DEGUSTAÇÃO CORTESIA DO EDITOR particularmente em um deles: o galante Vagner. Do outro lado, as...

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DEGUSTAÇÃO CORTESIA DO EDITOR

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DEGUSTAÇÃO

CORTESIADO EDITOR

todas as floresque eu ganhei

sandra carneiropelo espírito

lucius

19T O D A S A S F L O R E S Q U E E U G A N H E I

primeira parte“São eternas as palavras de Jesus,

porque são a verdade. Constituem não só a salvaguarda da vida celeste,

mas também o penhor da paz, da tranquilidade e da estabilidade nas

coisas da vida terrena”. Allan Kardec

capítulo 1

EEnquanto olhavam pela pequena fresta da porta entreaberta, as três irmãs cochichavam e riam bai-xinho, certas de que não eram vistas. Susi, Hanna e Sofia espiavam os pais e seus convidados, mais

interessadas particularmente em um deles: o galante Vagner. Do outro lado, as duas famílias, agradavelmente aco-

modadas na ampla sala de visitas, depois de longa conversa, bebiam licores diante da imensa lareira, que crepitava. Lá fora o frio era intenso. A neve cobrira de branco árvores, gramados, estradas e caminhos. Era o rigoroso inverno de Salzburgo, na Áustria, que chegara ainda mais intenso naquele ano de 1718. A charmosa cidade com os Alpes como fano de fundo, fazia divisa com a região da Baviera.

A lareira transformava a sala de paredes de pedras com imensa vidraça em um lugar acolhedor e aconchegante. So-fia, com seus olhos negros e brilhantes, observava tudo com atenção. Era a mais nova e a mais inteligente das três irmãs.

Na sala, a conversa prosseguia. — Por que falam tão baixo? – perguntou Susi. – Não

consigo ouvir nada.

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— Falam baixo para não escutarmos – riu Sofia.— Nem deveríamos estar aqui – afirmou Hanna. – Vou

voltar para o meu quarto. — Duvido que consiga ficar lá mais do que dois minutos.

Eu vou ficar aqui. Quero saber como são essas negociações de casamento.

— Não é uma negociação de casamento. — E o que mais pode ser isso?— Estão conversando sobre as obrigações mútuas de

cada família. — Você diz definindo os valores? — Vou para o meu quarto. Não fica bem uma futura noiva

ficar à espreita de seu pretendente. Se nos virem, não ficará bem para mim. Ficarei em meu quarto até me chamarem. – E Hanna saiu pisando duro, morta de curiosidade, mas cheia de dignidade.

Com a saída da irmã, Susi ficou mais bem acomodada para observar o que estava acontecendo na sala. Tentava acompanhar a conversa, mas perdia muitas frases. A sala era ampla, repleta de móveis, e o grupo estava distante delas.

— Não escuto nada! — Também não, Sofia. Mas daqui não arredo o pé!— Eu também não. Quero saber tudinho, para quando

chegar minha vez. — Mas antes de você, sabe que sou eu quem vai se casar. — Claro que sei! Mas quero ir aprendendo. – A jovem,

que acabara de entrar na adolescência, contava 12 anos. Tinha imensa curiosidade e gostava de aprender. Sua inteli-gência a colocava em vantagem em relação às irmãs. Estava sempre dois, três passos à frente delas quando o assunto era raciocínio, percepção, análise. Rápida e facilmente obtinha

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das irmãs o que queria, sem qualquer esforço. Era obstinada quando queria algo.

A conversa seguia na sala. — Então, prezado duque, temos um acordo? – indagou de-

pois de muita conversa o pai do jovem que iria desposar Hanna. — Certamente. Os dois estenderam as mãos e selaram

o acordo do matrimônio. Izabel, que se mantivera em silêncio, acompanhando a

conversa, levantou-se devagar e informou:— Vou buscar vinho para selarmos o momento com um

brinde. Nossas famílias se tornarão mais fortes e poderosas. O duque assentiu com um gesto de cabeça, e Izabel saiu

e voltou com duas serviçais trazendo vinho e taças para todos. Serviram-se e brindaram, puxados pelo duque:

— Um brinde ao casamento de Hadrian e Hanna. O pai do noivo sorvia o vinho satisfeito. Ele finalmente

teria um título de nobreza, e seu filho herdaria as terras de um duque de linhagem legítima. Sabia que depositava naquele acordo nupcial uma verdadeira fortuna, mas tinha convicção de que ela estava sendo bem empregada. Fitava com des-confiança Izabel e o duque, bem como o filho que oferecia como consorte. Desejava absorver todas as informações que pudesse para, daquele momento em diante, tirar os melhores proveitos da relação com a nobre família.

Hadrian era bem jovem, recém completara 18 anos. Desejava agradar aos pais mais do que qualquer outra coisa, então aceitara sem titubear o casamento proposto.

Depois que todos brindaram, o duque virou-se para a esposa e pediu:

— Vá chamar Hanna. Vamos informá-la da decisão e resolver os detalhes do evento, que será em futuro breve.

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Fitou Demóstenes em busca de concordância. O rico negociante elevou novamente a taça de vinho e sorveu mais um gole, sem propriamente responder à pergunta silenciosa do duque.

Tudo aconteceu depressa na sala, e em segundos Izabel abriu a porta, dando de cara com as duas filhas mais novas.

— Escutando atrás da porta de novo? Já para o quarto. As duas.

— Mas mãe... – Sofia tentou argumentar.— Nem mais uma palavra. Já para o quarto. Vamos –

pegando as duas pelo braço e carregando-as pelo corredor. — E não saiam daí até eu autorizar, está bem claro? Isso

não se faz. Duas mocinhas não podem ficar escutando con-versas de adultos.

Fechou a porta e foi buscar Hanna. Ela estava pronta, vestida lindamente. Seu rosto resplandecia alegria.

— Deu tudo certo? — Sim, minha filha. — Então estamos salvos?Ajeitando os cabelos da jovem, a mãe esclareceu:— Eu não diria bem isso. Ainda temos muitas dívidas.

Mas irá ajudar bastante. — Vou morar aqui com vocês?— Hanna, estão aguardando na sala. Conversaremos sobre

os detalhes todos juntos. Vamos, minha filha, não façamos seu sogro e sua sogra esperar.

A jovem arrumou os laços em seu vestido, alinhou o corselete e perguntou à mãe:

— Estou bonita?— Sim, muito bela. Agora vamos. Chegaram à sala, e Hanna foi apresentada ao futuro

marido. Os dois acomodaram-se lado a lado, e a conversa

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seguiu animada, regada a bom vinho e frutas. Mais tarde, um farto jantar foi servido, finalizando o compromisso da noite. Quando todos se despediram, Hanna olhou para os pais e falou indignada:

— Vou ter de morar com eles? Vou embora daqui então? Não sei se gostei daquela gente.

Sem dar atenção à filha, o duque orientou:— Mantenha-se resguardada até seu casamento. Sua

mãe vai ajudá-la a finalizar a preparação de seu enxoval. Fique em casa, seja recatada e obediente. Em um mês você começará vida nova.

— Mas pai... pensei que pudesse dar alguma opinião, decidir alguma coisa! Afinal, é meu casamento.

— Hanna, obedeça. Essa será a regra de ouro para sua felicidade.

Hanna chorava em voz alta, o que atraiu a atenção das duas irmãs mais novas, que novamente estavam atrás da porta.

— Decidimos o que foi melhor para todos, Hanna. — E eu não tenho o direito de opinar?— Casamento é um negócio, minha filha. E há muitos

interesses em jogo. A sua vontade é o que menos importa nessa hora. Você é uma criança, não sabe nada da vida, não sabe o que é melhor para você. Todos os detalhes foram ne-gociados e está tudo decidido.

— Mas por que o casamento será lá também, na casa deles? Por que não pode ser aqui em nossa casa?

— Essa era nossa intenção inicial, mas Emanuelle teve suas exigências.

— Então ela é quem manda no meu casamento?— Ela tem o dinheiro, Hanna.— Mas o senhor é o duque!

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Heinz fez uma longa pausa, que parecia interminável. Podia-se escutar o chiado do vento do lado de fora das enor-mes janelas de ferro. Ele, por fim, virou-se para a filha mais velha e decretou:

— Chega desse assunto. Basta! Já falei demais, me expli-quei demais. As decisões foram tomadas. E quanto mais cedo você aprender a obedecer e se adaptar, mais sucesso terá em sua nova vida. Precisa aprender a lidar com astúcia com a realidade, Hanna. Uma mulher inteligente sabe calar-se e agir na hora certa. Você é uma moça bem preparada, saberá cativar seu marido, seu sogro e sua sogra. E assim terá tudo o que desejar.

Ele a fitava como se desejasse que tudo o que lhe pas-sava pela mente fosse transferido sem palavras à mente da menina, que chorava alto.

— Assim eu não quero! Não quero! O duque irritou-se sobremaneira. Izabel previa o que

poderia acontecer e aproximou-se depressa da filha. — Hanna, vai dar tudo certo, filha. É assim mesmo que

são essas coisas. Mas você verá que no final as coisas vão dar certo, tudo irá se encaixar. Vai funcionar.

Mas a jovem insistia no choro. Sofia e Susi espiavam pela fresta minúscula da porta e prendiam a respiração para que não fossem descobertas.

O duque aproximou-se da filha e ordenou:— Pela última vez, cale-se e obedeça, Hanna. Tudo está

resolvido.— O senhor disse que eu seria feliz! Que queria que eu

fosse feliz, mas estava mentindo! – Ela ergueu a voz ainda mais, afrontando o pai, que, sem pensar, desferiu-lhe um tapa no rosto com violência tal que a jovem caiu no chão. Ao

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erguer o rosto, descia-lhe um fio de sangue pelo canto da boca, tal a violência do tapa.

Izabel agachou-se e ergueu a jovem, insistindo.— Vamos, Hanna. Hora de se recolher. – E ajudando a

filha a se levantar, conduziu-a pela sala.A garota não disse mais nada. Agora fitava o pai com

ódio e revolta, mas manteve-se em silêncio. As duas irmãs mais novas correram para o quarto e se

enfiaram embaixo das cobertas. A lareira do quarto estava acesa, e Sofia ficou observando o fogo crepitar no infinito silêncio do quarto. Então casamento era aquilo? Apenas um negócio, decidido pelas famílias, sem a menor participação de quem viveria a união? Era como uma sentença de morte. Odiou tudo aquilo e detestou o que o pai fez com Hanna. Estava assustada. Sabia que com ela não seria diferente.

capítulo 12

S em aviso antecipado, a carruagem trazendo Sofia apontou no jardim bem cuidado da mansão dos Bauer. Izabel dava ordens aos serviçais à entrada da casa, quando viu a filha chegar.

— Sofia, que surpresa. – A mãe recepcionou-a assim que desceu da carruagem. – E sozinha? O que houve?

Um tanto hesitante, a moça tentou falar, mas não se conteve e lançou-se nos braços da mãe.

— Eu não suporto mais, mãe. Estou cansada, farta de tudo aquilo!

— Do que está falando, Sofia? Onde está Acabe? Apoiando a filha, ambas subiram a escadaria que levava

à sala de estar. Izabel acomodou Sofia em ampla poltrona e ordenou à governanta:

— Prepare um chá para ela. Depois, acomodou-se ao lado da jovem e falou, limpan-

do-lhe as lágrimas.— Precisa se acalmar. Conte-me o que houve. — Não sei o que deu em mim. Estou mal dos nervos, não

me sinto bem. Pedi a Acabe que me deixe ficar aqui por uns dias, para descansar.

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— E ele concordou?— Sim. Eu preciso, mãe. Izabel fitava a filha, séria, tentando analisar a situação.

E Sofia chorava. — Sinto-me péssima, a pior das criaturas. — Mas o que aconteceu?Sofia contou a Izabel sua crise de agressividade. — Entende agora? Preciso descansar um pouco. Aquelas

crianças me deixam louca.Izabel observava e pensava que a filha pouco convivia

com as crianças, tendo cada uma delas um cuidador pessoal. Ela sabia que Acabe cercava Sofia de muita atenção e carinho. Não compreendia o estado dela. Por fim, disse:

— Bem, se seu marido concordou, está tudo bem. De tempos em tempos precisamos descansar um pouco. Seria bom uma viagem de entretenimento para vocês.

— Também acho. Falo sempre sobre isso com Acabe, mas aquelas malditas obrigações de ministro o prendem a esta cidade.

— Nisso eu concordo com você. Ele dedica tempo demais àquelas atividades. Se empregasse o tempo e a energia para acumular maior riqueza, certamente vocês seriam os nobres mais ricos e poderosos de Salzburgo.

Sofia sorriu, sentindo que afinal obtinha alguma com-preensão da mãe.

— Pois eu também acho. Ele cuida dos negócios, mas sua atenção às obrigações como ministro o absorvem muito. E o pior é que nos impõe as regras dos calvinistas. –E agarran-do as próprias roupas, concluiu irritada: – Olhe a roupa que tenho de vestir. Esse lixo!

Izabel sorriu, segurou a mão da filha e disse:— Não é tão feia assim, Sofia.

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— Mas onde estão os bordados, as rendas e os adereços que eu amo? Sinto-me sufocada, mãe. Quase enlouquecendo.

Izabel abraçou a filha e disse animada: — Não se preocupe. Tenho aqui alguns vestidos que man-

dei fazer para Hanna. São tantos, que não haverá problema de ajustarmos uns dois ou três para você.

— Tem algum para festas? — Não propriamente. Mas podemos mandar fazer um

especialmente para você. — Eu adoraria! De verdade! A serviçal entrou trazendo o chá, que Sofia tomou aos

goles. Ao colocar a xícara sobre a mesa lateral, ela disse: — Sei que vou me recuperar e logo estarei bem. — E pronta para retornar ao seu lar. Quer subir para o

seu quarto? Ele continua intacto e arrumado. Às primeiras palavras da mãe, Sofia estremeceu. A última

coisa de que ela queria falar ou pensar naquele momento era sobre seu lar. Ela se sentia atormentada, angustiada, aflita e, principalmente, oprimida. Queria descansar, refazer-se, sentir-se melhor.

Agradeceu à mãe e subiu. Logo Izabel levou os vestidos para que Sofia escolhesse alguns. E antes que a mãe saísse do quarto, Sofia perguntou:

— Onde está o senhor meu pai?— Está na cidade, em visita de negócios, como sempre.

Logo mais, à noite, daremos um jantar para uma família que está de passagem por Salzburgo. Seu pai está acertando alguns negócios com eles.

— Você os conhece, mãe?— Eu os vi de relance em uma festa em que estivemos

na semana passada. Foi um concerto de harpas na casa dos Ulrich.

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— Adoraria ter assistido. — Você tem tocado piano, filha?— Sim, mas não gosto muito das músicas. São calvinis-

tas, que chegam de fora. Não são feias, mas gostaria de algo mais erudito.

— E a harpa, tem praticado?— De vez em quando. — Ah, minha filha, você tem talento, tem tanto conhe-

cimento! O que acontece? Por que não consegue ser feliz? Tem muito mais do que a maioria das mulheres que conheço. O que lhe falta?

Sofia fixou na mãe os olhos castanho escuros que esta-vam marejados e balbuciou:

— Liberdade. — Para que quer liberdade? O que deseja que não pode ter?— Não sei, mãe. Mas vou tentar descobrir nesses pró-

ximos dias. — Sim, dedique-se a isso. Izabel saiu, deixando Sofia com seus pensamentos. A

jovem então foi até a janela e olhou para o jardim, onde ado-rava brincar na infância. Envolvida pelas energias carinhosas de Emílio, lembrou-se da flor que Acabe lhe trouxera naquela manhã e de seu perfume, e a frase de Emílio logo despontou eu sua mente, quase imperceptível:

“Procure o perfume das flores.” Ela respirou fundo e se deitou, descansando até o final da

tarde. Já estava escurecendo quando Izabel entrou no quarto com um lindo vestido amarelo nos braços. Sofia sentou-se na cama e sorriu para a mãe.

— Descansou? – perguntou Izabel.— Sim, bastante. — Providenciei uns ajustes neste vestido.

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— É lindo! — Acho que vai servir. Assim você terá algo novo e bonito

para usar hoje à noite. Sofia colocou-se diante do espelho e vestiu o esplêndido

vestido, que ficou levemente justo no busto, deixando bem à mostra o colo alvo e os fartos seios.

— Trouxe alguma de suas joias?— Nem pensei nisso.Izabel saiu e voltou logo em seguida.— Use este. Rubis combinarão com o vestido amarelo. –

E ajeitou o lindo colar em torno do pescoço da filha. — Obrigada, mãe. Mas não estou muito disposta. Seria

melhor jantar por aqui mesmo e não atrapalhar os convidados.— Nem pensar, não quero escutar qualquer argumento.

Você precisa se distrair. Não vou deixá-la aqui enfurnada. Arrume-se e desça. Eles logo chegarão.

Izabel saiu e deixou Sofia diante do espelho, admirando a própria beleza. Olhou os cabelos e ajeitou-os. Depois olhou para seu rosto, as olheiras estavam escuras e seus olhos esta-vam sem brilho. Como ficara tão apagada? – ela pensou. A mãe estava certa. Ela era uma mulher linda e cheia de vida, contando 25 anos. Não deixaria que sua vida se arrastasse daquela forma.

Chamou por uma serviçal e começou a se preparar. Pediu um banho morno e depois dele arrumou-se com esmero. Ao final, olhou-se outra vez. Estava realmente bela. Abriu a porta e desceu para encontrar os convidados do pai.

Heinz já sabia que a filha estava em casa, mas isso não o incomodava, desde que ela não trouxesse Jonas, que ele detestava. Assim que a filha entrou, sua beleza impressionou o duque. O tempo a deixava mais bela.

— Lorde Lorenzo, esta é minha filha Sofia.

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O jovem alto, de vastos cabelos negros e olhos azuis, que estava distraído olhando a propriedade do duque pela janela, virou-se e fitou a jovem que acabara de chegar. Assim que pousou nela seus olhos, ele a desejou intensamente. Tomou a mão da jovem e a beijou respeitoso.

— Encantado, senhorita. Com um leve aceno de cabeça e baixando suavemente

o corpo, em cumprimento delicado, Sofia respondeu:— Senhora. Igualmente encantada. Ao sentir os lábios de Lorenzo em suas mãos, Sofia sentiu

intenso arrepio percorrer-lhe o corpo. Captou de imediato o desejo dele por ela e a custo desviou a atenção do charmoso jovem, olhando para os demais convidados.

— Esta é minha tia, Francesca. Eu a estou acompanhando nesta viagem de negócios. Meu tio está acamado, e como as decisões que precisavam ser tomadas eram urgentes, viemos nós dois.

Francesca cumprimentou Sofia, e logo em seguida sen-taram-se à mesa.

— Minha filha está passando uns dias aqui, para descan-sar – Explicou Izabel.

— As crianças me enlouquecem – justificou Sofia. — Sim, mas é claro. Crianças são ótimas depois que

crescem – concordou Francesca. – Esse aqui era um terror! – Pousou as mãos sobre as do sobrinho. – Mas agora é um homem gentil e dedicado.

Lorenzo sorriu, devolvendo a gentileza e beijando as mãos da tia.

A conversa seguiu animada. Lorenzo era um homem que viajava bastante, tendo muitos interesses. Sua conversa era divertida e animada. Sofia encantou-se de imediato com ele. Sentiu-se profundamente atraída, mas continha-se, para não

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deixar que suas emoções a traíssem. Ficou a maior parte do tempo calada, escutando. Sorria e fazia algumas colocações, sempre muito reservada.

O final da noite foi ainda mais agradável, com Lorenzo contando mais sobre os lugares que visitara, diante da lareira, em uma conversa regada a vinho e doces caseiros. Antes que a noite terminasse, Sofia levantou-se e pediu licença.

— Vou ter de me retirar agora. Desculpem-me, mas pre-ciso descansar.

— Estou entediando a senhori... a senhora com minhas histórias? – perguntou Lorenzo quando Sofia se aproximou para se despedir.

— De modo algum. Encantaram-me suas histórias, senhor. Mas estou realmente cansada.

— No próximo sábado teremos um recepção na mansão dos Ulrich. Eles foram extremamente gentis em nos oferecer uma festa de boas-vindas.

O coração de Sofia batia acelerado. — Insisto que venham nos prestigiar. Heinz tomou a palavra.— Será uma honra. — Então conto com os três?Sofia não sabia o que responder. No domingo seguinte

deveria retornar à sua casa, mas até lá cada célula de seu corpo clamava por diversão, algo que, de fato, a encantas-se, mesmo sabendo que seria impróprio ir a uma festa sem consultar o marido. Para Heinz não passara despercebido o interesse de Lorenzo na filha. E se possível fosse, ele a casaria novamente, agora por um dote ainda maior, já que ela estava cada vez mais bonita.

— Posso contar com a senhora? – Insistiu Lorenzo. – Será uma recepção encantadora.

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Era tudo o que Sofia mais desejava. Divertir-se, dançar e não pensar em mais nada.

— Farei o possível, senhor. Boa noite. Sofia despediu-se de todos e subiu. Sentou-se em sua

cama respirando ofegante. O que era aquilo que sentia? Era uma mulher casada e não lhe cabia sentir-se atraída daquele modo pelo convidado do pai. Além do mais, nada sabia sobre o galanteador Lorenzo, além era sedutor e, pelas suas histó-rias, certamente um aventureiro. Não. Ela tinha de colocar a cabeça no lugar. Melhor seria não ir a festa alguma. Sim. Por certo! Não iria a festa alguma e pronto.

Uma serva a ajudou a livrar-se do vestido amarelo e do corselete apertado. Ela foi até sua mala e pegou a roupa de dormir. Junto veio a Bíblia, que Acabe insistira para que ela levasse. Caiu no chão, e Sofia ajoelhou-se e tomou-a nas mãos. De dentro da Bíblia caíram algumas pétalas de rosas, ainda perfumadas. Ela levou as pétalas ao nariz, sentindo--lhes o aroma.

Sofia sentou-se na cama e, na penumbra criada pelas velas que iluminavam o quarto, abriu a Bíblia. Tentava se concen-trar em ler, envolvida pelas lembranças do marido. Todavia, Hélio e seus comparsas estavam no quarto. A casa dos pais não oferecia a mesma proteção espiritual que a casa dela.

Hélio se aproximou e projetou sobre a mente dela a imagem de Lorenzo. O coração dela acelerou de imediato, tirando um sorriso prazeroso do rosto da entidade espiri-tual, satisfeita por controlar as reações da jovem. Sabia que estabelecera sintonia.

— Você continua a mesma – sussurrou Hélio aos ouvi-dos dela. – A mesma vadia de sempre! Pare que resistir. Você não mudou em nada. Não importa quanto tente. Não mudou e não mudará! Vadia e perversa.

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Os pensamentos atingiam o inconsciente profundo de Sofia, onde lembranças do passado estavam depositadas. Emílio, por sua vez, atuava em intenso magnetismo, envol-vendo a jovem em vibrações de amor e lucidez. As paixões do passado eram fortes e latentes nela, que buscava redimir-se das consequências daquelas paixões.

Hélio sentia a presença de Emílio, mas não podia vê-lo. — Sei que estão por aqui para protegê-la, mas ela não

merece ajuda, não merece perdão! Sofia sentia-se desconfortável e angustiada, e Hélio

prosseguiu: — Não precisa resistir, Sofia. Entregue-se. Divirta-se.

Seja feliz de novo! Ela fechou a Bíblia e colocou-a sobre a cabeceira da cama,

sentindo um profundo cansaço dominar-lhe. Apagou as velas dos três castiçais que bruxuleavam iluminando o quarto e tentou dormir, mas o sono demorou a chegar. A figura alegre e sedutora de Lorenzo dominou por fim seus pensamentos, afugentando o sono, que chegou somente em alta madrugada.

Não foi preciso uma influência muito intensa sobre Lorenzo para impregnar-lhe com o desejo ardente de con-quistar Sofia. Os espíritos que tentavam vingar-se da jovem, destruindo-lhe a encarnação, facilmente canalizaram os impulsos naturais do jovem para Sofia, ateando fogo naqueles impulsos, que rapidamente se transformaram em ideia fixa e labaredas de desejo. O rapaz sequer pensava, habituado que estava a entregar-se sem autocrítica aos seus desejos.

No meio da manhã seguinte, Lorenzo mandou um serviçal entregar flores à Izabel, agradecendo pelo jantar e pedindo para conversar com Heinz sobre as negociações que faziam, alegando que tinha alguns detalhes que lhe haviam escapado.

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Elogiou em pequena carta a hospitalidade da anfitriã e não mencionou o alvo de seus desejos: queria ver Sofia novamente.

Logo após o almoço, Sofia passeava pelo jardim, quando o rapaz chegou, desta vez sem a tia. Ao vê-la caminhando pelo jardim, desceu da charrete e foi direto ao seu encontro.

— Senhorita, me perdoe. É impossível me convencer de que preciso chamá-la de senhora. Sua beleza e juventude são tão intensas, que não consigo conceber que seja uma mulher casada.

Sofia sorriu ao cumprimentá-lo. Seu coração disparou assim que o viu, e ela sentiu vontade quase irresistível de lan-çar-se em seus braços. Demonstrou-se impassível e seguiu caminhando. Controlou-se, e pensava sistematicamente:

— Cabeça no lugar, Sofia. Cabeça no lugar.O rapaz pôs-se a caminhar ao lado da jovem, derraman-

do-se em atenção e elogios. Depois daquela tarde, Lorenzo encontrou uma maneira

de visitar Sofia todos os dias, estabelecendo cada vez maior proximidade com ela. Heinz percebia o que estava aconte-cendo, mas não fazia nada para impedir. Secretamente, sentia certo prazer ao notar o que se desenrolava lentamente entre os dois jovens.