DELEUZE, Gilles. a Lógica Da Sensação

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A questão presente em todas as páginas deste livro é: como es- capar da representação na pintura? Pois se o filósofo Gilles Deleuze (1925-95) analisa detalhadamente a obra de Francis Bacon (1909-92), não é apenas por considerá-lo um dos maiores pintores contemporâ- neos. É sobretudo por encontrar no pintor irlandês um exercício do pen- samento que pretende neutralizar a narração, a ilustração, a figuração. Guiado por essa temática, Deleuze situa Bacon na história da pintura, privilegiando Cézanne como aquele de quem mais se aproxima pela im- portância que a sensação tem em suas obras. Mas também apresenta a origi- nalidade de Bacon em relação a duas tentativas contemporâneas de ultra- passar a representação nas artes plás- ticas: a pintura abstrata de Mondrian e Kandinsky – que rejeita a figura- ção clássica, privilegiando as formas abstratas – e o expressionismo abstra- to, a Action Painting de Pollock – que dissolve todas as formas. A singularidade de Bacon – pintor que não pretende representar obje- tos, histórias, personagens, mas faz questão da figura – é apresentar uma figura não figurativa, desfigurada, deformada por forças invisíveis que vêm de fora. Assim, ao explicar a na-

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  • Gilles Deleuze

    FRANCIS BACONLGICA DA SENSAO

    A questo presente em todas aspginas deste livro : como es-capar da representao na pintura?Pois se o filsofo Gilles Deleuze(1925-95) analisa detalhadamente aobra de Francis Bacon (1909-92),no apenas por consider-lo umdos maiores pintores contempor-neos. sobretudo por encontrar nopintor irlands um exerccio do pen-samento que pretende neutralizar anarrao, a ilustrao, a figurao.

    Guiado por essa temtica, Deleuzesitua Bacon na histria da pintura,privilegiando Czanne como aquelede quem mais se aproxima pela im-portncia que a sensao tem em suasobras. Mas tambm apresenta a origi-nalidade de Bacon em relao a duastentativas contemporneas de ultra-passar a representao nas artes pls-ticas: a pintura abstrata de Mondriane Kandinsky que rejeita a figura-o clssica, privilegiando as formasabstratas e o expressionismo abstra-to, a Action Painting de Pollock quedissolve todas as formas.

    A singularidade de Bacon pintorque no pretende representar obje-tos, histrias, personagens, mas fazquesto da figura apresentar umafigura no figurativa, desfigurada,deformada por foras invisveis quevm de fora. Assim, ao explicar a na-

    tureza da violncia na pintura deBacon, e mostrar, por exemplo, por-que ele pinta o grito, mais que o hor-ror, Deleuze chama a ateno para ofato de ele ser um pintor da fora, daintensidade, ou para a preeminnciaexistente em sua obra da fora sobre aforma. Alm disso, defende que, aoapresentar esse trabalho de deforma-o no prprio curso de sua realizao,fazendo-se ao vivo, Bacon pinta no sforas, mas tambm o prprio tempo.

    Francis Bacon: Lgica da sensao,no entanto, no apenas um livrosobre Bacon ou mesmo sobre pintu-ra. Ao expor os procedimentos em-pregados por ele para livrar-se da re-presentao, Deleuze estabelece umaaliana entre esse grande pintor eliteratos como Kafka, Artaud, Beckette vrios outros que se notabilizarampelo mesmo projeto. Isso torna estaobra esclarecedora de um dos proce-dimentos principais utilizados porDeleuze na criao de seu prpriopensamento filosfico: a transforma-o em conceitos de elementos noconceituais perceptos e afetos oriundos da literatura e das artes.

    ROBERTO MACHADODepartamento de Filosofia, UFRJ

    Ilustrao da capa: Francis Bacon, Trs estudos para umauto-retrato, 1979.

    Aquesto presente em todas as pginas deste livro : como escaparda representao na pintura? Pois se o filsofo Gilles Deleuzeanalisa detalhadamente a obra de Francis Bacon, no apenas porconsider-lo um dos maiores pintores contemporneos. sobretudopor encontrar no pintor irlands um exerccio do pensamento quepretende neutralizar a narrao, a ilustrao, a figurao. ...

    A singularidade de Bacon ... apresentar uma figura no figurativa,desfigurada, deformada por foras invisveis que vm de fora. ...Deleuze chama a ateno para o fato de ele ser um pintor da fora,da intensidade, ou para a preeminncia existente em sua obra dafora sobre a forma. Alm disso, defende que, ao apresentar esse tra-balho de deformao no prprio curso de sua realizao, fazendo-seao vivo, Bacon pinta no s foras, mas tambm o prprio tempo.

    Lgica da sensao uma obra esclarecedora de um dos procedimen-tos principais utilizados por Deleuze na criao de seu prprio pensa-

    mento filosfico: a transformao em conceitos de elementos noconceituais perceptos e afetos oriundos da literatura e das artes.

    ROBERTO MACHADO

    LE I A N A M E S M A C O L E O:

    Kallias ou Sobre a beleza, Friedrich Schiller

    Ensaio sobre o trgico, Peter Szondi

    Nietzsche e a polmica sobre O nascimento da tragdia,Roberto Machado (org.)

    O nascimento do trgico, Roberto Machado

    Introduo tragdia de Sfocles, Friedrich Nietzsche

    DeleuzeF

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    capa bacon fim 6/27/07 5:09 PM Page 1

  • Gilles Deleuze

    FRANCIS BACONLGICA DA SENSAO

    A questo presente em todas aspginas deste livro : como es-capar da representao na pintura?Pois se o filsofo Gilles Deleuze(1925-95) analisa detalhadamente aobra de Francis Bacon (1909-92),no apenas por consider-lo umdos maiores pintores contempor-neos. sobretudo por encontrar nopintor irlands um exerccio do pen-samento que pretende neutralizar anarrao, a ilustrao, a figurao.

    Guiado por essa temtica, Deleuzesitua Bacon na histria da pintura,privilegiando Czanne como aquelede quem mais se aproxima pela im-portncia que a sensao tem em suasobras. Mas tambm apresenta a origi-nalidade de Bacon em relao a duastentativas contemporneas de ultra-passar a representao nas artes pls-ticas: a pintura abstrata de Mondriane Kandinsky que rejeita a figura-o clssica, privilegiando as formasabstratas e o expressionismo abstra-to, a Action Painting de Pollock quedissolve todas as formas.

    A singularidade de Bacon pintorque no pretende representar obje-tos, histrias, personagens, mas fazquesto da figura apresentar umafigura no figurativa, desfigurada,deformada por foras invisveis quevm de fora. Assim, ao explicar a na-

    tureza da violncia na pintura deBacon, e mostrar, por exemplo, por-que ele pinta o grito, mais que o hor-ror, Deleuze chama a ateno para ofato de ele ser um pintor da fora, daintensidade, ou para a preeminnciaexistente em sua obra da fora sobre aforma. Alm disso, defende que, aoapresentar esse trabalho de deforma-o no prprio curso de sua realizao,fazendo-se ao vivo, Bacon pinta no sforas, mas tambm o prprio tempo.

    Francis Bacon: Lgica da sensao,no entanto, no apenas um livrosobre Bacon ou mesmo sobre pintu-ra. Ao expor os procedimentos em-pregados por ele para livrar-se da re-presentao, Deleuze estabelece umaaliana entre esse grande pintor eliteratos como Kafka, Artaud, Beckette vrios outros que se notabilizarampelo mesmo projeto. Isso torna estaobra esclarecedora de um dos proce-dimentos principais utilizados porDeleuze na criao de seu prpriopensamento filosfico: a transforma-o em conceitos de elementos noconceituais perceptos e afetos oriundos da literatura e das artes.

    ROBERTO MACHADODepartamento de Filosofia, UFRJ

    Ilustrao da capa: Francis Bacon, Trs estudos para umauto-retrato, 1979.

    Aquesto presente em todas as pginas deste livro : como escaparda representao na pintura? Pois se o filsofo Gilles Deleuzeanalisa detalhadamente a obra de Francis Bacon, no apenas porconsider-lo um dos maiores pintores contemporneos. sobretudopor encontrar no pintor irlands um exerccio do pensamento quepretende neutralizar a narrao, a ilustrao, a figurao. ...

    A singularidade de Bacon ... apresentar uma figura no figurativa,desfigurada, deformada por foras invisveis que vm de fora. ...Deleuze chama a ateno para o fato de ele ser um pintor da fora,da intensidade, ou para a preeminncia existente em sua obra dafora sobre a forma. Alm disso, defende que, ao apresentar esse tra-balho de deformao no prprio curso de sua realizao, fazendo-seao vivo, Bacon pinta no s foras, mas tambm o prprio tempo.

    Lgica da sensao uma obra esclarecedora de um dos procedimen-tos principais utilizados por Deleuze na criao de seu prprio pensa-

    mento filosfico: a transformao em conceitos de elementos noconceituais perceptos e afetos oriundos da literatura e das artes.

    ROBERTO MACHADO

    LE I A N A M E S M A C O L E O:

    Kallias ou Sobre a beleza, Friedrich Schiller

    Ensaio sobre o trgico, Peter Szondi

    Nietzsche e a polmica sobre O nascimento da tragdia,Roberto Machado (org.)

    O nascimento do trgico, Roberto Machado

    Introduo tragdia de Sfocles, Friedrich Nietzsche

    DeleuzeF

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  • Francis BaconLgica da Sensao

  • Gilles Deleuze

    Francis BaconLgica da Sensao

    Equipe de traduo:

    Roberto Machado (coordenao)Aurlio Guerra NetoBruno Lara Resende

    Ovdio de AbreuPaulo Germano de Albuquerque

    Tiago Seixas Themudo

    Rio de Janeiro

  • Ttulo original:Francis Bacon: Logique de la sensation

    Traduo autorizada da edio francesa,publicada em 2002 por ditions du Seuil, de Paris, Frana

    Copyright 2002, ditions du Seuil

    Uma primeira edio desta obra foi publicada em 1981 por ditions de la Diffrence

    Copyright da edio brasileira 2007:Jorge Zahar Editor Ltda.rua Mxico 31 sobreloja

    20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800

    e-mail: [email protected]: www.zahar.com.br

    Todos os direitos reservados.A reproduo no-autorizada desta publicao, no todo

    ou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

    Obra publicada com o apoio do Ministrio da Cultura francs Centro Nacional do Livro

    Projeto gr co e composio: Susan Johnson Capa: Miriam Lerner

    Ilustrao da capa: The state of Francis Bacon, Trs estudos para um auto-retrato, 1979, licenciado por Autvis, Brasil, 2007 /

    Coleo particular / Connaught Brown, Londres / The Bridgeman Art Library

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    Deleuze, Gilles, 1925-1995D39f Francis Bacon: lgica da sensao / Gilles Deleuze; equipe de traduo, Roberto Machado (coordenao)... [et al.]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Estticas)

    Traduo de: Francis Bacon: logique de la sensation ISBN 978-85-378-0025-6

    1. Bacon, Francis, 1909-1992. 2. Pintura Filoso a. I. Ttulo. II. Srie.

    CDD: 700.107-2451 CDU: 75.01

  • Sumrio

    Advertncia 9Nota traduo brasileira 10

    [01] A rea redonda, a pista 11A rea redonda e seus anlogos * Distino entre a Figura e o gurativo * O fato * A questo dos matters of fact * Os trs elementos da pintura: estrutura, Figura e contorno * Papel das grandes superfcies planas (aplats)

    [02] Nota sobre as relaes da pintura antiga coma figurao 17A pintura, a religio e a fotografia * A respeito de dois con-tra-sensos

    [03] O atletismo 20Primeiro movimento: da estrutura Figura * Isolamento * O atletismo * Segundo movimento: da Figura estrutura * O corpo escapa: a abjeo * A contrao, a dissipao: pias, guar-da-chuvas e espelhos

    [04] O corpo, a vianda e o esprito, o devir-animal 28O homem e o animal * A zona de indiscernibilidade * Carne e osso: a vianda (viande) desce dos ossos * A piedade * Cabea, rosto e vianda

    [05] Nota de recapitulao: perodos e aspectos de Bacon 35Do grito ao sorriso: a dissipao * Os trs perodos sucessivos de Bacon * A coexistncia de todos os movimentos * As fun-es do contorno

  • [06] Pintura e sensao 42Czanne e a sensao * Os nveis de sensao * O gurativo e a violncia * O movimento de translao, o passeio * A unidade fenomenolgica dos sentidos: sensao e ritmo

    [07] A histeria 51O corpo sem rgos: Artaud * A linha gtica de Worringer * O que quer dizer diferena de nvel na sensao * A vibrao * Histeria e presena * A dvida de Bacon * A histeria, a pintura e o olho

    [08] Pintar as foras 62Apresentar o invisvel: problema da pintura. A deformao, nem transformao nem decomposio * O grito * O amor pela vida em Bacon * Enumerao das foras

    [09] Pares e trpticos 70Figuras acopladas * A luta e o acoplamento de sensao * A ressonncia * Figuras rtmicas * A amplitude e os trs ritmos * Dois tipos de matters of fact.

    [10] Nota: o que um trptico? 79A testemunha * O ativo e o passivo * A queda: realidade ativa da diferena de nvel * A luz, reunio e separao

    [11] A pintura antes de pintar... 91Czanne e a luta contra o clich * Bacon e as fotogra as * Ba-con e as probabilidades * Teoria do acaso: as marcas acidentais

    * O visual e o manual * Estatuto do gurativo

    [12] O diagrama 102O diagrama segundo Bacon (traos e manchas) * Seu carter manual * A pintura e a experincia da catstrofe * Pintura abs-trata, cdigo e espao ptico * Action Painting, diagrama e espa-o manual * O que no convm a Bacon nesses dois caminhos

  • [13] A analogia 113Czanne: o motivo como diagrama * O analgico e o digital * Pintura e analogia * O estatuto paradoxal da pintura abstrata * A linguagem analgica de Czanne e a de Bacon: plano, cor e massa * Modular * A semelhana redescoberta

    [14] Cada pintor resume sua maneira a histria da pintura... 123O Egito e a apresentao hptica * A essncia e o acidente * A representao orgnica e o mundo tctil-tico * A arte bizan-tina: um mundo tico puro? * A arte gtica e o manual * A luz e a cor, o tico e o hptico

    [15] A travessia de Bacon 135O mundo hptico e seus avatares * O colorismo * Uma nova modulao * De Van Gogh e Gauguin a Bacon * Os dois aspec-tos da cor: tom vivo e tom matizado, grande superfcie plana e Figura, superfcies e letes

    [16] Nota sobre a cor 144A cor e os trs elementos da pintura * A cor-estrutura: as grandes superfcies planas e suas divises * Papel do preto * A cor-fora: as Figuras, os letes e tons matizados * As cabeas e as sombras * A cor-contorno * A pintura e o gosto: bom e mau gosto

    [17] O olho e a mo 155Digital, tctil, manual e hptico * A prtica do diagrama * Re-laes bem diferentes * Michelangelo: o fato pictural

    Notas 163Lista de quadros de Francis Bacon citados no texto 178

  • 9Advertncia

    Cada uma das rubricas a seguir considera um aspecto dos quadros de Bacon, numa ordem que vai do mais simples ao mais complexo. Mas essa ordem relativa e s vale do ponto de vista de uma lgica geral da sensao.

    evidente que todos os aspectos coexistem. Eles con-vergem na cor, na sensao colorante, que o pice dessa lgica. Cada um dos aspectos pode servir de tema para uma seqncia particular na histria da pintura.

  • 10

    Nota traduo brasileira

    A lista dos quadros de Francis Bacon mencionados por Deleuze, e indicados por nmeros na margem, est no nal do livro, com os ttulos em ingls e em portugus. As repro-dues podem ser encontradas com facilidade em vrios sites da Internet, catlogos e livros sobre Bacon.

  • 11

    [01] A rea redonda, a pista

    A rea redonda delimita freqentemente o lugar onde est sentado o personagem, quer dizer, a Figura. Sen-tado, deitado, inclinado ou em outra posio. A rea redonda ou oval pode ocupar maior ou menor espa-o: pode transbordar pelas laterais do quadro, estar no centro de um trptico etc... Muitas vezes ela au-mentada ou substituda pela rea redonda da cadeira na qual o personagem est sentado, pela rea oval da cama na qual est deitado. Ela se expande nas pasti-lhas que cercam uma parte do corpo do personagem ou nos crculos giratrios que rodeiam os corpos. Mas at mesmo os dois camponeses s formam uma Figura com relao a uma terra envasilhada, conti-da estritamente na rea oval de um vaso. Em suma, o quadro comporta uma pista, uma espcie de circo como lugar. um procedimento muito simples, que consiste em isolar a Figura. H outros procedimentos de isolao: pr a Figura em um cubo, ou melhor, em um paraleleppedo de vidro ou vitri cado; coloc-la num trilho, numa barra estirada, como no arco mag-ntico de um crculo in nito; combinar todos esses meios, a rea redonda, o cubo e a barra, como nos estranhos sofs avolumados e arqueados de Bacon. So lugares. De todo modo, Bacon no esconde que tais procedimentos so quase rudimentares, apesar

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  • Francis Bacon: Lgica da sensao12

    das sutilezas de suas combinaes. O importante que eles no forcem a Figura a se imobilizar; pelo contrrio, devem tornar sensvel uma espcie de itinerrio, de explorao da Figura no lugar, ou em si mesma. um campo operatrio. A relao da Figura com seu lugar isolante de ne um fato: o fato ... o que acontece... E a Figura, assim isolada, torna-se uma Imagem, um cone.

    No apenas o quadro uma realidade isolada (um fato), no apenas o trptico possui trs painis isolados que no se devem, sobretudo, reunir numa nica moldura, mas a prpria Figura tambm est isolada no quadro, pela rea redonda ou pelo paraleleppedo. Por qu? Bacon diz com freqncia: para conjurar o carter gurativo, ilustrativo, narrativo que a Figura necessariamente teria se no estivesse isolada. A pintura no tem nem modelo a representar, nem histria a contar. Por isso, possui como que duas vias possveis para escapar do -gurativo: em direo a uma forma pura, por abstrao; ou em direo a um puro gural, por extrao ou isolamento. Se o pintor faz questo da Figura, se toma a segunda via, ser para opor o gural ao gurativo.1 A primeira condio isolar a Figura. O gurativo (a representao) implica, com efeito, a relao entre uma imagem e um objeto que ela deve ilustrar; mas implica tambm a relao de uma imagem com outras imagens em um conjunto composto que d a cada um o seu objeto. A narrativa o correlato da ilustrao. Entre duas -guras, h sempre uma histria que se insinua ou tende a se insinuar para animar o conjunto ilustrado.2 Isolar , ento, o modo mais simples, necessrio, embora no su ciente, de romper com a representao, interromper a narrao, impe-dir a ilustrao, liberar a Figura: para ater-se ao fato.

    Evidentemente o problema mais complicado: no ha-veria outro tipo de relao entre as Figuras que no fosse

  • A rea redonda, a pista 13

    narrativo, e do qual no decorreria nenhuma gura-o? Figuras diversas que levariam ao mesmo fato, que pertenceriam a um mesmo fato nico, em vez de contar uma histria e remeter a objetos diferentes em um conjunto de gurao? Relaes no narrativas entre Figuras, e relaes no ilustrativas entre as Fi-guras e o fato? Bacon no parou de fazer Figuras aco-pladas que no contam histria alguma. Alm disso, os painis separados de um trptico tm uma relao intensa entre si, mesmo que esta relao nada tenha de narrativa. Bacon reconhece com modstia que a pintura clssica conseguiu constantemente traar esse outro tipo de relao entre Figuras, e que essa ainda a tarefa da pintura por vir: ... evidentemente muitas das maiores obras-primas foram feitas com um determinado nmero de guras numa mesma tela, e natural que todo pintor queira muito fazer isso. ... Mas a histria que contada de uma gura a outra anula antes de mais nada as possibilidades que a pintura tem de agir por si mesma. H nisso uma grande di culdade. Mas um dia surgir algum capaz de pr diversas guras numa mesma tela.3

    Qual seria ento esse outro tipo de relaes en-tre Figuras acopladas ou distintas? Chamemos essas novas relaes de matters of fact, por oposio s re-laes inteligveis (de objetos ou de idias). Mesmo se reconhecermos que Bacon j conquistou ampla-mente esse domnio, sob aspectos mais complexos do que aqueles que consideramos agora.

    Ainda estamos no aspecto simples do isola-mento. Uma gura est isolada na pista, na cadeira, na cama ou no sof, na rea redonda ou no parale-

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  • Francis Bacon: Lgica da sensao14

    leppedo. Ela s ocupa uma parte do quadro. O que preenche, ento, o restante do quadro? Para Bacon, algumas possibilidades esto excludas, ou no tm interesse. O que preenche o resto do quadro no ser uma paisagem, como correlata da gura, nem um fundo do qual surgiria a forma, nem um informal, claro-escuro, espessura da cor onde se moveriam as sombras, textura onde se daria a variao. Mas ca-minhamos rpido demais. H, no incio da obra, Fi-guras-paisagens, como o Van Gogh, de 1957; h tex-turas extremamente nuanadas, como Figura numa paisagem ou Figura estudo I, de 1945; h espessuras e densidades como a Cabea II, de 1949; e h sobretudo o suposto perodo de dez anos, que Sylvester diz ser dominado pelo sombrio, o obscuro e a nuance, an-tes de retornar ao preciso.4 Mas isso no exclui o fato de que aquilo que destino passa por desvios que parecem contradiz-lo. Pois as paisagens de Bacon so a preparao do que aparecer mais tarde como um conjunto de curtas marcas livres involuntrias riscando a tela, traos assigni cantes desprovidos de funo ilustrativa ou narrativa: da a importncia da relva, o carter irremediavelmente relvado des-sas paisagens (Paisagem, 1952; Estudo de gura numa paisagem, 1952; Estudo de babuno, 1953; ou Duas -guras na relva, 1954). Quanto s texturas, ao espesso, ao sombrio e ao ou, eles j preparam o grande pro-cedimento de limpeza local, com pano, vassourinha ou escova, em que a espessura estendida sobre uma zona no gurativa. Ora, os dois procedimentos, o de limpeza local e o de trao assigni cante, pertencem a um sistema original que nem o da paisagem, nem

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  • A rea redonda, a pista 15

    o do informal ou do fundo (apesar de estarem aptos, em virtude de sua autonomia, a se fazer paisagem, fundo e at sombra).

    O que ocupa sistematicamente o resto do qua-dro so grandes superfcies planas (aplats) de cor viva, uniforme e imvel. Finas e duras, elas tm uma funo estruturante, espacializante. Mas no esto embaixo da Figura, atrs ou para alm dela. Esto rigorosamente ao lado, ou melhor, em volta, e so apreendidas por e em uma viso prxima, t-til ou hptica, assim como a prpria Figura. Nes-se estgio, no h relao alguma de profundidade ou de distanciamento, nenhuma incerteza das luzes e das sombras, quando se passa da Figura s gran-des superfcies planas. Nem a sombra nem mesmo o preto so sombrios (tentei tornar as sombras to presentes quanto a Figura). Se as grandes superf-cies planas funcionam como fundo, sobretudo em virtude de sua estrita correlao com as Figuras, a correlao de dois setores num mesmo Plano igualmente prximo. Essa correlao, essa conexo, dada pelo lugar, pela pista ou pela rea redonda, que o limite comum aos dois, o seu contorno. o que diz Bacon em uma importante declarao, qual voltaremos muitas vezes. Ele distingue na sua pintura trs ele-mentos fundamentais: a estrutura material, a rea redonda-contorno e a imagem. Se pensarmos em termos de escultura, preciso dizer: o suporte, o pe-destal que poderia ser mvel, a Figura que passeia no suporte com o pedestal. Se fosse preciso ilustr-los (e preciso, de certo modo, como em Homem com o cachorro, de 1953), diramos: uma calada, poas, [16]

  • Francis Bacon: Lgica da sensao16

    personagens que surgem das poas e fazem seu pas-seio cotidiano.5

    S mais tarde poderemos procurar o que esse sistema tem a ver com a arte egpcia, com a arte bi-zantina etc. O que conta agora a proximidade ab-soluta, a co-preciso, da grande superfcie plana que funciona como fundo e da Figura, que funciona como forma, no mesmo plano de viso prxima. esse sis-tema, essa coexistncia de dois setores um ao lado do outro, que fecha o espao, que constitui um espao absolutamente fechado e giratrio, muito mais do que se procedssemos com o sombrio, o obscuro ou o indistinto. Eis por que h ou em Bacon, at mes-mo dois tipos de ou, mas que pertencem ambos a esse sistema da mais alta preciso. No primeiro caso, o ou obtido no por indistino, mas, ao contr-rio, pela operao que consiste em destruir a niti-dez pela prpria nitidez.6 Por exemplo, o homem de cabea de porco, Auto-retrato, de 1973. Ou ainda o tratamento dos jornais, amassados ou no: como diz Leiris, os caracteres tipogr cos so nitidamen-te traados, e sua prpria preciso mecnica que se ope sua legibilidade.7 No outro caso, o ou obtido pelos procedimentos de marcas livres, ou de limpe-za, que tambm pertencem aos elementos precisos do sistema (haver ainda outros casos).

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