota, muito bem equipada e abastecida, com galeotes nosremos e manobradas no apenas por homens com a coragem que confereo desespero, mas tambm por experientes pilotos e marinheiros; possuampotentes navios, alm de leves pinaas para circular pelos mares e fazerdescobrimentos, num total no inferior a mil barcos. E se exibiam comtamanha magniicncia que despertavam tanto inveja pela sua aparnciagalante quanto temor pela sua fora. A popa e os alojamentos dos navios

    eram folheados a ouro; os remos, revestidos de prata, e as velas eram emtecido de prpura. Assim como se o maior deleite deles fosse gloriicar aprpria iniquidade. E tambm no se contentavam em cometer no mar osseus atos de pirataria e de insolncias, mas praticavam alm disso grandesdepredaes em terra, e realizavam conquistas, pois tomaram esaquearam nada menos do que quatrocentas cidades, exigindo tributos demuitas outras, devastando tambm os templos dos deuses e seenriquecendo com as oferendas ali depositadas. Muitas vezesdesembarcavam bandos de homens que no apenas saqueavam as cidadesdo litoral, como tambm assaltavam as belas residncias dos nobres aolongo do Tibre. Um grupo desses sequestrou certa vez Sextilius e Bellinus,dois pretores romanos, que se encontravam em seus trajes prpura, indode Roma para os seus governos, e os levaram com todos os seusatendentes, oiciais e mestres de cerimnia. Tambm raptaram a ilha deAntonius um cnsul que j fora honrado com o Triunfo quando ela

    viajava para a casa de campo do pai.Mas seu mais brbaro costume acontecia quando se apoderavam dealgum navio, ao interrogarem os passageiros sobre os seus nomes e pases

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    de origem. Se algum deles declarasse ser romano, eles ento se atiravamteatralmente aos seus ps, como se estivessem apavorados diante de todaa grandiosidade daquele nome, e lhe suplicavam perdo pelo que lhehaviam feito, implorando-lhe misericrdia, agindo ao redor dele como sefossem verdadeiros criados. Quando percebiam que o haviam iludidoquanto sua sinceridade, ento desdobravam a escada exterior do navio e,aproximando-se da vtima cheios de demonstraes de cortesia,declaravam-lhe que ela estava livre, e que podia ir-se embora do navio, eisso em pleno oceano. Vendo a sua surpresa, o que era perfeitamentenatural, ento a jogavam ao mar, aos gritos e gargalhadas, to libertinoseram em sua crueldade.

    Assim, Roma, nos tempos em que era a senhora do mundo, sofria,

    mesmo s suas portas, tais insultos e afrontas desses poderosos ladres.Mas o que por algum tempo fez cessar o faccionarismo interno e levantar acoragem daquele povo, que jamais fora acostumado a sofrer injrias de uminimigo sua altura, foi a excessiva escassez de provises em Roma,ocasionada pelo fato de todos os navios com gros e outros suprimentos,vindos da Siclia, da Crsega e de outros lugares, serem interceptados etomados por aqueles piratas, a ponto de ser a cidade quase reduzida situao de fome. Naquele momento, Pompeu, o Grande, foi imediatamente

    nomeado general para dar incio guerra. Quinhentos navios foram logoequipados, e ele contou com quatorze senadores como vice-almirantes,todos com grande experincia na guerra. E os ruies se haviamtransformado num inimigo to considervel, que foi necessrio nadamenos que um exrcito de cem mil soldados a p e cinco mil cavalarianospara os enfrentar por terra. Para grande sorte de Roma, Pompeu lanouseus barcos ao mar antes que os piratas fossem informados sobre aoperao que se armava contra eles, de forma que os seus navios tiveram

    de debandar por todo o Mediterrneo, assim como abelhas fugindo emtodas as direes da colmeia, tentando levar para a terra os seuscarregamentos. Pompeu dividiu a sua frota em treze esquadras, quedestinou a diversos postos, de modo que os piratas foram caindo em suasmos, em grande nmero, navio por navio, sem que nenhum se perdesse.Quarenta dias ele passou vasculhando o Mediterrneo em todas asdirees, alguns barcos da frota circulando pela costa da frica, outrosperto das ilhas, e outros ainda percorrendo as costas italianas, de modoque frequentemente os piratas que fugiam de uma esquadra eramcapturados por outra. Mesmo assim, alguns conseguiram escapar, indo

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    diretamente para a Cilcia e dando conhecimento a seus confederados napraia sobre o que havia acontecido. Marcaram um encontro de todos osnavios que se puderam salvar no porto de Coracesium, naquele mesmopas. Quando Pompeu viu que as guas do Mediterrneo j estavam limpas,acertou uma reunio de toda a sua frota no porto de Brundisium. Emseguida, velejando dali para o Adritico, foi atacar diretamente os fugitivosem suas colmeias. Assim que se aproximou de Coracesium, na Cilcia, ondeestavam os piratas remanescentes, estes tiveram a ousadia de se voltarempara enfrent-lo em batalha. Mas prevaleceu o gnio da velha Roma, e ospiratas sofreram uma arrasadora derrota, sendo todos capturados ouaniquilados. Entretanto, como haviam construdo um grande nmero deslidas fortalezas por todo o litoral, e tambm castelos e fortes no interior,

    perto da base do monte Taurus, Pompeu viu-se forado a siti-los ali comseu exrcito. Alguns locais ele tomou nos ataques, outros se renderam sua merc, e a estes ele poupou suas vidas, realizando inalmente uma

    conquista total.6

    Entretanto, provvel que caso aqueles piratas tivessem recebidoinformao suiciente sobre os preparativos dos romanos, de maneira aterem tempo de reunir as suas foras espalhadas em um s corpo,enfrentando Pompeu no mar, a vantagem penderia grandemente para o

    lado deles, tanto em nmero de navios quanto de homens. Tampouco lhesfaltava coragem, o que icou claro quando eles saram do porto deCoracesium para enfrentar Pompeu em batalha, contando com forasmuito inferiores s dele. Acho que se houvessem derrotado Pompeu,provavelmente executariam outros atentados maiores, e Roma, queconquistara o mundo inteiro, poderia vir a ser submetida por uma turmade piratas.

    Esta uma prova de como perigoso os governos serem negligentes eno tomarem providncias imediatas para suprimir esses bandidos domar, antes que eles possam se fortalecer.

    A verdade desta mxima pode ser mais bem exempliicada na histria

    de Barbarouse,7natural da cidade de Mitylene, na ilha de Lesbos, no marEgeu. Homem de origem simples que, educado para a vida martima, partiudali pela primeira vez, segundo relatos de piratas, apenas com umpequeno barco, porm, pelos despojos que capturou, pde juntar umariqueza imensa. Ao saberem que ele j dispunha de numerosos navios degrande porte, todos os sujeitos atrevidos e dissolutos daquelas ilhas

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    acorreram para ele, alistando-se ao seu servio, cheios de esperanas porbutins. De maneira que as suas foras cresceram at se converterem numaimensa frota. Com esta, ele realizou tais proezas de audcia e aventura,que acabou se transformando no Terror dos Mares. Por essa poca,aconteceu que Selim Entemi, rei da Algria, que se recusava a pagartributo aos espanhis, e vivia em constante apreenso ante uma possvelinvaso deles, fez um trato com Barbarouse, com base numa aliana, peloqual aquele viria dar-lhe ajuda e liber-lo do pagamento do tributo.Barbarouse concordou prontamente. Partindo para a Algria com umagrande frota, desembarcou naquela praia uma parte de seus homens e, deacordo com um plano para tomar de surpresa a cidade, executou-o comgrande sucesso, assassinando Selim quando este se encontrava na

    banheira. Logo em seguida, foi coroado ele prprio rei da Algria. Depoisdisso, declarou guerra a Abdilabde, rei de Tnis, derrotando-o numabatalha. Ampliou as suas conquistas em todas as direes. E assim, passoude ladro a poderoso rei. E, no obstante ter sido inalmente morto numabatalha, mesmo assim se estabelecera to bem naquele trono que, aomorrer sem herdeiros, deixou o reino para seu irmo, um outro pirata.

    Agora passo a falar dos piratas que infestam as ndias Ocidentais, ondeso mais numerosos que em qualquer outra parte do mundo, e por

    diversas razes:A primeira: porque existem tantas ilhotas desertas e bancos de areia, b

    com portos convenientes e seguros para se descarregarem os barcos, eabundantes naquilo que eles esto sempre necessitando: provises, ouseja, gua, aves marinhas, tartarugas, mariscos e outros peixes. Ali, setrouxerem consigo bebidas fortes, eles icam se deliciando por algumtempo at estarem prontos para novas expedies, antes que algumadenncia os alcance e os derrube.

    Talvez no seja desnecessria aqui uma pequena digresso paraexplicar o que se chama key nas ndias Ocidentais. So pequenas ilhas deareia, aparecendo apenas um pouco acima da supercie da gua, comalguns arbustos somente, ou sargaos, porm (aquelas mais distantes deterra irme) cheias de tartarugas, esses animais anbios que escolhemsempre os locais mais tranquilos e menos frequentados para depositar osseus ovos, atingindo um grande nmero na estao apropriada, e que

    pouco so vistos (exceto pelos piratas) a no ser nessas ocasies. Ento,barcos vindos da Jamaica e de outros governos empreendem at elasviagens chamadas turtling,c que se destinam a suprir a populao desse

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    tipo de alimento, que ali muito comum e apreciado. Sou levado a crer queessas keys, especialmente as mais prximas das ilhas, eram unidas a elasem tempos passados, e depois foram separadas por terremotos (que aliso frequentes) ou inundaes, pois algumas delas, que eram semprevisveis, como as que icam mais perto da Jamaica, agora veriica-se, emnossa poca, que esto se consumindo, e desaparecendo, e diariamenteoutras tambm vo reduzindo de tamanho. Elas no tm exclusivamente autilidade mencionada para os piratas, mas acredita-se que sempre foramusadas como esconderijo de tesouros, nos tempos dos bucaneiros, efrequentemente como abrigo enquanto os seus protetores, em terra,tentavam encontrar meios de lhes conseguir imunidade pelos seus crimes.Pois preciso que se entenda que quando os atos de clemncia eram mais

    frequentes, e menos severas as leis, aqueles homens continuamenteconseguiam favores e estmulos na Jamaica, e talvez mesmo agora nemtodos ainda estejam mortos. Disseram-me que muitos com o mesmo tipo deprtica ainda esto vivos, e que s so deixados em paz porque agorapodem ganhar honestamente a vida, com risco apenas dos pescoosalheios.

    A segunda razopela qual aqueles mares so preferidos pelos piratas o grande comrcio que ali se pratica com navios franceses, espanhis,

    holandeses e principalmente ingleses. Ali, na latitude daquelas ilhas toboas para o comrcio, eles esto certos de encontrar muitos despojos,butins de mantimentos, vesturios e estoques navais, e tambm dinheiro,uma vez que por aquela rota seguem grandes somas para a Inglaterra (os

    pagamentos pelos contratos do Assiento8 ou pelo comrcio particular deescravos com as ndias Ocidentais espanholas), resumindo: todas asriquezas do Potos.d

    Uma terceira razo a natural segurana que lhes proporcionam asdiiculdades das fragatas para persegui-los, em meio quelas inmerasenseadas e lagoas e ancoradouros das ilhas solitrias e dos bancos deareia.

    geralmente ali que os piratas do incio aos seus empreendimentos,estabelecendo-se primeiro com uma fora bem reduzida. Depois, medidaque vo infestando os mares locais e do continente norte-americano,dentro de um ano, se a sorte lhes for favorvel, eles conseguem acumular

    um poder que os habilita a se lanarem em expedies ao estrangeiro.Normalmente, sua primeira expedio para a Guin, atacando pelocaminho as ilhas dos Aores e de Cabo Verde, e depois o Brasil e as ndias

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    Orientais, e, caso tenham sido lucrativas essas viagens, desembarcam emMadagascar ou nas ilhas vizinhas, onde, junto aos seus companheirosveteranos, vo desfrutar com total impunidade as riquezas queconseguiram ilicitamente. Mas, para no parecer que estamos encorajandoessa proisso, devemos informar aos leitores que se dedicam navegaoque a grande maioria desses bandidos logo exterminada durante asperseguies, e que de uma hora para outra eles se vm precipitados nooutro mundo.

    A ascenso desses vagabundos desde a Paz de Utrecht (1713) ou,pelo menos, a sua grande proliferao pode imputar-se com toda ajustia ao estabelecimento das colnias espanholas nas ndias Ocidentais.L os governadores, muitos deles cortesos vidos, que para ali foram

    enviados com o ito de fazerem fortuna, ou reconstru-la, geralmenteempregam todos os procedimentos que costumam acarretar lucros:pretendendo impedir a intromisso de algum outro comerciante, concedemautorizaes a grande nmero de fragatas para capturarem quaisquernavios ou barcos que ultrapassem o limite de trinta quilmetros ao longoda costa, coisa que os nossos navios ingleses no conseguem evitar muitobem, quando se dirigem para a Jamaica. Porm, se acontecer de os capitesespanhis abusarem dessa incumbncia, roubando e saqueando vontade,

    permite-se que as vtimas apresentem queixa e entrem com um processono tribunal. Aps muitas despesas com trmites legais, prorrogaes deprazo e diversos outros inconvenientes, possvel que eles acabem porobter uma sentena favorvel. Mas, quando vo reclamar o navio e a carga,depois de novas despesas processuais, eles descobrem, para sua angstia,que estes foram previamente desapropriados e o esplio, distribudo pelatripulao. Vemse a descobrir que o comandante que fez a captura,considerado o nico responsvel, um pobre-diabo desonesto, que no

    vale um vintm e que, sem dvida, foi colocado naquele postopropositadamente.

    As frequentes perdas sofridas pelos nossos comerciantes no exterior,graas a esses piratas, constituram uma provocao suiciente para que setentasse alguma coisa em represlia. E no ano de 1716 uma timaoportunidade para isso se apresentou, e os comerciantes das ndiasOcidentais tiveram todo o cuidado de no deix-la escapar, fazendo dela o

    melhor uso que as circunstncias permitiam.Cerca de dois anos antes, alguns galees espanhis a Frota da Pratatinham naufragado no golfo da Flrida, e diversos barcos de Havana ali

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    se encontravam trabalhando, com equipamentos de mergulho, para

    recuperarem a prata que estava a bordo daqueles galees.9

    Os espanhis j tinham recolhido alguns milhes em moedas de ouro deoito dlares, e levado todas para Havana. Porm agora j estavam com

    cerca de 350.000 moedas de prata de oito dlares, ali naquele local, ediariamente conseguindo resgatar ainda mais moedas. Foi quando doisnavios e trs barcaas, com tripulaes da Jamaica, Barbados etc., sob ocomando do capito Henry Jennings, velejaram at o golfo, deparando-secom os espanhis ali no local do naufrgio. O dinheiro a que nos referimosantes tinha sido deixado num armazm na praia, sob a superviso de doiscomissrios e de uma guarda de cerca de sessenta soldados.

    Para resumir, os bandidos foram diretamente para o local,

    desembarcando trezentos homens que atacaram a guarda, que se psimediatamente em fuga, e se apoderaram do tesouro, levando-o o maisrapidamente possvel para a Jamaica.

    Infelizmente, no caminho encontraram um navio espanhol, viajando dePorto Bello com destino a Havana, cheio de artigos preciosos como fardosde cochonila, tonis de ndigo e mais sessenta mil moedas de ouro, do quese apoderaram logo e, tendo pilhado todo o navio, deixaram-no ir.

    Zarparam para a Jamaica com o seu butim, mas foram seguidos at oporto pelos espanhis que, tendo-os visto se dirigindo para l, retornaramat Havana, onde relataram o ocorrido ao governador, o qualimediatamente mandou um navio ao governo da Jamaica para se queixardaquele roubo e reclamar de volta os artigos roubados.

    Como aquele fato ocorrera em perodo de plena paz, e fosse totalmentecontrrio Justia e ao Direito, o governo da Jamaica no pde tolerar queeles icassem impunes, e muito menos que recebessem proteo. Por isso,no tiveram outra sada seno arranjarem-se sozinhos. Assim, para piorarainda mais as coisas, eles voltaram ao mar, mas no sem antes disporvantajosamente de sua carga e se abastecerem de munio, provises etc.Ento, o desespero fez com que acabassem se tornando piratas, roubandono apenas os espanhis, mas tambm os seus prprios conterrneos, enavios de qualquer nacionalidade em que pudessem pr as mos.

    Por esse tempo aconteceu que os espanhis, com trs ou quatro

    pequenas fragatas, caram sobre os nossos cortadores de pau-campeche10

    nas baas de Campeachy e de Honduras. E, aps terem capturado os naviose barcos a seguir mencionados, entregaram trs chalupas aos homens que

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    neles se encontravam, para conduzi-los de volta. Mas os homens,desesperados com sua desgraa e depois do contato com os piratas,passaram-se para o lado deles, aumentando assim o seu nmero.

    Lista de navios e embarcaes tomados

    pelas fragatas espanholas no ano de 1716O Stafford, capito Knocks, da Nova Inglaterra, com destino a Londres

    Anne, Gernish, para o destino citado;

    Dove, Grimstone, para a Nova Inglaterra;

    Uma barcaa, Alden, para o local citado;

    Um bergantim, Mosson, para o local citado;

    Um bergantim, Turfield, para o local citado;

    Um bergantim, Tennis, para o local citado;

    Um navio, Porter, para o local citado;

    Indian Emperor, Wentworth, para a Nova Inglaterra;

    Um navio, Rich, comandante.

    Idem, Bay;

    Idem, Smith;

    Idem, Stockum;Idem, Satlely;

    Uma barcaa, Richards, pertencente Nova Inglaterra;

    Duas barcaas, pertencente Jamaica;

    Uma barcaa, de Barbados;

    Dois navios, vindos da Esccia;

    Dois navios, vindos da Holanda.

    Sentindo-se agora muito poderosos, aqueles bandidos consultaram-seentre si sobre a necessidade de arranjar algum local para onde se retirar,em que poderiam acomodar todas as suas riquezas, limpar e consertar osnavios, arrumando tambm algum tipo de residncia duradoura. Nodemoraram muito em fazer a sua escolha, ixando-se na ilha deProvidence, a maior das ilhas Bahamas, na latitude de aproximadamente24 graus Norte, e a leste da Flrida espanhola.

    Essa ilha mede aproximadamente quarenta e cinco quilmetros decomprimento e dezoito e meio na sua parte mais larga. O porto suicientemente grande para abrigar quinhentos barcos, e diante dele ica

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    uma pequena ilha, formando duas enseadas; de ambos os lados umabarragem impede a passagem de qualquer navio de quinhentas toneladas.As ilhas Bahamas foram possesso inglesa at o ano de 1700, quando osfranceses e espanhis de Petit Guavuseas invadiram, capturaram o forte eprenderam o governador na ilha de Providence, pilharam e destruram acolnia etc., levaram metade dos negros, e o restante da populao quefugiu para a selva retirou-se depois disso para a Carolina.

    Em maro de 1706, a Cmara dos Lordes, em mensagem sua ltimarainha,f descreveu como os franceses e espanhis haviam devastado esaqueado as ilhas Bahamas por duas vezes, durante a guerra, e que ali noestava havendo nenhuma espcie de governo; que se poderia facilmenteequipar o porto da ilha de Providence como posio de defesa, e que

    haveria perigosas consequncias se aquelas ilhas cassem nas mos doinimigo; pelo que os lordes humildemente imploraram que Sua Majestadeempregasse os mtodos que achasse mais adequados para manter a possedaquelas ilhas, com o objetivo de garanti-las para a Coroa do Reino, comotambm para segurana e proveito do comrcio na regio.

    Mas, apesar do ocorrido, nada se fez para cumprir aquela petiogarantindo a posse das ilhas Bahamas, at que os piratas ingleses izeramda ilha de Providence o seu retiro e abrigo. Em seguida, achou-se que eraabsolutamente necessrio desocupar aquela tumultuada colnia. E, apschegarem ao governo informaes dos comerciantes sobre as atrocidadesque ali se cometiam, e as que fatalmente ainda se iriam cometer, SuaMajestade dignou-se a expedir a seguinte Ordem:

    WHITEHALL, 15 DE SETEMBRO DE 1717

    Tendo chegado at Sua Majestade queixas vindas de um grandenmero de comerciantes, comandantes de navio e outros, como tambm

    por parte de vrios governadores das ilhas e colnias de Sua Majestadenas ndias Ocidentais, de que os piratas cresceram em nmero a tal pontoque infestam no apenas os mares prximos da Jamaica, mas at os docontinente norte da Amrica; e que, a menos que se empreguem certosmeios eicazes, todo o comrcio da Gr-Bretanha com aquelas regiesicar no apenas obstrudo como em iminente risco de ser perdido, SuaMajestade, aps madura deliberao em Conselho, tem a satisfao, emprimeiro lugar, de ordenar o emprego de uma fora adequada para a

    supresso dos referidos piratas, e esta fora dever ser como se segue:Lista dos navios e barcos de Sua Majestade que j esto

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    sendo empregados, e os que devero ser empregados nos governose colnias britnicos nas ndias Ocidentais:

    Os que se encontram na Jamaica, Barbados e nas ilhas Leeward devem seuntar, de acordo com a ocasio, para perseguirem os piratas e tambm pela

    segurana do comrcio. E os da Nova Inglaterra, Virgnia e Nova York devem

    azer o mesmo.Alm dessas fragatas, duas outras foram designadas para atenderem

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    ao capito Rogers, ltimo comandante dos dois navios de Bristol, de nomesDuke e Dutchess, que capturaram o rico navio Acapulco e izeram umavolta ao redor do mundo.11 Aquele cavalheiro foi encarregado por SuaMajestade para ser governador da ilha de Providence, e foi investido dopoder de empregar quaisquer mtodos para aniquilar os piratas. E paraque nada lhe faltasse, ele levou consigo a Proclamao de Perdo do Rei,para os que retornassem a seu dever dentro de um determinado tempo. AProclamao a seguinte:

    PELOREI,PROCLAMAO PARA A SUPRESSO DOS PIRATAS

    GEORGER.

    Embora nos tenham chegado informaes de que diversas pessoas,sditos da Gr-Bretanha, vm cometendo desde o dia 24 de junho do anode Nosso Senhor de 1715 diversos atos de pirataria e de roubos em alto-mar, nas ndias Ocidentais, ou prximo s nossas colnias, que podem edevero ocasionar grande prejuzo para os comerciantes da Gr-Bretanha,e de outras naes que comerciam naquelas regies; e embora tenhamosdesignado uma fora que consideramos capaz de suprimir os referidosatos de pirataria, e com a maior eiccia pr um im a estes, pensamos ser

    apropriado, segundo o parecer do nosso Conselho do Rei, expedir apresente Proclamao Real, por meio da qual prometemos e declaramosque no caso de um desses piratas ou alguns deles no dia 5, ou antes,do ms de setembro do ano de 1718 de Nosso Senhor, pretender oupretenderem se render a algum dos nossos principais secretrios deEstado na Gr-Bretanha ou Irlanda, ou a qualquer governador ou vice-governador de qualquer das nossas colnias de alm-mar, esse ou essespiratas que se renderem, como j foi dito, obtero o nosso gracioso Perdodos seus atos de pirataria cometidos antes do dia 5 do prximo ms dejaneiro. E por meio da presente, ordenamos estritamente a todos os nossosalmirantes, capites e outros oiciais martimos, e a todos os governadorese comandantes de quaisquer fortes, castelos ou outros locais em nossascolnias, e a todas as nossas demais autoridades civis e militares, quecapturem e prendam os piratas que se recusarem ou que custarem a serender devidamente. E pela presente, declaramos tambm que no caso de

    qualquer ou quaisquer pessoas que, no dia 6 de setembro ou antes do ano de 1718, venham a descobrir ou a capturar, ou a descobrir ou fazercom que sejam descobertos qualquer ou quaisquer desses piratas que se

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    recusam ou demoram em se render, como foi dito antes, fazendo com queestes compaream perante a Justia e sejam condenados pelas referidasofensas, essa ou essas pessoas, efetuando assim tal descoberta ou captura,ou causando ou provocando essa descoberta ou captura, devero ter ereceber de nossa parte uma Recompensa por isso, ou seja: para todocomandante de qualquer navio ou barco particular, a soma de cem libras;para todo tenente, comandante, contramestre, carpinteiro, atirador decanho, a soma de quarenta libras; para todo oicial subalterno, a soma detrinta libras; e para todo homem particular, a soma de vinte libras. E sealguma pessoa, ou pessoas, pertencendo ou fazendo parte da tripulao dealgum desses navios ou barcos piratas, no dia 6, ou antes, do ms desetembro de 1718, capturarem e entregarem, ou izerem com que sejam

    capturados e entregues qualquer ou quaisquer comandantes dessesnavios ou barcos piratas, de forma que estes venham a comparecerperante a Justia, e a serem condenados pelas referidas ofensas, tal pessoaou pessoas recebero como recompensa por isso a soma de duzentaslibras para cada comandante capturado. O Lorde Tesoureiro ou os atuaisEncarregados do Tesouro tm orientao para pagarem devidamenteessas quantias.

    EXPEDIDO EM NOSSACORTE, EMHAMPTON-COURT,

    NO DIA 5 DE SETEMBRO DE 1717,NO QUARTO ANO DE NOSSOREINADO.

    DEUS SALVE OREI.

    Antes que o governador Rogers partisse, a Proclamao foi enviada aospiratas, que izeram com ela a mesma coisa que Teague fez com o acordog,ou seja: apossaram-se de tudo do navio e tambm da proclamao. Emtodo caso, mandaram retornar os que andavam circulando pelos mares, econvocaram um conselho geral de guerra. Porm o tumulto e a confuso no

    decorrer deste foram tais que no se pde chegar a acordo algum. Parauns, a soluo seria fortiicarem a ilha, permanecerem nas suas posies enegociarem com o governo, como se constitussem uma nao de verdade.Outros, que tambm eram a favor de se fortiicar a ilha em nome dasegurana, por outro lado no davam muita importncia s formalidades,preferindo um perdo generalizado que no os obrigasse a qualquerrestituio, retirando-se, com todos os seus bens, para as colniasbritnicas mais prximas.

    Porm o capito Jennings, que era o seu comodoro e que sempreexerceu grande inluncia sobre todos eles, sendo um homem de bom

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    senso, e tambm bom poltico antes de ser assaltado pelo capricho detornar-se pirata , resolveu render-se sem mais delongas, aceitando ostermos da proclamao, o que desarticulou de tal maneira o Congresso queeste terminou precipitadamente, sem se chegar a concluso alguma. EntoJennings e com o seu exemplo, mais outros cento e cinquenta homens dirigiram-se at o governador das Bermudas e obtiveram os seuscertiicados, embora a maioria deles retornasse depois pirataria, comoces retornando ao prprio vmito. Os comandantes que se encontravamento na ilha, alm do capito Jennings, acho que eram os seguintes:Benjamin Hornigold, Edward Teach, John Martel, James Fife, ChristopherWinter, Nicholas Brown, Paul Williams, Charles Bellamy, Oliver la Bouche,major Penner, Ed. England, Thomas Burgess, Tho. Cocklyn, R. Sample,

    Charles Vane, e mais dois ou trs outros. Hornigold, T. Burgess e LaBouche naufragaram posteriormente. Teach e Penner foram mortos e suastripulaes, presas; James Fife foi assassinado por seus prprios homens; atripulao de Martel foi aniquilada e ele, abandonado em uma ilha deserta.Cocklyn, Sample e Vane foram enforcados. Winter e Brown se renderamaos espanhis em Cuba, e England vive hoje em Madagascar.

    No ms de maio ou junho de 1718, o capito Rogers chegou ao local deseu governo, com dois navios de Sua Majestade. Ali encontrou vrios dos

    piratas acima referidos, os quais, vista das fragatas, renderam-se todospara obterem o perdo, exceto Charles Vane e seus tripulantes, fato que sepassou da seguinte maneira.

    J antes iz referncia s duas enseadas que o porto possua, formadaspor uma pequena ilha que icava diante de sua abertura. Por uma dessasenseadas entraram as duas fragatas, deixando livre a outra, pela qualVane soltou suas amarras, ateou fogo a um grande barco roubado quemantinha ali e retirou-se intempestivamente, disparando contra os naviosenquanto se afastava.

    To logo instalou-se o capito Rogers em seu governo, construiu umforte para defend-lo, guarnecendo-o com todos os homens que conseguiureunir na ilha. Os ex-piratas, em nmero de quatrocentos, foramorganizados em companhias, e ele concedeu patentes de oicial queles emque mais coniava. Em seguida, partiu para fazer comrcio com osespanhis no golfo do Mxico. E foi em uma dessas viagens que ele morreu.

    O capito Hornigold, um daqueles famosos piratas, foi lanado contra unsrochedos a grande distncia da terra, e pereceu, embora cinco de seushomens conseguissem subir a uma canoa e se salvar.

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    O capito Rogers tinha enviado uma chalupa para obter mantimentos,entregando o comando a um certo John Augur, um dos antigos piratas queaceitaram o Ato de Clemncia. Durante a viagem, eles cruzaram por duaschalupas, e ento John e os seus camaradas, ainda no esquecidos do seuanterior meio de vida, usaram de sua antiga liberdade e as capturaram,roubando o dinheiro e artigos no valor aproximado de quinhentas libras.Depois disso, dirigiram-se para Hispaniola [Haiti], sem saber se ogovernador admitiria que mantivessem duas atividades comerciais a um stempo, e dessa forma, decidiram dar adeus s ilhas Bahamas. Mas como am sorte os pegou, enfrentaram um violento tornado, icando sem o mastrodo barco, e foram arrastados de volta a uma das ilhas desertas dasBahamas, perdendo-se completamente a chalupa. Os homens conseguiram

    chegar at a praia, e viveram como puderam por um certo tempo naloresta, at que o governador Rogers, ouvindo falar daquela expedio, eaonde eles tinham ido parar, enviou uma chalupa armada para a referidailha. O comandante desta, com belas palavras e boas promessas, conseguiuque os nufragos subissem a bordo, levando-os todos para Providence.Eram onze homens. Dez foram julgados por um tribunal do almirantado,condenados e enforcados, graas ao testemunho do dcimo primeiro,diante de todos os antigos companheiros de roubos. Os criminosos estavam

    loucos para instigar os antigos piratas perdoados, e recuper-los das mosdos oiciais da justia, dizendo-lhes, de dentro da priso, que jamaispoderiam pensar que dez homens como eles se deixassem amarrar eenforcar como ces, enquanto trezentos de seus leais companheiros eamigos, comprometidos por juramento, tranquilamente assistiam aoespetculo. Um certo Thomas Morris foi mais longe ainda, acusando-os defraqueza e de covardia, como se fosse uma desonra eles no se revoltareme os salvarem da morte ignominiosa que iriam sofrer. Mas foi tudo em vo.

    O que lhes responderam foi que agora o que eles precisavam fazer eravoltar suas mentes para o outro mundo, e se arrependerem sinceramentede todas as maldades que haviam praticado neste. Sim, respondeu umdeles, eu me arrependo terrivelmente, me arrependo de no ter praticadomais maldades ainda, e que no tenhamos degolado todos os que nosprenderam, e sinto uma pena enorme que vocs no sejam enforcadoscomo ns. Ao que um outro comentou: Eu tambm. E um terceiro: E eua mesma coisa. E assim, foram todos eliminados, sem poder fazer mais

    nenhum discurso inal, a no ser um certo Dennis Macarty, que contou aospresentes que uns amigos seus muitas vezes lhe diziam que ele haveria demorrer calado em seus sapatos, mas que agora ele faria com que eles

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    fossem uns mentirosos, e ento chutou os sapatos para longe. E assim,chegaram ao im as vidas e as aventuras daqueles pobres desgraados, asquais podero servir como triste exemplo de que o perdo de pouco servepara os que se deixaram levar por um mau caminho na vida.

    Para que no me julguem muito severo quanto ao repdio que sintopelo modo como nos tratavam os espanhis nas ndias Ocidentais,mencionarei apenas um ou dois exemplos, procurando ser o mais concisopossvel, e em seguida transcreverei algumas cartas originais, dogovernador da Jamaica e de um oicial de uma das fragatas, aos alcaides deTrinidado, na ilha de Cuba, com as suas respectivas respostas traduzidaspara o ingls. Depois, procederei narrativa daquelas histrias de piratase seus tripulantes que maior perturbao causaram no mundo dos nossos

    dias.Por volta de maro de 1722, o capito Walron, comandante de uma de

    nossas fragatas a galera Greyhound durante uma viagem comercialpelo litoral de Cuba, convidou alguns comerciantes para jantar, com seusatendentes e amigos, os quais subiram a bordo, em nmero de dezesseisou dezoito pessoas. E, aps as mesuras de praxe, seis ou oito delessentaram-se mesa do comandante, na cabine, enquanto os outrospermaneciam no convs. Nesse momento, o contramestre soou o apito do

    jantar para toda a companhia do navio. Imediatamente os tripulantesapanharam as bandejas, receberam suas refeies e desceram ao poro,deixando l em cima, alm dos espanhis, apenas quatro ou cinco marujos,os quais imediatamente foram mortos, enquanto os alapes eramfechados sobre os demais. Os que se encontravam na cabine j estavampreparados para aquilo, assim como seus comparsas, pois na mesma horasacaram suas pistolas e mataram o capito, o cirurgio e mais um outroconvidado, ferindo gravemente o tenente. Este entretanto conseguiu fugirpela janela e salvar-se, utilizando uma escada lateral. Dessa forma, emapenas um instante eles icaram senhores do navio. Por uma acidental boasorte, entretanto, antes que pudessem lev-lo embora, ele foi resgatado.Pois o capito Walron alguns dias antes enviara a Windward, para fazercomrcio, uma chalupa levando trinta marujos de sua tripulao, fato esteque era de pleno conhecimento dos espanhis. Assim que a ao destesterminou, eles avistaram a referida chalupa aproximando-se do navio com

    ventos favorveis. Imediatamente eles apanharam dez mil libras emespcie, segundo me informaram, abandonaram o navio e se foram na suaembarcao, sem serem molestados.

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    Aproximadamente na mesma poca, uma Guarda del Costa, 12 de PortoRico, comandada por um italiano de nome Matthew Luke, capturou quatroembarcaes inglesas, matando todo os tripulantes. Porm foi por sua vezcapturada, em maio de 1722, pela fragata Lanceston, que a levou para aJamaica. Ali, excetuando-se sete dos seus homens, todos os demais foramdevidamente enforcados. provvel que a fragata no lhes houvesseprestado muita ateno, caso no fossem eles prprios que, por confuso,abordaram o Lanceston 13pensando tratar-se de algum navio mercante, eque, portanto, conquistariam uma bela presa. Mais tarde, durante asbuscas, foi encontrado um cartucho de plvora fabricado com um pedaode jornal ingls e que, em minha opinio, pertencia ao brigue Crean.Finalmente, aps os devidos exames e serem interrogados, descobriu-se

    que eles haviam capturado aquele barco e assassinado toda a tripulao.Um dos espanhis confessou, antes de ser executado, que s ele, com suasprprias mos, matara vinte ingleses.

    JAGODE LAVEGA,20 DE FEVEREIRO.

    CARTADESUAEXCELNCIASIRNICHOLASLAWS, NOSSOGOVERNADOR, PARA OSALCAIDES DETRINIDADO, EMCUBA,DATADA DE 26 DE JANEIRO DE 1721.

    CAVALHEIROS

    As frequentes depredaes, roubos e outros atos de hostilidadecometidos contra os sditos de meu Real Senhor, o Rei, por uma turma debandidos que pretende possuir autorizao V. Sas., e que so na realidadeprotegidos pelo vosso governo, do motivo a que eu envie o portador desta,

    capito Chamberlain, comandante do brigue Happy, de Sua Majestade,para exigir satisfaes de V. Sas. por tantos roubos evidentes querecentemente vosso povo tem cometido contra os sditos do Rei nesta ilha.Particularmente, pelos traidores Nicholas Brown e Christopher Winter, aquem V. Sas. concedem proteo. Procedimentos como esses noconstituem apenas uma brecha na Lei das Naes, mas devem aparecer aomundo como de natureza absolutamente extraordinria, quando se v queos sditos de um prncipe que mantm relaes de cortesia e amizade com

    outro aprovam e encorajam essas vilanias. Confesso que sempre tive amaior pacincia, evitando empregar meios violentos para obter umasatisfao, com esperanas no tratado de deposio de armas 14 que to

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    oportunamente foi irmado entre os nossos respectivos soberanos, e queteria colocado um ponto inal nessas desordens. Mas, pelo contrrio,descubro agora que o porto de Trinidado um abrigo para viles de todosos pases. Por isso, acho bom avisar a V. Sas. e o airmo em nome demeu Senhor, o Rei que se no futuro efetivamente eu vier a encontraralgum desses velhacos navegando pelas costas desta ilha, vou ordenar quesejam imediatamente enforcados, sem apelao. E espero e exijo de V. Sas.que faam plena restituio ao capito Chamberlain de todos os negrosque os referidos Brown e Winter recentemente levaram da parte nortedesta ilha, como tambm das chalupas e outros bens que foram capturadose roubados desde a assinatura do tratado de deposio de armas. Esperotambm que V. Sas. entreguem ao capito portador os ingleses que se

    encontram agora coninados, ou que ainda permanecem em Trinidado, eque de agora em diante evitem conceder quaisquer autorizaes, outolerar que esses notrios bandidos sejam equipados e preparados emvosso porto. Caso contrrio, podem V. Sas. ter a certeza de que os que euvier a encontrar sero qualiicados e tratados como piratas. Do que acheiapropriado dar-vos conhecimento, e sou &c.

    CARTA DOSR.JOSEPHLAWS, TENENTE DO BRIGUEHAPPY,

    NAVIO DESUA MAJESTADE, AOSALCAIDES DETRINIDADO.

    CAVALHEIROS,

    Fui encarregado pelo comodoro Vernon, comandante em chefe de todosos navios de Sua Majestade nas ndias Ocidentais, de exigir, em nome denosso senhor, o Rei, [a devoluo de] todas as embarcaes, com seusbens, &c., e tambm dos negros tomados da Jamaica, desde a cessao das

    hostilidades. Igualmente, de todos os ingleses que se encontram detidos, ouque permanecem em vosso porto de Trinidado, especialmente NicholasBrown e Christopher Winter, ambos os quais so traidores, piratas einimigos comuns de todas as naes. O referido comodoro tambmordenou-me que vos desse conhecimento da sua surpresa ao saber quesditos de um prncipe, que tem relaes de cordialidade e amizade comoutro, conceda abrigo a to notrios viles. Aguardando vossa imediataconcordncia, sou, cavalheiros,

    VOSSO HUMILDE SERVIDOR,JOSEPHLAWS.

    AO LARGO DO RIOTRINIDADO

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    8 DE FEVEREIRO DE 1721.

    RESPOSTA DOSALCAIDES DETRINIDADO S CARTAS DO SR. LAWS:

    CAPITOLAWS,

    Em resposta a vossa carta, a presente pretende dar-vos conhecimentode que nem nesta cidade, nem no porto encontram-se quaisquer negros ouembarcaes que tenham sido tomados na vossa ilha de Jamaica, ounaquela costa, desde a cessao das hostilidades. E que os naviosapreendidos naquela poca o foram porque realizavam um comrcio ilegalnesta costa. Quanto aos ingleses fugitivos mencionados, eles se encontramaqui, assim como outros sditos do Rei nosso senhor, tendo-sevoluntariamente convertido nossa f catlica, e recebendo a gua do

    batismo. Mas se eles provarem ser bandidos e no cumprirem com seusdeveres, para os quais esto presentemente destinados, serodevidamente castigados segundo as prescries de nosso Rei, que Deus opreserve. Pedimos que vosso navio recolha sua ncora o mais rpidopossvel, e se afaste deste porto e destas costas, pois em hiptese algumaser tolerado que este realize comrcio ou qualquer outra atividade, poisestamos decididos a no mais permitir estas coisas de ora em diante. QueDeus vos guarde. Beijamos as vossas mos.

    ASSINADO, HIERONIMO DEFUENTES,BENETTEALFONSO DELMANZANO

    TRINIDADO,8 DE FEVEREIRO DE 1721.

    RESPOSTA DO SR.LAWS CARTA DOSALCAIDES:

    CAVALHEIROS,

    Vossa recusa em entregar os sditos do senhor meu Rei de fatosurpreendente pois acontece em tempos de paz. A deteno delesconsequentemente contrria Lei das Naes. Apesar da vossa frvolapretenso (para a qual o nico fundamento forjar uma desculpa) deimpedir-me de realizar um inqurito para chegar verdade dos fatos queexpus em minha carta anterior, devo dizer-vos que minha deciso depermanecer na costa at realizar minhas represlias. E se por acaso

    encontrar algum navio pertencente a vosso porto, no irei trat-lo comosdito da Coroa da Espanha, mas sim como pirata, uma vez que parte deVossa religio nesse lugar proteger esses bandidos.

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    VOSSO HUMILDE SERVIDORJOSEPHLAWS.

    AO LARGO DO RIOTRINIDADO,8 DE FEVEREIRO DE 1721

    RESPOSTA DE UM DOSALCAIDES RPLICA DO SR.LAWS:

    CAPITOLAWS,

    Podeis icar certo de que jamais faltarei com os deveres prprios domeu posto. Os prisioneiros que aqui se encontram no esto na priso, massim so mantidos aqui apenas para serem posteriormente enviados aogovernador de Havana. Se, como dizeis, vs comandais no mar, eucomando em terra. Se tratardes os espanhis, que por acaso capturardes,

    como piratas, farei o mesmo com qualquer um do vosso povo que eu venhaa capturar. Usarei de boas maneiras, se assim tambm izerdes. Seitambm agir como soldado, caso a ocasio se oferea, pois conto aqui commuita gente para tal propsito. Caso exista alguma outra pretenso devossa parte, podeis execut-la nesta costa. Que Deus vos guarde. Beijo asvossas mos.

    ASSINADO, BENETTEALFONSO DELMANZANOTRINIDADO

    20 DE FEVEREIRO DE 1721.

    As ltimas informaes que obtivemos das nossas colnias na Amrica,datadas de 9 de junho de 1724, relatam-nos o seguinte: que o capitoJones, do navio John and Mary encontrou, no dia 5 do referido ms, nasproximidades dos cabos da Virgnia, uma Guarda del Costa espanholacomandada por um certo Don Benito, que dizia estar autorizado pelogovernador de Cuba. Sua tripulao era de sessenta espanhis, dezoito

    franceses, dezoito ingleses e um capito que era tanto ingls quantoespanhol, um tal Richard Holland, que antes pertencera fragata Suffolk,da qual desertou em Npoles, asilando-se em um convento. Serviu na frotaespanhola sob o almirante Cammock,15na guerra do Mediterrneo. E, apso tratado de deposio de armas com a Espanha, estabeleceu-se comdiversos conterrneos seus (irlandeses) nas ndias Ocidentais Espanholas.Essa Guarda del Costa capturou o navio do capito Jones, mantendo suaposse do dia 5 at o dia 8, e durante esse tempo ela tambm tomou o

    Prudent Hannah, de Boston, cujo comandante era Thomas Mousell, e oDolphin, de Topsham, cujo comandante era Theodore Bare, amboscarregados e com destino Virgnia. Enviaram o primeiro destes, com trs

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    homens e o imediato sob o comando de um oicial espanhol e de umatripulao tambm de espanhis, no mesmo dia em que foi capturado. Osegundo eles levaram consigo, colocando o comandante e toda a tripulaoa bordo do navio do capito Jones. Saquearam este ltimo, apoderando-sede trinta e seis escravos homens, certa quantia de ouro em p, todas assuas roupas, quatro canhes grandes e pequenas armas, e ainda cerca dequatrocentos gales de rum, alm dos mantimentos e estoques, num totalde mil e quinhentas libras esterlinas.

    a Optamos por conservar a graia que o autor d aos nomes prprios.Assim procedemos tambm com nomes espanhis e portugueses, tais como

    Martinico, Pernambuca, Bahia los todos Santosetc. (N.T.)b No original: key. (N.T.)

    c Pesca de tartarugas. (N.T.)

    d Potos, cidade na Bolvia, tinha a famosa montanha de Prata,considerada a maior jazida de prata do mundo. (N.T.)

    e Cidade do Haiti. (N.T.)

    f A rainha Anne, que morreu subitamente em 1714. (N.T.)g Teague o nome da personagem principal da comdia The

    Committee or the Faithful Irishman, do dramaturgo ingls sir RobertHoward (1626-1698).

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    I

    O capito Avery

    e sua tripulao

    Jamais algum desses intrpidos aventureiros conseguiu ser to

    comentado, e por tanto tempo, quanto o capito Avery. Produziu ele tantoalarde pelo mundo quanto agora o faz Meriveis. 1 E foi considerado umapessoa de extrema importncia. Na Europa, representavam-no comoalgum que chegara at a dignidade de um verdadeiro rei, com capacidadepara fundar uma nova monarquia. Dizia-se que ele se apoderara de

    imensas fortunas, e que se casara com a ilha do Gran Mogol, 2raptada deum navio indiano que ele capturou. E que teve muitos ilhos com ela,

    vivendo em grande fausto e realeza. Que construiu fortalezas, grandesarsenais e que foi senhor de uma poderosa esquadra de navios,manobrados por indivduos capazes e desesperados, provenientes detodas as naes do mundo. Que distribua autorizaes em seu nome aoscapites dos seus navios e aos comandantes dos fortes, e que por estes erareconhecido como o seu Prncipe. Escreveu-se at uma pea teatral sobre

    ele, chamada The Successful Pirate .3 Essas histrias conseguiram uma talcredibilidade que diversos planos foram apresentados ao Conselho para a

    equipagem de uma esquadra para aprision-lo, ao passo que muitos outroseram a favor de conceder, a ele e a seus comparsas, um Ato de Clemncia,chamando-o para a Inglaterra com todos os seus tesouros, uma vez que oseu crescente poder ameaava o comrcio da Europa com as ndiasOrientais.

    Entretanto, tudo isso no passava de falsos rumores, aumentados pelacredulidade de uns e o senso de humor de outros, que adoram contarcoisas bizarras. Pois, enquanto se dizia que ele aspirava Coroa, naverdade ele estava cata de pelo menos algum shilling. E ao mesmo tempoque se espalhava ser imensa a sua riqueza em Madagascar, na realidadeele estava passando fome na Inglaterra.

    Sem dvida alguma, o leitor ter curiosidade de saber o que aconteceucom esse homem, e quais seriam os fundamentos para tantos relatos falsosa seu respeito. Por isso, da maneira mais sucinta que puder, irei contar asua histria.

    Ele nasceu no oeste da Inglaterra, perto de Plymouth, em Devonshire.Tendo recebido educao para a vida martima, serviu como imediato numnavio mercante em diversas viagens comerciais. Isso foi antes da Paz de

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    Ryswick (1697),4 quando havia uma aliana entre Espanha, Inglaterra,Holanda &c. contra a Frana, pois os franceses de Martinico realizavam umcomrcio de contrabando com os espanhis do continente, no Peru, o que,pelas leis da Espanha, no permitido s naes amigas em tempos de paz,

    pois ningum, a no ser os espanhis nativos, tm permisso paracomerciar naquela regio, ou desembarcar no litoral, a menos que sejamtrazidos como prisioneiros. Por isso so mantidos navios constantementecirculando ao longo da costa, chamados Guarda del Costa, com ordens deapreender quaisquer embarcaes que possam ser localizadas dentro dolimite de trinta quilmetros da terra. Com os franceses mostrando-se cadavez mais audaciosos no comrcio, e os espanhis dispondo depouqussimos navios e os que possuam, sem poder algum ,

    frequentemente acontecia que ao localizarem os contrabandistas franceseseles no contavam com uma fora suiciente para atac-los. Por isso aEspanha resolveu contratar dois ou trs navios estrangeiros poderosospara o seu servio. Ao saberem disso em Bristol, alguns comerciantesdaquela cidade equiparam dois navios, cada qual com trinta e poucoscanhes e cento e vinte tripulantes, bem abastecidos de provises emunio, e com todos os demais estoques necessrios. E, uma vezaprovado o contrato por alguns agentes da Espanha, os navios receberam

    ordens para navegar com destino a Corunna (Groine) para ali sereminstrudos e tomarem como passageiros alguns cavalheiros espanhis que

    iam para a Nova Espanha.5

    Em um daqueles navios que segundo acredito, chamava-se Duke,comandado pelo capito Gibson Avery estava como primeiro imediato.Sendo um indivduo mais astucioso do que propriamente de coragem, elesoube insinuar-se nas boas relaes com vrios tripulantes dentre os mais

    corajosos, a bordo de ambos os navios. Sondando as inclinaes deles antesde revelar suas verdadeiras intenes, e percebendo que eles estavammaduros para os seus desgnios, inalmente lhes props fugirem com onavio, falando-lhes sobre a imensa fortuna que poderiam obter nas costasda ndia. Mal acabou de falar e j todos concordavam, icando resolvidoque a conspirao seria executada s dez horas da noite seguinte.

    Deve-se notar que o comandante era daqueles profundamente dadosao vcio do ponche, tanto que a maior parte do tempo ele passava em terra,

    bebendo em alguma pequena taverna. Entretanto, naquele dia,contrariando o costume, ele no foi para terra, o que contudo noatrapalhou o plano, pois ele icou bebendo as suas doses usuais a bordo

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    mesmo, e assim, foi deitar-se antes da hora combinada para o negcio. Oshomens que no estavam informados sobre a conspirao tambm forampara os seus catres, no icando ningum no convs alm dosconspiradores. Os quais, diga-se de passagem, constituam a maioria datripulao. Na hora combinada, o escaler do Duchess surgiu e, a um sinalcombinado de Avery, os homens que se encontravam nele deram a senha:Seu comandante bbado est a bordo? resposta airmativa de Avery,dezesseis homens muito fortes subiram a bordo e se juntaram ao grupo.

    Quando o nosso pessoal viu que estava tudo em ordem, aferrolharam osalapes e puseram-se ao trabalho. No recolheram a ncora, mas simdeixaram que esta pendesse solta, para que dessa forma pudessem ir parao mar sem qualquer distrbio ou perturbao, apesar de vrios navios

    estarem naquele momento ancorados na baa, entre os quais uma fragataholandesa de quarenta canhes, cujo capito recebera uma grande ofertapara que acompanhasse o navio em sua viagem. Porm Mynheer,certamente no pretendendo encarregar-se de tal misso, e tambm nopodendo convencer algum outro navio a fazer o trabalho, permitiu que osr. Avery seguisse sua viagem, para onde tivesse a inteno de ir.

    O capito, que nesse meio-tempo acordou, quer pelo movimento donavio, quer pelo barulho nos cordames, tocou a sineta. Avery e mais dois

    outros chegaram at a cabine, e o capito, ainda meio dormindo e numaespcie de pavor perguntou: O que isso? Avery respondeu friamente:Nada. Ao que o capito replicou: Est acontecendo alguma coisa com onavio, ele est deriva? Como est o tempo? achando que certamenteestava havendo uma tempestade, e que o navio fora arrastado doancoradouro. Avery respondeu: No, no. Estamos em alto-mar, com ventofavorvel e o tempo est muito bom. Exclamou o capito: Em alto-mar!Como possvel? E Avery: Vamos, no ique to apavorado. Olha, vista-se,que vou lhe contar um segredo: Voc precisa saber que agora eu que souo comandante deste navio, e que esta a minha cabine, e que por isso vocdeve dar o fora daqui. Nosso destino Madagascar, onde vou fazer aminha prpria fortuna, e todos os companheiros de coragem esto comigo.

    O capito, que ainda no recobrara totalmente os sentidos, s entocomeou a entender o que se passava. Mas o seu pavor continuava togrande como antes, e Avery, percebendo isso, disse-lhe que nada temesse;

    Pois, falou, se o senhor quiser se juntar a ns, ns o aceitaremos, e seicar sbrio e cuidar das suas coisas, talvez oportunamente eu o torne umdos meus tenentes. Se no, tem um escaler preparado e o senhor poder

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    voltar nele para terra.

    O capito gostou de ouvir essa proposta, e a aceitou. Chamou-se entotoda a tripulao para saber quem queria voltar para a terra, com ocapito, e quem preferia icar e buscar sua fortuna com os demais. No

    mais do que cinco ou seis homens apenas mostraram-se desejosos deabandonar o navio. Pelo que, foram no mesmo instante postos no escaler,com o capito, dirigindo-se para o litoral do jeito que puderam.

    O navio seguiu viagem para Madagascar, porm parece-me que elesno capturaram nenhum navio pelo caminho. Ao chegarem regionordeste da ilha, deram com duas chalupas ancoradas na costa. Os homensque l se encontravam largaram imediatamente os cabos e correram paraterra, embrenhando-se no mato. As embarcaes tinham sido usadas por

    eles para fugirem das ndias Ocidentais. Ao verem o barco de Avery,acharam que devia tratar-se de alguma fragata enviada para prend-los eassim, sabendo que no dispunham de fora suiciente para enfrent-la,fizeram o possvel para se salvar.

    Imaginando onde poderiam estar, Avery enviou alguns de seus homenspara inform-los que eram amigos e propor-lhes que icassem juntos emnome da segurana comum. Os homens das chalupas estavam bemarmados e se haviam embrenhado num bosque deixando sentinelas paraobservar se o navio iria desembarcar os seus homens para persegui-los.Ao verem apenas dois ou trs caminhando em sua direo, e desarmados,no lhes opuseram resistncia. Mas deram-lhes ordens para se identiicar,e a resposta foi que eram amigos. Ento os conduziram at o seu grupo,onde a mensagem foi transmitida. A princpio acharam que podia ser umaarmadilha para prend-los, quando estivessem a bordo, mas propostados embaixadores, de que o prprio capito e alguns tripulantes, citados

    nominalmente, estavam dispostos a encontr-los sem armas na praia, elesacreditaram na sua seriedade e imediatamente se estabeleceu uma mtuaconiana: os que estavam a bordo desceram praia, e alguns dos queestavam na praia subiram a bordo.

    Os homens das chalupas comemoraram a nova aliana, pois as suasembarcaes eram pequenas demais para atacar algum navio, de qualquerpotncia que fosse, tanto que at ento no haviam capturado nenhumapresa considervel. Mas agora esperavam poder voar bem mais alto. Avery

    tambm gostou daquele reforo, que vinha aumentar a sua capacidadepara algum empreendimento mais audacioso, e no obstante o butimtivesse de diminuir para cada um, tendo de dividir-se em muito mais

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    partes, mesmo assim ele descobriu um expediente para que ele prpriono levasse prejuzo por isso, como ser demonstrado oportunamente.

    Tendo todos deliberado o que fazer, decidiu-se que a galera e as duaschalupas largariam velas numa viagem de explorao. Assim, lanaram-se

    todos preparao das duas chalupas para a viagem, partindo em seguidaem direo s costas da Arbia. Ao chegarem perto do rio Indus, o vigia domastro principal avistou velas ao longe, e imediatamente eles iniciaram aperseguio. Aproximando-se mais, perceberam que o navio era de grandealtura, e acharam que poderia ser algum navio holands retornando dasndias Orientais. Porm logo descobriram que a presa ainda era maior.Quando deram tiros para rend-la, ela iou a bandeira do Mogol,aparentando icar na defensiva. Avery atirou com seus canhes apenas de

    longe, pelo que alguns dos seus homens desconiaram que ele ainal noera aquele heri que esperavam. Entretanto, as chalupas no perderam

    tempo e, chegando uma at a proa e a outra ao tombadilho,6 chocaram-se

    com o casco7 e invadiram o navio, que imediatamente recolheu suabandeira e se entregou. O navio pertencia frota pessoal do Mogol, e nelese encontravam vrios dos mais importantes membros da sua corte, entreos quais, dizia-se, uma de suas ilhas, em viagem de peregrinao a Meca

    pois os maometanos so obrigados a fazer, pelo uma vez na vida, umavisita quele local. E levavam ricas oferendas para colocarem no tmulo deMaom. Como se sabe, os povos orientais costumam viajar em grandemagniicncia, e assim, vinham com todos os seus escravos e criados,riqussimos vesturios e joias, jarros de ouro e prata, e ainda, grandessomas de dinheiro para arcarem com suas despesas em terra. Pelo que, oque se conseguiu saquear ali dificilmente poder ser contabilizado.

    Depois de transportarem todo o tesouro para os seus navios, e de

    despojarem a presa de tudo o mais que admirassem ou cobiassem, elesdeixaram o navio partir. Como este no tinha mais condies paraprosseguir viagem, teve de retornar. To logo as notcias chegaram at oMogol, e este icou sabendo que o roubo fora praticado por ingleses, fezgrandes ameaas, declarando que iria enviar um poderoso exrcito,armado com espadas e armas de fogo, para expulsar os ingleses de todosos seus povoados na costa indiana. A Companhia das ndias Orientais, naInglaterra, icou grandemente alarmada. Entretanto, pouco a pouco foi

    encontrando meios para paciicar o Mogol, prometendo envidar todos osesforos possveis para prender os ladres e entreg-los nas suas mos.Em todo o caso, o grande alarde que a notcia provocou na Europa, como

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    tambm na ndia, foi o que ocasionou a criao de todas essas histriasromnticas a respeito da grandeza de Avery.

    Enquanto isso, os nossos bem-sucedidos saqueadores eram de opinioque se devia fazer tudo para retornar a Madagascar, estabelecendo ali um

    local para armazenar seus tesouros, com a construo de uma pequenafortaleza, e deixando sempre na praia alguns homens para vigi-la edefend-la de possveis assaltos dos nativos. Mas Avery rejeitou o projeto,achando-o desnecessrio.

    Enquanto eles seguiam seu caminho, como foi dito, Avery enviou umescaler at cada uma das chalupas, solicitando a vinda de seus chefes abordo do navio para realizarem um conselho. Assim izeram, e ele lhesdeclarou ter uma proposta, em nome do bem comum, relativa s medidas

    necessrias de precauo contra acidentes. Props que considerassembem se os tesouros que possuam eram suicientes para todos, e sepoderiam responder pela sua segurana em algum local, ou alguma praia.Caso contrrio, tudo que tinham a temer seria que alguma desgraaacontecesse aos tesouros durante a viagem. Sugeriu-lhes queexaminassem bem as consequncias de se verem, de uma hora para outra,separados uns dos outros pelo mau tempo, caso em que as chalupas se

    cassem em poder de algum navio de guerra,8 qualquer uma delas ouseriam apreendidas, ou naufragariam, e os tesouros que levavam a bordoseriam fatalmente perdidos para todos. Isto, para no mencionar osacidentes que costumam acontecer no mar. Ele, por sua parte, dispunha defora suiciente para enfrentar qualquer barco que lhe surgisse frente,nos mares; e se algum se mostrasse acima das suas possibilidades, e eleno pudesse captur-lo, tampouco o poderiam capturar a ele, uma vez quecontava com uma tripulao to capacitada como a sua. Alm disso, o seu

    navio navegava em grande velocidade, e podia desfraldar velas quando aschalupas no o podiam. Pelo exposto, o que lhes recomendava era quecolocassem todos os tesouros a bordo do seu navio, lacrando cada cofrecom trs selos, um selo para cada um deles. E propunha tambmcombinarem um ponto de encontro, para o caso de uma consequenteseparao entre as embarcaes.

    Depois de examinarem bem a proposta, a acharam to razovel queprontamente concordaram, raciocinando que de fato poderia ocorrer

    algum acidente com uma das chalupas, enquanto a outra