deleuze, gilles. lógica do sentido

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Gilles· Deleuze

LOGICA DO SENTIDO

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© 1969 by Les :tditions de Minuit

Direitos em lingua portuguesa reservados aEDITORA PERSPECTIVA S.A.Av. Brigadeiro Luis Antanio. 3025Telefooe: 288-838801401 Sio Paulo Brasil1975

Sumario

"\

Prologo: de Lewis Carroll aos Est6icos XV

Prlmeira serle de Paradoxos: Do Puro Devir 1Distin~o platanica entre as coisas medidas e 0 devir-louco - A identidade infinita - As aventuras de Aliceou "acontecimentos".

FICHA CATALOGRAFICA

(Preparada pelo Centro de Cataloga!;ao-na-fonte,CAMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP)

Deleuze, Gilles.D39L L6gica do Sentido; tradu~ao de Luiz Roberto Sali-

nas Fortes. Sao Paulo, Perspectiva, Ed. da Universidadede sao Paulo, 1974.

(Estudos, 35)

Bibliografia.

1. Paradoxo 2. Razao 3. Semantica (Filosofia)4. Significado (Filosofia) I. Titulo.

CDD-165-160-149.94

74-0979

Indice para 0 catalogo sistematico:

1. Paradoxos: Logica 165

2. Razao: L6gica 160

3. Semantica: Filosofia 149.94

4. Significado: Semantica: Filosofia 149.94

).

Segunda Serle de Paradoxos: Dos Efeilos de SuperffcieDistin!;3.o est6ica dos corpos ou estados de coisas e desefeitos incorporais ou acontedmentos -' Corte da reIa­!;io causal - Fazer subir a superficie. .. - Descobertada superficie em Lewis Carroll.

Terceira serle: Da Proposi9iio .Designa!;oo, manifesta~o, significa!;ao: suas re1a!;Oes esua circularidade - Haved, uma quarta dimensao daproposi!;ao? - Sentido, expressao e acontecimento ­Dupla natureza do sentido: exprimivel da proposi!;8.o eatributo do estado de coisas, insistencia e extra-ser.

Quarla serle: Das Dualidades .Corpo~linguagem, comer-falar - Duas especies de pala­vras - Duas dimensOes da proposigao: as designa!;3es eas expressOes, as consuma!;Oes e 0 sentido - As duasseries.

Quinta Serle: Do Sentido .A prolifera!;ao indefinida - 0 desdobramento esteril ­A neutralidade ou terceiro estado da essencia - 0 absur­do ou os objetos impossiveis.

Sexla Serle: Sobre a Coloca9iio em Series .A forma serial e as series heterogeneas - Sua consti­tui!;ao - Para 0 que convergem estas series? - 0 para­doxo de Lacan: 0 estranho elemento (Iugar vazio ouocupante sem Iogar) - A Ioja da ovelha.

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Oitava Serie: Da Estrutura .Paradoxa de Levi-Strauss - Condi~ao de uma estrutura- Papel das singularidades.

Selima S6rie: Das Palavras Esotericas ::...SiDtese de contra!rao sobre uma serie (conexao) - Sl~~tese de coordena!rao de duas series (conjuD!;ao) - 8104teso de disjUD):3.0 ou de ramifica~ao das series: 0 proble­ma das palavras-valise.

Nona Serie: Do Problematico

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Decima Sexta Serie: Da Genese Estatica Ontol6gicaGenese do individuo: Leibniz - Condi~o da "com­possibiIidade" de um mundo ou da convergencia dasseries (continuidade) - Transforma!;ao do aconteci­mento em predicado ~ Do individuo apessoa ­Pessoas, propriedades e classes,

Decima Setima S6rle: Da Genese Estatica LOgicaPassagem as dimensOes da proposi\iao - Sentido!e pro­posil;ao - Neutralidade do sentido - Superficie e forro.

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Singularidades e acontecimentos - Problema e aconte­cimento - As matematicas recreativas - ponto aleat6­rio e pontos singulares.

Decima S6rie: Do Jogo Ideal .Regras dos jogos ordinarios - Urn. jogo extraordinario- As duas leituras do tempo: Aion e Cronos - Mallar­me.

Decima Primeira S6rie: Do Nao-Senso .Caracteres do elemento paradoxa! - Em que ele e nao­senso; as duas figuras do nao-sensa - As duas faemasdo absurdo (sem signific~ao) que dai decorrem, - Co­presen~a do nao-sensa ao sentido - 0 sentido como"efeito",

Decima Segunda S6rie: Sobre 0 Paradoxo .Natureza do born senso e paradoxa - Natureza dosenso cornurn e paradoxa - Nao-senso, sentido e orga­niza!rao da linguagem dita secundaria.

Decima Terceira S6rie: Do Esquizofrenico e da MeninaAntonin Artaud e Lewis Carroll - Comer-falar e a lin­guagern esquizofreriica - Esquizofrenia e falencia dasuperficie - A palavra-paixao e seus valores liteririosexplodidos, a palavra-al;ao e seus valores tonicos inarti­cuIados - Distin!tao entre 0 nao-senso de profundidadee 0 nao-senso de superficie, da ordern prirnaria e daorganiza9ao secundaria da linguagem,

Decima Quarta Serie: Da Dupla CausalidadeOs acontecirnentos-efeitos incorporais, sua causa e suaquase-causa - ImpassibiIidade e genese - Teona deHussed - As condil;Oes de uma verdadeira genese: urncampo transcendental sem Eu nem centro de individua­l;aO.

Decima Quinta Serle: Das Singularidades .A batalha - 0 campo transcendental nao pode conser­var a forma de uma consciencia - As singularidadesimpessoais e pre-individuais - Campo transcendental esuperficie - Discurso do individuo, discurso da pessoa,discurso sem fundo: havera urn quarto discurso?

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Decima Oitava S6rie: Das Tres Imagens de Fil6sofosFilosofia e altura - Filosofia e profundidade - Urnnovo tipo de fil6sofo: 0 est6ico - Hercules e as super­ficies.

Decima Nona serle: Do Humor .Da signific3l;w adesigna!rao - Estoicismo e Zen - 0discurso cIassico e a indivfduo, 0 discurso romantico ea pessoa: a ironia - 0 discurso sem fundo - 0 discur­so das singularidades: 0 humor ou a "quarta pessoa dosingular",

Vigesima S6rie: Sobre 0 Problema Moral nos Est6icosOs dais p6los da moral: adivinhaliao fisica das coisase uso 16gico das represental;oes - Representa!tao, usoe expressao - Compreender, querer, representar 0 acon­tecimento.

Vigesima Primeira S6rie: Do Acontecimento .....Verdade eterna do acontecimento - Efetlla9ao e contra­efetua!rao: 0 ator - Os dois aspectos da morte comoacontecimento - 0 que significa querer 0 aconteci~

mento.

Vigesima Segunda Serle: Porcelana e Vulcao ....A "fissura" (Fitzgerald) - Os dois processos e 0 pro­blema de sua distin~o - Alcoolismo, mania depressiva- Hornenagem a psicodelia,

Vigesima Terceira Serie: Do Aion .As caracteristicas de Cronos e sua reversaq por urn devirdas profundidades - Non e a superficie - A organiza­~ que decorre de Aion e suas diferen93s com rela!taoa Cronos.

Vigesima Quarta Serie: Da Comunica"ao dos Acon-tecimentos .Problema das incompatibilidades al6gicas ---< Leibniz ­Distancia positiva e sintese afirmativa de disjun\iaO - 0etemo retorno, 0 Aian e a linha reta: um labirinto maisterrivel ...

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Vig6sima Quinta serle: Da Univocidade .183o individuo e 0 acontecimento - Sequencia do eterno'- As tres significa~Oes da univocidade.

Vigesima Sexta serle: Da Linguagem 187o que torna a linguagem passivel - Recapitu1a~ao daorganiza!rw da linguagem - 0 verba e 0 infinitivo.

Vigesirna setima serle: Da Oralidade 191Problema da genese dinamica: das profundidades a 8U­

perficie - As "posi!r6es" segundo Melanie Klein ~Esquizofrenia e depressao. profundidade e altura. Si­mulacro e tdola - Primeira etapa: do ruido a voz.

Trigesima Quarta serie: Da Ordem Primaria e da~ganUa9ao Secundaria .. , .A estrutura pendular do fantasm8: ressonincia e mo­vimento for~do - Da paIavra ao verbo - Fim dagenese dinamica - Re;ei~. p~aria e secundaria ­Satirica, ir3nica, humoristica.

APBNDICES

I. SIMULACRO E FlLOSOFIA ANTIGA

1. Pla/iio e 0 ;simuJacro

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259Vigesima Oitava serie: Da Sexualidade 201

As zonas er6genas r- Segunda etapa da genese din8mi-ca: aform.~ao das' superficies e sua concordancia ­Imagem - Natureza do complexo de Edipo, papel dazona genital.

Vigesima Nona Serle: As Boas Inten<;5es sao For-gosamente Punidas 209o empreendimento edipiano na sua relalrao com a cons­titui~o da superlicie - Reparar e fazer vir - A ca5-tralraO - A intenlrao como categoria - Terceira etapada genese: da superlicie fisica a superficie metafisica(a dupla tela).

Trigesima Serie: Do Fantasma 217Fantasma e aconteclmento ----- Fantasma, eu e singulari-dades - Fantasma. verbo e linguagem.

Trlgesima Primeira serie: Do Pensamento 225Fantasma, passagem e comelrO - 0 casal e 0 pensamen-to - A superficie metafisica - A orientalrao oa vidapsiquica, a boca e 0 cerebro.

Trlgesima Segunda Serie: Sobre as Diferentes Espe-cies de Series 231As series e a sexualidade: sene conectiva e zona er6ge~

na, sene conjuntiva e concordancia - A terceira formade serie sexual, disjun!;30 e divergencia - Fantasma eressonancia - Sexualidade e linguagem: os tres tipos deseries e as palavras correspondentes - Da voz a pala-vra.

Trigesima Terceira Serie: Das Aventuras de Alice 241Das tres especies de palavras esotericas em Lewis Car-roll - Resumo comparado de Alice e de DO' outro ladodo espelho - Psicanalise e literatura, romance neur6-tico familiar e romance-obra de arte.

A dialetica platonica: significa!rio da divisao - A se­l~iio dos pretendentes.C6pias e simulacros - As caracteristicas do simulacro.Hist6ria da representalriio.Reverter 0 platonismo: a obm de ute modema e a des­forra dos simulacros - Conteudo manifesto e conteudolatente do eterno retorno (Nietzsche contra Platiio)Eterno retorno e simulalriio - Modernidade.

2. Lucrecia e a simulacro 273o diverso - A Natureza e a soma nao-totalizavel _Critica do Set, do Um e do Todo.Os diferentes aspectos do principio de causaIidade _As duas figuras do metodo - 0 clinamen e a teoria dotempo. 0 verdadeiro e 0 falso infinito 0-- A pertur­b3j;ao da alma - EmanalrOes da profundidade, simula­eros de superffcie, fantasmas teol6gicos, oniricos eer6ticos - 0 Tempo e a unidade do metodo - Origemdo falso infinito e da perturbalrio da alma.o NaturaIismo e a critica dos mitos.

II. FANTASMA E LITERATURA MODERNA

3 . Klossowski ou as carpas-linguagem 289o silogismo disjuntivo do ponto de vista do corpo e dalinguagem - Pornografia e teologia.Ver e falar - Reflexos, ressonancias, simulacros - Adenuncia - FIexao do corpo e da Iinguagem.Troca e repetilrao - A repetilrao e 0 simulacro - Papeldas cenas congeladas.o dilema: corpo-linguagem - Deus e 0 Anticristo: asduas ordens.Teona kantiana do silogismo disjuntivo - 0 papel deDeus - Transformal;ao da teoria em KIossowski.A ordem do Anticristo - A inten~ao: intensidade eintencionalidade - 0 eterno retorno como fantasma.

4. Michel Tournier e 0 mundo sem au/rem. .. . .. 311Robinson, os elementos e os fins - Problema da per­versao.

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o efeito de outrem na percepgao - Outrem como estru;"turn a priori - _0 efeito de outrem, no tempo - Aausenda de outrem - Os duplos e os elementos.Os tres sentidos da perda de outrem - Do simulacroao fantasma.Outrem e a perversao.

5. Zola e a fissura 331A fissura e a hereditariedade - Os instintos e sellSobjetos.As duas hereditariedades - Instinto de morte e instintos. .A Besta Humana.o objeto fantasmado - Tragico e epico.

Pr6logo:De Lewis Carrollaos Est6icos

A obra de Lewis Carroll tem tudo para agradar ao lei­tor alual: livros para crian9as, de preferencia para meninas;palavras esplendidas, ins6litas, esotericas; crivos, c6digos edecodifica90es; desenbos e fotos; um conteiido psicanaliticoprofundo, um formalismo 16gico e lingiiistico exemplar. Epara alem do prazer atual algo de diferente, um jogo dosentido e do naowsenso, urn caos-cosmos. Mas as nupciasda linguagem e do inconsciente foram ja contraidas e cele­bradas de tantas maneiras que e preciso procurar 0 queforam precisamente em Lewis Carroll, com 0 que reatarame 0 que celebraram nele, gra9as a ele.

Apresentamos series de paradoxos que formam a teoriado sentido. Que esta teoria nao seja separavel de paradoxosexplica-se facilmente: 0 sentido e uma entidade nao existen­te, ele tem mesmo com 0 nao-senso rela90es muito parti­culares. 0 lugar privilegiado de Lewis Carroll provem dofato de que ele faz a primeira grande conta, a prirneiragrande enCena9aO dos paradoxos do sentido, ora recolhendo­-os, ora renovando-os, ora inventando-os, ora preparan­do-os. 0 lugar privilegiado dos Est6icos provem de queforam iniciadores de uma nova imagem do fil6sofo, em rup­tura com os pre-socraticos, com 0 socratismo e 0 platonis­mo; e esta nova irnagem ja esta estreitamente ligada aconstitui9ao paradoxal da teona do sentido. A cada seriecorrespondem, por conseguinte, figuras que sao nao somentehist6ricas, mas t6picas e 16gicas. Como sobre uma super­ficie pura, cerlos pontos de tal figura em uma serie reme­tem a outros pontos de tal outra: 0 conjunto das constela­90es-problema com os lances de dados correspondentes, ashist6rias e os lugares, um lugar complexo, uma "hist6ria

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embrulhada" - este livro e um ensaio de romance 16gicoe psicanalitico.

Apresentamos em apendice cinco artigos ja aparecidos.N6s os retomamos modificando-os, mas 0 tema permanecee se desenvolvem certos pontos que s6 sao brevemente in­dicados nas series precedentes (marcamos a cada vez a liga­\iio por meio de urna nota). Sao: 1'1) "Reverter 0 plato­nismo", Revue de mitaphysique et de morale, 1967; 2'1)"Lucrecio e 0 naturalismo", Etudes philosophiques, 1961;39) "K1ossowski e os corpos-linguagem", Critique, 1965; 49)"Uma teoria do outro" (Michel Tournier), Critique, 1967;5'1) "Introdu~ao a Besta Bumana de ZoIa", Cerele precieuxdu livre, 1967. Agradecemos aos editores que se dispuse­ram a autorizar esta reprodu~ao.

Primeira SeriedeParadoxos:Do Puro Devir

Alice assim como Do outro lado do espelho tratamde urna eategoria de coisas muito especiais: os aconteci­mentos, os acontecimentos puros. Quando digo "Alice cres­ce", quem dizer que eia se toma maior do que era. Maspor isso mesmo ela tambem se toma menor do que e agora.Sem dl1vida, nao e ao mesmo tempo que eia e maior emenor. MR, e ao mesmo tempo que eia se torna urn e ontro.Ela e maior agora e era menor antes. Mas e ao mesmotempo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do queeramos e que nos faremos menores do que nos tomamos.Tal e a simultaneidade de urn devir cuja propriedade e fur­tar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente,o devir nao suporta a separa~ao nem a distin~ao do antese do depois, do passado e do futuro. Pertence a essenciado devir avan~ar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo:Alice nao cresce sem ficar menor e inversamente. 0 bornsenso e a afirma~ao de que, em todas as coisas, ha umsentido determinaveI; mas 0 paradoxo e a afirma~ao dos doissentidos ao mesmo tempo.

Platao convidava-nos a distinguir duas dimens6es: 1'1)a das coisas Iimitadas e medidas, das qualidades fixas, quersejam permanentes ou temporarias, mas supondo semprefreadas assim como repousos, estabelecimentos de presentes,designa~6es de sujeitos: tal sujeito tem tal grandeza, tal pe­quenei em tal momento; 29) e, ainda, urn pure devir semmedida, verdadeiro devir-Iouco que nao se detem nunca, nosdois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se ao pre­sente, fazendo coincidir 0 futuro e 0 passado, 0 mais e 0

menos, 0 demasiado e 0 insuficiente na simultaneidade. de

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uma materia indocil ("mais quente e mais frio vao semprepar.a .a frente e nunca permanecem, enquanto a quantidadedefimda e ponto de parada e nao poderia avan~ar sem deixarde ser; "0 ma~s jovem tor~a-~e mais velho do que 0 maisvelho~ e .0 maIs velh.o, ,maIs Jovem do que 0 mais jovem,mas fJ~ah~ar este dem e 0 de que eles nao sao capazes, poisse 0 fmalizassem nao roais viriam a seT, mas seriam... ")1.

Reconhecemos esta dualidade platonica. Nao e emabsoluto, a do inteligivel e a do sensfvel da Ideia e d; ma­teria, das !deias e dos corpos. e uma dUalidade mais pro­funda: ?,als se~reta, oculta nos proprios corpos sensfveis emater~~s: dualidade subte,;"anea entre 0 que recebe a a~ao

da Idela e 0 que s~ ~ubtraI a esta a~?o: Nao e a distin~aodo Modelo e da copJa, mas a das copJas e dos simulacros.o puro devir, 0 ilimitado, e a materia do simulacro namedida em que se furta a a~ao da Ideia, na medida' emque contesta ao mesmo tempo tanto 0 modelo como a c6pia.As coisas medidas achaIn-se sob as Ideias; mas debaixo dasproprias coisas nao haveria ainda este elemento louco quesubsiste, que "sub-vern", aquem da ordem fmposta pelasIdeias e recebida pelas coisas? Ocorre ate mesmo a Plataoperguntar se este puro devir nao estaria numa rela~ao mnitoparticular com a linguagem: tal nos parece urn dos sentidosprincipais do Crtitilo. Nao seria talvez esta rela~ao essen­c~al a linguagem, como em um "fluxo" de palavras, urndlSCurSO enlouquecido que nao cessaria de deslizar sobreaquilo a que remete sem jaInais se deter? au entao, naohaveria duas linguagens e duas especies de "nomes" unsdesignando as paradas e repousos que recolhem a a~;io daIdeia e os outros exprimindo os movimentos ou os deviresrebeldes? 2 Ou ainda, nao seriam duas dimensoes distintasinteriores a linguagem em geral, urna sempre recoberta pelaDutra, mas continuando a "sub-vir" e a substituir sob aoutra?

o paradoxo deste puro devir, com a sua capacidadede furtar-se ao presente, e a identidade infinita: identidadeinfinita dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e dopassado, da vespera e do amanhii, do mais e do menos dodemasia~o e do insuficiente, do ativo e do passivo, da c~usae do efelto. e a linguagem que fixa os limites (por exem­plo, ~ momento em que come~a 0 demasiado) , mas e elatambem que ultrapassa os limites e os restitni a eqnivalen­cia infinita de Urn devir ilimitado ("nao segure urn ti~aovermelho durante demasiado tempo, ele 0 queimaria; naose corte demasiado profundamente, isso faria voce san­grar"). Daf as inversoes que constituem as aventuras de

1. PL""T1.0. Filebo. 24 d; pormenide&. 154-155.2. PJ:..A.T.i.O. Crc£tilo. 437 e ss. Sobre tudo 0 que precede, d. Ap&.dice I.

Alice. Inversao do crescer e do diminnir: "em que senti­do, em que sentido?" pergunta Alice, pressentindo que esempre nos dois sentidos ao mesmo tempo, de tal formaque desta vez ela permanece igual, gra~as a urn efeito deoptica. Inversao da vespera e do aInanhii, 0 presente sen­do sempre esqnivado: "geleia na vespera e no dia seguinte,nunca hoje". Inversao do mais e do menos: cinco noitessao cinco vezes mais quentes do que uma s6, "mas deveriamser tambem cinco vezes mais frias pela mesma razao". Doativo e do passivD: "sera que os gatos camero os morcegos?"e 0 mesmo que "sera que os morcegos camero os gatos?".Da causa e do efeito: ser punido antes de ter cometido afalta, gritar antes de se machucar, servir antes de repartir.

Todas estas inversOes, tais como aparecem na identi­dade iufinita tern urna mesma conseqUencia: a contesta~ao

da identidade pessoal de Alice, a perda do nome proprio.A perda do nome proprio e a aventura que se repete alravesde todas as aventuras de Alice. Pois 0 nome proprio ousingular e garantido pela permanencia de urn saber. Estesaber e encarnado em nomes gerais que designam paradas erepousos, substantivos e adjetivos, com os quais 0 proprioconserva uma rela~ao constante. Assim, 0 eu pessoal ternnecessidade de Deus e do mundo em geral. Mas quandoos substantivos e adjetivos com~aIn a fundir, quando osnomes de parada e repouso sao arrastados pelos verbos depuro devir e deslizam na linguagem dos acontecimentos,toda identidade se perde para 0 eu, 0 mundo e Deus. ea prova~ao do saber e da declama~ao, em que as palavrasvern enviesadas, empurradas de vies pelos verbos, 0 que des­titui Alice de sua identidade. Como se os acontecimentosdesfrutassem de uma irrealidade que se comunica ao sabere as pessoas atraves da linguagem. Pois a incerteza pessoalnao e urna duvida exterior ao que se passa, mas uma estru­tura objetiva do proprio acontecimento, na medida em quesempre vai nos dois sentidos ao mesmo tempo e que esquar­teja 0 sujeito segundo esta dupla dire~ao. 0 paradoxo e,em primeiro lugar, 0 que destroi 0 born senso como sentidounico, mas, em seguida, 0 que destr6i 0 senso comurn comodesigna~ao de identidades fixas.

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Segunda Seriede Paradoxos:Dos Efeitos de Superficie

AS Est6icos, por sua vez, distinguiam duas especlesde coisas: 1) as corpos, com suas tensoes, suas qUalidadesfisicas, suas rela~oes, suas a~oes e paixoes e os "estados decoisas" correspondentes. Estes estados de coisas,' a~oes epaixoes, sao determinados pelas misturas entre corpos. Nolimite, ha uma unidade de todos os corpos em fun~ao deum Fogo primordial em que eles sao absorvidos e a partirdo qual se desenvolv·em segundo sua tensao respectiva. alinico tempo dos corpos e estados de coisas e 0 presente.Pois 0 presente vivo e a extensao temporal que acompanhao ato, que exprime e mede a a~ao do agente, a paixao dopadente. Mas, na medida da unidade dos corpos entre si,na medida da unidade do principio ativo e do principiapassivo, urn presente c6smico envolve 0 universo inteiro:s6 os corpos existem no espa~o e s6 0 presente no tempo.Nao ha causas e efeitos entre os corpos: todos os corpossao causas, causas nns com relagao aos outros, nns para osoutros. A unidade da causas entre si se chaI!1a Destino,na exten,lio do presente c6sniico. . ..-

2) Todos os corpos sao causas uns para os outros,uns com rela~ao aos outros, mas de que? Sao causas decertas coisas de uma natureza completamente diferente.Estes efeitos nao sao corpos, mas, propriamente falando,"incorporais". Nao sao qualidades e propriedades f(sicas,mas atributos l6gicos au dialeticos. Nao sao coisas ou es­tados de coisas, mas acontecimentos. Nao se pode dizerque existam, mas, antes, que subsistem au insistem, tendoeste minima de ser que convem ao que DaD e uma caisa,entidade nao existente. Nao sao substantivos ou adjetivos.mas verbos. Nao sao agentes nem pacientes, mas resulta-

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dos de a\;oes e palXoes, "impassiveis" - impassiveis resul­tados. Nao sao presentes vivos, mas infinitivos: Aion iIi­mitado, devir que se divide ao infinito em passado e emfuturo, sempre se esquivando do presente. De tal forma queo tempo deve ser apreendido duas vezes, de duas maneirascomplementares, exclusivas uma da outra: inteiro como pre­sente vivo nos corpos que agem e padecem, mas inteirotambem como instancia infiuitamente divisivel em passado­-futuro, nos efeitos incorporais que resultam dos ~orpos,

de suas a~lies e de suas paixlies. S6 0 presente eXlste notempo e reune, absorve 0 passado e 0 futuro, mas s6 0passado e 0 futuro insistem no tempo e dividem ao infinitocada presente. Nao tres dimenslies sucessiv30~~. mas <!'!~~

leituras simultaneas do·tempo~··

Como diz EmUe Brehier na sua bela reconstitui~ao dopensamento est6ico: "Quando 0 escalpelo corta a carne, 0

primeiro corpo produz sobre 0 segundo nao uma proprie­dade nova, mas um atributo novo, 0 de ser cortado. aalribulo nao designa nenhuma qualidade real. .. , e sempreao contnirio expresso por um verbo, 0 que quer dizer quee nao um ser, mas uma maneira de ser. .. Esta maneirade ser se encontra de alguma forma no limite, na superficiede ser e nao pode mudar sua natureza: ela nao e a bemdizer nem ativa nem passiva, pois a passividade suporia umanatureza corporal que sofre uma a~ao. Ela e pura e sim­plesmente um resultado, um efeito nao classificavel entre osseres. .. (as Est6icos distinguem) radicalmente, 0 que nin­guem tinha feito antes deles, dois pIanos de ser: de umlado 0 ser profundo e real, a for~a; de outro, 0 plano dosfatos, que se produzem na superficie do ser e instituem umamultiplicidade infinita de seres incorporais" '.

No entanto, 0 que ha de mais intimo, de mais essen­cial ao corpo do que acontecimentos como crescer, diminuir,ser cortado? a que querem dizer os Est6icos quandoopi5em a espessura dos corpos estes acontecimentos incor­porais que se dariam somente na superficie, como urn vapornos campos (menos ate que um vapor, pois um vapor e umcorpo)? _Q. 'lue hli.no~ corpos,. '!a l'r()~undidade do." corpo~sao misturas:.llm corl'.ope,!et~,,--outr().,,- coexiste .com~le

em todas assua~..l'.artes, como a gota de viu1l.9..1l0lllar ouo fogo 110·. ferro,- Um corpo se retira de outro, como 0liquido de um vaso. As misturas em geral determinam es­tados de coisas quantitativos e qualitativos: as dimensliesde um conjunto ou 0 vermelho do ferro, 0 verde de umaarvore. Mas 0 que queremos dizer por "crescer", "dimi­nuir","avermelhar", "verdejar", "cortar", "ser cortado". etc.,

1. BRunER. Emile. La TheoTie des ineorpoTels dans Z'aneien stOlcisme.VriD, 1928, pp. 11-13.

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e de uma outra natureza: nao mais estados de coisas oumisturas no fundo dos corpos, mas acontecimentos incorpo­rais na superficie, que resultam destas misturas. A ~rv~re

verdeja . .• 2 a genio de urna filosofia se mede em pnmelrolugar pelas novas distribui~lies que implie aos seres e aosconceitos. as Est6icos estao em vias de tra~ar, de fazerpassar uma fronteira onde nenhuma havia sido jamais vista:neste sentido deslocam toda a reflexao.

a que estao operando e, em primeiro lugar, uma cisaototalmente nova da rela~ao causal. Eles desmembram estarela~ao, sujeitos a refazer uma uuidade de cada lado. Re­metem as causas as causas e afirmam1!J!lA.ligacao.Aa§.l:.ausas.entre si (destino). Remetem os efeitos aos efeitos e colo-

··cam certos Ia~os dos efeitos entre si. Mas nlio 0 fazem,absolutamente, da mesma maneira: os efeitos incorporaisnao sao jamais causas uns em rela~ao aos outros, mas so­mente "quase-causas", segundo leis que exprimem talvez emcada caso a uuidade relativa ou a mistura dos corpos deque dependem como de suas causas reais. Tanto que aliberdade se ve salva de duas maneiras complementares:uma vez na interioridade do destino como Iiga~ao das causas,outra na exterioridade dos acontecimentos como la~o dosefeitos. Eis por que os Est6icos podem opor destino e ne­cessidade 3. Os Epicuristas operam uma outra cisao da cau­salidade, que fundamenta tambem a Iiberdade: conservama homogeneidade da causa e do efeito, mas recortam a causa­Iidade segundo series at6micas cuja independencia respectivae garantida pelo clinamen - nao mais destino sem necessi­dade, mas causalidade sem destino 4. Nos dois casos come­~a-se por dissociar a rela~ao causal, ao inves de distinguirtipos de causalidade, como fazia Arist6teles ou como faraKant. E esta dissocia~iio nos remete sempre a linguagem,seja a existencia de uma declin{lfiio das causas, seja, comoveremos, a existencia de uma conjug{lfiio dos efeitos.

Esta dualidade nova entre os corpos ou estados decoisas e os efeitos ou acontecimentos incorporais conduza uma subversao da filosofia. Por exemplo, em Arist6teles,todas as categorias se dizem em fun~ao do Ser; e a diferen-

2. Cf. os comentluios de Bremer sobre este exemplo, p. 20.3. Sobre a distincao das causas reais internas e das causas exteriores

que entram em rela~6es limitadas de "confatalidade". cf. aCERO, De fato.9, 13, 15 e 16.

4. Os Epicuristas t~ tamhem Ulna idMa do acontecimento muito pr6xim.ada dos Est6icos: Epicuro, carta a Her6doto, 39-40, 68-73; e Lucrecio,I, 449 e s. Lucrecio analisa 0 acontecimento: "a filha de Tindaro foi segues.trada... " . Ele opOe os eventa (servidio-liberdade, pobreza-riqueza, guerra.conc6tdia) aos conjuneta (qualidades reais inseparaveis dos corpos). Os aeon.tecimentos nio parecem exatamente incorporais, mas sao entretanto apresentado!como nao existindo por si mesmos, impasslveis, puros resultados dos movimentosda materia, das ~s e paixOes dos corpos. Entretanto, n§.o parece que ()$

Epicuristas tenham desenvolvido esta teoria do acontecimentOi talvez porquea dobravam as exigSncias de uma causalidade homogSnea e a faziam dependerde sua propria conc~io do rimulacro. Cf. Ap~dice II.

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c;a se passa no ser entre a substancia como sentido primeiroe as outras categorias que lhe sao relacionadas como aci­dentes. Para os Est6icos, ao contrario, os estados de coisas,quantidades e qualidades, nao sao menos seres (ou corpos)que a substancia; eIes fazem parte da substancia; e, sob estetitulo, se op6em a um eiXtra-ser que constitui 0 incorporalcomo entidade nao existente. 0 termo mais alto nao e poiso Ser, mas Alguma coisa, aliquid, na medida em que sub­sume 0 ser e 0 nao-ser, as existencias e as insisrencias 5.

Mais ainda, os Est6icos procedem a primeira grande revira­volta do platonismo, a reviravolta radical. Pois se os cor­pos, com seus estados, qualidades e quantidades, assurnemtodos os caracteres da substancia e da causa, inversamente,os caracteres da Ideia caem do outro lado, neste extra-serimpassivel, esteriI, ineficaz, a superficie das coisas: 0 ideal, /o ilu:orporal niic pode ser mais do que um "ejeito".

A conseqiiencia e de urna importfutcia extrema. Pois,em Platao, urn obscuro debate se processava na profundi­dade das coisas, na profundidade da terra, entre 0 que sesubmetia a a9ao da ldeia e 0 que se subtraia a esta a9ao (asc6pias e os simulacros). Um eco deste debate ressoa quan­do S6crates pergunta: haven! Ideia de tudo, mesmo do pelo,da imundicie e da lama - ou entao havenl alguma coisaque, sempre e ohstinadamente, esquiva-se a ldeia? S6 queem Platao esta "alguma coisa" nao se achava Dunea sufi­cientemente escondida, recalcada, repelida na profundidadedos corpos, mergulhada no oceano. Eis que agora tudo sobeii superjieie. :£ 0 resultado da oper~ao est6ica: 0 ilimita­do torna a subir. 0 devir-Iouco, 0 devir-ilimitado nao emais um fundo que murmura, mas sobe a superficie dascoisas e se torna impassivel. Nao se trata mais de simu­lacros que escapam do fundo e se insinuam por tada parte,mas de efeitos que se manifestam e desempenham seu papel.Efeitos no sentido causal, mas tambem "efeitos" sonoros,6pticos ou de linguagem - e menos ainda, ou muito mais,uma vez que eles nao tem mais nada de corporal e saoagora toda a ideia... 0 que se furtava a ldeia subiu asuperficie, limite incorporal, e representa agora toda a idea­lidade possivel, destituida esta de sua eficacia causal e es­piritual. Os Est6icos descobriram os efeitos de superficic.Os simulacros deixam de ser estes rebeldes subterraneos,fazem valer seus efeitos (0 que poderiamos chamar de "fan­tasmas", independentemente da terminologia est6ica). 0mais encoberto tornou-se 0 mais manifesto, todos os velhosparadoxos do devir reaparecerao numa nova juventude ­transmuta9ao.

s. Cf, Plotina, VI, I, 25: a expDSi~o das categorias est6icas (Bremer,p. 43).

,

o devir-ilimitado torna-se 0 pr6prio acontecimento,ideal, incorporal, com todas as reviravoltas que Ihe sao pr6­prias, do futuro e do passado, do ativo e do passivo, dacausa e do efeito. 0 futuro e 0 passado, 0 mals e 0 menos,a mnite e 0 ponco, 0 demasiado e 0 insuficiente ainda, 0 jae 0 niio: pois 0 acontecimento, infinitamente divisivel, esempre os dois ao mesmo tempo, eternamente 0 que acabade se passar e 0 que val se passar, mas nunca 0 que sepassa (cortar demasiado profundo mas nao 0 bastante). 0ativo e 0 passivo: pois 0 acontecimento, sendo impassivel,traca-os tanto melhor quanto nao e nem um nem outro,mas seu resultado comum (cortar-ser cortado). A causa eo efeito: pois os acontecimentos, niic sendo nunca nadamals do que ejeilos, podem tanto melhor uns com os outrosentrar em fun96es de quase-causas ou de rela90es de quase­-causalidade sempre reversiveis (a ferida e a cicatriz).

Os Est6icos sao amantes de paradoxos e inventores.E preciso reler 0 admiravel retrato de Crisipo, em algumaspiiginas, por Di6genes Laercio. Talvez os Est6icos se sir­Yam do paradoxo de um modo completamente novo: aomesmo tempo como instrumento de analise para a linguageme como meio de sintese para os acontecimentos. A dialetieae precisamente esta ciencia dos acontecimentos incorporaistais como sao expressos nas proposi90es e dos la90s deacontecimentos tais como sao expressos nas relac;6es entreproposi90es. A dialetica e realmente a arte da eonjugarao(cf. as eonjalalia, ou series de acontecimentos que depen­dem uns dos outros). Mas e pr6prio da linguagem, simul­taneamente, estabelecer limites e ultrapassar os limites esta­belecidos: por isso compreende termos que nao param dedeslacar sua extensao e de tornar possivel uma reversao daliga9ao em uma serie considerada (assim, demasjado e in­suficiente, mnito e pouco).

o acontecimento e coextensivo ao devir e 0 devir, porsua vez. e coextensivo a linguagem; 0 paradoxo e, pois,essenciahnente "sorite" isto e, serie de proposi9&s interro­gativas prOcedendo segundo 0 devir por adi90es e subtra90essucessivas. Tudo se passa na fronteira entre as coisas e asproposi90es. Crisipo ensina: "se dizes a1guma coisa estacoisa passa pela boca; ora, tu dizes uma carrara, logo umacarr09a passa por tua boca". Hii ai um uso do paradoxoque s6 tem eqnivalente no budismo Zen de um lado, e dooutro no non-sense IngleS ou norte-americano. Por urn ladoo mals profundo e 0 imediato; por outro, 0 imediato est.na linguagem. 0 paradoxa aparece como destitui9ao daprofundidade, exibi9ao dos acontecimentos na superficie,desdobramento da linguagem ao longo deste limite. 0 hu­mor e esta arte da superficie, contra a velha ironia, arte

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III

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das profundidades ou das alturas. as Sofistas e os Cinicosja tinham feito do humor uma arma filosofica contra aironia socratica, mas com as Est6icos 0 humor encontrasua dialetiea, seu principio dialetieo e seu lugar natural, seupuro conceito filosofico.

Esta opera~ao inaugurada pelos Estoieos, Lewis Carrolla efetua por conta propria. au entao, por conta propria,ele a retoma. Toda a obra de Carroll trata dos aconteci­mentos na sua diferen~a em rela~ao aos seres, as coisas eestados de coisas. Mas 0 come~o de A lice (toda a primei­ra metade) procura ainda 0 segredo dos acontecimentos edo devir i1imitado que eles implicam, na profundidade daterra, po~os e tocas que se cavam, que se afundam, misturade corpos que se penetram e coexistem. A medida queavan~amos na narrativa, contudo, os movimentos de mer­gu1ho e de soterramento dao lugar a movimentos laterais dedeslizamento, da esquerda para a direita e da direita paraa esquerda. as animais das profundezas tornam-se secun­darios, dao lugar a jiguras de carras de baralho, sem espes­sura. Dir-se-ia que a antiga profundidade se desdobrou nasuperficie, converteu-se em largura. a devir i1imitado sedesenvolve agora inteiramente nesta largura revitada. Pro­fundo deixou de ser um elogio. So os animais sao pro­fundos; e ainda assim nao os mais nobres, que sao os ani­mais pIanos. as acontecimentos sao como os cristais, nao

. se transformam e nao crescem a nao ser pelas bordas, nasbordas. :E realmente este 0 primeiro segredo do gago e docanhoto: nao mais penetrar, mas deslizar de tal modo quea antiga profundidade nada mais seja, reduzida ao sentidoinverso da superficie. De tanto deslizar passar-se-a parao outro lado, uma vez que 0 outro lado nao e senao 0 sen­tido inverso. E se nao ha nada para ver por tras da cor­tina e porque todo 0 visivel, ou antes, toda a ciencia possi­vel, esta ao longo da cortina, que basta seguir 0 mais longe,estreita e superficialmente possivel para inverter seu ladodireito, para fazer com que a direita se tome esquerda einversamente. Nao ha, pois, aventuras de Alice, mas umaaventura: sua ascensao a superficie, sua desmistific~ao dafalsa profundidade, sua descoberta de que tudo se passa nafronteira. Eis por que Carroll renuncia ao primeiro tituloque havia previsto, "As aventuras subterrlineas de Alice".

Com maior razao para Do ourro lado do espelho. Ai,os acontecimentos, na sua diferen~a radical em rela~ao ascoisas, nao sao mais em absoluto procurados em profundi­dade, mas na superficie, neste tenue vapor incorporal quese desprende dos corpos, pellcula sem volume que os en­volve, espelbo que os reflete, tabuleiro que os torna pIanos.Aliee nao pode mais se aprofundar, ela libera 0 seu duplo

incorporal. E seguindo a fronteira, margeando a superfieie,que passamos dos corpos ao incorporal. Paul Valery teveuma expressao profunda: 0 mais profundo e a pele. Des­coberta estoica, que supoe mnita sabedoria e implica todauma etica. :E a descoberta da menina que so cresce e di­minni pelas bordas, superficie para enrubescer e verdejar.Ele sabe que os acontecimentos concemem tanto mais oscorpos, cortam-nos e mortificam-nos tanto mais quanto per­correm toda sua extensao sem profundidade. Mais tardeos adultos Sao aspirados pelo fundo, recaem e nao com­preendem mais, sendo muito profundos. Por que os mes­mos exemplos do estoicismo continuam a inspirar LewisCarroll? A arvore verdeja, 0 escalpelo corta, a batalhasera ou nao travada ...? :E diante das arvores que Aliceperde seu nome, e para uma arvore que Humpty Dumptyfala sem olhar Alice. E as falas anunciam batalbas. Epor toda parte ferimentos, cortes. Mas serao mesmo exem­plos? 'au entao sera que todo acontecimento nao e destetipo, floresta, batalha e ferimento, sendo tudo tanto maisprofundo quanto mais isso se passe na superficie, incorporalde tanto margear os corpos? A historia nos eosina queos bons caminhos nao tern funda~ao, e a geografia, que aterra so e fertil sob uma tenue camada.

Esta redescoberta do sabio estoico nao esta reservadaa menina. :E bern verdade que Lewis Carroll detesta emgeral os meninos. Eles tern profundidade demasiada; logofalsa profundidade, falsa sabedoria e animalidade. a bebemasculino em A lice se transforma em porco. Em regra ge­ral, somente as meninas compreendem 0 estoicismo, tern 0

senso do acontecimento e Iiberam urn duplo incorporal. Masocorre que urn rapazinho seja gago e canhoto e conquista,assim, 0 sentido como duplo senlido da superficie. a odiode Lewis Carroll com rela~ao aos meninos nao e devido auma ambivalencia profunda, mas antes a uma inversao su­perficial, conceito propriamente carrolliano. Em Silvia eBruno e 0 garoto que tern 0 papel inventivo, aprendendo asIi~oes de todas as maneiras, pelo avesso, pelo direito, porcima e por baixo, mas nunca "a fundo". 0 grande roman­ce Silvia e Bruno conduz ao extremo a evolu~ao que se es­bo~ava em Alice, que se prolongava em Do ourro ladO doespelho. A conc1usao admiravel da primeira parte e pelagloria do Este, de onde vem tudo aquilo que e born, "tan­to a substfmcia das coisas esperadas como a existencia dascoisas invisiveis". Mesma 0 barometro DaD sobe nem desce,mas vai em frente, de lado e da 0 tempo horizontal. Umamaquina de esticar aumenta ate mesmo as can~oes. E abolsa de Fortunatus, apresentada como anel de Moebius, efeita de len~os costurados in the wrong way, de tal forma

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que sua superficie exterior esta em continuidade com suasuperficie intema: ela envolve 0 mundo inteiro e faz comque 0 que esta dentro esteja fora e 0 que esta fora fiquedentro 6. Em Silvia e Bruno a tecnica da passagem do realpara 0 sonho, e dos corpos para 0 incorporal, e multipli­cada, completamente renovada, levada a sua perfei~ao. Mase sempre contomando a superficie, a fronteira, que passa­mOs do outro lado, pela virtude de urn ane!. A continui­dade do avesso e do direito substitui todos os mveis de pro­fundidade; e os efeitos e superficie em urn so e mesmoAcontecirnento, que vale para todos os acontecimentos, fa-zem elevar-se ao myel da linguagem todo 0 devir e seus 1',/paradoxos 7. Como diz Lewis Carroll num artigo intitulado IP"The dynamics of a parti-cle, "superficie plana e 0 carater deurn discurso '... "

6. Esta descric;:ilo da bolsa esta entre as mais belas paginas de LewisCarroll: Sylvie and Bruno concluded, cap. VII.

7. Esta descoberta da superlfcie, esta critica da profundidade formamuma constante da literatura moderna. Elas inspiram a ohra de Robbe-Grillet.De urna outra maneira sao encontradas em KlosSO'Wski. na relao;:ao entre aepiderme e a luva de Roberte: cf. as observ~s de Klossowski a este respeito.no po$f.facium das Leis do hospitalidade, pp. 335, 344. Ou entao Michel Tour­nier, em Sexta-jeiT4 au os limbos do Pacifico. pp. 58-59: "Estranho preconceito.conmdo, que valoriza cegamente a profundidade em detrimento da superliciec que pretende que swperficial significa nno de vasta dimerl3ao, mas de poucaprofundjdade, enquanto que profundo significa ao cootrano de grande profun~

d1dade e nao de fraca superffcie. E, entretanto. um sentimento como 0 amor ,.mede-se bern melhoc, ao que me pacece, se e que pode sec medido, pelaimportin.cia de sua superficie do que pelo grau de profundiclade" ," Cf.Ap8ndices III e IV.

Terceira Serie:Da Proposi~ao

Entre estes acontecimentos-efeitos e a linguagem oumesmo a possibilidade da linguagem, ha uma rela9ao essen-

~cial: eproprio aos acontecimentos 0 fato de serem expresSDsou exprimiveis, enunciados ou enunciayeis por meio de pro­posi\{i:ies pelo menos possiveis. Mas ha muitas rela~Oes naproposi~ao; qual a que convem aos efeitos de superficie,aos acontecimentos?

Muitos autores concordam em reconhecer ireS reJa~5es -<1-=distintas na proposicao. A primeira e chamada ~-.~ao ou indica~ao: ~ a relacao da prooosicao a urn estado de tCOisas extenores (datum). 0 estado de coisas e individual,eomporta tal ou tal corpo, misturas de corpos, qualidades \ "'e quantidades, rela~5es. A designacao opera pela associa- \ ~ Il~ao das proprias palavras com irnagens particulares que de- v­vern "re resentar" 0 estado de coisas: entre todas aquelas ,.. .~que sao associa as a pa avra, tal ou tal palavra a proposi~ao, \,-r-'{e preciso escolher, selecionar as que correspondem ao com- '*'"plexo dado. A intui~ao desiguadora exprime-se entao sob aforma: "6 ista", "nao e ista". A questao de saber se aassocia~ao das palavras e das imagens e primitiva ou deri-vada, necessaria ou arbitraria, nao pode ainda ser posta. 0que conta, no momento, e que certas palavras na proposi~ao,

certas particulas lingiifsticas, servem como formas vaziaspara a sele~ao das irnagens em todo e qualquer caso, logopara a desigua~ao de cada estado de coisas: estariarnoserrados se as tratassemos como conceitos universais, ja que

(

sao singulares formais,' que tem 0 papel de puros "desig­nantes", au, como diz Benveniste, indicadares. ",Estes judj.cadores formais sao· ;8001 aqnj10j ele; aa..ui, acohl: ontem,

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1. Cf. a teoria dos embrayeul's tal como e apresentada por Benveniste,Problemes de linguistique generale, Gallimard. cap. 20. Separamos "amanhi"de ontem ou agora, porque "amanhi" 6 primeiramente expressl10 de cren9Qe s6 tem um valor indicativo secundano.

de cera, Descartes nao busea de forma nenhuma 0 que per­manece na cera, problema que nem mesmo chega a colo­car neste texto, mas mostra como 0 Eu manifestado no Co­gito fundamenta 0 jnizo de designa~ao segnndo 0 qual a )

\. cera e identificada. \Devemos reservar 0 nome de signiflCa~ao a uma ter~

ceira dimensao da proposi~o: trata-se esta vez da relacaoda palavra com conceitos universais au gerais, e das liga_soes sintaticas com impllca!iOes de conceito. Do ponto de)vista da significa~ao, consideramos sempre os elementos daproposi~ao como "significante" das implica~5es de coneei-tos que podem remeter a outras proposi~oes, capazes de ser-vir de premissas a primeira. A signifiea~ao se define poresta ordem de impliea~ao conceitual em que a proposi~ao

eonsiderada nao intervem senao como elemento de urna"demonstra~ao", no sentido mais geral da palavra, seja comopremissa, seja como conelusao. Os significantes lingiifsti-cos sao entao essencialmente "implica" e "logo". A impli­cGfiio e 0 signo que define a rehi~ao entre as premissas e aconelusao; "logo" e 0 signo da asserr;iio, que define a pos­sibilidade de afirmar a eonclusao por si mesma no final dasimplica90es. Quando falamos de demonstra~ao no sentidomais geral, queremos dizer que a signifiea~ao da proposi-~ao se acha sempre assim no procedimento indireto que Ihecorresponde, isto e, na sua rela~ao com outras proposi~oes

das quais e eoncluida, ou, inversamente, cuja eonclusao elatorna possive!. A designa~ao, ao eontrario, remete ao pro­cedimento direto. A demonstra~ao nao deve ser somenteentendida no sentido restrito, silogistico ou matematico, mastambem no sentido fisico das probabilidades, ou no sentidomoral das promessas e compromissos, sendo a asser~ao daeonclusao neste Ultimo caso representada polo momento emque a promessa e efetivamente eurnprida 2. 0 valor logicoda signifiea~ao ou demonstra~ao assim eompreendida nao emais a verdade, como 0 mostra 0 modo hipotetico das im­pliea~oes, mas a condir;ao de verdade, 0 eonjunto das eon­di~oes sob as quais urna proposi~ao "seria" verdadeira. Aproposi~ao condicionada ou concluida pode ser falsa, na me-dida em que designa atualmente urn estado de coisas ine­xistentes ou nao e verifieada diretamente. A signifiea~ao

nao fundamenta a verdade, 8em tomar ao mesmo tempo 0

~~err..o .1'.ossive.!.~po.r 'l"e a eondisao <!"-V~<l'!.<!E...'1.~.o ..... ssI .Qp(j!''!.Q..!.'l!~_tll'!.s..aoabsurdo:. 0 que .L~.!'!!L~j,g):ti!ica~ap.~ que naopode..~~E yeE~<lejg) .lle1J].fll!sq.

2. Por exemplo. quando Brice Parain op5e a denominal;ao (designat;a?)e a demonstracao (significaclio), e1e entende demonstracao de urna maneuaque eng10ba 0 sentido moral de um programa a preencher, de uma promessaa cumprir. de urn possivel a realizar, como em urna "demonstrac1i.o de amor"ou em "cu te amarei semwe". Cf. Recherches sur 14 nature et les foru;ticn3 dulangage, GaIlimard, cap. v.

agora etc. Os nomes proprios tamb6m sao indicadores ou ldesignantes, mas de urna importancia especial porque saoos Unicos a formar singnlaridades propriamente materiais.Logicamente, a designa~ao tem como criterio e como ele­mento 0 verdadeiro e 0 falso. Verdadeiro significa queurna designa~ao e efetivamente preenchida pelo estado decoisas, que os indicadores sao efetuados, ou a boa imagemselecionada. "Verdadeiro em todos os casos" significa queo preenchimento se faz para a infinidade das imagens parti­culares associliveis as palavras, sem que haja necessidade desele~ao. Falso significa que a designa~ao nao esta pre­enchida, seja por urna deficiencia das imagens selecionadas,seja por impossibilidade radical de produzir uma imagem \1 associayel as palavras. J

Uma se da rela a da proposi~ao e frequentemente~ehamada de manifesta ao. Trata-se da rela~ao da proposi­

£ao ao sujeito que fala e que se exprime. A manifesta~ao

se apresenta pois como 0 enunciado dos desejos e das cren­~as que correspondem a proposi~ao. Desej08 e cren~as saoinferencias causais, nao associa~oes. 0 d!'.s.£iQ_L'!..£'ll!gt~

lidade interna ~e urna imagem no-'J:l!e.se!.el~re ,~ ..eltis~enciado objeto ou do estado de coisas correspondente; correla­rlvamente;i,,:re~a'{-a- esper. deste 'objeto ou-estado decoisas, e~uanto sua existencj~eve sllE.prodUZIda por urnacausalida<!!,.~,,!!,rna. Nao concluiremos que a manifesta~ao

seja seeundaria relativamente a designa~ao: ao contrario,. ela a torna possivel e as inferencias formam uma unidadesistematica da qual as assoe~a~oes derivam. Hume viraisto profundamente: na associa£ao de causa e eteito "e-,,'ainf~rell"ia_segIl,!d() a_rela9ao" queprecede apE§priai."1'!.~­sao. Este primado da manifesta~ao e confirmaao pela ana­lise lingUistica. Pois ha na proposiGao "manifestaJltes"como particulas especiais: eu, tu; amanha,_~~~~ ~em toda parte etc. E da mesma forma '1ue 0 nome pro­prio e um indieador privilegiado, Eu e 0 manifestante debase. Mas nao sao somente os outros manifestantes quedependem do Eu, e 0 eonjunto dos indieadores que se re­ferem a ele 1. A indica~ao ou designa~ao subsumia os es­tados de eoisas individuais, as imagens partieulares e osdesignantes singulares; mas os manifestantes, a partir do Eu,eonstituem 0 domfnio do pessoai, que serve de principio atoda designa~ao possive!. Enfim, da designa~ao a manifes­ta~ao se produz urn desloeamento de valores logieos repre­sentado pelo Cogito: nao mais 0 verdadeiro e 0 falso. masa ",eracidade e 0 engano. Na analise celebre do peda~o"""--------"--

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A pergunta: a significa~ao e, por sua vez, primeiracom rela<;ao a manifesta<;ao e a designa<;ao? deve receber~ma. re~posta complexa. pois. se a propria manifesta<;aoe pnmelra com rela<;ao a desIgna<;ao, se ela e fundadora,e de Urn pouto de vista mnito particular. Para retomarurna distin~ao chissica, digamos que e do ponto de vistada tala, amda que fosse uma fala silenciosa. Na ordemda fala, e 0 Eu que come<;a e comec;a em termos absolutos.Nesta ordem ele e pois primeiro, nao so em rela<;ao a todad~~gn~<;ao possivel que fundamenta, mas com rela<;ao as sig­mflca<;oes que envolve. Mas justamente deste ponto de vis­ta, as significa90es conceituais DaD valem e DaD se desen­volvem por si mesmas: elas permanecem subentendidas pelo!"u, 9ue se apresenta, ele proprio, tendo uma significa<;aoImedIatamente compreendida, identica a sua propria mani­festa<;ao. Eis por que Descartes pode opor a defini<;ao dohomem como animal racional a sua determina<;ao como Co­gito: poi~ a I:'ri~~ira exige urn desenvolvimento explicitodos conceltos slgmflcados (que e animal? 0 que e racional?)enquanto que a segunda e suscetfvel de ser compreendida,no momento mesmo em que for proferida '.

Este primado da manifesta<;ao, nao somente com rela- ~<;ao a desi¥"a<;ao mas com rela<;ao a significa<;ao, deve pois ,ser _entendldo em uma ordem da "fala" em que as signifi­ca<;oes permanecem naturalmente impHcitas. E so ai que

. 0. En e primeiro em rela9ao aos conceitos - em re]a9aoao mundo e a Deus. Mas se existe uma Dutra ordem em Ique as significa<;oes valem e se desenvolvem por si mesmas,entaD elas sao primeiras, nesta ordem, e fundamentam amanifesta<;ao. Esta ordem e precisamente a da lingua:u~a proposi<;ao nao pode aparecer ai a nao ser como prc­mlssa au conclusao e como significante dos conceitos antesde manifestar urn sujeito ou mesmo de designar urn estadode coisas. E deste ponto de vista que conceitos significa­dos, tals como Deus au 0 mundo, sao sempre primeiros rc­lativamente ao Eu como pessoa manifestada e as coisascomo objetos designados. Em termos mais gerais, Benve­niste mostrou que a rela<;ao da palavra (ou antes, de suapropria imagem acustica) com 0 conceito era a unica ne­cessaria, nao arbitraria. Somente a rela<;ao da palavra como conceito goza de urna necessidade que as outras rela<;oesnao tern, uma vez que permanecem no arbitra.rio enquantoas consideramos diretamente e que s6 saem dele na medidaem que as referimos a esta primeira rela<;ao. Assim, apossibilidade de fazer variar as imagens particulares associa­das a palavra, de substituir urna imagem por outra sob a

3. DESCARTES. Princfpe6. J. 10.

'

forma oc "nao e ista, e ista", DaD se explica a llao ser pelaconstancia do conceito significado. Da mesma forma, osdesejos nao formariam urna ordem de exigencias ou mesmode deveres, distinta de uma simples urgencia das necessida-des, e as cren<;as nao formariam uma ordem de inferenciasdistinta das simples opinioes, se as palavras nas quais semanifestam nao remelessem primeiramente a conceitos e im­plica<;oes de conceitos que tomam significativos estes dese­jos e estas cren<;as.

Contudo, 0 suposto primado da significa<;ao sobre adesigna<;ao levanta ainda urn problema delicado. Quandodizemos "logo", quando consideramos urna proposi<;ao comoconelufda, fazemos dela 0 objeto de urna asser<;ao, isto e,deixamos de lado as prentissas e a afirmamos por si mesma,independentemente. Nos a relacionamos ao estado de coisasque designa, independentemente das implica<;Oes que cons­tituem sua significa<;ao. Mas, para isto sao necessarias duascondi<;oes. :E: preciso em primeiro lugar que as prentissassejam postas como efetivamente verdadeiras; 0 que nos for<;adesde ja a sair da pura ordem de implica<;ao para relacio­na-Ias a urn estado de coisas designado que pressupomos.Em segnida, porem, mesmo supondo que as premissas A eB sejam verdadeiras, nao podemos coneluir dai a proposi­<;ao Z em questao, nao podemos destaca-Ia de suas pre­missas e afirma-la independentemente da implica<;ao a naoser admitindo que ela e por sua vez verdadeira, se A e Bsao verdadeiras: 0 que constitui uma proposi<;ao C que per­manece na ordem da implica<;ao, nao chega a sair dela, urnavez que remete a uma proposi<;ao D, que diz ser Z verdadei­ra se A, B e C sao verdadeiras. .. ate 0 infinito. Esteparadoxo, no cora<;ao da 16gica e que teve urna importanciadecisiva para toda a teoria da implica<;ao e da significa<;aosimbOlica, e 0 paradoxo de Lewis Carroll, no texto celehre"0 que a tartaruga disse a Aquiles" 4. Em suma: de urnlado, destacamos a conclusao das premissas, mas com a con­di<;ao de que, de outro lado, acrescentemos sempre outraspremissas das quais a conelusao nao e destacavel. :E: 0

mesmO que dizer que a significa<;ao nao e nunca homoge­nea; ou que as dais signos "implica" e "logo" sao comple­lamenle heterogeneos; ou que a implica<;ao nao chega nun­ca a fundamentar a designa<;ao a nao ser que se de a desig­nac;ao ja pronta, uma vez nas premissas, antra na concIusao.

Da designa<;ao a manifesta<;ao, depois a significa<;ao,mas tambem da significa<;ao a manifesta<;ao e a designa­<;ao, somos conduzidos em urn cfrculo que e 0 circuio da

4. Cf. in Logique. sa~ pei.nc, ~. He:mann, trad. Gattegno e Coumet.Sobre a abundante blbliograha, lirerana, 16g1ca e cientifica, que conceme aesse paradoxa de Carrol, nOl'; reportaremos aos comentanos de Emest Coumetpp. 281-288. '

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proposi~ao. A questao de saber se devemos nos contentarcom estas tres dimensoes, ou s: e preciso acre!centar,aluelas uma quarta que seria a sent,do, e uma questao econo-\I"mica ou estrategica. Nao que devessemos construir um mo­delo a posteriori que correspondesse a dirnensiies prelimina­res. Mas, antes, porque 0 proprio modelo deve estar aptodo interior a funcionar a priori, ainda que introduzisse umadimensao suplementar que nao tivesse podido, em razao desua evanescencia, ser reconhecida na experiencia. Trata-sepois de uma questao de direito e nao somente de fato.Contudo, ha tambem uma questiio de fato e e precise co­me~ar por ela: pode 0 sentido ser lo~aliza~o em u,?a. ~es-tas tres dirnensoes, designa~ao, manifesta~ao ou slgniflca­~ao? Responderemos primeiro que isto parece impossivelno que se refere a designa~ao. A de~i~na~a? e 0 que, ~endopreenchida, faz com que a proposl~ao seJa verdaderra; enao preenchida, falsa. Ora, 0 sentido evi~e~temente n.a()~

pode consistir naquilo que torna a proposl~ao verdadelraou falsa, nem na dimensao onde se efetuam estes valores:Alem do mais, a designa~ao nao poderia suportar 0 pesoda proposi~ao a nao ser na medida em que se pudes~ mos­trar uma correspondencia entre as palavras e as cOlsas ouestados de coisas designados: Brice Parain fez a conta dosparadoxos que tal hipotese faz surgir na filosofia grega 5. Ecomo evitar, entre outras coisas, que uma carruagem passepela boca? Mais diretamente ainda, Lewis Carroll pergun­ta: como os nomes teriam um "correspondente"? E quesignifica para algnma coisa "responder" a seu nome? E seas coisas nao respondem a seu nome, que e que as impedede perder seu nome? 0 que e que sobraria entao, salvo .0

arbitrmo das designa~Oes as quais nada responde e 0 vazlOdos indicadores ou dos designantes formais do tipo "isto" ­tanto uns como os outros destituidos de sentido? :£ certo\que toda designa~ao supiie 0 sentido e que .nos ~nstalamos

de antemao no sentido para operar toda deslgna~ao.

Identificar 0 sentido a manifesta~ao tem maiores chan­ces de exito, uma vez que os proprios designantes nao temsentido a nao ser em fun~ao de um Eu que se manifesta naproposi~ao. Este Eu e realmente primeiro, pois que fazcome~ar a fala: como diz Alice, "se falassemos somentequando algnem nos fala, nunca ningnem diria nada". Con­cluir-se-a que 0 sentido reside nas cren~as (ou desejos) da­quele que se exprime 6. "Quando emprego uma palavra, diztambem Humpty Dumpty, ela significa 0 que eu quero que~la signifique, nem mais nem menos. .. A questao e saberquem e 0 senhor e isso e tudo." Mas vimos que a ordem

5. PAR.UN. Brice. Op. cit. Cap. III.6. CI. Russell, SignificatWn et 1)eme. ed. Flammarion, trad. Devaux. pp.

213-224.

das cren~as e dos desejos estava fundada na ordem das im­plica~oes conceituais da significa~ao e, ate mesmo, que aidentidade do eu que fala ou diz Eu nao era garantida anao ser pela permanencia de certos significados (conceitos deDeus do mundo ... ) 0 Eu nao e primeiro e suficiente naorde~ da fala senao na medida em que envolve significa­~oes que devem ser desenvolvidas por si mesmas na ordemda lingua. Se estas significa~oes se abalam, ou nao sao es­tabelecidas em si mesmas, a identidade pessoal se perde ­experiencia dolorosa por que passa Alice - em condi~oes

em que Deus, 0 mundo e 0 eu se tornam os personagensindecisos do sonho de um algnem indeterminado. Eis por Ique 0 Ultimo recurso parece ser 0 de identificar 0 sentido lcom a sjgnifica~ao.

·Eis-nos jogados no circulo e reduzidos ao paradoxa deCarroll, em que a significa~ao nao pode nunca exeroer seupapel de ultimo fundamento e pressupiie uma designa~ao

irredutivel. Mas existe talvez uma razao muito geral pelaqual a significa~ao malogra e 0 fundamento faz circulo como fundado. Quando definimos a significa~ao como a con­di~ao de verdade, nos Ihe damos um carater que !he e co­mum com 0 sentido, que ja e do sentido. Como, porem,por sua propria conta a significa~ao assume este carater,como e que ela faz uso dele? Falando de condi~ao de ver­dade nos nos elevamos acima do verdadeiro e do falso, umavez que uma proposi~ao falsa tern urn sentido ou uma sig­nifica~ao. Mas, ao mesmo tempo, definimos esta condi~ao

superior somente como a possibilidade para a proposi~ao deser verdadeira 7. A possibilidade para uma proposi~ao deser verdadeira nao 6 nada al6m do que a forma de possibili­dade da proposi~ao mesma. Ha muitas formas de possibi­lidade de proposi~oes: logica, geometrica, algebrica, fisica,sintatica ... ; Aristoteles define a forma de possibilidadelogica pela rela~ao dos termos da proposi~ao com "lugares"que dizem respeito ao acidente, ao proprio, ao genero oua defini~ao; Kant chega a inventar duas novas formas depossibilidade, a possibilidade transcendental e a possibilidademoral. Mas, seja qual for a maneira segnndo a qual defi­nimos a forma, trata-se de urn estranho empreendimento,que consiste em nos elevarmos do condicionado a condi~ao

para conceber a condi~ao como simples possibilidade docondicionado. Eis que nos elevamos a urn fundamento,mas 0 fundado continua a ser 0 que era, independentementeda opera~ao que 0 funda, nao afetado por ela: assim, adesigna~ao permanece exterior a ordem que a condiciona, 0

verdadeiro e 0 falso permanecem indiferentes ao principioque nao determina a possibilidade de urn deles a nao ser

7. Russell, O'p. cit., p. 198: "Podemos dizer que tudo 0 que e afirmadopor um enunciado provido de sentido possui uma certa espeeie de possibilidade".

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deixando-o substituir na sua antiga rela~ao com 0 outro.De tal forma que somos perpetuamente remetidos do condi­cionado a condi~ao, mas tambem da condi~ao ao condi­cionado. Para que a condi~ao de verdade escape a estedefeito, serii preciso que ela disponba de urn elementoproprio distinto da forma do condicionado, seria preciso J

que ela tivesse alguma coisa de incondiciolUldo, capaz deassegurar uma genese real da designa~ao e das outrasdimensoes da proposi~ao: entao a condi~ao de verdade seria ~ ~definida nao mais como forma de possibilidade conceitual, ~ '"mas como materia ou "camada" ideal, isto e, nao mais ,,,", "'=:l

como significa<;ao, mas como sentido. I ~'io sentido e a quarta dimensao da proposi~ao. 0 ~

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Estoicos a descobriram com 0 acontecimento: 0 sentida e . I~~ 0 expresso da proposifao, este incorporal na superficie das'Z.. q~ coisas, entiaade complexa irredutivel, acontecimento puro\! \)

que insiste ou subsiste na proposi~ao. Por uma segunda '-.:;'vez, no seculo XIV, esta descoberta e feita na escola de 'I'

Ockham, por Gregorio de Rimiui e Nicolas d'Autrecourt.Um

fa tel~C~ira Mve~, no ~im Hd~ secul0

d:-:!X

d' pel~ grande filto- l

so 0 e oglco elDong. a, sem UVI a, razoes para es esmomentos: vimos como a descoberta estoica supunha umareviravolta do platonismo; da mesma forma a logica ockha-miana reage contra 0 problema dos universais; e Meinongcontra a logica hegeliana e sua descendencia, A questaoe a seguinte: hii alguma coisa, aliquid, que nao se confundenem com a proposi~ao ou os termos da proposi~ao, nemcom 0 objeto ou 0 estado de coisas que ela designa, nemcom 0 vivido, a representa~ao ou a atividade mental da-quele que se expressa na proposi~ao, nem com os conceitosou mesmo as essencias siguificadas? 0 sentido, 0 expressoda proposi~ao, seria pois irredutivel seja aos estados decoisas individuais, as imagens particulares, as cren<;as pes-seais e aos conceitos universais e gerais. as Est6icos SQll-

beram muito bem como dize-Io: nem palavra, nem corpo,nem representa~ao sensivel, nem representarao raeional".Mais do que isto: 0 sentido seria, talvez, "neutro", indife-rente por 'completo tanto ao particular como ao geral, aosingular como ao universal, ao pessoal e ao impessoaJ. Eleseria de urna outra natureza. Serii, preciso, porem, reconhe·cer uma tal instancia como suplemento - ou entao deve-mos nos arranjar com aquelas de que jii dispomos, a desig-na~ao, a mauifesta~ao e a siguifica~ao? Em cada uma dasepocas referidas, a polemica foi retomada (Andre de

8. Hubert Elie, Dum bela livro (Le Complexe significable, Vrin, 1936),expoe e comenta as doutrinas de Greg6rio de Rimini e de Nicolas d'Autrecourt.Mostra a extrema seme1han(>a das teorias de Meinong, e como uma mesmapol&mica se reproduz nos seculos XIX e XIV, mas DaO indica a origem est6icado problema.

9. Sabre a diferenca est6ica entre os iDcorporais e as representac5es ra­cionais, -eompostas de tra~os cOfparais. cf. E. Brewer, op. cit.> pp. 16-18.

Neufchfiteau e Pierre d'Ailly contra Rimini, Brentano eRussell contra Meinong). 0 fato e que a tentativa de fazeraparecer esta quarta dimensao e um pouco como a ca~a aoSnark de Lewis Carroll. Ela e, talvez, esta propria ca~a eo sentido e 0 Snark. B dificil responder aqueles que jul.gam suficiente haver' palavras, coisas, imagens e ideias. Poisnao podemos nero mesma dizer, a respeito do sentido. queele exista: nero nas coisas, nero no espfrito, nem como umaeXlstencia fisica, nem com uma existencia mental. Diremosque, pelo menos, ele e util e que devemos admiti-Io por suautilidade? Nem isso jii que e dotado de urn esplendor ine­ficaz, impassivel e esteril. Eis por que diziam que, de fato,nao se pode inferi-Io a nao ser indiretamente, a partir docirculo a que nos conduzem as dimens5es ordiniirias daproposi~ao. B somente rompendo 0 drculo, como fazemospara 0 anel de Moebius, desdobrando-o no seu compri­mento, revirando-o, que a dimensao do sentido aparece porsi mesma e na sua irredutibilidade, mas tambem em seupoder de genese, animando entao urn modelo interior apriori da proposi~ao 10. A logica do sentido e toda inspi­rada de empirismo; mas, precisamente, nao ha senao 0 em­pirismo que saiba ultrapassar as dimens5es experimentais dovisfvel, sem cair nas Id6ias e encurralar, invocar, talvez pro­duzir urn fantasma no limite extrema de uma experienciaalongada, desdobrada.

Esta dimensao Ultima e chamada por Husser! expressfio:ela se distingue da designa~ao, da manifesta~ao, da demons­tra~ao II. p sentido e 0 expressQ. Husser!, nao menDs queMeinong, reencontra as fontes vivas de uma inspira~ao es­toica. Quando Husser! se interroga, por exemplo, sobreo "noema perceptivo" ou 0 "sentido da percepgao", eIe 0

distingue ao mesmo tempo do objeto fisico, do vivido psico­logico, das representa~5es mentais e dos conceitos logicos.Ele 0 apresenta como urn impassivel, urn incorporal, semexistencia fisica nem mental, que nao age nem padece, puroresultado, pura "aparencia": a arvore real (0 desiguado)pode queimar, ser sujeito ou objeto de a~ao, entrar em mis·turas; nao 0 noema da arvore. Hii muitos noemas ou sen->tidos ara um so e mesmo desi nado: estrela da nOite eestrela da m a sao O1S noemas, isto e, duas maneiraspelas quais um mesmo desiguado se apresenta em express5es.Mas, nestas condi~5es, quando Husser! diz que 0 noema e 0

10. Cf. as observacoes de Albert Lautman sabre 0 anel de Moebius: elenao tem senao "urn s6 lado e esta e uma propriedade essencialmente extrinseca,pois que para nos dannos conta disso precisamos fender 0 anel e revid.-l0.o que sup5e uma rotacao em torno de um eixo exterior a superficie do anel.2, entretanto. possivel caracterizar esta unilateralidade por uma propriedadepuramente intriDseca ... " etc. Esaai sur lea notions de structure et d'existenceen 11Ulthbnatiques. ed. Hermann. 1938, t. I. p. 51-

11. Nlio levarnos em conta aqui 0 emprego particular que Hussed fazde "signHicacao" na sua terminologia. seja para identifica-Ia. seja para liga-Iaa "sentido".

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percebido tal como aparece em uma apresenta,ao, 0 "per­cebido como tal" ou a aparencia, nao devemos compreen­der que se trata de urn dado sensivel ou de urna qualidade,mas, ao contnirio, de uma unidade ideal objetiva como cor­relato intencional do ato de percep,ao. Urn noema qual­quer nao 6 dado em uma perceP9aO (nem em uma lembran­,a ou em urna imagem), ele tern urn estatuto completa­mente diferente que consiste em nito existir fora da propo­si,ao que 0 exprime, proposi,ao perceptiva, imaginativa, delembran,a ou de representa,ao. Do verde como cor sen­Slvel ou qualidade, distingnimos 0 "verdejar" como por noe­matica ou atributo. A arvore verdeja, nao 6 isto, final­mente, 0 sentido de cor da arvore e a arvore arvorijica, seusentido global? 0 noema sera outra coisa al6m de urnacontecimento puro, 0 acontecimento de arvore (embaraHusser! assim nao fale, por raz6es terminoI6gicas)? E 0

que ele chama de aparencia, que 6 senao urn efeito de su­perficie? Entre os noemas de urn mesmo objeto ou mesmode objetos diferentes se elaboram la,os complexos amUogosaos que a dial6tica est6ica estabelece entre os acontecimen­tos. Seria a fenomenologia esta ciencia rigorosa dos efeitosde superflcie?

~Consideremos II estatuto complexo do sentido ou do

expresso. De urn lado, nao existe fora da proposicao queoexplinie. 0 expresso nao existe fora de sua expressao.Dal por que a sentido nao pode ser dito existir, ma~-mente insistir Oll subsist". Mas, por outro lado, nao se'co unde de forma nenhuma com a proposi,ao, ele ternuma "objetividade" completamente distinta. 0 expressonao se parece de forma nenhuma com a expressao. 0 sen­lido se atribni, mas nao 6 absolutamente atributo da pro­posi,ao, 6 atributo da coisa ou do estado de coisas. 0atributo da proposi,ao 6 0 predicado, por exemplo, urn pre­dicado qualitativo como verde. Ele se atribui ao sujeitoda proposi,ao. Mas a atributo da coisa 6 0 verbo verdejar,por exemplo, au antes, 0 acontecimento expresso por esteverbo; e ele se atribui a coisa designada pelo sujeito auao estado de coisas designado pela proposi,ao em seu con­junto. Inversamente, este atributo 16gico, por sua vez, naose confunde de forma algnma com 0 estado de coisas fisico, \nem com urna qualidade au rela,ao deste estado. 0 atri­buto nao 6 urn ser e nao qualmca urn ser; 6 urn extra-ser. 'Verde designa urna qualidade, urna mistura de coisas, urnamistura de arvore e de ar em que uma clorofila coexistecom todas as partes da folba. Verdejar, ao contrario, naoI6 uma q]lalidade na coisa, mas urn atributo que se diz dacoisa e que nao existe fora da proposi,ao que 0 exprimedesignando a coisa. E eis-nos de volta a nossO ponto de .

partida: 0 sentido nao existe fora da proposi,ao... etc.Mas aqni nao se trata de um drculo. Trata-se antes

da coexistencia de duas faces sem espessura, tal qu; passa:mas de urna para a outra margeando 0 comprimento. Inseparavelmente 0 semido e 0 exprimivel ou 0 expresso~aproposiciio e 0 atributo do estado de coisas. Ele volta umaface para as colsas, uma face para as proposi,6es. Masnao se confunde nem com a proposi,ao que 0 exprime nemcom a estado de coisas ou a qualidade que a proposi,aodesigna. £, exatamente, a fronteira entre as proposi,6ese as coisas. £ este aliquid. ao mesmo tempo extra-ser einsistencia, ~ste mfni~o de ser que convem as jnsistenclas 1~,E oeste sentido que e urn "acontecimento": com a condi~ode niio co~undir Q acontecimento com sua efetua¢o P£pa­fa-temporal em urn estado de ~jsat Nao pergtIntaremos"

\

pois, qual 6 0 sentjdo de 11m aNmtecimento: 0 acontecimen- ~

,to 6 0 pr6prio sentido. 0 acontecimento pertence essen­cialmente a hnguagem, <;Ie mant6,? uma rela~ao esse~cialcom a hnguagem; mas a linguagem e 0 que se dlZ das cOlSas.Jean Gattegno marcou bern a diferen,a entre os contos deCarroll e os contos de fada classicos: em Carroll tudo 0 quese passa, passa-se na linguagem e passa pela linguagem'"nao e uma hist6ria que ele nos conta, e um discurso qu~nos dirige, discurso em varias partes ... 13. £ exatamenten~ste mu.ndo plano do sentido-acontecimento, ou do expri­IDlvel-atributo, que Lewis Carroll instala toda sua obra.Disso decorre a rela,ao entre a obra fantastica assinadaCarroll e a obra matematico-16gica assinada Dodgson. Pa­rece dificil aceitar que se diga, como ja se fez, que a obrafantastica apresente simplesmente a amostra das armadilhase dificuldades nas quais calmos quando nao observamos asregras e leis formuladas na obra 16gica. Nao somente por­que mnitas das arm~di1has subsistem na pr6pria obra 16gica,mas porque a parlIlha parece-nos outra. £ curiosa cons­tatar que toda obra 16gica diz respeito diretamente a sig­nijicariio, as implica,6es e conclus6es e nao se refere aosentido a nao ser indiretamente - precisamente por inter­m6dio dos paradoxos que a significa,ao nao resolve ou at6mesmo que ela cria. Ao contrario, a obra fantastica se re­fere imediatamente ao sentido e relaciona diretamente a elea potencia do paradoxo. 0 que corresponde aos dois esta­dos do sentido, ~e fato e de direito, a posteriori e a priori,um pelo qual 0 mferimos indiretamente do drculo da pro­posi,ao, outro pelo qual 0 fazemos aparecer por si mesmodesdobrando 0 drculo ao longo da fronteira entre as pro­posi,6es e as coisas.

. 12.. Estes te~mos. insistencia e extra-ser. tem seu corl'espoDdente na ter­nunologIa de Mem.ong, assim como na dos est6icos.

13. Em LOglque sam peine. op. cit.• preU,cio, pp. 19-20.

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uual La .;;:JCIIC.

Das Dualidades

A primeira grande dualidade era a das causas e dosefeitos, das coisas corporais e dos acontecimentos incorpo­rais. Mas, na medida em que os acontecimentos-efeitos naoexistem fora das proposi~oes que os exprimem, esta duali­dade se prolonga na das coisas e das proposi~oes, dos corpose da linguagem. De onde a alternativa que atravessa toda aobra de Lewis Carroll: comer ou falar. Em Silvia e Brunoa alternativa e: bits of things ou "bits of shakespeare". Nojantar de cerimonia de Alice, comer 0 que se vos apresentaau ser apresentado ao que se come. Comer, ser comido, e 0

modelo da opera~ao dos corpos, 0 tipo de sua mistura emprofundidade, sua a~ao e paixao, seu modo de coexistenciaurn no outro. Mas falar e 0 movimenta da superficie, dosatributos ideais ou dos acontecimentos incorporais. Pergun­ta-se 0 que e mais grave: falar de comida ou comer as pa­lavras. Em suas obsessoes alimentares, Alice e atravessadapor pesadelos que se referem a absorver, ser absorvido.Ela constata que os poemas que ouve falam de peixescomestlveis. E se falarmos de alimento, como evitar fa­ze-Ia diante daquele que deve servir de alimento? Assim,temos as gafes de Alice diante do camundongo. Como evitarcomer 0 pudim aa qual se foi apresentada? Mais ainda, aspalavras vern de forma atravessada, como atraidas pela pro­fundidade dos corpos, com alucina~oes verbais, como vemosnestas doen~as em que as perturba~oes da linguagem saoacompanhadas por comportamentas orais desencadeados(levar tudo aboca, comer qualquer objeto, ranger os dentes)."Estou segura de que nao sao as verdadeiras palavras", dizAlice resumin~~rr~estino.~a(r~e que ria ~~~~~mill.a. Mas

BIBL .. J;.ul SLG,J...L DL C..."tlIA:i~U"I..i') t .,"';"....,......1.0)

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comer as palavras e justamente 0 contrario: elevamos a ope­ra~ao dos corpos a superficie da Iinguagem, fazemos subiros corpos destituindo-os de sua antiga profundidade, prestesa por em risco toda a Iinguagem neste desafio. Desta vez, asperturba~oes saO de superficie, laterais, esparramadas dadireita para a esquerda. A gagueira substituiu a gate, os fan­tasmas da superficie substituiram a alucina~ao das profun­didades, os sonhos de deslizamento acelerado substituiramos pesadelos de soterramento e absor~ao diffceis. Assim, amenina ideal, incorporal e inapetente, 0 meuino ideal, gagee canhoto, devem se desligar de suas imagens reais, vorazes,de g1utoes e de desastrados.

Mas esta segunda dualidade, corpo-Iinguagem, comer­-falar, nao e suficiente. Vimos como 0 sentido, embora nao

• exista fora da proposi"ao gue 0 exprime, e 0 atributo de, estados de coisas e nao da proposi"ao. 0 acontecimento

subsiste na Iinguagem, mas acontece as coisas. As coisas eas proposi~oes acham-se menos em urna dualidade radical doque de urn lade e de outro de urna fronteira representada pelosentido. Esta fronteira nao os mistura, nao os refule (naoha monismo tanto quanto nao ha dualismo), ela e, antes,a articula~ao de sua diferen~a: corpo/linguagem. Se com­pararmos 0 acontecimento a urn vapor nos prados, este vaporse eleva precisamente na fronteira, na dobradi~a das, coisase das proposi~oes. Tanto que a dualidade se reflete dos dois

. lados, em cada urn dos dois termos. Do lade da coisa, hiias qualidades ffsicas e rela~oes reais, constitutivas do estadode coisas; alem disso, os atributos logicos ideais que marcamos acontecimentos incorporais. E, do lado da proposi~ao, hiios nomes e adjetivos que designam 0 estado de coisas e,alem disso, os verbos que exprimem os acontecimentos ouatributos logicos. De urn lade, os nomes proprios singula­res, os substantivos e adjetivos gerais que marcam as me­didas, as paradas e repousos, as presen~as; de outro, osverbos que carregam consigo 0 devir e seu cortejo de acon­tecimentos reversiveis e cujo presente se divide ao infinitoem passado e futuro. Humpty Dumpty distingue com vigoras duas especies de palavras: "Algumas tern carater, nota­damente os verbos: sao as mais diguas. Com os adjetivospodemos fazer 0 que quiser, mas nao com os verbos. Eusou capaz, no entanto, de me servir de todas a meu bel­-prazer! Impenetrabilidade! Eis 0 que digo". E quandoHumpty Dumpty explica a palavra insolita "impenetrabi­lidade", da uma razao muito modesta ("quero dizer quetagarelamos bastante a este respeito"). Na realidade, im­penetrabilidade quer dizer algo muito diferente. HumptyDumpty op5e a impassibilidade dos acontecimentos as a~oes

e paixoes dos corpos, a incomunicabilidade do sentido Ii

comestibilidade das coisas, a impenetrabilidade dos incor­porais sem espessura as misturas e penetra~oes reciprocasdas substancias, a resistencia da superficie Ii moleza das pro­fundidades, em suma, a "dignidade" dos verbos as compla­cencias dos substantivos e adjetivos. E impenetrabilidadequer dizer tambem a fronteira entre os dois - e quer dizerque aquele que esta sentado sobre a fronteira, exatamentecomo Humpty Dumpty, esta sentado sobre 0 seu muro es­treito, dispoe dos dois, senhor impenetravel da articula~ao

de sua diferen~a ("eu posso, entretanto, me servir de todasa meu bel-prazer").

o que nao e ainda suficiente. A Ultima palavra dadualidade nao se acha neste retorno Ii hipotese do Crlitila.A dualidade na proposi~ao nao e entre duas especies denomes, de repouso e nomes de vir-a-ser, nomes de subs­tfmcias ou qualidades e nomes de acontecimentos, mas entreduas dimensoes da propria proposi~ao: a designa~ao e aexpressao, a designa~ao de coisas e a expressao de sentido.:E como se fossem dois lados de urn espelho: mas 0 que seacha de urn lado nao se parece com 0 que se acha do outro("tudo 0 mais era tao diferente quanto possivel. .. "). Pas­sar do outro lado do espelho e passar da rela~ao de desig­na~ao Ii rela~ao de expressao - sem se deter nos interme­diarios, manifesta~ao, significa~ao. :E chegar a uma dimen­sao em que a linguagem nao tern mais rela~ao com designa­dos, mas somente com expressos, isto e, com 0 sentido. Tale 0 ultimo deslocamento da dualidade: ela passa agora parao interior da proposi~ao.

o camundongo conta que, quando os senhores proje­taram oferecer a coroa a Guilhenne, 0 Conquistador, "0

arcebispo achou iSla razoavel". 0 pato pergunta: "Achouo que?" - "Achou isla, replicou 0 camundongo muito irri­tado, 0 senhor sabe muito bern 0 que isla quer dizer. ­Sei muito bern 0 que islo quer dizer quando encontro umacoisa, diz 0 pato; em geral e uma ra ou urn venne. A per­gunta e: 0 que foi que 0 arcebispo encontrou?" :E claro queo pato emprega e compreende islO como urn termo de de­sigu~ao para todas as coisas, estados de coisas e qualidadespossiveis (indicador). Ele chega mesmo a precisar que 0

designado e essencialmente 0 que se come ou se pode comer.Todo designavel ou designado e, por principio, consumivel,penetravel; Alice observa em algum outro lugar que naopode "imaginar" a nao ser a1imentos. Mas 0 camundongoempregava iSla de maneira completamente diferente: comoo sentido de uma proposi~ao preliminar, como 0 aconteci­mento expresso pela proposi~ao (ir oferecer a coroa a Gui­Iherme). 0 equivoco sobre islo se distribui, por conseguinte,segundo a dualidade da designa~ao e da expressao. As duas

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dimensoes da propos19ao se organizam em duas senes quenao convergem senao no infinito, em urn termo tao ambfguoquanto isla, uma vez que se encontram somente na fron­teira que nao cessam de bordejar. E uma das series retomaa sua maneira "comer", enquanto que a Dutra extrai a es­sencia de "falar". Eis por que em muitos poemas de Carrollassiste-se ao desenvolvimento autonomo das duas dimens6essimultlineas, uma remetendo a objetos designados sempreconsumlveis ou recipientes de consuma9ao, a outra a sen­lidos sempre exprimfveis ou, pelo menos, a objetos porta­dores de linguagem e de senlido, as duas dimensoes conver­gindo somente em urna palavra esoterica, em urn aliquidnao idenlificavel. Assim, 0 refrao de Snark: "Voce podepersegui-Io com dedal e tambem persegui-Io com cuidado,pode Ca9a-Io com garfos e esperan9a" - em que 0 dedal e 0

garfo se referem a instrurnentos designados, mas esperan9ae cuidado, a considera90es de sentido e de acontecimen­tos (0 sentido em Lewis Carroll e freqUentemente apresen­tado como aqnilo com 0 que se deve "tomar cnidado", objetode urn "cuidado" fundamental). A palavra rara, 0 Snark,e' a fronteira perpetuamente contornada, ao mesmo tempoque tra9ada pelas duas series. Mais tfpica ainda e a admi­ravel can9ao do jardineiro em Sf/via e Brurw. Cada estrofepoe em jogo. dois termos de genero muito diferente que seoferecern a dois olhares dislintos: "Ele pensava que via .Ele olhou uma segunda vez e se deu conta de que era "o conjunto das estrofes desenvolve assim duas sedes hete­rogeneas, uma feita de animais, de seres ou de objetos con­sumidores ou consumfveis, descritos segundo qualidades ff­sicas, sensiveis e sonoras; a eutra, feita de objetos ou depersonagens eminentemente simb6licos, definidos por atri­butos logicos ou, por vezes, apela90es parentais e portadoresde acontecimentos, de notfcias, de mensagens, de senlidos.Na conclusao de cada estrofe, 0 jardineiro tra9a uma ala­meda melancolica, margeada de urna parte e de outra pelasduas series; pois esta can9ao - e preciso que se saiba - esua propria historia.

Ele pensava ver urn e1efanteque se exercitava com uma flautaolholl por uma segunda vez e se den conta de que erauma carta de sua mulher.No final compreendo, disse ele,o amargor da vida ...

Ele pensava ver urn albatrozque batia em torno da Iampada,oIboll uma segunda vez e se deu conta de que eraurn selo postal no valor de urn penny.Farias melbor se voltasses para casa, disse ele,as noites sao muito funidas ...

Ele pensava ver urn argumentoque provava que ele era 0 Papa,olliou uma segunda vez e se den ccnta de que erauma barra de sabao pintada.Urn acontecimento tao terriveI, disse com uma voz fraca,extingue toda esperan~a.1

1. A can<;ao do jardineiro, em Silvia e Bruno, e formada por nove estro­fes, das quais oito est1io dispersas no primeiro tomo. a nona aparecendo emSylVie and Bruno concluded (capitulo 20). Uma tradu<;ao do conjunto e dadapor Henri Parisot em Lewis Carroll, ed. Seghers. 52 e par Robert Benayoun emsua Anthologie du nonsense, Pauvert, ed., 1957, pp. 180-182.

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Quinta Serie:Do Sentido

Mas, iii que 0 sentido nao e nunca apenas urn dos doistermos de uma dualidade que opoe as coisas e as propo­si<;oes, os substantivos e os verbos, as designa<;oes e asexpressoes, iii que e tamb6m a fronteira, 0 corte ou a ar::licula<;ao da diferen<;a entre os dOlS, iii que dispoe de umaimpenetrabilidade que the e propria e na qual se reflete,ele deve se desenvolver nurna nova serie de paradoxos, destavez interiores.XI Q Paradoxo 'da regressao ou da prolijera,iio indejinida.

j Quando designo algnma coisa, suponho sempre que 0 ~tido e comp,re<O,1J,djgo e jii estii presente. Como diz Bergson,lnao vamos dos sons as imagens e gas imagens ao sentido:'instalamo-nos logo "de safda" em pIeno sentido. 0 sentidoe como a esfera em que estou instalado para operar as desig­na<;oes possiveis e mesmo para pensar suas condi<;oes.~§entido estii sempre pressuposto desde gue 0 eu comeca a

j falar; eu nao poderia comecar sem esta pressuposi<;ao. Por, outras palavras: nunca di 0 0 sentido a uilo ue di o.

Mas, em compensas:ao, posso sempre tamar 0 sentido doque digo como ob'eto de uma outra ro osi ao da ual, orsua 1 0 sentid . Entro entao em nma regressao~inita do pressuposto. Esta regressao dii testemunho, aomesmo tempo, da maior jrnpotencia daqnele que fala, e damais alta potencia da lingnagem: mmha unpotencia emdizer 0 sentido do que digo, em dizer ao mesmo tempo algn­rna coisa e seu sentido, mas tamb6m 0 poder infinito da lin­gnagem de falar sobre as palavras. Em suma: sendo dadaillna propoSl<;ao que desfgna urn estado de coisas, podemossempre tomar seu sentido como 0 designado de uma outra

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E!0posl~ao. Se concordamos em considerar a proposi~ao

como um nome, .0 evidente que todo nome que designa um .objeto pode se tornar objeto de urn novo nome que designa.seu sentido: n, sendo dado remete a n2 que designa 0 sentido

~ de np n2 a n3 etc. Para cada um de seus nomes a in a-...1;7 'gem deve conter urn"nome para 0 sen 0 este nome. Esta

prolifera~ao infinita das enl1dades verbals .0 conhecida comoparadoxo de Frege I. Mas .0 este tambem 0 paradoxa de \Lewis Carroll. Ele aparece rigorosamente do outro lado doespelho, no encontro de Alice com 0 cavaleiro. 0 cavaleiroanuncia 0 titulo da can~ao que vai cantar "0 nome da can­~ao .0 chamado Olhos esbugalhados" - "Oh, .0 0 nome dacanc;ao?" diz Alice. - "Nao, voce DaD compreendeu, dizo cavaleiro. :Ii como 0 nome .0 chamado. 0 verdadeironome .0: 0 Velho, 0 ve!ho homem". - "Entlio eu deveriater dito: .0 assim que a can~ao .0 chamada?" corrigiu Alice.- "Nao, nao deveria: trata-se de caisa bern diferente. Acam;ao echamada Vias e meios; mas isto e somente como ela.0 chamada, compreendeu?" - "Mas entao, 0 que .0 que ela{,?" - "Iii chego ai, diz 0 cavaleiro, a can~lio .0 na realidadeSentada sabre urna barreira";]

Este texto, que so pudemos traduzir pesada.mente, parasermos fieis a terminologia de Carroll, distingue uma serie deentidades nominais. Ele nao segue uma regressao infinitamas, precisamente para se limitar, procede segundo uma

•progresslio convencionalmente finita. Devemos pois Rartirdo fim restaurando a regressao natural. 19) Carroll dlZ: acanc;ao' e, na realidade, "Sentado sabre uma barreira". ~que ,a cancao e. eta propria, uma proposis:ao, urn nOID,e(seja nl)' "Sentado sobre uma barreira" .0 este ~om.e, estenome que .0 a can~ao e que aparece desde a pnmelra es­trofe. 29) Mas nlio .0 0 nome da can~ao: sendo ela propriaurn nome, a can~ao .0 designada por urn outro nome. Estesegundo nome (seja D2), e "Vias e meios", que forma 0

tema das 2~, 3~, 4~ e 5~ estrofes. Vias e meios .0 pois 0

nome que designa a can~ao, ou 0 que a caru;iio e chamada.39) Mas 0 nome real, acrescenta Carroll, .0 0 "Ve!ho, velhohomem", que aparece, com efeito, no conjunto da can~ao. :Iique 0 proprio nome designador tem um sentido que formaum novo nome (n3)' 49) Mas este terceiro nome, por suavez, deve ser designado por um quarto. Isto .0: 0 sentidode n2, ou seja na, deve ser designado por n,. Este quartonome e comO 0 nome da canriio e charnado: "Olhos esbu­galhados", que aparece na M estrofe.

Hii quatro nomes na classifica~lio de Carroll: 0 nomecomo realidade da can~ao; 0 nome que designa esta reaIi-

1. Cf. G. Frege, Ueber Sinn und Bedeutung, Zeitschrift f, Ph. und ph. Kr.1892. Esse principia de uma prolifer~ao infinita das entidades suscitou emmuitos 16gicos contemporaneos. resist&.cias pouco justificadas: assim Camap.Meaning and necessity, Chicago, 1947, pp. 130-138.

dade, que designa pois a can~ao au que representa 0 que acan~lio .0 chamada; 0 sentjda deste Dome, que forma urnnovo nome ou uma nova realidade; a nome que designaesta nova realidade, que designa Pais 0 sentido do nomeda can~ao ou que representa como 0 nome da can~ao .0chamado. Devemos fazer varias observa~5es: em primeirolugar, que Lewis Carroll se Iimitou voluntariamente, jii quenao leva em conta nem mesmo cada estrofe em particular ejii que sua apresenta~ao progressiva da serie !he permiteatribuir-se nela um ponto de partida arbitriirio, "Olhos es­bugalhados". Mas .0 evidente que a serie, tomada no seusentido regressivo, pode ser prolongada ao infinito na alter­nancia de )1m DOme real e de urn nome que designa estarealidade. Observar-se-ii, por outro lado, que a serie deCarroll .0 muito mais complexa do que aquela que indicii­vamos hii pouco. Antes tratava-se, com efeito, apenas dosegninte: um nome que designa urna coisa remete a outro /Inome que designa seu sentido, aD infinito. Na classifica~lio ..de Carroll esta situa~ao precisa .0 representada somente porn2 e I4: I4 .0 0 nome que designa 0 sentido de n2. Ora,Lewis Carroll ai acrescenta dois outros nomes: um primeiro,porque ele trata a coisa primitiva designada como sendo elapropria um nome (a can~ao); urn terceiro, porque trata 0sentido do nome designador como sendo ele proprio umnome, independentemente do Dome que vai, por sua vez,designii-lo. Lewis Carroll forma, pois, a regresslio comquatro entidades nominais que se deslocam ao infinito.Isto .0: ele decompoe cada par, fixa cada par, para tirardeste um par suplementar. Veremos por que. Mas pade­Elos nos contentar com. uma regJ;~~e doi~ _!e:~m()_~_ aIt~:r:nantes: 0 nome que designa alguma coisa e 0 nome queaeSlgna 0 sentido deste primelro nome. Esta regressao comdOls termos .0 a COnal~aO mimma de prolifera~ao indefinida.

Esta expressao mais simples aparece em um texto deAlice, em que a Duquesa encontra sempre a moral a serextraida de toda e qualquer coisa. De toda coisa, com acondi~ao, pelo menos, de que seja uma proposi~ao. Poisquando Alice nlio fala a duquesa fica desamparada: "Vocepensa em algnma coisa, guerida, e isto faz esquecer de falar.Naoposso !he dizer, por enquanto, qual .0 a mo~a)". Mas,assiin que AlIce fala~'a' -duquesa encontra as marais: "Pa­rece-me que agora 0 jogo anda muito melhor", diz Alice ­":Ii verdade, diz a duguesa, e a moral disto .0: oh! .0 0 amor,e a amor que faz girar 0 mundo" "Alguem disse, mur­murou Alice, que 0 mundo girava quando cada qual tratavados seus proprios problemas." - "Pais e, quer dizer maisou menos a mesma coisa, diz a duquesa, ... e a moraldisto .0: tome cnidado com 0 sentido e OS sons tomarao

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cuidado de si mesmos." Nao se trata de associa~oes deideias, de uma para outra frase, em toda esta passagem: amoral de cada proposi~ao consiste numa outra proposi~aoque designa 0 sentido da primeira. Fazer do sentido 0 objeto2e uma nova proposi~ao, e isto "cnidar bem do sentido", emcondi~oes tais que as proposi~oes proliferam, "os sons tomamconta de si mesmos". Confirma-se a possibilidade de urnla~o profundo entre a 16gica do sentido e a etica a moralou a moralidade. '@ Paradoxa do desdobramenlo eSleril ou da reileraciioseca. Ha urn meio de evitar esta regressao ao infinito: eIfixar. a proposi~ao: imobiIiza-la, justamente no momenta deextrarr dela 0 sentido como esta tenue pelicula no limite dascoisas e das palavras. (Daf 0 desdobramento que acabamosde constatar em Carroll a cada etapa da regressao.) Massera que e este 0 destino do sentido: nao podemos dispen­sar esta dimensao, mas, ao mesma tempo, DaO sabemoso que fazer com ela quando a atingimos? Que fizemosalem de liberal urn duplo neutralizado da proposi~ao, secofantasma, sem espessura? Eis por que, sendo 0 sentido ex­presso por um verbo na proposi~ao, exprime-se este verbosob urna forma infinitiva ou participial ou interrogativa:Deus-ser ou 0 existente-azul do ceu, ou 0 ceu e azul? 0sentido opera a suspensao da afirma~ao assim como da ne­ga~ao. Sera este 0 sentido das proposi~oes "Deus e, 0 ceu

. e azul"? Como atributo dos estados decoisas 0 sentido e

i ·extra-ser, "Ie nao-e ser'~ll1as urI!Aiiuid.CJll" c()~V6rII _ao n~~~~ Como expresso da proposi~ao, 0 sentido nao· existe,mas insiste ou subsiste na proposi~ao. E era um dos pontosmms notavels da 16grca estOica esta' esteriIidade do sentido--acontecimento: somente os corpos agem e padecem, masnao os incorporais, que resultaIn das a~Oes e das paixoes.Este paradoxo podemos, pois, chama-Io de paradoxo dosEst6icos. Ate em Husser! repercute a declara~ao de umaesplendida esterilidade do expresso, que vem confirmar 0

estatuto do noema: "A camada da expressao - e af esta suaoriginalidade - a nao ser, precisamente, que confira umaexpressao a todas as outras intencionalidades, nao e produ­~va. Ou, se quisermos: sua produtividade, sua a~ao noema­tica, esgotam-se no exprimir" 2.

{

. Extrafdo da proposicao, 0 sentido e independente desta,polS deja suspende a afirma"ao e a negacao e, no entanto,nao e deja SeDaQ urn duplo evanescen1e..: exatamente 0 80r­riso sem gato de Carroll ou a chama sem vela. E os doisparadoxos - 0 da regressao infinita e 0 do desdobramentoesteril - formam os termos de uma alternativa: urn ou 0

2. HussEn. Idees § 124: Ed. Gallimard, trad. Ricoeur, p. 421.

outro. E se 0 primeiro nos for~a a conjugar 0 mais altopoder e a maior impotencia, 0 segundo nos impoe urnatarefa analoga, que sera precise curnprir mais tarde: con­jugar a esterilidade do sentido com rela~ao a proposi~ao

de onde 0 extrafmos, COm sua potencia de genese quanta asdimensoes da proposi~ao. De qualquer maneira, parece queLewis Carroll esta vivamente consciente de que os doisparadoxos formam uma alternativa. Em Alice, os perso­nagens s6 tern duas possibilidades para se secar do banhode lagrimas em que cafram: ou escutar a hist6ria do ca­mundongo, a mais "seca" hist6ria que se conhece, ja queela isola 0 sentido de uma proposi~ao em urn islo fantasma­g6rico; ou se lan~ar em urna corrida louca, em que giramosem cfrculo de proposi~ao em proposi~ao, parando quandoqueremos, sem vencedor nem vencido, no circnito de umaprolifer~ao infinita. De qualqutr maneira, a secura e 0

que sera chaInado mais tarde de impenetrabilidade. E osdois paradoxos representam as formas essenciais da gagueira,a forma coreica ou clonica de uma prolifera~ao convulsivaem cfrculo e a forma tetanica ou tonica de uma imobiIi­za~ao sofreada. Como se diz em "Poeta fit non nascitur",espasmo ou assobio, as duas regras do poema.~ Paradoxo da mJ,ulralidade ou do lerceiro~eslad~.E'!..'f§.­

sencia. 0 segundo paradoxo, por sua vez, nos joga nece~sariamente em um terceiro. Pois se 0 sentido como duplo j;tda proposi~ao e indiferente tanto a afirma~ao como a nega-~ao, se nao e nem passivo e nem ativo, nenhum modo daproposi~ao e capaz de afeta-Io. .0 sentido permanece estrj­tamente 0 mesmo para proposicoes que se opoem seja doponto de vista da qualidade, seja do ponto de vista da quan­tidade, seja do ponto de vista da rela~ao, seja do ponto devista da modalidade. Pois todos estes pontos de vista con­cernem a designa~ao e aos diversos aspectos de sua efetua-~ao ou preenchimento por estados de coisas e nao ao sentidoou a expressao. Primeiramente, a qualidade, afirma~ao enega93.o: "Deus 6" e "Deus nao e" devem ter 0 mesma sen-

etido, em virtude da autonomia do sentido com rela~ao aexistencia do desiguado. Tal e, no seculo XIV, 0 fantasticoparadoxa de Nicolas d'Autrecourt, objeto de reprova~ao:

conJradicloria ad invicem idem signijicanl 3•

Depois a quantidade: todo homem e branco, nenhurnhomem nao e branco, algum homem nao e branco. .. E arela~ao: 0 sentido deve permanecer 0 mesmo para a rela­~ao invertida, urna vez que a rela~ao com respeito a elese estabelece sempre nos dois sentidos ao meSmo tempo, namedida em que ele faz emergir todos os paradoxos dodevir-Iouco. 0 sentido e sempre duplo sentido e exclui a

3. Cf. Hubert Elie. op. cit., E. Maurice de Candillac. Le MouvemenlDoctrinal du IX- au XIV- sieck. Bloud e Gay, 1951.

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eossibilidade de que haja urn born sentido da reJa.;iio. Osacontecimentos nunea sao causa nns dos Qutros, mas entramem rela~5es de quase-causalidade, causalidade real e fantas-

tmagorica que nao cessa de assumir os dois sentidos. Naoe nero ao mesma tempo nem relativamente a mesma coisaque eu sou roais jovem e mais velho, mas e ao mesmatempo que me torno urn e outro e pela mesma rela~ao. Deonde os exemplos inumeniveis disseminados na obra deCarroll, oude vemos que "as gatos comero as morcegos" e"as morcegos comero os gatos", "digo 0 que penso" e"penso 0 que digo", "arna 0 que me dao" e "dao-me 0

que en ama", "respiro quando durma" e "durma quandorespiro" - tern urn s6 e mesma sentido. Ate no exemplofinal de Silvia e Bruno, em que a joia vermelha que traz es­crita a proposi~ao "Todo mundo amara Silvia" e a joia azulque traz a proposi9aO "Silvia amara todo mundo" sao osdois lados da meSma joia que nao podemos preferir senaoa sl mesmo segundo a lei do devir (to choose a thing fromitself) .

Finalmente, a modalidade: como a possibilidade, a rea­lidade ou a necessidade do objeto designado afetariam 0

sentido? Pois 0 acontecimento, por conta propria, deve teruma so e mesma modalidade, no futuro e uo passado se­gundo os quais ele divide ao infinito sua presen~a. E se 0 ~,acontecimento e possivel no futuro e real no passa~o, e ~r~- \ciso que seja os dois ao mesmo tempo, pOlS ele entao se dIVI-

. de ai ao mesmo tempo. Isto significa que ele e necessario?Todos se lembram do paradoxa dos futuros contingentes eda importancia de que gozou junto ao estoicismo. Ora, ahipotese da necessidade repousa na aplica~ao do principiode contradi~ao a proposi~ao que enuncia urn futuro. OsEstoicos fazem prodigios, colocados nesta perspectiva, paraescapar a neoessidade e para afirmar 0 "fatal": DaD 0 ne­cessario 4. :E preciso, preferencialmente, sairmos desta pers­pectiva, snjeitos a reencontrar a tese estoica em urn Qutroplano. Pois 0 principio de contradi~ao se refere, de urnlado, a impossibilidade de uma efetua~ao de designa~ao e,de Dutro, ao minimo de uma condi~ao de significa~ao. Masnao cancerne, taIvez, ao sentido: nem possivel, nero real,nem necessario, mas fatal. .. 0 acontecimento subsiste n,a

~proposi93.0 que a exprime e, ao mesma tempo, ady€:m as

. coisas em sua supefficle, no exterior do ser: e e ;8to, comoveremos, "f,ital". E proprio tambem do acontecimento serdito como futuro pela proposi~ao, mas nao e menos proprioa proposi~ao dizer 0 acontecimento como passado. Preci-samente porque tudo passa pela linguagem e se passa na

4. Sobre 0 paradoxo dos futuros contingentes e s~a importancia no 'pen­samento est6ico,. ct. ° estudo de P. M. Schuhl, Le Dom~nateur et les pos$lbles.P.U.F., 1960.

l linguagem, uma das tecnicas mais gerais de Car~oll e a qu.e~consiste na apresenta~ao duas vezes do acontec~mento: pn­meiro na proposi~ao em que subsiste e, em segUlda, no esta­do de coisas ao qual, na superffcie, .ele a~vem. U.rn: vez naestrofe de urna can~ao que 0 relaClOna a proposI~ao, outrano efeito de superficie que 0 relaciona aos seres, as coisas eestados de coisas (por exemplo, a batal~a ,de Tweedledu.rn .ede Tweedledee ou a do lean e a do umcormo; e em SilViae Bruno, onde Carroll pede ao leitor para adivin!'ar se cons­truiu as estrofes da can~ao do jardineiro a partIr dos acon­tecimentos ou os acontecimentos a partir das estrofes). Massera que devemos mesmo dizer duas veze~, poi~ e sempre aomesmo tempo, pois sao as duas ~aces simulta~eas d;,.u~amesma superficie da qual 0 intenor e 0 extenor, a mSIS­tencia" e 0 "extra-ser", 0 passado e 0 futuro, acham-se emcontinuidade sempre reversivel? .

Como poderiamos resumir estes paradoxo~ da. neutrah­dade, os quais mastram, sem ex~e?ao, 0 se.nildo 1J:a~eta~opelos modos da proposi~ao? 0 filosofo AVlcen: dlstm.gUlatres estados da essencia: universal com rela~ao ao mte­lecto que a pensa em geral; singular com rela~ao as coisasparticulares em que se encarna. Ma~ nenh~m, destes d?lSestados e a essencia em si mesma: Ammal nao e nada alemde animal, animal non est nl,,; animal tantum,. indiferentetanto ao universal como ao singular, tanto ao particular comoao geraIS. 0 primeiro estado da essencia e a e.ssencia co.mosignificada pela proposi~ao, na ordem do CO;,celtO ~ d~s Im­plica~5es de conceito. 0 segundo estado e a e~sencla en­quanta designada pela proposi~ao n;,s cois~s r:>artlCulares e':lque se empenha. Mas 0 terceiro e a essenCla como sentl­do a essencia como expressa: sempre nesta secura, anzmalta~tum, esta esterilidade ou esta neutralidade esplendidas.Indiferente ao universal e ao singular, ao geral e ao par­ticular, ao pessoal e ao coletivo, mas tambem a afirma~ao ea nega~ao etc. Em suma: indiferente a todos os opo~t~s.

Pois todos estes opostos sao somente modos da proposwaoconsiderada nas suas rela~5es de designa~ao e de significa­~ao e nao caracteristicas do sentido que ela exprime. Sera,pois, que 0 estatuto do acontecimento puro e do futu,,: 5ueo acompanha nao e 0 de ultrapassar todas .as .Oposl~oes:

nem privado, nem publico, nem coletlvo, nem mdlVldual ... ,tanto mais terrivel e poderoso nesta neutralidade, uma vezq~ e tudo ao mesmo tempo?l1J Paradoxo do a~surdo ou dos objetos Impo~s~vels. Deste

paradoxa decorre amda urn outro: as proposlcoes que de­signam objetos contraditorios tern urn sentido. Sua deslgna-

5. Cf. os comentarios de Etienne Gilson. l'};;tre et l'essence, ed. Vrin, 1948.pp. 120-123.

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9iio, entretanto, niio pode em caso algum ser efetuada; e elasnao tem nenhuma significa9iio, a qual definiria 0 genero depossibilidade de urna tal efetua9iio. Bias siio sem siguifi­ca9iiO, isto 00, absurdas. Nem por isso deixam de ter umsentido e as duas n090es de absurdo e de niio-senso niiodevem ser confundidas. E que os objetos impossiveis ­quadrado redondo, materia inextensa, perpetuum mobile,montanha sem vale etc. - sao objetos "sem patria", noexterior do ser, mas que tern urna posi9iio precisa e distintano exterior: eles sao "extra-ser", puros acontecimentos ideaisinefetuaveis em um estado de coisas. Devemos chamar esteparadoxo de paradoxo de Meinong, que soube lirar deleos mais belos e mais brilhantes efeitos. Se distinguimosduas especies de ser, 0 ser do real como materia das desig­na90es e 0 ser do possivel como forma das significa90es,devemos ainda acrescentar este extra-ser que define urnminimo comurn ao real, ao possivel e ao impossivel. POiS'o principio de contradi9iio se aplica ao real e ao possivel,mas nao ao impossivel: os impossiveis saO extra-existentes,reduzidos a este minimo e, enquanto tais, insistem na pro­posi9iio.

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Sexta Serie:SobreaColocacao em Series. .

o paradoxo de que todos os outros derlvam 00 0 daregressao indefinida. Ora, a regressao tem necessariamentea forma serial: cada nome desiguador tern um sentidoque deve ser desiguado por Um outro nome, n, ~ n2 ~ n.~ 04 ... Se consideramos somente a sucessao dos nomes, aserie opera uma sintese do homogeneo, cada nome distin­gue-se do precedente apenas pela sua posi9iio, seu grau auseu tipo: de acordo com a teoria dos "tipos", com efeito,cada nome que desigua 0 sentido de um precedente 00 de umgrau superior a este nome e ao que ele desigua. Mas se con­sideramos DaD mais a simples sucessao dos nomes, mas 0

que alternanesta sucessiio, vemosqueeadanome 00 tomadoprTIiielfo na designa9iio queopera e, -eDl segtIjd,,':ilo sentiog.queexprime, uma vez que 00- estesentido que serve de desig­nado ao outro nome: a vantagem da apresenta9iio de LewisCarroll era, precisamente, a de fazer aparecer esta diferen9ade natureza. Desta vez, trata-se de uma sintese do hetero­geneo; ou antes, $A forma serial se realiza necessariamente nasimultane/dade de duGS series pelo menos. Toda s~rie Unica,cujos termos homogeneos se distinguem somente pelo tipoou pelo grau, subsume necessariamente duas series hetero­geneas, cada serle constituida por termos de mesmo tipoou grau, mas que diferem em natureza dos da outra serie(eIes podem tamMm, como 00 6bvio, diferir em grau). ~forma serial 00, pois, essencialmente multisseriaI. Ja 00 assiem matematica, onde uma serie construida na vizinhan9a dum ponto niio tem interesse a niio ser em fun9ao de urnaoutra serle, construida em torno de outro ponto e que con­verge ou diverge da primeira. Alice 00 a hist6ria de urnaregressiio oral; mas "regressao" deve ser compreendido pri-

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meiro em urn sentido logico, 0 da sfntese dos Domes; e aforma de homogeneidade desta sintese subsume duas seriesheterogeneas da oralidade, comer-falar, coisas consumiveis­-sentidos exprimiveis. E, assim, a forma serial que nosremete aos paradoxos da dualidade que descreveramos hipouco enos forga a retoma-Ios a partir deste novo pontode vista.

Com deito, as duas series heterogeneas podem ser de­terminadas de maneiras diversas. Podemos considerar umaserie de acontecimentos e uma serie de coisas em que estesaeontecimentos se efetuam ou nao; ou entao, uma serie deproposigoes designadoras e uma serie de coisas designadas;ou entao, uma serie de verbos e uma serie de adjetivos esubstantivos; Ou entao, uma serie de express5es e de senti­dos e uma serie de designagao e de designados. Estas va­ria~5es nao tern nenhuma importancia, ja que representamapenas graus de Iiberdade para a organizagao das series he­terogeneas: .0 a mesma dualidade, como vimos, que passapelo lado d~ fora entre os acontecimentos e os estados decoisas, na superficie entre as proposigoes e os objetos desig­nados e no interior da proposigao entre as expressoes e asdesignagoes. Mas, a que .0 mais importante .0 que podemosconstruir as duas series sob uma forma aparentemente ho­mogenea: podemos entao considerar duas series de coisasau duas series de aconteeimentos; au duas series de propo­sigoes, de designagoes; au duas series de sentidos au de ex­pressoes. Significa isto que a constituigao das series se fazde forma arbitraria?

A lei das duas series simultaneas .0 que nao sao nuncaiguais. Uma representa 0 significante, a outra 0 significado.Em razao de nossa terminologia estes dais termos adquirem,porem, uma acergao particular. Chamamos de "significan­te" todo signo enguanto apresenta em si meSillO urn aspectogualquer do sentid~o; "significado", ao eontrario, ~ gue serv~

de correlativo a este aspecto do sentldo, isto e, Q que sedefine em dualidade reJatlya com este aspecto.jO gue .0 sig­,@ficado naD e, por conseguinte. nunea 0 proprja septjdo. 0'Gue esignificado, numa acep~ao restrita, 6 0 eoneeito; e, emuma acepgao larga, .0 cada coisa que pode ser definida peladistingao que tal ou qual aspecto do sentido mantem comela. Assim, (} significante e primeiramente 0 aconteeimentocomo atributo 16gico ideal de um estado de eoisas e 9 sig­nificado 6 0 estado de coisas com snas quslidades e rela!;6esf~ Em seguida, 0 significante .0 a proposigao em seuconjunto, na medida em que ela comporta dimensoes de de­signagao, de mauifestagao, de significagao no sentido estrito;e a significado .0 0 termo independente que corresponde aestas dimens5es, isto e, 0 conceita, mas tamb6m a caisa

designada ou 0 sujeito manifestado. Finalmente, 0 signifi­cante .0 a unica dimensao da expressao, que possui comefeito a privilegio de nao ser relativa a um termo independen-te, uma vez ~e 0 sentido como expresso nao existe fora \ Ib?a expressao/-! entao 0 significado .0 a designacao a ma- fC-..lllfestagiio ou meSmo a significasao, no sentido estrito, isto.0, a proposisao en uamo 0 sentido au 0 expresso dela sedistingue. Ora, quando se esten e 0 meta 0 sen , conSl­derando-se duas series de aconteeimentos au duas series decoisas ou duas serie de proposigoes au ainda duas series deexpressoes, a homogeneidade nao .0 senao aparente: sempreurna tem um papel de significante e a outra um papel designificado, mesmo que elas troquem estes papeis quandomudamos de ponto de vista.

Jacques Lacan pos em evideneia a existeneia de duasseries em uma narrativa de Edgar Poe. Primeira serie: 0

rei que nao ve a carta comprometedora recebida por suamulher; a rainha, aliviada par ter melhor escondido a cartajustamente par ter deixado a carta em evideneia; a ministroque ve tudo e se apodera da carta. Segunda serie: a polieia,que DaO aeha nada em casa do ministro; 0 ministro que tevea ideia de deixar a carta em evideneia para melhor esconde­-Ia; Dupin que ve tudo e retoma a carta '. E evidente que asdiferengas entre series podem ser mais au menos grandes- muito grandes em alguns autores, muito pequenas emoutros que nao introduzem a nao ser varia<;5es infinitesimais,mas nao menos eficazes. E evidente tambem que a relagaoentre as series, 0 que se refere a signifieante a significada, 0que poe a significada em relagao com a significante, pode serassegurada da maneira mais simples pela continuagao deuma hist6ria, a semelhanga das situagoes, a identidade dospersonagens. Mas nada disto .0 esseneial. 0 esseneial apa­rece, ao contrario, quando as diferengas pequenas ou grandessuperam as semelhangas, quando elas sao primeiras, quando,por conseguinte, duas hist6rias completamente distintas sedesenvolvem simultaneamente, quando as personagens temuma identidade vacilante e maldeterminada.

Podemos citar varios autores que souberam criar tecni­cas seriais de urn formalismo exemplar. Joyce assegura arelagao da serie significante Bloom com a serie significadaUlisses gragas a mUltiplas formas que comportam uma ar­queologia dos modos de narragao, um sistema de correspon­dencia entre numeros, um prodigioso emprego de palavrasesot6rieas, urn metoda de perguntas-respostas, uma instau­ragao de correntes de pensamento, de liuhas de pensamentomUltiplas (0 double thinking de Carroll?). Raymond Rousselfunda a comunicagao numa relagao fonematica ("Ies bandes

1. LACAN, Jacques. £crits. Ed. du Seuil, 1966, "Le Seminaire sur falettre volee".

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bdu vieux pillard", "Ies bandes du vieux billard" = -), e

ppreenche toda diferen9a por urna hist6ria maravilhosa emque a serie significante p volta a se juntar com a serie sig­nificada b: hist6ria tao enigmatica que, neste procedimentoem geral, a serie significada pode permanecer escondida 2.

Robbe-Grillet estabelece suas series de descri90es de esta­dos de coisas, de designa90es rigorosas com pequenas dife­ren9as, fazendo-as girar em torno de temas fixos, mas pr6­prias a se modificarem ease deslocarem em cada serie demaneira imperceptive!. Pierre KIossowski conta com 0 rwmeproprio Roberte, nao para designar uma personagem e ma­nifestar sua identidade, mas ao contrario para exprimir uma"intensidade primeira", para distribuir sua diferen9a e pro­duzir seu desdobramento segundo duas series: a primeira,significante, que remete ao "marido que s6 irnagina suamulher surpreendendo-se a si mesma a se deixar surpreen­der", a segunda, significada, que remete a mulher "Iangan­do-se em iniciativas que devem convence-Ia de sua Iiberda­de, quando nada mais fazem do que confirmar a visao doesposo" 3. Witold Gombrowicz estabelece uma serle signi­ficante de animais enforcados (mas significando 0 que?) euma serie significada de bocas femininas (mas significadasem que?), cada serie desenvolvendo um sistema de signos,Elra por excesso, ora por falta, e comunicando com a outrapor estranhos objetos que interferem e pelas palavras eso­tericas que pronuncia Leon 4.

Ora, tres caracteres permitem precisar a rela9ao e adistribui9ao das series em gera!. Primeiro, os termos decada serie estao em perpetuo deslocamento relativo diantedos da outra (assirn, 0 lugar do ministro nas duas series dePoe) . Ha um desnivel essencial. Este desnivel, este deslo­camento nao e de forma nenhuma um disfarce que viriarecobrir ou esconder a semeIhan9a das series, nelas introdu­zindo varia90es secundarias. Este deslocamento relativo e,ao contrario, a varia9ao primaria sem a qual cada serle naodesdobraria na outra, constituindo-se neste desdobramentoe nao se relacionando a outra a nao ser por esta varia9ao.Ha pois um duplo deslizamento de uma serie sobre a outraou sob a outra, que as constitui ambas em perpetuo desequi­Hbrio uma com rela9ao a outra. Em segundo lugar, estedesequilibrio deve, ele mesmo, ser orientado: 0 fate e queuma das duas series, precisamente a que e determinada como

2. Cf. MICHEL FOUCAULT, Raymond Roussel, Gallimard, 1963, Cap. 2 (cparticularmente sobre as series, p. 78 e s.).

3. KLOSSOWSXI. Pierre. Les lois de l'hospitalite. Gallimard, 1965.Avertissement, p. 7.

4. GOMBROWICZ, Witold. Cosmos. Denoe!, 1966. Sobre tudo 0 queprecedeu, ct. Apendice L

significante, apresenta urn excesso sobre outra; ha sempreurn excesso de significante que se embaralha. Final­mente, 0 ponto mais importante, que assegura 0 desloca­mento relativo das duas series e 0 excesso de urna sobre aoutra, e urna instlincia muito especial e paradoxal que naose deixa reduzir a nenhurn termo das series, a nenhumarela9ao entre estes terrnos. Por exemplo: a carta, segundoo comentario que Lacan faz da narrativa de Edgar Poe.On ainda Lacan comentando 0 casu freudiano do "Homemdos lobos", colocando em evidencia a existencia de seriesno inconsciente - no casu a serie paterna significada e aserie filial significante - e mostrando nos dois 0 papelparticular de urn elemento especial: a divida s. Em Finne­gan's Wake, e tambem urna carta que faz comunicar todas asseries do mundo em um caos-cosmos. Em Robbe-Grillet, asseries de designa9ao sao tanto mais rigorosas e rigorosa­mente descrltivas, quanta mais convergem na expressao deobjetos indeterminados ou sobredeterminados, tais como aborracha, 0 cordaozinho, a mancha do inseto. SegundoKlossowski, 0 nome Roberte exprime uma "intensidade",isto e, urna diferen9a de intensidade, antes de designar oude manifestar "pessoas".

Quais sao os caracteres desta instlincia paradoxal? Elanao para de circular nas duas series. E e mesmo gra9as aisto que assegura a comunica9ao entre elas. :E uma instanciade dupla face, iguaimente presente na serle significante e naserie significada. :E 0 espelho. :E, ao mesmo tempo, pala­vra e coisa, nome e objeto, sentido e designado, expressaoe designa9ao etc. Ela assegura, pois, a convergencia dasduas series que percorre, com a condi9ao, porem, de faze-lasdivergir sem cessar. :E que ela tem como propriedade sersempre deslocada com rela9ao a si mesma. Se os termosde cada serie sao relativamente deslocados, uns com rela,lioaos outros, eporque primeiramente, em si mesmos, elas ternurn lugar absoluto, mas este lugar absoluto se acha sempredeterminado por sua distlincia deste elemento que nao parade se deslocar relativamente a si mesmo nas duas series.Da instancia paradoxal e preciso dizer que nao esta nuneacnde a procuramos e, inversamente, que Dunea a encon­tramos onde esta. Ela falta em seu lugar, diz Lacan 6. Damesma forma, podemos dizer que ela falta a sua pr6priaidentidade, falta a sua pr6pria semeIhan9a, falta a seupr6prio equilibrio e a sua pr6pria origem. Das duasseries que ela anima nao diremos, por conseguinte, queuma seja originaria e outra derivada. Elas podem certa-

5. Cf. 0 texto de Lacan, essencial para um metoda serial, mas que nao eretomado nos ~crits: "Le Mythe individuel du nevrose', C.D.U.

6. £crits, p. 25. 0 paradoxo que descrevemos aqui deve ser chamadoparadoxo de Lacan. Ele da testemunho de urna inspirs!fao-carrolliana freqiien­temente presente em seus escritos,

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mente, ser origimrrias au derivadas uma com rela<;ao aoutra. Podem ser sucessivas. Mas sao estritamente simul­taneas com rela~ao it instil.ncia em que comunicam. Saosimultaneas sem nunea serem iguais, uma vez que a instanciatern duas faces, das quais uma sempre falta it outra. Eproprio desta instancia, pois, estar em exeesso em uma serieque ela constitui como significaute, mas tambem em faltana outra que ela constitui como significada: sem par, desem­parelhada por natureza ou com rela~ao a si. Seu excesso re­mete sempre a sua propria falta e inversamente. De talforma que estas determina~oes sao ainda relativas. Pois 0

que e, em excesso de urn lade, senao urn lugar vazio extre­mamente movel? E 0 que esta em falta do outro lado naoe urn objeto muito movel, ocupante sem lugar, sempre extra­numerario e sempre deslocado?

Na verdade, nao ha elemento mais estranho do queesta coisa de dupla face, de duas "metades" desiguais ouimpares. Como em urn jogo, assiste-se it combina~ao dacasa vazia e do deslocamento perpetuo de uma pe~a. au,antes, como na loja da ovelha: Alice comprova ai a com­plementaridade da "prateleira vazia" e da "coisa brilhanteque se acha sempre acima", do lugar sem ocupante e doocupante sem lugar. "0 mais estrauho (oddest: 0 mais de-"semparelhado) era que cada vez que Alice fixava com osollios uma prateleira qualquer para fazer a conta exata doque nela havia, esta prateleira mostrava-se sempre absoluwtamente vazia, enquanto que as outras ao redor estavam re­pletissimas. Como as coisas esvanecem aqui, disse ela final­mente num tom queixoso, depois de ter passado cerca de urnminuto perseguindo inutilmente uma grande coisa brilhanteque se assemelhava, ora a uma boneca, ora a uma caixae que se achava sempre spb're a prate/eira acima daque/aque e/a o/hava... Vou segui-lll ate it prateleira mais alta.Suponho que ela hesitara em atravessar 0 teto! Mesmo esteplano, porem, malogrou: a coisa passou atraves do teto, taotranqiiilamente quanto possivel, como se disto tivesse langehabito".

"tnlmel ~ene:Das Palavras Esotericas

Lewis CarrolI e 0 explorador, 0 instaurador de urn me­todo serial em literatura. Achamos nele varios processos dedesenvolvimento em series. Em primeiro lugar, duas seriesde acontecimentos com pequenas dijerenras internas, regu­/adas par um estranho objeto: assim em Silvia e Bruno, 0

acidente de urn jovem ciclista se acha deslocado de umaserie para a outra (Cap. 23). E nao M duvida de queestas duas series sao sucessivas uma em rela9ao aoutra, massao simultaneas em rela~ao ao estranho objeto, aqui urncarrilhao com oito ponteiros e corda inversora, que nao andacom 0 tempo, mas ao contrario, 0 tempo e que anda comele. Ele faz voltar os acontecimentos de duas maneiras,seja de forma invertida em urn de.~ir-louco,. seja co~. pe­quenas varia~oes em urn tatum e~t01~o. ? Jovem clchsta,que ca, sobre uma caixa na. pnmelra sene, agora ~a~sa

indene. Mas quando os ponterros reencontram sua posl~ao,

ele jaz de novo ferido sobre 0 carro que 0 leva ao hospItal:como se 0 relogio tivesse sabido conjurar 0 acidente, istoe a efetua~ao temporal do acontecimento, mas nao 0 proprioAcontecimento, 0 resultado, 0 ferimento enquanto verdadeeterna. .. au entao na segunda parte de Silvia e Bruno(Cap. 2) uma cena que reproduz uma outra da primeiraparte, com pequenas diferen~as (0 lugar variavel do velho,determinado pela "bolsa", estraubo objeto que se acha des­locado em rela~ao a si mesmo, uma vez que a heroina paraentrega-Io e for~ada a correr numa velocidade feerica).

Em segundo lugar, dullS, series de acontecimentos comgrandes ditereru;as internas ace/eradas, regu/adas par pro­posiroes au, ao menos, par ruidos, onomatopeias. E a leido espelho, tal como Lewis Carroll a descrevia: "Tudoo que podia ser visto do antigo quarto era ordinario e

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s~m "interesse,_ ~as 0 resto ~ra tao clif,;re~te quanta pos­slvel. As senes sonho-realidade de SlIwa e Bruno saoconstruidas segundo esta lei de divergencia, com os des­dobramentos de personagens de Ulna serie para outra. e seusredobramentos em cada Ulna. No prefacio da segunda parte,Carroll desenha um quadro detalbado dos eSlados humanose feericos, que garantem a correspondencia das dUas seriessegundo cada passagem do livro. As passagens entre series. ~ - ,sua~ :omumca9oes, sao gerahnente asseguradas por uma pro-poSl9ao que com~a em Ulna e acaba na outra por uma ono­matopeia, urn ruido que participa das duas. (Nao com­preendemos por que os melhores comentadores de Carrollespecialmente os franceses, fazem tantas reservas e crftica;levianas a Silvia e Bruno, obra-prima que da testemunho detecnicas inteiramente renovadas em rela9aO a Alice e aoEspelho.)

Em lerce/ro lugar, duas series de proposiroes (ou entaouma se.:ie de pr~~si~6es e uma serie de "consuma90es",ou .entao uma sene de express5es puras e uma serie dedeslgua95e~). com f,!rl~ disparidade, reguladas por uma pa­lavra esolenca. .P~elIo devemos considerar, porem, queas palavras esotencas de Carroll sao de tipos mnito dife­rentes. Urn primeiro tipo contenta-se em contrair os ele­mentos sila~icos de ?~a proposi9aO ou de varias que se

.seguem: asSIIU, em SlIwa e Bruno (Cap. 1), "y're/nee" nolugar. de You~ royal Highness. Esta contra9ao se prop5eeX~aJr 0 sentldo global da proposi9ao para nomea-Ia pormelO de uma s6 silaba, "Impronunciavel monossilabo" comodiz Ca.rroll. ?utros procedimentos sao conhecidos, 'ja emRabelals e SWift: por exemplo, 0 alongamento silabico comsobrecarga de consoantes ou entao _a simples desvocaliza9ao,sendo conservadas somente as consoantes (como se fossemaptas para exprimir 0 sentido, ao passo que as vogais seriamapenas elementos de desigua9ao) etc. I. De qualquer ma­neira, as palavras esotericas deste primeiro tipo formamuma conexao, uma sintese de sucessao referidas a uma soserle.

As palavras esotericas peculiares a Lewis Carroll saode Um outro tipo. Trata-se de uma sfntese de coexisten­cia que se prop5e assegurar a conjun9ao de duas series deproposi95es heterogeneas ou de dimens5es de proposi95es(0 qu~ da no mesmo, ja que podemos sempre construir as~roposl95es de uma serie encarregando-as de encarnar par­ttcularmente uma determinada dimensao). Vimos que 0

grande exemplo era a palavra Snark: circula atraves das duas

:e ·l" p Sobre os procedimentos de Rabelais e Swift cf. a classificacao deml e om nas Oeu01'es de Swift, PIeiade, pp. 9-12. •

series da oralidade, alimentar e semiol6gica ou das duas di­mens5es da proposi9aO, desiguadora e expressiva. Silvia eBruno oferece outros exemplos: 0 Phlizz, fruto sem saborou 0 Azzigoom-Pudding. A variedade destes nomes expli­ca-se facilmente: nenhum e a palavra que circula, mas e,antes, um nome para desigua-Ia ("0 nome pelo qual a pa­lavra e chamada"). A palavra circulante e de uma outranatureza: em principio e a casa vazia, a prateleira vazia, apalavra em branco, como ocorre a Lewis Carroll aconselharos timidos a deixarem em branco certas palavras nas car­tas que escrevem. Esta palavra e tambem "chamada" pornomes que marcam evanescencias e deslocamentos: 0 Snarke invisivel e 0 Phlizz e quase uma onomatopeia daquiloque se desvanece. Ou, entao, e chamado por nomes total­mente indeterminados: aliquid, it, isto, coisa ou neg6cio (cf.o islo na hist6ria do camundongo ou a coisa na loja dada ovelha). Ou, finalmente, ela nao e chamada por ne­nhum nome, mas e nomeada pelo refrao de uma can9aoque circula atraves de suas estrofes e faz com que elas secomuniquem; ou, como na can9ao do jardineiro, por umaconclusao de cada estrofe que faz com que se comuniquemos dois generos de premissas.

Em quarlo lugar, series com forle ramifica,iio, regu­ladas por palavras-valise e conslituidas, quando necessario,por palavras esolericas de urn lipo precedente. Com efeito,as palavras-valise sao elas pr6prias palavras esotericas deurn novo tipo: podemos defini-Ias, em primeiro lugar dizen­do que contraem vadas palavras e envolvem varios sen­tidos ("furiante"= fumante + furioso). Mas tado 0 pro­blema e de saber quando 6 que se tornam necessarias estaspalavras-valise. Pois e possivel sempre encontrar palavras­-valise; quase tadas as palavras esotericas podem ser inter­pretadas assim. Com mnita boa vontade, mas com muitaarbitrariedade tambem. Mas, na v'erdade, uma palavra-va­lise s6 e necessariamente fundada e formada se coincidecom uma fun9ao particular da palavra esoterica que elapretende desiguar. Por exemplo, uma palavra esoterica comuma simples fun9aO de contra9ao sobre uma s6 serie(y'reinee) nao e uma palavra-valise. Por exemplo, ainda, nocelebre Jabberwocky, urn grande numero de palavras dese­nha uma zoologia fantastica, mas nao forma necessariamen­te palavras-valise: assim, os loves (pinceis, lagartixas, saca­-rolhas), os borogoves (passaros-vassouras), os raths (por­cos verdes); ou 0 verbo outgribe (mugir-espirrar-assobiar)2.

2. Henri Parisot e Jacques B. Bronin! deram duas belas traducOes doJabberwocky. A de Parisot e reproduzida no seu Lewis Carroll, ed. Seghers; ade Brunius, com comentarios sobre as palavras nos Cahiers du Sud, 1948, n9

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Por exemplo, finalmente, uma palavra esoterica subsumindoduas series heterogeneas nao e necessariamente uma palavra­-valise: acabamos de ver como esta dupla fun~ao de sub­sun~ao era suficientemente preenchida por palavras comoPhlizz, coisa, isto ...

Ja nestes niveis, no entanto, palavras-valises podemaparecer. Snark e uma palavra-valise que designa urn ani­mal fantastico ou composito: shark + snake, tubarao +serpeute. Nao e uma palavra-valise, a nao ser secundariaau acessoriamente, pais sen teor nao coincide com suafuu~ao como pal~vra esoterica. Par seu teor remete a urnanimal compOsito, enquanto que por sua fun~ao couota duasseries heterogeneas, das quais uma somente se refere a urnanimal, ainda que composito, e a outra diz respeito a urnsentido incorporaI. Nao e, pois, por sen aspecto de "va­lise" que eIa preenche sua fun~ao. Em compensa~ao, Jab­berwock e sem duvida urn animal fantastico, mas e tam­bern uma palavra-valise, cujo teor, desta vez, coincide coma fun~ao. CarrolI sugere, com efeito, que e formada dewocer ou wocor que significa rebento, fmto, e de jabber,que exprime uma discussac voluvel, animada, tagarela. :Epois enquanto palavra-valise que Jabberwock conota duasseries anaIogas it do Snark, a serie da descendencia animalou vegetal que concerne a objetos designaveis e consumiveise a serie da proIifera~ao verbal que concerne a sentidos ex-

•primiveis. Estas duas series podem, entretanto, ser cono­tadas de outra forma e a palavra-valise nao encontra ai 0

fundamento da sua necessidade. A defini~ao da palavra­-valise, segundo a qual ela contrai varias palavras e encerravarios sentidos, nao passa de uma defini~ao nominal.

Comentando a primeira estrofe do Jabberwocky,Humpty Dumpty apresenta como palavras-valise: sUthy"fluctuoso" ,'~ flexivel-untuoso-viscoso); minssy ("detriste"= debil-triste)... Aqui 0 nossc embara~o redobra. Ve­mas como bel, a cada vez, varias palavras e varios sentidoscontraidos; mas estes elementos se organizam facilmente emuma so serie para compor um sentido global. Nao vemOs. 'pOlS, como a palavra-valise se distingue de uma contra~ao

simples ou de uma sintese de sucessao conectiva. Nao h:iduvida de que podemos introduzir uma segunda serie' 0

proprio CarrolI explicava que as possibilidades de interPre­ta~ao eram infinitas. Por exemplo, podemos reduzir 0

Jabberwocky ao esquema da can~ao do jardineiro, com suasduas series de objetos designiiveis (animais consumiveis) e

287. Ambos cit~m. tambem vers5es do Jabberwock1} em linguas divcnias. To­mam?s de empreshmo as terroas de que nos servimos, Ola de Parisot, ora deBrumus. :Oe,,:eremos considerar rnais tarde a transcri,.iio que Antonin Art:mdfez, da pnmelfn estrofe: este texto admiravel coloea problemas que nao saomalS as de CarroH.

de objetos portadores de sentido (seres simbolicos ou fun­cionais do tipo "empregado de banco", "sela", "diligencia"ou mesmo "a~ao de estrada de ferro" como no Snark). :Epossivel entao interpretar 0 fim da primeira estrofe comosignificando, de urn lado, it maneira de Humpty Dumpty:"os porcos verdes (raths) , longe de casa (nome = fromhome) mugiam-espirravam-assobiavam (outgrabe)"; mastambem como significando, de outro lado: "as taxas, oscursos preferenciais (rath = rate + rather) longe de seuponto de partida, estavam fora de a1cance (outgrab)". Destemodo, porem, qualquer interpreta~ao serial pode ser aceitae nao vemos como a palavra-valise se distingue de umasintese conjuntiva de coexistencia ou de uma palavra eso­terica qualquer assegurando a coordena~ao de duas ou maisseries heterogeneas.

A solu~ao e dada por Carroll no prefitcio de A Caraao Snark. "Colocam-me a questao: sob que rei, diga, seuordinario? fale ou morre! Nao sei se 0 rei era William auRichard. Entao responde Rilchiam." Revela-se como a pa­lavra-valise e fundada em uma estrita sintese disjuntiva. E,longe de nos encontrarmos diante de urn caso particular,descobrimos a lei da palavra-valise em geral, com a con­di~ao de por em evidencia a disjun~ao que poderia estarescondida. Assim, no que se refere a "furiante" (fnriosoe fumante): "Se vossos pensamentos se inclinam por poucoque seja do lade de fumante, direis fumante-furioso; se elesse voItam, ainda que com a espessura de urn fio de cabelo,do lado de furioso, direis furioso-fumante; mas se tendeseste dam rarissimo, ou seja, urn espirito perfeitamente equi­Iibrado, direis juriante". A disjungao necessaria nao e, pais,entre fumante e furioso, pois podemos muito bern ser asduas coisas ao mesma tempo, mas entre fumante-e-furioso,de urn lado e, de outro, furioso-e-fumante. Neste sentido,a fun~ao da palavra-valise consiste sempre em ramificar aserie em que se insere. Eis por que ele nunca existe so:ela da sinal a outras palavras-valise que a precedem ou aseguem e que fazem Com que toda serie seja ja ramificadaem principio ainda ramificavel. Michel Butor diz muitobern: "Cada uma destas palavras podera se tomar comourn desvio e iremos de uma a outra por uma muitidao detrajetos; de onde a ideia de urn livro que nao conta somenteuma hist6ria, mas urn mar de hist6rias" 3. Podemos pojsresponder a questao que colocavamos no come~o: quandoa palavra esoterica nao tern somente por fun~ao conotarou coordenar duas series heterogeneas, mas alem disso in­troduzir nelas disjun~6es, entao a palavra-valise e necessa-

3. BUTOR, Michel. Introduction aux fragments de "Finnegans Wake"',Gallimard, 1962. p. 12.

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i

ria ou necessariamente fundada; isto e, a propria palavraesoterica e entao "chamada" ou designada por uma palavra­-valise. A palavra esoterica remete em geral, ao mesmotempo, 11 casa vazia e ao ocupante sem lugar. Mas deve­mos distingnir tres especies de palavras es~ricas em Car­roll: as contraentes, que operam uma sfntese de sucessaosobre uma so serie e recaem sobre os elementos siliibicos deuma proposi,ao ou de uma seqUencia de proposi,oes paradaf extrair 0 sentido composto ("conexao"); as circulantes,que operam uma sfntese de coexistencia e de coordena,aoentre duas series heterogeneas e que recaem diretamente,de vez, sobre 0 sentido respectivo destas series ("conjun­,ao"); as disjuntivas ou palavras-valise, que operam umaramifica,ao infinita das series coexistentes e recaem, ao mes­mo tempo, sobre as palavras e os sentidos, os elementossillibicos e semiologicos ("disjun,ao"). E a fun,ao ramifi­cante ou a sfntese disjuntiva que da a defini,ao real dapalavra-valise.

Oitava Serie:Da Estrutura

Levi-Strauss indica urn paradoxo anaIogo ao de Lacansob a forma de uma antinomia: dadas duas series, umasignificante e outra significada, urna apresenta urn excessoe a outra uma falta, pelos quais se relacionam uma a outraem eterno desequilfbrio, em perpetuo deslocamento. Comodiz 0 heroi de Cosmos: signos significantes, sempre exis­tern em demasia. E que 0 significante primordial e daordem da linguagem; ora, seja qual for a maneira segnndoa qual e adquirida a linguagem, os elementos da lingua­gem sao dados todos em conjunto, de uma so vez, ja quenao existem independentemente de suas rela,oes diferenciaispossfveis. 0 significado em geral, porem, e da ordem doconhecido; ora, 0 conhecido acha-se submetido 11 lei de urnmovimento progressive que vai por parte, partes extrapartes.E sejam quais forem as totaliza,5es operadas pelo conhe­cimento, elas permanecem assintoticas 11 totalidade virtualda lingua ou da linguagem. A serie significante organizaurna totalidade preliminar, enquanto que a significada orde­na totalidades produzidas. "0 Universo siguificou bern an­tes de termos come,ado a saber 0 que ele significava...o homem dispoe desde sua origem de uma integralidade designificante que mnito 0 embara,a quando se trata de atri­bnir urn significado, dado como tal sem ser, no entanto,conhecido. Ha sempre urna inadequa,ao entre os dois" I.

Este paradoxo poderia ser chamado de paradoxo deRobinson, pois, e evidente que Robinson em sua ilha de­serta nao pode constrnir· urn ,:m!Upg() da sociedade a naoser que de a si mesmo, de uina"sovez;'iodas as regras e

1. LEVI~STRAUSS. C. Introdu~ao __ a SociOlogie· et· Anthropologie de _Marcel

M,u". P.U.F., 195mBLIOTica SnCfUnL DE tttSCllS-.:\

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leis que se implicam reciprocamente, mesmo quando aindanao possuem objetos. A conquista da natureza, ao con­trario, e progressiva, parcial, de parte a parte. Uma socie­dade qualquer tern todas as regras ao mesmo tempo: juri­dicas, religiosas, politicas, economicas, do amor e do tra­balho, do parentesco e do casamento da servidao e daliberdade, da vida e da morte, enquant~ que a conquista danatureza em que ela se empenha e sem a qual nao seriasociedade se faz progressivamente, de uma para outra fontede energia, de objeto em objeto. Eis par que a lei pesacom todo 0 seu peso antes mesmo que saibamos qual e 0

seu objeto e em que se possa jamais sahe-Io exatamente.E este desequilibrio que toma as revolu,aes possiveis; naoque as revolu,6es sejam determinadas pelo progresso tec­nico, mas elas se tornam possiveis por este abismo entre asduas series, que exige reorganiza,6es da totalidade econo­mica e politica em fun,ao dos avan,os do progresso tec­nico. Ha, por conseguinte, dois erros. 0 mesmo, na rea­lidade: 0 do reformismo ou da tecnocracia, que pretendepromover ou impor organiza,6es parciais das reia,6es so­ciais em fun,ao do ritmo das aquisi,6es tecnicas; 0 do tota­litarismo, que pretende constituir urna totaliza,ao do signi­fidvel e do conhecido em fun,ao do ritmo da totalidadesocial existente em tal momento. E por isso que a tecno­crata e 0 amigo natural do ditador, computadores e ditadura.o revolucionario, porem, vive na distancia que separa 0

progresso tecnico e a totalidade social, ai inscrevendo seusonho de revolu,ao permanente. Ora, este soubo e ele pr6­prio a,ao, realidade, amea,a efetiva sobre toda a ordemestabelecida e toma possivel aquilo com que ele souba.

Voltemos ao paradoxo de Levi-Strauss: dadas duas se­ries, significante e significada, ba urn excesso natural daserie significante, uma carencia natural da serie significada.Ha necessariamente "urn significante flutuante, que e a ser­vidao de todo pensamento finito, mas tambem a cau,ao detoda arte, toda poesia, toda inven,ao mitica e estetica" ­acrescentemos: toda revolu,ao. Ha, alem disso, de outrolado, uma especie de significado flutuado, dado pelo signi­ficante "sem sef, par isso, conhecido", sem ser, por isso,fixado ou realizado. Uvi-Strauss prop6e que se interpre­tern assim palavras como treeo, "negocio", alguma eoisa,aliquid, mas tambem 0 celebre mana (ou tambem 0 isto).Urn valor "em si meSilla vazio de sentido e, pois, suseetfvelde receber qualquer sentido, cuja llilica fun,ao e de pre­encher uma distancia entre 0 signifieant,e e 0 significado","urn valor simb6lleo zero, isto e, urn signo mareando a ne­cessidade de um conteudo simb6lico suplementar aquele deque ja se acba carregado 0 significado, mas podendo ser nrn

valor qualquer com a condi,ao de que ainda fa,a parte dareserva disponiveI. .. " E preciso compreender, ao mesmotempo, que as duas series estao marcadas uma por excessoou,ra por falta e que as duas determina,6es se trocam semnunea se equilibrar. Pois 0 que esta em exeesso na seriesignificante e literalmente uma casa vazia, urn lugar semocupante, que se desloca sempre; e 0 que esta em falta naserie significada e urn dado supranurnerario e nao colocado,nao conhecido, ocupante sem lugar e sempre deslocado. Ea mesrna coisa sob duas faces, nas duas faces impares pelasquais as series se comunicam sem perder sua diferen,a. Ea aventura que acontece na loja da ovelha ou a hist6riacontada pela palavra esoterica.

'Podemos, talvez, determinar certas condi,6es minimasde uma estrutura em geral: 19 ) Sao necessarias, pelo menos,duas series heterogeneas, das quais uma sera determinadacomo "significante" e a autra como "significada" (nuncauma unica serie basta para formar urna estrutura). 29)Cada uma destas series e constituida par termos que naoexistem a nao ser pelas rela,6es que mantem uns com asoutros. A estas rela,6es, au antes, aos valores destas re­la90es, correspondem acontecimentos muito particulares, istoe, singularidades designaveis na estrutura: exatamente comono caleulo diferencial, onde reparti,6es de pontos singularescorrespondem aos valores das rela,6es diferenciais 2. Porexemplo, as rela,6es diferenciais entre fonemas designamsingularidades em uma lingua, na "vizinhan,a" das quaisse constituem as sonoridades e significa,aes caracteristicasda lingna. Mais ainda, observa-se que singularidades ati­nentes a uma serie determinam de uma maneira complexa astermos da outra serie. Urna estrutura comporta em todocaso duas distribui,6es de pontos singulares correspondendoa series de base. Eis par que e inexato opor a estruturae 0 acontecimento: a estrutura comporta urn registro deaconte,cimentos ideais, isto e, toda uma historia que The einterior (por exemplo, se as series comportam "persona­gens", uma hist6ria reune todos as pontos singulares quecorrespondem as posi,6es relativas dos personagens entreeles nas duas series). 39) As duas series beterogeneas con­vergem para urn elemento paradoxal, que e como 0 seu"diferenciante". Ele e 0 principio de emissao das singula­ridades. Este elemento nao pertence a nenhuma serie, ouantes, pertence a ambas ao mesmo tempo e nao para de

2. A aproxima\fao com 0 clilculo diferencial pode parecer arbitrliria eultrapassada. Mas 0 que esta uItrapassada e somente a interpreta!tao infinitistado caIeulo. )a no fim do seculo XIX Weierstrass di uma intexpreta!tao finita,ordinal e estcitica, muito pr6:rima de um estruturalismo matemAtico. E 0 temadas singularidades continua sendo uma pe~a essencial da teoda das equa\foesdiferenciais. 0 melbor estudo sobre a hist6ria do calculo diferencial e suainterpreta('lio estrutural modema e a de C. B. Boyer, The HistOf'y of the Cal.culus and Its Conceptual Development. Dover, N. York, 1959.

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circular atraves delas. Ele tern tambem como propriedadeo fato de estar sempre deslocado com rela~ao a si mesmo,de "estar fora do seu proprio lugar", de sua propria iden­tidade, de sua propria semelhan~a, de seu proprio equili­brio. Ele aparece em uma serie como urn excesso, mascom a condi~ao de aparecer ao mesmo tempo na outra comouma falta. Mas se e excesso em uma e a titulo de casavazia; e se e falta na outra e a titulo de peao supranume­nirio ou de ocupante sem casa. Ele e ao mesmo tempopalavra e objeto: palavra esoterica, objeto exoterico.

Ele tern por fun~ao: articular as duas series uma acutra, refleti-Ias uma na autra, faze-las comunicar, coexistire ramificar; reunir as singularidades correspondendo as duasseries em uma "hist6ria embaralhada", assegurar a passa­gem de uma reparti~ao de singularidades a outra, em suma,operar a redistribui~ao dos pontos singulares; determinarcomo siguificante a serie em que aparece como excesso,como siguificada aquela em que aparece correlativamentecomo falta e, sobretudo, assegurar a doa~ao do sentida nasduas series, siguificante e siguificada. Pois 0 sentido naose confunde com a significa~ao mesma, mas ele e 0 quese atribui de maneira a determinar 0 siguificante como tale 0 significado como tal. Concluimos que nao ha estrutu­ra sem series, sem rela~oes entre termos de cada serie, sempontos singulares correspondendo a estas rela~Oes; mas, ~o-

. bretudo, nao ha estrutura sem casa vazia, que faz tudofuncionar.

Nona :serle:Do Problematico

o que e urn acontecimento ideal? ~ uma singularida­de. Ou melhor: e urn conjunto de singularidades, de pon­tos singulares que caracterizam uma curva matematica, 11mestado de coisas fisico, uma pessoa psicologica e moral. Saopontos de retrocesso, de inflexao etc.; desfiladeiros, nos,nucleos, centros; pontos de fusao, de condensa~ao, de ebuli­~ao etc.; pontos de choro e de alegria, de doen~a e desaude, de esperan~a e de angUstia, pontos sensiveis, comose diz. Tais singularidades nao se confundem, entretanto,nem com a personalidade daquele que se exprime em urndiscurso, nem com a individualidade de urn estado de coisasdesiguado por uma proposi~ao, nem com a generalidade oua universalidade de urn conceito siguificado pela figura oua curva. A singularidade faz parte de uma outra dimensao,diferente das dimensoes da desigua~ao, da mauifesta~ao ouda significa~ao. A singularidade e essencialmente pre-indivi­dual, nao-pessoal, aconceitual. Ela e completamente indife­rente ao individual e ao coletivo, ao pessoal e ao impessoal,ao particular e ao geral - e as suas oposi~oes. Ela eneutra. Em compensa~ao, DaO e "ordimiria": 0 ponto sin­gular se opoe ao ordinario '.

Diziamos que um conjunto de singularidades correspon­dia a cada serie de uma estrutura. Inversamente, cada sin­gularidade e fonte de uma serie que se estende em uma di­re~ao determinada ate a vizinhan~a de uma outra singulari­dade. ~ neste sentido que ha nao somente varias series di­vergentes em uma estrutura, mas que cada serie e, ela pro-

1. Precedentemente, 0 sentido como "nentro" parecia, para n6s, opor-seao singular nlio menos do que as outras modalidades. ~ que a singularidadeera de£inida somente em relagao a designaglio e a manifestac;ao, 0 singularnAG era definido senla como individual ou pessoal, nao como ,pontual. Agora,ao contriuio, a singuIaridade faz parte do dominio neutro.

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pria, constitufda por varias subseries convergentes. Se con­sideramos as singularidades que correspondem as duas gran­des series de base, vemos que elas se distinguem nos doiscasos por sua reparti~ao. De uma para a outra, certos pon­tos singulares desaparecem ou se desdobram,oou mudam denatureza e de fun~ao. Ao mesmo tempo em que as duasseries ressoam e se comunicam, passamos de uma para cutrareparti~ao. Isto e, ao mesmO tempo em que as series saopercorridas pela instancia paradoxal, as singularidades sedeslocam, se redistribuem, transfonnam-se urna nas outras,mudarn de conjunto. Se as singularidades sao verdadeirosacontecimentos, elas se comunicam em urn s6 e mesmaAcontecimento que nao cessa de redistribui-Ias e suas trans­forma~oes formam uma his/aria. Peguy viu profundamenteque a hist6ria e 0 aconlecimento eram iuseparaveis de taispontos singulares: "Ha pontos criticos de acontecimentoassim como ha pontos criticos de temperatura, pontos defusao, de congelamento, de ebuli~ao, de condensa~ao; decoagula~ao; de cristaliza~ao. E ha mesmo no acontecimen­to estados de sobrefusao que nao se precipitam, que naose cristalizam, que nao se determinarn a nao ser pela intro­du~ao de urn fragmento de acontecimento futuro" 2. EPeguy soube inventar toda uma linguagem, dentre as maispatol6gicas e as mais esteticas que se possa imaginar, paradizer como uma singularidade se prolonga em uma linha depontos ordinarios, mas tarnbem se retoma em uma outra sin­gularidade, se redistribui em urn outro conjunto (as duasrepeti~oes, a ma e a boa, a que encadeia e a que salva).

Os acontecimentos sao ideais. Novalis chega a dizerque ha dnas ordens de acontecimentos: uns ideais, os outrosreais e imperfeitos, por exemplo 0 protestantismo ideal e 0

luteranismo real'. Mas a distin~ao nao e entre duas espe­cies de acontecimentos, mas entre 0 acontecimento, por na­tureza ideal e sua efetua~ao espa~o-temporal em um estadode coisas. Entre 0 acontecimento e 0 acidente. Os aconte­cimentos sao singularidades ideais que comuuicam em ums6 e mesmo Acontecimento; assim possuem uma verdadeeterna e seu tempo nao e nunca 0 presente que os efetua eos faz existir, mas 0 Aion i1imitado, 0 Infinitivo em quecles subsistem e insistem. Os acontecimentos sao as unicasidealidades; e reverter 0 platonismo e, em primeiro lugar,destituir as essencias para substituf-Ias pelos acontecimen­tos como jatos de singularidades. Uma dupla luta tem porobjeto impedir toda confusao dogmatica do acontecimentocom a essencia, mas tambem toda confnsao empirista doacontecimento com 0 acidente.

2. PEGUY. Clio. Gallimard. p. 269.3. NavALIS. L'Encyclopedie. Trad. Maurice de Gandillac, ed. de Minuit.

p. 396.

o modo do acontecimento e 0 problemiitico. Nao sedeve dizer que ha acontecimentos problematicos, mas queos acontecimentos concernem exelusivamente aos problemase definem suas condi~oes. Em belas paginas em que opoeuma conce~ao teorematica e urna concep~ao problematicada geometria, 0 fil6sofo neoplatonico Proelus define 0 pro­blema pelos acontecimentos que vem afetar uma materia 16­gica (sec~oes, abla~oes, adjun~oes etc.), enquanto 0 teoremaconcerne as propriedades que se deixam deduzir de umaessencia 4. 0 acontecimento por si mesmo e problematicoe problematizante. Um problema, com efeito, nao e deter­minado senao pelos pontos singulares que exprimem suascondi~oes. Nao dizemos que, por isto, 0 problema e re­solvido: aO contrario, ele e determinado como problema.Por exemplo, na teoria das equa~6es diferencials, a existen­cia e a reparti~ao das singularidades sao relativas a um cam­po problematico definido pela equa~ao como tal. Quantoa soIu~ao, ela so aparece com as curvas integrais e a formaque elas tomam na vizinhan~a das singularidades no cam­po dos vetores. Parece, pois, que um problema tem semp"ea solu~ao que mer,ece segundo as condi~oes que 0 determi­narn enquanto problema; e, com efeito, as singularidades pre­sidem a genese das solu~oes da equa~ao. Nem por isso deixade ser verdade, como dizia Lautman, que a inst1mcia-pro­blema e a instancia-solu~ao diferem em natureza 5 - comOo acontecimento ideal e sua efetua~ao espa~o-temporal. Deve­mos, assim, romper com um longo Mbito de pensarnentoque nos faz considerar 0 problemiitico como uma categoriasubjetiva de nosSO conhecimento, um momento empfrico quemarcaria somente a impedei\=ao de Dassa conduta, a tristenecessidade ,em que nos encontramos de nao saber de ante­mao e que desapareceria com 0 saber adquirido. 0 proble­ma pode mnito bem ser recoberto pelas solu~oes, nem parisso ele deixa de subsistir na Ideia que 0 refere as suascondi~6es e organiza a genese das pr6prias solu~es. Semesta Ideia as solu~oes nao teriam sentido. 0 problematicoe ao mesmo tempo uma categoria objetiva do conhecimentoe urn genero de ser perfeitamente objetivo. "Problematico"qualifica precisamente as objetividades ideais. Kant foi, semduvida, 0 primoiro a fazer do problematico nao uma incer­teza passageira, mas 0 objeto pr6prio da Ideia e Com isto

4. PR,OCLUS. Commentaires sur Ie premier livTe des £lements d'Euclide.Trad. Ver Eecke, oeselee de Brower. p. 68 e 55.

5. Cf. Albert Lautman, Essai SW' lea notions de &trtlctut'e et d'erlstenceen mathbnatiques, Hermann, 1938, t. II. pp. 148-149; e Nouvelles recherchessur la structure dialectique des mathbnatiques, Hermann, 1939, pp. 13-15. Esabre 0 papeI das singularidades, Basai, II, PP. 138-139; e Le Probleme duTemps, Hermann, 1946, pp. 41-42. peguy. a sua maneira, viu a reIa~lJ.o essen­cia! do acontecimento au da singularidade com as categorias de problema esoluCao; cf. op. cit., p. 269: "e urn problema de que nlio se via 0 fim, umproblema Sem saida..... etc.

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tambem urn horizonte indispensavel a tudo 0 que aconteceou aparece.

Pode-se entao conceber de uma nova maneira a rela­9ao entre as matematicas e 0 homem: nao se trata de quan­tificar nem de mOOir as propriedades humanas, mjS, de urnlado, de problematizar os acontecimentos humanos e, deoutro, de desenvolver como acontecimentos humanos as con­di90es de urn problema. As matematicas recreativas comque sonhava Carroll apresentam este duplo aspecto. 0 pri­meiro aparece justamente em urn texto intitulado "Uma his­t6ria embrulhada": esta hist6ria e formada por n6s que en­volvem as singularidades correspondendo cada vez a urnproblema; personagens encamam estas singularidades e sedeslocam e se redistribuem de urn problema a outro, sujei­tos a se reencontrar no d6cimo no, tornados na rede desuas relac;5es de parentesco. 0 isto do camundongo, queremetia ou a objetos consumlveis ou a sentidos exprimiveise agora substitufdo pelos data, que remetem ora a dons ali­mentares, ora a dados ou condi90es de problemas. A se­gunda tentativa, mais profunda, aparece em The dynamicsof a parti-de: "Podfamos ver duas linhas seguir seu cami­nho mon6tono atraves de uma superffcie plana. A maisvelha das duas, gra9as a uma longa pratica, adquirira a arte,tao penosa para os lugares jovens e impuisivos, de se alon­gar equitativamente nos limites de seus pontos extremos;

. mas a mais jovem, em sua impetuosidade de m09a, tendiasempre a divergir ease tornar uma hiperbole ou uma dessascurvas romanticas ilimitadas... 0 destino e a superficieintermediaria haviam-nas, ate aqui, mantido separadas, masisto nao duraria mais mnito tempo; uma linha as entrecor­tara de tal maneira que os dois angulos interiores juntosfossem menores do que dois angulos retos ... "

Niio se deve ver neste texto - assim como nao se devever em urn celebre texto de Silvia e Bruno: "Era urna vezuma coincidencia que tinha saido para dar urn passeio comurn pequeno acidente ... " - uma simples alegoria, nem umamaneira barata de antropomorfizar as matematicas. QuandoCarroll fala de urn paralelograma que suspira por angulosexteriores e que geme por nao poder se inscrever em urncirculo ou de uma curva que sofre com as "secc;5es e abla­90es" a que e submetida, precisamos nos lembrar antes deque as pessoas psicol6gicas e morais sao tambem feitas desingularidades pre-pessoais e que seus sentimentos, seupathos se constituem na vizinhan9a destas singularidades, pon­tos sensiveis de crise, de retrocesso, de ebuli9ao, n6s e nu­cleos (por exemplo, 0 que Carroll chama de plain anger ouright anger). As duas linhas de Carroll evocam as duas se­ries ressoantes; e suas aspira<;oes evocam as reparti90es de

..

singularidade que passam urnas nas outras e se redistribuemno curso de uma hist6ria embrulhada. Como diz LewisCarroll, "superficie plana e 0 carater de urn discurso emque, dados dois pontos quaisquer, aquele que fala e deter­minado a se estender falsamente na dire9ao dos dois pon­tos" 6. :e. em The dynamics of a parti-de que Carroll esb09aurna teoria das series e dos graus ou potencias das particulasordenadas nestas series (LSD, a function of great value . .. ).

Nao se pode falar dos acontecimentos a nao ser nos pro­blemas cujas condi90es determinam. Nao se pode falar dosacontecimentos senao como de singularidades que se desen­rolam em urn campo problematico e na vizinhan9a das quaisse organizam as solU90es. :e. por isso que todo urn metodode problemas e de solU90es percorre a obra de Carroll, cons­tituindo a linguagem cientifica dos acontecimentos e de suasefetua90es. Mas, se as reparti90es de singularidades quecorrespondem a cada serie formam campos de problemas,como caracterizaremos 0 elemento paradoxal que percorre asseries, faz com que elas ressoem, se comuniquem e se ra­mifiquem e que comanda a todas as retomadas e transfor­ma90es, a todas as redistribui90eS? Este elemento deve elepr6prio ser defiuido como 0 lugar de urna pergunta. 0problema e determinado pelos pontos singulares que corres­podem as series, mas a pergunta, por urn ponto aleat6rioque corresponde a casa vazia ou ao elemento m6ve!. Asmetamorfoses ou redistribui90es de singularidades formamuma hist6ria; cada combina9ao, cada reparti9ao e urn acon­tecimento; mas a instancia paradoxal e 0 Acontecimentono qual todos os acontecimentos se comuuicam e se distri­buem, 0 Duico acontecimento de que todos os outros naopassam de fragmentos e farrapos. Joyce sabera dar todo 0seu sentido a urn metodo de perguntas-respostas que vernduplicar 0 dos problemas, Inquisit6ria que funda a Proble­matica. A pergunta se desenvolve em problemas e os pro­blemas se envolvem em urna pergunta fundamental. E assimcomo as solU90es nao suprimem os problemas, mas ai en­contram, ao contrario, as condi90es subsistentes sem as quaiselas nao teriam nenhum sentido, as respostas nao suprimemde forma nenhurna a pergunta, nem a satisfazem e ela per­siste atraves de todas as respostas. Ha, pois, urn aspectopelo qual os problemas permanecem sem solu9ao e a per­gunta sem resposta: e neste sentido que problema e per­gunta desiguam por si mesmos objetidades ideais e tern urnser pr6prio, minimum de ser (cf. as "adivinha90es" semresposta de Alice). Ja vimos como as palavras esotericas!hes estavam essencialmente ligadas. De urn lado, as pala-

6. Por "estender·se em fa1so" (s'etendre en faux), procuramos traduziros dois sentidos do verba to lie.

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vras-valise sao inseparaveis de urn problema que se desen­rola em series ramificadas e que nao exprime absolutamen­te uma incerteza subjetiva, mas, aD contrario, 0 equilibriaobjetivo de urn espirito situado diante do horizonte daquiloque aoontece ou aparece: sera Richard ou William? seraque ele e fumante-furioso ou furioso-fumante? com distri­bui,ao de singularidades a cada vez. De outro lado, as pa­lavras em branco, ou antes, as palavras que designam a pa­lavra em branco, sao inseparaveis de uma pergunta que seenvolve e se desloca atraves das series; a este elementoque nunca se encontra em seu proprio lugar, foge it suapropria seme!han,a, it sua propria identidade, cabe ser objetode uma pergunta fundamental que se desloca com ele: que eo ~nark? e 0 PhIizz? E 0 Isto? Refrao de uma can,ao,cUJas estrofes formariam series atraves das quais ele circula,palavra magica tal que todos os nomes pelos quais ela e"chamada" DaD preenchem 0 seu branco, a instancia para­doxal tern precisamente este ser singular, esta "objetidade"que corresponde it pergunta como tal e !he corresponde semjamais a ela responder.

Decima ~ene:

Do JogoJdeal

Nao somente Lewis Carroll inventa jogos ou transfor­rna as regras de jogos conhecidos (tenis, croque), mas eleinvoca uma especie de jogo ideal, cujo sentido e fun,ao edificil perceber it primeira vista: e 0 caso, em Alice, dacorrida it Caucus, na qual damos a partida quando quiser­mos e na qual paramos de correr a nosso bel-prazer; e dojogo de croque no qual as bolas sao ouri,os, os tacos saoflamingos rosados, os arcos, por fim, soldados que nao pa­ram de se deslocar do come,o ao fim da partida. Estesjogos tern de comum 0 seguinte: saO muito movimentados,parecem nao ter nenhuma regra precisa e nao comportarnem vencedor nem vencido. Nao "conhecemos" tais jogos,que parecem contradizer-se a si mesmos.

Nossos jogos conhecidos respondem a urn certo nu­mero de principios, que podem ser 0 objeto de uma teoria.Esta teoria convem tanto aos jogos de destreza quanto aosde azar; so difere a natureza das regras. 19) ~ preciso, dequalquer maneira, que urn conjunto de regras preexista aoexercicio do jogo e, se jogamos, e necessario que elas adqui­ram urn valor categorico; 29) estas regras determinam hi­poteses que dividem 0 acaso, hipoteses de perda ou de ga­nho (0 que vai acontecer se ... ); 39) estas hipoteses orga­nizam 0 exercicio do jogo em uma pluralidade de jogadas,real e numericamente distintas, cada uma operando umadistribui,ao fixa que cui sob este ou aquele caso (mesmoquando temos uma so jogada, esta jogada nao vale senaopela distribui,ao fixa que opera e por sua particularidadenumerica); 49) as conseqiiencias das jogadas se situam naalternativa "vitoria ou derrota". Os caracteres dos jogos OOf­

mais sao, pois, as regras categoricas preexistentes, as hipo-

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teses distribuintes, as distribui<;oes fixas e numericamente dis­tintas, os resultados conseqUentes. Estes jogos sao parciaispor urn duplo titulo: porque nao ocuparn a nao ser umaparte da atividade dos homens e porque, mesmo que oslevemos ao absoluto, retem 0 (J£aso somente em certos pon­tos e abandonam 0 resto ao desenvolvimento mecil.nico dasconseqUencias ou a destreza como arte da causalidade. Epois for<;oso que, sendo mistos neles mesmos, remetam a urnoutro tipo de atividade, 0 trabalho ou a moral, dos quaiseles sao a caricatura ou a contrapartida, mas tambem cujoselementos integram em urna nova ordem. Seja 0 homemque faz a aposta de Pascal, seja Deus que joga 0 xadrezde Leibniz, 0 jogo nao e tomado explicitamente como mo­delo a nao ser porque ele proprio tem modelos implicitosque nao sao jogos: modelo moral do Bem ou do Melbor,modelo economico das causas e dos efeitos, dos meios e dosfins.

Nao basta opor um jogo "maior" ao jogo menor dohomem, nem urn jogo divino a um jogo humano: e precisoimaginar outros principios, aparentemente inaplicaveis, masgra<;as aos quais 0 jogo se toma puro. 19) Nao M regraspreexistentes, cada lance inventa snas regras, carrega consi­go sua propria regra. 29) Longe de dividir 0 acaso em umnlimero de jogadas realmente distintas, 0 conjunto das jo­gadas afirma todo 0 acaso e nao cessa de ramifica-Io emcada jogada. 39) As jogadas nao sao pois, realmente,nurnericamente distintas. Sao qualitativamente distintas, mastodas sao as formas qualitativas de um s6 e mesmo lan<;ar,ontologicamente uno. Cada lance e ele proprio urna serie,mas em urn tempo menor que 0 minimum de tempo conti­nuo pensavel; a este minimo serial corresponde. urna distri­bni<;ao de singularidades 1. Cada lance emite pontos singu­lares, os pontos sobre os dados. Mas 0 conjunto dos lancesesta compreendido no ponto aleatorio, unico lan<;ar que naopara de se deslocar atraves de todas as series, em um tempomaior que 0 maximum de tempo continuo pensavel. Os lan­ces sao sucessivos uns com rela<;ao aos outros, mas simul­t&neos em rela<;ao a este ponto que muda sempre a regra,que coordena e ramifica as series correspondentes, insuflan­do 0 acaso sobre toda a extensao de cada uma delas. 0unico lan,ar e urn caos, de que cada lance e urn fragmento.Cada lance opera uma distribui<;ao de singularidades, cons­tela,ao. Mas, ao inves de repartir um espa,o fechado entreresultados fixos conforme as hipoteses, sao os resultadosmoveis que se repartem no espa<;o aberto do lan<;ar ilnicoe nao repartido: distribuiriio namade e nao sedentaria, emque cada sistema de singularidades comunica e ressoa com

1. Sobre a ideia de um tempo menor que 0 minima de tempo continuo,d. 0 Ap&ndice II.

os outros ao mesmo tempo implicado pelos outros e impli­cando-os' no maior lan<;ar. E 0 jogo dos pro~lemas e dapergunta, nao mais do categorico e do hipotetico.

49) Urn tal jogo sem regras, sem vence?ores ne,:,vencidos, sem responsabilidade, jogo da in~cencm. e COr;I~da a Caucus em que a destreza e 0 ~caso nao ~:us ~ d~s­tinguem, parece nao ter nenhuma realldade. .Alms, nmguemse divertiria com ,ole. Nao e seguramente 0 logo do homemde Pascal, nem do Deus de Leibniz. Quanta trapa<;a. naaposta moralizadora de Pascal, que rna jogada na ~ombma­,ao economica de Leibniz. Com toda a certeza, IStO tudonao e 0 mundo como obra de arte. 0 jogo ideal de quefalamos nao pode ser realizado por urn homem ou por umdeus. Ele so pode ser pensado e, mais ainda, pensado ~o~o.nao-senso. Mas, precisamente: ele e a realidade do propnopensamento. E 0 inconsciente do pens:unento puro. E cadapensamento que forma uma serie e,:, um tempo me!lOr queo minimo de tempo continuo conSClentemente pe~savel.. Ecada pensamento que emite uma distribui<;ao d.e smgulanda­des. Sao todos os pensamentos que comumcam em umLongo pensamento, que faz corresponder ao seu deslocamentotodas as formas ou figuras da distribui,ao nomade, insu­flando por toda parte 0 acaso e ramificando cada pensa­mento, reunindo "em uma vez" 0 "cada vez" para "tadasas vezes". Pais so 0 pensamento pade a/irmar todo 0 a.caso,fazer do acaso um objeto de afirmariio. E, se tentamos Jogareste jogo fora do pensamento, nada acontece e, se tentamosproduzir urn resultado diferente da obra de arte,. nadase produz. E pois 0 jogo reservado ao pensamento e a arte,la onde nao M mais vitorias para aqueles que soubera,:,jogar, ista e, afirmar e ramificar 0 acaso, ao inves de. dl­

vidi-Jo para domina-Io, para apostar, para ganhar. Es..te logoque DaD existe a DaD ser no pensam:nto, e .. que n~o ternoutro resultado alem da obra de arte, e tambem aqrrilo peloque 0 pensamento e a arte sao reais e perturbam a realida­de, a moralidade e a economia do mundo.

Em nossos jogos conhecidos, 0 acaso e fixado em certospontos: nos pontos de encontro entre series causais indepen­dentes, por exemplo, 0 movimento da roleta e da bola !an­,ada. Uma vez realizado 0 encontro, as series confundldasseguem urn mesmo trilho, ao abrigo de qualquer nova inter­ferencia. Se urn jogador se inclinasse bruscamente e asso­prasse com todas as suas for,as, visando precipitar ou c0I!-­trariar 0 curso da bola, seria detido, expulso e 0 lance senaanulado. 0 que e que ele teria feito, porem, alem de rein­suflar urn pouco 0 acaso? E assim que J. L. Bo~ges d.e~creve a loteria em Babilonia: "Se a loteria e uma mtens!fl­ca<;ao do acaso, uma infusao peri6dica de caos no cosmos,

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nao seria conveniente que 0 acaso interviesse em todas asetapas da tiragem e nao em nma so apenas? Nao e eviden­temente absurdo que 0 acaso dite a morte de alguem masque nao estejam sujeitas ao acaso as circunstancias 'dessamorte: a reserva, a publicidade, 0 prazo de uma hora ou urnseculo? .. Na realidade, 0 n6mero de tiragem e infinito.Nenhuma decisiio e final, tod~ se ramificam. Os ignoran­tes supl5em que injinitas tiragens necessitam um tempo in~

finito; basta, na realidade, que 0 tempo seja infinitamentesubdivisivel, como 0 mostra a famosa panibola do Conflitocom a Tartaruga" 2. A pergunta fundamental que nos colo­ca este texto: que tempo e este que nao tern necessidade deser infinito, mas somente "infinitamente subdivisivel"? Estetempo e 0 Aion. Vimos que 0 passado, 0 presente e 0

futuro nao ,eram absolutamente tres partes de urna mesmatemporalidade, mas formavam duas leituras do tempo, cadauma completa e excluindo a outra: de urn lado, 0 presentesempre limitado, que mede a a9aO dos corpos como causase 0 estado de suas misturas em profundidade (Cronos);de outro, 0 passado e 0 futuro essencialmente iIimitados, querecolh~m a s~perficie os acontecimentos incorporais enquan­to efeltos (Aion). A grandeza do pensamento estoico estaem mostrar, ao mesmo tempo, a necessidade das duas lei­turas e ~ua exclusao redproca. Ora diremos que so 0 pre­sente eXlste, que ele reabsorve ou contrai em si 0 passado

. e 0 futuro e, de contra~ao em contra~ao carla vez roais pro­fundas, ganha os limites do Uuiverso inteiro para se tornar11m presente vivo cosmico. Basta entao proceder segundo aordem das descontra90es para que 0 Universo recomece eque todos os seus presentes sejam restituidos: 0 tempo dopresente e pois sempre urn tempo limitado, mas infiuitoporque dclico, animando urn eterno retorno fisico como re­torno do Mesmo, e urna eterna sabedoria moral como sa­bedoria da Causa. Ora, ao contrario, diremos que so 0 pas­sado e 0 futuro subsistem, que eles subdividem ao infiuitocada presente, por menor que ele seja e 0 alongam sobresua linha vazia. A complementaridade do passado e do fu­turo aparece claramente: e que cada presente se divide emp~ssa~~ e. e.m f~~uro, ao Jnfinito..Ou ~elhor, urn tal temponao e mflmto, Ja que nao volta Jamals sobre si, mas e iIi­mitado, porque pura linha reta cujas extremidades nao ces­sam de se distanciar no passado, de se distanciar no futuro.Nao haver:! ai, no Aion, urn labirinto bem diferente do deCronos, ainda mals terrivel e que comanda um outro eternoretorno e uma outra etica (etica dos Efeitos)? Pensemos

2. ~?RGES. J. L. Fictions. Gallimar'd, pp. 89·90 (0 "conflito com a.Tart~uga parece u~ alusao nao somente ao paradoxo de Zenao, mas ao deLCewl,s Carroll que Vlmos precedentemente e que Borses resume em Enquetes

allimard, p. 159). ~

I

ainda nas palavras de Borges: "Conhe90 urn labirinto gregoque e uma linha linica, reta. .. Da proxima vez que vosmatar, prometo-vos este labirinto que se compOe de uma s6linha reta e que e invisivel, incessante" 3.

Em urn caso 0 presente e tudo e 0 passado e 0 futuronao indicam senao a diferen9a relativa entre dois presentes,urn de menor extensao, 0 outro cnja contra~ao recai sobrelima extensao maior. No ontro caso, 0 presente nao enada, puro instante matematico, ser de razao que exprimeo passado e 0 futuro nos quais ele se divide. Em surna:dais tempos, dos quais um niio se compoe seniio de presen·tes encaixados e 0 outro nilo faz mais do que se decomporem passado e futuro alongados. Dois quais urn e sempredefinido, ativo ou passivo e 0 outro, eternamente Infinitive,eternamente neutro. Dos quais urn e dclico, mede 0 movi­mento dos carpos e depende da materia que 0 limita epreenche; e 0 outro e pura linha reta na superffcie, incorpo­ral, ilimitado, forma vazia do tempo, independente de todamateria. Uma das palavras esotericas do Jabberwockycontamina os dois tempos: wabe deve ser compreendida apartir do verba swab ou soak e designa a relva molhada pelachuva que envolve umquadrante solar: e 0 Cronos ffsico eciclico do vivo presente variavel. Mas, em urn outro sen­tido, e a alameda que se estende para frente e para tras,way-be "a long way before, a long way behind": e 0 Aionincorporal que se desemolou, tornou-se autonomo desemba­ra9ando-se de sua materia, fugindo nos dois sentidos ao mes­mo tempo do passado e do futuro, e onde mesmo a chuvae horizontal, segundo a hipotese de Silvia e Bruno. Ora, esteAion em linha reta e forma vazia e 0 tempo dos aconteci­mentos-efeitos. Na medilla mesma em que 0 presente medea efetua~ao temporal do acontecimento, isto e, sua encarna­9aO na profundidade dos corpos agentes, sua incorpora9aoem urn estado de coisas, na mesma medida 0 acontecimentopor si mesmo e na sua impassibilidade, sua impenetrabilida­de, nao tern presente mas recua e avan9a em dois sentidosao mesmo tempo, perpetuo objeto de uma dupla questiio:o que e que vai se passar? 0 que e que acabou de se passar?E 0 angustiante do acontecimento puro esta, justamente, emque ele e algurna coisa que acaba de ocoaer e que vai se

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3. BORGES. Fictiom. pp. 187-188. (No seu Histoire de l'etemite, Bor­ges vai menos longe e nao parece conceber tado labirinto, a nao ser comocircular ou cleUco). Entre os comentadores do pensamento est6ico, VictorGoldschmidt analisou particularmente a coexisiencia destas duas concepl;Oes dotempo: uma, de presentes variaveis; a ontra, de subdivis1l.o ilimitada em passa­do-futuro (Le Systeme stoJcien et l'jdee de temps, Vrin, 1953, pp. 36-40.)Ele mostra tambem nos estOicos a exist~cia de dais metodos e de duas atitudesmorais. Mas a questlio de saher se estas duas atitudes conespondem aos daistempos permanece obscura: nao parece que assim seja. de acordo com 0 co­ment:hio do autor. Com mais forte razao, a questao de dais eternos retornosmuito diferentes, correspondendo aos dois tempos, Dao aparece (pelo menosdiretamente) no pensa.mento est6ico. Deveremos voltar a estes ponto,1.

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passar, ao mesm? tempo, ~unca alguma coisa que se passa.o X de. que sentimos que ,sto acaba de se passar, e 0 objetoda novldade"; e 0 X que sempre vai se passar e 0 objetodo "conto". 0 acontecimento puro e ~onto e novidadejamais atualidade. ];, neste sentido que os acontecimento;sao signas.

Aos Est6icos ocorre dizer que os siguos sao semprepresentes e signos de coisas presentes: -daquele que se en­contra mortalmente ferido, nao podemos dizer que ele foiferido e que morren" mas que ele e tendo sido ferido eque ele e devendo morrer. Este presente nao contradiz 0

Non: ao contrario, e 0 presente como ser de razao, que sesubdivide ao infinito em alguma coisa que acaba de sepassar e alguma coisa que vai se passar, sempre fugindonos dois sentidos ao mesmo tempo. 0 outro presente, 0

presente vivo, se passa e efetiva 0 acontecimento. Mas 0

acontecimento, nem por isso deixa de guardar uma verdadeetema, sobre 0 Aion que 0 divide eternamente em urn pas­sado pr6ximo e urn futuro iminente e que nao cessa desubdividi-Io, repelindo a urn e a outro sem nunca torna-Iosmenos insistentes. 0 acontecimento e que nunca alguemmorre, mas sempre acaba de moner OU vai marrer nopresente vazio do Aion, eternidade. Descrevendo urn a~sas­sinio tal como deve ser reproduzido por mfmica, pura idea­lid-ade, Mallarme diz: "Aqni avangando, af rememorando,no fut~ro, no passad,?, sob. uma aparencia falsa de presente- asslm opera 0 Muno, Jogo que se lirnita a uma alusaoperpetua sem quebrar 0 gelo" 4. Cada acontecimento e 0

~enor tempo, menOr q~e. 0 minimo de tempo continuo pen­~a~el, porque ele se divide em passado pr6ximo e futurolnunente. Mas e tambem 0 tempo mais longo, mais longoque 0 maximo de tempo continuo pensavel, porque ele nao~essa ?~ ~er subdividido pelo Non que 0 torna igual a suaImha llimltada. Entendamos: cada acontecimento sobre 0

Non e menor que a menor subdivisao no Cronos; mas etambem maior que 0 maior divisor de Cronos isto e 0 cicio. , ,illteiro. Por sua subdivisao ilimitada nos dois sentidos aomesmo tempo, cada acontecimento acompanha 0 Non emtoda sua extensao e torna-se coextensivo a sua linha reta nosdois sentidos. Sentimos entao a aproximagao de urn eternoretorno que nao tem mais nada a ver com 0 cicio ou ja a~ntrada de Un;t ~abirinto, tanto mais terrfvel quanto mais elee 0 da linha UDlca, reta e sem espessura? 0 Non e a linhareta que traga 0 ponto aleat6rio; os pontos singulares decada. acontecimento se distribuem sobre esta liuha, semprer~lat1vam~nte ao ponto aleat6rio qne os subdivide ao infi­mto e aSSlm faz com que se comuniquem uns com as Dutros,

4. MALLA&M~. "Mimique". In: Oeuvres, Pl(iiade, Gallimard, p. 310.

estende-os e estira-os por sobre toda a linha. Cada aconte­cimento e adequado ao Non inteiro, cada acontecimentocomunica com todos as Qutros, todos formam urn so e roes­mo Acontecimento, acontecimento do Aion onde tern urnaverdade eterna. Eis 0 segredo do acontecimento: estandosobre 0 Aion, ele, entretanto, nao 0 preenche. Como 0 in­corporal preencheria 0 incorporal e 0 impenetravel preen­cheria 0 impenetravel? Somente os corpos se penetram, so­mente Cronos e preenchido pelos estados de coisas e osmovimentos de objetos que mede. Mas, forma vazia e de­senrolada do tempo, 0 Non subdivide ao infinito 0 que 0

acossa sem jamais habita-Io, Acontecimento para todos osacontecimentos; eis por que a unidade dos acontecimentosou dos efeitos entre si e de um tipo completamente dife­rente da unidade das causas corporais entre sl.

o Non e 0 jogador ideal ou 0 jogo. Acaso insufladoe ramificado. ];, ele a cartada unica de que todos os lancesse distinguem em qualidade. Ele joga ou se joga sobreduas mesas pelo menos, na juntura das d~as mesas. Aiele trap sua linha reta, bissetriz. Ele recolhe e reparte sobretodo 0 seu comprimento, as singularidades correspondendoas duas. As duas mesas ou series sao como 0 ceu e aterra, as proposi90es e as caisas, as expressOes e as consu­mag6es - Carroll diria: a tabua (table) de multiplicagao ea mesa (table) de comer. 0 Non e exatamente a fronteiradas duas, a linha reta que as separa, mas igualmente super­ficie plana que as articula, vidro ou espelho impenetravel.Assim circula atraves das series, que nao cessa de refletir ede ramificar, fazendo de urn s6 e mesmo acontecimento 0

expresso das proposig6es, sob urna face, 0 atributo das coisas,sob a outra face. ];, 0 jogo de Mallarme isto e, 0 "livro":com suas duas tabuas (a primeira e a Ultima folha nummesmo folheto dobrado), suas series multiplas interiores do­tadas de singularidades (folhas m6veis permutaveis, COns­telag6es-problemas), sua linha reta com duas faces que re­fletem e ramificam as series ("central pureza", "equa~ao soburn deus Jano"), e sob"e esta linha 0 ponto aleatorio quese desloca sem cessar, aparecendo como casa vazia de urnlado, objeto extranumerario de outro (hino e drama ou entao"urn pouco .de padre, urn pouco de dangarina" ou ainda 0

movel envernizado com compartimentos e 0 chapeu sem lugarpara ocupar, como elementos arquitet6nicos do livro). Ora,nos quatro fragmentos urn pouco elaborados do Livro deMallarme, algo ressoa no pensamento mallarmiano vagamen­te conforme as series de Carroll. Um fragmento desenvolvea dupla serie, coisas ou proposig6es,comer ou falar, nu­trir-se ou ser apresentado, comer a senhora que convida ouresponder ao convite. Urn segundo fragmento destaca a "neu-

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tralidade firme e benevolente" da palavra, nentralidade dosentido em relagao a proposigao, assim como da ordemexpressa com relagao aquele que a ouve. Urn outro frag­mento mostra em duas figuras femininas entrelagadas a li­nha unica de urn Acontecimento senlpre em desequilibrio,que apresenta uma de suas faces como sentido das propo­sig5es e a outra como atributo dos estados de coisas. Urnoutro fragmento, finalmente, mostra 0 ponto aleat6rio quese desloca sobre a linba, ponto de 19itur ou do Caup de des,duplamente indicado por urn velho morto de fome e umacrianga nascida da palavra - "pois morto de fome Ihe dao direito de recomegar ... " s.

5. Le "Livre" de MaUarme, Gallimard: cf. 0 estudo de Jacques Scherersobre a estrutura do "livro" e notadamente sobre os quatro fragmentos (pp.130-138). Nao parece, apesaI' dos pontos de encontro entre as duas obras ecertos problemas comuns, que Mallarme tenha conhecido Lewis Carroll: mesmoOdS Nursery Rhymes de Mallarme, que se tefetem a Humpty Dumpty, dependeme autras fontes.

LJeClma ....nmelra ~ene:

Do Nao-Sensor

Resumamos os caracteres deste elemento paradoxal,perpetuum nwbile etc.: ele tern por fungao percorrer as seriesheterogeneas e, de urn lado, coordena-Ias, faze-las ressoare convergir e, de autro, ramifica-las, introduzir em cada umadelas disjung5es mwtiplas. Ele e ao mesmo tempo para­vra = X e coisa '= X. Ele tern duas faces, ja que perten­ce simultaneamente as duas series, mas que nao se equili­braID, nao se juntam, nao se emparelham Dunea, uma vezque ele se acha sempre em desequilfbrio com relagao a simesmo. Para dar conta desta correlagao e desta dissime­tria, utilizamos pares varhiveis: ele e ao mesmo tempoexcesso e falta, casa vazia e objeto supranumenirio, Ingarsem ocupante e ocupante sem lugar, "significante flutuante"e significado flutuado, palavra esoterica e coisa exoterica,palavra branca e objeto negro. Eis por que ele e sempredesignado de duas maneiras: "pais a Snark era um Baujaum,imaginem voces". Evitaremos imaginar que 0 Boujoum euma especie particularmente temivel de Snark: a relagaode genera a especie nao convem aqui, mas somente as duasmetades dissimetricas de uma instancia ultima. Da mesmaforma como Sexto Empirico nos ensina que os Est6icosdispunham de uma palavra destituida de sentido, Blituri,mas a empregavam junto com urn correlato: Skindapsas '.Pais Blituri era um Skindapsas, vejam. Palavra ,= x emuma serie, mas ao mesma tempo coisa == x na outra serle;e preciso talvez, como veremos, acrescentar ao Aion urnterceiro aspecto, 0 da agao ,= x, na medida em que asseries comunicam e ressoam e formam uma "hist6ria em-

1. Cf. Sexto Empirico, Adversus Logicos, VIII, 133. Blituri e umaonomatop"IHa que exprime urn sam como 0 da lira; skmiUzpsos designa a nu\quinaau a instrumento.

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brulhada". 0 Snark e urn nome inaudito, mas tambem urnmonstro invisivel e remete a uma a9aO formidavel, a ca9aem cujo desfecho 0 ca9ador se dissipa e perde sua identi­dade. 0 labberwock e nm nome inaudito, urn animal fantas­tieo, mas tambem 0 objeto da a9aO formidavel ou do gran­de homicidio.

Em primeiro lugar a palavra em branco e designadapor palavras esotericas quaisquer (isto, coisa, Snark etc.);esta palavra em branco ou estas palavras esotericas de pri­meira potencia tern por fun9ao coordenar as duas series he­terogeneas. Em seguida, as palavras esotericas podem, porsua vez ser designadas por palavras-valise, palavras de se­gunda potencia que tern por fun9ao ramifi~ar as s~ries. Aestas duas potencias correspondem duas fIguras dIferentes.Primeira figura. 0 elemento paradoxal e, ao mesmo tempo,palavra e coisa. Isto e: a palavra em branco que 0 designaou a palavra esoterica que designa esta palavra em branco,tern tambem como propriedade exprimir a coisa. .E: uma pa­Iavra que designa exatamente 0 que exprime e exprime 0

que designa. Ela exprime seu designado, assim como de­signa seu proprio sentido. Em uma so e ~esma v~z, eladiz alguma coisa e diz 0 senudo do que dIZ: ela dlZ seuproprio sentido. Por tudo isto, ela e completamente anor­mal. Sabemos que a lei normal de todos os nomes dotadosde sentido e, precisamente, que seu sentido nao pode serdesignado a nao ser por urn outro nome (nl ~ n2 ~ n3 ... ).o nome que diz seu proprio sentido so pode ser nm niio­-senso (Nn). 0 nao-senso nao faz senao uma so coisa coma palavra "nao-sensa" e a palavra "nao-sensa" confunde-secom as palavras que nao tern sentido, isto e, as palavrasconvencionais de que nos servimos para designa-Io. ­Segunda figura. A propria palavra-valis~ e 0 pri~cipio deurna aitemativa de que ela forma tambem os dOlS termos(furnioso - fumante e furioso ou furioso e fumante). Cadaparte virtual de uma tal palavra designa 0 sentido da outraou exprime a outra parte que, por sua vez, 0 .designa: Sobesta forma, alem disso, a palavra no seu con]unto dlZ seuproprio sentido e e nao-senso sob este novo titulo. A se­gunda lei normal dos nomes dotados de sentido e, comefeito que seu sentido nao pode determinar urna aitema­tiva ~a qual eles proprios entram. 0 nao-senso tern poisduas figuras, uma que corresponde a sintese regressiva, outraa sintese disjuntiva.

Pode-se objetar: tudo isto nao quer dizer nada. Seriaurn mau jogo de palavras supor que nao-senso diga seuproprio sentido, ja que, por defini9aO, ele nao 0 possui.Esta obje9ao e infundada. 0 que e jogo de palavras edizer que nao-senso tern urn sentido, que e 0 de nao ter

sentido. Mas esta nao e, em absoluto, a nossa hipotese.Quando supomos que 0 nao-senso diz seu proprio senti~o,

queremos dizer, ao contrario, qne 0 sentido e 0 sem-sentidotern urna rela9aO especifica que nao pode ser decalcada darela9aO entre 0 verdadeiro e 0 falso, isto e, nao pode serconcebida simplesmente como uma rela9aO, d.e exclusao.. .E:exatamente este 0 problema mais geral da 10gJca do sentIdo:de que serviria elevarmo-nos da esfera do. verdadeI:0 a dosentido se fosse para encontrar entre 0 sentido e 0 nao-sensouma reia9ao anaioga a do verdadeiro e do falso? Ja vimosquanto era vao elevarmo-nos do condicionado a condi9aO,para conceber a condi9ao a imagem do condicionado, comosimples forma de possibilidade. A condi9.aO nao pode t~r

com seu negativo urna rela9ao do mesmo tipo que 0 condI­cionado tern com 0 seu. A logica dos sentidos ve-se neces­sariamente determinada a colocar entre 0 sentido e 0 nao­-senso urn tipo original de re1a9aO intrinseca, urn modo deco-presen9a, que, por enquanto, podemos so~ente su~eri.r,

tratando 0 nao-senso como uma palavra que dIZ seu propnosentido.

o elemento paradoxal e nao-senso sob as duas fignrasprecedentes. Mas as leis normais nao se opoem exatamentea estas duas figuras. Estas figuras, ao contrario, submetemas palavras normais dotadas de sentido a estas leis que naose aplicam a elas: todo nome normal tern urn sentido quedeve ser designado por urn outro nome e que deve determi­nar disjun90es preenchidas por outros nomes. Na medidaem que estes nomes dotados de sentido. sao submetidos aestas leis, eles recebem determi1U1foes de signific(lfiio. Adetermina9aO de significa9aO nao e a mesma coisa que alei, mas dela decorre; ela relaciona os nomes, isto e, aspalavras e proposi90es a conceitos, propriedades ou classes.Assim, quando a lei regressiva diz que 0 sentido de urn nomedeve ser designado por urn outro nome, estes nomes degraus diferentes remetem do ponto de vista da significa9aoa classes ou propriedades de "tipos" diferentes: toda pro­priedade deve ser de urn tipo superior as propriedades ouindividuos sobre os quais ela recai e toda classe deve serde urn tipo superior aos objetos que cont6m; nestas condi­90es, urn conjunto nao pode se conter como elemento, nemconter elementos de diferentes tipos. Da mesma forma, con­forme a lei disjuntiva, uma determina9aO de significa9aOenuncia que a propriedade ou 0 termo com rela9aO aosquais se faz uma classifiea9ao nao pode pertencer a nenhumdos gropos de mesmo tipo classificados com rela9ao a ele:urn elemento nao pode fazer parte dos subconjuntos quedetermina, nem do conjunto cuja existencia ele pressupc;e.As duas figuras do nao-senso correspondem pois duas for-

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mas do absurdo, definidas como "destitufdas de significa­~ao" e constiluindo paradoxos: 0 conjunto que se compreen­de como elemento, 0 elemento que divide 0 conjunto quesup6e - 0 conjunto de todos os conjuntos e 0 barbeirodo regimento. 0 absurdo e, pois,' ora confusao de niveisfonnais na sfntese regressiva, ora drculo vicioso na sfntesedisjuntiva 2. 0 interesse das determina~6es de significa~ao

e 0 de engendrar os principios de nao-contradi~ao e de ter­ceiro excluido, ao inves de da-Ios ja feilos; os proprios pa­radoxos operam a genese da contradi~ao ou da inclusao nasproposi~6es desprovidas de significa~ao. :E preciso, talvez,considerar a partir deste ponto de vista certas concep~6es

estoicas sobre a Iiga~ao das proposi~6es. Pois quando osestoicos se interessam tanto pela proposi~ao hipotetica dogenera de "se faz dia, esta claro", ou de "se esta mulhertern leite, ela deu a luz", as comentadores tern certamenterazao de lembrar que nao se trata ai de uma rela~ao de con­sequencia fisica ou de causalidade no sentido modemo dapalavra, mas eles se enganam, talvez, ao ver ai uma simplesconsequencia logica sob urn la~o de identidade. Os estoicosnumeravam os membros da proposi~ao hipotetica: podemosconsiderar "fazer dia" ou "ter dado a luz" como significan­do propriedades de urn tipo superior aquilo sobre 0 que re­caem ("estar claro", "ter leile"). A Iiga~ao das proposi­~6es nao se reduz nem a uma identidade anaHtica, nem aurna sintese empfrica, mas pertence ao domfnio da signifi­ca~ao - de tal maneira que a contradi~ao seja engendrada,nao na rela~ao de urn termo a seu oposto, mas na rela~ao

do oposto de urn termo com 0 ou/ro termo. De acordo coma transforma9ao do hipotetico em conjuntivo ~~se faz dia,esta claro" implica que nao e possivel que fa~a dia e naoesteja claro: talvez porque "fazer dia" deveria entao serelemento de urn conjunto - que ele suporia - e pertencera urn dos grupos classificados em rela~ao a ele.

Nao menos do que uma determina~ao de siguifica~ao,

o nao-senso opera uma dOlJffio de sen/ido. Mas nao damesma maneira. Pois, do ponto de vista do sentido, a leiregressiva nao relaciona mais ou menos os nomes de grausdiferentes a classes ou a propriedades, mas os reparte emseries heterogeneas de acontecimentos. Nao hi duvida deque estas series sao determinadas, urna como significante e aoutra como significada, mas a distribui~ao do sentido em umae na outra e completamente independente da rela~ao precisade siguifica~ao. Eis por que vimos que urn termo despro-

2. Esta distin~ao corresponde as duas formas do nlio-senso segundoRussell. Sobre estas duas formas, d. Franz Crahay, Le Formalisme logico-ma­rhemarique et le pr-obleme du non-sens, ed. les Belles Lettres, 1957. A d~ao

rosselliana parece-nos pteferivel a distin~ao muito geral que Husserl faz entre"nll.a-senso" e "contra-sensa" nas Inoestig~6es L6gicas e na qual se inspiraKoyre em Epimenide le menteur (Hermann, p. 9 e s.).

vido de significa~ao nem por isso deixava de ter urn sentidoe que 0 proprio sentido ou 0 acontecimento eram indepen­dentes de todas as modalidades que afetam as classes e aspropriedades, neutras com rela~ao a todos estes caracteres.o acontecimento difere em natureza das propriedades e dasclasses. 0 que tern urn sentido tern tambem uma significa­~ao, mas por raz6es diferentes das que fazem com que te­nha urn sentido. 0 sentido nao e, pois, separavel de urnnovo genero de paradoxos, que marca a presen~a do nao­-senso no sentido, como os paradoxos precedentes marca­vam a presen~a do nao-senso na significa~ao. Desta vez,sao os paradoxos da subdivisao ao infinito, de urn lade e,de outro, da reparti~ao de singularidades. Nas series, cadatermo nao tern sentido a nao ser por sua posi~ao relativaa todos os outros termos; mas esta posi~ao relativa dependeela propria da posi<;ao absoluta de cada termo em fun<;aoda instlincia = x determinada como nao-senso e que circulasem cessar atraves das series. 0 sentido e efetivamenteproduzido por esta circula<;ao, como sentido que volta aosignificante, mas tambem sentido que volta ao significado.Em suma, 0 sentido e sempre urn efeito. Nao somente urnefeito no sentido causal; mas urn efeito no sentido de "efei­to optico", "efeito sonora", ou melhor, efeito de superflcie,efeito de posi<;ao, efeilo de Iinguagem. Urn tal efeito naoe em absoluto uma aparencia ou urna i1usao; e urn produtoque se estende ou se alonga na superficie ,e que e estrita­mente co-presente, coextensivo a sua propria causa e quedetermina esta causa como causa imanente, insepanivel deseus efeitos, puro nihil ou x fora de seus efeitos. Tais efei­tos, urn tal produto, sao habitualmente designados porurn nome proprio ou singular. Urn nome proprio nao podeser considerado plenamente como urn signo a nao ser namedida em que remeta a urn efeilo deste genero: assime que a fisica fala em "efeito Kelvin", "efeito Seebeck","efeito Zeemann" etc., ou que a medicina designa as doen­<;as pelos nomes dos medicos que souberam desenhar 0

seu quadro de sintomas. Nesta mesma via, a descoberta dosentido como efeito incorporal, sempre produzido pela cir­cula<;ao do clemento ,= x nas series de termos que percorre,deve ser chamado "efeito Crisipo", ou "efeito Carroll".

as antares que se costuma, atualmente, chamar de es­truturalistas, nao tern, talv,ez, outro ponto em comurn ­porem essencial - a1em do seguinte: 0 sentido, nao comoaparencia, mas como efeilo de superficie e de posi<;ao, pro­duzido pela circula<;ao da casa vazia nas series da estrutura(lugar do morto, lugar do rei, mancha cega, siguificantef1utuante, valor zero, cantonada ou causa ausente etc.). 0estruturalismo, conscientemente ou nao, celebra novas acha-

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dos de i.nspira~ao est6ica ou carro\li.ana. A estrutura ever­dadeiramente uma maquina de produglio de sentido incorpo­ral (skindapsos). E quando 0 estruturalismo mostra, destamaneira, que 0 sentido e produzido pelo nao-senso e seuperpetuo desIocamento e que nasce da posi~ao respectiva deelementos que nao sao, por si mesmos, "significantes", naoveremos ai, em compensa~ao, nenhuma aproximal:;ao com 0

que foi chamado de filosofia do absurdo: Lewis Carroll sim,Camus nao. Pois, para a filosofia do absurdo 0 nao-sensoe 0 que se opOe ao sentido em uma rela~ao simples comeste; tanto que 0 absurdo se define sempre por uma defi­ciencia de sentido, por uma falta (nao ha bastante ... ). Doponto de vista da estrutura, ao contnirio, ha sempre sen­tide demais: excesso produzido e superproduzido peIo nao­-senso como priva~ao de si mesmo. Assim como Jakobsondefine urn fonema zero que nao possui nenhum valor fone­tico determiuado, mas que se opoe it ausencia de fonemae nao ao fonema, da mesma forma 0 nao-sensa DaD possuinenhum sentido particular, mas se opOe it ausencia de sen­tido e nao ao sentido que eIe produz em excesso sem nuncamanter com seu produto a reIa~ao simples de exclusao 11qual gostanamos de reduzi-Io 3. 0 nao-senso e ao mesmotempo 0 que nao tern sentido, mas que, como tal, opoe-seit ausencia de sentido, operando a doa~ao de sentido. Ee isto que e preciso entender por non-sense.

FinaImente, a importfulcia do estruturalismo em filoso­fia, e para 0 pensamento em geraI, mede-se por isto: poreIe desIocar as fronteiras. Quando a no~ao de sentido tomouo lugar das Essendas desfaIecentes, a fronteira filosofica pa­receu instaIar-se entre aqueIes que ligavam 0 sentido a umanova transcendencia, novo avatar de Deus, cen transforma­do e aqueIes que encontravam 0 sentido no homem e seuabismo, profundidade novamente cavada, subterranea.Novos teoIogos de ceu brumoso (0 ceu de Koenigsberg) enovos humanistas das cavernas, ocuparam a cella em nomedo Deus-homem ou do Homem-Deus como segredo do sen­tido. Era por vezes dificil distiuguir entre eIes. Mas, 0 quetorna hoje a distin~ao impossiveI e primeiramente a Iassi­dao em que nos encontramos diante deste discurso intermi­navel em que se pergunta se e 0 asno que carrega 0 homemou se e 0 homem que carrega 0 asno e que carrega a simesmo. Em seguida, temos a impressao de urn contra-sensopure operado sobre 0 sentido; pois, de quaIquer maneira,.cen ou subterraneo, 0 sentido e apresentado como Principia,Reservatorio, Reserva, Origem. Principio celeste, dizemosque eIe e fundamentaImente esquecido e veIado; principio

3. Cf. as observa~5es de Levi-Strauss sobre 0 "fonema zero" na; "Intro­duo;ao a Obra de M,arcel Mauss" (Mauss, Sociologie et Anthropologfe, p. 50).

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subterrtmeo, Clue e protundamente Iasurado, desviado, alie­nado. Mas tanto sob a rasura como sob 0 veu, 0 apelo eno sentido de reencontrar ou restaurar 0 sentido, seja emurn Deus que nao tenamos compreendido suficientemente,seja em urn homem que nao tenamos sandado 0 bastante.£, pois, agradaveI, que ressoe hoje a boa nova: 0 sentidonao e nunca principio ou origem, eIe e produzido. EIe naoe aIgo a ser descoberto, restaurado ou re-empregado, masaIgo a produzir por meio de novas maquina~oes. Nao per­tence a nenhuma altura, uao esta em nenhuma profundida­de, mas e efeito de superficie, iuseparaveI da superficie comode sua dimensao propria.

Nao e que ao sentido falte profundidade ou altitude,e antes a altitude e a profundidade que carecem de super­ficie, que carecem de seutido ou que nao 0 rem a nao serpor urn "efeito" que sUpOe 0 sentido. Nao perguntamosrnais se 0 "sentido originario" da religiiio esta em urn Deusque os homens trairam ou em urn homem que se aIienouna imagem de Deus. Por exempIo: nao procuramos emNietzsche urn profeta da reviravolta nem da supera~ao. Seha urn autor para 0 qual a morte de Deus, a queda em altu­ra do ideal ascetico nao tern nenhuma importfulcia enquantoe compensada peIas falsas profundidades do humano, rnaconscieucia e r,essentimento, e sem dlivida Nietzsche: eIeconduz suas descobertas alhures, no aforismo e no poema,que nao fazem falar nem Deus nem 0 homem, maquinas deproduzir sentido, de medir a superficie iustaurando 0 jogoideal efetivo. Nao procuramos em Freud urn expIorador daprofundidade humana e do seutido originario, mas 0 prodi­gioso descobridor da maquinaria do inconsciente por meioda qual 0 seutido e produzido, sempre produzido em fun~ao

do uao-senso 4. E como poderiamos deixar de sentir quenossa Iiberdade e nossa efetividade encontram seu lugar, naono universal divino nem na personalidade humana, masnestas singuIaridades que nao sao mais nossas que uosmesmos, mais divinas que as deuses, animando no concretoo poema e 0 aforismo, a revoIu~ao permanente e a~ao par­cial? 0 que ha de burocratico nestas maquiuas fantasmasque sao os povos e os poemas? Basta que nos dissipe­mos urn pouco, que saibamos estar na superficie, que

4. Em paginas que estio de acordo com as teses principais de Lo~Althusser, J. P. Osier prop5e a dis~ao seguinte: entre aque)es para 051 qu.alSio sentido e algo a ser reencontrado em uma origem mais au menos perdlda(seja essa origem divina ou humana, ontol6gica ou antropol6gica) ~ aquelespara os quais a origem e um nlio-senso e 0 sentido sempre prodUZldo comoum efeito de superflcie, epistemol6gico. Aplicando a Freud e a Marx estecriterio, J. P. Osier estima que 0 problema da iDterpretacao nao consiste deforma nenhuma a passar do "derivado" ao "originario", mas a compreenderos mecanismos de produCao do sentido em duas senes: 0 sentido e sempre

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estendamos nossa pele como urn tambor, para que a "grandepolitica" comece. Urn casa vazia que nao e nem para 0

homem e nem para Deus; singularidades que nao sao nemda ordem do geral, nem da ordem do individual, nem pes­soais, nem universais: tudo isto atrayessado por circula~oes,

ecos, acontecimentos que trazem mais sentido e liberdade,efetivados com 0 que nunca sonhou, nem Deus concebeu.Fazer circular a casa vazia e fazer falar as singularidadespre-individuais e nao pessoais, em suma, produzir 0 sentidoe a tarefa de hoje. '

Decima Segunda Serie:Sobre 0 Paradoxo

Nao nos desembara~amos dos paradoxos dizendo queeles sao diguos de Lewis Carroll mais do que dos PrincipiaMathematica. 0 que e bom para Carroll e born para a16gica. Nao nos desembara~amos deles dizendo que 0 bar­beiro do regimento nao existe, tanto quanto 0 conjuntoanormal. Pois, em compensa~ao, eles insistem na linguageme todo 0 problema e saber se a pr6pria linguagem poderiafuncionar sem fazer insistirem tais entidades. Nao diremostamMm que os paradoxos dao uma falsa imagem do pensa­mento, inverossirnil e inutilmente complicada. Seria precisoser finito "simples" para acreditar que 0 pensamento e urnato simples, claro para si mesmo, que nao poe em jogo todasas potencias do inconsciente e do nao-senso no inconscien­teo Os paradoxos s6 sao recrea~oes quando os consideramoscomo iniciativas do pensamento; nao quando os conside­ramos como "a Paixao do pensamento", descobrindo 0 quenao pode ser senao pensado, 0 que nao pode ser senao fa­lado, que e tambem a inefavel e 0 impensavel, Vazio mental,Aion. Nao invocaremos, enfim, 0 carater contradit6rio dasentidades insufladas, nao diremos que 0 barbeiro nao podepertencer ao regimento etc. A for~a dos paradoxes resideem que eles nao sao contradit6rios, mas nos fazem assistirii genese da contradi~ao. 0 principio de contradi~ao seaplica ao real e ao possivel, mas nao ao impossivel do qualderiva, isto e, aos paradoxos ou antes ao que representamos paradoxos.

Os paradoxos de significa~ao sao essencialmente 0 con­junto anormal (que se compreende como elemento au quecompreende elementos de diferentes tipos) e 0 elementorebelde (que faz parte de urn conjunto cuja existencia ele

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pressupoe e pertence aos dois subconjuntos que determina).Os paradoxos de sentido sao essencialmente a suhdivisiio aoinfinito (sempre passado-futuro e jamais presente) e a dis­tribui,iio nomade (repartir-se em urn espa90 aberto ao invesde. repa;tir urn espa90, f~chado). Mas, de qualquer ma­nerra, tern por caractenstica 0 ~ato de ir em dois sentidosao mesmo tempo e tomar impossivel uma identifica9ao co­I,ocando a enfase ora num, ora no outro desses efeitos; tale. a dupla aventura de Alice, 0 devir-Iouco e 0 nome-per­dIdo. :E que 0 paradoxo se opOe a doxa, aos dois aspectosd~ doxa. born sensa e senso comum. Ora, 0 born sensa sed~z de uma dire9ao: ele e senso 6nico, exprime a existen­CIa de ~:: ordem d~ acordo com a qual e precise escolherurna d~re9ao e se flXar a ela. Esta dire9ao e facilmented~termll~ada como a que vai do mais diferenciado ao menosdiferen.cIado, da parte das coisas a parte do fogo. Segundoela, o~lentamos a flecha do tempo, uma vez que 0 mais di­ferenclado aparece necessariamente como passado, na me­dida em que ele define a origem de urn sistema individuale 0 menos diferenciado como futuro e como fim. Esta ordemdo tempo, do passado ao futuro, e pois instaurada comre!a9ao ao presente, isto e, com rela9ao a urna fase deter­mmada do tempo escolhida no sistema individual conside­rado. 0 born senso se da assim a condi9ao sob a qual elepreenche sua fun9ao, que e essencialmente a de prever: e.c:aro que a previsao .seria impossivel na outra dire9ao, sefossemos do menos diferen~ia~o ao m~is .diferenciado, porexemplo, se temperaturas prInleIramente mdiscerniveis fossemse diferenciando. Eis por que 0 born senso pOde se reencon­trar tao profundamenre na termodinamica. Mas na origemele se vale de modelos mals altos. 0 born senso e essen­claimente repartidor; sua formula e "de urn lade e de outrolado", mas a reparti9ao que ele opera se faz em tais condi­90eS que a diferen9a e posta no come90, tomada em urnmovimento dirigido incurnbido de cumula-Ia iguaHi-laanula-Ia, co,,?,pensa-Ia. :E exatamente 0 que qu;r dizer: d~parte das cOlSas a parte do fogo, ou da parte dos mundos.(sist~mas individuals) a parte de Deus. Vma tal reparti9aoImphcada pelo born senso se define precisamente como dis­tribui9ao fixa ou sedentaria. A essencia do born senso e dese dar uma singularidade, para estende-Ia sobre toda a linhados ponto~ ordinarios. e regulares que dela dependem, masque a conJur~ e ~ diluem. 0 born senso e completamentecombustIvo e dlg~S?VO. 0 ~om sensa e agricola, insepanl.veldo problema agrano e da mstala9ao de cercados, insepara­vel de uma opera9ao d.as classes medias em que as partes secompensem, se regulanzem. Maquina a vapor e cria9ao emterrenos cercados, mas tambem propriedades e classes, sao

as fontes vivas do born senso: nao somente como fatos quesurgem em tal epoca, mas como arqu6tipos eremos; e naopor simples metMora, mas de maneira a reunir todos ossentidos dos termos "propriedades" e "classes". as caracte­res sistematicos do born senso sao pois: a afirma9ao deurna so dire9ao; a determina~ao desta dire9ao como indo domais diferenciado ao menos diferenciado, do singular aoregular, do notavel ao ordinario; a orienta9ao da flecha dotempo, do passado ao futuro, de acordo com esta determi­na9ao; 0 papel diretor do presente nesta orienta9ao; a fun9aode previsao que assim se toma possivel; 0 tipo de distri­bui9ao sedentiria, em que todos os caracteres precedentesse reunem.

o born senso desempenha papel capital na detemrina­9ao da siguifica9ao. Mas nao desempenha nenhum na doa­9ao de sentido; e isto porque 0 born senso vem sempre emsegundo lugar, porque a distribui9ao sedentaria que eleopera pressupoe uma outra distribui9ao, como 0 problemados cercados supoe urn espa90 primeiro livre, aberto, ilimi­tado, flanco de colina OU encosta. Bastaria entao dizer queo paradoxo segue a outra dire9ao oposta a do born senso evai do menos diferenciado ao mals diferenciado, por umcapricho que seria somente ufn divertimento do espirito?Para retomar exemplos celebres, e certo que se a tempe­ratura fosse se diferenciando ou se a viscosidade se fizesseacelerante, DaD podcriamos roais "prever". Mas por que?Nao porque as coisas se passariam no outro sentido. 0 outrosentido seria ainda urn senso Unico. Ora, 0 born senso naose contenta em determinar a dire9ao particular do senso6nico, ele determina primeiro 0 principio de urn sentido6nico em geral, reservando-se 0 direito de mostrar que esteprincipio, uma vez dado, nos for9a a escolher tal dirC9aode preferencia a outra. De tal forma que a potencia doparadoxa nao consiste absolutamente em seguir a outra di­re9ao, mas em mostrar que 0 sentido toma semp"e os doissentidos ao mesmo tempo, as duas dire90es ao mesmo tempo.o contrario do bom senso nao e 0 outro sentido; 0 outro sen­tido e somente a recrea9ao do espirito, sua itticiativa amena.Mas 0 paradoxo como paixao descobre que nao podemos se­parar duas dire90es, que nao podemos instaurar urn senso6nico, nem urn senso 6uico para 0 serio do pensamento, parao trabalho, nem urn senso invertido para as recrea90es eos jogos menores. Se a viscosidade se fizesse acelerante, elaarrancaria os moveis ao repouso, mas em urn sentido impre­visivel. Em que sentido, em que sentido? pergunta Alice.A pergunta nao tern resposta, porque e proprio do sentidonao ter direc;ao, nao ter "born sentido", mas sempre as duasao mesmo tempo, em urn passado-futuro infinitamente sub-

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dividido e alongado. 0 fisico Boltzmann explicava que aflecha do tempo, indo do passado para 0 futuro, so valianos mundos ou sistemas individuais e com rela9ao a urnpresente determinado em tais sistemas: "para 0 Universointeiro, as duas dire90es do tempo sao pois impossiveis dedistinguir, da mesma forma como no espa90 nao hii nemacima, nem abaixo (isto -e, nem altura, nem profundidade)'.Reencontramos a oposi9aO do Aion e do Cronos. Cronose 0 presente que so eXiste, que faz do passado e do futurosuas duas dimens6es dirigidas, tais que vamos sempre dopassado ao futuro, mas na medida em que as presentes sesucedem nos mundos ou sistemas parciais. Aion e 0 pas­sado-futuro em uma subdivisao infiuita do momento abstra­to, que nao cessa de se decompor nos dois sentidos aomesmo tempo, esquivando para sempre todo presente. Poisnenhum presente e fixiivel no Universo como sistema detodos os sistemas ou conjunto anormal. A linha orientadado presente, que "regulariza" em um sistema individual cadaponto singular que recebe, opoe-se a linha de Aion, que saltade urna singularidade pre-individual a outra e as retomatodas uma nas outras, retoma todos os sistemas segundo asfiguras da distribui9ao nomade em que cada acontecimentoe jii passado e ainda futuro, mais e menos ao mesmo tempo,sempre vespera e amanha na subdivisao que os faz co­municar.

No sensa (sentido) comuID, "sentido" DaD se diz maisde uma dire9ao, mas de urn orgao. Nos 0 dizemos comum,porque e um orgao, uma fun9aO, uma faculdade de identi­fica9ao, que relaciona uma diversidade qualquer a forma doMesma. 0 sensa comum identifica, reconhece, DaD menosquanta 0 bom senso preve. Subjetivamente, 0 senso comumsubsume faculdades diversas da alma ou orgaos diferencia­dos do corpo e os refere a urna unidade capaz de dizerEu: e urn s6 Ie mesma en que percebe, imagina, lembra-se,sabe etc.; e que respira, que dorme, que anda, que come ...A linguagem nao parece possivel fora de um tal sujeito quese exprime ou se manifesta nela e que diz 0 que ele faz.Objetivamente, 0 senso comum subsume a diversidade dadae a refere a unidade de uma forma particular de objeto oude uma forma individualizada de mundo: e 0 mesmo objetoque eu vejo, cheiro, saboreio, toco, 0 mesmo que percebo, ima­gino e do qual me lembro... e e no mesmo mundo querespiro, ando, fico em vigilia au durmo, indo de um objetopara outro segundo as leis de urn sistema determinado. Aiainda a linguagem nao parece possivel fora de tais identi­dades que designa. Vemos muito bem a complementari­dade entre as duas for9as, a do born senso e a do senso

1. BOLT.ZMANN. Le90ns SUI la thiarie des gaz. Trad. fro Gauthier-Villars,ed., t. II, p. 253.

comum. 0 bom senso nao poderia fixar nenhum come90e nenhum fim, nenhurna dire9ao, nao poderia distribuirnenhuma diversidade, se nao se superasse em dire9ao a umainstancia capaz de referir este diverso a forma de identi­dade de um sujeito, a forma de permanencia de um objetoou de um mundo, que supomos estar presente do come90ao fim. Inversamente, esta forma de identidade uo sensocomum permaneceria vazia se DaD se snperasse em direg3.oa uma instancia capaz de determinii-Ia por esta ou aqueladiversidade come9ando aqui, acabando ali e que supomosdurar todo 0 tempo que e preciso para iguala9aO de suaspar~s. E preciso que a qualidade seja ao mesmo tempoparada e medida, atribuida e identificada. E nesta comple­mentaridade do bom senso e do senso comum que se es­tabelece a alian9a do eu, do mundo e de Deus - Deuscomo saida Ultima das dire90es e princfpio supremo da iden­tidade. Da mesma forma, 0 paradoxo e a subversao simul­tanea do born senso e do senso comurn: ele aparece de urnlado como os dois sentidos ao mesmo tempo do devir-Iouco,imprevisivel; de outro lado, COm 0 nao-senso da identidadeperdida, irreconhecivel. Alice e aquela que vai sempre nosdois sentidos ao mesmo tempo: 0 pais das maravilhas (Won"der/and) tem uma dupla dire9ao sempre subdividida. Ela etambem aquela que perde a identidade, a sua, a das coisase a do mundo: em Silvia e Bruno, 0 pais das fadas (Fairy­land) se opoe a Lugar-comurn (Common-place). Alice sesubmete e fracassa em todas as provas do senso comum:a prova da consciencia de si COmo orgao - "Quem soisvas?" -, a prova da peroep9ao de objeto como reconhe­cimento - 0 bosque que se furta a qualquer identifica9ao-, a prova da memoria como recita9ao - "e falso do co­me90 ao fim" - a prova do sonho como unidade de mundo- em que cada sistema individual se desfaz em proveito deum universo no qual somos sempre um elemento no sonhode urn outro - "nao gosto de pertencer ao sonho de umaoutra pessoa". Como e que Alice poderia ainda ter sensocomum, uma vez que nao tern mais born senso? A lingua­gem parece, de qualquer maneira impossivel, nao tendo maissujeito que se exprima ou se mauifeste nela, nem objeto adesiguar, nem classes e propriedades a siguificar segundourna ordem fixa.

E contudo ai que se opera a doa9ao de sentido, nestaregiao que precede todo born senso e senso comum. Ai, alinguagem atinge sua mais alta potencia com a paixao doparadoxa. Para alem do bom senso, as parelhas de LewisCarroll representam as dais sentidos, ao mesmo tempo, dodevir-louco. Primeiro em Alice, 0 chapeleiro e a lebre de

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mar9Q: cada urn habita em uma dir~ao, mas as duas di­re<;6es sao insepaniveis, cada uma se subdivide na outra,tanto que as encontramos ambas em cada uma. :E: precisoser dois para ser Iouco, somos sempre Ioucos em dupIa,ambos se tarnam loncas no dia em que "massacraram 0

tempo", isto .0, destruirarn a medida, suprimirarn as paradase os repousos que referem a qualidade a alguma coisade fixo. BIes mataram 0 presente, que nao sobrevive maisentre eIes a nao ser na imagem adormecida do arganaz, seucompanheiro supliciado, mas tamMm que nao mais subsistea nao ser no momento abstrato, na hora do chil, infinita­mente subdivisiveI em Bassado e em futuro. Tanto que agoraeIes nao cessarn de mudar de lugar, sempre em atraso esempre adiantados, nas duas dire<;6es ao mesmo tempo, masnunca na hora certa. Do outro Iado do espellio, a Iebre eo chapeIeiro sao retomados nos dois mensageiros, urn parair, Qntro para vir, urn para procurar, Dutro para relatar, se­gundo as duas dire<;6es simultaneas do Aion. Mais ainda,Tweedledum e TweedIedee dao testemunho da indiscerni­bilidade das duas dire<;6es e da infinita subdivisao dos doissentidos em cada dire<;ao sobre a estrada bifurcante queindica sua casa. Mas, assim como os pares tornam impos­slveI toda medida do devir, toda parada da qualidade e, porconseguinte, todo exercfcio do born senso, Humpty Dumpty.0 a simplicidade real, 0 Senhor das paIavras, 0 Doador dosentido, que destroi 0 exercfcio do senso comum, distribuin­do as diferen<;as de tal maneira que nenhuma quaIidade fixa,nenhum tempo medido se reIacionam a um objeto identi­ficaveI ou reconhecfveI: eIe, cujo porte e pesco<;o, gravatae cinto se confundem - carecendo tanto de sentido comumquanto de orgaos diferenciados, unicarnente feito de singu­Iaridades moveis e "desconcertantes". Humpty Dumpty naoreconheceni Alice, pois cada singularidade de Alice Ihe pa­reee tomada no conjunto ordinario de um orgao (ollios, na­riz, boca) e fazer parte do Lugar-comum de urn sembIantemnito regular, organizado como 0 de todo mundo. Na sin­gularidade dos paradoxos nada come<;a ou acaba, tudo vaino sentido do futuro e do passado ao mesmo tempo. Comodiz Humpty Dumpty, podemos sempre nos impedir de cres­cer a dois, urn crescendo apenas com 0 outro diminnindo.Nao .0 de surpreender que 0 paradoxo seja a potencia doinconsciente: eIe se passa sempre no entre-dois das cons­ciencias, contra 0 born senso ou as costas da consciencia,contra 0 senso comum. A pergunta: quando .0 que a gentefica careca? ou quando .0 que existe uma por<;ao? - Crisiporespondia que seria mellior parar de contar, que podlarnosmesmo ir dormir e 0 verillcanamos certamente mais tarde.Carneades nao parece compreender mnito bem esta resposta,

quando objeta que no despertar de Crisipo tudo recome<;ae a mesma pergunta se coIoca. Crisipo se faz mais expIf­cito: podemos sempre puxar dos dois Iados, frear os cava­los quando a descida se acentua ou diminuir com uma maoquando aumentamos com a outra 2. Pois, se se trata desaber "por que em tal momento de preferencia a outroqualquer", "por que .0 que a agua muda de quaIidade a zerograus", a quesUio estanl mal colocada enquanto zero grausfor considerado como urn ponto ordinario na escala dastemperaturas. Ese, ao contrcirio, ele for considerado comoum ponto singular, nao .0 separaveI do acontecimento quese passa neIe, sempre chamado zero com reIa<;ao a suaefetua<;ao sobre a Iinha das ordinarias, sempre por vir e japassado.

Podemos, a partir dal, propor urn quadro do desenvoI­vimento da Iinguagem em superflcie e da doa<;ao do sentidona fronteira das proposi<;6es e das coisas. Tal quadro repre­senta a organiza<;ao dita secundaria, propria a Iinguagem.Ele e animado pelo elemento paradoxaI ou ponto aleatorioao qual demos dupIos-nomes diversos. E da na mesma apre­sentar este eIemento como percorrendo as duas series, nasuperflcie, ou como tra<;ando entre as duas a linha reta doAion. EIe .0 nao-senso e define as duas figuras verbais donao-senso. Mas, justamente porque 0 nao senso-se acha emuma rela<;ao interior original com 0 sentido, eIe e tambemo que prove de sentido os termos de cada serie: as posi<;6esrelativas destes termos uns com reIa<;ao aos outros dependemde sua posi<;ao "absoIuta" com reIa<;ao a ele. a sentido esempre urn efeito produzido nas series peIa instanc~a que aspecorre. Eis por que 0 sentido, tal como .0 recolhido sobreo Aion, tern eIe proprio duas faces que correspondemas faces dissimetricas do elemento paradoxaI: uma, voI­tada para a serie determinada como significante; a outravoltada para a serie determinada como significada. a sentidoinsiste em uma das series (proposi<;6es): eIe .0 0 exprimlveIdas proposi<;6es, mas nao se confunde com as proposi<;6esque 0 exprimem. a sentido advem a outra ~erie (estad~s decoisas): ele .0 0 atributo dos estados de COisas, mas nao seconfunde com os estados de coisas aos quais eIe seatribui, com as coisas e quaIidades que 0 efetuam. a quepermite, pois, determinar tal serie como signific.ante e taloutra como significada, sao precisamente estes dOiS aspectosdo sentido insistencia e extra-ser e os dois aspectos do nao­-senso ou do elemento paradoxal do qual eIes derivam, casavazia e objeto supranumerario - Iugar sem ocupante emuma serie e ocupante sem Iugar na outra. :E: por isso que 0

2. Cf. Cicero, PrimeirO$ acad~mu;~. ~ 29. Cf. tambem as observa(;oe,de Kierkegaard nas Migalhas, que di:\ raza.o a Cameades arbitrariamente.

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IIII'

sentido em si mesmo e objeto de paradoxos fundamentaisque retomam as figuras do nao-senso. Mas a doa9ao desentido nao se faz sem que sejam tambem determinadascondi90es de significa9ao as quais os termos das series, umavez providos de sentido, serao ulteriormente submetidos emuma organiza9ao terciaria que os refere as leis das indica­90es e das manifest~oes possiveis (bom senso, senso co­mum). Este quadro de um desdobramento total na super­ficie e necessariamente afetado, em cada um destes pontos,por uma extrema e persistente fragilidade.

Decima Terceira Serie:Do Esquizofrenicoeda Menina ~

Nada de mais fragi! do que a superficie. A organiza­9ao secundaria nao estara amea9ada par um monstro muitomais poderoso do que 0 Jabberwock - por um nao-sensoinforme e sem fundo, bem diferente daqueles que vimos pre­cedentemente com duas figuras ainda inerentes ao sentido?A amea9a e primeiramente imperceptivel; mas bastam algunspassos para nos apercebermos de uma falba aumentada eque toda organiza9ao de superficie ja desapareceu, jogadaem uma ordem primaria terrivel. 0 nao-senso nao da maiso sentido: ele devorou tudo. Acreditavamos primeiro perma­necer no mesmo elemento ou em um elemento vizinho. Per­cebemos agora que mudamos de elemento, que entramos emuma tempestade. Acreditavamos ainda estar entre as ga­rotinhas e as crian9as: ja nos encontramos em uma lou­cura irreversivel. Acreditavamos estar no ponto culminantede pesquisas literarias, na mais alta inven9ao das lingua­gens e das palavras; ja nos achamos nos debates de umavida convulsiva, na noite de uma cria9ao patol6gica concer­nente aos corpos. JLQQLisso que 0 observador deve per­manecer atento: .e pouca 'suportJvel, soboJli-elex!'Ldaspalavras-valise, por exemplo, vermisturar'-ashist<Srias. i~­fantis, as experimenta90es poeticas e asexperiencias __ da

-loucura. Um grande poeta pode escrever numa rela9lio di~ ,-reta com a crian9a que ele foi e as crian9as que ama; umlouco pode carregar consigo a mais imensa obra poetica,numa rela9ao direta com 0 poeta que ele foi e que naodeixou de ser. Isto nao justifica de forma nenbuma a gro­tesca trindade da crian9a, do poeta e do louco. Com toda afor9a da admira9ao, da venera9ao, devemos estar atentosaos deslizes que revelam uma diferen9a profunda sob seme-

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lhan93S grosseiras. Devemos estar atentos as fungoes e aosabismos muito ?iferentes do nao-senso, a heterogeneidadedas palavras-va!Ise que nao autorizam nenhum amalgamaentre os que inventam e mesmo os que os empregam. Umamenina parle cantar "Pimpanicalho", urn artista escrever"fumioso", urn esquizofrenico dizer "perspendicaz" 1: naotemos nenhuma razao para acreditar que 0 problema seja 0

mesmo por tras de resultados grosseiramente anaIogos. Naoe serio confundir a can,ao de Babar e os gritos-sopros deArtaud, "Ratara ratara ratara Atara tatara rana Otara otarakatara ... " _Acrescentemos que 0 erro dos logicos, quando

_, falam do nao'senso, e 0 de dar exemplos desencarnados,Q",_, 'Iaboriosamente construidos por eles mesmos e para as neces­

sidades de sua demonstra,ao, como se nao tivessem nunca.ouvido uma menina cantar, urn grande poeta dizer,- um~uizofrenico falar. Miseria dos exemplos ditos logicos(salVo em Russell, sempre inspirado em Lewis Carroll).Mas ai ainda a insuficiencia do logico nao nos autoriza arefazer, contra ele, uma trindade. Ao contrario. 0 pro­blema e 0 da clinica, isto e, do deslize de uma organiza,aopara outra ou da forma,ao de uma desorganiza,ao pro­gressiva e criadora. 0 problema e tambem 0 da crftica,isto e, da determina,ao dos niveis diferenciais em que 0

nao-senso muda de figura, a palavra-valise de natureza, alinguagem inteira de dimensao.

Ora, as semelhan,as grosseiras lan,am primeiramentesua armadilha. Gostarfamos de considerar dois textos comestas armadilhas de semelhan,a. Ocorre a Antonin Artaudconfrontar-se com Lewis Carroll: primeiro, em uma trans­cri,ao do capitulo Humpty Dumpty, depois em uma cartade Rodez em que julga Carroll. Ao ler a primeira estrofedo Jabberwocky, tal como e apresentada por Artaud, tem-sea impressao de que os dois primeiros versos correspondemainda aos criterios de Carroll e se conformam a regras detradu,ao bastante analogas as dos outros tradutores france­ses, Parisot ou Brunius. Mas desde a ultima palavra dosegundo verso, desde 0 terceiro verso, um deslizamento seproduz e mesmo urn desabamento central e criador, que fazcom que estejamos em urn outro mundo e em uma autraIinguagem 2. Com espanto, reeonhecemos sem esfor,o: ea linguagem da esquizofrenia. Mesmo as palavras-valise

\ ' 1. "Perspendicaz" e uma palavra-valise de um esquizof~nico. para de-'signar espiritos que se mantem acima da cabe~a do sujeito (perpencficulares)e que sao muito perspicazes: citado por Georges Dumas, Le surnatUTel et lesdieux d'apres les maladies mentales, P.D.F., 1946, p. 303.

2. Al!.TAUD, Antonin. L'Arve et L'Aume, tentative anti-grammaticalecontre Lewis Carroll. L'Arbalete, nQ 12, 1947:

"II 6tait roparant, et les vIiqueux tarands.Allaient en gibroyant et en brimbulkdriquantJusque a OU Ia rourghe est a rouarghe a rangmbde et rangmbde arouarghambde:Tous 1es falomitards etaient les chats-huantsEt les Ohore Uk'hatis dans Ie C'I"abugeurnent."

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parecem ter uma outra fun,ao, tomadas em sincopes e sobre­carregadas de guturais. Medirnas, Dum meSilla gesta, a dis­tanciaque _s~'para_a lingull.gellLd,LCarrg.!L emitida na supe",,-

..lieiee a linguagem de Artaud, talhada na profundidadulls""rpOs:, _,.a diferen~~JlS pro6JeJP.~. Damos entao todoo seu alcance as declara,5es de Artaud' na carta de Rodez:"Nao fiz tradu,ao do Jabberwocky. Tentei traduzir urnfragmento mas isto me aborreceu. Jamais gostei destepoema, que sempre me pareceu de urn infantilismo afetado...N QO gosto dos poemas ou das; linguagens de superiieie e querespiram ocios felizes e exitos do intelecto, mesmo que estese apoie no anus, mas sem que se empenhe nisso a abna ouo cora,ao. 0 anus e sempre terror e nao admito que perca-~os urn excremento sem nos dilacerarmos com a possibi­hdade de que ai percamos tambem nossa alma e nao h;ialma no Jabberwocky. .. Podemos inventar nossa proprialingua e fazer falar a lingua pura com um sentido extra­gramatical, mas e preciso que este sentido seja valida emsi, isto e, que venha do pavor .. , Jabberwocky e a obra deurn aproveitador que quis intelectualmente saciar-se, ele,farto de uma refei,ao bern servida, saciar-se com a dor deoutrem... Quando eseavamos 0 excremento do ser e desua linguagem, 0 poema deve cheirar mal e Jabberwocky eurn poema que 0 autor evitou manter no ser uterino dosofrimento ,em que todo grande poeta mergulhou e onde,ao ser parido, cheira mal. Ha no Jabberwocky passagensde lecalidade, mas se trata de fecalidade de urn esnobe ingles,que frisa 0 obsceno como cachos frisados a ferro quente.:E a obra de urn homem que cornia bem e percebemos istono que ele escreve ... " 3. Fa!<amos urn resumo: Artaudconsidera Lewis Carroll como urn perverso, urn pequenoperverso, que se restringe a instaura,ao de uma linguag.emde superficie e nao sentiu 0 verdadeiro problema de umalinguagem em profundidade - problema esquizofrenico d~sofrimento, da morte e da vida. Os jogos de CarroUlheparecem pueris, sua alimenta,ao mnito mundana e ate mesmosua feealidade hip6crita e bem educada.

Longe do genio de Artaud, eonsideremos urn outrotexto euja beleza e densidade permanecem clinicas 4. Aque­Ie que chama a si mesmo de doente ou esquizofrenico "es­tudante de linguas" experimenta a exiswncia e a disjun,aodas duas series da oralidade: e a dualidade eoisas-palavras,consuma,5es - express5es, objetos consumfveis - pro­posi,5es exprimiveis. Esta dualidade entre comer e falarpode se exprimir mais violentamente: pagar-falar, defecar-

3. Carta a Henri Parisot, Lettres de Rodez, C.L.M., 1946.4.. WOLFSON, Louia. Le Schizo et Ies Iangues ou Iaphonetique chez Ie

psychobque. Les Temps Mooernes, n9 218, julho de 1964.

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-falar. Mas ela se transporta e se reencontra, tambem so­bretudo entre duas especies de palavras, de proposi90es, duasespecies de Iinguagem: a lingua materna, 0 ingles, essencial­mente alimentar e excremencial; as linguas estrangeirasess.e~cialmen!e expressivas, que 0 doente se esfor9a por ad:9umr.. A mae 0 am~a9a de d~as maneiras equivalentes paraImpedl-Io de progredrr nestas IInguas: seja brandindo diantedele alimentos tentadores mas indigestos, encerrados emcaixas; seja surgindo 'para Ihe falar bruscamente em ingles,antes que ele tenha tldo 0 tempo de tapar os ouvidos. Eleenfrenta a amea9a por meio de urn conjunto de procedimen­tos cada vez mais aperfei90ados. Em primeiro lugar, elecome. com gula, empanturra-se, sapateia sobre as caixas, masrepetmdo para si mesmo, sem parar, algumas palavras es­trangeiras. Mais profundamente, ele assegura uma resso­nancia entre as duas series e uma conversao de uma paraa outra, traduzindo as palavras inglesas em palavras estran­geiras segundo Os elementos foneticos (as consoantes sendo~ mais i~portante): por exemplo, arvore, tree em ingles,e convertlda gra9as ao R que se encontra tambem no vo­cabulo frances, depois gra9as ao T que se encontra tambemno termo hebreu; e como 0 russo diz, derevo, arvore, pode­mos igualmente transformar tree em tere, T transforman­do-se enta~ em D. Este procedimento ja complexo da lugar~ ,J.'ID proce~ento generalizado, quando 0 doente tem aIdela de fazer mtervir associa90es: early (cedo), cujas con­soantes R e L colocam problemas panicularmente delicados,transforma-se nas locu90es francesas associadas "suR-Le­-champ", "de bonne heuRe", "matinaLement", "a lapaRole", "devoRer L'espace", ou mesmo em uma palavraesoterica e ficticia de consonancia alema, urlich. (Lembra­mo-nos de que Raymond Roussel, nas tecnicas que inven­tava para constituir e converter series no interior do francesdistinguia um primeiro procedimento restrito e Um segund~procedimento generalizado na base de associa90es.) Acon­tece que palavras rebeldes resistem a todos os procedimen­tos,. animando i,nsuportaveis paradoxos: assim ladies, que seaplIca apenas a metade do genero humano, mas que naopode ser transcrito a nao ser por leutte ou loudi, que de­siguam, ao contrario, a totalidade do genero humano.

Aqni ainda temos primeiramente a impressao de urnacerta semelhan9a com as series carrollianas. A grande duali­dade oral c0ll1.er-falar, tambem em Lewis Carroll, ora ~_desloca_e passa.entrcduaR-especies de pr0j10si91ieu:,-uduas.dimensoes das proposi90es, oras.e endurece e slUorna paggr­-f~ar'- ~.~elDe))to-li!1guagem iblic~.!IeY.e __c()ml"rar_ S> ovo. na

!"Ja_da.o."elha c Humpty.Dump.ty_paga_as...palavras;'-gJ,Ianto3,Ie,fahclade, como diz Artaud,.ela_scacha subjacente em

toda a obra de Carroll). Da mesma forma, quando AntoninArtaud desenvolve suas pr6prias series antinomicas, "ser eobedecer, viver e cxistir, agir e pensar, materia calma, corpoe espirito", ,ele pr6prio tem a impressao de urna extraordi­oaria semelhan9a com Carroll. 0 que ele traduz dizendo

'. que para aiem dos tempos, Carroll 0 pilhou e plagiou, a ele,'f"'~ >" - Antonin Artaud, tanto no que se refere ao poema de.' Humpty Dumpty sobre os peixes, quanto no que diz respeito.. ao Jabberwocky. E, no cntanto, por Que Artand acrescenta

que nao tem nada a ver com Carroll? Por que a extraordi-narla fari.i11iafiQaaee tambem uma radjc.aL_e_-<iellmt!y.~ ~s-

tranheza?&sta perguntar uma vez mais como e em quelugar se organizam as series de Carroll: as duas series searticulam em superficie. Sobre esta superficie, uma Iinha ecomO a fronteira das duas series, proposi90es e coisas oudimensoes da proposi9ao. Ao longo desta linha se elaborao sentido, ao mesmo tempo como expresso da proposi9ao eatributo das coisas, ~'exprimivel" das express5es e ~'atribuf­

vel" das desigua90es. As duas series se encontram poisarticuladas por sua diferen9a e 0 sentido percorre toda asuperficie, embora permane9a sobre sua pr6pria Iinha. Naoha duvida de que este sentido imaterial e 0 resultado dascoisas corporais, de snas misturas, de snas a90es e ~aix5es.

Mas 0 resultado e de uma natureza completamente diferenteda causa corporal. Eis por que, sempre na superficie, 0sentido como efeito remete a uma quase-causa ela pr6priaincorporal: 0 naa-senso sempre m6vel, expresso nas palavrasesotericas e nas palavras-valise e que distribui 0 sentidodos dois lados simultaneamente. ~ tudo isto a organiza9aode superficie em que opera a obra de Carroll como efeitode espelho.

Artaud diz: ista Daa passa de superffcie A Tevela~ao

que vai animar 0 g~l1io.de Artaud,_Q.J)),ais.Jnfim,o_do.s..£!',Q!!i.­-zorremcos a conhece e viv~. tambem..a.sua.lIlaneiri!:~!l,--~le

nao"M, .niio existe mais superjici.e. Como entao Carroll naolria parecer-Ihe uma menina afetada, aa abrigo de todosos problemas de fundo? A primeira evidencia esquizofre­niea e que a superficie se arrebentou.-zQ.Ji.i.jj)ais:fton­teita entre as c6islfS--'e- proposi90es...pIe.cisarnente l'sr'lue--nau h:i mais superficie dos corpas. 0 primeiro aspeeto docorpo esquizofrenieo e uma especie de corpo-coador: Freudsublinhava esta aptidaa do esquizofrenieo para captar a su­perficie e a pele como perfuradas por urna infinidade depequenos buracos 5. A conseqiiencia e q!1e 0 corpo no seu

5. FREVD. 0 Inconsciente (I915). Metapsychologie. Trad. M. Bona­parte e A. Berman, Gallimard. pp. 152-155. Citando dois casas de doentesdos quais urn apreende sua pele e 0 outro suas meias como sistemas de pe­quenos huraeos que correro 0 risco de perpetuo alarl!Y<Lmento, Freud mostra queexiste ai urn sintoma propriamente esquizofrenico que nao poderia convir nemao histerico nem ao obsessivo.

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i! todo nao e mais que profundidade e leva,engole todas ascoisas nesta profundidade escancarada que representa urnainvolu9ao fundamental. Tudo e corpo e corporal. . Tudo e.I1!!stura de corpo e no~'!pQ, encaixe, pel)~ra9ao. Tudo efislCa, como diz Artaud: "n6s temos nas costasYeriebiiis ple­nas, afravessadas pef'> cravo da dor e que, pelo andar, peloesfor90 dos pes ao se levantarem, a resisteneia ao abandono,

i formam caixas ao se unirem umas as Qutras" 6. VIDa :irvore,I uma coluna, uma flof, uma vara crescem atraves do corpo;

il': sempre Qutros carpas penetram em nosso corpo e coexistemIi com suas partes. Tudo e diretamente caixa, alimento em'I I caixa e excremento. Como nao h:i superfieie, 0 interior eI 0 exterior, 0 continente e 0 conte6do nao tern mais limite

II . f! preciso e se a undam em uma universal profundidade ou'I giram no circulo de Um presente cada vez mais estreito, naI I medida mesma em que ele e cada vez mais repleto. De ondeI a maneira esquizofrenica de viver a contradi9ao: seja na

fenda profunda que atravessa 0 corpo, seja nas partes quese encaixam e giram. Corpo-coador, corpo-despeda9ado ecorpo-dissociado formam as tres primeiras dimensoes docorpo esquizofrenico.

Nesta faleneia da superfieie, a palavra no seu todo perdeo sentido. Ela conserva talvez urn certo poder de designa­9ao, mas apreendido como vazio; um certo poder de mani­festa9ao, apreen_dido como indiferente; uma certa significa­~ao, apreendida como "falsa". Mas ela perde, em todos oscasos, seu sentido, isto e, sua capaeidade de recolher ou deexprimir um efeito incorporal distinto das a90es e das paixoesdo corpo, urn acontecimento ideal distinto de sua pr6priaefetua9ao presente. Todo acontecimento e efetuado, aindaque sob uma forma alucinatoria. Toda palavra e fisig,...afetai!1Iediatamente 0 corpo. 0 procedimento e do seguinte ge­nero: uma palavra, frequentemente de natureza alimentar,

'I ,,''7 aparece em maiusculas impressas como em uma colagemy que a fixa e a destitui de seu senlido; mas ao mesmo tempo

em que perde seu senlido, a palavra afixada explode empeda90s, decomp5e-se em silabas, letras, sobretudo consoan­tes que agem diretamente sobre 0 corpo, penetrando-o e mor­tificando-o. Foi 0 que vimos a respeito do esquizofrenicoestudante de linguas: e ao mesmo tempo, que a lingua ma­terna e deslituida de seu senlido e que seus elementos fone­ticos se tornam singularmente contundentes. ""Jlal~_vrl!A~~~u

~~.exprimir urn atributo· de.. estado de cofsas, gens pedaJ;QS.se confundem com qualidades sonora.s.._in.s.!1port~Yeis, iazemefra9ao no. corpo em que formam ulll.a:.mistu~ um novoestado de coisas, como. _slLeiespr6prios fuSsem alimentos

6. ARTAtID. Antonin. La Tour de feu. Abril de 1961.

,.

venenosos, rnidosos e-llife!I@!1oLencaixil.<I.9S. As partesdo corpo, 6rgaos, determinam-se em fun9ao dos elementosdecompostos que os afetam e os agridem 7. Ao efeito delinguagem se substitui uma pura linguagem-afeto, neste pro­cedimento da paixao: "Toda escrita e PORCARIA" (istoe, tada palavra detida, tra9ada se decompoe em pedll90sruidosos, alimentares e excremenciais).

Trata-se menos, portanto, para 0 esquizofrenico, derecuperar 0 sentido que de destrnir a palavra, de conjuraro afeto ou de transformar a paixao dolorosa do corpo ema9ao triunfante, com a obediencia em comando, semprenesta profundidade abaixo da superficie cavada. 0 estu­dante de linguas da 0 exemplo de meios pelos quais as ex­plosoes dolorosas da palavra na lingua materna sao conver­tidas em a90es relativas as linguas estrangeiras. E da mesmaforma como aquilo que feria, hi pouco, estava nos elemen­tos fontfticos que afetam as partes do corpo encaixado oudesencaixado, 0 triunfo nao pode ser obtido agora a naoser pela instaura9ao de palavras-sopros, de palavras-gritosem que todos os valores literais, silabicos e foneticos saosubstituidos por valores exclusivamente tonicos e nao-escri­tos, aos quais corresponde um corpo glorioso como novadimensao do corpo esqnizofrenico, um organismo sem partesque faz tudo por insufla9ao, inspira9ao, evapora9ao, trans­missao fluidica (0 corpo superior ou corpo sem 6rgaos deAntonin Artaud)'. E sem davida esta determina9ao doprocedimento alivo, por oposi9ao ao procedimento da paixao,parece em primeiro lugar insuficiente: os fluidos nao pa­recem, com deito, menos maleficos do que os peda90s. Masisto em virtude da ambivalencia a9ao-paixao. :B ai que acontradi9ao vivida na esquizofrenia encontra seu verdadeiroponto de aplica9ao: se a paixao e a a9ao sao os p610sinseparaveis de uma ambivalencia e porque as duas lingua­gens que elas formam pertencem inseparavelmente ao corpo,a profundidade dos corpos. Nunca se esta seguro, porconsegninte, de que os flnidos ideais de um organismo sempartes nao carreguem vermes parasitas, fragmentos de 6rgaose de alimentos s6lidos, restos de excrementos; estamos mesmoseguros de que as potencias maleficas se servem efeliva­mente dos fluidos e das insufla90es para fazer passar noscorpos os peda90s da paixao. 0 fluido e necessariamentecorrompido, nao por si mesmo, mas pelo outro pOlo doqual e inseparavel. Nao e menos certo que ele representao pOlo alivo ou estado de mistura perfeito, por oposi9aoao atrito e a contusao das misturas imperfeitas, p610

7. Sobre as letras-6:tglios. cf. Antonin Artaud, "Le Rite du peyotl", emLea rTarahumaras. ed. l'ArballHe. pp. 26-32.

8. CE. em 84, 1948: "Nada de boca, de Hngua, de dentes, de laringe,de es6fago, de est8mago, de ventre, de §nus. Eu reconstroirei 0 homem que­sou", (0 corpo sem 6rgaos e feito 56 de osso e de sangue.)

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passivo. Ha na esquizofrenia uma maneira de viver adistin~ao estoica entre duas misturas corporais, a misturaparcial, que aHera, a mistura total e liqnida que deixa 0

corpo intacto. Ha, no elemento flnido, urn liqnido insuflado,o segredo nao·escrito de uma mistura ativa que e como 0

"principio do Mar", por oposi~ao as misturas passivas daspartes encaixadas. £ neste sentido que Artaud transformao poema de Humpty Dumpty sobre 0 mar e os peixes, sobreo problema de obedecer e de comandar.

Esta segunda linguagem, este procedimento de a~o sedefine praticamente por suas sobrecargas consonanticas, gu_turais e aspiradas, suas apostrofes e seus acertos interiores,seus sopros e sua escansoes, sua modula~ao que substituitodos os valores silabicos ou mesmo literais. Trata-se defazer da palavra uma a~ao tornando-a indecomponivel, im­possivel de desintegrar: linguagem sem articulQ{;iio. Mas 0

cimento aqui e um principio molhado, a-organico, blaco oumassa de mar. A proposito da palavra russa, a arvore dere­1'0, 0 estudante de linguas se regozija com a existencia deurn plural - derev'ya - em que a apostrofe interior lheparece assegurar a fusao das consoantes (0 siguo mole doslingiiistas). Ao inves de separar as consoantes e de torna-Iaspronunciaveis, dir-se-ia que a vogal reduzida ao siguo moletorna as consoant~s indissociaveis, molhando-as, deixa-as ile­giveis e mesmo impronunciaveis, mas faz delas gritos ativosem urn sopro continuo 9. Os gritos juntos sao soldados nosopro, como as consoantes no signa que molha, como ospeixes na massa do mar ou os ossos no sangue para 0 corposem orgaos. Siguo de fogo, tambem, onda que "hesita entreo gas e a agua", dizia Artaud: os gritos sao como crepita­~oes no sopro.

Quando Antonin Artaud diz no seu Jabberwocky: "Ius­que Iii. ou la rourghe est ii. rouarghe a rangmbde et rangmbdea rouarghambde", trata-se de ativar, de insuflar, de molharou de fazer flamejar a palavra para que ela se torne a a~ao

de um corpo sem partes, em lugar da paixao de urn orga­nismo feito em peda~os. Trata-se de fazer da palavra umconsolidado de consoantes, um indecomponivel de conso­antes, com signos moles. Nesta linguagem podemos sempreencontrar eqnivalentes de palavras-valise. Para rourghe erouarghe, 0 proprio Artaud indica ruee (monte de palha)roue (roda), route (rota), regie (regra), route a regler

9. Cf. Wolfson, cp. cit., p. 53: em deref)'ya, "a virgula entre 0.., molhadoe 0 y representa 0 signo elito mole, 0 qual nesta palavra faz na verdade comurn y, consoante completa, se pronuncie ap6s 0 v (molhado) 0 qual fonema dealguma forma seria molhado sem 0 signo mole e por causa da vogal moleseguinte, representada aqui foneticamente por ya e escrevendo-se em russo comurna 56 letra, tendo a forma de urn. R majusculo ao inverse (pronunciar direvya:o Beento de intensidade recai sobre a segunda sHaba; 0 i aherto e breve; 0d, 0 Teo v molhados ou como fundidos com urn yod)". Da mesma forma,p. 73, os comentanos do esquizofrfurico sobre a palavra russa louD'Mi.

1-

(rota a ser regulada), a que acrescentaremos Rouergue, paisde Rodez em que Artaud se encontrava. Da mesma forma,quando ele diz Uk'hatis, com apostrofe interior, ele indicaukhase (ukase), h!J.te (pressa) e abruti (embrutecido) eacrescenta "solavanco noturno sob Hecate, que significa osporcos da lua postos para fora do caminho reto". Ora, nomomento mesmo em que a palavra se apresenta como umapalavra-valise, sua estrutura e 0 comentario q~e a ela seacrescenta nos persuadem de algo totalmente diferente; osGhore Uk'hatis de Artaud nao sao urn equivalente dosporcos peqlidos, dos morne raths de Carroll ou dos verchonsfourgus de Parisot. Eles nao rivalizam neste plano. £que, longe de assegurar uma ramifica~ao de series segundoo sentido, operam ao contrario uma cadeia de asso,:,ia~oes

entre elementos tonicos e consonantais, em uma reglao deinfra-sentido, segundo urn principio fluido e incandescenteque absorve, reabsorve efetivamente 0 sentido ii. medi?a queele se produz: Uk'hatis (ou os porcos da lua extravtados),e K'H (solavanco), K'T (noturno) H'KT (Hecate).

Nao se marcou bastante a dualidade da palavra esqui­zofrenica: a palavra-palxao que explode nos seus valoresfonHicoS--contundentes, a palavra-a~ao que solda valorestonicos inarticulados. Estas duas palavras se desenvolvemem rela~ao com a dualidade do corpo, corpo feito em peda­~os e corpo sem orgaos. Elas remetem a dois teatros, teatrodo terror ou da paixao, teatro da crueldade essencialmenteativo. Elas remetem a dois nao-sensos, passivo e ativo: 0

da palavra privada de sentido que se decompoe em elemen­tos foneticos, 0 dos elementos tonicos que formam umapalavra indecomponivel nao menos privada de sentido. Tudose passa aqui, age e padece abaixo do sentido, longe da su­perficie. Subsentido, infra-sentido, Untersinn, que deve serdistinguido do nao-senso de superficie. Segundo a palavrade HOlderlin, "um signo vazio de sentido", tal e a linguagemsob seus dois aspectos, urn siguo, de qualquer forma, masque se confunde com uma a~ao ou uma paixao do corpo 10.

Eis por que parece muito insuficiente dizer que a lingua­gem esquizofrenica se define por urn deslizamento, inces­sante e ,enlouquecido, da serie siguificante sobre a serie sig-

10 No seu beHssimo estudo Structuration dynamique dans la schizophre­nie (V~rlag Hans Huber, Berna, 1956), Gisela Pankow levou muito lange 0exame do papel dos signos na esquizofrenia. Relativattl;ente aos casas rel~tados

por Mme Pankow, consideraremos notadamente: a an~lse das .palavras aUmen­tares tornadas im6veis que explodem em peda!r0s ~oneticos, aSSlm como CA~­MELS p. 22' a dial';Uca do continente e do conteudo, a descoberta da opoSIcaopolar, '0 tem.a: da agua e do fogo. que se ae~ a isso Iigado, pp.. 57-60, 64, 67.70; a curiosa invocat;ao do pelxe como slgn~ fie revolta .ativa e da aguaquente como signo de libera!tlio, pp. 74-79; a dlStin!tao de dOis corpos, 0 rorpoaberto e dissociado do homem-flor e a cabe!ta em 6rgll.os que lhe serve decomplemento, pp. 69-72. Pareee-nos, entretanto, que a interpr~at;ao de ~me

Pankow minimiza a papel da eabe!ta sem 6rgaos. E que 0 regime dos SlgnOSvividos na esqui20frenia nao se compreende, abaixo do sentido, a nao seI peladistin!t1io entre os signos-paixOes do eorpo e dos signos-at;6es corporais.

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nificada. Na realidade, niio hti mais sertes absolutamente,as duas series desapareceram. 0 nao-senso deixou de dar 0

sentido a superficie; ele absorve, engole todo sentido, tantoao lado do significante quanto do significado. Artaud dizque 0 Ser, que e nao-senso, tern dentes. Na organiza,ao desuperficie que chamavamos de secundaria, os corpos fisicose as palavras sonoras sao separados e articulados ao mesmotempo por uma fronteira incorporal, a do sentido que repre­senta de urn lado 0 expresso puro das palavras, de outro, 0atributo 16gico dos corpos. Tanto que 0 sentido pode muitobern resultar das a,6es e das paix6es do corpo: e urnresultado que difere em natureza, nem a,ao nem paixao porsi mesmo e que garante a Iingnagem sonora de toda confu­sao com 0 corpo fisico. Ao contrario, nesta ordem prima­ria da esquizofrenia, nao ha mais dualidade a nao ser entreas. a,6es e as paix6es do corpo; e a Iinguagem e os dois aomesmo tempo, inteiramente reabsorvida na profundidade es­cancarada. Nada mais impede as proposi,6es de se abate­rem sobre os corpos e de confundir seus elementos sonoroscom as afec,6es do corpo, olfativas, gnstativas, digestivas.Nao somente nao M mais sentido, mas naoha mais grama­tica ou sintaxe e, em Ultima instancia, nem mesma elementossilabicos, Iiterais ou foneticos articulados. Antonin Artaudpode intitular setr ensaio de "Tentativa antigramatical contraLewis Carroll". Carroll tern necessidade de uma gramaticamuito estrita, encarregada de recolher a flexao e a articula­9ao das palavras, como separadas da flexao e da articula,aodos corpos, ainda que fosse apenas pelo espelho que asreflete e lhes devolve urn sentido n. Eis por que podemosopor ponto por ponto Artaud e Carroll - a ordem pri­maria e a organiza,ao secundaria. As series de superfidedo tipo "comer-falar" DaO tern realmente nada de comumcom os p%s em profundidade aparentemente semelhantes.As duas figuras do niio-senso na superficie, que distribuemo sentido entre as series, DaO tern nada a ver com os daismergulhos de niio-senso que 0 arrastam, 0 engolem e 0

reabsorvem (untersinn). As duas formas da gagneira, do­nica e tonica, nao tern senao grosseiras analogias com as duasIinguagens esquizofrenicas. 0 corte de superficie nao ternnada de comum com a Spaltung profunda. A contradi,aocaptada em uma subdivisao infinita do passado-futuro sobrea Iinha incorporal do Aion nao tern nada a ver com a opo-

11. 1: neste sentido que, em Carroll, a inveu!ilo e essencialmente devocabulario e n10 sintfi.xico ou gramatical. Desde entao, as palavras-valisepodem. abrir uma infinidade de interpretat;oes possiveis, ramificando as series;resulta que 0 rigor sintA.xico elimina, de fato, um certo nurnero destas possibi­lidades. 0 mesmo ocorre em Joyce, como 0 mostrou Jean Paris (Tel Quel,n9 30, 1967. p. 64). Ao contrluio, em Artaud; mas porque nao hi mais pro·blerna de sentido, propriamente falando.

sl,ao dos p610s no presente fisico dos corpos. Mesmo aspalavras-valise tern fun,6es totalmente heterogeneas.

Podemos encontrar na crianc;a uma "posic;ao" esquiz6ideantes de ela ter se elevado ou conquistado a superficie. Nasuperficie mesmo podemos sempre encontrar peda,os esqui­z6ides, uma vez que ela tern precisamente por sentido or­ganizar e estender elementos vindos das profundidades. Nempor isso e menos execravel e deploravel misturar tudo, sejaa conquista da superficie na crian,a, seja a falencia da su­perficie no esquizofrenico e 0 controle das superficies na­quele que 'chamamos - por exemplo - perverso. Podemossempre fazer da obra de Lewis Carroll uma especie de contoesqnizofrenico. Imprudentes psicanalistas ingleses 0 fize­ram: 0 corpo-telesc6pio de Alice, seus encaixes e desen­caixes, snas obsessoes alimentares manifestas e excremen­ciais latentes; os peda,os que designam tanto peda,os dealimento como "trechos escolhidos", as colagens e etiquetasde palavras alimentares prontas para se decompor; as perdasde identidade, os peixes e 0 mar... Podewos ajnda per­JlUlltar que genero de loucura repres~.!illlL.9linica~.e¥!!Wl

_chapelei~" ,lllebre de.Pllr,()e.0:lI~anaz. E na opos1,ao deAlice e Humpty Dumpty, poifemos'sempre reconhecer osdois p610s ambivalentes "6rgaos em peda,os - corpos sem6rgaos", corpo coador e corpo glorioso. 0 pr6prio Artaudnao tinha outra razao para se confrontar com 0 texto deHumpty Dumpty. Mas, neste momento preciso, repercute aadvertencia de Artaud: "Eu nao fiz tradu,ao... jamaisgostei deste poema... nao gosto dos poemas ou das Iin­guagens de superficie". Uma psicanaIise rna tern duas ma­neiras de se enganar ou por acreditar descobrir materias iden­ticas que for9Qsamente se encontram em toda parte ou formasanaIogas que fazem falsas diferen,as. :E ao mesmo tempoque se deixa assim escapar 0 aspecto cHnico psiquiatrico eo aspecto critico Iiterario. 0 estruturalismo tern razao emJembrar que forma e materia nao tern alcance a nao ser nasestruturas originais e irredutiveis em que elas se organizam.Uma psicanalise deve ser de dimens6es geometricas, antesde ser de anedotas hist6ricas. Pois a vida, a pr6pria sexuali­dade, estao na organiza,ao e orienta,ao dessas dimens6es,antes de estar nas materias geradoras e nas formas engen­dradas. A psicanaIise nao pode se contentar em designarcasos, manifestar hist6rias ou significar complexos. A psica­nillse e psicanaIise do sentido. Ela e geografica antes de serhist6rica. Ela distingue paises diferentes. Artaud nao eCarroll nem Alice, Carroll nao e Artaud, Carroll nao enem mesmo Alice. Antonin Artaud aprofunda a criallfaem uma altemativa extremamente violenta, conforme as duasIin.$.l!agens em profundidade, de paixao e a,ao cO.!P2rais:

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Q~_ .~ntao que a crian9a nao Ilas9a, isto e, nao saia das caixasde su~ ~s!,i~a dor~alPor vjr, sabrea qual osp_ai~lornicallJ( 0 swcld!o. as aves~as) - o~entao _que ela_se1~1!!Jlcorpo flUld,CO e glonoso, flameJante, sem_ Qrg?()~_,~__seI:!U'ais{como aquelas que Artau~ .chamava desuas_"filh~~"-j>();'nascer) .. Carroll ao contrano espera .a crilmfa, conformea sua Imguagem do sentido incorporal:-- "i,,-aesperanoponto e noulIlom_ent()_elll que~~_~ifan~ delXou as profUii-_diQades d()_ corpo materno, _ainda..1l?oA~~cobriu a profun­didade do s~u proprio corp(), curto momento de superficieem que il_lllenina aflora a iiglla,como Alice na bacia desuasJlrojJriasliigrinJas._Sao ()1!tros paises, outras dimensoessem rela<;ao. Podemos acredjtar _'lue i superffcie- tern seusmonstros, Snark e JalJberwock,_seuLterr_OJ_~uLSuasSIllelda_­des, as quais, pelo. fato de_na()_serelll <!as pr()full<lillades, tem,

_de qualquer manelra, garras e-R()demtragaUl!!~r".lineiiie _Oil~esmo fazer-nos recair no abismo que acreditiivamos-con­Jurado. Carroll e Arta?d nao se reencontiam; s60 comeii~­

tad.or po~-" mudar de dlmensao, e eis a sua-grande-fraqiieza,oS'}llll_<!e_Cjllen;,~ Jiiibita_ne11liwna. Por todo CarralI;- naadarJamos uma pagma de Antonin Artaud; Artaud e 0 Unicoa ter sido profundidade absoluta na literatura eater desco­?erto wn corpo ~tal e a linguagem prodigiosa deste corpo,~ custa .de sof':Ule~to, como ele diz. Ele explorava 0infra-sentido, hOJe aroda desconhecido. Mas Carroll con­tinua .s~ndo 0 s~nhor ou 0 agrimensor das superficies, queacredltavamos tao bem conhecidas a ponto de nao maisexpl.ora-Ias e onde se processa, contudo, toda a logica dosentido.

Decima Quarta Serie:Da Dupla Causalidade

A fragilidade do sentido se explica facilmente. 0 atri­bute e de uma outra natureza que as qualidades corporais.o acontecimento, de uma outra natureza que as a<;oes epaixoes do corpo. Mas ele resulta delas: 0 sentido e 0 efeitode causas corporais e de suas misturas. Tanto que ele estiisempre correndo 0 risco de ser tragado por sua causa. Elenao se salva, nao afirma sua irredutibilidade a nao ser namedida em que a rela<;ao causal compreende a heterogenei­dade da causa e do efeito: elo das causas entre si e liga<;aodos efeitos entre si. 0 que e 0 mesmo que dizer que 0 sen­tido incorporal, como resultado das a<;oes e das paix6es docorpo, nao pode preservar sua diferen<;a relativamente a causacorporal a nao ser na medida em que se prende em super­ficie a uma quase-causa, ela mesma incorporal. Foi 0 queos Estoicos viram mnito bem: 0 acontecimento e submetidoa uma dupla causalidade, remetendo de um lado as mistu­ras de corpos que sao a sua causa, de outro lado, a outrosacontecimentos que sao a sua quase-causa I. Ao contriirio,se os Epicuristas nao chegam a desenvol"er sua teoria dosenvelopes e das superficies, se nao chegarn a ideia de efeitosincorporais, e talvez porque os "simulacros" continuam sen·do submetidos a causalidade exclusiva dos corpos em pro­fundidade. Mas, mesmo do ponto de vista de uma purafisica das superficies, a exigencia de uma dupla causalidadese manifesta: os acontecimentos de wna superficie liquidaremetem, de um lado, as modifica<;oes intermoleculares dosquais dependem como de sua causa real, mas, de outro lado,as varia<;oes de uma tensao dita superficial, da qual depen­dem como de uma quase-causa, ideal ou "fictfcia". Temostentado fondamentar esta segunda causalidade de uma ma-

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I

I, neira que convem ao carater incorporal da superffcie e do

acontecimento: pareceu-nos que 0 acontecimento, ista e, 0

sentido, relacionava-se a um elemento paradoxal intervindocomo nao-sensa au ponto aleat6rio, operando como quase­-causa e assegurando a plena autonomia do efeito. (E ver­dade aue esta autonomia nao desmente a fragilidade prece­dente, -uma vez que as duas figuras do nao-senso na super­fide podem, por sua vez, transforrnar-se noS dais nao-sensosprofundos de paixao e de a,ao e assim 0 efeito incorporalser reabsorvido na profundidade dos corpos. Inversamente,esta fragilidade nao desmente a autonomia enquanto 0 sen­tido disp6e de sua dimensao propria.)

A autonomia do efeito se define pois em primeiro lugarpor sua diferen,a de natureza com rela,ao a causa, em se­gundo lugar, por sua rela,ao com a quase-causa. So queestes dois aspectos dao ao sentido caracteres muito dife­rentes e mesmo, aparentemente, opostos. Pois, na medidaem que afirma sua diferen,a de natureza diante das causascorporais, estados de coisas, qualidades e misturas fisicas, 0

sentido como efeito ou acontecimento se caracteriza por umaesplendida impassibilidade (impenetrabilidade, esterilidade,ineficacia, nem ativo nem passivo). E esta impassibilidadenao marca somente a diferen,a do sentido com rela,ao aosestados de coisas designados, mas tambem sua diferen,a rela­tivamente as proposi,oes que 0 exprimem: deste lado, elaaparece como neutralidade (dobra extraida da proposi,aa,suspensao das modalidades da proposi,ao). Ao contrario,desde que 0 sentido e captado na sua rela,ao com a quase­-causa que 0 produz e 0 distribui na superficie, ele herda,participa, mais ainda, envolve e possui a potencia destacausa ideal: vimos como esta nao era nada fora de seuefeito, que ela.- tragava este efeito, que mantinha co~ eleuma rela,ao imanente que faz do produto alguma COlsa deprodutor, ao mesmo tempo em que e produzido. Nao himais por que voltar a insistir sobre 0 carater essencialmenteproduzido do sentido: jamais originario, mas sempre causado,derivado. Resta que esta deriva,ao e dupla e que, emrela,ao com a imanencia da quase-causa, ela cria os ca­minhos que tra,a e faz bifurcar. E este poder genetico,nestas condi,oes, devemos sem duvida compreende-Io camrela,ao a propria proposi,ao, na medida em que 0 sentidoexpresso deve engendrar as outras dimensoes da proposi,ao(significa,ao, manifesta,ao, designa,ao). Mas devemoscompreende-Io tambem com rela,ao a maneira pela qual estasdimensoes se acham preenchidas e ate mesmo com rela,ao

1. Cf. Clement d'Alexandrie, Stromates VIII, 9: "Os est6icos dizemCJ,ue 0 corpo e- causa, no semido pr6prio, mas 0 incorporal de urn modo metaf6­nco e a maneira de uma causa".

ao que preenche estas dimensoes, a tal ou tal grau ou de. talou tal maneira: isto e, com rela,ao aos estados de COlsasdesignados, aas estados do sujeito manifestados, aos ~~n­

ceitos, propriedades e classes significadas. Como c~ncihar

estes dois aspectos contraditorios? De urn lado, a Impas­sibilidade em rela,ao aos estados de coisas ou a neutra­lidade em rela,ao as proposi,oes, de outro lado a potenciade genese tanto em rela,ao as. proposi,oes qua.n.to em ~e­

la,ao aos proprios estados de COlsas. Como conclhar 0 pnn­cipio logico segnndo 0 qual uma proposi,ao falsa tern urnsentido (de tal modo que 0 sentido como condi,ao do ver­dadeiro permanece indiferente tanto ao verdadeiro como aofalso) e 0 principio transcendental, nao menos certo, se­gundo 0 qual uma proposi,ao tern sempre a verdade, a partee 0 genero de verdade, que ela merece e que Ihe cabe con­forme seu sentido? Nao bastaria dizer que esses dois aspec­tos se explicam pela dupla figura da autonomia e vern dofate de que, em urn caso, consideramos somente 0 efeitocomo diferindo em natureza de sua causa real e no outrocaso como ligado a sua quase-causa ideal. Pois sao estasduas figuras da autonomia que nos precipitam na contradl­<;ao sem contudo resolve-la.

, Esta opasi<;ao entre a logica formal simp~es e a lo~catranscendental atravessa toda a teoria do sentldo. Conslde­ramos 0 exemplo de Hussed nas Idilias. Lembremo-nos deque Hussed descobrira 0 sentido como .noema de urn a~,? ouexpresso de uma proposi<;ao. Nesta Via, como os EStOlCOS,tinha reencontrado a impassibilidade do sentido na expres­sao gra<;as aos metodos redutores da fenomenologia. PoisDaO somente 0 ooema, desde os seus primeiros momentos,implicava urn duplo neutralizado da tese ou da modali~ade

da proposi<;ao expressiva (0 percebido, 0 lembrado, 0 Ima­ginado); mas possuia urn nueleo completamente indepen­dente dessas modalidades da consciencia e desses caracte­res teticos da proposi<;ao, completamente distinto .tambem dasquaIidades fisicas do objeto posto como real (ass:m, ?S PW;ospredicados, como a co~ noematica, em. que nao mtervemnem a realidade do obJeto nem a manelra segundo a qualtemos consciencia dele). Ora, eis que, no nucleo do sentidonoematico, aparece alguma coisa de ainda mais .in?ma, urn"centro supremamente" ou transcendentalmente mtimo, quenao e nada alem da rela<;ao do propria sentido ao objeto nasua realidade, relariio e realidade que devem agora ser en­gendrados ou constituidos de maneira transcendent~l. PaulRicoeur, ap6s Fink, sublinhou muito bem esta v~ad~ naquarta sec<;ao das Idilias: "Nao somente a ~onSCl~nCIa sesupera em urn sentido visado, mas este sentldo vIsa~o sesupera em urn objeto. 0 sentido visado nao era mals do

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que urn conteudo, conteudo intencional, certamente, e naoreal. ., (Mas agora) a relagao do noema ao objeto deveriaela propria ser constituida pela cousciencia trauscendentalcomo ultima estrutura do noema" 2. No coragao da logicado sentido, reencontramos sempre este problema, estaimaculada concep9ao como passagem da esterilidade agenese.

Mas a genese husser/iaua parece operar um passe demagica. Pois 0 nuc!eo foi bem determinado como atributa;mas 0 atributo e compreendido como predicada e nao comoverbo, isto e, como conceito e nao como acontecimento (eassim que a expressao, de acordo com Husserl, produz umaforma do conceitual ou que 0 sentido e inseparavel de nmtipo de generalidade, se bem que esta generalidade nao seconfunda com a da especie). Dai, entao, a rela9ao do sen­tido ao objeto decorre naturalmente da relagao dos predi­cados noematicos a alguma coisa '= X capaz de Ihes servirde suporte ou de principio de nnificagao. Esta coisa = Xnao e, pois, em absoluto, como urn nao-senso interior e co­-presente ao sentido, ponto zero que nao pressuporia nadadaquilo que e precise engendrar; e muito mais 0 objeto== X de Kant, em que X significa somente "qualquer", es­taudo com 0 sentido em uma relagao racional extrinseca detrausceudeucia e que se da, ja pronta, a forma de desigua­9ao, exatamente como 0 sentido enquanto generalidadepredicavel se dava ja pronta a forma de significa9ao. Ocor­re que Husserl pensa a genese, nao a partir de uma ins­tftncia necessariamente "paradoxa!" e nao "identificavel"apropriadamente falando (faltando a sua propria identidadecomo a sua propria origem), mas ao contrario a partir denma faculdade originaria de sensa camum encarregada de darconta da identidade do objeto qualquer e mesmo de umafaculdade de bam sensa encarregada de dar conta do proces­so de identificagao de todos os objetos quaisquer ao infi­nito 3. Nos 0 vemos mnito bem na teoria husserliana dadaxa, em que os diferentes, modos de cren<;a sao engendra­dos em fun<;ao de uma Urdaxa a qual age como uma faculda­de de senso comum com rela<;ao as faculdades especificadas.o que aparecia ja tao c1aramente em Kant vale tambem paraHusserl: a impotencia desta filosofia em romper com aforma do senso comum. Que dizer, entao, de uma filo-

2. Paul Ricoeur, em Idees de Husserl, Gallimard, pp. 431-432.3. HUSSERL, op. cit., p. 456: "0 x dotado nos difetentes atos ou

noemas de atos de urn estatuto de dete~ diferenie e necessariamenteatingido pela consciCncia como sendo 0 mesmo... "; p. 478: "A todo objetoque existe verdadeiramente corresponde por principio no a priori da generalidadeincon?icion?da das es~ncias, a kMia de uma con~ciencia possivel na qual 0pr6pno obJeto pade sex tornado de maneira originma e portanto perleitamenteadequada... "; p. 480: "Este continuo e mais exatamente detenninado comoinfinite em todas as dire!;'Qes; composto em todas estas fases de aparencias domesmo x determinlivel..,.'

BIBLlOJfCI sEtnp.lnl DE C~~::CIASSOCIAlS t Itlilftil"iIJUii[~

sofia que sente muito bem que nao seria filosofia se naorompesse ao menos provisoriamente com os conteudos par­ticulares e as modaIidades da daxa, mas que dela con­serva 0 essencial, isto e: a forma, e que se contenta comelevar ao transcendental um exercicio apenas empirico emuma imagem do pensamento apresentacla como "origimiria"?Nao e somente a dimensao de significa<;ao que se da japronta no sentido concebido como predicado geral; e naoe somente, tambem, a dimensao de designa<;ao, que se dana rela<;ao suposta do sentido com um objeto qualquer deter­minavel ou individualizavel; e ainda toda a dimensao demanifesta<;ao, no posicionamento de um sujeito transcenden­tal que conserva a forma da pessoa, da consciencia pessoale da identidade subjetiva e que se contenta em decalcar 0

transcendental a partir dos caracteres do empirico. 0 que eevidente em Kant, quando infere diretamente as tres siute­ses transcendentais de siuteses psicologicas correspondentes,nao 0 e menos em HusserI, quando infere urn "Ver" origi­llariO e transcendental a partir da "visao" perceptiva.

E assim, nao somente nos damos na nogao de sentidotudo 0 que era preciso engendrar par ela, mas, 0 que e maisgrave, embaralhamos toda a nogao confundindo sua expres­sao com outras dimensoes das quais pretendiamos distin­gni-Ia - nos a confuudimos transcendentalmente com estasdimensoes das quais queriamos distingui-la formalmente. AsmetMoras de nucleo sao inquietantes; elas envolvem 0 queesta em questao. Sem duvida a doa<;ao de sentido husser­liana toma de emprestimo a aparencia adequada de umaserie regressiva homogenea de grau em grau, depois de umaorganiza~ao de series heterogeneas, a da noese e a do noema,percorridas por uma instancia de dupla face (Urdoxa eobjeto qualquer)'. Mas trata-se somente da caricatura ra­cional ou racionalizada da verdadeira genese, da doa<;ao desentido que deve determina-Ia ao efetivar-se nas series, edo duplo nao-senso que deve presidir a esta doa<;ao, agindocomo quase-causa. Em verdade, a doa<;ao do sentido a partirda quase-causa imanente e a genese estatica que se seguepara as outras dimensoes da proposi<;ao nao podem se rea­lizar senao em um campo transcendental que responderiaas condigoes que Sartre puuha em seu artigo decisivo de1937: um campo transcendental impessoal nao tendo aforma de uma consciencia pessoal sintetica ou de umaidentidade subjetiva - 0 sujeito ao contrario sendo sempreconstituido 5. Nunca 0 fundamento pode se parecer com 0

4. Hussed, op. cit., §§ 100-101 e H 102 e s· .'5. Cf. Sartre, "La Transcendance de l'Ego", em Recherches Phll.().~?ph~ques,

1936..,1937, depois ed. Vrin. A ideia de urn campo transcendental ImJ?essoalou pre-pessoal", produtor do Eu assim como do Ego, e de uma grande .~mp?r­tincla. 0 que impede esta tese de dcsenvolver todas as suas consequeUCla5

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que funda; e, do fundamento, nao basta dizer que e umaoutra historia, e tambem uma outra geografia, sem ser urnoutro mundo. E nao menos que a forma do pessoal, 0campo transcendental do sentido deve excluir a do geral ea do individual; pois a primeira caracteriza somente umsujeito que se manifesta, mas a segunda, somente classes epropriedades objetivas significadas e a terceira, sistemasdesiguaveis individualizados de maneira objetiva, remetendoa pontos de vista subjetivos eles mesmos individuantes edesignantes. Assim, nao nos parece que 0 problema avancerealmente, na medida em que Husser! inscreve no campotranscendental centros de individua9ao e sistemas individuais,monadas e pontos de vista, varios Eu a maneira de Leibniz,antes que urna forma de Eu a maneira kantiana 6. Ha,contudo, como veremos, uma mudanc;a muito importante.Mas 0 campo transcendental nao e mais individual do quepessoal - e mais geral do que universal. Devemos dizerque e urn p090 sem fundo, sem figura nem diferen9a,abismo esquizofrenico? Tudo 0 desmente, a come9ar pelaorganiza9ao de superficie de um tal campo. A ideia desingularidades, logo de antigeneralidades, que sao entretantoimpessoais e pre-individuais, deve agora nos servir dehipotese para a determina9ao deste dominio e de suapotencia genetica.

em SartIe ~ que 0 campo transcendental fmpessoal e ainda determinado comoo de urna consc~cia, que deve, entlio, unificar-se por si mesma e sem Ell,atraves de um jogo de intencionalidades ou reten~Oes puras.

6. NasM~ carlesiennes, as monadas, centros de visao ou pontosde vista, tomam um Iugar importante ao lade do En com unidade sinteticada apercept;Ao. Entre os comentadores de Husserl, coube 0 merito a GastonBerge: o. insistir sabre este deslize; assim. ele podia objetar a Sartre que aC?nsC1~cla pre-pessoaI nAo tinha talvez necessidade do Ell, mas que nao podiadlspensaI' pontos de vista au centros de individua!(ao (cf. Berger, Le Cogilodana. ~ philo8ophie de HU8Sef'l. Aubier, 1941, p. 154; e Rechet"ches sur leac~mdltlom de l~ connaissance. P.D.F., 1941, pp. 190-193). A obje.;:ao e per­tinente na medlda em que 0 campo transcendental e ainda determinado comoo de uma "conscien-cia" constituinte.

Decima Quinta Serie:Das Singularidades

Os dois momentos do sentido, impassibilidade e genese,neutralidade e produtividade, nao sao tais que um possapassar pela aparencia do outro. A neutralidade, a impassi­bilidade do acontecimento, sua indiferen9a as determina­90es do interior e do exterior, do individual e do coletivo,do particular e do geral etc., sao mesmo uma constante sema qual 0 acontecimento nao teria verdade eterna e nao sedistinguiria de suas efetua90es temporais. Se a batalha naoe urn exemplo de acontecimento entre outros, mas 0 Acon­tecimento na sua essencia, e sem duvida porque ela se efetuade muitas maneiras ao mesmo tempo e que cada participantepode capta-la em um nivel de efetua9ao diferente no seupresente variavel: vejamos as classicas compara90eS entreStendhal, Hugo, Toistoi, tal como eles "viam" a batalha efaziam-na ser vista pelos seus herois. Mas e sobretudoporque a batalha sobrevolJ seu proprio campo, neutra comrela9ao a todas as suas efetua90es temporais, neutra e im­passivel com rela9ao aos vencedores e vencidos, COm rela­!tao aos covardes e aos bravos, e por isso tanto moos terrivel,nunca presente, sempre ainda por vir e ja passada, nao po­dendo entao ser captada senao pela vontade que ela propriainspira ao anonimo, vontade que e preciso sem duvida chamar"de indiferen9a" em Um soldado mortalmente ferido, que naoe mais nem bravo nem covarde e nao pode mais ser ven­cedor nem vencido, de tal forma alem, mantendo-se la ondese da 0 Acontecimento, participando assim de sua terrivelimpassibilidade. "Onde" esta a batalha? Eis por que 0 sol­dado se ve fugir quando foge, saltar quando salta, determi­nado a considerar cada efetua9ao temporal do alto da ver­dade eterna do acontecimento que se encarna nela e, infe-

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lizme~te, na sua propria carne. Ainda e preciso uma longaconqUlsta ao soldado para chegar a este alem da coragem eda covardia, a esta apreensao pura do acontecimento poruma "jnt~!rao voIit.iv~", isto e, pela vontade que faz para eleo aconteclmento, dlstinta de todas as intui,5es empiricas quecorrespondem ainda a tipos de efetua,ao I. Assim, 0 maiorlivro sobre 0 acontecimento, maior neste aspecto do queStendhal, Hugo e Tolstoi, e 0 de Stephen Crane, The RedBadge of Courage, em que 0 heroi se designa a si mesmoanommamente como "0 jovem" ou "0 jovem soIdado". Eurn pouco como nas batalhas de Lewis Carroll em que urngrande fuido, uma imensa nuvero negra e neutra, urn corvobarulhento, sobrevoa os combatentes e nao os separa ounao os dispersa a nao ser para torna-Ios ainda mais indis­tintos. Ha certamente urn deus da guerra, mas de todos osdeuses ele e 0 mais impassivel, 0 menDS permeavel as preces,"Impenetrabilidade", ceu vazio, Aion.

. Com rela,ao aos modos proposicionais em geral, a neu­trabdade do sentido aparece de varios pontos de vista. Doponto de vista da quantidade, 0 sentido nao e nem particularnem geral, nem universal nem pessoal. Do ponto de vista daqualidade, ele e completamente independente da afirma­,ao e da nega,ao. Do ponto de vista da modalidade, ele naoe nero assert6rico, nem apodftico, nem meSilla interrogativo(modo de incerteza subjetiva ou de possibilidade objetiva).Do ponto de vista da rela,ao, ele nao se confunde na pro­posi,ao que 0 exprime nem com a designa,ao, nem com amanifesta,ao, nem com a significa,ao. Do ponto de vista dotipo, enfim, ele nao se confunde com nenhuma das intui~6es,das "posi!roes" de consciencia que podemos determinar em­piricamente gra,as ao jogo dos caracteres proposicionais pre­cedentes: intui,5es ou posi,5es de percep,ao, de imagina­,ao, de memoria, de entendimento, de vontade empirica etc.Husserl mostrou realmente a independencia do sentido cernrela,ao a urn certo numero desses modos ou desses pontos deVista, conforme as exigencias dos metodos de redu,ao feno­menologicos. Mas, 0 que 0 impede de conceber 0 sentidocomo uma plena (impenetravel) neutralidade e 0 cuidado emconservar no sentido 0 modo racional de urn born senso e deurn senso comurn, que ele apresenta erradamente como umamatriz, uma "forma-mae nao-modalizada" (Vrdoxa). :e estamesma preocupa,ao que 0 faz conservar a forma da cons­ciencia no transcendental. Ocorre entao que a plena neu­tralidade do sentido nao pode ser atingida a nao ser como

. 1. Georges Gurvitch empregava a palavra "intui~l1o volitiva" para de­SlgnSr urna intui~iio enjo dado nao limita a atividade; ele a aplicava aO Deusde Duns Escoto e de Di!soartes, a vontade de Kant. ao ate puro de Ficbte(Morale TMorique et Science des MoeuTs. P.U.F.. 1948, p. 54 e s.). Parece-nosque a palavra convl:m antes a uma vontade est6ica vontade de acontecimento1:10 duplo sentido do genitivo. • •

-

urn dos lados de uma disjun,ao na propria consciencia: oua posi,ao-mae do cogito real sob a jurisdi,ao da razao oua neutraliza~ao como "contrapartida", "cogito improprio","sambra ou reflexo" inativo e impassivel, subtraido a juris­di,ao racional 2• 0 que e assirn apresentado como urn corteradical da consciencia corresponde aos dois aspectos do sen­tido, neutralidade e potencia genetica com respeito aosmodos. Mas a solu,ao que consiste em repartir os dois as­pectos em uma alternativa nao e mais satisfatoria do que:aquela que tratava urn destes aspectos como uma aparencia.Nao somente a genese e entao uma falsa genese, mas a neu­tralidade, urna pseudoneutralidade. Vimos ao contrario quea mesma coisa devia ser captada como efeito de superficieneutro e como principio de produ,ao fecundo com rela,aoas modifica,5es do ser e as modalidades da proposi,ao, naosegnndo uma disjun,ao da consciencia mas segundo 0 des­dobramento e a conjun,ao das duas causalidades.

Procuramos determinar urn campo transcendental im­pessoal e pre-individual, que nao se parece com os camposempiricos correspondentes e que nao se confunde, entretan­to, com uma profundidade indiferenciada. Este campo naopode ser determinado como 0 de uma consciencia: apesarda tentativa de Sartre, nao podemos conservar a conscien­cia como meio ao mesma tempo em que recusamos a formada pessoa e 0 ponto de vista da individua,ao. Vma cons­ciencia nao e nada sem sintese de unifica~ao, mas nao hasintese de unifica,ao de consciencia sem forma do Eu ouponto de vista da individualidade (Ego). 0 que nao e nemindividual nem pessoal, ao contrario, sao as emiss5es desingularidades enquanto se fazem sobre uma superficie in­consciente e gozam de urn principio movel imanente de auto­-unifica,ao por distribui¢.o nOmad~, que se distingue ra­dicalmente das distribni,5es fixas e sedentarias como condi­,5es das sinteses de consciencia. As singularidades sao osverdadeiros acontecimentos transcendentais: 0 que Ferlin­ghetti chama de "a quarta pessoa .do sin.gular". Lo;,-ge d~

serem individuais ou pessoaJs, as smgulandades presldem agenese dos individuos e das pessoas: elas se repartern emurn "potencial" que nao comporta por si mesma nem Ego(Moi) individual, nem Eu (Ie) pessoal, mas que os produzatualizando-se, efetuando-se, as figuras desta atualiza,aonao se parecendo em nada ao potencial efetuado. :e somen­te urna teoria dos pontos singulares que se acha apta a u1tra­passar a sintese da pessoa e a aniilise do individuo tais cemoelas sao (ou se fazem) na consciencia. Nao podernos acei­tar a alternativa que cornprornete inteirarnente ao mesmo

2. Cf. nas ltUias. 0 extraordinArio § 114 (e sobre a jurisdi~1io da razlo.§ 111).

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t~mpo a. psicologia, a cosmologia e a teologia: ou singula­?d~des J~ tomadas em individuos e pessoas ou 0 abismomdlf~rencIado. Quando se abre 0 mundo pululante das sin­~andades .anonimas e nomades, impessoais, pre-individuais,p~s?mos, afillal, 0 campo do transcendental. No curso dassenes precedentes, cinco caracteristicas principais de urn talmundo se esbo,aram.

Em primeiro lugar, as singularidades-acontecimentoscorre~pondem a series heterogeneas que se organizam emurn ~lstema nero esta~el nero instavel, mas "metaestavel",p~ovldo de uma energla potencial em que se distribuem asdlferen~as entre series. (A energia potencial e a energia doa:onteclmento puro,- enquanto que as formas de atualiza­,ao correspondem as efetua,oes do acontecimento.) Emsegund~ !uga!, as singularidades gozam de urn processo deauto-umflca,ao, sempre movel e deslocado na medida emque urn elemento paradoxal percorre e faz ressoar as seriesenvolvendo os pontos singulares correspondentes em u~mesmo ponto a1eatorio e todas as emissoes todos os lances. .' ,em urna ~e~ma Jo~.ada. Em tercelro lugar as singularidadesou po.tencms frequentam a superficie. Tudo se passa nasuperficle em urn cristal que nao se desenvolve a nao serpelas bor~as. Sem d~vida, nao e 0 mesmo que se da com~m orgamsmo; este nao ces~a de se recolher em urn espa,omtenor, como de se expand!]" no espa,o exterior de assimi­~ar e de exteriorizar. Mas as membranas DaD sio af menosImp0rtantes: elas carregam os potenciais e regeneram as po_larld~des: elas pOem precisamente em contacto 0 espa,oext.enor mdependentemente da distancia. 0 interior e 0 ex­tenor, 0 profundo e 0 alto, nao tern valor biol6gico a nao serpor esta. sup~rficie topologica de contacto. 1i, pois, ateme~mo bJOloglc~mente que e preciso compreender que "0mals jJrof~ndo ea. pele". A pele dispoe de uma energiapotencIal vItal propnamente superficial. E, da mesma formacom~ as acontecimentos DaD ocupam a superficie, mas afrequentam, a energia superficial nao esta localizada na su­p~rficie, mas ligad~ a sua forma,ao e reforma,ao. GilbertS.lmondon dlZ mUlto bern: "0 vivo vive no limite deSl mesmo, sobre seu limite... A polaridade caracteristicad.a vida. esta ao niv~1 da membrana; e neste terreno que a':lda e~lste. ~e ~anelfa essencial, como urn aspecto de umatipologla dmamlca que mantern ela propria a metaestabilidadepel~ qual el~ existe. .. Todo 0 contelido do espa,o interioresta topologlCame~te.em cont~cto com 0 contelido do espa,oe~tenor sabre ?s hnutes do VIVO; DaD ha, com efeito, distan­cIa em t.opologla; toda a massa de materia viva que esta noe.spa,o mterior esta ativamente presente ao mundo exte­nor sobre 0 limite do vivo. " Fazer parte do meio de in-

terioridade 000 significa somente estar dentro mas estar dolado interno do limite. .. Ao Divel da membrana polarizadase eOOentam 0 passado interior e 0 futuro exterior ... " 3

Diremos, pois, como quarta determina,ao, que a super­ficie e 0 lugar do senUdo: os siguos permanecem desprovi­dos de sentido enquanto nao entram na organiza,ao de su­perficie que assegura a ressonancia entre duas series (duasimagens-siguos, duas fotos ou duas pistas etc.). Mas estemundo do sentido nao implica ainda nem unidade de dire,aonem comunidade de orgao, os quais exigem urn aparelhoreceptor capaz de operar urn escalonamento sucessivo dospIanos de superficie segundo uma outra dimensao. Maisainda, este mundo do sentido com seus acontecimentos­-singularidades apresenta uma neutralidade que the e es­sencial. Niio somente porque ele sobrevoa as dimensoes se­gundo as quais se ordenara de maneira a adquirir significa­,ao, manifesta,ao e designa,ao; mas porque ele sobrevoaas atualiza,oes de sua energia como energia potencial,isto e, a efetua,ao de seus acontecimentos, que pode sertanto interior quanto exterior, coletiva e individual, segundoa superficie de contacto ou 0 limite superficial neutroQue transcende as distancias e assegura a continuidades'obre suas duas faces. Eis por que, em quinto lugar,cste mundo do sentido tern por estatuto 0 problematico:as singularidades se distribuem em urn campo propriamenteproblematico e advem neste campo como acontecimentostopologicos aos quais nao esta ligada nenhuma dire,ao.Urn pouco como acontece para os elementos quimicosdos quais sabemos onde estao antes de saber 0 queeles sao, nos conhecemos a existencia e a reparti,ao dospontos singulares antes de conhecer a sua natureza (garga­los, nos, mlcleos, centros ... ). 0 que permite, como vimas,dar a "problematico" e aindetermina~ao que comporta umadelini,ao plenamente objetiva, urna vez que a natureza dassingularidades dirigidas de urn lado, e sua existencia e repar­ti,ao sem dire,ao, de outro, dependem de instilncias obje­tivamente distintas 4.

3. SIMONDON, Gilbert. L'[ndividu et sa genese physico-biologique. P.U:F.•1964. pp. 260-264. Todo 0 liVIo de Simondon nos parece de urna grande lIn­portancia, porque apresenta a primeira teona raci~n.alizada das sin~laridades

impessoais e pre-individuais. Ele se pro:p5e. .exphcl~amente, a pa~r. destassingularidades, a fazer a genese tanto do mdlVlduo VIVO como do sUJelto ~og­

noscente. Assim, trata-se de uma nova concepl;ao do transcendental E as Clncocaracterlsticas pelas quais tentamos definir 0 campo transcendental: energiapotencial do campo, ressonancia interna das series, sup~rficie topol6gica ~asmembranas, organiz~1io do sentido, est~tuto do problematico, sao t~s analisa­dos por Simondon. Tanto que a matena deste paragrafo e do segumte dependeestreitarnente deste liVIa, de que divergimos somente nas conclusoes.

4. Cf. Albert Lautman, Le ProbUme du Temps. Hermann, 1946, PP'41-42: "A inte~etar;ao geometrica da teoria das equ~es diferenciais colocabern em eviden~ia duas realidades absolutamente distintas: ha () campo dedire95es e os acidentes topoI6gicos que podem lhe advir, como por exemplo aexistencia no plano de pontos singulares aos quais fl40 e canf~ nenhumadirefliQ e h!\. curvas integrais com a forma que elas tornam oa Vlzlnhaur;a das

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Entao aparecem as condi<;5es da verdadeira genese. 1lexato que 0 sentido e a descoberta propria da fiIosofia trans­cendental e vern substituir as velhas Essencias metafisicas.(Ou antes, 0 sentido foi primeiro descoberto uma vez sobs~u. aspecto de neutralidade impassivel, por uma logic~ em­pmca das proposi<;5es que rompia com 0 aristotelismo'depois, uma segunda vez, sob seu aspecto de pwdutividad;genetica, pela fiIosofia transcendental em ruptura com a me­tafisica.) Mas a questao de saber como 0 campo transcen­dental deve ser determinado e muito complexa. Parece-nosimpossivel Ihe dar, a maneira kantiana, a forma pessoal deurn E,!, de uma unid.ade sintetica de apercep<;ao, mesmo seconfenmos a esta umdade urn alcance universal' sobre esteponto as obj,e<;5es de Sartre sao decisivas. Mas ~ao e, igual­mente, posslVel conservar-lhe a forma de uma conscienciamesmo se definimos esta consciencia impessoal por intencio:n~l~dade~ e reten<;5es puras que sup5em ainda centros de in­dlVldua<;ao. 0 erro de todas as determina<;5es do transcen­d<lntal como consciencia e de conceber 0 transcendental aimagem e a semelhan<;a daquilo que esta incumbido de fun­dar. Entao, ou nos damos ja feito 0 que pretendiamosengendrar por urn metodo transcendental: nos no-Io damosta feita.?o .sentido ~it? "origimirio" que supomos pertencera conSClencra constitumte. Ou entao, conforme 0 proprioKant, renunciamos a genese ou a constitui9ao para nosatermos a urn simples condicionamento transcendental'mas nero por isso escapamos ao circulo vicioso de acord~com 0 qual a. condi<;ao remete ao condicionado do qualela. decalca a rmagem. 1l verdade que esta exigencia de~efmlr 0 ~ranscendental como consciencia originaria e justi­ficada, afrrma-se, uma vez que as condi<;5es dos objetosreais do conhecimento devem ser as mesmas que ascondi<;5es do conhecimento; sem esta clausula a filosofiatrans~endental ~e~deria ~odo sentido, devendo instaurar paraos obJetos condi<;oes autonomas que ressuscitariam as Essen­cias ~ .0 Ser divino da antiga metafisica. A dupla serie docondlclOnado, isto e, da consciencia empirica e de seus obje­tos, deve pois ser fundada numa instancia originaria queretem a forma pura da objetividade (objeto = X) e a formapura da consciencia e que constitui aquela a partir desta.

Mas esta exigencia nao parece de forma nenhurna legi­tima. 0 que e comum a metafisica e a filosofia transcen­dental e prim.eir~mente. esta alternativa que elas nos imp5emOu urn fundo mdlferenclado, sem-fundo, nao-se? informe, abis-

sin1SU!ari<lades do campo <le .djre~Oes... A exist2ncia e a repartj~iio das sin.~ anda?es sao n~oes relativas ao campo de vetores definido pela equa~aodifere~clal; a forma _das curvas integrais e relativa as solu~ desta equ~ao.?~~s problemas sao seguramemte complementares pois a natureza <las singu.a a es do campo e definida pela forma de curvas na sua vizinhan~a' nlio

6 ~enos verdadeiro l:.Iue 0 campo ~ vetores de urn lado. as curvas integTa'is deou o. sao duas reahdades matematicas essenciaImente distintas".

mo sem diferen<;as e sem propriedades - ou entao urn Sersoberanamente individuado, uma forma fortemente persona­Iizada. Fora deste Ser ou desta Forma, nao tereis senao 0

caos. .. Em outros termos, a metafisica e a filosofia trans­cendental se entendem a fim de nao conceberem singularida­des determindveis a niio ser jd aprisionadas em urn Ego indi­vidual (Moi) supremo ou um Eu pessoal (Ie) superior.Parece entao absolutamente natural a metafisica determinareste Ego supremo como aquele que caracteriza urn Serinfinita e completamente determinado por seu conceito epor isso mesmo possnindo toda a realidade originaria.Este Ser, com efeito, e necessariamente individuado, umavez que ele rejeita no nao-ser ou no abismo do sem-fundotodo predicado ou toda propriedade que nao exprimiriaabsolutamente nada de real e delega as suas criaturas,isto e, as individualidades finitas, 0 cuidado de receberos predicados derivados que nao exprimem senao reali­dades limitadas 5. No outro polo, a filosofia transcen­dental escolhe a forma sintetica finita da Pessoa, de prefe­rencia ao ser analitico infinito do individuo; e Ihe parecenatural determinar este Eu superior do lado do homem eoperar a grande permuta<;ao Homem-Deus com que a filoso­fia se contentou durante tanto tempo. 0 Eu e coextensivoa representa<;ao, como ha pouco 0 individuo era coextensivoao Ser. Mas, em urn easo como no outro, permanecemos naalternativa do sem-fundo indiferenciado e das singnlaridadesaprisionadas: e for<;oso, desde entao, que 0 nao-senso e 0

sentido estejam em uma oposi<;ao simples e que 0 sentidoele proprio apare<;a ao mesmo tempo como originario ecomo confundido com primeiros predicados, seja predicadosconsiderados na determina<;ao infinita da individualidade doSer supremo, seja predicados considerados na constitni<;aoformal finita do sujeito superior. Humanos ou divinos,como dira Stirner, trata-se de fate dos mesmos predicados,quer perten<;am analiticamente ao ser divino ou sejamsinteticamente ligados a forma humana. E enquanto 0

sentido e posta como originario e predicavel, importa poucosaber se e urn sentido divino esquecido pelo homem ouentao urn sentido humane alienado em Deus.

Foram sempre momentos extraordinarios aqueles emque a filosofia fez falar 0 Sem-fundo e encontrou a Iingna­gem mistica de seu furor, de sua informidade, de sua ce-

s. A mais bela exposi~ao didatica da metaffsica tradicional e apresen­tada 'RCJr Kant desta maneixa, na Critica da RaZlio Pura, "Do Ideal Transcen­dental'. Kant mostra como a ideia de urn conjunto de toda possibilidadeexclui todo outro predicado alem de predicados "origin8rios" e por ai cons­titui 0 conceito oompletamente determmado de um Ser individual CUe nestecaso que urn conceito universal em si de uma coisa e detenninado completa­mente e e conhecido como a representa~l1o de urn. individuo"). Entao 0 uni­versal nao e mais do que a forma de comunica~ao no pensamento entre estaindividualidade suprema e as individualidades finitas: 0 universal pensado re~

mete de todas as maneiras ao individuo.

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glI.eir~: Boehme, Schelling, Schopenhauer. Nietzsche estevepnm~lramente entre, e~tes, discfpnlo de Schopenhauer, noNascImento da Tragtidza, quando ele fez falar Dionisio semfund,?, opondo-o a individu~9ao divina de Apolo e nao me­nos a pessoa humana de Socrates. Eis 0 problema funda­mental de "Quem fala em fiIosofia?" ou qual e 0 "sujeito"?o discurso fiJosofico? Mas, mesmo fazendo falar 0 fundomfo~e ou 0 abismo indiferenciado, com toda ,sua voz dee.mbn~guez e colera, nao saimos da alternativa imposta pelafI1osofia trans~en?ental tanto quanto pela metafisica: fora dapessoa e do mdlvfduo, nao distinguireis nada. .. Assim adescoberta de Nietzsche esta alhures, quando, tendo se Ii­v;ado d~ Scho~enhauer e de Waguer, explora um mundo desmgnlarldades lmpessoais e pre-individuais, mundo que elec?a~a agor:: de. dionisiaco ou da voutade de potencia, ener­gIa. lIvre ~ ~ao IIgada. Singnlaridades n6mades que nao saomals aprlSl?nadas. ~a individualidade fixa do Ser infinito(a ,ramosa ImutabllIdade de Deus) uem nos Iimites seden­tanos do sujeito finito (os famosos Iimites do conhecimen­to). Alguma coisa que nao e nem individual nem pessoal eno entanto, que e singular, nao abismo indiferenciado ma~saltando de uma singnlaridade para a outra, sempre e:nitin­do urn lance de dado que faz parte de urn mesmo lan9ars:m~r~ fragmentado .e refor~ado em cada lance. Maquinadio~sIaca_de P~OdUZl~ 0 sentido e em que 0 nao-senso e 0

senlJdo nao estao malS numa oposi9ao simples, mas co-pre­sentes um ao outro em urn novo discurso. Este novo dis­~urso nao e mais 0 da forma, mas nem muito menos 0 domforme: ele e antes 0 informal puro. "Sereis urn monstroe urn .caos". " Nietzsche responde: "Nos realizamos estapn:~fecta:' .6. E_ 0 sujeito deste novo discurso, mas nao hamalS sUJelto, nao e 0 homem ou Deus, muito menos 0 ho­me~ no lugar de Deus. E esta singularidade livre, an6nimae ~o~a~e que percorre tanto os homens, as plantas e osammals mdependentemente das materias de sua individua9aoe. das formas .de sua. personal~dade: super-homem nao querd,zer ou~a cOlsa, 0 tipo. supenor de tudo aquilo que e. Es­tran~o dlsc~rso que devIa renovar a fiIosofia 'e que trata 0sentIdo, enflm: nao como predicado, como propriedade, mascomo aconteclmento.

Na sua propria descoberta, Nietzsche entreviu como emurn sonho 0 meio de pisar a terra, de ro9a-Ia, de dan9ar ede trazer de volta a superficie 0 que restava dos monstrosdo fundo e das figuras do ceu. Mas e verdade que ele foito~ado por uma 0~upa9ao mais profunda, mais grandiosa,m~s pengosa tambem: na sua descoberta ele viu urn novomeJO de explorar 0 fundo, de levar a ele urn olho distinto,

6. Nietz;.sche. Ed. Kroner, XV, 9 83.

de discernir nele mil vozes, de fazer falar todas estas vozes,correndo 0 risco de ser tragado por esta profundidade queinterpretava e povoava como nunca havia ocorrido. Elenao suportava permanecer na superficie fragi!, de que havia,entretanto, feito 0 tra9ado atraves dos homens e dos deuses.Reganhar urn sem-fundo que ele renovava, que ele reapro­fundava, foi af que Nietzsche, a sua maneira, pereceu. auentaa "quase pereceu"; pais a doem;a e a morte sao 0 pro­prio acontecirnento, como tal justificavel de uma dupla causa­Iidade: ados corpos, dos estados de coisas e das misturas,mas tambem a da quase-causa que representa 0 estado deorganiza9ao ou de desorganiza9ao da superficie incorporaJ.Nietzsche se tornou pois demente e morreu de paralisia geral,ao que parece, mistura corporal sifilitica. Mas 0 encami­nhamento que segnia este acontecimento, desta vez com re­la9ao a quase-causa inspirando toda a obra e co-inspirandoa vida, tudo isto nao tern nada a ver com a paralisia geral,com as dores ocnlares e os v6mitos de que ele sofria, salvopara Ihe dar uma nova causalidade, isto e, uma verdadeeterna independentemente de sua efetua9ao corporal, urn es­tilo em urna obra em lugar de urna mistura no corpo. Naovemos outra maneira de colocar 0 problema das rela90esda obra e da doen9a a nao ser sob esta dupla causalidade.

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ueclma ~exl:a "erie;Da GeneseEstatica Ontol6gica

o campo transcendental real e feito desta topologia desuperficie, destas singularidades nomades, impessoais epre-individuais. Como 0 individuo deriva dai para fora docampo, constitui a primeira etapa da genese. 0 individuonao e sepan\vel de um mundo, mas 0 que chamamos demundo? Em regra geral, como virnos, urna singularidadepode ser compreendida de duas maneiras: na sua existen­cia ou sua reparti9ao, mas tambem na sua natureza, con­forme a qual ela se prolonga ou se estende em uma dire9iiodeterminada sobre uma linba de pontos ordinarios. Estesegundo aspecto representa ja uma certa fixa9ao, um co­me90 de efetua9iio das singularidades. Um ponto singu­lar se prolonga analiticamente sobre uma serie de ordina­rios, ate a vizinban9a de uma outra singularidade etc.: ummundo e assim constituido, com a condi9iio de que as se­ries sejam convergentes (um "outro" mundo come9ariana vizinban9a dos pontos em que as series obtidas diver­giriam). Um mundo envolve ja um sistema infinito desingularidades selecionadas por convergencia. Mas, nestemundo, constituem-se individuos que selecionam e envolvemum numero finito de singularidades do sistema, que as com­binam rom aquelas que seu proprio corpo encarna, que asestendem sobre suas proprias linhas ordinarias e mesmo saocapazes de reforma-Ias sobre as membranas que colocamem contacto 0 interior e 0 exterior. Leibniz tern razaoem dizer que a monada individual exprime urn mundo se­gundo a rela9iio dos outros corpos ao seu e exprime estapropria rela9iio segundo a rela9iio das partes de seu corpoentre elas. Um individuo esta pois sempre em um mundocomo circulo de convergencia e urn mundo nao pode ser

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formado e pensado senao em torno de individuos que 0

ocupam ou 0 preenchem. A questao de saber se 0 pro­prio mundo tern urna superficie capaz de reformar urn po­tencial de singularidades e geralmente resolvida pela nega­tiva. Urn mundo pode ser infinito em uma ordem de con­vergencia e, no eutauto, ter uma energia finita, e esta ardemser limitada. Reconbecemos aqui 0 problema da entropia;pois e da mesma maneira que uma singularidade se pro­longa sobre uma Iinba de ordinarios e que uma energia po­tencial se atualiza e cai ao seu nivel mais baixo. 0 poderde reforma9ao nao e concedido senao aos individuos nomundo e por urn tempo: justamente 0 tempo de seu pre­sente vivo em fun9ao do qual 0 passado e 0 futuro domundo circundante recebem ao contrario uma dire9ao fIxairreversfvel.

o complexo individuo-mundo-interindividualidade de­fine urn primeiro nivel de efetua9ao do ponto de vista deuma genese estatica. Neste primeiro nivel, singularidadesse efetuam ao mesmo tempo em urn mundo enOS indivi­duos que fazem parte desle mundo. Efetuar-se ou ser efe­tuado siguifica: prolongar-se sobre uma serie de pontos or­dinarios; ser selecionado segundo uma regra de convergen­cia; encarnar-se em urn corpa, tornar-se estado de urn cor­po; reformar-se localmente para novas efetua90es e novosprolongamentos Iimitados. Nenhuma destas caracteristicaspertence as singularidades como tais, mas somente ao mun­do individuado e aos individuos mundanos que os envolvem;eis por que a efetua9ao e sempre ao mesmo tempo coletivae individual, interior e exterior etc.

Efetuar-se e tamhem ser expresso. Leibniz sustentauma tese celebre: cada monada individual exprime 0 mun­do. Mas esta tese nlio e suficientemente compreendida en­quanta a interpretamos como siguificando a inerencia dospredicados na monada expressiva. Pois e bern verdade queo mundo expresso nao existe fora das monadas que 0 ex­primem, logo existe nas monadas como a serie dos predi­cados que Ihe Sao inerentes. Nao e menos verdade, en­tretanto, que Deus cria 0 mundo antes que as monadase que 0 expresso nao se comunde com sua expressao, masinsiste ou subsiste I. 0 mundo expresso e feito de rela90esdiferenciais e de singularidades adjacentes. Ele forma pre­cisamente urn mundo na medida em que as series que de­pendem de cada singularidade convergem com aque)as quedependem das outras: e esta convergencia que define a"compossibilidade" como regra de uma sintese de mundo.La onde as series divergem comC9a urn outro mundo, in-

1. Tema constante das cart(l.'J de Leib7liz a Arnauld': Den, crion. nloeJ:atamente Adito-pecador. mas 0 mundo em que Adilo pecou.

compossivel com 0 primeiro. . A extraordinaria ~09ao decompossibilidade se define pOlS como urn :o.n~znu!,m desingularidades, a continuidade tendo por cnte';l0 Ideal .aconvergencia das series; T~mhem a n~9~0 da mcompossl­bilidade nao sera redutivel a de contradl9ao; e antes a con­tradi9ao que dela decorre de uma certa maneira: a contra­di9ao entre Adao-pecador e Adao-nao-pecad.or decorre ~aincompossibilidade dos mundos em que Adao peca e naopeca. Em cada mundo, as monadas individu~is. ~xprimemtodas as singularidades deste mundo - uma mfmldade ­como em ·urn murmurio ou em urn desvanecimento; mascada uma DaD envolve ou DaD exprime "claramente" senaourn certo numero de singularidades, aquelas na vizinhanradas quais ela se constitui e que se combinam com seu corpo.Vemos que 0 continuum de singularidade e completamen­te distinto dos individuos que 0 envolvem em graus de cIa­reza variaveis e complementares: as singularidades sao pre­-individuais. Se e verdade que 0 mundo expresso nao exis­te senao nos individuos e ai existe como predicado, elesubsiste de uma maneira completamente diferente,. com~acontecimento ou verbo, nas singularidades que preSldem aconslitui9ao dos individuos: nao mais A~ao:~ecad?r~ n:aso mundo em que A?ao pecou.:. ~ arbltra;lO. pnvJ1e~lara inerencia dos predICados na fiIosofla de L,:lbmz. _POIs.ainerencia dos predicados na monada expresslva supoe prl'meiro a compossibilidade do mundo expresso. e esta por suavez supoe a distribui9ao de puras smgulandades segundoas regras de convergencia e de divergencia, 9ue perte,:cemainda a uma logica do senlido e do acontec:uu.ento,. nao. auma logica da predica9ao e da verdade. ~elb.n~z fOl mmt.olonge nesta primeira etapa ~a genese: 0 mdlVlduo con~tl­tuido como centro de envolvlmento, como envolvendo sm-gularidades em um mundo e sobre seu corpo. .

o primeiro nivel de efetua9ao prodnz correlatlvamentemundos individuados e eu individuais q~e povoam .c~da umdestes mundos. Os individuos se constltuem na VlZ1nban9ade singularidades que eles envolvem; e exprimem mundoscomo circulos de convergencia das series dependen~o de~tassingularidades. Na medi~a e~ que 0 ex~res.s~ nao eXlstefora de suas expressoes, IStO e, fora dos mdlVlduos q~,:, 0

exprimem, 0 mundo IS realmente. 0 "pertenc~r" do SUJ:l~O,o acontecimento se tornou predlcado, predicado anahtlcode um sujeito. Verdejar indic~ uma singularid~de-aconte­cimento na vizinhanga da qual a arvore se constitw; ou pecar,na vizinban9a da qual Adao se consti~~; mas se~ ~erde, serpecador, sao agora os predicados anahticos de S1fleltos c?n~­tituidos, a arvore e Adao. Como todas as monadas mdl­viduais exprimem a totalidade de seu mundo - embara

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dele nao exprimam claramente senao uma parte seleciona­da -, seus corpos formam misturas e agregados, associa­!;fies variaveis com as zonas de clareza e de obscuridade:eis por que mesmo as rela90es sao aqui predicados analiticosde misturas. (Adao comeu do fruto da arvore.) Aliasmais ainda, contra certos aspectos da teoria leibniziana, epreciso dizer que a ordem analitica dos predicados e umaordem de coexistencia ou de sucessao, sem hierarquia 10­gica nem carater de generalidade. Quando urn predicado eatribuido a urn sujeho individual, ele nao goza de nenhumgrau de generalidade; ter uma cor nao e mais geral do queser verde, ser animal nao e mais geral do que ser racional.As generalidades crescentes ou decrescentes nao aparece­rao senao a partir do momento em que urn predicado e de­terminado em uma proposi9ao para servir de sujeho a urnoutro predicado. Enquanto os predicados se relacionam aindividuos, e preciso lhes reconhecer uma iguaI imediatezque se confunde com seu carater analitico. Ter uma cornao e mais geral do que ser verde, pois e somente estacor que e 0 verde e este verde que e esta nuan9a que sereferem ao sujeho individual. Esta rosa nao e vermelhasem ter 0 vermeIho desta rOsa. Este vermelho nao e umacor sem ter a cor deste vermelho. Podemos deixar 0predicado indeterminado, nem por isso ele adquire uma de­termina9ao de generalidade. Em outros termos, nao Mainda nenhurna ordem de conceitos e de media90es, massomente urna ordem de mistura em coexistencia e sucessao.Animal e racional, verde e cor, sao dois predicados igual­mente imediatos que traduzem uma mistura nO corpo dosujeito individual ao qual urn nao se atribui menos ime­diatamente que 0 outro. A razao e urn corpo, como dizemoS Estoicos, que penetra e se estende em urn corpo animal.A cor e urn corpo luminoso que absorve ou reflete urnoutro corpo. Os predicados analiticos nao implicam aindanenhurna considera9ao logica de generos ou de especies, depropriedades nem de classes, mas implica somente a es!ru­tura e a diversidade fisicas atuais que os tornam possiveisnas misturas de corpos. Eis por que identificamos, no li­mite, 0 dominic das intui~6es como representa~6es imedia­tas, predicados analiticos de existencia e descrir;6es de mis­turas ou de agregados.

Mas, sobre 0 terreno desta primeira efetua9ao, se fun­da e se desenvolve urn segundo uivel. Reencontramos 0problema husserIiano da 5~ Medita9ao cartesiana: 0 ..quee que no Ego uItrapassa a monada, suas pertinencias epredicados? ou, mais precisamente, 0 que e que da ao mun­do "urn sentido de transcendencia objetiva propriamentedita, segunda na ordem da constitui9ao, distinta da "trans-

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cendencia imanente' do primeiro niveI2? Mas a solu~ao

aqui nao pode ser a da fenomenolo~a, um~ v~z. que 0 Egonao e menos constituido que a monada mdlVlduaI. Estamonada este individuo vivo, era definido em urn mundocomO c~ntinuum au circulo de cODvergencias; maS 0 Egocomo sujeho cognoscente aparece quando alguma coisa eidentijicada nos mundos, entretanto, incompossiveis, atravesde series no eutauta divergentes: entao 0 sujeito esta "emface" do mundo, em urn sentido novo da palavra mundo(Welt), enquanto que 0 indiv~duo vivo estav~ no ~undo eo mundo nele (Umwelt). Nao podemos pOlS segulf Hus­ser! quando ele faz trabalhar a mais aIta sintese de ident~­

fica9ao no eIemento de urn continuum de que todas as h­nhas sao convergentes ou concordantes 3. Nao uItrapassa­mos assim 0 primeiro nivel. :E somente quando aIgurnacoisa e identificada entre series divergentes, entre mundosincompossiveis, que wn objeto= X aparece, transcendendoos mundos individuados ao mesmo tempo que 0 Ego queo pensa transcende os individuos mundanos, dando desdeentao ao mundo urn novo valor em face do novo valor dosujeho que se funda.

Para ver como Se faz esta opera9ao e preciso semprevoltar ao teatro de Leibniz - e nao as pesadas maqUl­narias de Husser!. De urn lado, sabemos que uma singu­laridade nao e separavel de uma zona de indet~rmin~9~0perfehamente objetiva, espa90 aberto de sua d~stnbUl9aonomade: pertence com efeito ao problema 0 relaclOnar-se acondi90es que constituem esta indetermina9a? s~perior epositiva, pertence ao acontecimento 0 subdlvldlr-~e semcessar como reunir-se em urn s6 e mesmo Aconteclmento,pertence aos pontos singulares 0 distribuir-se de acor~o comfiguras moveis comunicantes que fazem de todas as Jogada8urn so e mesmo lan9ar (ponto aleatorio) e do Ian9ar umamultiplicidade de jogadas. Ora, embora Leibniz nao tenhaatingido 0 livre principio deste jogo, porque nao s?ube.ne?,quis insuflar ai bastante acaso, nem fazer da dlVergenclaurn objeto de afirma9ao como tal, ele recolheu, entretanto,tadas as conseqtiencias ao mvel de efetua9ao que nos ocupaagora. Urn problema, diz ele, tern condi90es que compor­tam necessariamente "signos ambiguos", ou pontos aleato­rios, isto e, reparti90es diversas d~ singularida~es as quaiscorresponderiio casos de solU90es dlferentes: a8Slm, a equa­9ao das sec90es conicas exprime urn so e mesmo Aconteci­mento que seu signo ambiguo subdivide em acontecimentosdiversos, circulo, elipse, hiperbole, panibola, reta, que for-

2. Cf. Medita9QeS cartesiana8, § 48 (Husserl orienta imediatamente estcproblema para Ulna teoria transcendental de Outrem. Sabre 0 papel de Outremem uma genese estlitica, d. nosso Apendice IV).

3. IcMio.$, § 143.

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mam casos correspondendo ao problema e determinando agenese das solu,oes. .E: preciso pois conceber que os mun­dos incompossiveis, apesar de sua incompossibilidade, com­portam alguma coisa em comum e de objetivamente comumque representa 0 signo ambiguo do elemento genetico Comrela,ao ao qual varios mundos aparecem como casos de so­lu,ao para urn mesmo problema (todos os lances, resulta­dos para um mesmo lance). Nestes mundos h:i pois, porexemplo, urn Adao objetivamente indeterminado, isto e, po­sitivamente definido por algnmas singularidades somente,que podem se combinar e se completar de maneira muitodiferente em diferentes mundos (ser 0 prirneiro homem, vi­ver em urn jardim, fazer nasoer uma mulher de si etc.) 4.

Os mundos incompossiveis tornam-se as variantes de umamesma historia: Sextus por -exemplo ouve 0 oraculo .. , OUentao, como diz Borges, "Fang detem urn segredo, urn des­conhecido bate it sua porta .. , Ha varios desfechos possi­veis: Fang pode matar 0 intruso, 0 intruso pode matar Fang,ambos podem escapar, ambos podem morrer, etc. Todos osdesfechos se praduzem, cada urn e 0 ponto de partida deoutras bifurca~5es" 5.

Nao nos encontramos mais diante de Urn mundo indi­viduado constituido por singularidades ja fixas e organiza­das em series convergentes, nem diante de individuos de­terminados que exprimem este mundo. Encontramo-nosagora diante do ponto aleatorio dos pontos singnlares, diantedo signo ambigno das singularidades, ou antes diante do querepresenta este signo e que vale para varios desses mundose, no limite, para tOOos, para mem de suas divergencias edos individuos que os povoam. Ha pois urn "Adao vago",isto e, vagabundo, nomade, um Adao = X, comum a variosmundos. Urn Sextus '= X, um Fang = X. No limite, umaqualquer coisa '= X comum a todos os mundos. Todos osobjetos = X sao "pessoas".Elas SaO definidas por pre­dicados, mas estes predicados nao sao mais os predicadosanaliticos de individuos determinados em urn mundo e a

4. Distinguimos pois tr& sele!;Oes, confonne ao tema Ieibniziano: umaque define um Mundo por convergencia, uma outra que defIne neste Mundoindivlduos completos, uma outra, enfim, que define elementos incompletos ouantes amblguos, comuns a vanos mundos e aos individuos correspondentes.

Sobre esta terceira sele~iio ou sobre 0 Adiio "vago" constituido por umpequeno llrumero de predicados (ser 0 primeiro homem etc.) que devem sercompletados diferentemente em diferentes mundos, cf. Leibniz, "Observac6essobre a carta de M. Arnauld" (Janet, I, p. 522 e 55.). £ verdade que nestetexto Adiio vago niio tern e:rist~cia par si mesmO, vale somente com rela"ioao nOSSo entendimento finito, seus predicados niio slio mais do que generalidades.Mas, ao contrario, no texto celebre da Teodic& (§§ 414-416); os dHerentesSextus nos mund05 diversos tern urna unidade objetiva muito especial querepousa sabre a natureza amblgua da DO!;!O de singuIaridade e sobre a caW­goria de problema do ponto de vista de urn. c81culo infinito. Muito cedo Leibnizhavia elaborado urna teorla dos "signos ambiguos" em rel~ao com os pontossingulares, tomando por exemplo as seCQ6es c6nicas: cf. "Do Metodo da Uni­versalidade" (OpUsculos, Couturat).

5. BORGES. Fietion.s. Gallimard, p. 130.

operar a descri,iio destes individuos. Ao contn'irio,. sao pre­dicados que definem sinteticamente pessoas ~,ab?-ndo-!hesdiferentes mundos e individualidades como var,ave,s ou pos­sibilidades: assim, "ser 0 primeiro homem e vi:ver em urnjardim" para Adao, "deter urn segredo e ser mcomodadopor um intruso" para Fang. Quanto ao objeto qU~lquerabsolutamente comum e de que todos os mundos sao asvariaveis, ele tern por predicados os primeira.s possiveis•.oucategorias. Ao inve~ de cada m~ndo ~er predlcado a~aht'code individuos descntos em senes, sao os mundos mcom­possiveis que sao predicados sinteticos de ~ssoas.,de~inidascom rela,ao a sinteses disjuntivas. Quanto as VarlaVelS •queefetuam as possibilidades de uma pe~soa, devemos trata-Iascomo conceitos significando necessar,amente classes e pro­priedades logo afetadas essenciahnente de generalidade cres­cente od decrescente em uma especifica,ao continuadasobre fundo categorial: com efeilo, 0 jardim pode conter umarosa vermelha, mas ha em outros mundos au em ~outr~sjardins rosas que nao sao ver.melhas, flores que nao s~o

rosas. As variaveis sao propnedades e classes. Elas saocompletamente distintas dos agregados individuais do pri­meiro nivel: as propriedades e aJ ~Iasses sao fu:,dada.s n.aordem da pessoa. .E: que as propnas pessoas ~ao prIme,­ramente classes de um s6 membra, e seus predlCados pro­priedades com uma constante. Cada pessoa e Unico mem­bra de sua classe e, no entanto, e uma classe constituidapelos mundos, possibilidades e ind~viduos que Ihe ca~e~. Asclasses como mUltiplos e as propnedades como vanave,~ de­rivam destas classes de um so membro e. destas propr~eda­des com uma constante. Acreditamos pOlS que 0 conluntoda dedu,ao se apresenta assim: 19) as pessoas; 29) as classescom um so membra que elas constituem e as propriedadescom uma constante que !hes pertencem; 3'1) a~ classes ~xten­sivas e propriedades variaveis, isto e, os conceltos genus quedela derivam. .E: neste sentido que interpretam~s 0 la,o fun­damental entre 0 conceito e 0 Ego. a Ego un~versal e exa­tamente a pessoa correspondendo a algoma co~a := X co­mum a todos os mundos, como os outros ego sa? as pessoascorrespondendo a tal coisa = X ~omum a vanos mundos.

Nao podemos segnir pormenonzadamente toda est~ de­du,ao. Importa somente fixar as d';las et~pas da genes.epassiva. Prirneiro, a partir d~s smgulandades-ac~nte~­mentos que 0 constituem, 0 senudo engendra urn p~e,rocomplexo no qual ele se efetua: U~el~ q~e .o~gamza assingularidades em circulos de convergencla, md,v~duos queexprimem estes ':l'U';J~os, estados. de corpo~,. mlSturas ouagregados destes mdlVlduos, predlcados anal,tlcoS que des­crevem estes estados. Mais um segundo complexo aparece,

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muito diferente, constrnido sobre 0 primeiro: Welt comuma varios mnndos ou a todos, pessoas que definem estes "a1­guma coisa de comum", predicados sinteticos que definemestas pessoas, classes e propriedades que dai derivam. Damesma forma como 0 primeiro estagio da genese e a ope­ra,ao do sentido, 0 segundo e a opera,ao do nao-sensosempre co-presente ao sentido (ponto aleat6rio ou signaambiguo): eis por que os dois estagios e sua distin,ao saonecessariamente fundados. De acordo com 0 primeiro, ve­mos formar-se 0 principia de urn "born senso", ou de umaorganiza,ao ja fixa e sedentiiria das diferen9as. De acordocom 0 segundo, vemos formar-se 0 principia de urn "sensacomum" como fun,ao de identifica9ao. Mas seria um eITOconceber estes principios produzidos como se eles fossemtranscendentais, ista e, conceber a sua imagem 0 sentido eo nao-senso de que eles derivam. E no entanto 0 que ex­plica que Leibniz, por mais longe que tenba ido em umateoria dos pontos singulares e do jogo, nao pos verdadei­ramente as regras de distribui9ao do jogo ideal e nao con­cebeu 0 pre-individual senao no mais pr6ximo dos indivi­duos constituidos, em regiaes ja formadas pelo bom senso(cf. a vergonhosa declara,ao de Leibniz quando ele atribuia filosofia a cria,ao de novos conceitos, com a condi9aode nao subverter os "sentimentos estabelecidos"). E tam­bem 0 que explica que Husser!, em sua teoria da consti­tUi9aO, se de jii feita a forma do senso comum, conceba 0

transcendental como Pessoa ou Ego e nao distinga 0 Xcomo forma de identifica9ao produzida e 0 X instanciacompletamente diferente, nao-senso produtor que anima 0

jogo ideal e 0 campo transcendental impessoal 6. Em ver­dade, a pessoa e Ulisses, ela nao e pessoa propriamentefalando, forma produzida a partir deste campo transcenden­tal impessoal. E 0 individuo e sempre um qualquer, nas­cido, como Eva, de uma costela de Adao, de uma singulari­dade prolongada sobre uma linha de ordinarios a partir docampo transcendental pre-individual. 0 individuo e a pessoa,o bom senso e 0 senso comum sao produzidos pela genesepassiva, mas a partir do sentido e do nao-senso que naolbes parecem e dos quais virnos 0 jogo transcendental pre­-individual e impessoal. Da mesma forma 0 bom senso e 0

senso comum sao minados pelo principio de sua prodU9ao edeITubados de dentro palo paradoxo. Na obra de LewisCarroll, Alice seria antes como 0 individuo, a monada quedescobre 0 sentido e ja pressente 0 naa-sensa, reniontado a

6. Observaremos, DQ entanto, as curiosas alus5es de Husserl a um fiatou a um ponto m6vel angioma no campo transcendental detenninado comoEgo; cf. lcUias, § 122.

su edicie a partir de um mundo em que ela mer~a, m.asta~bem que se envolve nela e Ihe impoe a dura lei ?as ml~­t as' Silvia e Bruno seriam antes como as passoa~ vagas,;e descobrem 0 nao-senso e sua presen,a ao sentidoda ,:r­tir de ~'alguma coisa" comum a varios mundos, mun 0 ashomens e mundo das fadas.

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/

ueclma ~etlma ~ene:

Da Genese Estatica L6gica

Os individuos sao proposl~oes anallticas infinitas: in­finitas no que exprimem, mas finitas na sua expressao clara,na sua zona de expressao corporal. As pessoas sao pro­posi~oes sinteticas finitas: finitas na sua defini~ao, mas in­definidas na sua aplica~ao. Os individuos e as pessoas saoem si mesmos proposi~oes ontol6gicas, as pessoas estandofundadas sobre os individuos (mas inversamente os indivi­duos estando fundados pela pessoa). Todavia, 0 terceiroelemento de genese ontol6gicas, isto e, as classes multiplase as propriedades variaveis que dependem por sua vez daspessoas, nao se encama em uma terceira proposi~ao elapr6pria ontol6gica. Ao contrario, este elemento nos fazpassar a uma outra ordem de proposi~ao, constitni a con­di~ao ou forma de possibilidade da proposi~ao l6gica emgera!. E com rela~ao a esta condi~ao, e ao mesmo tempoque ela, os individuos e as pessoas desempenbam agora 0

papel, nao mais de proposi~oes ontol6gicas, mas de instan­cias materiais que efetuam a possibilidade e que determi­nam na proposi~ao l6gica as rela~es necessarias a existen­cia do condicionado: a rela~ao de designa~ao como rela­~ao com 0 individual (0 mundo, 0 estado de coisas, 0 agre­gado, corpos individuados), a rela~ao de manifesta~ao comorela~ao com 0 pessoal - a forma de possibilidade definin­do, de seu lado, a rela~ao de significa~ao. Compreendemosmelbor entao a complexidade da questao: 0 que e primeiroda ordem da proposi~ao l6gica? Pois, se a significa~ao eprimeira como condi~ao ou forma de possibilidade, ela re­mete, no entanto, a manifesta~ao, na medida em que asclasses mUitiplas e as propriedades variaveis que definema significa~ao se fundam sobre a pessoa na ordem ontol6gica

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I, '

I'

e a manifesta9ao remete a designa9ao na medida em que apessoa se funda por sua vez sobre 0 individuo.

Muito mais, da genese logiea a genese ontologiea naoha paralelismo, mas antes uma mudan9a que comporta'todotipo de desniveis e de misturas. 1i pois muito simples fazerc?rresponder 0 individuo e a designa9ao, a pessoa e a ma­mf~sta.9~0, ~s classes mwtiplas ou propriedades variaveis ea slgmflca9ao. 1i verdade que a rela9ao de designa9ao naopode se estabelecer senao em um mundo submetido aos di­ver~os aspectos da individua9ao; mas nao e sufieiente: a?eSl~a9ao exige alem da eontinuidade a posi9ao de umaIdentidade q~e depende da ordem manifesta da pessoa _0_ que tradU:lmos pre~dentemente dizendo que a designa­9aO pn;ssupoe a mamfesta9ao. lnversamente, se a pessoase mamfesta ou se exprime na proposi9ao, nao e indepen­dentemente dos individuos, dos estados de coisas ou dosestados de corpos, que nao se eontentam em ser designados,m~ que formam casos e possibilidades relacionados aos de­seJ~S, .c:en9~S ou yrojetos constitutivos da pessoa. Enfim,a slgnlflca9ao supoe a forma9ao de urn bom senso que sefaz COm a individua9ao, como a de um senso comum queencont~a su~ fonte na I?essoa; e ela implica todo um jogode deslgna9ao e de manifesta9ao, tanto no poder de afirmaras p~emissas quanta de destacar a conclusao. Ha pois, noso vlmos, uma estrutura extremamente complexa segnndoa qual cada uma das tres rela90es da proposi9ao logica emgeral e primeira por Sua vez. Esta estrutura no seu con­junto forma a ordena9ao terciaria da Iingnagem. Precisa­n,rente porque ela e produzida pela genese ontologica e 10­glca, .ela depeude do se~tido como daquiIo que constituipor. Sl mesmo uma orgamza9ao secundaria, muito diferentee dlversamente distribuida (assim a distin9ao entre os doisX,. o. X. do .eIemento paradoxal informal que falta a suapropna IdentIdad~ no sentido puro e 0 X do objeto qual­q.uer que caractenza somente a forma de identidade produ­Z1da no senso comum). Se pois consideramos esta estro­tura complexa da ordena9ao terciaria, em que cada rela9aoda p~oposi?ao deve se apoiar nas outras em uma especiede cIrcuIandade, vemos que 0 conjunto e cada uma desuas partes podem se desmoronar se perdem esta complemen­t~~edade: nao somente porque 0 circuito da proposi9aologrca pode sempre ser desfeito, assim como se fende umanel, para fazer apareeer 0 sentido organizado de outra for­ma, mas tambem e sobretudo porque 0 sentido, tendo eleproprio uma fragiIidade que pode faze-Io osciIar em dire­9ao. ao nao-senso, as rela90es da proposi9ao logica corremo r!sco de J?Crder toda medida e a siguifica9ao, a mauifes­ta9ao, a deslgna9ao se desmoronarem no abismo indiferen-

ciado de um sem-fundo que nlio comporta mais do que apuIsa9ao de um corpo monstrooso. Eis por que, para alemda ordena9ao terciada da proposi9aO e mesmo da organi­za9ao secundaria do sentido, pressentiamos terrivel ordemprimaria onde toda a Iingnagem involui.

Parece que 0 sentido, na sua organiza9ao de pontosaleatorios e singulares, de problemas e de questOes, de se­ries e de deslocamentos, e duplamente gerador: ele naoengendra somente a proposi9ao logica com suas dimens5esdeterminadas (designa9ao, mauifesta<;ao, significa9ao), mastambem os correlatos objetivos desta proposi9ao que foramprimeiramente eles pr6prios produzidos como proposi95esontologicas (0 designado, 0 manifestado, 0 siguificado). 0desnivel ou a mistura entre os dois aspectos da genese daoconta de urn fenomeno como 0 do erro. uma vez que urndesignado, por exemplo, pode ser fornecido em uma pro­posi9ao ontologica que nao se corresponde com a propo­si9ao 16gica considerada. Mas 0 erro e uma n09ao muitoartificial, um conceito filos6fico abstrato, porque nao afetasenlio a verdade de proposi90es que se supoem ja feitas eisoladas. 0 elemento genetico s6 e descoberto na medidaem que as n090es de verdadeiro e de falso sao transferidasdas proposi90es ao problema que estas proposi90es estacsupostamente encarregadas de resolver e mudam comple­tamente de sentido nesta transferencia. Ou antes e a cate­goria de sentido que substimi a de verdade, quando 0 ver­dadeiro e 0 falso eles pr6prios qUalificam 0 problema e naomais as proposi90es que a ele respondem. Oeste ponto devista sabemos que 0 problema, lange de indicar um estadosubjetivo e provis6rio do conhecimento empirico, remete aocontrario a uma objetividade ideal, a um complexo consti­tutivo do sentido e que funda ao mesmo tempo 0 conheci­mento e 0 conhecido, a proposi9ao e seus correlatos. 1i arela9ao do problema com suas condi90es que define 0 sen­tido como verdade do problema enquanto tal. Pode acon­tecer que as condi90es perman~am insuficientemente deter­minadas ou, ao contrario, sejam sobredeterminadas de talmaneira que 0 problema seja urn falso problema. A deter­mina9ao das condi90es implica de urn lado um espa90 dedistribui9ao nomade em que se repartem singularidades(Topos); de outro lado, um tempo de decomposi9ao peloqual este espa90 se subdivide em subespa90s, cada urn suces­sivamente definido pela adjun9ao de novos pontos que asse­grrram a determina9ao progressiva e completa do dominioeonsiderado (A ion). Ha sempre urn espa90 que condensae precipita as singularidades, como urn tempo que completaprogressivamente 0 acontecimento por fragmentos de acon­tecimentos futuros e passados. Ha pois urna autodeterrni-

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nal'ao espal'o-temporal do problema, no curso da qual 0problema avanl'a preenchendo a falta e prevenindo 0 exces­so de sua~ proprias condil'oes. :E ai que 0 verdadeiro setorna sentido e produtividade. As solul'oes sao precisa­mente .engend:ad~s ao mesmo tempo que 0 problema sedetermma. _EIS al por que acreditamos tao freqiientementeque .a solul'ao nao deixa subsistir 0 problema e Ihe da retros­~ectivamente 0 estatuto de urn momento subjetivo necessa­namente ~Itrapassado desde que a solul'ao e encontrada.. Noen~anto, e exatamente 0 contrario. :E por urn processo pro­pno que 0 problema se det~rmina ao mesmo tempo noe~pal'O e no. tempo e, deternunando-se, determina as solu­I'0es .n~s qUlllS persiste. :E a sintese do problema COm suascondi>oes que engendra as proposi,oes, suas dimensoes eseus correlatos.

o se~ti_do e pois expresso como 0 problema ao qualas propoSIl'oes correspondem enquanto indicam respostasp~rticulares, signif!c~m os casos de uma solul'ao geral" ma­mfesta~ ~tos subJe~lvos de resollll'ao. Eis por que antesd~ .expnnur 0 sentido sob urna forma infinitiva ou parti­C~Plal (a.,neve-ser-?r~co, 0 existente-branco da neve), pare­CIa deseJavel expnml-Io sob forma interrogativa. :E verda­de que. a forma interrogativa e decalcada numa solul'ao quese supoe possa ser dada OU ja dada e que ela e somente 0

duplo neutr?lizado de urna resposta supostamente detida poraquele que mterroga (de que cor e a neve, que horas silo?).Pe~o menos ela tern a vantagem de nos colocar na via da­quilo que procuramos: 0 verdadeiro problema, que nao separece com. as proposil'oes, q~e subsw;ne, mas que as engen­dra det.ern;t~ando suas propnas condil'oes e que assinala aordem mdlVldual de per.~utal'ao das proposil'oes engendra­das n~ quact;o das sl~mfi:al'~es gerais e das manifestal'oespes~oals. A mterrogal'ao nao e senao a sombra do problemaproJ~t~do ou antes reconstituido a partir das proposil'oesempmcas; mas 0 problema em si mesmo e a realidade doe~emento genetico, 0 tema complexo que nao 50 deixa redu­~ : nenhurna tese de proposil'ao I. :E urna so e mesmaIlusao que,. ~Ob urn aspecto empirico, decalca 0 problemanas proposIl'o~s ~~e !he s~rv~~ de "respostas" e que, soburn aspecto fllos?~ICO e Clentifico, define 0 problema pelaforma de PosslbiI~d?~e das proposil'Oes "correspondentes".E~ta forma e posslbilldade pode ser logica ou entao geom'­~Ica, algebrica, fisica~ .transcendental, moral etc. Pouc~Importa; enquanto defimmos 0 problema por Sua "resolu.

1 . No pre£acio da F enomenolo' H 1dade fiIos6fi..... (0 . 'if· ) , gw,.. ege mostrou com aCerto que aver-....... u Clen Ica n 0 COnsisba em . _ ." uma ~!erroga~ao simples. do tipo "quando c~: ~O~~~I;,~O coSomb,oe '."Pd~""len~a enLie 0 problema on t . . , I e­

IV. c.l. ema e a prOPOSICao, d. LeibDiz. N(JVos Ensaios,

bilidade", confundimos 0 sentido com a significal'ao e naoconcebemos a condil'ao senao a imagem do condicionado.De fato, sao os dominios de resolubilidade que sao relativosao processo de autodeterminal'ao do problema. :E a sin­tese do proprio problema com suas proprias condil'oes queconstitui algoma coisa de ideal ou de incondicionado, deter­minando ao mesmo tempo a condil'ao e 0 condicionado,isto e, 0 dominio de resolubilidade e as solul'oes neste do­minio, a forma das proposil'oes e sua determinal'ao sobesta forma, a significal'ao como condil'ao de verdade e 3

proposil'ao como verdade condicional. Jamais 0 problemase parece as proposil'oes que ele subsume, nem as relal'oesque engendra na proposil'ao: ele niio e proposicional, em­bora nao exista fora das proposil'oes que 0 exprimem. Assimnao podemos seguir Husser!, quando pretende que a ex­pressao nao e senao urn duplo e tern forl'osamente a mes­ma"tese" do que aquilo que a recebe. Pois 0 problematico,entao, nao is mais do que uma tese proposicional entre outrase a "neutralidade" recai de urn outro lado, opondo-se a todatese em geral, mas somente para representar uma autramaneira de conceber ainda 0 expresso como 0 duplo daproposil'ao correspondente: reencontramos a alternativa daconsciencia segundo HusserI, constituindo 0 "modelo" e a"sambra" as duas maneiras do duplo 2, Parece ao contra­rio que 0 problema, enquanto tema ou sentido expresso,possui uma neutralidade que Ihe pertence essencialmente,mas tambem que nao e Dunea modelo nem sambra, Duneao duplo das proposil'oes que 0 exprimem.

Ele e neutro com relal'ao a todos os modos da propo­sil'ao. Animal tanturn. .. Circulo enquanto circulo somen­te: nem circulo particular, nem conceito representado emuma ,equal'ao cujos termos gerais devem ainda receber urnvalor particular em cada caso, mas sistema diferencial aoqual corresponde urna emissao de singularidades 3. Que 0problema nao exista fora das proposil'oes que 0 exprimemcomo seu sentido, significa que ele niio e, falando-se pro­priamente: ele insiste, subsiste ou persiste nas proposil'oese se confunde com este extra-ser que encontramos preceden­temente. Mas este nao-ser nao e 0 ser do negativo, e 0 serdo problematico, que e preciso eser,ever (naoloser ou ?-ser.

2. Id&s, § 114, § 124.3. Bordas-Demoulin, no seu bela livro sobre 0 Cartesianismo (1843),

mostra bem a diferen!ia entre estas duas express6es da circunfer~ncila:

x2 + y2 _ Rll ;;; O. e ydy + xdx ;;; O. Na primeira, posso sem dumaatribuir a cada tertlW valores diversos. mas devo 1hes atribuir um em parti­cular para cada caso. No segundo, dy e dx sao independentes de todo valorparticular e sua rela!iao remere somente as singuIaridades que de£inem a tan­gente trigonometrica do lingulo que a tangente a curva faz com 0 eixo das

abscissas (~== -y-) .dy x

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o problema .0 independente do negativo como do afirmativo'nem por isso ele deixa de ter uma positividade que corres~ponde ~ sua posi~ao como problema. Da mesma forma, 0aco~teclm:nto puro ac:de a esta positividade que ultrapassaa afl:ma~ao e a nega~ao, tratando-as ambas como casos dcsolu~ao . para urn problema que define qelo que ocorre ep'elas smguland.a~es que "poe" ou "depoe". Evenit ...Ce~tas proposl~oes sao depositivas (abdicativae) : elas

deslItuem,. elas denegam urn objeto de alguma coisa. Assim,quando dlzem~s que 0 prazer nao .0 urn bern, destituimos 0

prazer da quahdad~ de bern. Mas os Estoicos estimam que~esmo esta proposl~ao .0 positiva (dedicativa), porqne eIes~zem: oc?rre a certo prazer nao ser urn bern, 0 que Con­slste em por 0 que ocorre a este prazer ... " 4.

S~mos levados a dissociar as duas no~oes de duplo e d.'neutrahdade._ 0 sentido .0 neutro mas nao .0 nunca 0 dUPl~das proPOSI~oeS que 0 exprimem, nem dos estados de coisasa~s qUais ele OCorre e q.ue sao designados pelas proposi~oes.Els por q~e e~qu.ant.o flcamos no circuito da proposi~ao, sopodemos ,m~enr mdireta~ente 0 qne .0 0 sentido; mas, 0q~e ele e dlretamente, 'lImOS que nao podiamos sahe-Io a?ao ser quebrando 0 circuito, em urna opera~ao an3.l0gaaquela que fende e desdobra 0 anel de Moebius. Nao po_demos conceber a condi~ao a imagem do condicionado; pur­gar 0 campo tran~cend~ntaI de toda semelhan~a permanecea tarefa ?: ~ma fllosofm que nao quer cair nas armadilhasda con.sc:en~m ou do cogito. Ora, para permanecer fiel ae~ta eXlgencm, ,e preciso dispor de urn incondicionado comosmtese ,heteroge?ea da co~di~ao em urna figura autanoma,que. reune em Sl ~ neutrahdade e a potencia geuetica. To­davIa, quand~ falavamos precedentemenle de uma neutraIi­dade do sentldo e quando pressentiamos esta neutralidadecomo uma dobra, nao era do ponto de vista da genese en­quanto 0 sentido dispoe de urn poder genetico herdad~ daquas.e-caus~, ~ra de urn ponto de vista diferente, sendo 0senlIdo pnmel~O co~siderado como efeito produzido porcausas corporals: efelto de superficie, impassivel e esteril.Como manter ao mesmo tempo que 0 sentido produz mesmoos estados de coisas em que se encarna e que .0 produzidoP?r estes estados de coisas, a~oes e paixoes dos corpos(lmaculada concep~ao)?

_ A propria. ideia de genese esliltica dissipa a contradi­~ao. Quan?o dizemos que os corpos e suas misturas prOOu­zem 0 se~tldo, n~o ~ ~m virtude de urna individua~ao que 0pressupona.. A mdivldua~ao nos corpos, a medida nas suas.It.1sturas, 0 Jogo das pessoas e dos conceitos nas snas varia-

4.tit'us). Apuleu, De l'interpretalion (0 par terminol6gico abdicativus-dedioa_

~oes, toda esta ordena~ao supoe 0 sentido e 0 campo neutr~,

pre-individual e impessoal em que ele se desdobra. f: pOlSde urna outra maneira que 0 proprio sentido .0 prOOuzidopelos corpos. Trata-se desta vez de corpos tornados nasua profundidade indiferenciada, na sua pulsa~ao sem me­dIda. E esta profundidade age de uma maneira original: porseu pader de organizar superjfcies, de se~envolver e,?" .super­ficies. Esta pulsa~ao age ora pela forma~ao de urn mlOlmo desuperficie para urn maximo de materia (assim, a formaesferica), ora pelo acr6scimo das superficies e sua mult,­plica~ao segundo diversos procedimentos (estiramento, frag­menta~ao, tritura~ao, secura e umidade, adsor~ao, musgo,emulsao). f: deste ponto de vista que .0 preciso reler todasas aventuras de Alice: suas diminui~6es e seus crescimentos,snas obsess5es alimentares e enureticas, sens cncontros comas esferas. A snperficie DaD enem ativa nem passiva, ela e0produto das a~oes e das paixoes dos corpos misturados. Per­tence asuperficie 0 sobrevoar seu proprio campo, impassive],indivisivel, como estas laminas finas e continuas de que falaPlotino, que urn liquido impregua e atravessa de uma a outraface 5. Receptaculo de camadas monomoleculares, ela assegu­ra a continuidade e a coesao lateral das duas camadas semespessura, intema e extema. Puro efeito, ela .0 no entantoo lugar de uma quase-causa, pois uma energia superficial, semser da superficie mesma, .0 devida a toda forma~ao de su­perficie; e urna tensao superficial ficlicia dai decorre, comofor~a que se exerce sobre 0 plano da superficie, a qual seatribui 0 trabalho gasto em faze-Ia crescer. Teatro para brus­cas coudensa~oes, fusoes, mudan~as de estados das cama­das expostas, distribui~oes e remanejamentos de singulari­dades, a superficie pode crescer indefinidamente, comoquando dois Uquidos se dissolvem urn no outro. Ha ,P0istOOa urna fisica das superficies enquanto efelto das IDIStu­ras em profundidade, que recolhe sem cessar as varia~oes,

as pulsa90es do universo inteiro e as envolve nestes limitesmoveis. Mas a fisica das superficies corresponde necessa­riamente urna superficie metafisica. Chamaremos de super­ficie metafisica (campo transcendental) a fronteira que &einstaura entre os corpos tornados juntos enos Umites queos envolvem, de urn lado e as proposi~oes quaisquer, de outrolado. Esta fronteira, nos 0 veremos, implica certas proprie­dades do som com rela~ao a superficie, que tomam possi­vel uma reparti~ao distinta da Iinguagem e dos corpos, daprofundidade corporal e do continuum sonoro. De todasestas maneiras a superficie .0 0 campo transceudental eleproprio e 0 lugar do sentido ou da expressao. 0 sentido .0

5. PLoTlNO. II, 7, 1.

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o que se forma ,e se desdobra na superffcie. Mesmo a fron­teira nao 10 uma separa~ao, mas 0 elemento de uma articula­~ao tal que 0 sentido se apresenta ao mesmo tempo comoo que ocorre aos corpos e 0 que insiste nas proposi~oes

Tambe,:" devemos manter que 0 sentido e urn farro, e que ~neutra/ldade do sentido e inseparavel de seu estatuto deduplo. S6 que 0 forro nao significa mais uma semelhan~a

evanescente e desencarnada, uma imagem esvaziada de camecom.o urn sorriso, ~em gato. E~a .se ~efine agora pela pro:du~ao das, superfl~les: sua multiphca~ao e sua consolida~ao.A dobra e a contmUidade do avesso e do direito a arte deinstaurar esta continuidade, de tal maneira que' 0 sentidona superficie se dis.tri.bui dos dois la?03 ao mesmo tempo,como expresso subslstmdo nas proposl~oes e como aconteci­mento sobrevindo aos estados de corpos. Quando esta pro.du~ao abre falencia, quando a superficie 10 dilacerada porexplosoes e rasgoes, os corpos recaem na sua profundidade,tudo recai na pulsa~ao an6nima em que as pr6pria palavrasnao sao mais do que afec~oes do corpo: a ordem primariaque murmura sob a organiza~ao secundaria do sentido. Aocontrario, enquanto a superficie se mantem, nao somente 0sentido ai se desdobra como efeito, mas participa da quase­-causa que ai se acha ligada: ele produz por sua vez a indi­vidua~ao e tudo 0 que se segue em urn processo de determi­na~ao dos corpos e de suas misturas medidas, a significa~ao

e tudo 0 que se segue em UlU processo de determina~ao dasproposi~oes e de suas rela~oes assinaladas - toda a orde­na~ao terciaria ou 0 objeto da genese estatica.

ueClma Ultava ::sene:DasTresImagens de Fil6sofos

A imagem do fil6sofo, tanto popular como cientffica,parece ter sido fixada pelo platonismo: um ser das ascen­wes que sai da caverna eleva-se e se purifica na medida emque mais se eleva. Neste "psiqnismo ascensional", a morale a filosofia, 0 ideal ascetico e a ideia do pensamento esta­beleceram la~os muito estreitos. Deles dependem a imagempopular do fil6sofo nas nuvens, mas tambem a imagem cien­tffica segundo a qual 0 ceu do fil6sofo e urn ceu inteligfvelque nos distrai menos da terra do que compreende sua lei.Mas nos dois casos tudo se passa em altitude (ainda quefosse a altura da pessoa no ceu da lei moral). Quando per­guntamos "que e orientar-se no pensamento?", aparece queo pensamento pressup5e ele pr6prio eixos e orienta~oes se­gundo as quais se desenvolve, que tern UlUa geografia antesde ter uma hist6ria, que tra~a dimensoes antes de construirsistemas. A altura e 0 Oriente propriamente plat6nico. Aopera~ao do fil6sofo 10 entao determinada como ascensao,como conversao, isto e, como 0 movimento de se voltarpara 0 principio do alto do qual ele procede e de se deter­minar, de se preencher e de se conhecer gra~as a uma talmovimenta~ao. Nao vamos comparar os fil6sofos e as doen­cas, mas ha doen~as propriamente filos6ficas. a idealismo eadoen~a congenita da fi10sofia platonica e, com seu cortejode ascensoes e de quedas, a forma maniaco-depressiva dapr6pria filosofia. A mania inspira e guia Platao. A diale­tica e a fuga das Ideias, a Ideenflucht; como Platao diz daIdeia, "ela foge ou ela perece ... " E mesmo na morte deS6crates M algo de urn snicidio depressivo.

Nietzsche duvidou desta orienta~ao pelo alto e se per­guntou se, longe de representar a realiza~ao da filosofia, ela

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:'1uau CIa, au comrarJU, a degenerescencia e 0 desvio come~an­

do com S6crates. Por ai Nietzsche recoloca em questao todoo problema da orienta~ao do pensamento: nao e segundooutras dimensoes que 0 ato de pensar se engendra no pen­samento e que 0 pensador se engendra na vida? Nietzschedisp6e de urn metodo que ele inventa: nao devemos noscontentar nem com biografia nem com bibliografia, e pre­ciso atingir nm ponto secreto em que a mesma coisa eanedota da vida e aforismo do pensamento. f: como 0 sen­tido que, em nma de suas faces, se atribui a estados da vidae, na outra, insiste nas proposi~oes do pensamento. Ha aidimensoes, horas e lugares, zonas glaciais oU t6rridas, nuncamoderadas, toda a geografia ex6tica que caracteriza urn modode pensar, mas tambem urn estilo de vida. B possivel queDi6genes Laercio, em suas melhores paginas, tivesse urnpressentirriento deste metodo: encontrar aforismos vilais quesejam tambern Anedotas do pensamento - a gesta dos fi­16sofos. Empedocies e 0 Etna, eis uma anedota filos6fica.Ela vale tanto como a morte de S6crates, mas precisamen­te opera em uma outra dimensao. 0 fil6sofo prb-socraticonao sai da cavema, ele estima, ao contnrrio, que nao estamosbastante engajados nela, suficientemente engolidos. 0 queele recusa em Teseu e 0 fio: "Que nos importa vosso ca­minho Que sobe, vosso fio que leva fora, que leva 11. felici­dade e 1 virtude. .. Quereis nos salvar COm a ajuda destefio? E n6s, n6s vos pedimos encarecidamente: enforcai-vosneste fio!" as pre-socraticos instalaram 0 pensamento nascavemas, a vida na profundidade. Eles sondaram a aguae 0 fogo. Eles fizeram filosofia a golpes de martelo, comoEmpedocles quebrando as estatuas, 0 martelo do ge610go, doespele6logo. Em urn diluvio de agua e de fogo, 0 vulcaocospe de volta em Empedocles uma so coisa, sua sandalia dechumbo. As asas da alma platonica opOe-se a sandiiIia deEmpedocles, que prova que ele era da terra, sob a terra eautoctone. Ao golpe de asas platonico, 0 golpe de martelopre-socratico. A conversao platonica, a subversao pre-so­cratica. As profundidades encaixadas parecem a Nietzschea verdadeira orienta~ao da filosofia, a descoberta pre-socra­tica a retomar em uma filosofia do futuro, com todas asfor~as de uma vida que e tambem urn pensamento ou deuma linguagem que e tambem urn corpo. "Atras de todacaverna, ha urn outra mais profunda, deve haver uma outramais profunda, urn mundo mais vasto, mais estranho, maisrico sob a superficie, urn abismo abaixo de todo fundo, alemde toda funda~ao" I. No come~o, a esquizofrenia: 0 pre-so-

l. :e estranho que Bachelard, procurando caracterizar a imagina~o nietzs­chiana, apresente-a como urn "psiquismo ascensional" (L'Air et les Songe.~.

Cap. V). Nao somente Bachelard reduz ao mfnimo 0 papeI da terra e dasuperffcie em Nietzsche, mas interpreta a "verticaIidade" nietzschiana comosendo antes de tudo altura e ascensao. No entanto, ela e, de preferencia,

cratismo e a esquizofrenia propriamente fIIos6fica, a pro­fundidade absoluta cavada nos corpos e no pensamento eque faz com que H6lderlin, antes de Nietzsche, saiba en­contrar Empedocles. Na celebre alternfuJcia empedocliana,na complementaridade do 6dio e do amor, reencontramosde nm lado 0 corpo de Odio, 0 corpo-coador e, em peda~os,

"cabe~as sem pesco~o, brac;os sem ombros, olhos sem testa",de outro lado 0 corpo glorioso e sem 6rgaos, "forma deuma so pe~a", sem membros, sem voz nem sexo. Da mesmaforma, Dionisio nos mostra seus dois semblantes, seu corpoaberto e lacerado, sua cabe~a impassivel e sem 6rgaos, Dio­nisio desmembrado, mas tamb6m Dionisio impenetravel.

Este reencontro da profundidade, Nietzsche nao 0 tinbafeito a nao ser conquistando as superficies. Mas ele nao ficana superficie; esta Ihe parece antes 0 que deve ser j!!lgadodo ponto de vista renovado do olho das profundld?des.Nietzsche se interessa pouco sobre 0 que se passa depOls dePlatao estimando que e necessariamente a seqiiencia de uma, ,longa decadencia. No entanto, conforme ao met~o ~esmo,

temos a impressao de que se levanta uma tercelra Imagemde filosofos. E qne e a eles que a palavra de Nietzsche seaplica particularmente: de tanto serem superficiais, comoesses gregos eram profundos! 2 Estes terceiros gregos naosao mesmo mais completamente gregos. A salva~ao, elesnao a esperam mais da profundidade da terra ou da autocto­nia muilo menos do cen e da Ideia, eles a esperam lateral­me~te do acontecimento, do Leste - onde, como diz Car­roll, se levantam todas as boas coisas. Com os Megaricos,os Ciuicos e os Est6icos com~am urn novo fil6sofo e urnnovo tipo de anedotas. Que se leiam novamente os maisbelos capitulos de Diogenes Laercio, aquele sobre Di6geneso Cinico, aquele sobre Crisipo 0 Est6ico. Vemos ai desen­volver-se urn curioso sistema de provoca,oes. De urn lado 0fil6sofo come com a Ultima das gulas, ele se empanturra;ele se masturba na pra~a p6blica, lamentando que nao sepossa fazer 0 mesmo com rela~ao 11. fome; ele nao ~on?ena

o incesto, com mae, irma ou filha; ele tolera 0 cambahsmoe a antropofagia - e, evidentemente, ele e s6brio e casto nomais alto grau. De outro lado, ele se cala quando Ihe colo­camos quest5es ou entao responde brandindo 0 seu bastao,ou ainda, quando Ihe colocamos nma questao abstrata edificiI, responde desiguando urn alimento OU mesmo dando

profundidade e descida. A ave de rapina nao sobe, salvo acidentalmente:ela sobrevoa e "mergulha". n preciso mesmo dizer que a profundidade servea Nietzsche para denunciar a ideia de a~tura e 0 ideal. de ascensao; a alturanao e mais do que mistifica~ao, um efelto de SUper£iC1e. que nao engana 0

olho das WOfundidades e se desfaz sob sen olhar. Cf. a este respeito asobserva~Oes de MiChel Foucault, "Nietztsche. Freud, Marx," em Niet;uche,Cahiers de Royaumont, ed. de Minuit, 1967, pp. 186-187"

2. Nietzsche ccmtre WagtW1', epilogo § 2.

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uma caixa de aIimeutos que ele quebra em seguida semprecom urn golpe de bastiio - e no entanto tambem ~Ie man­tem urn discurso Dl:V~,. nov_o lo~os ,animado de paradoxos,de valores e de slgDlfica,oes filosoficas novas. Sentimospe?,eita~~nte que eslas anedotas nao sao mais platonicas nempre-socraticas.. . ~ urna reorie~ta,ao d<: todo 0 pensamento e do que

slgmflca pensar: nao lui mtllS I1£m profundidade nem altura.As zombarias cfnicas e est6icas contra Platao sao inconta­vei~: trata-se se~pre ~e destituir as Ideias e de mostrar queo_In,;orpor~ nao esta na altura, mas na superficie, quenao e a malS alta causa, mas 0 efeito superficial por exce­lencia, que ele nao 15 Essencia, mas acontecimento. Na outraf~ente, mostraremos que a profundidade 15 uma ilusao diges­t~va,. que completa a ilusao 6ptica ideal. Com efeito, queslgnific~m .esta gula, esta apologia do incesto, esta apologiado cambahsmo? Como este ultimo tema 15 comum a Crisipoe a Di6!l~nes 0 Cinico: Laercio nao da nenhuma expIica,aoJ:ara Cnslpo, ma~ havla proposto uma para Di6genes, par­tlculannente convIncente: "Ele nao achava tao odioso comercarne hUInana, como 0 fazem povos estrangeiros, dizendoque, em sa consciencia, tudo esta em tudo e por toda parte.Ha carne no pao e pao nas ervas; estes corpos e tantos outrosentram em todos os corpos por condutos escondidos e seevaporam juntos, como 0 demonstra na sua pe,a intituladaThyestes, se 15 verdade, todavia, que as tragedias que a elese atrib~em sao mesmo dele ... " Esta tese, que vale tambempara ~ In~esto, estabel~ce q,ue na profundidade dos corpostU?O e mlstura; ora, nao ha regras segundo as quais umanustura e nao outra pode ser considerada ma. Contraria­men~e ao que acreditava Platao, nao ha para as misturas umame~l~a em altur~, c~mbinal'6es de Ideias que pennitiriam~effnir ~oas,e m~s nus~ura~. Contrariamente aos pre-socra­ticos, nao ha mals medlda lmanente capaz de fixar a ordeme a progressao de urna mistura nas profundidades da Physis'toda mistura vale ~ que valem os corpos que se penetram ~as partes que coeXIstem. Como 0 mundo das misturas naoseria 0 de uma profundidade negra em que tudo 15 pennitido?

Crisipo distinguia duas especies de misturas: as mistu­ras imperfeitas que alteram os corpos e as misturas perfeitasque os deixam intactos e os fazem coexistir em todas assuas partes. Sem duvida, a unidade das coisas corporais~n~e elas define uma mistura perfeita e Iiquida, em que tudoe JUsto no presente c6smico. Mas os corpos tornados naparticularidade de seus presentes Iimitados nao se encontramdiretamente segundo a ordem de sua causaIidade, que s6vale para 0 todO, observadas todas as combina,oes ao mes­mo tempo. £is por que toda mistura pode ser dita boa ou

ma: boa na ordem do todo, mas imperfeita, rna e ate mesmoexecravel na ordem dos encontros parciais. Como condenaro incesto e 0 canibalismo, neste dominio em que as paixoessao elas pr6prias corpos que penetram outros corpos e avontade particular Urn mal radical? Que se tome 0 exemplodas tragedias extraordinarias de seneca. N6s nos pergunta­mos qual 10 a unidade do pensamento est6ico com este pen­samento tragico que poe em cena pela primeira vez sereSconsagrados ao mal, prefigurando tao precisamente 0 teatroeIisabetano. Nao bastam alguns coros estoicizantes para fazera unidade. 0 que 10 verdadeiramente est6ico, aqui, 10 a des­coberta das paixoes-corpos e das misturas infernais que or­ganizam ou sofrem, venenos fumegantes, festins ped6fagos.A refei,ao tragica de Thyestes nao 10 somente 0 assunto per­dido de Di6genes, mas 0 de Seneca, felizmente conservado.As tunicas envenenadas come,am por queimar a pele, devo­rar a superficie; depois elas atingem ao mais profundo, emum trajeto que vai do corpo perfurado ao corpo despeda­,ado, membra discerpta. Por toda parte na profundidadedos corpos borbulbam misturas venenosas, elaboram-se abo­mimiveis necromancias, incestos e alimenta~5es. Procure­mos 0 antidoto ou a contraprova: 0 her6i das tragedias deSeneca como de todo 0 pensamento est6ico 10 Hercules. Ora,Hercules se situa sempre com rela,ao aos tres reinos: 0

abismo infernal, a altura celeste e a superficie da terra. Naprofundidade ele nao encontrou senao espantosas misturas;no ceu eIe s6 encontrou 0 vazio, au mesma monstros celes­tes que dupIicavam os infemais. Mas ele 10 0 pacificador e 0

agrimensor da terra, ele pisa mesmo sobre a superficie dasaguas. Ele sobe ou volta a descer a superficie por todos osmeios; traz para al 0 dio dos infernos e 0 dio celeste, aserpente dos infernos e a serpente do ceu. Nao mais Dioni­sio no fundo, ou Apolo la em cima, mas 0 Hercules das su­perficies, na sua dupla luta contra a profundidade e a altu­ra: todo 0 pensamento reorientado, nova geografia.

Apresenta-se por vezes 0 estoicismo como operandopara alem de PIatao uma especie de retorno ao pre-socratis­mo, ao mundo heraclitiano, por exemplo. Trata-se antes deuma reavaIia,ao total do mundo pre-socratico interpretan­do-o conforme uma fisica das misturas em profundidade, osCinicos e os Est6icos 0 abandonam por um lado a todas asdesordens locais que se conciliam somente com a Grande mis­tura, isto 10, a unidade das causas entre si. :e, urn mundo doterror e da crueldade, do incesto e da antropofagia. E semduvida M uma outra parte: 0 que, do mundo heraclitiano,pode subir 11 superficie e vai receber urn estatuto completa­mente novo - 0 acontecimento na sua diferen,a de natu­reza COm as causas-corpos, 0 Aion na sua diferen,a de na-

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tureza com 0 Cronos devorante. Paralelamente, 0 platonis­mo sofre uma reorienta9ao total an:Uoga: ele que pretendiaaprofundar ainda mais 0 mundo pre-socnitico, reprimi-loamda mais, se ve destituido de sua propria altura e a Ideiarecai na superficie COmo simples efeito incorporal. .E agrande descoberta estoica, ao mesmo tempo contra os pre­-socniticos e contra Platao: a autonomia da superficie, in­dependentemente da altura e da profundidade, contra a al­tura e a profundidade; a descoberta dos acontecimentos in­corporais, sentidos ou efeitos, que sao irredutiveis aos corposprofundos assim como as Ideias altas. Tudo 0 que acontecee tudo 0 que se diz acontece e se diz na superficie. Estanao esta menos para ser explorada, mais desconbecida maisainda talvez que a profundidade e a altura que sao nio-sen­so. Pois a fronteira principal 10 deslocada. Ela nao passamais em altura entre 0 universal e 0 particular. Ela naopassa mais em profundidade entre a substancia e os aciden­tes. Talvez seja a Antistenes que 10 preciso glorificar pelonovo tra9ado: entre as coisas e as proposi90es mesmas.Entre a coisa tal qual ela 10, designada pela proposi9ao e 0

expresso, que nao existe fora da proposi9ao (a substancianao 10 mais do que uma deterrnina9ao secundiria da coisa eo universal, uma determina9ao secundiria do expresso).

A superffcie, a cortina, 0 tapete, 0 casaco, eis oode 0

Cinico e 0 Estoico se instalam e aquilo de que se cercam.o duplo sentido da superficie, a continnidade do avesso edo direito, substituem a altura e a profundidade. Nada atrasda cortina, salvo misturas inomimiveis. Nada acima dotapete, salvo 0 ceu vazio. 0 sentido aparece e atua na su­perficie, pelo menos se soubermos convenientemente de ma­n~ira a formar letras de poeira au como urn vapo; sabre 0

vldro em que 0 dedo pode escrever. A filosofia das basto­nadas nos Cinicos enos Est6icos subslitui a filosofia dasmarteladas. 0 fil6sofo nao 10 mais 0 ser das cavernas, nema alma ou 0 passaro de PIatao, mas 0 animal chato das su­perficies, 0 carrapato, 0 piolho. 0 simbolo filos6fico nao 10mais a agnia de Platao, nem a sandalia de chumbo de Em­pedocles, mas 0 manto duplo de Antistenes e de Di6genes.o bastao e 0 manto, como Hercules COm seu porrete e suapele de leao. Como nomear a nova opera9ao filos6fica en­quanta ela se op6e ao mesmo tempo a conversao platonicae a subve;sao pre-socritica? Talvez pela palavra perversao,que convem pelo menos ao sistema de provoca90es destenovo lipo de fil6sofos, se 10 verdade que a perversao implicauma estranba arte das superficies.

Decima Nona Serie:Do Humor

Parece em primeiro lugar que a linguagem nao possaencontrar um fundamento suficiente nos estados daquele queSe exprime, nem nas coisas sensiveis designadas, mas so­mente nas Ideias que Ibe dao uma possibilidade de verdade,assim como de falsidade. E dificil imaginar, no entanto, pormeio de que milagre as proposi90es participariam as Ideiasde uma forma mais segura do que os corpos que falam oudos corpos de que se fala, a menos que as pr6prias Ideiasnao sejam "nomes em si". E as carpas, no outro polo,poderiam eles melhor fundar a linguagem? Quando os sonsse abatem sobre os corpos e se tornam a90es e paixoes doscarpas misturados, nao sao mais portadores senao de 03.0­

sensas dilacerantes. Denuncia-se, carla uma por sua vez, aimpossibilidade de uma linguagem platonica e de uma lin­guagem pre-socratica, de uma linguagem idealista e de umalinguagem fisica, de uma linguagem maniaca e de uma Iin­guagem esquizofrenica. Impoe-se a alternativa sem saida:ou nada dizer ou incorporar, comer 0 que dizemos. Comodiz Crisipo, "se dizes a palavra carr0l.ta, uma carro~a passapor tua boca" e nao 10 nem melhor nem mais comodo sese tratar da Ideia de carro9a.

A linguagem idealista 10 feita de significa90es hipostasia­das. Mas, a cada vez que nos. interrogam sobre tais signi­ficados - "0 que e 0 Belo, 0 Justo etc., que e 0 Homem?"-, responderemos designando um corpo, mostrando um ob­jeto imitavel ou mesmo consumivel, dando-se, caso necessa­rio, um golpe de bastao, 0 bastao sendo considerado comoinstrumento de toda designa9ao possivel. Ao "bipede semplumas" como significado do homem segundo PIatao, Di6­genes 0 Cinico responde atirando-nos um galo com plumas.

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E ao que pergunta sobre "0 que e a fiIosofia", Diogenesresponde fazendo passear urn arenque na ponta de urn cor­del: 0 peixe e 0 animal mais oral, que coloca 0 problema damudez, da consumabilidade, da consoante no elemento mo­Ihado, 0 problema da linguagem. Platao ria daqueles quese contentavam em dar exemplos, em mostrar, em designarao inves de atingir as Essencias: Eu nao te pergunto (diziaele) 0 que e justo, mas 0 que e 0 justo etc. Ora, e facilfazer c?m que Platao des9a de novo 0 caminho que elepretendIa nos fazer escalar. A cada vez que nos interrogasobre uma siguifica9ao, respondemos por uma desigua9ao,uma mostra9ao puras. E para persuadir 0 espectador deque nao se trata de simples "exemplo" e que 0 problema dePlatao esta mal colocado, imitaremos aqnilo que desiguamos,nos 0 mimetizaremos, ou entao poderemos come-Io ou que­brar aquilo que mostramos. 0 importante e fazer tudo issodepressa: encontrar logo alguma coisa a designar, a comerou a quebrar, que substitni a significa9ao (a Ideia) que nosconvidavam a procurar. E isso tanto mais rapido e tantomelhor que nao ha e nao deve haver semelhan9a entreaquilo que se mostra e 0 que nos pediam: somente uma re­la9ao em dentes de serra, que recusa a falsa dualidade pla­tonica essencia-exemplo. Para este exercicio, que consisteem substituir as siguifica90es por desigua90es, mostrac;Oes,consuma90es e destrni90es puras, e preciso uma estranhainspiragao, e preciso saber "descer" - 0 humor, contra aironia socratica ou a tecnica da ascensao.

Mas para onde nos precipita semelhante descida? Ateao fundo dos corpos e ao sem-fundo de suas misturas; pre­cisamente porque toda designa9ao se prolonga em consuma­9ao, tritura9ao e destrni9ao, sem que se possa deter estemovimento, como se 0 bastao quebrasse tudo 0 que elemostra, vemos bern que a linguagem nao pode se fundarmais na designa9ao do que na significa9ao. Que as signi­fica90es nos precipitem em puras desigua90es que as subs­tituem e as destituem, e 0 absurdo como sem-significa9ao.Mas que as designa90es Se precipitem por sua vez no fundodestrnidor e digestivo, e 0 nao-senso das profundidades comosubsenso ou Untersinn. Qual e entao a saida? E precisoque, pelo mesmo movimento gra9as ao qual a linguagem caido alto, depois se afunda, sejamos reconduzidos 11 superficie,la onde naoha mais nada a desiguar, nem mesmo a signifi­car, mas onde 0 sentido puro e produzido: produzido na suar~a9ao essencial COm urn terceiro elemento, desta vez 0

nao-senso da superficie. E, aqui tambem, 0 que importa eir depressa, e a velocidade.

o 'Iue e que 0 sabio encontra na superficie? Os purosaconteclmentos tornados na sua verdade eterna, isto e, na

subst1mcia que os subtende independentemente de sua efe­tua9ao espa90-temporal no scio de urn estado de coisas. Ouentao, 0 que da no mesmo, de puras singularidades tomadasno seu elemento a1eatorio, independentemente dos individuose das pessoas que os encarnam e os efetuam. Esta aventu­ra do humor, esta dupla destitui9ao da altura e da profundi­dade em proveito da superficie, e primeiro a aventura dosabia est6ico. Mas, mais tarde e em urn outro contexto, ,etambem aquela do Zen - contra as profundidades brama­nicas e as altitudes budicas. Os celebres problemas-provas,as pergrmtas-respostas, os koan, demonstram 0 absurdo dassignificac;Oes, mostram 0 nao-senso das designac;Oes. 0 J;>as­tao e 0 universal instrumento, 0 mestre das questoes, 0 wmoe 0 consurno sao a resposta. Reenviado 11 superficie 0 sabiodescobre ai os objetos-acontecimentos, todos comunicantesno vazio que constitni sua substancia, Aion, em que e1es sedesenham e se desenvolvem sem jamais preencM-lo. 1 0acontecirnento e a identidade da forma e do vazio. 0 acon­tecimento nao e 0 objeto como designado, mas 0 objeto comoexpresso ou exprimivel, jamais presente, mas sempre ja pas­sado e ainda a vir, assim em Mallarme, valendo por suapropria ausencia ou sua aboli9ao, porque esta aboli9ao(abdicatio) e precisamente sua posi,i'io no vazio como Acon­tecimento puro (dedicatio). "Se tu tens urn bastao, diz 0

Zen eu te dOll urn, se nao 0 tens, eu te tomo" (ou, comodizi~ Crisipo: "se nao perdestes alguma caisa, vas a tendes;ora, nao perdestes cornos, logo te~des cornos"). A nega9aonao exprime mais nada de negativo, mas torna patente so­mente 0 exprirnivel puro com suas duas metades impares, dasquais, para todo 0 sempre, uma faz falta 11 outra, uma vezque ela excede por sua propria falta, assin;' como a falta,porseu excesso, palavra '= X para uma COlsa = X. Nos 0vemoS muito bern nas artes do Zen, nao somente a arte dodesenho onde 0 pincel dirigido por urn punho nao apoiadoequilibra a forma com 0 vazio e distribui as singulari?adesde urn puro acontecirnento em series de toques ~ortU1tos ede "linhas cabeludas", mas tambem as artes do Jardlm, dobuque e do cM e a do tiro com arco, a da espada, onde 0"desabrochar do ferro" surge de uma maravilhosa vacuida­de. Atraves das significac;Oes abolidas e das designac;Oesperdidas, 0 vazio e 0 lugar do sentido ou do acontecirnentoque se compoem com 0 seu proprio nao-~ens,o, la onde .naoha mais lugar a nao ser 0 lugar. 0 vazIO e ele proprIO 0elemento paradoxal, 0 nao-senso de superficie, 0 ponto a1ea-

1. Os Est6icos ja tinham elaborado uma bela teoria do Vazio, ao mesmotempo como extra-ser e insisMncia. Se os aco~tecimentos incorporais, sao osatributos 16gicos dos seres e dos corpos, 0 V!ZlO e como a subsU.ncla destesatnbutos, que difere em natureza da ~bstincl.a ..cOlPoral a? .ponto que n,ao sepode mesmo dizer que 0 mundo esta no vazlO. Cf. Brehier, La tMorte desincorporels clam Z'ancien stdici.mte. Cap. III.

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torio sempre deslocado de onde jorra 0 acontecimento comosenn.do. "Nao ha cicio do nascimento e da morte ao qual ep;ecIso. escapar, nero conhecimento supremo a atingir": 0ceu vazlO recusa ao meSilla tempo as mais altos pensamentosdo espirito, os ciclos profundos da natureza. Trata-se me­nos de ati~gir ~o imediato ~o que de determinar este lugarem que 0 Imedlato se mantem "imediatamente" como nao­atingivel: a superficie ern que se faz 0 vazio e todo aconte­Clmento Corn ele, a fronteira como 0 corte acerado de umae~pada ou 0 fio ~enso do arco. Assim pintar sem pintar,nao-pensamento, tIro que Se torna nao-tiro, falar sem falar:ern absoluto nao 0 inefavel ern altura ou profundidade masesta ,fronteira, esta superficie ern que a linguagem se'tornaposs~vel_e, ao faze-Io: na? importa mais do que uma co­~umcag:o sllencJOsa Imedlata, pois que ela nao poderia serdlta a nao ser ressuscitando todas as significagiies e desig­nagiies mediatas abolidas.

Tanto quanta 0 que torna a linguagem possivel, per­gunta-se quem tala. Varias respostas diversas foram dadasa semelhante pergunta. Charnamos de resposta "classica"aquela que deterrnina 0 individuo como aquele que fala.o de. que ele fala e de preferencia determinado como parti­cular~dade, e 0 meio, isto e, a propria linguagem, como ge­nerali~de de. convengao. Trata-se entao, ern uma tripliceoperagao conJugada, de revelar uma forma universal doindividuo (realidade), ao meSmo tempo ern que extraimosuma pura Ideia sobre aquilo de que se fala (necessidade) eque .confrontamos a linguagem a urn modelo ideal, supostopn~tlvo, natural ou puramente racional (possibilidade). Epreclsamente esta operal,;ao que anima a ironia socnitica co­mo ascensao e Ihe da por tarefas ao mesmo tempo arrancaro ~ndividuo a sua existencia imediata, ultrapassar a particu­landade sensivel ern diregao a Ideia e instaurar leis de lin­guagem conformes ao modelo. Tal e 0 conjunto "dialetico"de uma subjetividade memorante e falante. Todavia, paraq~e a operagao seja completa, e preciso que 0 individuo naoseJa somente ponto de partida e trampolim, mas que ele sereencontre igualmen:e no fim e que 0 universal da Ideia sejaantes como urn meJO de troca entre os dois. Este fecha­mento, este afivelamento da ironia faz falta ainda em Piataoou nao aparece a nao ser sob as especies do carnico ou daderrisao, como no confronto SOcrates-Alcibiades. A ironiaclassica, ao co~tnirio: adquire este estado perfeito quandochega a deterrmnar nao somente 0 todo da realidade mas 0

c?nJunto do possivel como individualidade suprema origina­fla. Kant, nos 0 vimas, desejoso de submeter it crftica 0

mundo c~a~sico da representagao, comega por descreve-Iocom exatIdao: "A ideia do conjunto de toda possihilidade

se purifica ate formar urn conceito completamente determi­nado a priori, ternando-se assim, por isso meSillo, 0 con­ceito de uma serie singular" 2. A ironia chissica age comoa instancia que assegura a coextensividade do ser e do indi­viduo no mundo da representagao. Assim, nao somente 0

universal da Ideia, mas 0 modelo de uma pura linguagemracional em rela~ao as primeiras possfveis, tornam-se meiosde comunicagao natural entre urn Deus supremamente indi­viduado e os individuos derivados que ele cria; e e este Deusque torna possivel urn acesso do individuo a forma universal.

Mas, ap6s a critica kantiana, aparecia uma terceira fi­gura da ironia: a ironia romantica deterrnina aquele quefala como a pessoa e nao mais Como 0 individuo. Ela sefunda na unidade sintetica finita da pessoa e nao mais naidentidade anaHtica do individuo. Ela se define pela coex­tensividade do Eu e da representagao mesma. Ha ai mnitomais do ,que uma mudanga de palavra (para determinar todasua importancia, seria preciso avaliar por exemplo a diferen­ga entre os Ensaios de Montaigne, que se inscrevem ja nomundo classico enquanto exploram mais diversas as figurasda individuagao e as Contissoes de Rousseau, que anunciarno romantismo enquanto sao a primeira manifestagao de umapessoa ou de urn Eu). Nao somente a Ideia universal e aparticularidade sensivel, mas os dois extremos da individua­lidade e os mundos correspondendo aos individuos tornarn-seagora as possibilidades proprias da pessoa. Estas possibi­lidades continuam a se repartir em originarias e ern derivadas,mas a originaria nao designa mais do que os predicadosconstantes da pessoa para todos os mundos possiveis (cate­godas) e 0 derivado, as variaveis individuais ern que a pes­soa se encarna nestes diferentes mundos. Segue-se dai umaprofunda transformagao tanto do universal da Icteia comoda forma da subjetividade e do modelo da linguagem en­quanta fungao do possive!. A posigao da pessoa comoclasse ilimitada e, no entanto, de urn so membro (Eu), tale a ironia romantica. E nao ha duvida de que ja M ele­mentos precursores no cogito cartesiano e sobretudo na pes­soa leibniziana; mas estes elementos permanecem subordina­dos as exigencias da individuagao, enquanto que eles seliberam e se exprimem por si mesmos no romantismo aposKant, invertendo a subordinagao. "Esta famosa liberdadepoetica ilimitada se exprime de uma maneira positiva nofato de que 0 individuo percorreu sob a forma da possibili­dade toda uma serie de deterrninagiies diversas e !hes deuuma existencia poetica antes de se abismar no nada. A al­ma que se ahandona a ironia parece aquela que atravessa 0

mundo da doutrina de Pitagoras: ela esta sempre em viagem,

2. ICA.NT. CTiUca do &za'Q Pum. "Do ideal transcendental".

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mas nao tern mais necessidade de uma tao longa dura,ao ...Como as crian,as que sorteiam aquele que paga, 0 ironistaconta em seus dedos: principe encantado ou mendigo etc.Todas estas encarna,oes so tern, a seus olhos, 0 valor depuras possibilidades; ele pode por isso percorrer a gama,tao rapido quanta as crian,as no seu jogo. Em compensa­,ao, 0 que toma 0 tempo ao ironista 10 0 cnidado que elepoe em se paramentar exatamente, conforme ao papel poe­tico assurnido por sua fantasia... Se a realidade dadaperde seu valor para 0 ironista, nao 10 enquanto 10 uma rea­lidade ultrapassada que deve deixar 0 lugar a uma outramals autentica, mas porque 0 ironista encara 0 Eu funda­mental, para 0 qual nao existe realidade adequada" 3.

o que ha de comum a todas as figuras da ironia 10 queelas encerram a singularidade nos limites do individuo o~

da pessoa. Por esse motivo, a ironia nao 10 vagabunda se­nao em aparencia. Mas, sobretudo, 10 porque todas estasfiguras estao amea,adas por um intima inimigo que as tra­baIha de dentro; 0 fundo indiferenciado, 0 sem-fundo de quefalavamos precedentemente e que representa 0 pensamentotragico, 0 tom tragico com 0 qual a ironia mantem as maisambivalentes rela,oes. E Dionisio sob Socrates, mas 10 tam­bern 0 demonio que estende a Deus assim como as suascriaturas 0 espellio em que se dissolve a universal individua­lidade e ainda 0 caos que desfaz a pessoa. 0 individuopronunciava 0 discurso c1assico, a pessoa, 0 discurso roman­tico. Mas, sob estes dois discursos e invertendo-os de ma­neiras diversas 10 agora 0 Fundo sem face que fala rosnando.Vimos que esta linguagem do fundo, a linguagem confun­dida com a profundidade dos corpos, tinha uma dupla po­tencia, a dos elementos foneticos explodidos, ados valorestonicos inarticulados. E antes a primeira que amea,a einverte de dentro 0 discurso classico e a segunda, 0 discursoromantico. Tambem devemos em cada caso, para cada tipode discurso, distinguir tres linguagens. Primeiro uma lin­guagem real correspondendo a assigna,ao completamenteordinaria daquele que fala (0 individuo ou a pessoa ... ). Edepois uma linguagem ideal, que representa 0 modelo dodiscurso em fun,ao da forma daquele que 0 pronuncia (porexemplo, 0 modelo divino do erati/o com rela,ao a subjeti­vidade socratica, 0 modelo racional leibniziano com rela,aoa individualidade classica, 0 modelo evolucionista com rela­,ao a pessoa romantica). Enfim, a linguagem esoterica,que representa em cada caso a subversao, pelo fundo, dalinguagem ideal e a dissolu,ao daquele que detem a lingua­gem real. Ha alias de cada vez rela,oes intemas entre 0

3. Kierkegaard, "0 Conceito de Ironia" (PmllBE MENARD. Kierkegaard,sa vie. son oeuvre. pp. 57-59),

modelo ideal e sua inversao esoterica, como entre a ironia eo fundo tragico, ao ponto de nao sabermos mais de que ladoesta 0 maximo de ironia. Eis por que 10 van procurar umaformula unica urn conceito unico para todas as linguagensesotericas: as~im para a grande sintese fonetica" li~eral esilabica de Court de Gibelin que fecha 0 mundo classlco e agrande sintese tonica evolutiva de Jean-Pierre Bris~et, q~eacaba 0 romantismo (vimos da mesma forma que nao havlauniformidade das palavras-valises).

A pergunta: quem fala?, responderemos ora pelo indivi­duo ora pela pessoa, ora pelo fundo que dissolve tanto umcoO:o a outra. "0 eu do poeta lirico eleva a voz do fundodo abismo do ser, sua subjetividade 10 pura imagina,ao" 4.

Mas repercute ainda uma ultima resposta: aquela que recusatanto 0 fundo prirnitivo indiferenciado como as formas doindividuo e da pessoa e que recusa tanto sua contradi,aocomo sua complementaridade. Nao, as singularidades naosao aprisionadas em indivfduos e pessoas; e muito menoscaimos em um fundo indiferenciado, profundidade sem fun­do, quando desfazemos 0 individuo e a pe~soa. O. que 10impessoal e pre-individual sao as singulandades, livres, enomades. 0 que 10 mals profundo do que tod? 0 fundo e asuperficie, a pele. Aqui se forma um novo YP? de Imgua­gem esoterica, que 10 para si mesma seu prop~o modelo ee sua realidade. 0 tomar-se louco muda de figura quandosobe a superficie, sobre a linha reta do Aion, e~emida~e; d.omesmo modo 0 "mim" dissolvido, 0 Eu fendido, a ldenu­dade perdida: quando param de se a~u:ndar par~ liberar, aocontrario, as singularidades de superflcle. 0 nao-senso e 0sentido acabam com sua rela,ao de oposi,ao diniimica, paraentrar na co-presen,a de uma genese estatica, como n~o~sen­

so da superficie e sentido que desliza sobre ela. 0 tr~gJco ea ironia dao lugar a um novo valor, 0 humor. POlS se aironia 10 acoextensividade. <10. ser com 0 in<iivil:l'!0J ou _doBiiCOiil"a representa,ao, o humor 10 a Ao_senso_~d0!1a.c>:­senso· 0 humor 10 a arte das superficies e das dobras, dass~ridades nomades e do ponto aleatorio sempre de~loca~do; a arte da genese estatica,. 0 s~e!:fazer. do. acontecnnen­tOJ~ur~ au a "quarta_p~s()a do singul~r" - }uspend~ndo-se.tada significa,ao, designa,ao e mamfesta,ao, abolmdo-setoda profundidade e altura.

4. NIETZSCHE. Nascimento cIa tragedia. § 5,

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v I~C"lIlla ';'CIIC.

Sobre 0 ProblemaMoral nos Est6icos

Diogenes Laercio conta que os estoicos comparavam afilosofia a um ovo: "A casca e a logica, a clara e a morale a gema, bem no centro, e a fisica". Sentimos perfeita­mente que Diogenes racionaliza. t;. preciso reencontrar 0

aforismo-anedota, isto e, 0 koan. t;. preciso imaginar urndiscipulo colocando uma questao de significa~ao: que e amoral, 0 mestre? Entao 0 sabio estoico tira um ovo durode seu manto dobrado e com seu bastao designa 0 ovo.(Ou entao, tendo tirado 0 ovo, ele da um golpe de bastaono discipulo e 0 discipulo compreende que ele proprio deveresponder. 0 discipulo toma, por sua vez, 0 bastao, quebrao ovo, de tal maneira que um pouco de clara permaneceligado a gema e um pouco a casca. Ou entao 0 mestredeve fazer ele mesmo tudo; ou 0 discipulo so tera compreen­dido ao termino de numerosos anos.) Em todo caso, asitua~ao da moral esta bem exposta, entre os dois polos dacasca logica superficial e da gema fisica profunda. 0 mes­tre estoico nao e 0 proprio Humpty Dumpty? E a aventurado discipulo, a aventura de Alice, que consiste em remontarda profundidade dos corpos a superficie das palavras, fazen­do a experiencia perturbadora de uma ambigiiidade da mo­ral, moral dos corpos ou moralidade das palavras (a "mo­ral daquilo que se diz ... ") - moral da nutri~ao ou moralda linguagem, moral do comer ou moral do falar, moral dagema ou da casca, moral dos estados de coisas ou moral dosentido.

Pois devemos voltar sobre 0 que diziamos ha pouco,pelo menos para ai introduzir variantes. Seria ir muitodepressa apresentar os Estoicos como recusando a profundi­dade e nao encontrando ai senao misturas infernais corres-

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pondendo as pmxoes-corpos e as vontades do mal. 0 sis­tema est6ico comporta toda uma fisica, com uma moraldesta ffsica. Se e verdade que as paixaes e as vontades massao corpos, as boas vontades, as a~6es virtuosas, as repre­senta,aes verdadeiras, os assentimentos justos sao tamMmcorpos. Se e verdade que tais ou tais corpos formam mis­turas abominaveis, canibais e incestuosas, 0 conjunto doscorpos tornado na sua totalidade forma necessariamente umamistura perfeita, que nao e nada alem do que a unidade dascaUS3S entre elas ou 0 presente cosmico, com relac;ao 30qual 0 proprio mal pode ser tao-so urn mal de "conseqiien­cia". Se hii corpos-paixaes, hii tamMm corpos-a,aes, cor­pos unificados do grande Cosmos. A moral estoica concerneao acontecimento; ela consiste em querer 0 acontecimentocomo tal, isto e, em querer 0 que acontece enquanto acon­tece. Nao podemos ainda avaliar 0 alcance destas formulas.Mas, de qualquer maneira, como 0 acontecimento poderiaser captado e querido sem ser relacionado a causa corporalde onde ele resulta e, atraves dela, a unidade das causascomo Physis? E pois a adivinh{lfQo, aqui, que funda amoral. A interpreta,ao divinat6ria, com efeito, consiste .narela,ao entre 0 acontecimento pure (nao ainda efetuado) ea profundidade dos corpos, as a,aes e paixaes corporais deonde ele resulta. E podemos dizer precisamente como pro­cede esta interpreta,ao: trata-se sempre de cortar na espes­sura, de talhar superficies, de orienta-las, de acresce-Ias ede multiplica-Ias, para segnir 0 tra,ado das linhas e doscortes que se desenham sobre elas. Assim, dividir 0 ceuem sec,aes e nele distribnir as Iinhas dos voos de passaros,segnir sobre 0 solo 0 mapa que tra,a 0 focinho de um porco,jogar 0 figado para a superficie e observar as Iinhas e asfissuras. A adivinha,ao e, no sentido mais geral, a arte dassuperficies, das linhas e pontos singulares que nela aparecem;eis por que dois adivinhos nao se olham sem se rir, com urnriso humoristico. (Seria sem duvida preciso distribnir duasopera,aes, a produ,ao de uma superficie fisica para linhasainda corporais, imagens, impressaes ou representa<;5es e atradu,ao destas numa superficie "metafisica" em que naojogam mais do que as linhas incorporais do acontecimentopuro, que constitni 0 sentido interpretado destas imagens.)

Mas, certamente, nao e por acaso que a moral estoicanunca pode nem qnis se confiar a metodos ffsicos de adivi­nha,ao e se orientou para um outro p610, se desenvolveusegundo um outro metodo, logico. Victor Goldschmidtmostrou mnito bem esta dualidade de polos entre os quaisa moral est6ica oscila: de um lado tratar-se-ia pois departicipar tanto quanto possivel de uma visao divina reu­nindo em profundidade tadas as causas fisicas entre si na

unidade de um presente cosmico, para dai tirar a adivinha,aodos acontecimentos que resultam. Mas, de outro lado, emcompensa,ao, trata-se de querer 0 acontecimento, qualquerque ele seja, sem nenhuma interpreta,ao, gra,as a urn "usodas representa,aes" que acompanha desde 0 come,o a efe­tua,ao do acontecimento mesmo atribuindo-Ihe 0 mais Iimi­tado presente '. Em um caso, vamos do presente cosmicoao acontedmento ainda nao efetuado; no outro caso, doacontedmento puro a sua mais Iimitada efetua,ao presente.E sobretudo, em urn caso Iigamos 0 acontedmento a suasc~usas corporais e a sua unidade fisica; D;0 outro caso, lig~­mos 0 acontecimento a sua quase-causa mcorporal, causah­dade que ele recolhe e faz ressoar na pradu,ao de su.a pro­pria efetua,ao. Este duplo polo ja estav.a compreendido ~oparadoxo da dupla causalidade e nos ?~IS cara~teres da ge­nese estitica, impassibilidade e produtlvld~de, mdlferen~a.eeficacia imaculada concep,ao que caractenza agora 0 sablOest6ico.' A insuficiencia do primeiro p6lo provem, entao,do segninte: que os acontedmentos, sendo efeitos incorporais,diferem em natureza das causas corporais de que eles resul­tam; que eles tern leis diferentes das que as regem e saOdeterminados somente por sua rela,ao com a quase-causaincorporal. Cicero diz com razao que a passagem do tempoe semelhante ao desenrolar de urn cabo (explicatio) 2. Mas,justamente, os acontecimentos nao existem sobre a Iinha retado cabo desenrolado (Aion) , da mesma maneira que ascausas na circunferencia do cabo enrolado (Cronos).

Em que consiste 0 uso logico das representa,aes, estaarte Ievada ao mais alto ponto por Epiteto e Marco Aurelio?Sao conheddas as obscuridades da teoria est6ica da repre­senta,ao tal como nos foi legada: 0 papel e a natureza doassentimento na representa,ao sensivel corporal enquantoimpressao; a maneira pela qual as representa,aes racionais,que sao elas mesmas ainda corporais, decorrem das repre­sentac;6es sensiveis; mas, sobretudo, 0 que constitui 0 caniterda representagao de ser "compreensiva" ?u nao; enfim~ 0

a1cance da diferen,a entre as representa,oes-corpos ou IUI­

pressaes e os acontecimentos-efeitos incorporais (entre asrepresenta.aes e as expressaes) 3. Sao estas duas U1timasdificuldades que concernem essenciahnente ao nosso assunto,uma vez que as representa,aes sensiveis sao designa,aes, asrepresenta,aes racionais significa,aes, mas somente os acon­tecimentos incorporais constituem 0 sentido expresso. Estadiferen,a de natureza entre a expressao e a representa<;iio,

1. Cf. VICTOR GoLDSCHMIDT, Le systeme sto~cien et l'we de temps, Vrin,1953.

2. CiCERO. Va adiui.f1ha,¢o, 56.3. A respeito da irre~utibilid.a~e. do exprimh:el incorp?ral a representa!Oito,

mesmo racional, cf. as pagmas deflDlovas de Bremer, op. cit., pp. 16-19.

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nos a encontravamos por toda parte cada vez que marcava­mos a especificidade do sentido ou do acontecimento, suairredutibilidade ao designado como ao significado, sua neu­tralidade com rela,ao ao particular como ao geral, sua sin­guIaridade impessoal e pre-individual. Esta diferen,a culminacom a oposi,ao do objeto = X como instancia identitanada representa,ao no senso comum e da coisa = X como ele­mento nao-identificavel da expressao do paradoxo. Mas,ainda que 0 sentido nao seja nunca objeto de representa,aopassive}, nem por isso deixa de interfedr na represental,;aocomo 0 que confere um valor muito especial 11 rela,ao queela mantem com seu objeto. Por ela mesma, a representa,aoe abandonada a uma rela,ao somente extrfnseca de semelhan­>a ou de similitude. Mas seu carater interno, pelo qual elae intrinsecamente "distinta", "adequada" ou "compreensiva",provem da maneira segundo a qual ela compreende, segundoa qual ela envolve uma expressao, embora DaD possa repre­senta-la. A expressao que difere em natureza da represen­ta,ao nao age menos como 0 que esta envolvido (ou nao)na representa,ao. Por exemplo, a percep,ao da morte comoestado de coisa e qUalidade ou 0 conceito de mortal comopredicado de significa,ao, permanecem extrfnsecos (destitui­dos de sentido) se nao compreendem 0 acontecimento demarrer como 0 que se efetua em urn e se exprime no Qntro.A representa,ao deve compreender uma expressao que elaDaD representa, mas sem a qual ela DaD seria ela mesma"compreensiva", e DaD teria verdad.e senao por acaso e defora. Saber que somos mortais e um saber apodftico, masvazio e abstrato, que as mortes efetivas e sucessivas DaD

bastam certamente para preencher adequadamente, enquantoDaD aprendermos 0 morrer como acontecimento impessoalprovfdo de uma estrutura problematica sempre aberta (ondee quando?). Distinguiu-se freqiientemente dois tipos desaber, urn indiferente, que permanece exterior a sen objeto,o outro concreto e que vai buscar seu objeto onde ele estiver.A representa,ao nao atinge a este ideal topico a nao ser pelaexpressao oculta que ela compreende, isto e, pelo aconteci­mento que ela envolve. Ha pais urn "USO" da representac;ao,sem 0 qual a representa,ao permanece privada de vida e desentido; e Wittgenstefn e seus discfpulos tern razao em definiro sentido pelo uSO. Mas tal uso nao se define por umafun,ao da representa,ao com rela,ao ao representado, nemmesmo pela representatividade como forma de possibilidade.Ai como aIhures, 0 funcional se ultrapassa para uma topicae 0 uso esta na rela,ao da representa,ao a algo de extra-re­presentativo, entidade nao representada e somente expressa.Que a representa,ao envolva 0 acontecimento de uma outranatureza, que ela chegue a envolve-lo em suas bordas, que

~-

eIa chegue a se estender ate este ponto, que ela consiga esteforro ou esta barra, eis a opera,ao que define 0 uso vivo,tal que a representa,ao, quando af nao atinge, fica sendo soletra morta em face de seu representado, estupida no seiode sua representatividade.

o sabia est6ico "se identifica" a quase-causa: ele seinstala na superficie, sobre a reta que a atraveSS3, no pontoaleat6rio que tra,a ou percorre esta linha. Ele e,. assi~,

como 0 arqueiro. Todavia, esta rela,ao com 0 arquelro naodeve ser compreendida sob a especie de uma metifora moralda inten,ao, como Plutarco a isso nos convida dizen~o queo sabio estoico e considerado capaz de tudo fazer, nao poratingir 0 fim, mas por ter feito tudo 0 que dependia d~lepara atingi-lo. Uma ~acionaIiz~,ao dess~. natureza Imph:auma interpreta,ao tardia e hoshl ao estOlclsmo. A rela,aocom 0 arqueiro esta mais proxima do Zen: 0 arquelro deveatingir ao ponto em que 0 visado e tambem 0 n~o-visado,isto e, 0 proprio atirador e em que a flecha deshza sob~e

sua linha reta criando seu proprio fim, em que a superffcIedo alvo e tambem a reta e 0 ponto, 0 atirador, 0 tiro e 0

atirado. Tal e a vontade estoica oriental, como pro-airesis.Ai 0 sabio espera 0 acontecimento. Isto e: ele compreendeo acontecimento puro na sua verdade eterna, independente­mente de sua efetua,ao espa,o-temporal, como ao mesmotempo eternamente a vir e sempre ja passado segundo alinha do Non. Mas, tambem e ao mesmo tempo, em ummesmo lance, ele quer a encarnariio, a efetua,ao do aconte­cimento puro incorporal em urn estado de caisas e em senproprio corpo, em sua propria came: tendo se identificadoa quase-cansa, 0 sabia quer "corporalizar" sen efeito incor­poral, pois que 0 efeito herda da causa (Goldschmidt dizmuito bem, a proposito de um acontecimento como passear:"0 passeio, incorporal enquanto maneira de ser, toma carpasob 0 efeito do principio hegem6uico que ai se manifesta" 4.

E isso e verdade tanto de um passeio quanto do ferimentoou do tiro com arco). Como poderia, porem, 0 sabio serquase-causa do acontecimento incorporal e por af querer suaencarna,ao se 0 acontecimento ja nilo estivesse em vias dese produzir por e na profundidade das causas corporais? Sea doen,a nao se preparasse no mais profundo dos corpos?A quase-causa nao cria, ela "'opera" e nao quer senao aquilaque acontece. Tanto que e ai que intervem a representa,aoe sen usa: enquanto as causas corporais agem e padecempor uma mistura c6smica, universal, presente que pn:x:i"?Z 0acontecimento incorporal, a quase-causa opera de manelIa adobrar esta causalidade ffsica, ela encarna 0 acontecimentono mais limitado presente, 0 mais preciso, 0 mais instanta-

4. V. Goldschmidt, op. cit., p. 107.

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"

neo, puro instante captado no ponto em que se subdivide emfutur? e passado e nao mais presente do mundo que reuniriaem Sl 0 passado e 0 futuro. 0 ator fica no instante en­quanto 0 personagem que ele desempenba espera ou lemeno ~uturo, rememora-se ou se arrepende no passado : e nestesentido que 0 ator representa. Fazer corresponder 0 minimode t~mpo desempenba~el no ~ns~ante ao maximo de tempop.ensavel segundo 0 Aion. Llmltar a efetua9ao do aconte­clll~en~o a um presente sem mistura, tornar 0 instante tautomatS m~enso e tenso, tanto mais instantaneo quanta maisele expnme urn futuro e um passado ilimitados tal e 0 usod - ,a ~epresenta9ao: 0 mfmico, nao mais 0 adivinbo. Cessamosde n; do maior presente para um futuro e um passado ques~ dlzem somente de urn presente menor, vamos, ao contra­no, do futuro e do passado como ilimitados ate ao menorprese':'te de um instante puro que nao cessa de se subdividir.:E asslm q~e 0 sabio est6ico nao somente compreende e quero acontec~~ento, m.as 0 representa e por ai· 0 seleciona eque .uma etlca d~ mlmo prolonga necessariamente a 16gica dosentldo. A partir ~e um acontecimento puro 0 mimo dirigee d~phca a efetua9ao, ele mede as misturas com a ajuda deum mstante sem mistura e os impede de transbordar.

v_gas_rna I"'nrnelra ~arle:

Do Acontecirnento

Hesitamos, por vezes, em chamar de est6ica urna ma­neira conci:eta ou poetica de viver, como se 0 nome de urnadoutrina fosse muito livresco, muito abstrato para designara mais pessoal rela9ao com uma ferida. Mas de onde vemas doutrinas senao de feridas e de aforismos vitais que saoanedotas especulativas com sua carga de provoca9ao exem­plar? :E preciso chamar Joe Bousquet de est6ico. A feridaque ele traz profundamente no seu corpo, ele a apreende nasua yerdade eterna como acontecimento puro, no entanto,e tanto mais que. Assim como os acontecimentos se efetuamem, :D68, e esperam-nos enos asplram, eles nos fazem sinal:"Miiilia fenda eXlstia antes de nnm, nasci para encarml-Ia" I.

Chegllr a esta vontade que nos faz 0 acontecimento, tornar-sea quase-causa do que se produz em n6s, 0 Operador, produ­Zlr as. superficies e as dobras em que 0 acontecimento sereflete, se reencontra incorporal e manifesta em n6s 0 esplen­dor neutro que ele possui em si como impessoal e pre-indivi­dual, para alem do geral e do particular, do coletivo e doprivado - cidadao do mundo. "Tudo estava no lugar nosacontecimentos.de minba vida antes que eu os fizesse meus;e vive-Ios e me ver. tentado a me igualar a eles como se elesnao devessem ter senao de mim 0 que eles tem de melhore de perfeito".

Ou a moral nao tem sentido nenbum ou entao e istoque ela quer dizer, ela nao tem nada alem disso a dizer: naoser indigno daquilo que nos acontece. Ao contrario, captaro que acontece como injusto e nao merecido (e sempre a

1. A respeito da obra de Joe Bousquet, toda ela uma meditacio sobre aferida. 0 aconteeimento e a linguagem, cf. os dais artigos essenciais dosCahierB du Sud, n9 303. 1950; Rene Nelli. "Joe Bousquet et son double",Ferdinand Alquie, "Joe Bousquet et la morale du langage".

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culpa de .alguem), eis 0 que torna nossas chagas repugnantes,o ressentImento em pessoa, 0 ressentimento contra 0 aCOD­tecimento. Nilo ha outra vontade rna. 0 que e verdadei­ramente i~o~al e toda utiliza~ilo das n~oes morais, justo,mJusto, mento, faitas. Que quer dizer entilo querer 0

acontecimento? Sera que e aceitar a guerra quando elachega, 0 ferimento e a morte quando chegam? :E: muitoprovavel que a resigna~ilo seja ainda uma figura do ressen­timento, ele que, em verdade, tantas fignras possui. Sequerer 0 acontecimento significa primeiro captar-lbe a ver­dade eter!'a, que e como 0 fogo no qual se alimenta, estequerer atmge 0 ponto em que a gnerra e travada contra aguerra, 0 ferimento, tra~ado vivo como a cicatriz de todasas feridas, a morte que retorna querida contra todas as mor­tes. Intui~ilo volitiva ou transmuta~ilo. "A meu gosto damorte, diz Bousquet, que era falencia da vontade eu subs­tituirei urn desejo de morrer que seja a apoteose da'vontade".Deste gosto a este desejo, nada muda de uma certa maneira,salvo uma mudan~a de vontade, uma especie de salto nop~oprio lugar de todo 0 corpo que troca sua vontade orga­mca por uma vontade espiritual, que quer agora nilo exata­mente 0 que acontece, mas alguma coisa no que acontece,aguma coisa a vir de conformidade ao que acontece, se­gundo as leis de uma obscura conforruidade humoristica:o Acontecimento. :E: neste sentido que 0 Amor fati nilofaz senao urn com 0 combate dos homens livres. Que hajaem todo acontecimento ruinha infelicidade, mas tambem umesplendor e urn brilho que seca a infelicidade e que faz comque, desejado, 0 acontecimento se efetue em sua ponta malsestreitada, sob 0 corte de uma opera~ilo, tal e 0 efeito dagenese estatica ou da imaculada conce~ilo. 0 brilho, 0

esplendor do acontecimento, e 0 sentido. 0 acontecimentonilo e 0 que acontece (acidente), ele e no que acontece 0

puro expresso que nos da sinal enos espera. Segnndo astres deterruina~oes precedentes, ele e 0 que deve ser com­preendido, 0 que deve ser querido, 0 que deve ser represen­tado no que acontece. Bousquet diz ainda: "Torna-te 0 he­mem de tuas infelicidades, aprende a encarnar tua perfei~oe teu brilho". Nilo se pode dizer nada mais, nunca se dissenada mals: tornar-se digno daquilo que nos ocorre, por COn­segumte, querer e capturar 0 acontecimento, tornar-se 0

filbo de seus proprios acontecimentos e por ai renascer, re­fazer para si meSilla urn nascimento, romper com seu nasci­mento de carne. Filho de seus acontecimentos e nilo malsde suas obras, pois a propria obra nilo e produzida senilopelo filho do acontecimento.

o ator nao e como urn deus, antes seja como urn cou­tradeus. Deus e 0 ator se opoem por sua leitura do tempo.

o que os homens captam como passado ou futuro, 0 deus 0

vive no seu eterno presente. 0 deus e Cronos: 0 presentedivino e 0 circulo inteiro, enquanto que 0 passado e 0 futurosilo dimensoes relativas a tal ou tal segmento que deixa 0

resto fora dele. Ao contrario, 0 presente do ator e 0 maisestreito, 0 mais cerrado, 0 mais instantaneo, 0 mais pontnal,ponto sobre uma linha reta que nao cessa de dividir a linhae de se dividir a si mesmo em passado-futuro. 0 ator e doAion: no lugar do mais profundo, do mais pleno presente,presente que se espalha e que compreende 0 futuro e 0

passado, eis que surge urn passade-futuro ilimitado que sereflete em urn presente vazio nao tendo mais espessura queo espelho. 0 ator representa, mas 0 que ele representa esempre ainda futuro e ja passado, enquanto sua representa­~ao e impassivel e se divide, se desdobra sem se romper, semagir nem padecer. :E: neste sentido que M urn paradoxo docomediante: ele permanece no instante, para desempenharalguma coisa que nilo para de se adiantar e de se atrasar,de esperar e de relembrar. 0 que ele desempenha nao enunca urn personagem: e um tema (0 tema complexo ouo sentido) constituido pelos componentes do acontecimento,singularidades comunicantes efetivamente liberadas dos limi­tes dos individuos e das pessoas. Toda a sua personalidade,o ator a mantem em urn instante sempre ainda mais divisi­vel, para se abrir ao papel impessoal e pre-individual.Assim, ele esta sempre na situa~ao de desempenhar um papelque desempenha outros papeis. 0 papel esta na mesmarela~ao com 0 ator que 0 futuro e 0 passado com 0 presenteinstantaneo que Ihes corresponde sobre a linha do Aion. 0ator efetua pois 0 acontecimento, mas de uma maneira berndiferente daquela segundo a qual 0 acontecimento se efetuana profundidade das coisas. Ou antes, esta efetua~ao cos­mica, ffsica, eIe a duplica com uma Dutra, a sua maneira,singuiarmente superficial, tanto mais nitida, cortante e purapor isso mesmo, que vem delimitar a primeira, dela, liberauma linha abstrata e nao gnarda do acontecimento senao 0

contorno ou 0 esplendor: tornar-se 0 comediante de seusproprios acontecimentos, contra-efetua,iio.

Pois a mistura fisica so esta certa ao nivel do todo,no circulo inteiro do presente divino. Mas, para cada parte,quantas injusti~as e ignominias, quantos processos parasita­rios canibals que inspiram tambem 0 nosso terror diante doque nos acontece, nosso ressentimento contra 0 que acontece.o humor e inseparavel de uma for~a seletiva: no que acon­tece (acidente) ele seleciona 0 acontecimento puro. Nocomer ele seleciona 0 falar. Bousquet assinalava as pro­priedades do humor-ator: auiquilar os rastros cada vez quese torna necessaria; "erigir entre as homens e as obras seu

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ser de antes do amargor"; "ligar as pestes, as tiranias, as maisespantosas guerras a chance comica de ter reinado por nada";em suma, liberar para ,carla caisa a "porcao imaculada",linguagem e querer, Amor tali 2.

Por que todo acontecimento e do tipo da peste, daguerra, do ferimento e da morte? Bastaria apenas dizer queha mais acontecimentos infelizes que felizes? Nao, pois quese trata da estrutura dupla de todo acontecimento. Em todoacontecimento existe realmente 0 momento presente da efe­tua9ao, aquele em que 0 acontecimento se encarna em urnest~do de co!sas, urn mdlviduo, uma pessoa, aguele guedeslgnamos dlzendo: els ai, 0 momento chegou; e 0 futuroe 0 passado do acontecimento nao se julgam senao emfun9ao deste presente definitivo, do ponto de vista daqueleque 0 encarna. Mas ha, de outro lado, 0 futuro e 0 passadodo acontecimento tornado em si mesmo, que esqniva todopresente, porque ele e livre das limita90es de urn estado decoisas, sendo impessoal e pre-individual neutro nem geral

. ul ",nem partie ar, eventum tantum . .. ; OU mellior, que MO haoutro presente alem daquele do instante movel que 0 repre­senta: sempre desdobrado em passado-futuro, formando 0que e precise chamar a contra-efetua9ao. Em urn caso eminha vida que parece mnito fraca, que escapa em urn po~totornado presente em uma rela9ao assinalavel comigo. Nooutro caso, eu e que sou mnito fraco para a vida, e a vida

•mnito grande para mim, jogando por toda parte suas singu­laridades, sem rela9ao comigo, e sem urn momenta determi­navel como presente, salvo com 0 instante impessoal que sedesdobra em ainda-futuro e ja-passado. Que esta ambigiii­dade seja essencialmente a da ferida e da morte, do ferimentomortal, ninguem 0 mostrou como Maurice Blanchot: a mortee ao mesmo tempo 0 que esta em uma rela9ao extrema oudefinitiva comigo e com meu corpo, 0 que e fundado em mim,mas tambem 0 que e sem rela9ao comigo, 0 incorporal e 0infinitivo, 0 impessoal, 0 que nao e fundado senao em simes!D0. De urn lado, a parte do acontecimento gue sereahza e se cumpTe; do outro lado, "3 parte do acontecimen­to que seu cumprimento nao pode realizar". Ha pois duasconcretiza90es, que sao como a efetua9ao e a contra-efetua­9ao. E por ai que a morte e seu ferimento nao sao urnacontecimento entre outros. Cada acontecimento e comoa morte, duplo e impessoal em seu duplo. "Ela e 0 abismodo presente, 0 tempo sem presente com 0 qual eu nao teuhorela9ao, aquilo em dire9ao ao qual nao posso me lan9ar,pois nela eu nao morro, sou destituido do poder de morrer,nela a gente morre, nao se cessa e nao se acaba mais demarrer" 3.

2. Cf. Joe Bousquet, Lea Capitales. Le cercle du livre, 1955. p. 103.3. BLANCHOT. Maurice. L'Espace b'ttbaire. Gal1imard, 1955. p. 160.

Como este a gente difere daquele da banalidade co­tidiana. :E 0 on das singularidades impessoais e pre-indivi­duais, 0 on do acontecimento pure em que mo"e e comochove. 0 esplendor do on e a do acontecimento mesmo ouda quarta pessoa. :E por isso que nao ha acontecimentosprivados e outros coletivos; como nao ha individual e uni­versal, particularidades e generalidades. Tudo e singular epor isso coletivo e privado ao mesmo tempo, particular egeral, nem individual nem universal. Qual guerra MO eassunto privado, inversamente qual ferimento nao e de guer­ra e oriundo da sociedade inteira? Que acontecimento pri­vado nao tern todas as suas coordenadas, isto e, todas assuas singularidades impessoais sociais? No entanto, Mbastante ignominia em dizer que a guerra concerne a todomundo; nao e verdade, ela nao concerne aqueles que delase servem ou que a servem, criaturas do ressentimento. EM tanta ignominia em dizer que cada uma tern sua guerra,sua ferida particulares; tampouco e verdade acerca daquelesque CQ9am a chaga, tambem criaturas de amargor e de ressen­timento. :E somente verdadeiro a respeito do homem livre,porque ele captou 0 proprio acontecimento e porque nao 0deixa efetuar-se como tal sem nele operar, ator, a contra-efe­tu~ao. So 0 homem livre pode entao compreender todas asviolencias em urna so violencia, todos os acontecimentosmortais em urn so Acontecimento que nao deixa mais lugarao acidente e que denuncia e destitui tanto a potencia doressentimento no individuo que a da opressao na sociedade.:E propagando 0 ressentimento que 0 tirado faz aliados, istoe, escravos e servos; s6 0 revoluciomlrio se tiberan do ressen­timento, pelo qual participamos e aproveitamos sempre deuma ordem opressora. Mas urn s6 e mesmo Acontecimento?Mistura que extra! e purifica e mOOe tudo no instante semmistura, em lugar de tudo misturar: entao, todas as violen­cias e todas as opressoes se reunem neste unico acontecimen­to, que denuncia todas denunciando uma (a mais proximaou 0 ultimo estado da questao). "A psicopatologia quereivindica 0 poeta nao e urn sinistro pequeno acidente dodestino pessoal, urn estrago individual. Nao foi 0 caminhaode leite que passou por cima de seu corpo e que 0 deixouenfermo, foram os cavaleiros dos Cern Negros pogromizan­do seus ancestrais nos guetos de Vilno. .. as golpes querecebeu na cabe9a nao foi em uma rixa de malandros narua, mas quando a policia disparava sobre os manifestan­tes. . . Se ele grita como urn doido de genio e que asbombas de Guernica e de Hanoi 0 ensurdeceram ..." 4 :E

4. Artigo de Claude Roy a prop6sito do poeta Ginsberg. Nouvel ObsetVa­feur. 1968.

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no ponto movel e preciso em que todos os acontecimentosse reunem assim em urn so que se opera a transmuta9ao: 0

ponto em que a morte se volta contra a morte, em que 0

morrer e como a destitui9ao da morte, em que a impessoali­dade do morrer nao marca mais somente 0 momento em queme perco fora de mim, e a figura que toma a vida mais sin­gular para se substituir a mim '.

5. ~f. Maurice Blanchot, op. cit., p. 155: "Este esfo[~ para elevar amOtte a 51 mesma. para fazet coincidir 0 POnto em que ela se perde nela e?que~ em qu: me perea fora de mim, nlio e um simples aSsunto interior, maslmplica uma lmensa responsabilidade a respeito das coisas e :010 e passiveIseniio pela media~io delas . ..

vlgeslrna .,egulluCi ~~II~.Porcelana e Vulcao

"Toda vida e, obviamente, um processo de demoli­9ao" '. Poucas frases ressoam tanto em nossa cabe9a comeste ruldo de martelo. Poucos textos tem este carater irre­mediavel de obra-prima e de impor silencio, de for9ar umaaquiescencia atemorizada, tanto como a curta novela deFitzgerald. Toda a obra de Fitzgerald e 0 desenvolvimentoUnico desta proposi9ao e sobretudo de seu "obviamente".Eis um homem e uma mulher, eis casais (por que casais, anao ser porque ja se trata de urn movimento, de urnprocesso definido como 0 da diada?) que tem tudo paraserem felizes, como se d.iz; belos, encantadores, ricas,superficiais e cheios de talento. E depois alguma coisa sepassa, fazendo com que eles se quebrem exatamente comourn prato OU urn copo. Terrivel tete-il.-tete da esquizo­frenica e do alc06latra, a menos que a morte os apanhe aambos. sera isto a famosa autodestrui9aO? E 0 que foique aconteceu exatamente? Eles nao tentaram nada deespecial que estivesse acima de suas for9as; no entanto,despertam como se saissem de uma batalha grande demaispara eles, 0 corpo quebrado, os musculos pisados, a almamorta: "eu tinha 0 sentimento de estar de pe ao crepusculoem urn campo de tiro abandonado, urn fuzil vazio na maoe os alvos abatidos. Nenhum problema para resolver,simplesmente 0 silencio e 0 ruido de minha respira9ao ...Minha imola9ao de rnim mesmo era um rojao sombrio emolhado". Certamente, muitas caisas se passaram tanto noexterior como no interior: a guerra, a bancarrota financeira,um certo envelhecimento, a depressao, a doen9a, a fuga do

1. FITZGERALD. F. S. "A Fissura"(The Crack Up). In: La Felure. tract froGallima.rd. 1936, p. 341.

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talento. Mas todos estes acidentes ruidosos ja produtiramos seus efeitos de imediato; e eles nao seriam suficientespor si sos se nao cavassem, se nao aprofundassem algo deuma Dutra natureza e que, ao contnirio, so e revelado poreles it distaneia e quando ja e muito tarde: a fissurasilenciosa. "Por que perdemos a paz, 0 arnor, a saude,urn apas 0 Dutro?" Ravia uma fissura silenciosa, imper­ceptivel, na superficie, unico Aconteeimento de superffeie,como suspenso sabre si mesillo, planando sabre si, sobre­voando seu proprio campo. A verdadeira diferenga nao eentre 0 interior e 0 exterior. A fissura nao e nem interiornem exterior, eia se acha na fronteira, insensivel, incorporal,ideal. Assim, ela tern com 0 que acontece no exterior eno interior rela~iies complexas de interferencia e de cruza­mento, jun~ao saltitante, urn passo para urn, urn passo parao outro, em dois ritrnos diferentes: tudo 0 que acontecede ruidoso acontece na borda da fissura e nao seria nadasem ela; inversamente, a fissura DaD prossegue em seucaminho silencioso, nao muda de diregao segundo linhas demenor resistencia, DaD estende sua teia a DaD ser., sobos golpes daquilo que acontece. Ate 0 momento em queos dois, em que 0 ruido e 0 sileneio se esposam estreita­mente, continuamente, no desmantelamento e na explosao dofim que significam agora que todo 0 jogo da fissura seencarnou na profundidade do corpo, ao mesmo tempo emque 0 trabalho do interior e do exterior the distertdeu asbordas.

(0 que poderiamos responder ao amigo que nosconsola: "Por Deus, se eu me fendesse, eu faria ,explodiro mundo comigo. Vejamos! 0 mundo nao existeanaoser pela maneira segundo a qual 0 apreendeis, entao e~uitomelhor dizer que nao e em vos que se encontra a falha,mas sim no Grande Canon". Este consolo it american~,]Xlrproje~ao, nao e born para aqueles que sabem que a fissuranito era mais interior do que exterior e que sua projegaopara 0 exterior nao marca menos a aproximagao do fimdo que a introjegao mais pura. E se a fissura se torna ado Grande Canon ou de urn rochedo na Sierra Madre, seas imagens cosmicas de ravina, de montanha e de vuICaosubstituem a porcelana intima e familiar, 0 que e que mudae como impedir-nos de experimentar uma insuportavelpiedade pelas pedras, uma identifica~ao petrificante? ComoLowry faz dizer, por sua vez, 0 componente de urn !lutrocasal, "admitindo-se que ela se tivesse fendido, nao tetiahavido nenhum meio, antes que a desintegra~ao total setivesse produzido, de salvar-lhe pelo menos as metadesseparadas? . . Oh!, mas por que, por alguma fantasticataumaturgia geologica, "ao se poderia soldar de novo estesfragmentos? Yvonne desejava ardentemente curar a rocha

dilacerada. . . Em urn esfor~o aeima de sua natureza depedra ela se aproximava da outr~, Se derramava em ~reces,

em lagrimas apaixonadas, oferec~a todo, 0 s~u perdao:" .aoutra impassivel ficava. Tudo IStO esta mUlto bern, dl~la

ela mas acontece qne e por sua culpa e quanto a nnm, bl "2)pretendo desintegrar-me a me? e -praze.r._ " .

Por mais estreita que seJa a sua Jungao, ha a~ dOiSelementos, dois processos que diferem em ~atw;eza: a fissuraque prolonga sua linha reta incorporal e sil~nclosa na ~uper­

fieie, e os golpes exteriores ou os impulsos mte!uos rUidososque a fazem desviar que a aprofundam e a lllscrevem o.ua efetuam na espess~a do corpo. Nao sao este~ ~s d?1Saspectos da morte que, ainda ha pouco, Blanchot dlstingUla:a morte como acontecimeuto, inseparavel do passado e dofuturo nos quais ela se di~ide, nunca pr,:sente, a morteimpessoal que e "a inapreenslvel, 0 que eu na? posso captar,que nao esta ligada a mim por nenhuma relaga? de nen,h~n;~

especie, que DaD vern nunea, para a qual eu nao me ,dlrIJO ,e a morte pessoal que acontece e se .efetua no, malS duropresente "que tem como extremo honzonte a liberdade demorrer ~ 0 poder de se arriscar mortalmente".. Podemoscitar varias maneiras bastante diversas pelas quais se faz ajungao dos dois processos: 0 suicidio, a loucura, 0 usodas drogas ou do aIcool. Estes dois meios sao :alv~z osmais perfeitos, pelo tempo que eles tomam, ao mves deconfundir as duas linhas em um ponto fatal. Mas em todosos casos ha alguma coisa de ilusorio. Quando. B!a~chotconsidera 0 suicidio como vontade de fazer cOl?cldrr osdois semblantes da morte, de prolougar a m~rte .,m1?~ssoal

pelo ato 0 mais pessoal, ele mostra bern a ;ne~ltabilidade

desta concordancia, desta tenta~ao de conc~rdancla, mas .oletenta tambem definir sua ilusao 3. Subslste, com efelto,toda a diferen~a de natureza entre 0 que se esposa ou seprolonga estreitamente. .

Mas 0 problema nao esta ai. Para quem subslste estadiferen~a de natureza senao para ~ pensador abstrato? .Ecomo poderia 0 peusador, em rel~gao a este problema, naoser ridiculo? Os dois processos dlferem em natureza, certa­mente. Mas como fazer para que urn nao prolong~e 0

outro natural e necessariamente? Como 0 tragado sllel;'­eioso da fi~sur,a incorporal na superfieie nao se tornarla

__(V(fl.if.-.=/~ ,,~~"'>h_

t-- 2 LowR M. Ac:ima do 'OUlctio. Tradu!<ao francesa Buchet Chastel,

'n"60 EpY~a 0 que precede cf. ApSndice V. " t

pp, r . MO' 104-105' "Pelo sUlcfdlO, quero rna ar-rneem ~ :~='dete~~;d~:t'li~~' a morte' a agora.: sim, a~ora, ag~a, n~:nada mostxa mais a ilusao, a loucura deste eu quero. pOlS ~ m~ ee antesest8 presente... 0 suicidio nisto nao e ~ ~ aca:e ~mOde\u~o que eo .que gostaria de suprimi-la como futuro, mar- e es p e, reparamo-noscomo a sua ess~cia", Nao podemos 'P"ot~f' DOS matarmos, p. d a cate-

am isso agimos tendo em vista 0 gesto Ultimo que pertence. am aiorta no:mal das coisas a fazer, mas este gesto nao ,~ em VIsta da morte,ele nlio a olha, ele nao a mantem em sua presenya...

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tambem seu aprofundamento na espessura de urn corporuidoso? Como 0 corte de superffeie nao se tornaria nmaSpaltung profunda e 0 naD-senso de superficie urn nao-sensodas profundidades? Se querer e querer 0 acontecimento,como nao haveriamos de querer tambem sua plena efetua­~ao em uma mistura corporal e sob esta vontade tragicaque preside a todas as ingestoes? Se a ordem da superfieiee por si mesma fendida, como DaD haveria ela mesma dese quebrar, como nos impedirmos de preeipitar a sua des­trui~ao, com 0 risco de perder todas as vantagens a elaligadas, a organiza~ao da linguagem e a propria vida?Como nao haveriamos de chegar a este ponto em qne nadamais se pode alem de soletrar e gritar, em uma especie deprofundidade esquizofrenica, mas DaD mais, absolutamente,falar? Se existe a fissura na superfieie, como evitar que avida profnnda se transforme em empresa de demoli~ao ese torne tal, "obviamente"? Sera passivel mantcr a insis­tencia da fissura incorporal evitando, ao mesma tempo,faze-Ia existir, encarna-Ia na profundidade do corpo? Maisprecisamente, sera passive! ater-se a contra-efetuac;ao de urnaconteeimento, simples representa~ao plana do ator ou dodan~arino, evitando ao mesmo tempo a plena efetua~ao quecaracteriza a vitima OU verdadeiro paciente? Todas estasquestoes acusam 0 ridiculo do pensador: siro, sempre, osdois aspectos, os dois processos diferem em natureza. Mas,quando Bousquet fala da verdade eterna do ferimento, eem nome de urn ferimento pessoal abominavel que elecarrega em seu corpo. Quando Fitzgerald ou Lowry falamdesta fissura metafisica incorporal, quando nesta encontram,ao meSilla tempo, 0 Iugar e 0 obstaculo de sen pensamento,a fontc e 0 estancamento de sen pensamento, 0 sentido e 0

nao-sentido, e com todos os litros de 3lcool que eles bebe­ram, que efetuaram a fissura no corpo. Quando Artaudfala da erosao do pensamento como de alguma coisa deesseneial e de acidental ao mesmo tempo, radical impotenciae, entretanto, autopoder, ja 0 faz partindo do fundo daesquizofrenia. Cada qual arriscava aigurna coisa, foi 0 maislonge neste risco e tira dai urn direito imprescritiveL Queresta ao pensador abstrato quando da conselhos de sabedoriae de distin~ao? Entao, falar sempre do fermento de Bous­quet, do alcoolismo de Fitzgerald e de Lowry, da loucurade Nietzsche e de Artaud, ficando it margem? Transfor­mar-se no profissional destas conversa\=oes? Desejar apenasque aqueles que foramatingidos nao se afundem demais?Fazer snbscri90es e numeros especiais? Ou entaD irmosnos mesmos pravar urn poneD, sermos urn pouco alco61atras,urn pouco loucos, urn pouco suicidas, um pouco guerrilheiros,apenas 0 bastante para aumentar a fissura, mas nao para

aprofunda-Ia irremediavelmente? Para onde quer que nosvoltemos, tudo parece triste. Em verdade, Como ficar nasuperficie sem permanecer a margem? Como salvar-se, sal­vando a superfieie e toda a organiza~ao de superficie,inclusive a linguagem e a vida? Como atingir esta politica,esta guerrilha completa? (Quantas li~5es a receber aindado estoieismo ... )

a alcoolismo nao aparece como a busca de urn prazer,mas de urn efeito. Este efeito consiste prineipalmentenisto: urn extraordinario endurecimento do presente. Vive­-se em dois tempos simultaneamente, vive-se dois momentossimultaneamente, mas nao it maneira proustiana. a outromomenta pode remeter a projetos tanto quanta a lembran~as

da vida sobria; mas nem por isso ele deixa de existir deurn modo completamente diferente, profundamente modifi­cado, .apreendido neste presente endurecido que 0 cercacomo urn tenro botao em uma carne endurecida. Nestecentro mole do Dutro momento, 0 alcoolatra pode, pais,identificar-se aos objetos de sen arnor, "de sen horror ede sua compaixao", enquanto que a dureza vivida e que­rida do momenta presente Ihe permite manter a distaneiaa realidade 4. E 0 alcoolatra nao ama menos esta rigidezque 0 ganha do que a do~ura que ela envolve e encerra,Urn dos momentos esta no outro, e 0 presente DaD seendureceu tanto, nao se tetanizou a nao ser para investireste ponto de moleza prestes a estourar. as dois momentossimultaneos se compoem estranhamente: 0 alcoolatra naovive nada no imperfeito ou no futuro, ele nao tern senaourn passado composto. Mas urn passado composto muitoespecial. De sua embriaguez ele compoe um passadoimaginario, como se a do~ura do participio passado viessese combinar com a dureza do auxiliar presente: eu tenhoamado (j'ai aime), eu tenho feito (j'ai fait), eu tenho visto(j'ai vu) - eis 0 que exprime a copula~ao dos doismomentos, a maneira pela qual 0 aicoolatra experimenta urnno outro desfrutando de urna onipoteneia maniaca. Aqm

v&<- 6<YiH::I.1 (t,...~ h A.pr"'-<>, ..{ ~........ _4. FrrzGERALd: Op. cit., pp. 353-354: "Eu queria so~ente. a uan-

'1ililidade absoluta para decidir por que dera para me tamar triste dl~nte datristeza, melanc6&:o diante da melancolia e tragico diante da tragedia;. porque me pusera a me identificar aos objetos de me:u horror ou de mmhacompaixao. . . Uma identificac;:Ao deste genera eqUlvale a morte Ad~ t~arealizac;:lio ~ alga deste genero que impede as loucos de trabalhar. Lenm naosuportava' de boa vontade 0 sofrimento de seu proletariado, nem GeorgeWashington de SUBS tropas, nem Dickens de seus pobres londrinos. ~E quandoTolst6i tentou confundir-se assim com os obietos de sua atenc;:ao o.co.bollchegando a uma trapal;(a e a um malogro..... Este texto e uma notavelilustral;(iio das· teorio.s psico.naHticas e notadarnente kleinianas sobre o~ estadosmanfaco-dep,ressivos. No entanto, como veremos no que se segue, ~OlS P~'?tos

constituem problemas nesta teoria: a mania e nelas apresentada 1DlllS frcq'!e.n­temente como 'urna reac;:ao 0.0 estado depressivo, quando do. parece, ~o co~~arl.?,detenniDli-Io, pelo menos no. estrutura alc06latra; por outro lado, a ldentiflc~aoe mais freqiientementc apresentada como uma real;(io a perdo. de obJeto,quando elo. pareoe to.mbem determinar esta perda, provoca,-la e mesmo "de­ieja~la".

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o passado composto nao exprime absolutamente uma dis­tancia ou urn acabamento. 0 momento presente e 0 doverbo ter. enquanto que todo 0 ser e "passado" no outro,?~me~to simultfin.e~, .no momento da participa,ao. da iden­~Iflca,ao. do partiClplO. Mas que estranha tensao quasemsuportavel. este amplexo. esta maneira pela .qual 0 pre­sente envolve e investe, encerra outro momento. 0 pre­sente se fez circulo de cristal ou de granito, em torno docentro mole, lava, vidro liquido ou pastoso. Entretanto,esta tensao desata-se em proveito de outra coisa ainda.Pois pertence ao passado composto 0 tornar-se urn j'ai-bu(eu tenho bebido). 0 momento presente nao e mais 0

do efeito alcoolico, mas 0 do efeito do efeito. E agora 0

outro momento compreende indiferentemente 0 passadoproximo (0 momento em que eu bebia), 0 sistema dasidentifica,oes imaginarias que este passado proximo encerrae os elementos reais do passado s6brio mais ou menosdistanciado. Assim 0 endurecimento do presente mudoucompletamente de sentido; 0 presente na sua ·dureza tornou­-se sem for,a e descolorido, nao encerra mais nada e poeigualmente a distancia todos os aspectos do outro momento.Dir-se-ia que 0 passado proximo, mas tambem 0 passadode identifica,oes que se constituiu nele, e enfim 0 passadosobrio que f~rnecia. uma materia, tudo isto fugiu rapida­mente, tudo IStO esta Igualmente longe, mantido a distanciapor uma expansao generalizada deste presente descolorido,pela nova rigidez deste novo presente em urn deserto cres­cente. Os passados compostos do primeiro efeito sao subs­titufdos pelo exclusivo j'ai-bu (eu tenho bebido) do segundoefeito, em que 0 auxiliar presente nao exprime mais do quea distancia.infiuita de todo participio e de toda participa,ao.o endureclmento do presente (eu tenho) esta agora emrela,ao com urn efeito de fuga do passado "bebido". Tudoculmina em urn ha~ been. Este efeito de fuga do passado,esta perda do ob]eto em todos os sentidos, constitui 0

aspecto depressivo do alcoolismo. E este efeito de fuga e.talvez, 0 que faz a maior for,a da obra de Fitzgerald 0

que ele exprimiu 0 mais profundamente. 'o curioso e que Fitzgerald nao apresenta, ou 0 faz

raramente, seus personagens bebendo ou procurando beber.Fitzgerald nao vive 0 alcoolismo sob a forma da falta e danecessi~de:. ~Ivez pudor, ou entao ele pode semp"e beber,ou entao ha vanas formas de alcoolismo, urn voltado paraseu passado mesmo 0 mais pr6ximo. (Lowry ao con­trario. . . Mas, quando 0 alcoolismo e vivido sob estaforma aguda da necessidade, aparece uma deforma,ao naomenos profunda do tempo; desta vez e todo futuro que e

vivido como urn futuro anterior, com uma terrivel preclpl­ta,ao ainda aqui deste futuro composto, urn efeito do efeitoque vai ate a morte)'. Para os herois de Fitzgerald, 0

alcoolismo e 0 proprio processo de demoli,ao enquantodetermina 0 efeito de fuga do passado: nao somente dopassado sobrio de que eles se separaram ("Meu Deus,bebado durante dez anos"), mas nao menos 0 passadoproximo em que acabam de beber e 0 passado fantasticodo. primeiro efeito. Tudo se tomou igualmente longinquo edetermina a necessidade de beber de novo, ou antes de terde novo bebido, para triunfar deste presente endurecido edescolorido que subsiste So e siguifica a morte. E por issoque 0 alcoolismo e exemplar. Pois este efeito-alcool, muitosoutros acontecimentos podem produzi-Io a sua maneira: aperda de dinheiro, a perda de amor, a perda da terra natal,a perda do sucesso. Eles 0 produzem independentementedo alcool e de maneira exterior, mas eles se parecem com a"saida" do alcool. 0 dinheiro, por exemplo, Fitzgerald 0

vive como urn "eo fui rico", que 0 separa tanto do momentoem que ele nao 0 era ainda quanto do momento em queele se tornan rico e das identifica<;oes aos "verdadeiros ricas"as quais ele se entregava entao. Consideremos, por exem­plo, a grande cena amorosa de Gatsby: no momento emque ele ama e e amado, Gatsby na sua espantosa sentimen­talidade se conduz como urn homem bebado. Ele endureceeste presente com todas as suas for,as, e quer faze-Ioencerrar a mais terna identifica,iio, aquela que se faz comurn passado composto em que ele teria sido amado por urnamesma mulher, absolutamente, exclusivamente e sem parti­Iha (os cinco anos de ausencia como os dez anos de embria­guez) . E neste cume da identifica,iio - de que Fitzgeralddizia: ele equivale "a morte de toda realiza,ao" - queGatsby se quebra como vidro, perde tudo, tanto seu amorproximo como seu antigo amor e seu amor fantastieo. 0que da ao alcoolismo urn valor exemplar, entretanto, entretodos estes acontecimentos do mesmo tipo, e que 0 alcoole ao mesmo tempo 0 amor e a perda do amor, 0 dinheiro

5. Em Lowry, tamMm 0 alcoolismo e inseparivel das identiIicat;i5es quetoma passivel e da falencia destas identifica~: 0 romance perdido deLowry, em Ballast to the White Sea, tinha por tema a identific:at;ao e a chancede urna salv3.9ao pot identifica!rao: d. Choix de Lettres, Denoel, p. 265 e 55.Encontrariamos em todo caso no futuro anterior uma precipitaglio an810gaaquela que vimos para 0 passado composto.

Em um artigo bern interessante, Gunther Stein analisava os caracteres dofuturo anterior; 0 futuro prolongado. como 0 passado composto, deixa depertenc:r ao homem. "A este tempo n1i.o convem nem mesmo mais a dire,,10especiflca do tempo, 0 sentido positivo: ele se reduz a alguma coisa que naos17ni mais futuro, a urn Aion irrelevante para 0 eu; 0 homem certamente podeamda pensar e indicar a exist&.cia deste Aion, mas de uma maneira est&i.l.sem compreendb-Io e sem realiza-Io... 0 eu serei se converteu doravante emum 0 q,ue serti, eu nao 0 seTel. A expressao positiva desta forma e 0 futuroanterior: eu terei sido" ("Patologia da hberdade. ensaio sabre a ni1o-identi£i~

ca"il.o". Recherches Philo80phiques. VI, 1936-1937).

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e a perda do dinheiro, a terra natal e sua perda. Ele e,ao mesmo tempo, 0 objeto, a perda do objeto e a lei destaperda em processo concertado de demoliC;ao ("obviamente").

A questao de saber se a fissura pode evitar encarnar­-se, efetuar-se no corpo sob esta ou outra forma, DaD eevidentemente justificavel a partir de regras gerais. Afissura continua sendo apenas uma palavra enquanto 0 corponao estiver comprometido e enquanto 0 figado e 0 cerebro,os orgaos, nao apresentem estas linhas a partir das quais seprediz 0 futuro e que profetizam por si mesmas. Seperguntamos por que nao bastaria a saude, por que a fissurae desejavel e porque, talvez, nunca pensamos a nao serpor ela e sobre suas bordas e que tudo 0 que foi born egrande na humanidade entra e sai por ela, em pessoasprontas a se destruir a si mesmas e que e antes a mortedo que a saude que se nos prop6em. Havera uma outrasaude, como urn corpo que sobrevive tao longe quantopossivel it sua propria cicatriz, como Lowry sonhando emreescrever uma "Fissura" que acabaria bem: e jamais renun­ciando it ideia de uma reconquista vital? f: verdade quea fissura nao e nada se DaO compromete 0 corpo, masela nao cessa menos de ser e de valer quando confundesua linha com a outra linha, no interior do corpo. Naose pode dire-Io de antemao, e preciso arriscar permanecendoo mais tempo possivel, nao perder de vista a grande saude.Nao se apreende a verdade eterna do acontecimento a naoser que 0 acontecimento se inscreva tambem na carne; mascada vez devemos duplicar esta efetuac;ao dolorosa por umacontra-efetuac;ao que a limita, a representa, a transfigura.f: preciso acompanhar-se a si mesmo, primeiro para sobre­viver, mas inclusive quando morremos. A contra-efetua~ao

nao e nada, e a do bufao quando ela opera so e pretendevaler para 0 que teria podido acontecer. Mas ser 0 mimicodo que acontece efetivarnente, duplicar a efetuac;ao com umacontra-efetuac;ao, a identificaC;ao com uma distfulcia, tal 0

ator verdadeiro ou 0 danc;arino, e dar it verdade do aconte­cimento a chance unica de DaD se confundir com sua inevi­tavel efetuac;ao, it fissura a chance de sobrevoar seu campode superficie incorporal sem se deter na quebradura de cadacorpo e a nos de irmos mais longe do que teriamos acredita,do poder. Tanto quanto 0 acontecimento pure se aprisionapara sempre na ,sua efetuac;ao, a contra-efetuac;ao 0 liberasempre para outras vezes. Nao podemos renunciar it espe­ranc;a de que os efeitos da droga ou do alcool (suas "revela­<;iies") poderao ser revividos e recuperados por si mesmosna superficie do mundo, independentemente do usn dassubstfulcias, se as tecnicas de alienaC;ao social que 0 deter-

minam SaO convertidas em meios de exploraC;ao revolu~i~­nanos. Burroughs escreve sobre este ponto estra~as pagl­nas que dao testemunho desta busca da grande Saude, nossamaneira de ser piedosos: "Imaginai que tudo 0 que s.e

ode atingir por vias quimicas e acessivel por outros caJDl­~os ... " Metralhamento da superiic:ie para transmutar 0

apunhalamento dos corpos, 6 psicodeha.

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Vigesima Terceira Serie:Do Aion

Vimos desde 0 com~o como se opunham duas leiturasdo tempo, a de Cronos e a de Aion: 19) De acordo comCronos, so 0 presente existe no tempo. Passado, presentee futuro nao sao tres dimensoes do tempo; so 0 presentepreenche 0 tempo, 0 passado e 0 futuro sao duas dimensoesrelativas ao presente no tempo. t;; 0 mesmo que dizer queo que e futuro ou passado com rela9ao a urn certo presente(de uma certa extensao e dura9ao) faz parte de urn presentemais vasto, de urna maior extensao ou dura9ao. Ha sempreurn mais vasto presente que absorve 0 passado e 0 futuro.A relatividade do passado e do futuro com rela9ao ao pre­seute provoca pois urna relatividade dos proprios presentesuns com rela9aO aos outros. a deus vive como presente 0

que e futuro ou passado para mim, que vivo sobre presentesmais limitados. Urn encaixamento, urn enrolamento de pre­sentes relatives, com Deus por drcnlo extremo ou envelopeexterior, tal e Cronos. Sob inspira90es estoicas, Boedo dizqae 0 presente divino complica ou compreende futuro epassado '.

29) a presente em Cronos e de algurna maneira cor­poral. a presente e 0 tempo das misturas ou das incorpo­ra90es, e 0 processo da propria incorpora9ao. Temperar,temporalizar, e misturar. a presente mede a a9ao dos cor­pos ou das causas. a futuro e 0 passado sao, antes, 0 queresta de paixao em urn corpo. Mas, justamente, a paixaode urn corpo remete it a9ao de urn corpo mais poderoso.Assim, 0 maior presente, 0 presente divino, IS a grande mis­tura, a unidade das causas corporais entre si. Ele mede aatividade do perfodo c6smico em que tudo e simultaueo:

1. BofcIo, Consola¢o da filosofia prosa 6.

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I

Zeus e tanto Dia, Como 0 A-traves au 0 que se mistura 0

Incorporador 2 0 maior presente nao e pois de forma ~e­nhurna ilimitado: pertence ao presente delimitar, ser 0 limiteou a medida da a,ao dos corpos, ainda que fosse 0 maiordos corpos ou a unidade de todas as causas (Cosmos). Masele pode ser infinito sem ser ilimitado: circular no sentidode que engloba todo 0 presente, ele recome,a e mede umnovo periodo c6smico ap6s 0 precedente, identico ao prece­dente. Ao movimento relativo pelo qual cada presente re­mete a urn presente relativamente mais vasto, e preciso juntarum movimento absoluto proprio ao mais vasto presente, quese contrai e se dilata em profundidade para absorver ourestituir no jogo dos periodos c6smicos os presentes relativosque ele envolve (abra,ar-embrasar).

3'1) Cronos e 0 movimento regulado dos presentesvastos e profundos. Mas, justamente, de onde retira ele suamedida? Os corpos que 0 preenchem tem suficiente uuida­de, sua mistura suficiente justi,a e perfei~ao, para que 0

presente disponha assim de um principio de medida imanen­te? Talvez ao nivel do Zeus c6smicO. Mas, e para oscorpos ao acaso e para cada mistura parcial? Nao ha umaperturba,ao fundamental do presente, isto e, um fundo quederruba e subverte toda medida, um devir-Iouco das pro­fundidades que se furta ao presente? E este algo de des­medido e somente local e parcial ou entao, pouco a pouco,nao ganha ele 0 universo inteiro, fazendo reinar por todaparte sua mistura venenosa, monstruosa, subversao de Zeusou do proprio Cronos? Nao existe ja nos est6icos estadupla atitude face ao mundo, confian~a e desconfian,a, COf­

respondendo aos dois tipos de mistura, a branca mistura queconserva estendendo, mas tamhem a mistura negra e confusaque altera? Enos Pensamentos de Marco Aurelio repercutefreqiientemente a alternativa: sera esta a boa OU a ma mistu­ra? Questao que nao encontra sua resposta senao na me­dida em que os dois termos acabam por ser indiferentes,devendo 0 estatuto da virtude (isto e, da saude) ser buscadoalhures, em uma autra dire~ao,' em urn outro elemento _Alon contra Cronos 3.

o devir-Iouco da profundidade e pois um mau Cronosque se opoe ao presente vivo do bom Cronos. Saturno rugeno fundo de Zeus. 0 devlr puro e desmesurado das quali­dades amea,a de dentro a ordem dos corpos qualificados.Os corpos perderam Sua medida e nao sao mais do que si-

2. Cf. Di6genes Laercio, VII, 147.

. 3. MARCO A~LIO. Pensamentos, XII, 14. E VI, 7; "No alto, embaixo,ClI'CUlarmeDt~, e aSSlOl que os elementos se movem. A virtude n!o segueem seu movl!I1e~to nenbuma dessas cadencias; e alguma coisa de mais divino,sua Iota e dificIl dt: compIe€Dder, mas enfim. eIa se adianta e chega ao fim".(Ree~contramos aqul a dupla neg~ao, tanto do cicIo como de um conhecimentosupenor).

mulacros. 0 passado e 0 futuro como for,as desencadea­das se vingam em urn so e mesmo abismo que ame~a 0

presente e tudo 0 que existe. Vimos como Platao exprimiaeste devir, no fim da segunda hip6tese do Parmenides: poderde esquivar 0 presente (pois ser presente seria ser e naomais devir). E, no entanto, Platao acrescenta que "esqui­var 0 presente" e 0 que 0 devir nao pode (pois ele se tornaagora e nao pode saltar por cima do "agora"). Os dois saoverdadeiros: a subversao interna do presente no tempo, 0

tempo nao tem senao 0 presente para exprimi-Ia, precisa­mente porque ela e interna e profunda. A desforra dofuturo e do passado sobre 0 presente, Cronos deve aindaexprimi-Ia em termos de presente, os unicos termos que elecompreende e que 0 afetam. E a sua maneira pr6pria dequerer morrer. E pois ainda um presente terrificante, des­mesurado, que esquiva e subverte 0 outro, 0 bom presente.De mistura corporal, Cronos tornou-se corte profundo. Eneste sentido que as aventuras do presente se manifestaramem Cronos e conforme aos dois aspectos do presente crouico,movimento absoluto e movimento relativo, presente global epresente parcial: com rela,ao a si mesmo em profundidade,enquanto explode ou se contrai (movimento da esquizofre­nia); e com rela~ao a sua extensao mais ou menos vasta, emfun,ao de urn futuro e de um passado delirantes (movimentoda mauia depressiva). Cronos quer morrer, mas ja nao edar lugar a uma outra leitura do tempo?

1'1) Segundo Alon, somente 0 passado e 0 futuro in­sistem ou subsistem no tempo. Em lugar de urn presenteque absorve 0 passado e 0 futuro, um futuro e um passadoque dividem a cada instante 0 presente, que 0 subdividemao infinito em passado e futuro, nos dois sentidos ao mesmotempo. Ou antes, e 0 instante sem espessura e sem extensaoque subdivide cada presente em passado e futuro, em lugarde presentes. vastos e espessos que compreende~ uns con;'rela~ao aos outros 0 futuro e 0 passado. Que dlferen,a haentre este Alon e 0 devir-Iouco das profundidades que der­rubava ja Cronos no seu proprio domiuio? No come,odeste estudo, podiamos fingir que os dois se prolongavamestreitamente: opunham-se ambos ao presente corporal emedido, tinham ate mesmo poder de esquivar 0 presente,desenvolviam as mesmas contradi~es (da qualidade, daquantidade, da rela,ao, da modalidade). Quando muito,havia entre eles uma mudan,a de orienta~ao: com 0 Alon,o devir-Iouco das profundidades subia a superflcie, os simu­lacros convertiam-se par sua vez em fantasmas, 0 corte pro­fundo aparecia como fenda da superficie. Mas aprendemosque esta mudan~a de orienta,ao, esta conquista da superficie,implicava diferen~as radicais sob todos os aspectos. E apro-

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ximadamente a diferenga entre a segunda e a terceira hipo­tese do Parmenides, a do "agora" e a do "instante". Naoe mais 0 futuro e 0 passado que subvertem 0 presente exis­tente, e 0 instante que perverte 0 presente em futuro epassado insistentes. A diferenga essencial nao e mais entreCronos e Aion simplesmente, mas' entre Aion das superficiese 0 conjunto de Cronos e do devir-Iouco das profundidades.Entre os dois devires, da superficie e da profundidade, naopodemos nem mesmo dizer mais que ha algo em comum,esquivar 0 presente. Pois se a profundidade esquiva 0 pre·sente, e com toda a fOI'$a de urn "agora" que op6e seupresente tresloucado ao sabio presente da medida; e se asuperficie esquiva 0 presente, e com toda a potencia de um"instante", que distingue sen momento de todo presenteassinalavel sobreo qual cai e recai a divisao. Nada sobe11 superficie sem mudar de natureza. Aion nao e mais deZeus nem de Saturno, mas de Hercules. Enquanto CronoSexprimia a agao dos corpos e a criagao das qualidades cor­porais, Aion e 0 lugar dos acontecimentos incorporais e dosatributos distintos das qualidades. Enquanto Cronos erainseparavel dos corpos que 0 preenchiam como causas ematerias, Aion e povoado de efeitos que 0 habitam semnunca preenche-Io. Enquanto Cronos era limitado e infini­to, Aion e ilimitado como 0 futuro e 0 passado, mas finitocomo 0 instante. Enquanto Cronos era inseparavel dacircularidade e dos acidentes desta circularidade como blo­queios au precipitac;5es, explos5es, desencaixes, endureci­mentos, Aion se estende em linha reta, ilimitada nos doissentidos. Sempre ja passado e eternamente ainda por vir,Aion e a verdade eterna do tempo: pura forma vazia dotempo, que se liberou de seu contelido corporal presente epar ai deseurolou seu circulo, se alonga em uma reta, talveztanto mais perigosa, mais labirintica, mais tortuosa por estarazao - este outro movimento de que falava Marco Aurelio,aquele que nao se faz nem no alto nem embaixo, nem cir­cularmente, mas somente 11 superficie, 0 movimento da"virtude" . .. E se ha urn querer-morrer tamMm deste lado,e de uma maneira bern diferente.

29) :E: este mundo novo, dos efeitos incorporais ou dosefeitos de superficie, que torna a linguagem possive!. Poise ele, como veremos, que tira os sons de seu simples estadode agoes e paixoes corporais; e ele que distingue a linguagem,que a impede de se confundir com 0 barulho dos corpos, quea abstrai de suas determina90es orais-anais. Os aconteci­mentos puros fundamentam a linguagem porque oles a espe­TaID tanto quanta eles nos esperam e nao tern existencia pura,singular, impeSSOal e pre-individual senao na linguagem queas exprime. :E 0 expresso, na sua independencia, que fun-

damenta a linguagem ou a expressao, isto e, a propriedademetafisica adquirida pelos sons de ter um sentido e secunda­riamente de significar, de mauifestar, de designar, em lugarde pertencer aos corpos como qualidades fisicas. Tal e amais geral operagao do sentido: e 0 sentido que faz existiro que 0 exprime e, pura insistencia, se faz desde entao existirno que 0 exprirne. Pertence pois ao Aion, como meio dosefeitos de superficie ou dos acontecimentos, tragar umafronteira entre as coisas e as proposigoes: ele a traga comtoda sua linha reta e sem esta fronteira os sons se abateriamsobre os corpos, as proprias proposigoes nao seriaI!' "possi­veis''. A linguagem e tornada possivel pela fronterra que asepara das coisas, dos corpos e nao menos daquele~ q~efalam. Podemos entao retomar 0 detalhe da orgamzagaode superficie tal qual e determinada pelo Aion.

Em primeiro lugar, toda a linha do Aion e percorridapelo lnstante, que nao para de se deslocar sobre ela e fazfalta sempre em seu proprio lugar. Platao diz muito bernque 0 instante e atopon, atopico. Ele e a inst~n.cia paradoxalou 0 ponto aleatorio, 0 nao-senso de .superflcle ,e a .qu~se­

causa, puro momento de abstragao CUl? pap~1 e, pnmelro,dividir e subdividir todo preseute nos dOls senUdos ao mesmotempo em passado-futuro, sobre a linha do Aion. Em se­gundo'lugar, 0 que 0 instante extrai assim do presente, co~odos individuos e das pessoas que ocupam 0 presen~e, saoas singularidades, os pontos singulares duas vezes proletados,uma vez no futuro, outra no passado, formando sob estadupla equagao os elementos constituintes do acontecin,'e.ntopuro: 11 maneira de urn saco que abandona s~us _esponos.Mas, em terceiro lugar, a linha reta de dupla ~lregao slmul­tanea traga a fronteira entre os corpos e a hnguagem, osestados de coisas e as proposigoes. A linguagem ou sistemadas proposigoes nao existir!a sem esta. fronteira que a tornapossive!. Eis pois que a linguagem nao cessa de nascer, nadiregao futura do Aion em que e fundada e como esperada,embora ela deva dizer tamMm 0 passado, mas Justamente 0

diz como aquele dos estados de coisas que nao cessa~ deaparecer e desaparecer na outra diregao. Em suma, a hnhareta e agora relacionada a estes dOls contornos, que, ~Iasepara mas tamMm articula urn ao outro como duas senesdesenvolviveis. Ela relaciona a elas ao mesmo tempo 0

ponto aleat6rio instantlineo que a percorre e os pontossingulares que ai se distribuem. Ha'pois duas faces, sempredesiguais em desequilibrio, uma voltad~ yara os estados ~ecoisas a outra voltada para as proposlgoes. Mas elas naose dei~am reduzir a isso. 0 acontecimento se relaciona aosestados de coisas mas como atributo 16gico destes estados,completamente diferente de suas qualidades fisicas, se bern

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que ele Ihes sobrevenha, neles se encarne ou neles se efetue.a sentido IS a mesma coisa que 0 acontecimento, mas destavez relacionado as proposi<;5es. E ele se relaciona as pro­posi<;5es como seu exprimivel ou seu expresso, completa­mente distinto do que elas significam, do que elas manifestame do que elas designam e mesmo de suas qualidades sonoras,embora a independencia das qualidades sonoras relativamen­te as coisas ou corpas seja unicamente assegurada pelo con­junto desta organiza<;ao do sentido-acontecimento. 0 con­junto da organiza<;ao nestes trIOs momentos abstratos vai,pais, do ponto a linha reta, da linha reta a superficie: 0

ponto que tra<;a a linha, a linha que faz fronteira, a superficieque se desenvolve, se desdobra dos dois lados.

39) Mnitos movimentos se cruzam, com seus mecanis­mos frageis e delicados: aquele pelo qual os corpos, estadosde coisas e misturas tornados em sua profundidade chegama produzir superficies ideais ou malogram nesta produ<;ao;aquele pelo qual, inversamente, os acontecimentos de super­ficie se efetuam no presente dos corpos, sob regras comple­xas, aprisionando primeiro suas singularidades nos limites demundos, de individuos e de pessoas; mas tambem aquelepelo qual 0 acontecimento implica algo de excessivo emrela<;ao a sua efetua<;ao, algo que revoluciona os mundos, osindividuos e as pessoas e os devolve a profundidade do fundoque os trabalha e os dissolve. Assim a no<;ao do presentetern varios sentidos: 0 presente desmesurado, desencaixado,como tempo da profundidade e da subversao; 0 presentevariavel e medido como tempo da efetua<;ao; e talvez aindaurn outro presente. Como, alias, haveria uma efetua<;aocomensuravel se urn terceiro presente nao 0 impedisse a cadainstante de cair na subversao e de se confundir com ela?Sem duvida, pareceria que 0 Aion nao tern em absolutopresente, pois que 0 instante nao cessa nele de dividir emfuturo e passado. Mas nao e senao uma aparencia. 0 quee excessive no acontecimento e 0 que deve ser realizado, sebern que nao possa ser realizado ou efetuado sem ruina.Entre os dois presentes de Cronos, 0 da subversao pelofundo e 0 da efetua<;ao nas formas, ha urn terceiro, devehaver urn terceiro pertencendo ao Aion. E, com efeito, 0

instante como elemento paradoxal ou quase-cansa que per­corre toda a linha reta deve ser ele pr6prio representado.E alias neste sentido que a representa<;ao pode envolver emsuas bordas uma expressao, ainda que a expressao ela pr6­pria seja de uma outra natureza e que 0 sabio pode se"identificar" a quase-causa, ainda que a quase-causa elapr6pria fa<;a falta a sua pr6pria identidade. Este presentedo Aion, que representa 0 instante, nao e absolutamente

como 0 presente vasto e profundo de Cronos: e 0 presentesem espessura, 0 presente do ator, do dan<;arino ou domimico, pura "momento" perverso. E 0 presente da ope­ra<;ao pura e nao da incorpora<;ao. Nao e 0 presente _dasubversao nem 0 da efelUa<;ao, mas da contra-efetua<;ao,que impede aquele de derrubar este, que impede este de seconfundir com aquele e que vern redobrar a dobra.

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V I~ ... i:J II II U ""'"""". ..... ...""•• "" •

Oa Comunicac;aodos Acontecimentos

Vma das maiores audacias do pensamento estoico Ii· aruptura da rela<;ao causal: as causas sao remetidas em pro­fundidade a urna unidade que !hes Ii propria, e os efeitosinantem na superffcie rela<;oes especificas de urn outro tipo.o destino Ii primeiramente a unidade ou 0 la<;o das causasfisicas entre si; os efeitos incorporais· sao evidentemente sub­metidos ao destino, na medida em que sao 0 efeito destascausas. Mas na medida em que diferem por natureza destascausas, entram uns com os outros em rela<;oes de quase­causalidade e em conjunto entram em rela<;ao com urnaquase-causa ela propria incorporal, que !hes assegura umaindependencia muito especial, nao exatamente com rela<;aoao destino, mas com rela<;ao a necessidade que deverianormalmente decorrer do destino. 0 paradoxo estoico Iiafirmar 0 destino, mas negar a necessidade '. E que 0

sabio Ii livre de duas maneiras, de conformidade com os doispolos da moral: uma vez porque sua alma pode atingir ainterioridade das causas fisicas perfeitas, uma outra porqueseu espirito pode jogar com rela<;oes muito especiais que seestabelecem entre os efeitos em urn elemento de pura exte­rioridade. Dir-se-ia que as causas corporais Sao inseparaveisde urna forma de interioridade, mas os efeitos incorporais,de urna forma de exterioridade. De urn lado, os aconteci­mentos-efeitos tern realmente com suas causas fisicas umarela<;ao de causalidade, mas esta rela<;ao nao Ii de necessida­de, Ii de expressao; de outro lado, tern entre si ou Com suaquase-causa ideal urna rela<;ao que nao Ii mesmo mais decausalidade, mas ainda e somente de expressiio.

A questao torna-se: quais Sao estas rela<;oes expressivasdos acontecimentos entre si? Entre acontecimentos parecem

1. Tema geral do De Fato de Cicero.

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se formar rela~6es extrinsecas de compatibilidade e de in­compatibilidade silenciosas, de conjun~iio e de disjun~iio,

muito dificeis de apreciar. Em virtude de que urn aconte­cimento e compativel ou incompativel com outro? Niiopodemos nos servir da causalidade, uma vez que se trata deurna rela~iio dos efeitos entre si. E 0 que faz urn destinoao nivel dos acontecimentos, 0 que faz com que urn acon­tecimento repita outro apesar de toda sua diferen~a, 0 quefaz com que uma vida seja composta de urn so e mesmOAeontecimento, apesar de toda a variedade daquilo que Iheocorre, que seja atravessada pof uma so e mesma fissura,que toque urna so e mesma melodia em todos os tons possi­veis com todas as palavras possiveis, nao sao relal,;oes decansa e efeito, mas urn conjunto de correspondencias niio­causais, formando urn sistema de ecos, de retomadas e deressonancias, urn sistema de signos, em suma, uma quase­causalidade expressiva, niio uma causalidade necessitante.Quando Crisipo reclama a transforma~iio das proposi~6es

hipoteticas em conjuntivas e disjuntivas, mostra muito berna impossibilidade para os aeontecimentos de exprimirem suasconjun~6es e disjun~es em termos de causalidade bruta 2.

Sera preciso entiio invocar a identidade e a contradi~iio?

Dois acontecimentos seriam incompativeis porque eontradi­torios? Mas niio e aplicar aos acontecimentos regras quevalem $Omente para os conceitos, os predicados e as classes?Mesmo a respeito da proposi~iio hiporetica (se faz dia, estaclaro), os Estoicos observam que a contradi~ao nao pode serdefinida em urn so nivel, mas entre 0 proprio principio e anega~iio da conseqiiencia (se faz dia, nao esta claro). Estadiferen~a de nivel na contradi~iio, nos 0 vimos, faz com queesta resulte sempre de urn processo de uma outra natureza.Os acontecimentos DaD sao como os conceitos: e sua COD­tradi~ao suposta (manifestada no conceito) que resulta desua incompatibilidade e nao 0 inverso. Diz-se, por exemplo,que uma especie de borboleta nao pode ser, ao mesmo tem­po, cinzenta e vigorosa: ora os representantes sao cinzentose fracos, ora vigorosos e negros 3. Podemos sempre registrarurn mecanismo causal fisico que explica esta incompatibili­dade, por exemplo, urn hormonio de que dependeria 0 pre­dieado cinzento, mas que amoleceria,· enfraqueceria a c1assecorrespondente. E podemos sob esta eondi~ao causal con­cluir por uma contradi~ao logica entre cinzento e vigoroso.Mas se isolamos os acontecimentos puros, vemos que 0

acinzentar DaD e menos positivo que 0 enegrecer: ele exprimeurn aumento de seguran~a (esconder-se, confundir-se com 0tronco de iirvore), tanto quanta 0 enegrecer urn aumento de

2. De fato, 8.3. Cf. GEQRGES CANGL'LJIEM, Le NQr111,(JJ, et le pathologique, P.D.F.,

1966, p. 90.

vigor (envigorar). Entre estas duas determina~6es, _cadaqual com sua vantagem, ha, primeiram~nte, uma rela~ao deincompatibilidade primeira, evenemenclal *, que a ~ausall­dade fisica nao faz mais do que inscrever se~undanamen:ena profundidade do corpo e que .a contradwao, 10gJca naofaz mais do que traduzir, em segJUda, n<;> conteudo do con­ceito. Em suma, as rel~oes dos aconteclmentos en!I~ 81, doponto de vista da quase-causalidad~"ide.alou_ noema~ca, ex­primem, em primeiro luga~, .c?nsequen~la~ nao-caUS31S, corn­patibilidades ou incompatiblhd.ades alogJcas. A for~a ~osEst6icos foi engajar-se nesta VIa: de acord? com. ~ue cnte­rios acontecimentos sao copulata, confalalza (ou znco~fata:lia), conjuncla ou disjuncla? . Aqui ainda a astrologJa fmtalvez a primeira grande tenlatlva por estabelecer uma !eo~ladestas incompatibilidades alogicas e destas correspondenclasnao-causais. . .

No entanto, parece mesmo, a partir d~~ text,:s parclalse decepcionantes que nos restam, que os Esto!co.s nao tenhampodido conjurar a dupla te?t~~ao,d~ voltar a ~lffi1?les cau~a­lidade fisica ou a contradi~ao 10gJca.. 0 pn.mel;o teoncodas ineompatibilidades al6gicas, .e p,"r IStO .0 pnmerro grandete6rico do acontecimento, foi Lelbmz. POlS 0 que .ele c~a?,ade eompossivel e incompossivel nao se deixa reduzlf ~o Iden­tico e ao contraditorio, que regem somente 0 pOSSIVe! e 0impassive!. A compossibilidade n~~ s~p6e .nem mesm,o ainerencia dos predicados em urn sUJelto mdlVldual ou mon~­da. :E 0 inverso, e somente sao determinados com~ predi­cados inerentes aqueles que correspondem a aconteclmentosem primeiro lugar compossiveis (a monada de Adao ~cadornao contem sob forma predicativa senao os aeonteclme~tos

futuros e passados compossiveis com ? pecado de .Adao).Leibniz tern, pois, urna viva consciencla da ~ntenondade eda originalidade do acontecimento com rela~ao ao predl~a­do. A eompossibilidade deve ser definida de um~ ~aneJra

original, a urn nive! pre-individual, pela conve~gencla dasseries que formam as singul~rid~des de ~conteclm~n~o.s es­tendendo-se sobre linhas ordmanas. A mcomposslblhdadedeve ser definida pela divergencia de tais seri~s: se urn o~troSextus diferente daquele que conhecemo~ e mcomp,"sslvelcom nosso mundo e porque ele respondena a uma smg~a­ridade cuja serie divergiria das'serie~ de nosso ?,~do obtIdasem torno de Adao, de Judas, de Cnsto, de LeJb?lZ. etc., queconhecemos. Dois acontecimentos sao compos~lvels q.uandoas series que se organizam em torno de suas. sm!lul:U;ldadesse prolongam urnas as outras em todos a~ dlfe~oes, mco?,­possiveis quando as series divergem na vlzlnhan~a das sm-

• Conservamos 0 terrno evenemencial em vez de fatual par scr de uscconente DOS estudos filos6ficos. (N. do E.)

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gularidades componentes. A convergencia e a divergenciasao rela~oes completamente originais que cobrem 0 rico do­mini~ das compatibilidades e incompatibilidades al6gicas ecom ISSO formam urna pe~a essencial da teoria do sentido.

Mas desta regra de incompossibilidade Leibniz se servep.ara exclnir ?S acontecimentos uns dos outros: da divergen­Cia ou da dIsJun~ao, ele faz urn uso negativo ou de exclusao.Or~, isto n~~ e justificado senao na medida em que osacon­teclmentos Ja Sao apreendidos sob a hip6tese de urn Deusque calcuIa .e e~c,olhe, d? !'onto de vista de sua efetua~ao emmund~s ou mdlVl.duos distmtos. Nao e, em absoluto, a: mes­?,a C01S~ se ~on~l~erar~os. os acontecimentos puros e 0 jogoIdeal cUJo prmclplO Lelbmz nao pOde apreender impedidoque estava. pelas exigencias da teologia. Pois desteoutroponto de vIsta, a divergencia das series ou a ilisjun~ao dosmembros _(membra disjuncta} cessam de ser regras negativasde e~cl~sa~ segundo as quaIs os acontecimentos Sao incom­possIveIs" ~co~pativeis. A divergencia, a disjun~aosao,~o conu;arlO,. a~rmadas c~mo tais. Mas, 0 que quer dizerISSO, a dlvergencla ou a ~sJun~ao como objetos de afirma~ao?Em re~a geral, d~as COlsas nao SaO simuItaneamente afirma­d~s senao na medlda em que sua diferen~a e negada, supri­nuda de dentro, mesmo se 0 nivel desta supressao e supos­tamente incumbido de re~amentar a produ~ao da diferen~a~to.q~anto se.u ~esvanecImento. Sem duvida, a identidadenao e, aI a da mdiferen~a, mas e geralmente pela identidadeque os opostos sao afirmados ao mesmo tempo, quer apro­fundemos urn dos opostos para ai encontrar 0 outro' quer~rocedamos a urna sintese dos dois. Falamos, ao dontra­no, de urna opera~ao a partir da qual duas coisas ou duasd~term~a~es sao. afirmadas por sua diferen~a, istoe, oaosao obJetos de afirma~ao simuItanea senao na medida em'!ue sua ~feren~a e ela !'r6pria afirmada, ela pr6pria afirma­l1va. Nao se trata malS, em absoluto de uma identidadedos contrarios, como tal insepanivel ainda de urn movimentodo negativo e da exclusao 4. Trata-se de uma distaociapositiva dos diferentes: oao mais identificar dois contrariosa? mesmo, mas afirmar sua distancia como 0 que os rela­ClOna urn ao Dutro enquanto "diferentes". A id6ia de umadistancia positiva enquanto distancia (e nao distancia anu­lada. au vencida) parece-nos 0 essencial, porque ela permitemedir os contrarios por sua diferen~a finita em lugar deigualar a diferen~a a uma contrariedade desmedida e a con­trariedade a uma identidade ela pr6pria infinita. Nao e adiferen~a que deve "ir ate" it contradi~ao, como pensa Hegelno seu voto de acolher 0 negativo, e a contradi~ao que deve

4. Sobre 0 papel da excluslo e da expulsao, d .. Hegel,capitulo sobrea "contradi~ao" na L6gica.

revelar a natureza de sua diferen~a segnindo a distaocia queIhe corresponde. A ideia de distancia positiva e topol6gicae de superficie e exclui toda profundidade ou toda eleva~ao

que reuniriam 0 negativo com a identidade. Nietzsche dao exemplo de urn tal procedimento, que nao deve em casoalgum ser confundido com nao se sabe que identidade doscontrarios (como torta de creme da filosofia espiritualista edolorista), Nietzsche nos exorta a viver a saude e a doeo~a

de tal maneira que a saude seja urn ponto de vista vivosobre a doen~a e a doen~a urn ponto de vista vivo sobre asaude. Fazer da doen~a uma explora~ao da saude, da saudeuma investiga~ao da doen~a: "Observar enquanto doenteconceitos mais sarlios, valores mais saos, depois, inversamen­te, do alto de uma vida rica, superabundante e segura de si,mergulhar os olhares no trabalho secreto do ins~into dadecadencia, eis a pratica it qual eu me adestrei malS longa­mente, eis 0 que faz minha experiencia particular e em quefui aprovado como mestre, se e que existe alguma materiaem que 0 seja. Agora sei a arte de inverter as perspecti­vas ... "5 Nao identificamos os contnirios, afirmamos tadasua distfulcia, mas como 0 que os relaciona urn 30 outro. Asaude afirma a doen~a quando ela faz de sua distancia coma doen~a urn objeto de afirma~ao. A distancia e, na medidade urn bra~o, a afirma~ao daquilo que ela distancia. Naoe precisamente a Grande Saude (ou a Gaia Ciencia), esteprocedimento que faz da saude uma avalia~ao da doen~a eda doen~a uma avalia~ao da saude? 0 que permite aNietzsche fazer a experiencia de urna saude superior, nomomento mesma em que esta doente. Inversamente, nao equando esta doente que perde a saude, mas quando nao podemais afirmar a distancia, quando nao pode mais por suasaude fazer da doen~a urn ponto de vista sobre a saude(entao, como dizem os Est6icos, 0 papel terminou, a pe~a

acabou). Ponto de vista nao significa urn juizo te6rico. 0"procedimento" e a vida mesma. Ja Leibniz nos ensinaraque DaD ha pontos de vista sabre as caisas, mas que as caisas,os seres, eram pontos de vista. S6 que submetia os pontosde vista a regras exclusivas tais que cada urn nao se abriasobre os outros senao na medida em que convergiam: ospontos de vista sobre a mesma cidade. Com Nietzsche, aocontrario, 0 ponto de vista e aberto sabre uma divergenciaque ele afirma: e uma outra cidade que corresponde a cadaponto de vista, cada ponto de vista e urna outra cidade, ascidades oao sendo unidas senao par sua distancia e oaoressoando senao pela divergencia de suas series, de suascasas e de suas rnas. E sempre uma outra cidade na cidade.Cada termo torna-se urn meio de ir ate ao fim do outro,

5. NIETZSCHE. Ecce Homo. Gallimard, trad. Vialatte, p. 20.

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seguindo toda sua distancia. A perspectiva _ 0 perspecti­vismo - de Nietzsche e uma arte mais profunda que 0

ponto de vista de Leibniz; pois a divergencia cessa de serurn principio de exclusao, a disjun9ao deixa de ser urn meiode separa9ao" 0 incompossivel e agora urn meio de comuni­ca9ao.

Nao que a disjun9ao seja reduzida a uma simples con­jun9aO. Distinguem-se tres especies de sintese: a sinteseconectiva (se.", entao) que recai sobre a constru9ao deuma s6 serie; a sintese conjuntiva(e), como procedimentode constru9ao de series convergentes; a sintese disjuntiva(ou)que reparte as series divergentes. as conexa, os conjuncla,os disjuncta. Mas, justamente, toda a questao e de saberem que condi90es a disjun9ao e uma verdadeira sintese e naourn procedimento de analise que se contenta em excluirpredicados de uma coisa em virtude da identidade do seuconceito (uso negativo, limitativo ou exclusivo da disjun9ao ),A resposta e dada na medida em que a divergencia ou 0descentramento determinados pela disjun9ao tomam-se obje­tos de afirma9ao como tais. A disjun9ao nao e, em absolu­to, reduzida a urna conjun9ao; ela continua sendo disjun9aouma vez que recai e continua recaindo sabre uma divergenciaenquanto tal. Mas esta divergencia e afirmada de modoque 0 ou torna-se ele proprio afirma9ao pura. Em lugarde urn certo nUmero de predicados serem excluidos de urnacoisa em virtude da identidade de seu conceito cada "coisa"se abre ao infinito dos predicados pelos quais' ela passa, ao~eslIlO tempo em que ela perde seu centro, isto e, sualdentldade como conceito ou como eu 6. A exclusao dosp~edicados se substitui a comunica9ao dos acontecimentos.V~mos .qual era 0 procedimento desta disjun9ao sinteticaafirmativa: ~~nslste na ere9ao de uma instancia paradoxal,P?~to ~eatono com duas faces impares, que percorre assenes divergentes como divergentes e as faz ressoar por suadistancia, na sua distancia, Assim, 0 centro ideal de con­vergencia e por natureza perpetuamente descentrado nao. ~. ,serve malS senao para afirmar a divergencia. Eis por quepareceu que urn caminho esoterico, excentrado abria-se a' ,nos, completamente diferente do caminho ordinario. Poiso~din~riament.e a disjun9ao, para Se falar com propriedade,nao e uma smtese, mas somente uma analise reguladora aservi90 das sinteses conjuntivas, pois separa urnas das outrasas series nao-convergentes; e carla sintese conjuntiva, porsua vez, tende ela propria a se subordinar asintese de cone­xao~ uma. vez que organiza as series convergentes sabre asqUais recal em prolongamento umas das outras sob urna con-

af" 6 .. Sobre as condi~i5es pelas quais a disjunrrao se torna uma sinteseumabva mudando de principia, d. Ap&ndice III.

di9ao de continnidade. Ora, ja todo 0 sentido das pal,avrasesotericas era 0 de voltar atras: a disjun9ao tornada smteseintroduzia por toda parte suas ramifica,qe,s, tanto que aconjun9ao coordenava ja globalmente senes dlvergent:s,heterogeneas e disparatadas e, ,!ue, ?"o detalhe, a con.ex~o

cOn/raia ja uma multidao de senes dlvergentes na aparenclasucessiva de uma so.

E uma nova razao para distinguir 0 devir d~s p~ofun­

didades e 0 Aion das superficies. Pois ambos, ,a pnmerravista, pareciam dissolver a i~enti~ade de cada co:s~ ~o selOda identidade infinita como IdenlIdade dos contranos, e, _detodos os pontos de vista, quantidade, qualidade, rela9,ao,modalidade, os contrarios pareciam se esposar em s~perfl,?e

tanto quanta em profundidade e ter 0 mesmo senlIdo n~o

menes que 0 mesmo infra-sentido~ Mas, ~ ~ma v~z m~s,

tudo muda de natureza elevando-se a superflcle. E e precls~

distinguir duas maneiras pelas qu~s a identi~a~e pessoal eperdida, duas maneiras pelas qUaI~ a ~ontradI9~0. se desen­volve. Em profundidade, e pela. lde~tidade mflmta que oscontrarios comunicam e que a ldenhdade de cada urn seacha rompida, cindida: tanto que cada termo e ao mesmotempo 0 momento e 0 todo, a parte, a rela9ao eo. todo,o eu, 0 mundo e Deus, 0 sujeito, a copula e 0 ~redlcado,

Mas na superffcie onde nao se desdobram a .nao ser osacontecimentos infinitivos, as coisas se passa~ dlfere~~emen­

teo cada urn comunica com 0 outro pelo carat~r P':SllIVO desua distil.ncia pelo carater afirmativo da dislun9ao, tantoque 0 eu se ~onfunde com esta propri~ .disj~n9ao que liberapara fora dele, que poe fora dele as ~".ne~ ?1Ve~gentes c~m~

tantas singularidades impessoais e pre-mdlVlduals. T~I e l.aa contra-efetua9ao: distancia infinitiva, em lugar de ldenh­dade infinita. Tudo se faz por ressonancia dos disparates,ponto de vista sobre 0 ponto de vista, _desloca~ent? daperspectiva, diferencia9ao da diferen9a e nao por ldentidadedos contrarios. E verdade que a forma do eu asseguraordinariamente a conexao de uma serie, a forma do mundo,a convergencia das series prolongaveis e contfnuas e que. aforma de Deus, como Kant viu muito bern,. a~se~ura a dlS­jun9ao tomada no seu uso eX~lus!v? ou hmltat;vo. Mas,quando a disjun9ao acede ao pnnclplO que the da urn valorsintetico e afirmativo nela mesma, 0 ell:, 0 mUD?,;> e l?eusconhecem uma morte comum, em provelto das senes dlver­gentes enquanto tais, que trans~ordam agora de toda exclu:sao, toda conjun9ao, toda conexao. E a for9a de Klossowsklter mostrado como as tres formas tinham sua sorte h~a.da,

nao por transforma9ao dialetica ou ide?t.idade dos. contranos,mas por dissipa9ao comum na_ superflcle d~s ':Olsas. ~e_ 0eu e 0 principio de manifesta9ao com rela9ao a proposl9ao,

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I,

o mundo e 0 da designa,ao, Deus, 0 da significa,ao. Maso sentido expresso como acontecimento e de uma outra na­tureza, eIe que emana do nao-sensa como da instancia para­doxal sempre deslocada, do centro excentrico eternamentedescentrado, puro signa cuja coerencia exclui somente, massupremamente, a coerencia do eu, a do mundo e a de Deus 7.

Esta quase-causa, este nao-seuso de superficie que percorreo divergente como tal, este ponto aleat6rio que circula atra­ves das siugularidades, que as emite como pre-individuais eimpessoais, DaD deixa subsistir, DaD suporta que subsistaDeus como individualidade originaria, nem 0 eu como Pes­soa, nem 0 mundo como elemento do eu e produto de Deus.A divergencia das series afirmadas forma urn "caosmos" enao mais um mundo; 0 ponto aleat6rio que os percorreforma um contra-eu e nao mais um eu; a disjun,ao postacomo sintese troca seu principio teol6gico contra um princi­pio diab6lico. Este ceutro descentrado e que tra,a entreas series e para todas as disjun,oes a impiedosa liuba retado Aiou, isto e, a distancia em que se alinham os despojosdo eu, do mundo e de Deus: grande Canon do mundo, fendado eu, desmembramento divino. Assim, ha sobre a liubareta urn eterno retorno como 0 mai;; terrivel labirinto de quefalava Borges, muito diferente do retorno circular ou mono­centrado de Cronos: eterno retorno que nao e mais 0 dosindividuos, das pessoas e dos mundos, mas 0 dos aconteci­mentos puros que 0 instante deslocado sobre a liuba naocessa de dividir em ja passados e ainda por vir. Mais nadasubsiste alem do Acontecimento, 0 Acontecimento s6 Even­tum tanturn para todos os contrarios, que comunica consigopor sua pr6pria distancia, ressoando atraves de todas suasdisjun,oes.

7. CEo Apendice III. Klossowski fala deste "pensamento tao perfeita.mente coerente que me .exclui no instante mesmo em que 0 penso" ("Esqueci­mento e anamnese na experiencia vivida do eterno retorno do mesmo". Nietzs­che, Cahiers de RoyaumOllt, ed, de Minuit, p. 234). Cf. tambem Posfacio asLeis cIa hospit4Udade. Klossowski desenvolve nestes textos uma teoria do signa,do sentido e do nao-sentido e uma interpreta!<ao profundamente original doeterno retorno nietzschiano, concebido como poten-cia ex~trica de afirmara diveJ'gencia e a disjunl,;:iio, que niio deixa subsistir a identidade do eu, nema do mundo, nem a de Deus.

vlgeslrna uumta 5erle:Da Univocidade

Parece que 0 nosso problema, no decorrer do camiubo,mudou completamente. Pergnntavamos qual era a naturezadas compatibilidades e das incompatibilidades al?gica~ e.ntr~acontecimentos. Mas, na medida em que a dl~e:gencla eafirmada, em que a disjun,ao torna-se sintese, J?Osltlv.a, pare­ce que tooos os acontecimentos, mesrno contranos, sao com­pativeis entre si e que se "entre-exprirnem". 0 incornpativelnao nasce senao com os individuos, as pessoas e os rnundosem que os acontecimentos se efetuam, ~as nao e?tre. osproprios acontecimentos ou suas smgula~ldade~ aco~mlcasJ

irnpessoais e pre-individuais. 0 incompall."el nao esta entredais acontecirnentos, mas entre urn aconteclmen~o e 0 mundoou 0 individuo que efetuam urn outro ac.onteclm~nto com?divergente. Ai existe alguma coisa que. nao se deIXa r~UZ1fa uma contradi,ao 16gica entre predICados e que e, noentanto, uma incompatibilidade, mas uma incompatib!lidadea16gica, como uma incompatibilidade, de ."hl:lmor" a qualdevemos aplicar os criterios originais de Lelbmz. !" l?e~soa,tal como a definimos na sua diferen,a com 0 mdlVlduo,pretende manejar com ironi~ esta~ !ncompatibilidades comotais, precisamente porque sao alogl~as. E, .de. uma 0.ntramaneira vimos como as palavras-vahses expnmlam sentidostodos c~rnpativeis, ramificaveis e ressoantc:s entre. s~ . doponto de vista do lexico, mas e~tr~v~m em mcompallbilida­des com esta ou aquela forma smtallca.

o problema e pois saber como 0 individuo poderiaultrapassar sua forma e seu la,o sintatico com urn. mundopara atingir it universal comu~ica,ao ?,?s ~conteclment?S,isto e, a afirma,ao de uma smtese disJuntiva para alemnao somente das contradi,oes l6gicas, mas mesmo das

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incompatibilidades alogicas. Seria preciso que 0 individuose apreen.desse a Sl mesmo como acontecimento. E queo aconteclmento que se efetua nele fosse por ele apreendidoda ~esma forma como urn outro individuo nele enxertado.Ent~o, .este ~contecimento, ele nao 0 compreenderia, nao 0

deseJ~na, nao 0 representaria sem compreender e querertarnbem todos os outros acontecimentos como individuossem representar todos as autros individuos como aconteci~mentos. Cada individuo seria como urn espelho para acondensa~ao das singuiaridades, cada mundo uma distanciano espeI~o. . Tal ~ 0 sentido Ultimo da contra-efetua~ao.Mas, mms mnda, e a descoberta nietzschiana do individuocomo cas~ fortuito, tal qual e retomada e reencontrada porKI~sso:ski em uma rela~ao_ essencial Com 0 eterno retorno:asslm as veementes oscila~oes que revolucionam urn indivi­duo enquanto so procura seu proprio centro e nao ve 0 cir­<;uio de que faz parte, pois se estas osciIac;5es 0 revolucioname que cada qual responde a uma individualidade outra daque ele acredita ser, do ponto de vista do centro nao en­contnivel; dai, que uma identidade e essenciaimente fortuitae que uma serie de individualidades deva ser percorrida porcada uma, p~ra ~,ule a f~rtuidade desta ou daquela as tometodas. ~ecessarIas .' Nao elevamos ao infinito qualidadescontrarIaS para aflrmar sua identidade; elevamos cada acon­teciIJ.1ento aP?tencia do eterno retorno para que 0 individuo,nascldo daqUllo que ocorre, afirme sua distancia de todoDutro acontecimento e, afirmando-a, siga-a e espose-a, pas­sando ~or todos os outros individuos implicados pelos outrosa:ont;clme.ntos e dela extraia urn unico Acontecimento quenao e senao ele meSmo de novo ou a universal liberdade.o eterno retorno nao e uma teoria das qualidades e de suastran~forma~5es ci:cu1~res, mas dos ~c~mtecjmentos puros ede S1a condensa~ao lInear ou superfIcIal. Assim, 0 eternoretorno guard~ u~ sentido seletivo e permanece ligado auma mcompatlblhdade, pre~isamente aquela que ele apre'sent~ com as formas que Impedem sua constitni~ao e seufunclOnamento. Contra-efetuando cada aeontecimento 0

ator-danc;arino extrai 0 acontecimento puro que comu~icacom todos os outros e se volta sobre si mesmo atraves detodos os outros, com todos os outros. Ele faz da disjun~aouma sintese que afirma 0 disjunto como tal e faz ressoarcada serie na outra, cada uma voltando em si pois que aoutra volta nela e voltando para fora de si quando a outravolta em Sl: explorar todas as distancias, mas sobre uma mes­rna linha e eo~rer mnito depressa para ficar no mesmo lugar.A borboleta cmza compreende tanto 0 acontecimento escon­der-se que, ficando no mesmo Ingar colada no tronco da

1. KLOSSOWSKI. "La Periode turinoise de Nietzsche". L'Ephembe, n9 5.

arvore, percorre toda a distancia com 0 envigorar do negroe faz ressoar 0 outro acontecimento como indivlduo, masno seu proprio individuo como acontecimento, como casofortnito. Meu arnor e uma explor~ao da distilncia, urnlongo percurso que afirma meu odio pelo amigo em urnoutro mundo e em urn outro individuo e faz ressoar urnana outra as series bifurcantes e ramificadas - solu~ao dohumor, completamente diferente da ironia romilntic~. dapessoa ainda fundada sobre a identidade dos contrano~.

"Voce chega a minha casa, mas em urn dos. passados pOSSI­veis, voce e meu inimigo, em outro men amIgo. .. 0 tem­po bifurca perpetuamente em dire~ao a inumer~veis futuros:em um deles eu sou seu inimigo .. , 0 futuro ]a eXlste maseu sou seu amigo. .. Ele me voltou as costas urn momento,eu preparara meu revolver, atirei com urn cuidado extre­ma" 2.

A filosofia se confunde com a ontologia, mas a ontolo­gia se confunde com a univocidade do ser (a analogia foisempre uma visao teologica, nao filosofica, adaptada asformas de Deus, do muudo e do en). A univocidade. ~oseT nao significa que haja um s6 e meSilla ser: ao contr~no,

os existentes sao mUltiplos e diferentes, sempre produzldospor urna sintese disjuntiva, eles ~rop:ios disjuntos e. d~ver­gentes, membra disjuncta. ~ umvocld~de do ser"slgn~flc~que 0 ser e Voz, que ele se dlz em ~ so e mesmo . sen~ldo.de tudo aquilo de que se diz. AqUllo de que se d,z nao e,em absoluto, 0 mesmo. Mas ele e 0 mesmo para tud?aquilo de que se diz. Ele ocorre, pois, coIJ.1o urn. acontec.l­mento unico para tudo 0 que ocorre as COlS~S malsdiversas, Eventum tantum para todos os aconteclment~s,

forma extrema para todas as formas que pe~IJ.1anecem d~s­juntas nela, mas que fazem repercutir e ramlfICar sua dls­jun~ao. A univocidade do ser s~ confunde co~ 0 uso po­sitivo da sintese disjuntiva, a mals alta aflIma~ao: 0 eternoretorno em pessoa, ou - como 0 vimos para 0 jogo ideal_ a afirma~ao do acaso em uma 'vez, 0 unico lan~ar paratodos os lances, urn so Ser para toda~ as formas e vezes,uma so insistencia para tudo 0 que eXlste, urn so fantasmapara todos os vivos, uma so voz para todo 0 rumor e todasas gotas do mar. 0 erro seria confundir a univocidade doser enquanto ele se diz, com uma pseudo-univocidade da­quilo de que ele se diz. Mas, da mesma forma, se 0 SernaD se diz sem oeorrer, se 0 Ser e 0 unico Acontecimentoem que tados os acontecimentos comunicam, a univocidaderemete ao meSilla tempo ao que ocorre e ao que se diz.A univocidade siguifica qne e a mesma coisa que ocorre eque se diz: 0 atribuivel de todos os corpos ou estados de

2. BORGES. Op. cit. pp. 130-134.

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c?isas e. 0 . ~xprimi~el de todas as proposi~5es. A univo­cldade Slg~lfi~~ .a Identidade do atributo noematico e doe~press.o ImgUlstlcO: acontecimento e sentido. Assim elanao .delxa 0 ser subsistir no vago estado que tinha napeclivas da analogia. A univocidade eleva extra' s pers­melbor disti . I d . , loser parade ue ~gm- 0 aquIlo ao que ele acontece e daqnilo

lq se diz. Ela 0 arranca aos existentes para referi-Io~ es ;m uma vez, abate-Io sobre eles para tadas as vezes

o Izer e puro acontecimento a univocidade _ .contato a, superfici~ interior da linguagem (insjstenCi~)ec~:::~ .superflcle extenor do ser (extra-ser) 0 Se '".';slste n~ Iinguagem e sobrevem as coisa;; ele me~eU~';~~~~~mmt~nor da lingu~gem com a rela~ao exterior do seL

~ti~o, nero paSSIVo, 0 ser univoco e neutro Ele eeIe propno, extra-seT, isto e este minimo de se' ,real ~ I .' r comum ao

, ao po.sslve e ao Impossive!. Posi~iio no vazio de todosos aco~teclmentos em urn, expressao no nao-sensa de todosos senlidas em urn, 0 ser univoco e a pura forma do Aiona. f.?r~a da exterioridade que relaciona as coisas e as propo~Sl~O~S: Em ,suma, a ~nivocidade do ser tern tres determi­n~~o:s. urn so aconteclmento para todos; urn s6 e mesmoallquld par~ 0 qu~ se passa e 0 que se diz; Urn s6 e mesmoser para 0 ImposslVel, 0 possivel e 0 rea!.

3. Sobre a importancia do "tern ...mento, d. B. Groethuysen ''De 1 po VaZlQ na elabora9ao do aconteci­losophiques. V, 1935-1936)' "Tq~e ques as~ects du temps" (Recherches phi­tempo em que nilo se pa;sa na~a'? ac:teclmento esta, POI' assim dizer, noatraves de tuoo 0 que. . e uma perman&1cia do tempo VQzioLes Capitales estava jle ~assa. I 0 Interesse profunda do livro de Joe Bousquetunivocidade do sec, a par~ c;: Ocar 0 pco~len;a da linguagem em funSiio da

r e uma medit3.l;ao sobre Duns Escoto.

Vigesima Sexta Serie:Da Linguagem

Sao os acontecimentos que tornam a lin ua em ossivel.Mas tornar posslvel nao slgm Ica fazer comeGar. Come~a­

mos sempre na ordem da palavra, mas nao na da Iinguagem,em que tudo deve ser dado simultaneamente, em urn golpeliniea. Ha sempre alguem que come~a a falar; aguele quefala e 0 manifestante; aguilo de gue se fala e 0 designado;o que se diz sao as significa~5es. 0 acontecimento nao enada disto: ele nao fala maiS do que dele se fala ou do quese 0 diz. E, no entanto, ele pertence de tal forma a liugua­gem, habita-a tanto que nao existe fora das proposi~5es queo exprimem. Mas ele nao se confunde com elas, 0 expres­so nao se confunde com a expressao. Nao the preexiste,mas the pre-insiste, assim, the da fundamento e condi~ao.

Tomar a lingoagem possivel significa isto: _fazer com gueos sons nao se confundam com as gualidades sonoras dascoisas, com 0 burburinho dos corpos, com suas a~5es epaix5es. 0 gue torna a Iing~em possivel e 0 gue separaos sons dos cor os e os organiza em proposi~5es, torna-osIivres para a fun~ao expresslva. sempre uma boca quefala; mas 0 som cessou de ser 0 ruldo de urn corpo quecome, pura oralidade, para tornar-se a manifesta~ao de urnsujeito que se exprime. E sempre dos corpos e de suasmisturas que falamos, mas os sons cessaram de ser qualida­des atinentes a estes corpos para entrar com eles em umanova rela~iio, a de designa~ao e exprimir este poder de falare de ser falado. Ora, a desigua~iio e a manifesta~ao naofundam a linguagem, elas mIo se tornam posslveis senaocom ela. Elas sup5em a expressao. A expressao se fundano acontecimento como entidade do exprimivel ou do ex­presso. ~e torna a linguagem possivel e 0 aconteci-

I!

I

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mento, enquanto nao Se confunde, nem com a proposi9aoque 0 expnme, nem com. 0 esta~o daguele que a pronuncia,nem com 0 estado. de c':lsas d.eslgnado pela proposi,ao. E,em, verdade, tudo ISSQ naa sena senao barulho gem 0 acon­tec~mento e barulho indistinto. Pois nao somente 0 acon­t~cI~ento torna possivel e separa 0 que torna possivel, masdlstmgue ".'a9uilo que. torn~ possivel (cf. a triplice distin,aona proposl,ao da deslgna,ao, da manifesta,ao e da signifi­ca,ao) .

'j . Como 0 acontecimento torna a linguagem possivel?ylIDOS ~ qU~l era sua essencia, puro efeito de superficie,Impasslvel .mcorporal. a acontecimento resulta dos corpos,de suas mlsturas, de suas a,5es e paix5es. Mas difere emnatureza daqnilo de que resulta. Assim ele se atribui aos

5!,;pos,_aos estados de coisas, mas nao como uma gualidade_f.@ca: somente .c?mo .um atributo mnito especial, dialeticoou antes noematlco, mcorporal. Este atributo nao existefora da proposi,ao que 0 exprime. Mas difere em naturezade sua expressao. Assim ele existe na proposi,ao, mas naoco~o urn nome de corpo ou de qualidade, nem como urnsUJelto ou predicado: somente como 0 exprimivel ou 0 ex­presso da proposi,ao, envolvido em urn verbo. F. a mesmaen:ldade que e acontecimento sobrevindo aos estados deCOisas e sentido insistindo na proposi,ao. Entao, na medidaem que 0 acontecimento incorporal se constitui e constituia superficie, ele faz subir a esta superficie os termos de suadvpla referencia: os corpos aos quais remete como atributoneematico, as proposi95es as quais remete como exprimivel.E estes termos~ ele as organiza como duas series que separa,uma vez que e por e nesta separa,ao que ele se distingned.os .corpos de que resulta e das proposi,5es que torna pos­SlvelS. Esta separa,ao, esta linha fronteiri,a entre as coisase as proposi,5es (comer-falar) passa tambem no "tornadopassivel", ista e, nag proposi~5es mesmas, entre as nomese os verbos ou antes entre as designa,5es e as express5esas d.esi~na,5es. remetendo sempre a corpos ou objetos con~sumlvels. de drrelto, as express5es a sentidos exprimiveis.JI:1as a hnha fronteiri,a nao operaria esta separa,ao das se­nes na superficie se nao articulasse enfim 0 que separa,uma vez q~e ?p~ra de urn lade e de outro por urna so <mesma potencla mcorporal, aqui definida COmo sobrevindoaos esta~os de coisas ~ I~ c~mo insistindo nas proposi,5es.(F. por ISSO que a propna linguagem nao tern senao urnap~t~ncla, emb.ora tenha varias dimens5es). A linha fron­terrl~~ faz P~lS convergir as series divergentes; mas assimela nao. sup~lm~ nem corrige sua divergencia. Pois as fazconvergtr nao nelas mesmas, 0 que seria impossivel mas~m torno ?e urn elemento paradoxal, ponto que perc~rre alinha ou crrcula atraves das series, centro sempre deslocado

que nao constitui urn circulo de convergencia senao para 0

que diverge enquanto tal (potencia de afirmar a disjun,ao).Este elemento, este ponto e a quase-causa a qual os efeitosde superficie se prendem, enquanto precisamente diferemem natureza de suas causas corporais. F. este ponto que eexpresso na lingnagem pelas palavras esotericas de diversostipos, assegnrando ao mesmo tempo a separa,ao, a coorde­na,ao e a ramifica,ao das series. Assim toda a organiza,aoda linguagem apresenta as trIOS figuras,da super/ieie metafi­sica OU transcendental, da linha incor oral abstrata e doponto descentrado: os efeitos e su erficie ou aconteciruen­tos' na su rfici" linha do sentido imanente ao aconteci­mento; sobre a linh 0~()llto do nao-sentido, nao-sentidodaSlll'erficie co-presente ao sentido. ...-,'

Os""dois' granaesslstemas'antlgos, epicurismo e estoicis­mo, tentaram designar nas coisas 0 que torna a linguagempossivel. Mas 0 fizeram de maneira muito diferente. Pois,para fundamentar nao somente a liberdade, mas a lingnageme seu emprego, os Epicuristas elaboraram urn modelo queera a declinarao do atomo, as Est6icos, ao contnirio, aconjugllfiio dos aconteciruentos. Nao e, pois, surpreendenteque 0 modele epicurista privilegie os nomes e os adjetivos,os nomes sendo como atomos ou corpos lingliisticos que 50

comp5em por sua declina,ao e os adjetivos, qualidades des­tes compostos. Mas 0 modelo estoico compreende a lingna­gem a partir de termos "mais nobres": as verbos e suaconjugacao, em fun,ao dos la,os entre aconteciruentosincorporais. A questiio de saber 0 que e primeiro na lin­guagem, nomes ou verbos, nao pode ser resolvida segrmdoa maxima geral ~'no comego ba a 3.9ao" e na medida emque fazemos do verbo 0 representante da a,ao primeira eda raiz 0 primeiro estado do verbo. Pois nao e verdade_que 0 verba represente uma as:ao; ele exprime urn aconteci­mento, 0 que e completamente diferente. E nem a lingua­.~se desenvolve a partir de raizes primeiras; ela seprganiza em torno de elementos formadores que determinam() seu todo. Mas se a linguagem nao se forma progressiva­mente segundo a sucessao de urn tempo exterior naoacreditaremos, por isso, que sua totalidade seja homogenea.E verdade que os "fonemas" asseguram toda distin,ao lin­giiistica passivel nos "morfemas" e as "semantemas", mas,inversamente, sao as uuidades significantes e morfologicasque determinam nas distin,5es fonematicas aquelas que saopertinentes para uma lingua considerada. a todo naopode pois ser descrito por urn movimento simples, mas porurn movimento de ida e de volta, de a,ao e de rea,aolingliisticas, que representa 0 circulo da proposi,ao I. E, se

~. Sobre este processo de volta au de reat;l.o e a temporalidade intenia.que unplica. cf. a obra de Gustave Guillaume (e a analise que dela faz E.

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a a9ao fOnica forma urn espa90 aberto da linguagem, area9ao semantica forma urn tempo interior sem 0 qual 0espa90 nao seria determinado em conformidade com tal outal lingua. Ora, independentemente dos elementos e apenasdo ponto de vista do movimento, os nomes e sua decli!1a9aOencarnam a acaQ, enguanto que as verbos e sua conjugac~o

. enca~nam a reasao. O. ve.r1:>o nao e uma imagem da a9aoextenor, mas 1,lffi processo de reacan interior a linguagem.Eis por que, na sua ideia mais geral, ele envolve a tempo­ralidade interna da lingua. :Ii ele que constitui 0 anel daproposi9ao fazendo voltar a significa9ao sobre a designa9aoe 0 semantema sobre 0 fonema. Mas da mesma forma edele que inferimos 0 que 0 anel esconde ou enrola, 0 queo anel revela uma vez fendido e desdobrado desenroladoestendido em linba reta: 0 sentido ou 0 ~conteciment~cOmo expresso da proposi9ao.

? verbo tern dois p610s: 0 presente, que marca suarela9ao com urn estado de coisas designavel em fun9ao deurn t:mpo fisico de sucessao; .-.Q. infinitivo, que marca suarela9ao. com 0 sentido ou 0 acontecimento em fun9ao dotempo mterno que envolve. 0 verbo inteiro oscila entre 0"modo"jmillitivo querepresenta 0 circulo desdobrado daproposicao intei_r_~ e 0 "tempo" presente, que fecha, 30

contrari(),. ~ circul(). sobr,,-um~,,-signad_()__ da propos~jio.Entre os dOlS, 0 verbo dobra toda sua conjuga9ao em con­formidade com as rela90es da. designaGao, da manifestaGaoe da sigllificaGao - 0 conjunto dos tempos, das pessoas edos modos. 0 infinitivo puro e 0 Aion, a linha reta, aforma vazia ou a distancia; ele nao comporta nenhurnadistin9ao de momentos, mas nao cessa de se dividir formal­mente na dupla dire9ao simultanea do passado e do futuro.o infinitivo nao i.J11.Pli~li.um tempo ..!!'teriQr a Iingua_semexprimir 0 sentido ou 0 aconteci!J!ento, isto e, 0 conjuntodos problemas que a lingua se coloca. Ele poe a interio­ridade da linguagem em contacto com a exterioridade doser. Assim, herda da comunica9ao dos acontecimentos entresi; e a univocidade se transmite do ser il linguagem, daexterioridade do ser il interioridade da linguagem. Aequivocidade e sempre ados nomes. 0 Verbo e a univO:-­cidade..dLlinguagem, sob a forma de urn infinitivo naodeterminado, sem pessoa, sem presente, sem diversidade devozes. Assim a pr6pria poesia. Expriminclou.a lingt!agemJodos os aconte91Il"-Il.l()s_ em umy_ 0 verbo infinitivo expril)leo acontecimento da linguagemL ,,- lil\guagem como sendo.,ela propria urn _~,~.9!1_~~_~~'?E:!:9 u!rico qu~ se confunde agora..cO!I!.9._!lJ:IlUl, torna po.ssivel..Ortigues em Le DiscouTS et le sfjmbole. Aubier, 1962). Guillaume tira daiurna concept;ao original do infinitivo nas ":£:pocas e niveis temporais no ~ste~ada' conjuga\;ao francesa", Cahiers de linguistique structurale, n'9 4, Umversltede Laval.

vIgeslrna ~etlrna ~erie:•Da Oralidade

A linguagem e tornada possivel polo que a distingue.o que separa os sons e os corpos, faz dos sons os elementospara uma linguagem. 0 que separa falar e comer torna apalavra possivel, 0 que separa as proposi90es e as coisastorna as proposi90es possiveis. 0 que torna possive! e asuperficie e 0 que se passa na superficie: 0 acontecimentocomo expresso. 0 expresso torna possivel a expressao.Mas, entao, encontramo-nos diante de uma ultima tarefa:retra9ar a hist6ria que libera os sons, torna-os independentesdos corpos. Nao se trata mais de uma genese est:itica queiria do acontecimento suposto il sua efetua9ao em estadosde coisas e il sua expressao em proposi90es. Trata-se deuma genese dinamica que vai diretamente dos estados decoisas aos acontecimentos, das misturas as linhas puras, daprofundidade il produ,iio das superficies, e que nlio devenada implicar da outra genese. Pois, do ponto de vistada outra genese, n6s nos davamos, de direito, comer e falarcomo duas series ja separadas na superficie, separadas earticuladas pelo acontecimento que resultava de urna e aela se referia como atributo noema-tieo e que tornava a Dutrapossivel e a ela se referia como sentido exprimivel. Mascomo falar se destaca efetivamente de comer ou como asuperficie ela pr6pria e produzida, como 0 acontecimentoincorporal resutta dos estados de corpos, e outra questao.Quando se diz que 0 som se torna independente, pretende-sedizer que deixa de ser uma qualidade especifica atinenteaos corpos, rufdo ou grito, para designar agora qualidades,manifestar corpos, significar sujeitos e predicados. Justa­mente, 0 som nao toma urn valor convencional na desig­na<;ao - e urn valor costumeiro na manifesta<;ao, urn valorartificial na significa9ao - senao porque leva sua indepen-

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dencia a superficie de uma mais alta instancia: a expressi­vidade. Sob todos os aspectos a distin<;ao profundidade-su­perficie e primefra relativamente a natureza-conven<;ao, na­tureza-costume, natureza-artificio.

Ora, a historia das profundidades come<;a pelo maisterrivel: teatro do terror de que Melanie Klein fez 0

inesquecivel quadro e em que 0 recem-nascido, desde 0 pri­meiro ano de vida e ao mesma tempo cena, ator e drama.A oralidade, a boca e 0 seio, sao primeframente profundi­dades sem fundo. 0 seio e todo 0 corpo da mae nao saosomente divididos em urn born e urn mau objeto, mas esva­ziados agressivamente, retalhados, esntigalhados, feitos empeda<;os alimentares. A introje<;ao destes objetos parciaisno corpo do recem-nascido e acompanhada de uma proje<;aode agressividade sobre estes objetos internos e de uma re­-proje<;ao destes objetos no corpo materno: assim, ospeda<;os introjetados sao tambem como substancias vene­nasas e persecut6rias, explosivas e t6xicas, que ameac;am dedentro 0 corpo da crianC;3 e nao cessam de se reconstituirno corpo da mae. De onde a necessidade de uma re-intro­jec;ao perpetua. Todo 0 sistema da introje<;ao e da proje<;aoe uma comunica<;ao dos corpos em profundidade, pela pro­fundidade. E a oralidade se prolonga naturalmente em urncanibalismo e uma analidade em que os objetos parciais saoexcrementos capazes de fazer explodfr tanto 0 corpo damae quanta 0 corpo da crian<;a, os peda<;os de urn sendosempre perseguidores do outro e 0 perseguidor sempreperseguido nesta mistura abontimivel que constitui a Paixaodo recem-nascido. Os corpos explodem e fazem explodir,neste sistema da boca-anus ou do alimento-excremento, auniversal cloaca 1. Este mundo dos objetos parciais inter­nos, introjetados e projetados, alimentares e excremen­ciais, nos 0 chamamos mundo dos simulacros. MelanieKlein 0 descreve como posi<;ao paranoide-esquizoide dacrian<;a. A isto sucede uma posi<;ao depressiva que marcaurn duplo progresso, urna vez que a crian<;a se esfor<;a porreconstituir urn objeto completo no modo do bom e por seidentificar ela propria a este born objeto, por conquistarassfrn uma identidade correspondente, pronta neste novodrama a partilhar as ameaC;3S e os sofrimentos, tadas aspaix5es que 0 born objeto sofreu. A "identifica<;ao" depres­siva, com sua conffrma<;ao do superego e sua forma<;ao doego, toma aqui 0 Iugar da "introjec;ao-projec;ao" paran6ide eesquizoide. Tudo se prepara enffrn para 0 acesso a urnaposi<;ao sexual marcada por 1Odipo, atraves de novos perigos,em que as puls5es libidinosas tendem a se destacar das

1. cr. Melanic Klein, La PsychanaJyse des en/ants, 1932, trad. Boulanger,P.U.F.: por exemplo, a beHssima descrio;"ao a p. 159.

puls5es destruidoras e a investir por "simboliza<;ao" dosobjetos, interesses e atividades organizadas cada vez melhor.

As observa<;5es que propomos concernindo certos deta­Ihes do esquema kleiniano tern somente como objetivo des­tacar "orienta<;5es". Pois todo 0 tema das posi<;5es implicabern a ideia de orienta<;5es da vida psiquica e de pontoscardeais, de organiza<;5es desta vida segundo coordenadas edfrnens5es variaveis ou cambiantes, toda uma geografia, todaurna geometria das dimens5es vivas. Aparece primeiro quea posi<;ao paranoide-esquizoide confunde-se com 0 desenvol­vimento de uma profundidade oral-anal, profundidade semfundo. Tudo come<;a pelo abismo. Mas, a este respeito,neste dominio dos objetos parciais e dos peda<;os que povoama profundidade, nao estamos seguros de que 0 "born objeto"(0 born seio) possa ser considerado como introjetadotal como Q mau. Melanie Klein mostra ela propriaque a cisao do objeto em born e mau na introje<;ao duplica­-se por urn despeda<;amento ao qual 0 born objeto naoresiste, uma vez que nao estamos Dunea seguros de quenao esconda urn mau peda<;o. Bern mais, e mau por prin­cipio, isto e, a perseguir e perseguidor, tudo 0 que e peda<;o;s6 0 integra, 0 completo e born; mas, precisamente, aintroje<;ao nao deixa subsistir 0 integro 2. Eis por que, deurn lado, 0 equilibrio proprio a posi<;ao esquizoide, de outrolado sua rela<;ao com a posi<;ao depressiva ulterior naoparecem poder resultar da introje<;ao de urn born objetocomo tal e devem ser revisados. 0 que a posi<;ao esqui­zoide op5e aos maus objetos parciais introjetados e proje­tados, t6xicos e excremenciais, orais e anais, nao e urn bornobjeto mesma parcial, e antes urn organismo sem partes,urn corpo sem orgaos, sem boca e sem anus, tendo renun­ciado a toda introje<;ao ou proje<;ao e completo gra<;as aisso. 10 aqui que se forma a tensao do Id e do ego. 0que se op5e sao duas profundidades, a profundidade vaziaem que giram e explodem peda<;os e a profundidade plena- duas misturas, uma de fragmentos duros e solidos, quealtera; a outra liquida, fluida e perfeita, sem partes nemaltera<;ao, porque tern a propriedade de fundir e de soldar(todos os ossos em urn bloco de sangue). Nao pareceneste sentido que 0 tema uretral possa ser posto no mesmoplano que 0 tema anal; pois, se os excrementos sao sempreorgaos e peda90s, ora temidos como substancias toxicas, orautilizados como armas para esmigalhar ainda outros peda<;os,a urina, ao contrario, da testemunho de urn principio molha­do capaz de ligar todos os peda<;os e de superar 0 esmlga­Ihamento na profundidade plena de urn corpo agora sem

2. Cf. as observacOes de Melanie Klein neste sentido e suas referenciasa tese de W. Fairbain segundo a qual "no come90 56 0 objeto m.au c inter'na­lizado" (mas M. Klein recusa esta tese); Deooloppements de La psychanaly8e,1952, trad. Baranger, P.U.F., pp. 277-279.

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I

I

II.I

orgaos 3. E a~ .supor que 0 esquizofrenico, Com toda ah~guagem adqumda, regressa ate esta posi<;ao esquiwide,~o nos esp~ntamos de reencontrar na linguagem esquizofre­n:ca a dualidade e a complementaridade das palavras-pai­xoes, peda<;os excremenciais explodidos e palavras-a<;6esblo,:os soldados por Urn principio de iigua ou de fogo:Entao, tudo se passa em profundidade, sob 0 dominio dosentIdo, entre dois nao-sentidos do ruido puro, 0 nao-sen­tIdo do corpo e da palavra explodidos, 0 nao-sentido dobloco de. corpos ou de palavras inarticuladas _ 0 "isto naotem sentldo" como processo positivo dos dois lados Ames~a dua.lidade de polos complementares se reencontr~ naesqmzofrerua entre .as reitera<;6es e as persevera<;6es, porexemplo, entre os tnncamentos de maxilares e as catatoniasumas testemunhando dos objetos internos e do corpo qu~

despeda<;am e que os despeda<;am ao mesmo tempo osoutros mauifestando pelo corpo sem orgaos. '

S,e 0 born objeto nao e como tal introjetado, parece­-~os, e porque desde 0 come<;o pertence a urna outra dimen­sao; :E ele que tern uma outra "posi<;ao". 0 born objetoesta em altura, ele se mantem em altura e nao se deixacalr, sem mudar de natureza. Por altura nao se deveen.te.nder uma profundidade invertida, mas uma dimensaoongmal que se distingue pela natureza do objeto que aocupa como da instiincia que a percorre. 0 superego naoco:ne<;a com, os primeiros objetos introjetados, COmo dizMelame Klem, mas com este born objeto que permanecee~ .altura. Freud insistiu freqiientemente sobre a impor­tancla desta transla<;ao do profundo em alto, que marcaentre 0 Id eo.sup:rego toda uma mudan<;a de orienta<;aoe uma reorgamz~<;ao fundamental da vida psiquica. En­quanto a profundldade tern uma tensao interna determinadapelas categorias diniimicas de continente-conteudo vazio­-pleno, gordo-magro etc., a tensao propria a altura' e a daverticalidade, da diferen<;a dos tamanhos, do grande e dopeque~o. Por oposi<;ao aos objetos parciais introjetados,que ~ao expnmem a. agressividade da crian<;a sem exprimirtambern u~a agresslVldade contra ela e que sao maus, peri­gosos por ISSO mesmo, 0 born objeto como tal e urn objeto

anal 3. M~~anie Klein nao estabelece diferent;a de natureza entre 0 sadismonao ~s~abS:l:m°cfu~~tr~ e mantem seu principio segundo 0 qual "0 inconsciente

I e me 0 entre as diversas substAncias dos corpos ". Mais~~~:::e:t~e:uarece1;1-nos .que a. te?ria psic.analitica da esquizofrenia tinha ten­N6 . geoClar a lmportancla e 0 dmamismo do tema ct>Tpo Sem 6rgiios.MJ.a:· vKlo~ P7ciedentemente para Mme Pankow. Mas e ainda mats claro' emurn s;:bo d:- .. por exemplo, Db;eloppements de fa psychanalyse em queurn simples sice~e;a t ~e roupa abotoada ate 0 Pescol;o e interpretado comose'a de d gn e ec a~nto. Sem que 0 tema do corpo sem 6rgaos nelee~o Iis~d~s 0). Co~ efelto. 0 corpo sem 6rgaos e a especifi.cidade liquidapeda~osgem ur::. bSfo~d°aided que o,prindpio molhado assegura a soldadura dos

, n a que Osse um "bloco de mar'.

completo. Se manifesta a mais viva crueldade tanto quantoamor e prote<;ao, nao e sob urn aspecto parcial e dividido,mas enquanto objeto born e completo, cujas manifesta<;6esemanam de uma alta unidade superior. Em verdade, 0

bom objeto tomou sobre si os dois palos esquiwides, 0 dosobjetos parciais de que extrai a for<;a e 0 do corpo semorgaos de que extrai a forma, isto e, a completude ou aintegridade. Ele mantem pois rela<;6es complexas com 0

Id como reservatorio de objetos parciais (introjetados eprojetados em urn corpo despeda<;ado) e com 0 ego (comocorpo completo sem orgaos), Enquanto e 0 principio daposi,fio depressiva, 0 bom objeto nao sucede a posi<;aoesquiz6ide, mas se forma na corrente desta posi<;ao, comemprestimos, bloqueios e impulsos que dao testemunho deuma constante comuuica<;ao entre os dois. No limite, semduvida, 0 esquiz6ide pode refor<;ar a tensao de sua propriaposi<;ao para se fechar as revela<;6es da altura ou da verti­calidade. Mas, de qualquer maneira, 0 born objeto daaltura mantem uma luta com os objetos parciais, cujo ganhoe a for<;a em urn afrontamento violento das duas dimens6es.o corpo da crian<;a e como uma fossa cheia de animaisselvagens introjetados que se esfor<;am por tragar no ar 0

born objeto, 0 qual por sua vez se comporta diante delescomo uma ave de rapina sem piedade. Nesta situa<;ao, 0

ego se identifica de urn lado ao proprio born objeto, mode­la-se a partir dele em urn modelo de amor, participa aomesmo tempo de sua potencia e de seu odio contra osobjetos internos, mas tambem de seus ferimentos, de seusofrimento sob 0 golpe destes maus objetos 4. E, de outrolado, ele se identifica a estes maus objetos parciais quese esfor<;am por agarrar 0 bom objeto, ele lhes dii ajuda,alian<;a e mesmo piedade. Tal e 0 turbilhiio Id-ego-supe­rego, em que cada qual recebe tantos golpes quantosdistribui e que determina a posi<;ao maniaco-depressiva.Com rela<;ao ao ego, 0 born objeto enquanto superego exercetodo 0 seu odio na medida em que 0 ego e aliado dosobjetos introjetados. Mas !he dii ajuda e amor, na medidaem que 0 ego passa para sen lado e tenta a ele se identificar.

Que 0 amor e 0 odio nao remetam a objetos parciais,mas exprimam a unidade do born objeto completo, isto sedeve compreender em virtude da "posi<;ao" deste objeto, desua transcendencia em altura. Para alem de amar ou odiar,ajudar ou bater, ha "furtar-se", "retirar-se" na altura. 0born objeto e por natureza urn objeto perdido: isto e, ele

4. A divis1io ferido-indene nio se confunde com parcial-completo. masse apJica ao bom objeto completo da posi~lo depressiva: cE. Melanie Klein,Deceloppements de !a psychallalyse. p. 201. Nio nos espantaremos de queo superego seja "born" e, no entanto, cruel e tambem vulneravel etc.; Freudfalava ja de um superego bam. e consolador em rela~io com 0 humor. acrescen­tando que nos faltava muito a aprender sobre a ess&1cia do superego.

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nao se mostra e nao aparece desde a primeira vez senaacomo ja perdido, tendo sido perdido. Esta ai sua eminenteu~dade. E enquanto perdido que da seu amor aquele quenao pode encontra-Io pela primeira vez a nao ser como"reencontrado" (0 ego que se identifica Com ele) e seu6dio aquel~ que 0 agride como algo de "descoberto", masen9uant? ]a presente -:- 0 ego tomando 0 partido doso~!etos mternos.. Sobrevmdo no decorrer da posi9aO esqui­zolde, 0 bom ob]eto se pOe como preexistente, preexistentedesde sempre, nesta outra dimensao que interfere agora coma profundidade. Eis por que, mais alto do que 0 movi­mento pelo qual d~ amor e golpes, ha a essencia pela qual,na qnal, ele se retrra e nos frustra. Ele se relira sob seusferimentos, mas tambem no seu amor e em seu 6dio. Elen~o d~ seu a~or senao como devolvido, como perdoando,nao da seu 6dio senao como lembrando amea9as e adver­tencias que nao tiveram lugar. E pois a partir da frustra9aoque 0 bom objeto, como objeto perdido, distribui 0 amore 0 6dio. Se odeia e enquanto bom objeto, nao menosquanto ama. Se ama 0 ego que se identifica a ele seod~ia o. ego que se identifica aos objetos parciais, reti:a-semllIS lIInda, frustra 0 ego que hesita entre os dois eque suspeita de um duplo jogo. A frustra9ao, de acordocom ~ qual a primeira vez nao pode ser senao uma segunda~ez, e a fonte comum do amor e do 6dio. 0 bom objetoe cruel (crueldade do superego) na medida em que reunetodos estes momentos em um amor e um 6dio dados doalto, com uma instancia que se desvia e que nao apresentaseus dons senao como redistribuidos. Ap6s 0 pre-socra­tismo esquizofrenico vem, pois, 0 platonismo depressivo:o. B~m .nao e apreendido senap como objeto de uma remi­mscencJa, descoberto como essencialmente velado' 0 Umna<;> da seoao 0 que nao tern parque e superior a~ que dB.,retirado na sua altura; e da Ideia, Platao diz: "ela fogeou perece" - ela perece sob 0 golpe dos objetos internos,ma.s foge co~ rela9ao ao ego, pois que ela 0 precede,retrrando-se a medida que avan9a e nao !he deixandosenao um pouco de amor ou de 6dio. Tais sao, noso vimos, todas as caracteristicas do passado compostodepressivo.

. A posi9aO maniaco-depressiva determinada pelo bomobJeto apresenta, pois, todas as especies de caracteristicasn?~as, ao ~;.smo tempo em que se insere na posivao para­":Olde-esqUlzOlde. Este nao e mais 0 mundo profundo dosslIDulacros, mas 0 do idolo em altura. Nao sao mais meca­ni~mc;s d~ introje9ao e proje9ao, mas 0 da identifica9ao.Na0.e m~s. a mesma Spaltung ou divisao do ego. A divisao~sqUl.zofremca esta entre os objetos internos explosivos,mtro]etados e projetados, ou antes, 0 corpo despeda9ado por

estes objetos e 0 corpo sem orgaos e sem mecanismosdenunciando a proje9ao como a introje9ao. A divisaodepressiva esta entre os dois p610s da identifica9ao, a iden­tifica9ao do ego aos objetos internos e sua identifica9ao aoobjeto das alturas. Na posi9ao esquizofrenica, "parcial"qualifica objetos internos e opoe-se a "completo" que quali­fica 0 corpo sem orgaos reagindo contra estes objetos e 0despeda9amento a que 0 submetem. Na posi9ao depressiva,"completo" qualifica agora 0 objeto e subsume nao somenteindene e ferido, mas presente e ausente, como 0 duplo movi­mento pelo qual este objeto mais alto da para fora de sie se retira em si mesmo. E por isso que a experiencia dafrustra9ao, do bom objeto que se retira em si ou que estaessencialmente perdido, pertence a posi9ao depressiva. Coma posi9ao esqniz6ide, tudo e agressividade exercida ou sofridanos mecanismos de introje9ao e de proje9ao, tudo e paixaoe Ilfao na rela9ao tensa das partes despeda9adas e do corposem orgaos; tudo e comunica9ao dos corpos em profundi­dade, ataque e defesa. Nao ha Jugal para a priva9ao, paraa situa9ao frustrante. Esta aparece no curso da posi9aoesqnizoide, mas emana da outra posi9ao. Eis por que aposi9aO depressiva prepara-nos para alguma coisa que naoe nem Ilfao nem paixao, mas 0 impassivel retraimento. Eispor que tambem a posi9aO maniaco-depressiva pareceu-noster uma crueldade que se distingue da agressividadeparanoide-esqniz6ide. A crueldade implica todos estesmomentos de um amor e de um odio dados do alto, pOIurn bom objeto, mas objeto perdido que se retira e naofaz senao dar de novo 0 que da. 0 masoquismo pertencea posi9ao depressiva nao somente nos sofrimentos quesuporta, mas naqueles que gosta de distribuir por identi­fica9ao a crueldade do bom objeto como tal - enquantoque 0 sadismo depende da posi9ao esquizoide, nao somentenos sofrimentos que infIige, mas nos que se faz infligir porproje9ao e interioriza9ao de agressividade. De um outroponto de vista, vimos como 0 alcoolismo convinha a posi9aodepressiva, desempenhando ao mesmo tempo 0 papel domais alto objeto, de sua perda e da lei desta perda nopassado composto, substituindo enfim 0 principio molhadoda esquizofrenia nos seus presentes tragicos.

Entao aparece a primeira etapa da genese dinamica.A profundidade e ruidosa: os estalos, os estalidos, osrangidos, crepita90es, explosoes, os ruidos explodidos dosobjetos internos, mas tambem os gritos-sopros inarticuladosdo corpo sem orgaos que !hes correspondem, tudo isto formaum sistema sonoro testemunhando da voracidade oral-anal.E este sistema esquizoide e inseparave! da terrive! predi9ao:falar sera talhado em comer e em defecar, a linguagemsera ta!hada na merda, a linguagem e sua uuivocidade ...

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(Ar:aud fala do "coco do ser e de sua linguagem"). Mas,precIsame~te, .0 que assegura 0 primeiro esbo~o desta escul­tura, a l'nmeJra etapa de urna forma~ao da linguagem e 0

bolO obJeto da posi~ao depressiva em altura. Pois 6 eleque, de. todos os ruidos da profundidade, extra! uma Volo.Se conslder~mos os_caracteres do bolO objeto, de nao poderser. apreendldo s~?ao como perdido, de aparecer pela pri­melra vez como Ja presente etc., parece que estes caracteresse reunem ~ecessaria~en~e. em uni.a voz que fala e quevern do alto. ~reud mSlsti.a n~ ongem acustica do super­ego. Par~ a cnan~a, a pnmelra aproxima~ao da lfugua­gem. conslste realmente em apreende-la como 0 modelodaqmlo que se poe como preexistente, como remetendo atodo 0 dominio daquilo que ja se acha ai voz familiarque c~r.rega a tradi~ao, em que ja se trata da crian~a soba especle de seu nome e em que ela deve se inserir 'antes~es~o de compreender. De uma certa maneira, esta: vozdlspoe m~smo .de todas as dimensoes da linguagem organi­zada: pOlS deslgna 0 bolO objeto como tal ou ao contrmoos objetos introjetados; significa alguma c~isa a saber'todos os conceitos e classes que estruturam 0 dOmfnio d~preexistencia; e manifesta as varia~oes emocionais dapessoa completa (voz que ama e da seguran~a, que atacae repreende, que se lamenta por estar ferida, ou que seretJra e se cala). Mas a voz apresenta assim as dimensoesd~ urna lin,gu~g~m organizada sem poder tornar apreensivelamda ? J:rmclplO ?e organiza~ao segundo 0 qual ela seria,e.la propna, uma hnguagem. Assim, ficamos fora do sen­trdo e longe dele, desta vez em um pre-sentido das alturas:~ voz nao dispoe ainda da univocidade que dela faria umaImguagem e, nao tendo unidade senao por sua eminenciap~rmanece eng~stalhada na. e~,:ivo:idade de suas desigua~~oes, na analogla de suas slgmflca~oes, na ambivalencia desu~s manife~ta~oes~ Pois, em verdade, como ela designa 0

obJeto perdIdo, nao .s~ sabe 0 que ela designa; nao sesabe 0 q?e_el~ slg~flca, uma vez que significa a ordemdas preeXlstenclas; nao se sabe 0 que ela manifesta umavez q?e manifesta 0 retirar-se em seu principio ou 0 siiencio.Ela e ao m~smo tempo 0 objeto, a lei da perda e aperda. Ela e realmente a voz de Deus como superegoaq?ela que_proibe sem que saibamos 0 que e proibido;pOlS que nao a apreenderemos senao pela san~ao. Tal eo. pa~adoxo da voz (que marca, ao mesmo tempo, a insufi­ClenCla de tod~s as teorias da analogia e da eqnivocidade):ela :e~ as dimensoes de uma linguagem sem ter a suacondl~ao, ela espera 0 acontecimento que fara dela uma

na 5. Rob~ Pujol .?bse~a.•. DR teIminologia de Lacan: "0 ohjeto perdidothl pOde malS ser senao SIgnIficado e nao mais reencontrado " ("Approcheonque du fantasme". La Psychanalyse. nf,l 8, 1964. p. 15).···

linguagem. Ela deixou de ser urn ruido, mas nao e aindaurna linguagem. Pelo menos podemos medir 0 pro~esso dovocal sobre 0 oral, ou a originalidade desta voz depressivacom rela~ao ao sistema sonoro esqniroide. A voz nao seopoe menos aos ruidos quando ela os faz calar do quequando geme ela propria sob sua agressao ou faz silencio.A passagem do ruido a voz, nos a revivemos constantementeem soooo; as observadores notaram muito bern como osruldos chegando ao dormente se organizam em voz prestesa acorda-Io 6. Somos esquizofrenicos dormindo, mas ma­niaco-depressivos aproximando-nos do despertar. Quandoo esquiroide se defende contra a posi~ao depressiva, quandoo esquizofrenico regressa aquem, e que a voz nao amea~a

menos 0 corpo completo gra~as ao qual ele age do queos objetos internos de que padece. Como no caso do esqui­zofrenico estudante de linguas, a voz materna deve urgente­mente ser decomposta em ruidos foneticos literais e recom­posta em blocos inarticulados. Nao fazem senao urnos roubos do corpo, do pensamento e da palavra queexperimenta 0 esquizofrenico em seu enfrentamento daposi~ao depressiva. Nao e preciso perguntar se os ecos,constrangimentos e rcubos sao primeiros au somente segun­dos com rela~ao a fenomenos automaticos. E urn falsoproblema, pois 0 que e roubado ao esquizofrenico nao ea VOZ, e, ao contnirio, pela voz do alto, todo 0 sistemasonoro pre-vocal de que tinha sabido fazer seu "automatoespiritual".

6. Cf. Bergson, L'Energie spirituelle, P.U.F., pp. 101~102.

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vigeslma-unava ~erle:

Da Sexualidade

Parcial tem dois sentidos: designa primeiro 0 estadodos objetos introjetados e 0 estado correspondente das pul­soes que se prendem a estes objetos. Mas designa, poroutro lado, zonas eletivas do corpo e 0 estado das pulsoesque nelas encontram uma "fonte". Estas tern urn objetoque pode, mesmo ele, muito bem ser parcial: 0 seio ouo dedo para a zona oral, os excrementos para a zona anal.Os dois sentidos, entretanto, nao se confundem. Observou­-se freqiientemente que as duas nOl;oes psicanaliticas deestagio e de zona nao coincidiam. Um estagio caracteriza­-se por um tipo de atividade que assimila a si outras ativi­dades e realiza deste ou daquele modo urna mistura daspulsoes - assirn, a absor~ao no primeiro estagio oral, queassimila tambem 0 anus ou entao a excre~ao no estiigioanal que 0 prolonga e que recupera tambem a boca. Aocontnirio, as zonas representam um certa isolamento de urnterrit6rio, das atividades que 0 investem e das pulsoes quenele encontram agora uma fonte distinta. 0 objeto parcialde urn estagio e posta em peda~s pelas atividades as quaise submetido; 0 objeto parcial de urna zona e, antes, sepa­rado de um conjunto pelo territ6rio que ocupa e que 0

limita. Sem duvida, a organiza~ao das zonas e adosestagios se faz mais ou menos ao mesma tempo, uma vezque todas as posi~oes se elaboram no primeiro ana da vida,cada qual se encavalando sobre a que a precede e intervindono seu curso. Mas a diferen~a essencial e esta: as zonassao dados de superficie e sua organiza~ao implica a consti­tui~ao, a descoberta ou 0 investimento de uma terceiradimensao que niio e mais a profundidade nem a altura.Poder-se-ia dizer que 0 objeto de uma zona e "projetado",mas projec;ao nao significa mais urn mecanismo das profun-

BIBUOyrCI SCCm~L DE CllHtllS

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didades e indica agora uma opera9ao de superficie, sobreuma superficie.

Conforme a teoria freudiana das zonas er6genas e desua rela~ao com a perversao, define-se, pais, uma terceiraposi9ao, sexual-perversa, que funda sua autonomia na dimen­sao que the e pr6pria (a perversao sexual como distintada ascensao au conversao depressiva e da subversao esqui­zofrenica). As zonas er6genas sao recortadas na superficiedo corpo, em torno de orificios marcados por mucosas.Quando se observa que os 6rgaos internos podem se tornartarnbem zonas er6genas, parece que e somente sob a condi­9aO da topologia espontfmea do corpo segundo a qual comodizia Simondon a prop6sito das membranas, "todo ~ con­teudo do espa90 interior esta topologicamente em contactocom 0 conteudo do espa90 exterior nos limites do ser vivo" 1.

Nao basta nem mesmo dizer que as zonas er6genas saorecortadas na superficie. Esta nao lhes preexiste. Comefeito, cada zona e a forma9ao dinfunica de urn espa90 desuperficie em torno de urna singularidade constituida peloorificio e prolongavel em todas as dire90es ate a vizinhan9ade urna outra zona dependendo de uma outra singularidade.Nosso corpo sexuado e primeiro urn traje de Arlequim.Cada zona er6gena e pois inseparavel: de urn ou variospontos singulares; de urn desenvolvimento serial definidoem torno da singularidade; de urna pulsao investindo este

. territ6rio; de urn objeto parcial "projetado" sabre 0 terri­t6rio como objeto de satisfa9ao (imagem); de urn obser­vador ou de urn eu ligado ao territ6rio e experimentandoa satisfa9ao; de urn modo de concordilncia com as outraszonas. A superficie no seu conjunto e 0 produto destaconcordilncia e veremos como ela coloca problemas espe­cificos. Mas, justamente, porque 0 conjunto da superficienao preexiste, a sexualidade sob seu primeiro aspecto(pre-geuital) deve ser definida como urna verdadeira pro­dU9ao das superficies parciais e 0 auto-erotismo que lhecorresponde deve ser caracterizado pelo objeto de satisfa9aoprojetado sobre a superficie e pelo pequeno eu narcisicoque 0 contempla e com ele se regala.

Como se faz esta produ9ao, como se forma esta posi9aosexual? E precise evidentemente procurar seu principio nasposi90es precedentes e notadamente na rea9ao da posi9aodepressiva sobre a posi9ao esquiz6ide. A altura, com efeito,tern urn estranho poder de rea9ao sobre a profundidade.Parece que, do ponto de vista da altura, a profundi­dade gira, orienta-se de uma nova maneira e se estende:vista do alto pela ave de rapina ela nao e mais do queuma dobra mais ou menos facilmente desdobravel ou entao

1. SIMON DON, Gilbert. Op. cit. p. 263.

urn orificio local envolvido, cercado de superficie. Semduvida, a fixa9ao ou a regressao aposi9ao esquiz6ide impli~auma resistencia a posi9ao depressiva tal que a superficlenao podera se formar: cada zona e entao perfurada pormil orificios que a anulam ou, ao contrario, 0 corpo sem6rgaos se fecha sobre uma profundidade plena sem limitese sem exterioridade. Mais ainda, a posi9ao depressiva naoconstitui, certamente, ela propria, uma superficie; ela pre­cipita, antes, no orificio 0 imprudente que perto dele seaventurasse, como vemos no caso de Nietzsche que naodescobre a superficie do alto, de seis mil pes de alturasenao para ser engolido pelo orificio subsistente (cf. osepis6dios de aparencia maniaco-depressiva antes da crise dedemencia de Nietzsche). Resta que a altura torna possiveluma constitui9ao das superficies parciais, como os camposcoloridos se desdobram sob a asa do aviao - e que 0

superego, apesar de toda sua crueldade, nao deixa de tercomplacgncia para com a organiza~ao sexual das zonassuperficiais, na medida em que pode supor que as pulsoeslibidinosas ai se separam das pulsoes destruidoras dasprofundidades 2.

Certamente, as pulsoes sexuais ou libidinosas ja esta­yam traballiando nas profundidades. Mas 0 importante esaber qual era 0 estado de sua mistura, de urn lado comas pulsoes de conserva9ao, de outro com as pulsoes demorte. Ora, em profundidade, as pulsoes de conserva9aoque constituem 0 sistema alimentar (absor9ao e mes~o

excre9ao) tern de fate objetos reais e metas mas, em razaoda impotencia do recem-nascido, nao dispoem de meios parasatisfazer ou possuir 0 objeto real. Eis por que 0 quepodemos chamar de pulsoes sexuais se modela estreitamentesabre as puls5es de conserva<;ao, nao nasce senao porocasifio destas, substituindo aos objetos fora de. alcanceobjetos parciais introjetados e prajetados: ha estnta com­plementaridade das pulsoes sexuais e dos simulacras. Masentao a destrui9ao nao designa urn certo carater da rela9aocom 0 objeto real formado, ela qualifica todo 0 modo d.eforma9ao do objeto parcial interne (os peda90s) e a totali­dade da rela9ao com ele, pois que ele e ao mesmo tempodestruido e destruidor e serve para destruir 0 ego tantoquanto 0 outro, a tal pouto que destruir-ser .destruido ocu~atoda a sensibilidade interna. E neste senhdo que as trespulsoes se misturam em profundidade, em tais condi90es

2. J:: urn terna constante na obra de Melanie Klein: 0 superego rese:vaprimeiro sua repressao nao as puls6es libidinosas, mas somente as pulsoesdestruidoras que as acompanham (d., par ~eIDplo, La PSJI.chanalyse des en­fants, pp. 148-149). Eis por que a angUstia e a ~p.abilidade nao nas~mdas puls6es libidinosas, mesmo incestuosas,. mas pnmelfa~n~e das pulsoesdestroidoras e de sua repressao: "Nao senam as ~~nd~Clas Incestuos~ quedesencadeariam primeiramente 0 sentimento de culpabl1idade.; 0 temor d? mcestoresuttaria ele pr6prio, em definitivo, das puls6es destrwdoras assOCJadas demaneira permanente aos primeiros desejos incestuosos".

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que a conserva9ao fornece antes a pulsao, a sexualidade 0objeto substitutivo e a destrui9aO, a rela9aO inteira ~er­sivel. Mas precisamente, como a conserva9ao e, no fundo,amea9ada por este sistema em que ela entra, comer tornan­do-se ser comido, vemos todo 0 sistema se deslocar; e amorte se recupera como pulsao no corpo sem orgaos, aomesmo tempo que este corpo morto se conserva e se ali­menta eternamente e se faz sexualmente nascer de si mesmo.o mundo da profundidade oral-anal-uretral e 0 de urnamistura movel, que podemos verdadeiramente chamar semfondo, e que da testemunho de uma subversao perpetua.

Quando ligamos a sexualidade it constitui9aO das super­ficies ou das zonas, queremos pois dizer que as puisoeslibidinosas encontram a ocasiao de uma dupla libera9ao, aomenos aparente, que se exprime precisamente no auto­erotismo. De urn lado elas se destacam do modelo alimen­tar das puisoes de conserva9ao, pois que elas encontramnas zonas erogenas novas fontes e novos objetos nas imagensprojetadas sobre estas zonas: assim 0 ato de chupar quese distingue da suc9ao. Por outro lado, elas se liberamdo constrangimento das pulsoes destruidoras na medida emque se engajam no trabalho produtivo das superficies e nasnovas rela90es com estes novos objetos pelicuiares. E porisso que, ainda uma vez, e· tao importante distinguir porexemplo 0 estagio oral das profundidades e a zona oral dasuperffcie; 0 objeto parcial interno, introjetado e projetado(simulacro) ·e 0 objeto de superficie projetado sobre umazona segundo urn mecanismo diferente (imagem): depen­dendo a subversao das profundidades e a perversao insepa­ravel das superficies 3. Devemos pois, considerar a libido

3. 0 primeiro ponto - as puls5es sexuais 5e hberam das puls5es deconserva~ao ou de aliments9ao - e bern marcado por J. Laplanche e J. B.Pontalis: Vocabulaire de la psychanalyse, P.U.F., 1967, p. 43 (e "Fantasmaariginmo, fantasmas das origens, origem do fantasma", Temps Modernes,nQ 215, 1964, pp. 1866-1867). Mas nao basta de£inir esta liber~o dizendoque as puls6es de conserva~ao tern urn objeto exterior e que as puls6es sexuaisab~ndonam es!e objeto. eI? proveito de uma es~ie de "pr~nominal". Comefelto, as pulsoes sexuals hberadas tem realmente amda um obleto prOjetado emsuperf£cie: assim, 0 dedo chupado como proje~ao do seio (no limite, prOje"Aode u~a zona er6,gena sobre outra). 0 que Laplanche e Pontalis reconhecemperfeltamente. Mas,. sobretud.o, as puls5es sexuais, na medida em que espo­savam as pu1s6es alimentares em plofundidade, tinham ja objetes partieu1aresd.is~tos do ohjeto. dest3;s pulsoes: os ohjetos parciais internos. 0 que epreCISO sepalar e pOlS dOlS estados das puls6es sexuais, duas especies de' ohjetospara estas puls6es, dois mecanismos de proje~1i.o. E 0 que deve ser criticadoe uma n~ao como a de objeto alucinat6rio, que se aplica indistintamente aoobjeto interno, ao objeto perdido, ao objeto de superffcie.

De _oude a importincia de outro ponto - as pulsOes sexuais se h"beramdas pulsoes destruidoras. Melanie Klein insiste nisso oonstantemente. Hli emtoda a e:scola de M. Klein_uma tentativa justificada de deseu1par a se:malirladee de libeI~·la das pulsoes destruidoras as quais DaO esU. ligada senaoem plofunduiade. :£: neste sentido que a DO!Olio de crime sexual e discutidapar Paula Heimann em Developpements de La psychanalyse, p. 308. ];: bemverdade que a sexualidade e perversa, mas a perverslio se define antes detudo pelo papel das zonas er6genas parciais e de superficie. 0 "crime sexual"p~enee a um outro dominio, em que a sexualidade nao atua senao emmIstura d,; profundidade com as puls5es destruidoras (subversiio de pre£er8nciaa perversa~). Em todo caso nao se, deve confundir dais tipos de regressaobastante diferentes sob 0 tema muito geral de um retorno ao "pre~genital":

duplamente liberada como urna ve~dadeira energia sup;r­tidal. Nao podemos acreditar to~avia q~e as outras puisoestenham desaparecido e que elas nao contmuem seu trabalhoem profundidade ou sobretudo que nao encontrem urnaposi9ao original nO novO sistema. . . _

Ai ainda devemos fazer intervir 0 con]unto da posI9aosexual, com seus elementos sucessivos, mas que se :nca:valam tao bem uns nos outros que 0 precedente na? edeterminado senao por seu enfrentamento com 0 se~lI~teou sua prefigura9ao do seguinte. As zonas ou superfIcIeserogenas pre-genitais nao sao separaveis do problema desua concordancia. Ora, e certo que este acor~o se operade varias maneiras: por contigiiidade, na medida em quea serie que se desenvolve sobre ~a e prolongada em umaoutra serie; it distancia, na medida em que urna zo~a podeser redobrada ou projetada sobre outra e f?rn~cer a Imagemde que a outra se satisfaz; e sobretudo mdrret~mente: noestagio 'do espelho de Lacan. Resta ,!ue. a fun9a~ de mte­gra9ao direta e global ou de concordancIa geral ~ normal­mente atribuida it zona genital. }';, ela que deve hgar tOOasas outras zonas parciais, gral;as ao falo. Ora: a_este res­peito, 0 falo nao desempenha 0 papel de um org~~ m.as 0de imagem particular projetada sobre e~ta zona pnvl1egIa~a,tanto para a menina como para .0 ~enmo~ E q.u~ 0 orga?do penis ja tem toda uma histona. li~ada as p~SI90es esqw­zoide e depressiva. Como todo orgao, 0 pems conhece aaventura das profundidades em que e f<:ito em pe~a9OS,posto no corpo da mae e no corpo da .cnan9a, agredldo eagressor, assimilado a um peda90 de ahmento venenoso, aurn excremento explosivo; e ele nao conhece menos a aven­tura da altura onde, como orgao completo e bom, da amore san9ao, retirando-se ao mesmo tempo.para form~ apessoa inteira ou 0 orgao correspondente a voz, 15to e,. 0

idolo combinado dos dois pais. (Paralelamente, 0 COltOparental, primeiro interpretado como puro ruido, .furor. eagressao, torna-se uma voz organizada, mesmo .e InClUSIVe

em sua potencia de calar-se e de frus?,ar. a crl~9a). Ede todos estes pontos de vista que Melame Klem mostraque as posi90es esquizoide e dep~essiv~ for!'ecem os elemen­tos precoces do complexo de Edlpo; ,sto:,_qrn: a .passa~emdo mau penis para um bom e a condl9ao m~hspens~velpara 0 acesso aO complexo de Edipo em seu sentido estrltO,it organiza9aO genital e aos novos problemas correspon­dentes 4. Estes novos problemas, nos sabemos em que

par eJl:emplo, a regresslio a um estagio oral das profundidades e a regressio azona oral de guper£icie. I L

4 Sabre 0 mau e 0 bom plhiis. cf. Melanie Klein, par exemp 0, aPsycha'nalyse des enfa;nts, pp. 233,. 265. M: ~in assinaIa"bom ~!~;, q:n~complexo de :E:dipo impliea a posI~lio preliminar de um on;~"""". .como a liberar;i1o das puls5es lIbidinosas com rela~§'o as pulsOes destrotiV8S·

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consistem: organizar superficies e operar sua concordancia.Justamente, como as superficies implicam uma libera9ao daspuIsoes sexuais reIativamente as puIsoes alimentares e aspuIsoes destrnidoras, a crian9a pode acreditar que deixa aospais 0 alimento e a potencia e, em compensa9ao, esperarque 0 penis, como 6rgao bom e completo, vira se por e seprojetar sobre sua pr6pria zona genital, tornar-se 0 falo que"duplica" seu pr6prio 6rgao e Ihe permite ter rela90essexuais com a mae sem ofender 0 pal.

Pois e isto que e essencial: a precau9ao e a modestiada reivindica9ao edipiana, no ponto de partida. 0 falo,como imagem projetada sobre a zona genital nao e de formanenhuma urn instrumento agressivo de penetra9ao e de diIa­ceramento. Ao contrario, e urn instrumento de superficie,destinado a reparar os ferimentos que as puIsoes destrui­doras, os maus objetos internos e 0 penis das profundidadesfizeram suportar ao corpo materno e a tranqiiilizar 0 bornobjeto, a convence-Io a nao se desviar (os processos de"reparat;ao" sobre os quais insiste Melanie Klein nos pare­cern, neste sentido, pertencer a constitni9ao de uma super­ficie ela mesma reparadora). A angiistia e a cuIpabiIidadenao derivam do desejo edipiano de incesto; eIas se forma­fam bern antes, uma com a agressividade esquiz6ide, a autracom a frustra9ao depressiva. 0 desejo edipiano seria antesde natureza a conjura-Ias. Edipo e um her6i paei/leadardo tipo herculeo. :E 0 cicio tebano. :Edipo conjurou apotencia infernal das profundidades, conjurou a potenciaceleste das alturas e reivindica somente urn terceiro imperio,a superficie, nada alem da superficie - de onde sua con­vic9ao de nao ser faltoso e a certeza em que estava de tertudo organizado para escapar a predi9ao. Este ponto, quedeveria ser desenvolvido pela interpreta9ao do conjunto domito, encontra uma confirma9ao na natureza pr6pria dofaIo: este nao deve se introduzir, mas, tal como a relha doarado se destina a tenue camada tertiI da terra, eIe tra9auma linha no super/ieie. Esta linha, emanada da zonagenital, e a que Iiga todas as zonas er6genas entre si, logoassegura sua emenda ou sua dobra e faz de todas as super­ficies parciais uma s6 e mesma superficie sobre 0 corpo dacrian9a. Bern mais, ela e tida como devendo refazer umasuperficie para 0 corpo da pr6pria mae e fazer voltar 0 pai

"1: somente quando urn jovem acredita fortemente na bondade do 6tgao genitalmasculino, 0 de seu pai como 0 seu pr6prio. que eIe,. pode se perrnitir sentirsellS desejos genitais relativamente a sua mae ... , ele pede fazer face ao 6dioe a rivalidade que faz nascer nele 0 complexo de lMipo" (EssaJis de Psycha­nalyse, tcad. M. Dereida, Payot, p. 415). 6 que nio quer dizer, n6s 0 veremOs,que a posj~ao sexual e a situalraO edipiana nao comPortem suas ang\istias eseus perigos DOVOS; assim, um medo especifico da castra~ao. E se e verdadeque, DOS estl\.gios precoces de Mipo, 0 superego dirige antes de tudo suaseveridade contra as pulsoes destruidoras, "a defesa contra as pulsOes libidinosasfaz sua apari\i3.o nas ultimas fases" (La Psychanalyse des en/ants, pp. 148-149).

retirado. :E nesta fase fMica edipiana. que uma nitida cisaodos dois pais se opera, a mae assummdo 0 aspecto ~e urncorpo ferido por reparar e 0 pai, de urn ?om obJeto afazer voItar· mas sobretudo, e ai que a cnan9a perse~esobre seu ~r6prio' corpo a constitui9a? ~e. uma superflclee a integra9ao das zonas, gra9as ao prlVlIeglO bern fundadoda zona genital.

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v_ges_rna l'IUIICl ~~II~.

As Boas Intencoes saoForcosamente Punidas

£ preciso, pois, ima'ginar Edipo nao somente inocente,mas pleno de zelo e de boas inten~6es: Hercules segundo,que vai conhecer uma experiencia dolorosa semelhante. Maspor que suas boas inten~6es parecem se voltar contra ele?Primeiramente, em razlio da delicadeza do empreendimento,a fragilidade propria das superficies. Nunca estamosseguros de que as puls6es destruidoras, continuando a agirsob as puls6es sexuais, nao dirijam seu trabalho. 0 falocomo imagem na snperficie corre 0 risco, a cada instante,de ser recuperado pelo penis da profundidade ou 0 daaltura; e assim de ser castrado como falo, uma vez que 0

penis da profundidade e ele proprio devorante, castrante eo da altura e frustrante. Ha, pois, uma dupla" amea~a decastra~ao por regressao pre-edipiana (castra~ao-devora~ao,

castra~ao-priva~ao). E a linha tra~ada pelo falo corre 0

risco de se precipitar na profunda Spaltung; e 0 incesto,de voltar ao estado de um estripamento que seria tanto 0

da mae como 0 da crian~a, a uma mistura canibalesca emque 0 comedor e tambem comido. Em suma, a posi~ao

esquizoide e mesmo a posi~ao depressiva, a angUstia de umae a culpabilidade da outra, nao cessam de amea~ar 0 com­plexo de Edipo; como diz Melanie Klein, a angUstia e aculpabilidade nao nascem do empreendimento incestuoso,elas, antes, 0 impedem de se formar e 0 comprometemconstantemente.

Contudo, esta primeira resposta nao e suficiente. Poisa constitui~ao das superficies nao tem menos por principioe inten~ao separar as puls6es sexuais das pulsoes destrui­doras em profundidade e reencontra, a este respeito, umacomplacencia certa da parte do superego ou do bom objeto

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das alturas. Os perigos d ..pois tambe'm . d 0 empreend,mento edipiano devem, provIr eumaevl -. ,os riscos de confusao de . t 0 u9ao rnterna; bern mais'.. ,mIS ura Corporal i d 'pnmelra resposta nao ad " , nvoca os .pela

em fun9ao destes novos q~:m todo 0 seu sentido senaoempreendimento ed' . p Ig0S secretados pelo proprio

. Iplano. Em suma este dsanamente uma nova an ; ti ',. ;n~en fa neces-culpabilidade, uma nova ~~tr: ~ue Ihe e_propna, uma novaprecedentes _ e a I 9 0 que nao se reduz as duas"complexD de castra~ao~~: so~e~te conve~ 0 nome detui9ao das superficies e 0 :a~e ~9ao com ~d,po. A consti­significa sem perversidade ~IS rn<:cente, ~as inocente naorego abandona sua benev~lencf:ecI~o acredltar que 0 Supe­momento de ~dipo qua d pnmerra, par exemplo nosuperficies parciais ~re_ge':u~aif~ssamo~ da or./laniza9ao dasdancia genital sob 0 signo d fa

lsua prntegra!ao ou concor-

A ' . 0 a o. or que?superflcle tern uma im t A • • :

volvimento do ego' Fre d por ancla decIslva no desen-. , u 0 mostra bern qua d d"

sIstema percep~ao-consciencia e" .' n 0 IZ que 0que Se forma na superficie da bs~a 10Callza?0 ~a membranacomo termo do "n ". 0 a protoplaslllIca '. 0 egoarCISlsmo prima ''''. ,em profundidade na propria b I no, Jaz pnmeiramenteMas ele nao pode Con' 0 a o~ no corpo sem orgaos."auto-erotismo" com ~wstar u~~ mdependencia senao nopeq~enos "ego" que as ~a~~~: lCI~ parciais e t~dos osva9ao do ego esta no b " ntao, a verdaderra pro­Sua pr6pria concordanc1~0 lema da cO,:,cordancia, logo desuperficial 0 investe em ud, ,~uan~~ a hbldo como energiapOlleD 0 pressentiamos esta ~arclSISn;O ~ecundario". E, haficies e do proprio ego ~a sup ~:,~ordancla fMica das super­90es qUalificadas de edipianas:r !c~e; acomp,anha-~e de opera­A crian9a recebe 0 falo co . e IS 0 .que e precISo analisar.born penis ideal sobre a zo~~ um~t ':n~gem projetada pelodom (superinvestimento narcfsic~en~ a , e_se)u corpo. Estecomo a condi9ao pela ual e ar~ao , ela 0 recebeas suas outras zonas. qMasP~de oper~r a IDt~gra9ao de todasde produ9ao da superficie se s .que ~ao. reallza este trabalhomnito importantes p' "m rntro uZlr, alhures, mudan9asou 0 born objeto' da ~~~:aame~~e, el~ talha 0 idolo doadornados precedentemente . d paIs se achavam combi­cadas por Melanie Klei~' s~gun 0 formulas bern desta­dades compreendia um~ ul~r1'0 "dmaterno das profundi_objetos parciais internos' em so:;' '~'dade de penis comoaltura era, ao meSilla t~m 0 r~ t;I 0, 0 ~om objeto dac~mpleto, mae provida de Jrr: ~e~ls e s.elO c<:mo orgaoSelO. Agora, acreditamos nos p rus e p~ proVIdo de urndas duas disjun90es sub .d' a separa9ao se faz assim:

suml as pelo born objeto, indene-I . CE. Freud, P(I;f'a alhn do ',.

capitulo e essencial para uma teo' );'!ncJPW. de prazer. Cap. 4. Todo estena lopsiqu1ca das supeifides.

-ferido, presente-ausente, a crian9a come9a par extrair 0

"egativo e dele se serve para qualificar uma imagem demae e uma imagem de paL De urn lado, identifica a maeao corpo ferido como primeira dimensao do born objetocompleto (corpo ferido que nao se deve confundir com 0corpo explodido e despeda,ado da profundidade); e, poroutro lado, identifica 0 pai com a ultima dimensao, 0 bornobjeto como retirado na sua altura. E 0 corpo ferido damae, a crian9a pretende repara-Io com seu falo reparador,torna-Io indene, pretende refazer para este corpo uma super­ficie, ao mesmo tempo em que faz uma superficie para seuproprio corpo. E 0 objeto retirado, ela pretende faze-Iovoltar e torna-Io presente, com seu falo evocador.

Cada qual, no inconsciente, e 0 filho de divorciados,que souba em reparar a mae e fazer vir a pai, tira-Io deseu esconderijo: tal nos parece a base daquilo que Freudchamava de "romance familiar", que ligava ao complexode ~dipo" Jamais a crian9a teve melhores inten90es na suaconfian9a narcisica, jamais sentir-se-a tao boa e, longe delan9ar-se em urn empreendimento angustiante e cUlpavel,jamais nesta posi9ao acreditou-se tao proxima de conjurara ang6stia ou a culpabilidade das posi90es precedentes. ~

verdade que ela toma 0 lugar do pai e a mae como objetodo seu desejo incestuoso. Mas a rela9ao de incesto comoa de procura9ao nao implica aqui a violencia: nenhumestripamento nem usurpa9ao, mas ao contrario uma rela9aode superficie, urn processo de repara9ao e de evoca9ao emque 0 falo opera uma dobra na superficie. Nao enegre­cemos, nao endurecemos 0 complexo de ~dipo senao negii­genciando 0 horror dos estagios precedentes em que 0 piorse passou e esquecendo que a situa9ao edipiana nao e atin­gida a nao ser na medida em que as pulsoes libidinosaspuderam se destacar das pulsoes destruidoras. QuandoFreud observa que 0 homem normal nao e somente maisimoral do que cre, mas mais moral do que suspeita, istoe verdade antes de tudo com rela9ao ao complexo de~dipo.

~ipo e uma tragiSdia, mas e 0 caso de se dizer que sedeve imaginar 0 Mroi tragico alegre e inocente e partindocom 0 pe direito. 0 incesto com a mae por repara9ao, asubstitni9ao do pai por evoca9ao, nao sao somente boasinten90es (pois e com 0 complexo de :f:dipo que nasce ainten9ao, n09ao moral por excelencia). A titulo de inten­90es, sao os prolongamentos inseparaveis da atividade amais inocente aparentemente, aquela que consiste para acrian9a em se fazer uma superficie de conjunto de todas assuas superficies parciais, utilizando 0 falo projetado peloborn penis a partir do alto e fazendo beneficiar-se as imagensparentais desta proje9ao. ~dipo e hercUleo, porque eletambem, pacificador, quer constituir para si mesmo urn

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reinado de sen porte, reinado das superficies e da terra.Ele acreditou conjurar os monstros da profundidade e fazersuas aliadas as potencias do alto. E, inseparavel de seuempreendimento, ha reparar a mae e fazer vir 0 pai: 0verdadeiro complexo de 1':dipo.

Mas por que tudo acaba tao mal? Por que a novaanglistia e a nova culpabilidade como produzidas? Porque e que ja Hercules encontrava em Juno uma madrastacheia de odio, resistindo a toda oferta de repara~ao e emZeus um pai cada vez mais retirado, esquivando-se cadavez mais apos ter favorecido? Dir-se-ia que a empresa dassuperficies (a boa inten~ao, 0 reinado da terra) nao encon­tra somente urn inimigo esperado, vindo das profundidadesinfernais que se tratava de vencer, mas tambem urn inimigoinesperado, 0 da altura, 0 qual, contudo, tornava a empresapossivel e nao pode mais cauciona-Ia. 0 superego comoborn objeto se poe a condenar as pulsoes libidinosas nelasmesmas. Com efeito, no seu desejo de incesto-repara~ao,1':dipo viu. 0 que ele viu (a cisao uma vez feita) e queele nao devia ver e que 0 corpo ferido da mae nao 0 esomente pelos penis internos que contem, mas enquantocarecendo de penis em sua superficie, como corpo castrado.o falo enquanto imagem projetada, que dava uma for~anova ao penis da crian~a, designa, 30 contnlrio, uma faltana mae. Ora, esta descoberta amea~a essencialmente acrian~a; pois ela significa (do outro lado da cisao) queo penis e a propriedade do pai e que, ao pretender fazercom que ele volte, ao pretender torna-Io presente, a crian~atrai a essencia paterna que consistia no retraimento e quenao podia ser encontrada a nao ser como reencontrada,reencontrada na ausencia e no esquecimento, mas jamaisdada numa simples presen~a de "coisa" que dissiparia 0esquecimento 2. Torna-se, pais, verdadeiro, oeste momento,que desejando reparar a mae a crian~a castrou-a e estripou-ae, querendo fazer vir 0 pai, a crianc;a train-a, matou-a, trans­formou-o em cadaver. A castrac;ao, a morte por castrac;ao,torna-se entao 0 destino da crian~a, refletida pela mae nestaanglistia que a crian~a sente agora, infligida pelo pai nestacuipabilidade que suporta agora como signo de vingan~a.Toda a historia come~ava pelo falo como imagem projetadasobre a zona genital e que dava ao penis da crian~a a for~ade empreender. Mas tudo parece terminar Com a imagemque se dissipa e que provoca 0 desaparecimento do penisda crianga. A "perversidade" e 0 percurso das superficiese eis que se revela algo de falso neste percurso. A linhaque 0 falo tra~ava na superficie, atraves de todas as super-

2. Todas as grandes interpreta95es de :£:dipo integram necessariamenteelementos tornados de emprestimo das posi!;Oes precedentes, esquiz6ide e de­pressiva: assim, a insisWncia de HOlderlin DO retraimento au no desvio remetea uma posi9ao pre-edipina.

ficies parciais, nao e mais do qU,e 0 tra~ado, d~ castra~ao

em que 0 falo se dissipa ele propno. ': 0 pems com ele.Esta castra~ao, que merece com excluslVlda.de ,0. nome espe­cifico de "complexo", distingue-se em pnnclplO ~as duasoutras castra~oes, a da profundidade por devora~ao-abso!­

~ao, a da altura por priva~ao-frnstr~~ao. :e: uma castra~ao

por adsor~ao, fenomeno de superflcle: aSSlm, os venenossuperficiais, os venenos da tunica. e da pel.e que quelmamHercules, assim os venenos sobre Imagens amda que apenascontempladas, como estas cama~as .venenosas sobr,: urnespelho ou sobre urn qua?,o, qu.e msprram 0 teatro. ,:li.sabe­tano. Mas, justamente, e em vrrtude de sua especlfi~ldade

que esta castra~ao reencontra as duas outras e que, fenomenoda superficie, parece marcar seu malogro ou ,a. doen~a, 0bolor prematuro, a maneira pela qual ~ superhcJe apodreceprematuramente, cuja linha na superf!cle reen~ontra a ~ro­

funda Spa/tung e 0 incesto das superfl~les ~ lI?lstura :amba­lesca em profundidade - conforme a pnmelra razao queinvocavamos ha pOllCO. .

Contudo a hist6ria nao se detem ai. 0 Isolamenta,com 1':dipo, da categoria etica .de inten~ao ~ de u,ma Jmpor­tancia p'ositiva consideravel. A pnmeua vlsta,_ so ha ?,ega~·

tivo na boa inten~ao que acaba mal: a a~ao ~uenda e.como negada, suprimida pelo que e realmente felto; e damesma forma a a~ao realmente feita e denegada por aqueleque a fez e que recusa sua responsabilidade (~ao fui eu,eu nao quis isto, "matei sem saber"). .Mas sena ur.n erropensar a boa inten~ao e. s~a perverslda~e essenc!al noquadro de uma simples 0posl~ao de duas a~oes determma~as,

a que e querida e a que e feita. ~e urn lado: com .efelto:a a~ao querida e uma imagem de a~ao, uma a~ao proJetada,e nao falamos de urn projeto psicologico da vontade, masdo que 0 torna possivel, isto e, de urn mecanismo de proje­~ao ligado as superficies fisicas. E ~e~te sentIdo, q~e

podemos compreender 1':dipo como a trag,:dIa da Al'arenc:a.Longe de ser uma instancia das profundldades, a mten~ao

e 0 fenomeno de conjunto da superficie, 0 fenomeno quecorresponde adequadamente a concordan~ia das s~perficies

fisicas. A no~ao mesma de Imagem, apos ter deslguado 0objeto superficial de uma zona parcial, depois 0 falo pro)e­tado sobre a zona genital, depois as imagens parentalspeliculares saidas de uma cisao, desigua enfim a a~ao emgeral, que concerne a snperficie, nao tal ~ ~9ao particular,mas toda a,ao que se estende em superflcle e que podehabita-Ia (reparar e evocar, reparar a supe,!icie e !azer vira superficie). Mas, de outro lado, a a~ao e!etI~amente

feita nao e uma a~ao determinada que se op~na a .autra,nem uma paixao que seria 0 contragolpe da a~ao proJetada.1': alguma coisa que acontece, que representa por sua vez

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tudo 0 que pode acontecer, ou melhor ainda alguma coisaque ;esulta necessariamente das ~oes e das paixoes, masque e de uma antra natureza, nem ac;;ao nem paixao em simesma: acontecimento, puro acontecimento Eventum tan­tum (matar 0 pai e castrar a mile, ser cast;ado e morrer).:E 0 mes~o que dizer que a a~ilo feita nile e menos que aoutra proletada sobre uma superficie. So que se trata deuma outra superficie, metafisica ou transcendental. Dir-se­-ia que a a~ilo inteira projetou-se sobre uma dupla telauma constituida pela superficie sexual e fisica, a outra po;uma snperficie ja metafisica ou "cerebral". Em suma, ainten~ilo como categoria edipiana nile opoe em absoluto umaa~ilo determinad~ ~ uma outra, tal a~ilo querida a tal a~ilofelta. Ao contrano, ela toma 0 conjunto de toda a~ilopossivel e 0 divide em dois, projeta-o sobre duas telas edetermina cada lade conforme as exigencias necessarias decada tela: de urn lado, toda a imagem da a~ilo sobre urnasupe~ficie f{sica, em que a ac;;ao mesma aparece comoquenda e se encontra determinada sob as especies darepara~ilo e da evoca~ilo; de outro lado, todo 0 resultadoda a~ilo sobre uma superficie metafisica, em que a a~ilomesma aparece como produzida e nile querida, determinadasob as especies do assassinio e da castra~ilo. 0 celebremecanismo de "denega~ilo" (nilo foi 0 que eu quis ... ),com toda sua importfutcia para a forma~ilo do pensamento,deve entilo ser interpretado como exprimindo a passagem deuma superficie a outra.

E vamos ainda muito depressa. :E eV~dente que 0assassinio e a castra~ilo que resultam da a~ao concernemaos corpos, que nile constituem por si meSmos uma superficiemetafisica e nem mesmo Ihe pertencem. No entanto, estilono caminho,. uma vez lembrado que se trata de urn longocammho balizado de etapas. Com efeito, com a "feridanarcisica", ista e, quando a Iinha fcilica se transforma emtra~ado da castra~ilo, a libido que investia na superficie 0

ego do na!"cisism? secundfuio conhece, por sua vez, umatransmuta~ao particularmente importante: aquela que Freudchama dessexualiZa>fio, a energia dessexualizada parecendo­-Ihe ao mesmo tempo alimentar 0 instinto de morte eco~di~ionar 0 mecanismo do pensamento. Devemos, pois,atrlbwr aos temas da morte e da castra~ilo urn duplo valor:aquele que tem na persevera~ilo ou na liquida~ilo do com­ple~~ .de :Edipo e na organiza~ilo da sexualidade geuitaldefinitiva, tanto sobre sua superficie propria quanta nassuas. ;~Ia~oes com, as dimensoes precedentes (posi~oesesqwzOlde e depresslva); mas, iguahnente, 0 valor que elestomam como origem da energia dessexualizada e a maneiraoriginal pela qual esta energia os reinveste sobre sua novasuperficie metafisica ou de pensamento puro. Este segundo

processo - independente do outro e.m urna c~rt~ medida,pois que nile e diretamente proporclOnal ao eXlto ou aomalogro da liquida~ilo de :Edipo corresp.onde_ no seuprimeiro aspecto ao que chamamos de subl,ma>ao, e noseu segundo aspecto ao que chamamos de simbolfzar?o.Devemos, pois, admitir que as metamorfoses nile se dete~

com a transforma~ao da linha falica em tra~ado de castra~ao

sobre a superficie fisica ou corporal e que 0 tra~ado dacastragao corresponde, ele proprio, a uma fissura sobre umaoutra superficie metafisica incorporal que opera sua trans­muta~ao. Esta mudan~a coloca todo tipo de problemasrelativos it euergia dessexualizada que forma a nova super­ficie aos mecanismos mesmos da sublima~ao e da simboli­za~a~, ao destino do ego neste novo plano, enfim, ao duplopertencer do assassinio ou da castra~ao ao anhgo e .ao. novosistema". Esta fissura do pensamento na superffcle IDcor­poral, nela reconhecemos a linha pura do Aion ou 0 instint~de morte sob sua forma especulativa. Mas, lustamente, epreciso tomar ao pe da letra a ideia freudiana de que 0

instinto de morte e caso de especula~ao. Ao mesmo tempo,lembraremos que esta ultima metamorfose incorre ~os

mesmos perigos que as outras e talvez de uma manelraaiuda mais aguda: a fenda corre singularmente 0 risco dequebrar a superficie de que ela e, no entanto, _inseparavel,de ir se juntar ao simples tragado da castra~ao na outrasuperficie ou, pior ainda, de mergulhar na Spaltung dasprofundidades ou das alturas, levand? todos os destro~os ,desuperficie nesta debandada generahzada em que 0 flmreencontra 0 ponto de partida e 0 instinto de morte aspulsOes destruidoras sem fundo - segundo a confusao quevimos precedentemente entre as duas figuras da morte:ponto central de obscuridade que nao cessa de c?locar .0

problema das rela~oes do pensa,,:,"e~~ com a esqwzofre~la

e a depressao, com a Spaltung pSlcohca em geral e ta,mbe~a castrac;;ao neurotica, "pais teda vida, bern entendl~O, eurn processo de demoli~ao", inclusive a vida especulativa.

3. A teOria da energia dessexualiznda e esbo!>ada por Freud em 0 Ego- e ald, capitulo 4. Divergimos da exposi,,1io freudiana em dois ~onto~. ~e urn lado,Freud exprime-se freqiientemente como se a libido narcislca ~phcasse ~o

tal uma dessexualiza,,1io da energia. 0 que nuo pade ser mantido na medId.aem que 0 eu falic() do narcisismo secunda-rio disp6e ainda de rel~es objetaIscomo as irr.agens dos pais (reparar, fazer vir); entao, a ~essexualiza!tao nli?pode se produzir sen1io com 0 complexo de castra"ao defimdo na sua especl~

ficidade. De outro lado, Freud chama "neutra" esta energia dessexualizada;e1e entende cam isso que eIa 6 deslocavel e suscetivel ere passar de Erosa Tanatos. Mas, se e verdade que ela nlio se contenta em se juntar a Tanatosau instinto de marte, se e verdade que ela 0 constitui pelo menos sob afigura especulativa que ele toma na superfkie. "neutra" deve ter um outrosentido. que veremos nos paragrafos seguintes.

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I ngeslmi::l ~tH IC.

Do Fantasma

o fantasma tern tn,s caracteristicas principais. 19)Ble nao representa uma a,ao nem uma paixao, mas urnresultado de a,ao e de paixao, isto e, urn puro acontecimento.A questao: tais acontecimentos sao reais ou imaginarios?nao esta bern colocada. A distin,ao nao e entre 0 imagi­niirio e 0 real, mas entre 0 acontecimento como tal e 0

estado de coisas corporal que 0 provoca ou no qual seefetua. as acontecimentos sao efeitos (assim, 0 "efeito"castra,ao, 0 "efeito" assassinio do paL .. ). Mas, precisa­mente, enquanto efeitos eles devem ser ligados a causas naosomente end6genas, mas ex6genas, estados de coisas efetivos,a,oes realmente empreendidas, paixoes e contempla,oesrealmente efetuadas. Bis por que Freud tern razao demanter os direitos da realidade na produ,ao dos fantasmas,no momento mesmo em que reconbece estes como produtosque ultrapassam a realidade '. Seria completamente deplo­ravel esquecer ou fingir esquecer que as crian,as observamrealmente 0 corpo da mae, do pai e 0 coito parental, quesao realmente 0 objeto de empreendimentos de sedu,ao porparte do adulto, que sofrem amea,as de castra,ao precisase detalhadas etc. Nao sao tamMm os assassinios de pais,os incestos, os envenenamentos e estripamentos que faltamna hist6ria publica e privada. Resta que os fantasmas, nomomento em que sao efeitos e porque sao efeitos, diferemem natureza de suas causas reais. Falamos das causasend6genas (constitui,ao hereditiiria, heran,a filogenetica,evolu,ao interna da sexualidade, a,oes e paixoes introje­tadas) nao menos que causas ex6genas. E que 0 fantasma,a maneira do acontecimento que representa, e urn "atributonoemitico" que se distingue nao somente dos estados de

1. Cf. Freud, Cinq psychanalyses - L'Homme aux loups, 5.

I

I,I,

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coisas e de suas qualidades, mas do vivido psicologico ed,o~ c~mceitos logicos. Ele, pertence como tal a uma super­flcle Ideal sobre a qual e produzido como efeito e quetranscende 0 interior e 0 exterior, pais que ela tern Como

propriedade topologica 0 fato de colocar em contacto "seu"lado interior e "seu" lade exterior para desdobni-Ios emurn so lado. Eis por que 0 fantasma-acontecimento e sub­metido a dupla causalidade, remetendo de um lado as causasexternas e internas de que resulta em profundidade masde outro lado .a quase-causa que 0 "opera" na superficie eo faz comumcar com todas as outrcs acontecimentos­-fantasmas. Em duas ocasioes vimos como 0 Ingar estavapreparado para tais efeitos diferindo em natureza daquilode que resultam: uma primeira vez desde a posi9iio depres­s~va, quando a ca~sa se retira em altura e deixa 0 campolivre. ao ~esenvol.vlmento de uma superficie a vir; depoisna sltua9ao edlpJana, quando a inten9iio deixa 0 campolivre para um resultado de uma outra natureza, em que 0

falo desempenha 0 papel de quase-causa.N em ativos nem passivos, nem internos nem externos. .,'. ,

nem Imagmanos nem realS, as fantasmas tern realmente aimpassibilidade e a idealidade do acontecimento. Diantedesta impassibilidade, eles nos inspiram uma espera insupor­tavel, a espera daquilo que vai resuItar, daquilo que ja seacha em vias e niio acaba mais de resultar. E de que nosfala a psicanalise com a grande trindade, assassinio-incesto­-castra9iio, devora9iio-estripamento-adsor9iio - seniio deacontecimentos puros? Todos as acontecimentos em Urncomo no ferimento? Totem e Tabu e a grande teoria d~acontecimento e a psicamllise em geral a ciencia dos acon­tecimentos: com a condic;;ao de DaD se tratar 0 acontecimentoCOmo alguma coisa de que e precise procurar e isolar 0 sen­tido, pois que 0 acontecimento e 0 proprio sentido, na me­dlda em que se isola ou se distingue dos estados de coisasque 0 produzem e em que se efetua. Sobre os estados decoisas e sua profundidade, suas misturas, suas a90es e pai­xoes, a psicanalise lan9a a mais viva luz; mas para chegara emergencia daquilo que dai resulta, 0 acoutecimento deuma outra natureza, como efeito de superficie. Assim, qual­quer que seja a importancia das posi90es precedentes ou anecessidade de ligar sempre 0 acontecimento a snas causas,a psicanalise tem raziio de lembrar 0 papel de Edipo como"complexo nuclear" - formula da mesma importancia queo "micleo noematico" de Husserl. Pais e com Edipo queo acontecimento se destaca de suas causas em profundidade,se. estende na superficie e se prende a sua quase-causa doponto de vista de urna genese dinfunica. Crime perfeito,verdade eterna, esplendor real do acontecimento, dos quaiscada qual comunica com todos os outros nas variantes de

um so e mesmo fantasma: distinto de sua efetua9iio comodas causas que 0 produzem, fazendo valer esta eterna partede excesso com rela9iio a estas causas, esta parte de inaca­bade com rela9iio a suas efetua90es, sobrevoando seu pro­prio campo, fazendo-nos filhos dele mesmo. E se e bemnesta parte que a efetua9iio niio pode se cumprir, nem acausa produzir, que 0 acontecimento reside por inteiro, e aitambem que ele se oferece a contra-efetua9iio e que residenossa mais alta liberdade, pela qual nos 0 desenvolvemos eo levamos a seu termo, a sua transmutagao e tornamo-nossenhores, enfim, das efetua90es e das causas. Como cienciados acontecimentos puros, a psicamHise e tambem urna artedas contra-efetua90es, subIima90es e simboIiza90es.

29) A segunda caracteristica do fantasma e sua situa­9iio com rela9iio ao eu, ou antes a situa9iio do eu no pro­prio fantasma. E bem verdade que 0 fantasma encontraseu ponto de partida (ou seu autor) no eu falico do .narci:sismo secundario. Mas se 0 fantasma tem a propnedadede se voltar sobre seu autor, qual e 0 Ingar do eu nofantasma levando-se em conta 0 desenrolar ou 0 desenvol­vimento 'que dele siio inseparaveis? Laplanche e Pontaliscolocaram, particularmente, este problema em condi90estais que recusam de antemiio toda resposta facil: emborao eu possa aparecer no fantasma a tal ou tal momentocomo atuante, como sofrendo uma a9aO, como terceiroobservante, ele nao e nem ativo, nero passivo e nao sedeixa, em nenhum momento, fixar a um lugar, ainda quereversivel. 0 fantasma origimirio "caracterizar-se-ia poruma ausencia de subjetiva<;iio paralela a presen9a do sujeitona cena"; "toda reparti9iio do sujeito e do objeto se achaabolida", "0 sujeito nao visa 0 objeto ou seu signo, elefigura a si mesmo tomado na seqiiencia de imagens ... , erepresentado participando da cena sem que, nas formasmais proximas do fantasma originario, um lugar possa \heser atribuido". Estas observa90es tem duas vantagens: deurn lado elas sublinham que 0 fantasma niio e representa9iiode a9iio' nem de paixiio, mas pertence a um outro domiuio;de outro lado, mostram que, se 0 eu ai se dissipa, niiopode ser em virtude de algurna identidade dos contrarios,de urna inversiio em que 0 ativo tornar-se-ia passivo ­como isto acontece no devir das profundidades e na identi­dade infiuita que ele implica 2.

2. Cf. J. Laplanche e J. B. Pontalis, "Fantasme originaire, fantasme desorigines, origine du fantasme~, op. cit., pp. 1861-1868: "Urn pai seduz_ afilha, tal seria por exemplo a formula~ao resumida do fantasma. da sedu\;ao.A marca do processo primhio nao e aqui a aus&lcia de orgamza~ao, CO~()

se costuma dizer, mas este car~.ter particular da estrutura: eia e um oonanocom entradas mUltipIas, no qual nada diz que 0 sujeito encontranl de uma56 vez seu Iugar no termo filha; podemos v~lo fixar-se em pai au m.es~o

em seduZ:'. ~ isto alias 0 essencial de. etfliea que Laplanche e Pontahsdirigem a tese de S~san I~aacs ("Natureza e fun~ao do fantasma", em Dbe­Zoppements de la PsychQfl(llyse"): esta, modelando 0 fantasma sobre a pulslo,

I

!ij!

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Todavia, nao podemos seguir esses autores quandoprocuram este alem do ativo e do passivo em urn modelodo pronominal que faz ainda apelo ao eu e se relacionamesmo explicitamente a urn aquem auto-erotico. 0 valordo pronominal - punir-se em lugar de punir ou de serpunido, ou me!hor ainda, ver a si mesmo ao inves de ver ede ser visto - e realmente atestado por Freud, mas nao pa­rece uitrapassar 0 ponto de vista de uma identidade dosc?ntranos, sej~ por aprofundamento de urn deles, seja porSlntese dos dOiS. Que Freud tenha ficado preso a urn talponto de vista "hegeliano" nao e duvidoso como se ve nodominio da linguagem a proposito de u~a tese sobre aspalavras primitivas providas de urn sentido contraditorio 3.

Em verdade, 0 uitrapassamento do ativo e do passivo e ad!ssolu9aO do eu que !he corresponde, nao se fazem nadrre9aO de uma subjetividade infinita ou refletida. 0 queesta alem do ativo e do passivo nao e pronominal, mas 0

resuitado - resuitado de a90es e paixoes, 0 efeito de super­ficie ou 0 acontecimento. 0 que aparece no fantasma e 0

~ovime~to pelo qual 0 eu se abre a superficie e libera assmgulandades acosmieas, impessoais e pre-individuais queaprisionava. Ao pe da letra, ele as abandona como esporiose explode neste deslastre. E preciso interpretar a expressao".en~~a neut:a" neste sentido: neutro significa entao pre­-mdlVldual e lmpessoal, mas nao qualifica 0 estado de umaenergia que viria juntar-se a urn sem-fundo, remete, aocontrario, as singuiaridades liberadas do eu pelo ferimentonarcisico. Esta neutralidade, isto e, este movimento peloqual singularidades sao emitidas ou antes restituidas por urneu qu~ se dissolve ou se adsorve na superficie, pertenceessenclalmente ao fantasma: assim em "Uma criangaapanha" (ou ainda "Urn pal seduz a filha", segundo 0

exemplo invocado por Laplanche e Pontalis). Entao aindividualidade do eu se confunde com 0 acontecimento' doproprio fantasma; desde que 0 acontecimento representadono fantasma seja apreendido como urn outro individuo ouantes como uma serie de outros individuos pelos quais passa

?-B ao sujeito urn Ingar detenninado ativo, mesmo se 0 ativo vira passivo emversarnente. Ao que eles objetam: "Basta reconhecer no fantasma de incor­pora~ao a equivalenc.ia, de comer e ser comido? Enquanto is mantida a ideiade urn Iugar do SU)elto, ~esmo se este pode ai ser apassivado, estamos naestrutura do fantasma malS fundamental?"

3. Sobre 0 lal;'o da inversao dos contrarios e do retorno contra si e sobreo valor do pronominal a este respeito, cf. Freud "As pu1sOes e seus destinos"em Metapsychologie. ' ,

.. 0 texto de. Freud sobre os sentidos opostos nas palavras primitivQS foicnticado por Eml~e Benveniste ("Remarques sur la fonction du langage dans ladecouverte freudle!ille". probr£rm;s de Li~guistique genenale). Benvenistemostra que uma lIngua pade mUlto bem nao coI1li'ortar tal au tal categoria,mas nilo .!he da~ uma expressao .c0ntradit6ria. (Todavia, ao ler Benveniste,tem-se a Impress'aa de que uma lingua se confunde necessariamente com purasprocessos de ra~onalizal;'ao; a linguagem nao implica, no entanto, procedi­meatos. pa:rado~ls com. relal;'ao a sua organizao;:ilo manifesta, embora estesproce~entos nao se delxem de fonna nenhuma reduzir a identificao;:ao doscontd.rlOS?)

o eu dissolvido. 0 fantasma e, assim, inseparavel dos lancesde dados ou dos casos fortuitos que coloca em cena. Eas celebres transformaroes gramaticais (como as do presi­dente Schreber, ou as do sadismo ou do voyeurismo marcamcada vez assurnp90es de singularidades repartidas em disjun­90es, todas as comunieantes no acontecimento para cadacaso, todos os acontecimentos comunicando em urn comoos lances de dado em urn mesmo lan9ar. Reencontramosaqni a ilustra9aO de urn principio da distancia positiva, comas singuiaridades que a escalonam e de urn usn afirmativoda sintese disjuntiva (e nao sintese de contradi9aO).

39) Nao e urn acaso se 0 desenvolvimento inerenteao fantasma se exprirne em urn jogo de transforma90esgramaticais. 0 fantasma-acontecimento se distingue doestado de coisas correspondente, real ou possivel; 0 fantasmarepresenta 0 acontecimento segundo sua essencia, isto e,como urn atributo noematico distinto das a90es, paixoes equalidades do estado de coisas. Mas 0 fantasma representatambem 0 outro aspecto, nao menos essencial, segundo 0

qual 0 acontecirnento e 0 exprimivel de uma proposi9aO(0 que Freud marca dizendo que 0 material fantasmatico,por exemplo, na representa9aO do coito parental, esta emafinidade com as "imagens verbais"). Ai ainda, nao e queo fantasma seja dito ou significado; 0 acontecimento apre­senta tantas diferen9as com as proposi90es que 0 exprimemquanto com 0 estado de coisas ao qual sobrevem. Restaque nao existe fora de urna proposi9aO pelo menos possivel,mesmo se esta proposi9aO tern todos os caracteres de urnparadoxo ou de urn nao-senso; e que ele insiste em urnelemento particular da proposi9aO. Este elemento e 0 verbae 0 verbo no infinitivo. 0 fantasma e inseparavel doverbo infinitivo e da testemunho assim do acontecimentopuro. Mas, em virtude da rela9aO e do contacto complexosentre a expressao e 0 expresso, entre a interioridade doexprimente e a exterioridade do expresso, entre 0 verbo talcomo aparece na linguagem e tal como subsiste no ser,devemos conceber urn infinitivo que nao e tornado ainda nojogo das determina90es gramaticais, independente naosomente de toda pessoa, mas de todo tempo, de todo modoe de toda voz (ativa, passiva ou reflexiva): infinitivo neutropara 0 pura acontecimento, Distancia, Aion, que representao extraproposicional de todas as proposi90es possiveis ou 0

conjunto dos problemas e quest5es ontologieas que corres­pondem com a linguagem. E a partir deste infinitivo puronao determinado que se faz 0 engendramento das vozes, dosmodos, dos tempos e das pessoas, cada urn dos termosengendrados nas disjun90es representando no seio do fan­tasma urna combina9aO variave! de pontos singuiares e cons­truindo em torno destas singularidades urn caso de solU9aO

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para. 0 problema especificado - problema do nascimento,da dlfere~~a dos,sexos, da morte. .. Luce Irigaray, em urnbreve artigo, apos ter marcado a rela~ao essencial do fan­tasma Com 0 verba infinitivo, analisa exemplos de uma talgenese: urn infinitivo sendo determinado em urn fantasma(assim ''v!ver'',. ':absoryer", "dar") ela pergunta qual 0 tipode conexao sUJelto-obJeto, 0 tipo de conjun~ao ativo-pas­sivo, .0 ti!'o de disjun~ao afirma~ao-nega~ao, 0 tipo de tem­poraliza~ao de que cada urn destes verbos e capaz ("viver",por exemplo, tern urn sujeito, mas que nao e agente e naotern objeto diferenciado). Ela pode, pois, classificar estesverbos em uma ordem que vai do menos determinado aomais determinado, como se urn infinitivo geral supostamentepuro se especificasse progressivamente a partir da difereucia­~~o das rela~6es formais gramaticais 4. E assim que 0

Aion se povoa de acontecimentos ao nivel das singularidadesdistribuidas por sobre sua linha infinitiva. Tentamos mos­trar de uma maneira an:\loga que 0 verbo ia de urn infinitivopuro, aberto sobre uma questao como tal, a urn indicativopresente fechado sobre uma designa~ao de estado de coisasou casos de solu~ao: urn, abrindo e desdobrando 0 anel daproposi~ao, 0 outro fechando-o e entre os dois todas asvo~aliza~6es, as modaliza~6es, as temporaliza~6es, as perso­nahza~6es, com as transforma~6es proprias a cada casosegrmdo urn "perspectivismo" gramatical generalizado.

M.as, entao, uma tarefa mais simples se impoe, a dedeternnnar 0 ponto de nascimento do fantasma e a partirdai sua rela~ao real Com a linguagem. Esta questao enominal ou terminologica na medida em que concerne aoemprego da palavra fantasma. Mas ela empenha outrascoisas tambem, pois que fixa este emprego com rela~ao atal momento considerado capaz de torna-Io necessario nocurso da genese dinamica. Por exemplo, Susan Isaacs, emseguida a Melanie Klein, emprega ja a palavra fantasmapara indicar a rela~ao com os objetos internos introjetadose projetados na posi~ao esquizoide, em urn momenta emque as puls6es sexuais estao vinculadas as alimentares; eentao for~oso que os fantasmas nao tenham com a linguagemsenao mna rela~ao indireta e tardia e que, quando saoposteriormente verbalizados, isto OCorra sob as especies deformas gramaticais ja feitas 5. Laplanche e Pontalis fundamo fantasma com 0 auto-erotismo e 0 ligam ao momenta emque as pulsaes sexuais se destacam do modelo alimentar e

4. buG~Y, Luce. Du Fantasme et du Verbe. L'Arc. nQ 4. 1968.Uma _tal tenta~v8; deve evidentemente apoiar·se Duma genese lingiHstica dasre~a!roes gramaticals no verbo (voz. modo, tempo, pessoa). Como exemplos detalS g&1eses, lembr~emos a de Gustave Guillaume (£'poques et niveaux tem­P?1"els dans ~e systeme de la conjugaison fran~aise) e a de Damourette ePi~OD (Essq-I de grammai1'e fraTlfaise. t. V). Pichon, ele pr6prio, 5ubJ.inh,.1.vaa :unportincia de tais estudos para a patologia.

5. IsA.A.cs, Susan. Nature et fonction du phanta.s:rr.e. Developpementsde Ia psychanalyse p. 85 e s.

abandonam "todo objeto natural" (de onde a importanciaque atribuem ao pronominal e 0 sentido que dao as trans­forma~6es gramaticais como tais na posi~ao nao-Iocalizaveldo sujeito). Melanie Klein, enfim, faz uma observa~aoimportante, apesar de seu uso muito extensivo da p~lavrafantasma: OCOrre a ela freqiientemente dizer que 0 slmbo­lismo esta na base de todo fantasma e que 0 desenvolvi­mento da vida fantasmatica e impedido pela persistencia dasposi~6es esquizoide e depressiva. Precisamente, parece-nosqne 0 fantasma, propriamente falando, nao encontra suaorigem senao no eu do narcisismo secundario, com 0 feri­mento narcisico, com a neutraliza~ao, a simbolizac;ao e asublima~ao que se seguem. Neste sentido nao to somenteinseparavel das transforma~6es gramaticais, mas do infiuitivoneutro, como materia ideal destas transforma~6es. 0 fan­tasma e um fenameno de superficie, muito mais urn fena­meno que se forma em urn certo momento no desenvolvi­mento das superficies. Eis por que preferimos a palavrasimulacra para designar os objetos das profundidades (queja nao sao mais "objetos naturais"), assim como 0 devirque !hes corresponde e as invers6es que os caracterizam.Idola, para designar 0 objeto das alturas e suas aventuras.lmagem, para desiguar 0 que concerne as superficies parciaiscorporais, inclusive 0 problema iuicial de sua concordanciafalica (a boa inten~ao).

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Do Pensamento

Insistiu-se freqiientemente sobre a extrema mobilidadedo fantasma, sua capacidade de "passagem", um poucecomo os envelopes e as emana~5es epicurianas que percor­rem a atmosfera com agilidade. A esta capacidade se ligamdois tra,os fundamentais: de um lado, que ele franqueietao facilmente a distilncia entre sistemas psiquicos, indo daconsciencia ao inconsciente e inversamente, do sonhaootorno ao devaneio diurno, do interior ao exterior e inver­samente, como se pertencesse a uma superficie que dominae articula 0 inconsciente e 0 consciente, a uma linha quereline e distribui sobre duas faces 0 interior e 0 exterior;de outro lado, que se volte tao bem sobre sua propria origeme que, como "fantasma origimlrio", integre Hio bern a origemdo fantasma (isto e, urna questao, a origem do nascimento,da sexualidade, da diferen,a dos sexos, da morte ... ) '. :E:que ele e inseparavel de um deslocamento, de um desen­rolar, de um desenvolvimento no qual arrasta sua propriaorigem; e nosso problema precedente; "aode come9a 0

fantasma, propriamente falando", implica ja 0 outro pro­blema, "em que dire,ao vai 0 fantasma, para onde carregaseu come~o". Nada e finalizado como 0 fantasma, nadase finaliza tanto.

o come,o do fantasma, tentamos determina-lo comosendo 0 ferimento narcisico ou 0 tra,ado da castra,ao. Comefeito, conforme a natureza do acontecimento, e at queaparoce urn resultado da a~ao completamente diferente dapropria a,ao. A inten,ao (edipiana) era reparar, fazer vire colocar em acordo suas proprias superficies fisicas; mastudo isso pertencia ainda ao dominio das Imagens, com a

1. Cf. Laplanche e Pontalis, "Fantasme originaire ..." p. 1853; Voca­bulaire de kz PSlJchanalyse. pp. 158-159.

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libido narCISlca e 0 falo como proJe9ao de superficie. 0resultado e castrar a mae e ser castrado, matar 0 pai e sermorto, com transforma9ao da linba fMica em tra9ado dacastra9ao e dissipa9ao correspondente de todas as imagens(a mae-mundo, 0 pai-deus, 0 eu-falo). Mas se fazemos,assim, come9ar 0 fantasma a partir de urn tal resultado, eclaro que este exige para se desenvolver uma superficie deurn outro tipo que a superficie corporal em que as imageusse desenvolviam segundo sua lei propria (das zonas parciaisa concordancia genital). 0 resultado nao se desenvolvenisenao sobre uma segunda tela; logo, 0 come90 do fantasmanao tera seqUencia senao alhures. 0 tra9ado da castra9aonao constitui, nao desenha por si mesmo este alhures ouesta outra superficie: ele concerne sempre apenas a super­ficie fisica do corpo e nao parece desqualifica-Ia senao emproveito das profundidades e das alturas que conjurava. Eo mesmo que dizer que 0 come90 esta verdadeiramente novazio, suspenso no vazio. Ele e without. A situa9aoparadoxal do come90, aqui, e que ele e em si mesmo urnresultado, de um lado, e de outro, permanece exterior aoque faz come9ar. Esta situa9ao seria sem saida se acastra9ao nao mudasse ao mesmo tempo a libido narcisicaem energia dessexualizada. E esta energia neutra ou desse­xualizada que constitui a segunda tela, superficie cerebralou metafisica em que 0 fantasma vai se desenvolver,re-come9ar de urn come90 que 0 acompanha agora a cadapasso, correr ate sua propria finalidade, representar osacontecimentos puros que sao como urn so e mesmo Resul­tado no segundo grau.

Ha, pois, urn saito. 0 tra9ado da castra9ao comosuIco mortal torna-se esta fenda do pensamento, que marcasem duvida a impotencia em pensar, mas tambem a linbae 0 ponto a partir dos quais 0 pensamento investe sua novasuperficie. E, precisamente porque a castra9ao esta comoentre as duas superficies, ela nao sofre esta transmuta9aosem carregar tambem a metade a que pertence, sem abaixarde alguma forma ou projetar toda a superficie corporal dasexualidade sobre a superficie metafisica do peusamento.A formula do fautasma e: do casal sexuado ao pensamentopor intermedio de uma castra9ao. Se e verdade que 0 pensa­dor das profundidades e celibatario e 0 pensador depressivosonba com nupcias perdidas, 0 pensador das superficies ecasado ou pensa 0 "problema" do casal. Ninguem tantocomo KIossowski soube destacar este encaminhamento dofantasma, porque e 0 de toda sua obra. Em termosbizarros em aparencia, KIossowski diz que seu problema esaber como urn casal pode se "projetar" independentementede crian9as, como podemos passar do casal ao pensamentoerigido em casal em uma comedia mental, da diferen9a

sexual adiferen9a de intensidade constitutiva do pensamento,intensidade primeira que marca para 0 pensamento 0 pontozero de sua energia, mas a partir do qual tambem ela investea nova superficie 2. Sempre extrair 0 pen~a?,ento de umcasal, pela castra9ao, para operar uma especle de acasal~­mento, do pensamento pela fenda. E 0 casal de KIossowskl,Roberte-Octave, tern seu correspondente de uma outramaneira no casal de Lowry e no casal Ultimo de Fitzgerald,a esquizofrenica e 0 aIcoolatra. E que nao ,apenas 0 con­junto da superficie sexual, partes e todo, e levado a seprojetar sobre a superficie metafisic~ de pensamento, mastambem a profundidade e seus obJetos, a altura e seusfenomenos. 0 fantasma se volta sobre seu come90 queIhe permanecia exterior (castra9ao); ~as como es.te come90ele proprio resulta, ele se volta tambem p:u;a. aquilo de (jueo come90 resulta (sexualidade das superflcl~s corporals);enfim cada vez mais ele se volta sobre a ongem absolutade on'de tudo precede (as profundidades). Dir-se-ia agoraque tudo, sexualidade, oralidade,. analidade: recebe umanova forma sobre a nova superflcle, que nao recupera enao integra somente as imagens, mas mesmo as {dolos,mesmo os simulacros.

Mas que significa recuperar, integrar? Chamavam?sde sublima9ao a opera9ao pela qual 0 tra9ado da castra9aotorna-se linba do pensamento, logo tambem a opera9ao pelaqual a superficie sexual e 0 resto s~ proj~t~ na superfi':.iedo pensamento. Chamavamos de slmbolIza9a~ a opera9aopela qual 0 pensamento reinveste com sua propria energlatudo 0 que acontece e se projeta s?bre s~a superfici~. 0simbolo nao e evidentemente menos Iffedutlvel que 0 S1mbo­lizado, a sublima9ao nao e menOs irrerlutivel que 0 subli­mado. Ha muito tempo que nao ha nada de estranbo emuma rela91io suposta entre 0 ferimento da castra91io e afenda constitutiva do pensamento; entre a sexualidade e 0pensamento como tal. Nada de estranbo (nem de triste)nos caminbos obsessivos pelos quais passa urn pensador.Nao se trata de causalidade, mas de geografia e detopologia. Isto nao quer dizer que 0 pensamento pensa nasexualidade, nem 0 pensador no casamento. E 0 pensa­mento que e a metamorfose do sexo, 0 pensador ametamorfose do casal. Do casal ao pensamento, mas 0pensamento reinveste 0 casal como diade e acas~lamento.

Da castra9ao ao pensamento, mas o. pensamento remvest~ acastra9ao como fissura cerebral, linba abstrata. PrecIsa­mente, 0 fantasma vai do figurativo ao ?bstrato: ele come9apelo figurativo, mas deve prosse~!r no .abstrato. 0fantasma e 0 processo de constitUl9ao do mcorporaI, a

2. KLoSSOWSKI. Pierre. Pre£acio e Posfa-do as LoiS de l'hospitaZite.Cp. cit.

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maquina para extrair um pouco de pensamento, repartirurna diferen,a de potencial nas bordas da fissura, parapolarizar 0 campo cerebral. Ao mesmo tempo em que sevolta sobre seu come,o exterior (a castra,ao mortal), eleDaD cessa de recomec;ar sen come90 interior (0 movimentoda dessexualiza,ao). 1'; nisso que 0 fantasma tem a pro­priedade de colocar em contacto 0 exterior e 0 interior e dereuni-Ios em um s6 lado. Eis por que e 0 Jugal do eternoretorno. Ele DaD cessa de mimetizar 0 nascimento de urnpensamento, de recome,ar a dessexualiza,ao, a sublima,ao,a simboliza,ao tomadas ao vivo, operando este nascimento.E, sem este recomec;o intrinseco, eIe DaD integraria sen Dutrocomec;o. E, sem este recomel;o intrfnseco, ele DaD inte­graria seu outro come,o, extrinseco. 0 risco evidentementee 0 de que 0 fantasma recaia sobre 0 mais pobre pensa­meuto, puerilidade e retorno insistente de um devaneiodiurno "sobre" a sexualidade, cada vez que perde seuimpulso e malogra no saito, isto e, cada vez que recai noentre-duas superficies. Mas 0 caminho de gl6ria do fan­tasma e aquele que Proust indicava, da questao "esposareiAlbertina?" ao problema da obra de arte por fazer ­operar 0 acasalamento especulativo a partir de urn casalsexuado, refazer 0 caminho da cria,ao divina. Por que agloria? Em que consiste a metamorfose quando 0 pensa­mento investe (ou reinveste) de sua energia dessexuaIizada,o que se projeta sobre sua superficie? 1'; que ele 0 faz,entao, sob as especies do Acontecimento: com esta partedo acontecimento que e preciso chamar de inefetu3.vel,precisamente porque e pensamento, nao pode ser reaIizadoa nao ser por ele e nao se realiza senao nele. Entaoelevam-se agressoes e voracidades que ultrapassam tudo 0

que se passava no fundo dos corpos; desejos, amores,acasalamentos e copula,oes, inten,oes que ultrapassam tudoo que acontecia na superficie dos corpos; e impotencias emortes que ultrapassam tudo 0 que podia sobrevir. Esplen­dor incorporal do acontecimento como entidade que sedirige ao pensamento e que somente ele pode investir,Extra-ser.

Fizemos como se fosse possivel falar de acontecimentoassim que um resultado se destacava, se distinguia das a,o.ese paixoes de que resultava, dos corpos em que se efetuava.Isto nao e exato: e precise esperar pela segunda tela, asuperficie metafisica. Antes nao ha senao simulacros,idolos, imagens, mas nao fantasmas como representa,oes deacontecimentos. Os acontecimentos puros sao resultados,mas resultados de segundo grau. 1'; verdade que 0 fantasmareintegra, retoma tudo na retomada de seu pr6prio movi­mento. Mas tudo mudou. Nao que os alimentos setenham tornado alimentos espirituais, as copula,oes gestos

do espirito. Mas cada vez se destacou um verbo orgulhosoe brilhante distinto das coisas e dos corpos, dos estados decoisas e de'suas qualidades, de suas a,oes e de suas paixoes:como 0 verdejar distinto da arvore e de seu verde, ul;'comer (ser comido) distinto dos ali~e~tos e de suas quah­dades consumiveis, um acasalar-se dlstmto dos corpos e desens sexes _ verdades eternas. Em suma, a metamorfosee 0 isolamento da entidade nao existente para cada estadode coisas 0 infinitivo para cada corpo e qualidade, cadasujeito e'predicado, cada a,ao e paixao. A meta~orfose(sublima,ao e simboIiza,ao) conslste para cada COisa noisolamento de urn aliquid que e ao mesmo tempo 0 seuatributo noenuitico e 0 exprimivel n.oeticoJ eterna verdade~sentido que sobrevoa e plana por Clma dos corpos. 1'; alsomente que morrer e matar, castrar e ser castrado: rep,afare fazer vir, ferir e retirar, devorar e ser devorado, mtroJetare projetar, tarnam-se acontecimentos puros, so~re. ~ .super­ficie metafisica que os transforma, onde seu mflrntlvo seextrai. E,todos os acontecimentos, tooos os verbos, todosestes exprimiveis-atributos comunicam em um. nesta extra­,ao para uma mesma linguagem que os expnme, sob urnme;mo "ser" em que sao pensados. E, do mesmo modocomo 0 fantasma retoma tudo neste novo plano do a~onte­cimento puro, nesta parte simb6lica e sublimada do. ~nefe­tuavel ele retira tambem desta parte a for,a para d1Tlgir aefetua~ao, para duplica-Ia, para c~nduzir : sua. contra­-efetua,ao concreta. Pois 0 aconteclmento nao se Illscrevebem na carne, nos corpos, com a vontade e a Iiberdade queconvem ao paciente pensador senao ~m ~irtude .da, I?arteincorporal que contem 0 seu segredo, 18tO e, 0 prmClplo, averdade e finalidade, a quase-causa.

A castra,ao tern pois uma situa,ao muito particnl~rentre aqniIo de que resulta e 0, que faz. come,ar. Mas ~~oe somente a castrac;ao que esta no vazlo, entre a 8uperflclecorporal da sexualidade e a superficie met~f.isica do pensa~mento. Da mesma forma e toda a superflcle sexual qu~.eintermediaria entre a profundidade fisica e a superflclemetafisica. Em uma dire,ao a sexualidade pode tudoabater: a castra,ao reage sobre a superficie sexual de ondeela resulta e 1i qual pertence ainda por seu tra,ado; elaquebra esta superficie, fa-Ia alcan,ar ?S p~da,os da prof.un­didade, bern mais, impede toda subhma,'~o bern sucedlda,todo desenvolvimento da superficie metaflslca e faz com quea fissura incorporal se efetue no mais profundo dos corpos,se confunda com a Spaltung das profundidades e que 0

pensamento se desmorone em seu pont? d: impotenci~, nasua linha de erosao. Mas na outra dire,ao a sexuahdadepode tndo projetar: a castra,ao prefigura a su~rficlemetafisica que faz comec;ar e 1i qual ela pertence Ja pela

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energia dessexualizada que desprende; ela projeta naosomente a dimensao sexual, mas as outras dimensoes daprofundidade e da altura sobre esta nova superficie em quese inscrevem as formas de sua metamorfose. A primeiradiregao deve ser determinada como a da psicose, a segundacomo a da sublirnagao bern sucedida; e entre as duas todaa neurose, no carater ambiguo de :edipo e da castragao.o mesmo se da com a morte: 0 eu narcisico oIha-a de doislados, segundo as duas figuras descritas por Blanchot - amorte pessoal e presente, que dilacera e "contradiz" 0 eu,abandona-o as pulsoes destruidoras das profundidades tantoquanto aos golpes do exterior; mas tambem a morte irnpes­soal e infinitiva, que "distancia" 0 ell, fa-l0 largar assingularidades que retinha, eleva-o ao instinto de morlesabre a autra superficie em que "se" morre, em que naose cessa e nao se acaba mais de morrer. Toda a vidabiopsiquica e uma questao de dimensoes, de projegoes, deeixos, de rotagoes, de dobras. Em que sentido, em qualsentido iremos? De que lado tudo vai pender, dobrar-seou desdobrar-se? Ja sobre a superficie sexual as zonaserogenas do corpo entram em combate, combate que a zonagenital deveria arbitrar, pacificar. Mas ela e em si mesmao lugar de passagem de urn mais vasto combate, na escaladas especies e da hurnanidade inteira: 0 da boca e docerebra. A boca, nao somente como uma zona oralsuperficial, mas como 0 orgao das profundidades, comoboca-anus cloaca introjetando e projetando todos os pedagos;o cerebro niio somente como orgao corporal, mas comoindutor de urna outra superficie invisivel, incorporal, meta­fisica onde todos os acontecimentos se inscrevem e sirnbo­Iizam 3. :e entre esta boca e este cerebro que tudo sepassa, hesita e se orienta. Somente a vit6ria do cerebra,se ela se produz, Iibera a boca para falar, Iibera-a dosalimentos excremenciais e das vozes retiradas e a nutre urnavez com todas as palavras possiveis.

3. Edmond Perrier e que, em urna perspectiva evolucionista, fazia umateoria bastante bela sabre 0 "conflito entre a boca e 0 cerebra"; mostravacomo 0 desenvolvimento do sistema nervoso nos vertebrados leva a extremidadecerebral a tomar 0 lugal! que a boca oeupa nos vermes anelados. Ele elaboravao conceito de atitude para dar conta destas orientaQ5es, destas mudan9l1S deposi~ao e de dimensao. Servia-se de um metodo herdado de GeoffroY Saint-Hi­laire, 0 das dobras ideais, que combinava de maneira complexa 0 espa.co e 0tempo. Cf. "L'Origine des embranchements du regne animal". Scientia, maio de1918. A teoria biol6gica do cerebro sempre levou em CODta seu carMer essencial­mente superficial (origem ectodermica,.natureza e fun~a(ll de supedicie). Freudrecorda-o. e dai tiragra;nd~ partido em AUm do Princ£lpio de praze" Cap. 4.As pesqUlsas modernas mSlstem sobre a rela~ao das areas e proje~ao corticaisc?m urn esp~o topoI6gi~: "A projeglio converte de fato um espago eucli­dlano em espat;O topoI6gJ.t:O, tanto que 0 c6rtex ILlio pade ser representadoadequadamente de maneira eucJidiana. A rill;or, nao deveriamos falar deprojegao para 0 c6:tex, embora haja no sentido geometrico do termo projegaopara pequenas regJ.oes; deveriamos dizer: converslio do espago eucIidiano emespaco topo16gjco", urn sistema mediato de relacoes restituindo as estruturaseuclidianas (Simondon, op. cit1> p. 262). :£: neste sentido que falamos de?ma _converslio da superficie fisica em superficie metaffsica, au de umaIndugao desta por aquela. Podemos entlio identificar superffcie cerebral esuperffcie metafisica; trata-se menos de materializar a superficie metafisica doque seguir a projegiio, a (lODversio, a indusia do pr6prio cerebro.

Trigesima Segunda Serie:Sabre as DiferentesEspecies de Series

Melanie Klein observa que entre os sintomas e assublimag6es deve haver uma serie intermediaria que corres­ponda aos casos de sublimat;iio menos bem sucedida. Mase toda l\ sexualidade que, ja de si mesma, e uma sublimagao"menos bem sucedida": ela e intermediaria entre os sinto­mas de profundidade corporal e as sublimagoes de superficieincorporal e se organiza em series precisamente oeste estadode intermediario, sobre sua propria superficie intermediaria.A propria profundidade nao se organiza em series; 0 despe­dagamento de seus objetos disto a impede no vazio, tantoquanta a plenitude indiferenciada do corpo que ela opoe aosobjetos em pedagos. De urn lado, ela apresenta blocos decoexistencia, corpos sem 6rgaos ou palavras sem articulac;ao;de outro, sequencias de objetos parciais que nao saoIigados entre si a nao ser pela comurn propriedade deserem destacaveis e despedac;aveis, introjetaveis e projetaveis,de explodir e de fazer explodir (assim, a celebre sequenciaseio-alimentos-excrementos-penis-crianga). Estes dois aspec­tos, sequencia e bloco, representam as formas que tomamrespectivamente 0 deslocamento e a condensagao em pro­fundidade na posigiio esquizoide. :e com a sexualidade,isto e, com 0 isolamento das pulsoes sexuais, que comegaa serie, porque a forma serial e uma organizagao desuperficie.

Ora, nos diferentes momentos da sexualidade queconsideramos precedentemente, devemos distinguir especiesde series bastante diferentes. Em primeiro lugar, as zonaserogenas na sexualidade pre-genital: cada uma se organizaem uma serie, que converge em torno de uma singularidaderepresentada 0 mais frequentemente pelo orificio envolvidode mucosa. A forma serial e fundada na zona erogena de

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superficie na medida em que esta se define pela extensao deuma singularidade ou, 0 que da no mesmo, pela reparti<;aode uma diferen<;a de potencial ou de intensidade, commaximum e minimum (a s6rie se detem em torno dos pontcsque dependem de uma outra). A forma serial sobre aszonas erogenas e, pois, igualmente fundada numa matema­tica dos pontos singulares ou numa fisica das quantidadesintensivas. Mas e ainda de uma outra maneira que cadazona erogena traz uma serie: desta vez trata-se da seriede !magens projetadas sobre a zona, isto e, objetos susce­tivels de assegurar a zona uma satisfa<;ao auto-erotica.Seja, por exemplo, os objetos a chupar ou imagens da zonaoral: cada qual, por conta propria, faz-se coextensivo atoda a extensao da superffcie parcial e percorre, exploraseu oriffcio e seu campo de intensidade, do maximum aominimum e inversamente; e1es se organizam em seriesegundo a maneira pela qual se tornam assim coextensivos(por exemplo, 0 bombom cuja superficie e multiplicada pormordidas e 0 chewing-gun por estiramento), mas tambemsegundo sua origem, isto e, segundo 0 conjunto de quesao extraidos (outra regiao do corpo, pessoa exterior, objetoexterior ou reprodu<;ao de objeto, brinquedo etc.) e segundoseu grau de distanciamento com rela<;ao aos objetos primi­tivos das pulsoes alimentares e destruidoras de que aspulsoes sexuais acabam de se desprender I. Em todosestes sentidos, uma serie ligada a uma zona erogena pareceter uma forma simples, ser homogenea, dar lugar a umasintese de sucessiio que pode se contrair como tal e de qual­quer maneira constitui urna simples conexiio. Mas, emsegundo lugar, e claro que 0 problema da concordia falicadas ronas erogenas vern complicar a forma serial: semduvida, as series se prolongam umas as outras e convergemem torno do falo como imagem sobre a zona genital. Estazona genital tern ela propria sua serie. Mas nao e separavelde uma forma complexa que subsume agora series hetero­geneas, uma condi<;ao de continuidade ou de convergenciatendo substituido a homogeneidade; ela da lugar a uma:sintese de coexistencia e de coordenat;iio e constitui umaconjum;iio das series subsumidas.

Em terceiro lugar, sabemos que a concordfmcia falicadas superficies e acompanhada necessariamente por empre­endimentos edipianos que se referem, por sua vez, a imagensparentais. Ora, no desenvolvimento proprio a Edipo, estasimagens entram, por sua conta, em uma ou varias series- uma serie heterogenea com termos alternantes, pai e mae

1. 0 objeto pode ser aparentemente 0 mesmo: por exemplo, 0 seio. Elepode parecer tamb6m 0 mesmo para zonas diferentes, por exemplo, o. dedo.Todavia, niio confudiremos nunca 0 seio como objeto parcial interno (suc~iio)

e como Imagem de superficie (0 ato de chupar); nero 0 dedOI como imagemprojetada sabre a zona oral au sabre a zona anal etc.

ou duas senes coexistentes, materna e paterna: assim,mae ferida, reparada, castrada, castrante; pai retirado,evocado, morto, matando. Mais ainda, esta ou estas seriesedipianas entram em rela~ao com as series pre-genitais, comas imagens que correspondiam a estas ultimas e mesmo comos conjuntos e as pessoas de que estas imagens eramextraidas. E, alias, nesta rela<;ao entre imagens de origemdiferente, edipianas e pre-genitais, que se elaboram as condi­<;oes de uma "escolha de objeto" exterior. Nunca seriademasiado insistir sobre a importfmcia deste noVO momentoou rela~ao, pois que anima a teoria freudiana do aconteci­mento, ou antes, das duas series de acontecimentos: estateoria consiste primeiro em mostrar que urn traumatismosupoe pelo menos a existencia de dois acontecimentos inde­pendentes, separados no tempo, urn infantil e 0 outro pos­-pubertario, entre os quais se produz uma especie de resso­naucia. Sob uma segunda forma, os dois acontecimentosSaO antes apresentados como duas series, uma pre-genital, aoutra edipiana e sua ressonancia como 0 processo dofantasma 2. Na terminologia que empregamos trata-se, pois,nao de acontecimentos, propriamente falando, mas de duasseries de imagens independentes, destacando-se 0 Aconteci­mento apenas por sua ressonaucia no fantasma. E se aprimeira serie nao implica uma "compreensao" do aconteci­mento em questao, e porque se constroi segundo a lei daszonas parciais pre-genitais e que so 0 fantasma enquantofaz ressoar as duas series juntamente atinge a uma talcompreensao, nao sendo 0 acontecimento a compreenderdiferente da propria ressonfmcia (deste ponto de vista elenao se confunde com nenhuma das duas series). Em todocaso, 0 essencial esta na ressonancia das duas series inde­pendentes, temporalmente disjuntas.

Achamo-nos aqui diante de urna terceira figura daforma serial. Pois as series consideradas agora sao bernheterogeneas, mas nao respondem mais em absoluto ascondi<;oes de continuidade e de convergencia que assegura­vam sua conjun<;ao. De urn lado elas sao divergentes enao ressoam senao sob esta condi~ao; de outro, elas consti­tuem disjun<;oes ramificadas e dao lugar a uma sintesedisjuntiva. A razao deve ser buscada nas duas extremi­dades desta forma serial. Com efeito, ela poe em jogoimagens; mas, qualquer que seja a heterogeneidade das

2. ObseJ:Var-se-a ja 0 emprego por Freud da palavra "serle", seja aprop6sito de sua apresentagao do complexo de 1i:dipo completo, com quatroelementos (0 Ego e old, Cap. 3); sejlli a prop6sito de. sua teoria .da escolhade objeto (as "series sexuais", em Tr2s ensaios sobre a teOlla da seX/;la.'uiade, ]11).

Sobre a concepgao dos dois acontechnentos ou das duas senes reportar­nos-cmos aos comentarios de Laplanche e Pontalis, "Fantasme originaire .. :",pp. 1839-1842, 1848-1849. :e essencial que a primeira cena, a, ceua pre-gemta](por exemplo, no Romem dos Lobes, a observ.aglio do coito com. um ano emeio) nao seja compreendida como tal. Pais -como dizem Laplanche e Pon·talis, a primeira cena e as imagens pre_genitais correspondentes sao fragmen­tadas "na serle dos momentos de passagem ao auto-erotismo".

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imagens, desde as imagens pre-genitais das zonas parciaisate as imagens parentais de :&!ipo, vimos que a origemcomum esta no idolo, ou no bom objeto perdido, retiradoem altura: e ele primeiramente que torna possivel umaconversao da profundidade em superficies parciais, umdesprendimento destas superficies e das imagens que ashabitam; mas e ele tambem, como bom penis, que projetao falo a titulo de imagem sobre a zona genital; e ele enfimque fornece a materia ou a qualidade das imagens parentaisedipianas. Poder-se-ia pois dizer, pelo menos, que as seriesconsideradas aqni convergem para 0 bom objeto das alturas.No entanto, nao e nada disso: 0 bom objeto (idolo) naoage senao como perdido, retirado nesta altura que constituia sua dimensao propria. E, sob este prisma, em todas asocasioes, ele nao age senao como fonte de disjun,oes,emissao ou lan,amento de alternativas, tendo ele propriocarregado no seu retirar-se 0 segredo da unidade superioreminente. E ja desta maneira que se define: ferido-indene,presente-ausente; e e neste sentido que, desde a posi,aomaniaco-depressiva, impoe ao ego uma alternativa, modelar­-se sobre ele ou identificar-se aos maus objetos. Mas, maisainda, quando torna possivel um desdobramento das zonasparciais, ele nao as funda senao como disjuntas e separadas- a tal ponto que elas nao encontrarao sua convergenciasenao com 0 falo. E quando ele determina as imagensparentais, e dissociando de novo seus proprios aspectos,distribuindo-os em alternativas que fornecem os termosalternantes da serie edipiana, repartindo-os em imagens demae (ferida e a tornar indene) e imagem de pai (retiradoe 'a tornar presente). Nao restaria pois mais do que 0 falocomo instancia de convergencia e de coordena~ao; mas eleproprio se compromete com as dissocia,oes edipianas. E,sobretudo, vemos mnito bem que ele se furta a seu papelse nos nos reportamos a outra extremidade da cadeia, naomais a origem das imagens, mas a sua dissipa,ao comumpor ocasiao da evolu,ao de Edipo.

Pois, na sua evolu,ao e na linha que tra,a, 0 falo naocessa de marcar urn excesso e uma falta, de oscilar entreos dois e mesmo de ser os dois ao mesmo tempo. Elee essencialmente um excesso, que se projeta sobre a zonagenital da crian,a da qual vem duplicar 0 penis e ao qualinspira 0 empreendmiento edipiano. Mas e essencialmentefalta ou priva,ao quando designa, no cora,ao do empreen­dimento, a ausencia de penis na mae. E e com rela,ao asi mesmo que e priva,ao e excesso, quando a linha ftilicase confunde com 0 Irarado da caSlrarao e que a imagemexcessiva nao designa mais do que sua propria falta, carre­gando 0 penis da crian,a. Nao M por que insistir sobreos caracteres do falo tais como foram destac.ados por Lacan

em textos celebres. E ele 0 elemento paradoxal ou. 0

objeto = X faltando sempre a seu proprio equilibno,excesso e falta ao mesmo tempo, jamais igual, faltando asua propria semelhan,a, a sua propria identidade, a suapropria origem, ao seu proprio lugar, sempre deslo~ad? comrela,ao a si mesmo: significante flutuando e slgmflcadoflutuado, lugar sem ocupante e ocupante sem lugar, casavazia (que constitni da mesm~ forma um e~ce.sso por estevazio) e objeto supranurnerario (que constitUi da mesmaforma uma falta por este nu.mero a mais). B ele ,que .fazressoar as duas series, que chamavamos ha pouco pre-gem.t~e edipiana, mas que devem tambem receber outras. 9ual!.f1­ca,oes, sendo dito que atraves de to~as. ~s suas qualiflca,oespossiveis urna e determinada como slgmfJcad~,. a outra comosignificante 3. B ele, 0 nao-senso ~e ~uperflcl~, dU~ vezesnao-senso como vimos, que distrlbUi 0 sentido as .du~sseries, repartindo-o como sobrevindo a uID.a e. co~o. znsz:­lindo na outra (e pois for,oso que a pnmelra sene naoimplique ainda uma compreensao daquilo que esta emquestao).

Mas todo 0 problema e: de que maneir~ 0 falo comoobjeto = X, isto e, como agente da castra,ao, !az. ressoaras series? Nao se trata mais de uma convergencIa ~ ?euma continnidade, como quando consideravam?s as. senespre-genitais nelas mesmas enquanto 0 falo ronda illtactocolocava-as de acordo em torno da zona genital. Agora 0

pre-genital forma uma s~rie, co~ .urna .p~e-co~preensao deimagens parentais infantis; a se.ne edlpIana .e uma outraserie, com outras imagens parentals formadas dlferen~emente.As duas sao descontinuas e divergentes. 0 falo nao asse­gura mais, em absoluto, urn papel de convergencia, mas,ao contrario, enquanto excesso-falta, um papel de. resso­nancia para series divergentes enquanto, ~als. ~OIS: pormais semelhantes que sejam as duas senes, nao e, emabsoluto, por sua semelhan,a que ela.s ressoam, mas aocontrario por sua diferen,a, sendo a dlferen,a a cada vezregulada pelo deslocamento relativo dos termos e este deslo-

3. As duas series podem ser bastante variave~s, mas sao sempre de.'3con­tlnuas. E, sobretudo, a serle pre-genital pOe ern logo ~lio som~n~e as zon~ser6genas parciais e suas imagens. mas imagens parentals pre-edlpl~nas fabn;cadas de maneira compl:etamente diferente do que 0 setao mats !ardefragmentadas' segundo as zonas. Esta serie implica, paiS, necessard~;n~,adultos com rela"iio a crian"a, sem que a crian"a pos~a "compreefu;er e eque e que se trata (sme ~ntan. Na segunda sene, ao contr 0, I acrian"a au 0 jovern que se conduz como um adulto (sene filial). Por ex~p 0,

na anilise que Lacan. faz do "Romem dos ratos" ~. a se';ie. ~o 1a~_:li~:cornoveu a crlan"a mUlto cedo e faz parte da lenda fam~lar (dlVlda am glher rica-mullier pobre) e a sene nos mesmos te~os dlsf~~ados e deslocado~que 0 sujeito reencontra mais tarde por conta pr6pna (a dlvlda desempenhando papel de objeto :;:;; X, fazendo ressoar as duas series). Cf. Jacques Laca~Le Mythe individU!el du 'l'lAfuyose, C.D.U. Seja um ou~o .exemplo: na Recherc ade Proust 0 her6i paSsa por uma serie de expene!1cJas amoros3;S com sumii.e. de ~m tipo pre_genital; depois, uma outra sene ~om. Albertma; mas n~serle pre-genital colocava ja em jogo, em urn modo rmstenOso nlio-compreesiva au pre-eompreensivo, a modelo adulto do .arnor de Swann par Odeto(0 terna cornum de la PrisonnUre indicando 0 obJeto = X). I

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cal?ento sendo regulado pelo deslocamento absoluto doob!eto= X nas duas series. 0 fautasma nao e outra~Olsa, pelo menos em seu ponto de come90: a ressonanciaInte~na entre as duas series sexuais independentes namedlda. em que esta ressouiincia prepara 0 surgiment~ doaconteclmen~o e a~u?cia a sua compreensao. Eis por que,na sua. tercel~a especle, a forma serial se apresenta sob umaforma rrredutlvel as precedentes: sintese disjuntiva de seriesh~terogeneas, pois que as series heterogeneas Sao agoradlv_ergent~s; mas. da mesma forma usa positivo e afirmativo(~ao m~ls negativo e limitativo) da disjuo,ao, pois que assenes dlvergentes ressoam enquanto tais; e rami/ica,aoc~ntmuada destas series, em fun,ao do objeto= X quenao cessa de se deslocar e de percorre-Ias <. Se conside­ramos 0 conjunto das tres especies seriais, sfntese conectivas?bre u~~ s,? serie, sinte~e conjuntiva de convergencia,smtese dlsJuntiva de ressonancia, vemos que a terceira serevela ser a verdade e a destina,ao das outras, na medidaem.que_a disjun,ao ati?ge seu uso positivo afirmativo; aconJun,ao d_a~ zonas deIXa ver entao a divergencia ja pre­sente nas senes que coordenava globalmente e a conexaode u-,~a zona a mUI~J?licidade de detalhe que continha jiina sene que homogelluza aparentemente._ A teoria ~e uma origem sexual da linguagem (Sperber)e bem conheclda. Mas mais precisamente devemos consi­derar a posi,ao s.exual enquanto intermediaria e enqllantor:?duz sob seus dlferentes aspectos (zonas erogenas, estagiofahco, cOI?P!e,:o ?e castra,ao) os diversos tipos de series:q~~ s.ua mCldencIa, qual a incidencia delas sobre a genesedmaml~a e a evolu,ao dos sons? Mais ainda, um certo esta­do.da lin~agem na.o e ele propr!o suposto pela arganiza,aosenalZ TJnh~?s VI~tO. q~e _a pnmeira etapa da genese, dapOsl,ao esqulzolde a posl,ao depressiva, ia dos ruidos avoz: dos rui?os como qualidades, a,oes e paixoes dos corposem profundldade a voz como instiincia das alturas, retiradanesta altura, exprimindo-se em nome daquilo que preexisteo~ antes colocando-se como preexistente. E certamente acnan,a desperta para uma linguagem que nao pode apren­der ainda como linguagem, mas somente como voz rumorfamiliar .que ja fala dela.. ~ste fator e de uma imp~rtfmciac?~slderavel para a avalIa,ao do fato seguinte: que, nassenes d~ sexualidade, alguma coisa come,a por ser captada,presse~tida antes. de ser compreendida; pois esta pre-com­preensao se relaclOna ao que se encontra ja presente. Per­guntamos ~llltao ~ ~ue. na linguagem corresponde a segundaetapa da genese dinamICa, 0 que funda os diferentes aspectos

r I ;4-. Ao co~trario, na origem da Corrente, quando as disjunl{6es nio saot e aClonadas senao ao bOTn objeto da ;posi~lo depressiva, a sintese disjuntivaem somente um uso limitativo e negatlVO.

da posi,ao sexual - e nao e menos fundado por eles. Em­bora os trabalhos de Lacan tenham urn alcance muito maisvasto, tendo renovado completamente 0 problema geral dasrela,oes sexualidade-linguagem, comportam tambem in­dica,oes aplicaveis a complexidade desta segunda etapa ­indica,oes seguidas e desenvolvidas de maneira original poralguns de seus discfpulos. Se a crian,a se depara com umalinguagem preexistente que nao pode ainda compreender,talvez, inversamente, apreenda 0 que nao sabemos maisapreender em nossa linguagem possuida: as rela,oes fone­maticas as rela,oes diferenciais de fonemas 5. Observou-sefreqiientemente a extrema sensibilidade da cri.an~a as dis­tin,oes fonematicas da lfngua materna e sua mdlferen,a avaria,oes por vezes mais consideraveis pertencendo a urnoutro sistema. E, alias, isso que da a cada sistema umaforma circular e urn movimento retroativo de direito, osfonemas nao dependendo menos dos morfemas.e semante:mas que 0 inverso. E justamente isso que a cnan,a extr~

da voz, no desfecho da posi,ao depressiva: uma aprendi­zagem dos elementos farmadores antes de toda compr~en­

sao das uuidades lingiiisticas farmadas. No fluxo contmuoda voz que vern do alto a crian,a recorta os elem~nto~ dediferentes ordens arriscando-se a dar-Ihes uma fun,ao amdapre-lingiiistica em rela,ao ao conjunto e aos diferentes as­pectos da posi,ao sexual.

Embora os tres elementos estejam em jogo circular­mente e tentador fazer corresponder cada urn a urn aspectoda po~~ao sexual, como se a fada se d~tivesse tres v~zesde maneira diferente. Mas em que medlda podemos hgarassim os fonemas com as zonas erogenas, os morfemas como ,estagio fillco, OS semantemas com a evolu,ao de Edipo eo complexo de castra,ao? Quanto ao primeiro ponto, 0

livro recente Serge Leclaire, Psychanalyser, propoe uma teseextremamente interessante: uma zona erogena (isto e, ummovimento libidinoso do corpo enquanto ocorre a superficiedistinguindo-se das pulsoes de conserva,ao e de destrui­,ao) seria essencialmente marcada por uma "Ietra" que, aomesmo tempo, tra,aria seu limite e subsumiria as imagens ouobjetos de satisfa9iio. 0 que e pr.eciso en~ender aqui. por"Ietra" nao supoe nenhum domlllio da linguagem, rondamenos a posse da escrita: trata-se de uma diferen,a fonema­tica em rela,ao com a diferen,a de intensidade que caracte­riza a zona erogena. Todavia, 0 exemplo preciso invocadopor Leclaire, 0 do V no "Homem dos lobos", nao parece ir

5. Cf. Robert Pujol, "Approche tMorique du fantasme" (La p'sychana-­lyse, nC} 8. p. 20): a unidade de base, 0 fonema. enquanto funclOna emrelaltao com urn outro fonema "escapa ao adulto na rn:edida em lJ.ue senentendimento e doravante atento ao sentido que se destila da sonondade enio mais a pr6pria 50noridade. Afirm~mos que ~ ~ujeito in~a~ nao 0 ouvecom um me5mo ouvido e que 56 e sensIVel a 0POSlltaO fonematIca da correntesignificante . .. "

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neste sentido: com efeito, 0 V neste exemplo marca antes urnmovimento muito geral de abertura, comurn a varias zonas(abrir os oIhos, as oreIhas, a boca) e conota varias cenas dra­maticas de preferencia a objetos de satisfa,ao 6, sera pre­ciso entao compreender que urn fonema sendo, ele proprio,urn feixe de /r~os dis/intivos ou de rela,oes diferenciais, cadazona seria antes anaIoga a urn destes tra,os que a deter­minaria em rela,ao a outra zona? Haveria por conseguin_te materia para urn novo brasao do corpo fundado sobrea fonologia; a zona oral gozaria necessariamente de urnprivilegio essencial, na medida em que a crian,a faria urnaaprendizagem ativa dos fonemas, ao mesmo tempo em queos extrairia da voz,

Resta que a zona oral nao perseguiria sua libera,ao,seu progresso na aquisi,ao da Iinguagem senao na me­dida em que se produzissem urna integra,ao global daszonas ou entao urna coloca,ao em seqUencia dos feixes,uma entrada dos fonemas em elementos mais complexos _o que os Iingiiistas chamam por vezes "concatena,ao deentidades sucessivas", Reencontramos aqui 0 segundo pontoe com ele 0 problema da concordancia filica como segun­do aspecto da posi,ao sexual. E neste sentido que Leclairedefine a superficie do corpo inteiro como conjnuto ou se­qUencia de letras assegurando a imagem do falo Sua con­vergencia e sua continuidade, Achamo-nos entao em umdominio novo: nao se trata, em absOluto, de urna simplesadi,ao dos fonemas precedentes, mas da constru,ao dasprimeiras palavras eso/ericas, que integram os fonemas emurna sintese conjuntiva de series heterogeneaS, convergen­tes e continuas - assim, em urn exemplo analisado porLeclaire, 0 nome secreta que a crian9a da a si mesma,"Poord'jeli". Parece-nos realmente, neste nivel, que a pa­lavra esoterica desempenba nao 0 papel de urn fonema ouelemento de articula,ao, mas 0 de urn morfema ou elemen­to de constru,ao gramatical representado pelo carater con­juntivo, Ele remete ao falo como instancia de concordan­cia, E somente em seguida que Uma tal palavra esotericaadquire um outro valor, uma outra fun,ao: a conjun,aoformando ela propria urna serie de conjunto, esta serie entraem rela~ao de ressonancia com uma autra serie, divergen-te e independente ("bonito corpo de LiIi") , A nova seriecorresponde ao terceiro aspecto da posi,ao sexual, Com 0

desenvolvimento de Edipo, 0 complexo de castra,ao e atransforma,ao concomitante do falo tornado objeto = X,Entao e somente entao a palavra esoterica torna-se elapropria palavra-valise enquanto opera uma sfntese disjun­tiva das duas series (a pre-genital e a edipiana, a do nomeproprio do sujeito e a de LiIi), faz ressoar as duas series

6, LECLAIRE, Serge, Psychana'lyser. Le Seuil, 1968, sobretudo pp. 90-95.

divergentes como tais e ramifica-as 7, A palavra esotericainteira desempenba agora 0 papel de urn sema~em.e.d' con­forme a tese de Lacan segundo a qual 0 falo e ,lpO eda castra,ao e urn significante que nao anima a sene cor­res ndente sem sobrevir a sorie precede?-te, ond~ ~~e

,poul tambem pois que "condiciona os efeltos de slgmfi-CITC a , 'fi t" Vamos por con-cado por sua presen,a de SlgID can e ,

, te da letra fonematica a palavra esoterica como mor­se~n de ois deste a palavra-valise como se:nant~u:a,fe a,Da ~osi,ao esqnizoide de profu~dida?e a posl,ao~~ressiva de altura, passava-se dos rlidos a voz, ~as,

~ posi,ao sexual de superficie, passa-se da voz a Pala~~,E ue a or aniza,ao da superficie fis~ca sexual tem , e~mo~entos q;e produzem tres tipos de siUte,ses ou de senes~zonas erogenas e sinteses conectivas recamdo sobre, urnserie homogenea' concordancia falica das zonas e smteseconjuntiva recaiu'do sobre series hete~ogeneas, fmas c~nv~;entes e continuas; evolu,ao de EdlpO, trans ~r!'1~ao

nnba filica em tra,ado da castra,ao e sintese disJuntiva re-'d sobre series divergentes e ressoantes" Ora, estas

~~~s°ou estes momentos condicionam o~ tres ~l~mentosformadores da linguagem, tanto quanta sao condiclOnado~

por eIes em uma rea,ao circular, ~one~a~, morfemas te sesE no entanto ainda nao M Iinguagem, es amo

mantemas" .' " Ii ". tico E que estes elemen­ainda em urn d~mlmo pre- ,~~IS r 'gu"isticas formadas quetos nao se orgamzam em urn a ~s m , 'ficarpoderiani- desiguar coisas, mamfestar pessoas e sl~m I'm

't 8 E por isso mesmo que estes elementos nao econcel os , al a crian,a apren-outra referencia alem da sexu , como se etendesse a falar sobre seu proprio corpo, os fonemas re: 'a­do as zonas erogenas, os morfemas ao falo de ~n~r. anc~~os semantemas ao falo de castra,ao, Esta re erenCla n~

se deve interpretar como uma designa,ao (os fonemas nao

.. . e'ro aspecto ou a primeira7. Sabre a palavra "Po~d·jeli. ~~u pnn\iZ-1l5. Sabre 0 segundoserie que subsume, cf, S" Leclaire); ~53 "l~aire insiste, com razio, sobr~aspecto ou a segunda sene, pp. 1 1- ,'. ecto or si mesmo, sem ala necessidade de considerar antes 0 ).nmell'o a~gund~ Ele lembra a estecolocar jll. 0 sentido que. s6 apare~r co~ eOa de nao nos apIessarmos emrespeito uma regra lacamana ess~cial,dqu bies que se pretenderia ~remat;t­eliminar 0 nao-senso em uma m~~ra~ aSa Sfazer s!o de varios dominlOs: naoramente significativa. Alias. as, dt,S~n~ alidade mas entre uma serle desomente entre as series de Superflcie "a s~xu Por ~em 10 os fonemas ligadossuperficie e uma seqiiencia de pro~dldad1igadaSa suaP~ord~cia poderi~mas zonas er6genas e as palaYIas comp e~~valores literais da palavra explodldaSeI confundidos respectlVaInente COm na e uizofrenia (letras-6rgitos ee com os valores tOnicos da palavrat~oco, ~osquma longmqua correspon-palavra inarticulada). Contudo, nao a .al :en: ordem de profundidade quedencia entre uma organiza~o de SUP~Cl: 0 infra-sentido. 0 pr6prio Leclaiteela conjuIa, entre ° nao-sentido e superf1~e enero: seia urn barulho oral dasda em urn outro texto urn e~.em~o d't ~iferente da representa~ito verbalprofundidades do tipo "krce; , mu\o de uma serie de superficie ligada"croque". Esta faz parte, necessanam~e, u aquele se insere ema zona oral e associav:el a ou~as ~!nes, enqu:::o cio~te... " (Cf. "Note suruma sequencia esquiz61de, do tlpo croqUr~n~Ose' nC? 2 p. 165).l'objet de la psychanalyse', Cahlers s!ri0ur dispoe-Yd~ des£gna~5es, manifestaQ6es,

8 A voz do alto, ao contr 0, d" tr1b id e perdidos nae si~ific39OeS, mas sem elementos formadores, IS u ossimples entona~ao.

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i

I:1

I!I

"designam" zonas er6genas), como uma manifestac;ao, nemcomo uma significa~ao; trata-se de urn complexo "condi­cionante-condicionado", trata-se de urn efeito de superfi­cie, sob seu duplo aspecto sonoro e sexual ou, se preferi­rem, ressonancia e espeIho. A este nivel a palavra come~a:

ela comera quando os elementos formadores da linguagemsilo extraidos asuperficie, do curso da voz que vem do alto.E 0 paradoxo da palavra remeter, de urn lado, a linguagemcomo a algurna coisa de retirado que preexiste na voz doalto e de outro remeter a linguagem como alguma coisa quedeve resuitar, mas que nao ocorrera senao com as unidadesformadas. A palavra nao e nunca igual a urna linguagem.Ela espera ainda 0 resultado, isto e, 0 acontecimento, quetornara a forma~ao efetiva. Ela domina os elementos for­madores, mas em branco e a bistoria que conta, a bistoriasexual, nao e nada alem dela mesma ou sua propria dobra.Assim, nao estamos ainda no dominio do sentido. 0 baruIhoda profunclidade era urn infra-sentido, urn subsentido, Un­tersinn; a voz da altura era urn pre-sentido. E agora po­deriamos acreditar, com a organiza~ao da superficie, que 0

nao-senso atingiu este ponto em que se torna sentido, emque toma urn sentido: 0 falo como objeto= X nao e pre­cisamente este nao-senso de superficie que distribni 0 sen­tido as series que percorre, ramifica e faz ressoar e de quedetermina uma como significante e a outra como signifi­cada? Mas repercute em nos 0 conselho, a regra do metodo:nao nos precipitarmos em reduzir 0 nao-senso, em confe­rir-Ihe urn sentido. Ele guardaria seu segredo e a maneirareal segundo a qual produz 0 sentido. A organiza~ao dasnperficie ffsica nao e ainda sentido; ela e, ou antes, ela seraco-sentido. Isto e: quando 0 sentido for produzido sobreuma outra superficie havera tambem este sentido. De acordocom 0 dualismo freucliano, a sexualidade e 0 que e tambem- e por toda parte e durante todo 0 tempo. Nao ha nadacujo sentido nao seja tambem sexual, segundo a lei da duplasuperficie. Convem ainda esperar por este resuItado quenao acaba, esta outra superficie, para que a sexualidade sefa~a seu concomitante, co-sentido do sentido e que possamosdizer "por tada parte", "'em todos as tempos", "verdadeeterna".

I rlgeslrna I ercelri:1 o;,t=IIt=.

Das Aventuras de Alice

Os tres tipos de palavras esotericas q~e. encontr~mo~em Lewis Carroll correspondem as tres especles de senes:

. " el monossflabo" que opera a sintese conectl-"0 ImpronunClav rva de uma serie; 0 phlizz ou 0 snark que asse¥Dr~ a conve.~

ge'ncia de duas series e opera sua sintese conjunlivad; depobI

. k 1-X de que esco n-a palavra-valise, 0 Jabberwoc , pa avra - a sintese

s ue'a atuava nas duas outras e que opera .~~jun\va jde series divergentes, fazendo-as ressoar e raml~-

t . Mas quais as aventuras sob esta orgam-car como alS. ,

za~ao~ce tern tres partes marcadas pelas. m~dan~as Ide. . (C 1 3) banha mtelra no e e-

lugares'es ~b~:~:aprof~~~dade, a partir da que?a inter­men~o I dqe AII'ce Tudo e alimento, excremento, slmulAJ:jac:o,mmave '. A r'pria ceobjeto parcial interno, IUlstura v:enenosa.. p Ode ela se, destes objetos quando e pequena, gran" ,~de~~fica a seus receptaculos. Insistiu-se frequent:~t:sobre 0 carater oral, anal, uretral desta parte. a de

da (4-7) parece mostrar realmente uma mudan~~ .segun • 'd inda hii e com uma patenclaorienta~ao. Sem duvI a, a bida por Alice em que ela~enovada ~~::~ ~: ~:::a::ee:: qual expulsa ;iolentamentelomf:gd:rt~ (sequencia esquizoide crian~a-penis-~xcr~mentnOt)e'

. ., odificaenes' pnmelrame ,Mas observamos conslderavels m , ,_. h agora 0, ande demais que Alice desempen a _e enquanto

b,gr . t a MaI's ainda crescer e diminuir nao

apel de 0 Jeto m ern . '. _p , m relaeao a urn tercerro termo em prose processam roms e ~. atravessadafundidade (a chave a ser atmg1da e a porta a ser ao ar livre

,. ) atuaffi por 81 mesmos 'na pnmeIfa parte , mas., It Que haja urnaurn com re1at;ao ao outro, lsto e, em aura.

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mudan9a, Carroll tomou 0 cuidado de indica-Io urna vezqu~ agora .0 beb'." q.ue faz crescer e comer que d~ui (erao mverso na pnmerra parte). E, sobretudo fazer crescerou fazer diminuir esHio reunid?s em urn me~mo objeto, 0c0¥Umelo que funda a a!tematlva sobre sua pr6pria circu­l:mdade (Cap. ~). EVldentemente, esta impressao naoe confrrmad~ a nao ~e: que 0 cogumelo ambiguo de lugar aurn bom obJeto, explicItamente apresentado como objeto dasalturas. Nao basta, a este respeito, a lagarta que se instala,contudo, no topo do cogumelo. Precisamente, 0 gato deC~~ster ~esempenba este papel: ele .0 0 bom objeto, 0 bomp:ms, 0 Idolo ou a ~,:z d~s alturas. Ele encarna as disjun­90es desta nova. PO.sI9ao: mdene ou ferido, jii que apresentaora seu corl?? mterro, ora sua cabe9a decapitada; presenteou ausente, Ja que desaparece deixando apenas 0 seu sorrisoou se forma a partir deste sorriso de bom objeto (compla­cencia provis6ria no que diz respeito a libera9ao das pulsoessexuals ~. Em sua essencia, 0 gato .0 aquele que se retira;se desvIa. E a nova altemativa ou disjun9ao que irnpoe aAlice, conforme a esta essencia, aparece duas vezes: primeiro,se~ crianc;a ou porco, como na cozinha da duquesa; em se­guIda, como 0 arganaz adormecido que estii entre a lebre 'e 0cbapeleiro, isto .0, entre 0 animal dos terreiros e 0 artesaodas cabe9as, ou tomar 0 partido dos objetos intemos ouidentificar-se ao bom objeto das alturas - em suma escolherentre a profundidade e a altura '. A terceira parte' de Alice(8-12) muda ainda de elemento: tendo brevemente reen­contrado 0 primeiro lugar, ela passa em um jardim desuperficie habitado por cartas sem espessura, figuras planas.:E: como se Alice se tivesse suficientemente identificado aogato, que ela declara seu amigo, a ponto de ver a antigaprofundidade se desdobrar e os animais que 0 povoavam setamarem escravos ou instrumentos inofensivos. :E: sobreesta superficie que ela distribui suas imagens de pai e de

1. o. gato esta presente DOS dois casas,· jli que aparece, pela primeira;.ez,.. na cozmba: da duques~_ e, em seguida. aconse1ha Alice a ir ver a lebre

ou 0 chapelerro. A pOSJ!rao do gato de Chester em cima da arvore ou nocCu, todas as suas caracteristieas, inclusive os terrificantes identifieam-no aosuperego como "b?rn"" objeto das alturas (Idolo): "Ele parece ter um born~ater, penso,,: Alice: contudo, possuia longas unhas e muitos dentes e eiaJulgou que sena mellior trata-Io com respeito". 0 tema da insta-ocia dasal~ras 9ue se furta au se retira, mas tambem que combate e captora osobJetos mtemos, e constante em Carroll: encontra.-Io-emos com toda sua cruel­dade nos poemas e naI'rativas em que intervem a pesca com linha to angleem. ~gIes.. (Cf. par exemplo 0 poema The Two Brothers. em qu'e 0 irmiiomalS ~ovem serve de isea). E. sobretodo em Silvia e Bnmo, 0 bom pai retiradono ~elnado das fadas, escondIdo atras da voz do cachorro, e essencial: seriapreclSo om lon,go comen~o desta obra~prima, que tambem coloca em jogoo tema. das dua~ superfiCIes, a superHCle comum e a superHcie maravilhosaau. f«nca. Enfl!D, em t~da a ?bra de Carroll, 0 poema trligico The ThreeVo~ces tern uma Importa-ncla particular: a primeira "voz" e a de uma mulherdura. e baro~enta que faz urn quadro terrorista do alimento; a segunda vozcontinua ~ernvel, mas tern todas as caraote:risticas da boa Voz do alto quefaz balbuctar e gaguejar 0 her6i; a terceira e uma voz edipiana de cutpabilidade,que canta 0 terror do resultado apesar da pureza das' inten!rOes ("And whenat Eve the unpitying sun Smiled grimly on the solemm fun Ala::k he sighedwhat have I done?"). " ,

mae no curso de urn processo: "Disseram-me que a tinbeisvisto a Ela - e que falastes a Ele'... Mas Alice pres­sent~ os perigos do novo elemento: a man~ira pel~ ,qu~1suas boas inten90es correm 0 risco de produzlr abommavelsresultados e cujo falo representado pela Rainba corre 0risco de acabar em castra9ao ("que Ihe cortem a cabe9a!berrou a rainha"). A superficie se rompe: "0 pacote decartas voou, depois recaiu sobre Alice".

Dir-se-ia que Do oulro /ado do espelho recome<;a .amesma hist6ria au a mesma tentativa, mas desl?cada, sUl?n­mindo 0 primeiro momento, desenvolvendo mmto 0 t~lro;Ao inves do gato de Chester ser a boa voz para. AlIce, eAlice a boa voz para seus gatos reais, voz repreenslva, amo­rosa e retirada. E, de sua altura, Alice apreende 0 espelhocomo superficie pura, continuidade do fora e do dentro, doem cima e do embaixo, do direito e do avesso, onde 0 Jabbe;­wocky se estende nos dois sentidos ao mesmo tempo.. Aposter se comportado ainda, brevemente, como bam obJeto ouvoz retirada, diante das pe9as de xadrez (com todo~ o~ car~c­teres terrificantes deste objeto ou desta voz), a propr.,a AlICeentra no jogo: ela pertence a superficie do tabulelro, qu.etomou 0 Ingar do espelho e se lan9a. ~gora no empre~ndl­menta de tomar-se rainha. Os quadnlateros do tabulerro aserem atravessados representam, evidentemente, ,\~s :on~ser6genas e tornar-se rainha remete ao falo como mstanclade concordancia. Torna-se logo apare;'t: que o. problemacorrespondente deixou de ser 0 da voz urnca e retrrada parase tornar 0 das palavras multiplas: que se deve pagar, ').uan­to .0 preciso pagar para poder falar? perguntam-se mals oumenos todos os capitulos, a palavra remetendo ora, a umas6 serie (como 0 nome pr6prio de tal form~ .contraldo quedele nao nos lembramos mais), ora a duas senes convergen­tes (como Tweedledum e Tweedlede.e, tao con,:e:gent~s econtinuas que nao as distinguimos mals), ora a senes diver­gentes e ramificadas (como Humpty Dumpty, se~o.r dossemantemas e pagador das palavras, fazendo-as .raIDlflcar_eressoar tao bem que nao as compreendemos malS, que naodistinguimos mais seu direito e sen avesso). ~.as, nestaorganiza9ao simultanea das palavras e das superfIcIes, 0 pe:riga jii indicado em Alice precisa-se e desenv?lve-se. AqUlde noVO Alice distribuiu suas imagens parentaIs ao lon~o dasuperficie: a rainba branca, ~ae chorosa e fe~Ida, 0 reI ver­melho, pai retirado, adormecldo desde 0 CaJ?'tulo~. Mas,atraves de toda a profundidade e a altura, e a ramha ver­melha que chega, faIn convertido na instancia de castra9ao.De novo .0 a debandada final, desta vez rematada volun~a­riamente pela pr6pria Alice. "Aten9ao! . .. algurna COlsavai Deorrer!", mas 0 que? - regressao as ~rofundldad~sorais-anais, a tal ponto que tudo recome9ana, ou entao

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desprendimento de uma outra superficie, gloriosa e neutra­Iizada?

o diagn6stico psicanalitico freqiientemente formuladosobre Lewis Carroll e: impossibilidade de enfrentar a situa­<;ao edipiana, fuga diante do pai e remincia a mae, proje<;aosobre a garotinba ao mesmo tempo como identificada aofalo e como privada de penis, regressao oral-anal que a issose segue. Todavia, tais diagn6sticos tern muito pouco inte­resse e sabe-se muito bern que nao e assim que a psicanalisee a obra de arte (ou a obra Iiterario-especulativa) podemestabelecer seu encontro. Nao e, certamente, tratando,atraves da obra, 0 autor como urn doente possivel ou real,mesmo se !he atribuimos 0 beneficio da sublima<;ao. Nao e,certamente, "fazendo a psicamilise" da obra. Pais os antares,se sao grandes, estao mais pr6ximos de ser medico do quedoente. Queremos dizer que eles pr6prios sao admiraveisdiagnosticistas, admiraveis sintomatologistas. Ha sempremuita arte em urn agrupamento de sintomas, em urn quadroem que tal sintoma e dissociado de um outro, aproximadode um outro ainda e forma a nOva figura de uma perturba<;aoou de urna doen<;a. Os cHnicos que sabem renovar urnqnadro sintomatol6gico fazem uma obra artistica; inversa­mente, as artistas sao cHnicos, DaD de sen proprio caso, neromesmo de urn caso em geral, mas c1inicos da civiliza<;ao.Nao podemos seguir aqueles que pensam qne Sade nao ternnada de essencial a dizer sobre 0 sadismo ou Masoch sobre'0 masoquismo. Mais ainda, parece que nma avalia<;ao desintoma nao pode ser feita a nao ser atraves de nm romance.Nao e por aeaso que 0 neur6tico fabrica urn "romance fa­miliar" e qne 0 complexo de Edipo deve ser encontrado nosmeandros deste romance. Com 0 geuio de Freud, nao e 0

complexo que nos ensina sobre Edipo e Hamlet, mas Edipoe Hamlet que nos ensinam sobre 0 complexo. Objetar-se-aque nao ha necessidade do artista e que 0 doente basta parafazer, ele proprio, 0 romance e 0 medico para avalia-Io.Mas isto seria negligenciar a especificidade do artista, aomesmo tempo como doente e medico da civiliza<;ao: a dife­ren<;a entre seu romance como obra de arte e 0 romance donenr6tico. E que 0 neur6tico nao pode nunca senao efetuaros termos e a hist6ria de seu romance: os sintomas sao estaefetua<;ao mesma e 0 romance nao tern outro sentido. Aocontrario, extrair dos sintomas a parte inefetuavel do acon­tecimento puro - como diz B1anchot, elevar 0 visivel aoinvisivel -, levar a<;oes e paixoes quotidianas como comer,eagar, amar, falar, fiorrer ate 0 seu atributo noematico,Acontecimento puro correspondente, passar da superficie fi­sica onde atuam os sintomas e se decidem as efetua<;oes paraa snperficie metafisica em que se desenha, desempenha 0

acontecimento puro, passar da causa dos sintomas a quase-

causa da obra, - e 0 objeto do romance como obra de artee 0 que 0 distingue do romance familial 2. Em outros t~rm~s,

o carater positivo, altamente afirmativo, da dessexuaII7a<;ao,consiste nisto: que 0 investimento especulativo substltua aregressiio psiquica. 0 que nao impede que 0 investimentoespeculativo recaia sobre urn objeto s~xual, ja que dest.edestaca 0 acontecimento e coloca 0 ob]eto como concoml­tante do acontecimento correspondente: 0 que e uma garo­tinha? - e toda uma obra nao para responder a esta ques~ao,mas para evocar e compor 0 (mica acontecimento que dissofaz uma questao. 0 artista nao e somente 0 doente e 0

medico da civiliza<;ao, e tambem 0 seu pervertido.Sobre este processo da dessexualiza<;ao, sobre este saito

de uma superficie para outra, nao dissemos quase nada.E s6 em Lewis Carroll que aparece sua potencia: a for<;amesma com a qual as series de base \ aquelas que sUbs~memas palavras esotericas) sao dessexualizadas, em provelto decomer-falar' e no entanto, tambem a for<;a com a qual emantido 0 'objeto sexual, a garotinba. 0 misterio esta defato neste saito, nesta passagem de uma superficie a outrae 0 que se torna a primeira, sobrevoada pel~ segunda. ?otabuleiro fisico ao diagrama 16gico. Ou entao da superflcl'"sensivel a placa uItra-senslvel: e neste saito que Carroll,grande fot6grafo, experimenta urn prazer que pode~os su~r:

perverso e que declara inocentemente (co~o ele ~lZ a Ame­lia em uma "irresistivel excita9ao ... : VIr a vas por urnnegativo ... Amelia, tu es minba").

2. Gostariamos de dtar urn exemplo que nos patece importante paraurn problema tao obscuro. Ch. Lasegue e urn. priquiatra que, em ~~77,"isola" 0 e:xibicionismo (e cria a palaVTa); com Isto, ele-. faz obra de diDleo,de sintomatologista: cf. Etudes me&icales, t. I, pp. 692-700. Ora, quando setrata de apresentax sua descoberta em urn breve artigo, ele nan come~a POtdtat casas de exibicionismo manifesto. Come~a pelo caso de urn homem quese colnca diariamente na passag.em de uma mullier e a segue pot toda partesem uma 56 palavra, sem urn gesto ("seu papel se limita a. £az~~ func;ao desombra" ... ). Lasegue comeca pais pOt fazer compreender ImplJCltamente aoleitor que este homem Se iden!i£ica inteiramente. a urn ~nis; ~ e somen~e.e~seguida que ele cita casos manifestos. 0 procedlmento de Lase~e e arhStic;o.ele comel;a por um romance. Scm Mvida, 0 romance e primeuamente feltopelo sujeito; mas seria preciso urn cHnico-artista para reconhecl!-lo. Nlo esenaa um. romance neur6tico porque 0 sujeito se contenta em. enca.n;aar umobjeto parcial que elc efetun em toda sua pessoa. Qual e, pOlS, a dlferenGaentre esse romance vivido, neur6tico e "familial" e 0 romance como ~bra dearte? 0 sintoma e sempre tomado em urn romanoe, mas este determma suaefetuOfao, ora, ao contrario, isola seu acontecimenro que contra-efetua empersonagens ficticios (0 importante nao e 0 carater ficticio dos personagens,mas 0 que cxplica a ficl;ao, a saber, a natureza do acontecimento puro e 0mecanismo da contra-e£etuaf>ao), Par exemplo, Sade au Masocb fazem 0romance-obra de arte daquilo que os sadicos au os masoquistas fazem comoneur6tico e "familial", mesmo que 0 escrevam.

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II

II,

I nyt:;:»IIIIQ Uoual loa ,",'W' .....

Oa Ordem Primaria e daOrganiza~ao Secundaria

Se e verdade que 0 fantasma e construido sobre duasseries sexuais divergentes, pelo menos, se ele se confundecom sua ressondncia, dai naD resulta menos que as duasseries de base (com 0 objeto = X que as percorre e asfaz ressoar) constituem somente 0 come90 extrinseco dofantasma. Chamemos de come90 intrinseco a propria res­sonancia. 0 fantasma se desenvolve na medida em que aressonancia induz urn movimento for9ado que ultrapassa evarre as series de base. 0 fantasma tern uma estruturapenduIar: as series de base percorridas pelo movimento doobjeto = X; a ressonancia; 0 movimento for9ado de ampli­tude maior que 0 primeiro movimento. 0 primeiro movi­mento, nos 0 vimos, e 0 de Eros que opera sobre a superficiefisica intermedhiria, a superficie sexual, 0 lugar destacadodas pulsoes sexnais. Mas 0 movimento for9ado que repre­senta a dessexualiza~ao e Tanatos ou a "compulsao", ope­rando entre dois extremos que sao a profundidade originale a superficie metafisica, as pulsoes destruidoras canibais dasprofundidades e 0 instinto de morte especulativo. Sabemosque 0 maior perigo deste movimento for9ado e a confusaodos extremos ou antes a perda de todas as coisas na profun­didade sem fundo, ao pre90 de uma debandada generalizadadas superficies. Mas, inversamente, a maior sorte do roo­vimento for9ado e, para alem da superficie metafisica, aconstitui9aO de uma superficie metafisica de grande amplitu­de em que se projetam mesmo os objetos devorantes-devo­rados da profundidade: tanto que podemos entao chamar deinstinto de morte 0 conjunto do movimento for9ado esuperficie metafisica sua amplitude inteira. Em todo caso,o movimento for9ado nao se estabelece entre as series sexuaisde base, mas entre duas novas series infinitamente mais

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amplas, comer, de um lado e pensar, de outro, a segundacorre~do sempre 0 risco de se afundar na primeira, mas aprimelra correndo 0 risco, ao contnirio, de projetar-se sabrea segunda I, Quatro series e dais movimentos sao necessa­rios ao fantasma. 0 movimento de ressonfmcia das duasseries sexuais induz um movimento for9ado que ultrapassaa base e os Iimites da vida, afundando-se no abismo doscorpos, mas tambem abrindo-se sabre lima superficie mental,fazendo nascer assim as duas novas series entre as quaisse trava tada a luta que tentamos descrever precedentemente.

o que e que ocorre se a superficie mental ou metafisicaleva a melhor neste movimento pendular? Inscreve-se entaoo verba sabre esta superficie, ista e, 0 acontecimento gIoriosoque nao se confunde Com um estado de coisas, mas simbolizacom ele - 0 atributo noematico brilhante que nao se con­funde com uma qualidade, mas sublima-a _, 0 orgulhosoResultado que nao se confunde com uma a9ao ou paixao,mas delas extrai uma verdade eterna - 0 que Carroll chamaImpenetrabilidade ou tambem Radiancy. 1i 0 verbo na suaunivocidade que conjuga devorar e pensar, comer e pensar,comer que ele projeta sobre a superficie metafisiea e pensarque nela desenha. E porque comer nao e mais uma a9ao,nero ser comido uma paixao, mas somente 0 atributo noema­tieo que Ihes corresponde no verbo, a boca fica como queIiberada para 0 pensamento que a preenche Com todas aspalavras possiveis. 0 verba e, pois, jalar, que signifieacomer-pensar na superffcie metafisica e que faz COm que 0acontecimento sobrevenha as coisas Consumfveis Como 0exprimivel da Iinguagem e que 0 sentido insista na Iinguagemcomo a expressao do pensamento. Pensar significa, pais,da mesma forma comer-jaZar, comer como "resultado", falarComo "tornado possivel". 1i ai que termina a luta da bocae do cerebro: esta luta pela independencia dos sons, nos avimos prosseguir a partir dos ruidos alimentares excremen­ciais que ocupavam a boca-anus em profundidade; depois,com a isolamento de uma voz em altura; depois, com aprimeira forma9ao das superficies e das palavras. Mas falar,no sentido completo da palavra, supae 0 verbo e passa peloverba, que projeta a boca sobre a superficie metafisiea e apreenche com os acontecimentos ideais desta superficie: 0verbo e a "representa~ao verbal" inteira e a mais alto poderafirmativo da disjun9ao (univocidade para 0 que diverge).Contudo, 0 verba e silencioso; e e preciso levar ao pe daletra a ideia de que Eros e sonoro e a instinto de morte,silencio. Mas e nele, no verbo, que se faz a organiza9aosecundaria da qual decorre toda a ordena9ao da linguagem.

1. A profundidade nao e conslitufda em si mesma em serie, mas enas condic;5es do fantasma que ela se eleva a fonna serial. Sobre esta estru­tura do fantasma, cf, Apendice I.

o nao-senso entao e como 0 ponto zero do pe?-samento, 0

ponto aleat6rio da energia dessexualizada,. ~~stmto pont~al

da morte; 0 Aion au a forma vazia, Inflmtlvo ~ur?, e alinha tra9ada por este ponto, fissura cereb!al nos hmltes daqual aparece a acontecimento; eo. ac?nt~c~mento to~~do naunivocidade deste infinitivo se dl,strIbm as. ~uas senes ~e

amplitude que constituem a superbcle metaflslc~.. 0, Aco ­tecimento se refere a uma como atributo noematlco, a autracomo sentido noetico, tanto que as d~as se.ries, comer-f?larformam 0 disjunto para uma sintese afrrmallva ou ,a eqmvo­cidade daquilo que e para urn Ser ele mesmo umvoco, .o~

. .", tado este sistema ponto-hnha-superflcleurn ser umvoco. .c '. ~.

ue representa a organiza9ao do senlIdo com.o .n~o-senso.

~ sentido sobrevindo aos estados de coisas : mSlstmdo nasproposi9aes, variando seu puro infinit!vo umvoco segundo1 aserie dos estados de coisas que ~ubhn:a e do qual res,u tae a serie das proposi9aes que slmboliza e torna po.sslvel.Como sai dai a ordena9ao da linguagem em suas u.mdadesformadas - isto e, com designa90es e seus preenchlmentospar coisas, manifesta90es e suas efet~a90es pc:r pe~soas,

significa90es e suas realiza90es par concelto~ ~, nos a vlmas,era precisamente 0 objeto da genese estatlca. Mas, yarachegar ate ai, era preciso passar por todas as e:.apas da ~enese

dinamica. Pois a voz s6 nos dava deslg~a90es, mamfesta­90es e significa~oes vazias, puras inten90es suspens~s natonalidade; as primeiras palavras nao no,s "dava~ mats doque elementos formadores, sem chegar ate as umdades for­madas. Para que houvesse linguagem e pleno usa da pala­vra conforme as tres dimensoes da Imguagem" er,a p:-eclsepassar pelo verba e seu silencio, por t?~a a org~mza9~0. dosentido e do nao-sentido sobre a superbcle metaflslca, ullImaetapa da genese dinamica. .. ,. ,

Ora e certe que, assim como a superfI~le f:Slca e um~, f' . t f'sl·ca a orgamzacao sexual eprepara9ao da super ICle me a I , . '

uma pre-figura9ao da organiza9ao da lmguagem.. 0 falodesem enha urn grande papel nas etapas. ~~ confhto boca-

, b P a sexualidade mesma e intermedlana entre comer-cere ro, 1 - . sefalar e, ao meSilla tempo em que as. pu soes se~ual~

destacam das pulsaes alimentares destrmdoras, elas msplramas primeiras palavras feitas de fonemas, morfemas e seman­temas. A organiza9ao sexual ja nos apresent~ todo urnsistema ponto-linha-superficie; e 0 falo como obJe~o . dX e

I -X tern 0 papel do nao-sentido dlstrlbum. 0 0pa avra - , . I dIp anasentido as duas series sexuais de base,. p~e-gemta eel, .Contudo todo este dominio intermedlano parece ne?trahza­do pele' mevimento da dessexualiza9aO, ~omo as senes debase no fantasma pelas series de amphtude. 1i 'l,:,e, ~s

fonemas, morfemas e semantemas em sua rela9ao ongmarlacom a sexualidade nao formam ainda de manelra nenhuma

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unidades de designa~ao, de manifesta~ao ou de significa~ao.A sexualidade nao e nem designada, nem manifestada nemsignificada por eles; ela e, antes, assim como a sup~rficieq.u~ eles forram e eles sao como 0 forro que edifica a super­fl~l~. Trata-se de um duplo efeito de superficie, avesso edirelto, precedendo qualquer rela~ao entre estados de coisase proposi~oes. Bis por que quando uma outra superficiese ~esenvolve com outros efeitos que fundam, enfim, asdeslgna~oes, as manifesta~6es e as significa~oes sob 0 titulode unidades lingiiisticas ordenadas, os elementos como osfonemas, os morfemas e os semantemas parecem retomadosneste novo plano, mas parecem perder toda sua ressonfmciasexual, esta parece reprimida ou neutralizada e as series debase varridas pelas novas series de amplitude. Tanto que asex1!alidade ~ao existe mais senao como alusao, vapor oupoelra que da testemunho de urn caminho pelo qual a lin­guagem passou, mas que nao cessa de jogar fora, de apagarcomo uma dentre tantas lembran~as de infiincia extrema-mente incomodas. '

E ainda mais complicado, todavia. Pois, se e verdadeque 0 fantasma nao se contenta em oscilar entre 0 extremoda profundidade alimentar e 0 outro extremo representadopela superficie metafisica, se ele se esfor~a por projetar sobreesta superficie metafisica 0 acontecimento que correspondeaos alimentos, como nao desprenderia tambem os aconteci­mentos da sexualidade? Nao somente "tambem" mas deuma maneira tada particular. Pais, nos 0 vimas, 0'fantasmanao recomec;a eternamente sen movimento intrinseco dedess.exualiza~ao so;m se voltar sobre seu come~o sexualextr.mseco. Bste e um paradoxa de que nao encontramoseqUlv~~nte nos outros. casos de p~oje~a,? sobre a superficiemetaflSlca: uma energla dessexualizada mveste ou reinvesteum objeto de interesse sexual enquanto tal - e se ressexua­liza assim de um novo modo. Tal e 0 mecanismo maisgeral da perversao, com a condi~ao de distingui-Ia como artede ~uperficie e a subversao como tecnica da profundidade.Asslm como observava Paula Heimann, a maioria dos crimes"sexuais" sao inadequadamente chamados de perversos; de­vem ser postos na conta da subversao das profundidades emque as pulsoes sexuais estao ainda estreitamente intricadasCOm as pulsoes devoradoras e destmidoras. Mas a perver­sao como dimen~ao. de superficie ligada as zonas er6genas, aofalo de concordancJa e de castra~ao, a rela~ao da superficiefisi~a e ~a superficie meta.fisica, coloca somente 0 problemado I?vestimento de um obJeto sexual por uma energia desse­x.u?lizada como .tal. A perversiio e uma estrutura de super­flcle que se expnme como tal, sem se efetuar necessariamenteem comportamentos criminosos de natureza subversiva'crimes podem sem duvida dai decorrer mas por regressao d~

perversao a subversao. 0 problema da perversao e bematestado pelo mecanismo essencial que Ihe corresponde, 0 daVerleugnung. Pois se trata, na Verleugnung, de manter aimagem do falo, apesar da ausencia de penis na mulher, estaopera~ao supoe uma dessexualiza~ao como conseqliencia dacastra~ao, mas tambem um reinvestimento do objeto sexualenquanto sexual pela energia dessexualizada: eis por que aVerleugnung nao consiste em uma alucinac;ao, mas em urnsaber esoterico 2. Assim Carroll, perverso sem crime, per­verso nao-subversivo, gaga e canhoto, serve-se da energiadessexualizada do apare!ho fotogd.fico como de um olhoespantosamente especulativo para investir 0 objeto sexualpor excelencia, a menina-falo.

Tomado nas malhas do sistema da linguagem, hi poisum co-sistema da sexualidade que imita 0 sentido, 0 nao­sentido e sua organiza~ao: simulacro para um fantasma.Mais ainda, atraves de tudo 0 que a linguagem designara,manifestara, significani, haveni uma hist6ria sexual que na~

sera jamais designada, manifestada nem significada por Slmesma, mas que coexistira em todas as opera~oes dalinguagem, recordando 0 pertencer sexual dos .elementoslingiiisticos formadores. E este estatuto da sexuahdade queexplica a repressao. Nao basta dizer que 0 conceito derepressao em geral e t6pico: ele e topol6gico; a repressaoe a de urna dimensao por outra. E assim que a altura,isto e, 0 superego de que vimos a precocidade de forma~ao,

reprime a profundidade em que as puls6es sexuais estao tiioestreitamente ligadas com as pulsoes destruidoras. E mesmosobre este la~o ou sobre os objetos intemos que 0 represen­tam que recai a repressao dita primaria. A repressao sigui­fica entao que a profundidade e como que recoberta pelanova dirnensao e que a pulsao assume uma nova figura emconformidade com a instlincia repressora, pelo menos nocome~o (aqui isolamento das puls6es sexuais relativamenteas puls6es destruidoras e piedosas inten~oes de Edipo). Quea superficie, por sua vez, seja objeto ~e uma repressao ditasecundaria e, por consegninte, nao seJa de fo:ma nenhumaidentica a consciencia, explica-se de uma manelra complexa:segundo a hip6tese de Freud primeiro, 0 jogo das duasseries distintas forma realmente uma condi~ao essencial darepressao da sexualidade e do carater retroativo de~ta r;:­pressao. Porem, mais ainda, mesmo quando ela nao poeem jogo senao uma serie parcial homogenea ou uma serieglobal continua, a sexualidade nao disp6e das condi~6es quetornariam possivel sua manutefil;:ao na consciencia (a saber,a possibilidade de ser designada, manifestada e significadapelos elementos lingiiisticos que !he correspondem). A

2 :e: bem em termos do "saber" que Lacan e alguns de seus discipuloscoloca~ 0 problema da perversiio: ct. a coletanea Le Desir et la Perve,si(}n~Seuil, 1967. Cf. Apendice IV.

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II

ter~~ira razao deve ser procurada do lado da superficie me­taflslca, na manelra pela qual esta reprime precisamente asuperfi<:ie sexual ~o mesmo tempo em que impoe a energiade pu~s~o a nova flgura d~ des~exualiza,ao. Que a superficiemetaflSlca, por sua vez, nao seJa de forma nenhuma identicaa uma consciencia nao tern nada de espantoso se considera­mas que as series de amplitude que a caracterizam ultra­passaro essencialmente 0 que pode ser consciente e formamum campo transcendental impessoal e pre-individual. Fi­nalmente, a consciencia ou antes 0 pre-consciente nao ternoutro campo alem daquele das designa,oes, manifesta,oes esignificac;oes possiveis, isto e, a ordenac;ao da linguagem quedecorre de tudo a que precede; mas a jogo do sentido e donao-senso e as efeitos de superficie tanto sabre a superficiemetaflsica como sabre a superficie fisica nao pertencem aconsciencia mais do que as a,oes e paixoes da mais reconditaprofun.didade. 0 retorno do reprimido faz-se segundo amecam~mo geral da regressao: h:\ regressao desde que umadlmensao se abate sabre autra. Sem d6vida, os mecanismosde. regressao sao muito diferentes segundo as acidentes pro­pnos a esta au aquela dimensao, par exemplo, a queda daaltura ou as orificios da snperficie. Mas 0 essencial estana amea,a que a profundidade faz pesar sabre todas as outrasdimens5es; assim, ela e 0 Iugar da repressao primitiva edas "fixa,oes" COmo termos ultimos das regressoes. Emregra geral h:\ uma diferen,a de natureza entre as zonas de

. superficie e as estagios de profundidade; par conseguinte,entre uma regressao a zona anal erogena, por exemplo, euma regressao ao estagio anal como estagio digestivo-destrui­dar. Mas as pontos de fixa,ao, que sao como faroisatraindo as processos regressivQs, esfon;am-se sempre porobter que a regressao ela propria regresse, mudando denatureza ao mudar de dimensao ate que aleance a profun­didade dos estagios em que todas as dimensoes se abismam.Resta uma ultima distin,ao entre a regressao como movi­menta pelo qual uma dimensao se abate sabre as precedentese este antra movimento pelo qual uma dimensao reinveste aprecedente ao seu proprio modo. Ao lado da repressao edo retorno do reprimido e preciso dar lugar a estes processoscomplexos pelos quais um elemento caracteristico de umacerta dimensao recebe como tal urn investimento de energiacompletamente diferente correspondendo a outra dimensao:per exemplo, as condutas de subversao criminosas nao saosepaniveis de uma opera~ao da voz do alto, que reinveste °processo destrutivo de profundidade como se fosse um deverpara sempre fixado e a ordena a titulo do superego au dobam objeto (assim, na historia de lorde Arthur Savile) 3.

_3. Freud mostrava a existencia de crimes inspirados pelo superego _ mas"dBO e for~~samente, ao que nos parece, par intennedio de um sentimento

e culpab'hd.:..de preliminar ao crime.

As condutas de perversao nao sao tambem separaveis deurn movimento da superficie metafisica que, ao inves dereprimir a sexualidade, serve-se da energia dessexualizadapara investir um elemento sexual enquanto tal e fixti-lo comurna insustentavel aten,ao (segundo sentido da fixa,ao).

o conjunto das superficies constitui a organiza,ao ditasecundaria. Esta se define, pois, muito bern pela "repre­senta,ao verbal". E se a representa,ao verbal deve serdistinguida estritamente da "representa,ao de objeto" e por­que ela concerne a urn acontecimento incorporal e nao a urncorpo, uma a,ao, paixao au qualidade de corpo. A repre­senta,ao verbal e esta representa,ao da qual vimos queenvolvia uma expressao. Ela e composta de um expressoe de um exprimente e se conforma segundo a tor,ao deurn no outro: ela representa 0 acontecimento como expresso,faz com que ele exista nos elementos da linguagern e, inver­samente, confere a estes urn valor expressivo, uma fun~ao

de "representantes" que nao possuiam por si mesmos. Todaa ordena,ao da linguagem dai decorrera, com seu codigode determina,oes terciarias fundadas par sua vez em repre­sentar;6es "objetais" (designar;ao, manifestar;ao. signlficac;ao;individuo, pessoa, conceito; mundo, ego e Deus). Mas,a que conta aqui e a organiza,ao preliminar, fundadora aupoetica: este jogo das superficies em que se desdobra somen­te urn campo ac6smico, impessoal, pre-individual, este exer­cicio do nao-senso e do sentido, este desdobramento de seriesque precedem as produtos elaborados da genese esttitica.Do ordenamento terciario e preciso, pois, remontar ate aorganiza,ao secundaria; depois remontar ate a ordem pri­maria, segundo a exigencia dinamica. Seja a tabua dascategorias dagenese em rela,ao com as momentos da lin­guagem: paixao-a,ao (ruida), possessao-priva,ao (voz),inten,ao-resultado (palavra). A organiza,ao secundaria(verba au representa,ao verbal) resulta ela propria destelongo percurso, surge quando a acontecimento soube elevaro resultado a uma segunda potencia e 0 verba dar as palavraselementares a valor expressiva de que elas ainda estavamdestituidas. Mas todo a percurso, todo a caminho e esca­lonado pela ordem primaria. Na ordem primaria as pala­vras sao diretamente a,oes au paixoes do corpo, au entaovozes retiradas. Sao possess5es demoniacas ou entao priva­r;6es divinas. As obscenidades e as injurias dao uma ideia,par regressao, deste caos em que se combinam respectiva­mente a profundidade sem fundo e a altura ilimitada; pais,par mais intima que seja sua liga,ao, a palavra obscenafigura antes a a,ao direta de um corpo sabre um outro quesofre a paixao, enquanto que a injuria ao mesmo tempopersegue aquele que se retira, retira-Ihe toda voz, e ela

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'I

propria uma voz que se retira 4. A estreita combina9aodas duas, das palavras obscenas e injuriosas, testemunhavalo~es propriamente satiricos da linguagem; chamamos desatirzco 0 processo pelo qual a regressao ela propria regride,ista e, DaD e Dunea uma regressao sexual em superficie semser tambem uma regressao aIimentar digestiva em profundi­dade, que nao se detem senao na cloaca e nao persegue avoz retirada senao descobrindo seu solo excremencial queela deixa, assim, atras de si. Fazendo ele mesmo mil ruidose retirando ele proprio sua voz, 0 poeta satirico, 0 grandePre-socratico em urn so e mesmo movimento do mundo,persegue Deus com injUrias e chafurda no excremento. Asatira e uma arte prodigiosa das regressoes.

Contudo, a altura prepara para a Iinguagem novos va­lores, em que ela afuma sua independencia, sua diferen9ar.adical da profundidade. A ironia aparece cada vez que almguagem se desdobra segundo rela90es de eminencia deequivocidade, de analogia. Estes tres grandes conceito~ datradi9ao sao a fonte de onde todas as figuras da retoricadecorrem. Assim, a ironia encontrara uma apIica9ao natu­ral na ordena9ao terciaria da Iinguagem, com a analogia dassignifica90es, a equivocidade das designa90es, a eminenciadaquele que se manifesta - e todo 0 jogo comparado doego, do mundo e de Deus na rela9ao do ser e do individuo,da representa9ao e da pessoa, que constitui as formas classicae romantica da ironia. Mas, ja no processo primario, a vozdo alto Iibera valores propriamente ir6nicos; ela se retira portras de sua eminente unidade, faz valer a equivocidade de seutom e a analogia de seus objetos, em suma, ela dispoe detodas as dimensoes de urna Iinguagem antes de dispor doprincipio de organiza9ao correspondente. Assim, ha urnaforma primordial de ironia plat6nica, reerguendo a altura,destacando-a da profundidade, reprimindo e combatendo asatira e as satfricos, colocando precisamente toda sua "iro­nia" em perguntar se por acaso haveria uma Ideia da lama,do peIo, da sujeira ou do excremento... E, contudo, 0que faz calar a ironia nao e urn retorno refor9ado dos valoressatiricos, assim como urn tornar a subir da profundidadesem fundo. Alias, nada volta a subir salvo a superficie; epreciso ainda que haja urna superficie. Quando a altura,com efeito, torna passivel uma constitui<;ao das superficies,com 0 desprendimento correspondente das pulsoes sexuais,acreditamos que alguma coisa sobrevem, capaz de vencer aironia em sen proprio terreno, ista e, no terreno mesmo da

, 4. Com efeito, aquele que injuria reclsma a expuls!o de sua vltima,prolbe~lhe de responder, mas tambem sa retira fingindo 0 maximo de desgosto.TUdo. Ista dli testemunho do fata da injuria partencer a posio;ao maniaco-de­presslVa <,frustra~o) •. enquanto que a obscenidade remete a posio;ao esquiz6idee~cremenC1al (a~iLo-p'alxao alucinadas). A uniao intima da injUria e da obsce­m~ade nao se exp~ca, :pois somente, como 0 crll. Ferenczi, pela repress!l.o dosobJetos de prazer mfantll que dariarn "sob a forma de palavr6es e mal~Oes",

mas pela fusao direta das duas posi96es fundamentais.

equivocidade, da eminencia e da analogia: CO~O se houves­se uma eminencia a mais, urn equivoco exceSSlVO, uma an~­

logia supranumeraria que, ao inves de se acrescentarem ~soutras, assegnram, ao contrario, seu fechamento. Urn eqUl­voco tal que nao pode rnais haver urn outro "depois"; tale 0 sentido da formula: hci tambem a sexualidade. J' 0mesmo que acontece com estes personagens de Dostoievski,que empregam toda sua voz para dizer: ha t.ambem isto,observai caro senhor e ainda isto e ainda aqUllo, caro se­nhor. .. Mas, com a sexualidade chega-se a urn ainda quefecha todos os ainda, a urn equivoco que torna impossivela persegui9ao de eqnivocidades ou a continua9ao de analo­gias uIteriores. Eis por que, ao mesmo tempo em que asexualidade se desdobra sobre a superficie fisica, ela nosfaz passar da voz a fala e enfeixa todas as palavras em urnconjunto esoterico, em uma historia sexual que nao seradesignada, manifestada nem significada por ela~, mas quelhes sera estritamente coextensiva e consubstancIaI. 0 querepresentam entao as palavras, todos os elementos forma­dores da lingua que nao existem senao em rela9ao e rea9~0uns com os outros, fonemas, morfemas, semantemas, naOformam sua totalidade senao do ponto de vista desta historiaimanente identica a eles mesmos. Ha, pois, urn equivocoa mais para a voz, com rela9ao a voz: urn equivoco quefecha a equivocidade e torna a Iinguagem madura para algode diferente. Este algo de diferente e 0 que vern da outrasuperficie, dessexualizada, da superficie metafisica, quandopassamos, enfim, da palavra ao verbo, quando compomosurn verbo unico no puro infinitivo com todas as palavrasreunidas. Este algo de diferente e a revela9ao do univoco,o advento da Univocidade, isto e, 0 Acontecimento quecomunica a univocidade do ser a Iinguagem.

A univocidade do sentido apreende a Iinguagem em seusistema completo, exprirnente total para 0 unico .expresso,o acontecimento. Assim, os valores de humor se dlstmguemdos da ironia: 0 humo~ e a arte das superficies, da rela9aocomplexa entre as duas superficies. A partir de urn equi­voco a mais 0 humor constroi toda a univocidade. A parhrdo equivoc~ propriamente sexual que fecha toda .eq~voci­dade 0 humor isola urn Univoco dessexualizado, umvoCldade, . -especulativa do ser e da Iinguagem;. to.da ~ orgamza<;aosecundaria, em uma palavra s. E preclso lmagmar urn outro

5 Nao podemos seguir aqui a tese de Jacques Lacan, pelo menos talcomo '3 conhecemos relatada por Laplanche e Leclaire em "L'Inconscient",(Temps modernes, julho de 1961. p. III e S5.). De aco~do com esta tese,3 ordem prim-aria da linguagem deflnir-se-ia por um. deslizan:wnto perpetuodo significante sobre 0 significado, supondo-se urn 6mco :>cntldo pa:a cadapalavra e remeter as outras palavras por meio de urns sene de eqU1valen~esque este sentido Ihe ~bre. Ao oontr8.rio~ desde que uma palavra tern vanossentidos que se orgaDlzam segundo a leI da metMora, ~la se torna estive]de uma certa maneira, ao mesffiO tempo em que a ~ln.guage!D ~scapa aoIU"0cesso prnn.ario e funda 0 processo secun.cUrio. ~ pOlS a UDlvOCldade que

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est6ico, urn outro Zen, urn outro Carroil: com uma maomasturbando-se, em urn gesto excessivo, com a autra escre­venda sobre a areia palavras magicas do acontecimentopuro abertas ao univoco, Mind - I believe - is Essence- Em - Abstract - that is - an Accident - which we- that is to say - I meam -, fazendo assim passar aenergia da sexualidade ao assexual puro, nao cessando,contudo, de perguntar, "0 que e uma garotinha?", prontopara substituir a esta questao 0 problema de uma obra dearte por fazer, que unicamente respondera a e1a. Assim,Bloom na praia. .. Sem duvida, a equivocidade, a analo­gia, a eminencia retomadio seus direitos com a ordena~ao

terciaria, nas designa90es, siguifica90es, manifesta90es dalinguagem quotidiana submetidas as regras do born sensoe do senso eomum. Considerando entao 0 perp"tuo entre­la9amento que eonstitni a l6giea do sentido, aparece queesta ordena9ao final retoma a voz do alto do processo pri­mario, mas que a organiza9ao secundaria em superficieretoma alguma coisa dos ruidos mais profundos, bloeos eelementos para a Univocidade do sentido, em suma, instantepara uma poesia sem figuras. E que pode a obra de artea nao ser retomar sempre 0 caminbo que vai dos ruidos avoz, da voz a palavra, da palavra ao verbo, construir estaMusik flir ein Haus, para ai encontrar sempre a indepen­dencia dos sons e ai fixar esta fulgura9ao do univoco, aeon­tecimento reeoberto depressa demais pela banalidade quo­tidiana ou, ao eontrario, pelos sofrimentos da loucura.

definiria 0 primArio e a equivocidade a possibiIidade do secundano (p. 112).Mas a univocidade e considerada aqui como a da palavw, olio como a do5er que 5e diz em urn 56 mesmo sentido para todas as coisas, nem igual­mente da linguagem que 0 diz. Supomos que 0 unfvoco e a palavra, prontospara concluir que tal palavra nlio existe, noo tendo nenhuma estabilidade eseoda uma "fiq;§.o". Parece~nos. ao contd.rio, que a equivocidade caxacte­riza propriamente a voz no processo primario; e se ha uma rela!;l\o essencialentre a sexualidade e a equivocidade e sob a fonn,a deste limite ao equ{voco,desta totaliza!;ao que vai tornar poss{vel 0 univoco como verdadeiro carater daorganiza~a'O seeundaria inconsciente.

I. Simulacro e .Filosofia Antlga

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I

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I. rlClLtlU c U "IIIIUIU""I"

Que significa "reversao do platonismo"? Nietzscheassim defioe a tarefa de sua filosofia ou, mais geralmente,a tarefa da filosofia do futuro. Parece que a formula querdizer: a aboli9ao do mundo das essencias e do mundo dasaparencias. Tal projeto, todavia, nao seria proprio aNietzsche. A dupla recusa das essencias e das aparenciasremonta a Hegel e, melhor aioda, a Kant. :E duvidoso queNietzsche pretenda dizer a mesma coisa. Bem moos, talformula - "reversao" - tern 0 inconveniente de ser abstra­ta; ela deixa na sombra a motiva9ao do platonismo. Re­verter 0 platonismo deve significar, ao contrario, tornarmanifesta a luz do dia esta motivac;ao, "encurralar" estamotiva9ao - assim como Platao encurrala 0 sofista.

Em termos muito gerais, 0 motivo da teoria das Ideiasdeve ser buscado do lade de uma vontade de selecionar,de filtrar. Trata-se de fazer a diferen9a. Distinguir a"caisa" mesma e snas imagens, 0 original e a capia, 0 modeloe 0 simulacro. Mas estas expressiies todas serao eqniva­Jentes? 0 projeto platonico so aparece verdadeiramentequando nos reportamos ao metodo da divisao. Pois estemetodo nao e um procedimento dialetico entre outros. Elereune toda a porencia da dialetica, para fundi-Ia com umaoutra potencia e representa, assim, todo 0 sistema. Dir­se-ia primeiro que ele consiste em dividir um genero emespecies contnirias para subsumir a coisa buscada sob aa especie adequada: assim, 0 processo da especifica9aocontinuada na busca de uma defini9ao da pesca. Mas estee somente 0 aspecto superficial da divisao, seu aspecto iro­nico. Se tomassemos a serio este aspecto, a obje9ao deAristoteles procederia plenamente: a divisao seria um mausilogismo, ilegitimo, pois que faltaria um termo. medio capaz,

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por exemplo, de nos fazer coneluir que a pesca esta do ladodas artes de aquisi<;ao e de aquisi<;ao por captura etc.

o objetivo real deve ser buscado alhures. No Politico,chegamos a uma primeira defini<;ao: 0 politico e 0 pastordos homens. Mas toda especie de rivais surge, 0 medico, 0

comerclante, 0 trabalhador, para dizer: "0 pastor dos ho­mens sou en". No Fedro trata-se de definir 0 deHrio epreci.samente de distinguir 0 delirio bern fundado ou 0 ver­d~del~o ~mor. ~i tambem muitos pretendentes surgem parad~z~r~ ? I~splra~o, 0 amante, sou eu". 0 objetivo dadlVl~~O nao e, po~s, em absoluto, dividir urn genera eme~p:cles: mas, malS profundamente, selecionar linhagens:dlst;n~U!r os preten?entes, distinguir 0 puro e 0 impuro, 0

autenlIco e 0 mautentlCO. De onde a metMora constanteque aproxima a divisao da prova de ouro. 0 platonismo ~a Odisseia filosofica; a dialetica platonica nao e uma diale­tlCa da contradi<;ao nem da contrariedade mas uma dialeticada rivalidade (amphisbetesis), uma dial6tica dos rivais oudos pretendentes. A essencia da divisao nao aparece emlargura, na. determina<;ao das especies de urn genero, masem profundldade, na sele<;ao da linhagem. Filtrar as pre­tens5es, distinguir 0 verdadeiro pretendente dos falsos.

Para realizar este objetivo, Platao procede uma vezmais com ironia. Pois, quando a divisao chega a estaverdadeira tarefa seletiva, tudo se passa como se ela renun­ciasse em cumpri-Ia e se deixasse substituir por urn mito.;Asslm, no Fedro, 0 mito da circula<;ao das almas parecemterromper 0 esfor<;o da divisao; da mesma forma noPolitico, 0 m~t~ ~os tempos arcaicos. Tal e a segund~ ar­maddha. da dlvlsao, sua segnnda ironia, esta escapada, estaaparencIa de escapada ou de renuncia. Pois na realidadeo mito nao interrompe nada; ele e, ao contnlrio element~integrante da propria divisao. E proprio da divisao ultra­passar a dualidade entre 0 mito e a dialetica e reunirem 8i a potencia dialetica e a patencia mitica. 0 mito,com sua estrutura sempre circular, e realmente a narrativade uma funda<;ao. E ele que permite erigir urn modelosegundo 0 qual os diferentes pretendentes poderao ser jul­gados. 0 que deve ser fundado, com efeito, e sempre umapretensao. E 0 pretendente que faz apelo a urn fundamentoe cuja pretensao se acha bern fundada ou mal fundada, naofundada. Assim, no Fedro, 0 mito da circula<;ao exp5e 0

que as almas puderam ver das Ideias antes da encarna<;ao:por is~~ mesmo nos da urn criterio seletivo segundo 0 qualo dehno bern fundado ou 0 amor verdadeiro pertence asalmas que viram muito e que tern muitas lembran<;as ador­mecidas, mas ressuscitaveis - as almas sensuais de fracamemoria e de vista curta, sao, ao contnlrio, d~nunciadascomo falsos pretendentes. 0 mesmo ocone no Politico: 0

mito circular mostra que a defini<;ao do politico como "pa~tordos homens" nao convem literalmente senao ao deus arcaICO;mas urn criterio de sele<;ao dai se destaca, de acordo com 0

qual os diferentes homens da Cidade participam de~igu~l­mente do modelo mitico. Em suma, uma partlclpa<;aoeletiva responde ao problema do metoda seletivo.

Participar e, na melhor das hipotes,:s,. ter e~ segu~d?lugar. De onde a celebre triade neoplat?mca.: 0 Imp,artlCl­pavel, 0 participado, 0 participante. Dlr-Se-la tambem: 0

fundamento, 0 objeto da pretensao, 0 pretend.ente; 0 pai,. afilha e 0 noivo. 0 fundamento e 0 que possU! alguma COlsaem primeiro lugar, mas que the da a participar, que the da aopretendente possuidor em segundo lugar, na medlda em quesoube pass~ pela prova do fundamento. 0 partici~ado eo que 0 imparticipavel possui em pri~eiro lugar. 0 ~n:par­ticipavel da a participar, ele da 0 parllcipado aos partlclp~n­tes: a justi<;a, a qualidade de justo, os justos. E e precIsodistin"";r sem duvida todo urn conjunto de graus, toda

b~" •

uma hierarquia, nesta participa~ao eletiva: nao ~ave~Ia. ~mpossuidor em terceiro lugar, em quarto etc., .ate ? mfinItode uma degrada<;ao, ate aquele que nao possU! malS do queurn simulacro uma miragem, ele proprio miragem e simu­lacro? 0 P';Utico distingue em detalhe: 0 verdadeiro poli­tico ou 0 pretendente bern fundado, depois parentes, auxili~­res escravos, ate aos simulacros e contrafac<;5es. A maldl­~a~ pesa sobre estes llitimos; eles encarnam a rna potenciado falso pretendente.

Assim, 0 mito constroi 0 modelo imanente ou 0 funda­mento-prova de acordo com 0 qual os ~retendentes deve_mser julgados e sua pretensao medida. E e sob esta condl<;aoque a divisao prossegue e atinge seu fim, que e nao a espe­cificagao do conceito mas a autentica~ao da Ideia, naD adetermina<;ao da especie, mas a sele<;ao da linhagem. Comoexplicar, contudo, que, dos tres grandes textos sobre a, ~IVl­sao, 0 Fedro, 0 Politico e 0 So/ista, nao apresente 'este ultImonenhum mito fundador? A razao disso e simples. E que,no So/ista, 0 metodo de divisao eparadoxalmente empreg~donao para avaliar os justos pretendentes, mas ao contranopara encurralar 0 falso pretendente como tal, para deflmro ser (ou antes 0 nao-ser) do simulacro. 0 proprio sofistae 0 ser do simulacro 0 satiro ou centauro, 0 Proteu que seimiscui e se insinua' par toda parte. Mas, neste sentido,e possivel que 0 tim do So/ista contenha a mais extraordina­ria aventura do platonismo: a for<;a de buscar do lade dosimulacro e de se debru<;ar sobre seu abismo, Platao, noelarao de urn instante descobre que nao e simplesmente umafalsa copia, mas qu~ poe em questao as proprias. no~oesde copia. .. e de modelo. A defini<;ao final do sofIsta nos

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Je~a ~ ~ ponto e~ q~e nao mais podemos distingui-Io dopropno.Socrates: 0 !fornsta operando, em conversas privadas,por melO de argumentos breves. Nao seria necessario mes­mo I.ev~ a ir~mi~ ate ai? E tambem que tivesse side Plataoo pnmelr?,a mdicar esta direc;ao da reversao do platonismo?

,P.artina';D~s d~ urna ~rimeira determinac;ao do motivoplatornco; dlstingu~ a ess~ncia e a aparencia, 0 inteliglvele 0 senslvel,. a Idem e a Imagem, 0 original e a copia 0

m.odel? e 0 ~Imulacro. Mas ja vemos que estas express5esnao, ~ao eq.wvalentes. A distinc;ao se desloca entre duasespecles de Imagens. As c6pias sao possuidoras em segundolugar, pretendentes bern fundados, garantidos pela semelhan­c;a; os simulacros sao como os falsos pretendentes, COnstrUI­dos a pa.rtir de u';D~ dissimilitude, implicando uma perversao,~ desvlo e,ss.enclars. :E: neste sentido que Platao divide emdOlS 0 dommlO das imagens-Idolos: de urn lado as c6pias­ieones, de outro os simulacros-fantasmas '. Podemos entaodefinir ';Delhor 0 conjunto da motivac;ao platonica: trata-sed~ ~eleclOnar os pretendentes, distinguindo as boas e as mascoplas ou antes as copias sempre bern fundadas e os simu­Iacros sempre submersos na dessemelhanc;a. Trata-se deassegurar 0 triunfo das cOpias sobre os simulacros derec~lcar ~s simulacros, de mante-Ios encadeados no fdndo,de Impedl-Ios de subir a superffcie e de se "insinuar" portoda parte.

, ~ gra!'de dualidade ';D~nifesta, a Ideia e a imagem, naoesta "' senao Com este objetlvo: assegurar a distinc;ao Iatenteen~re as duas, especies de imagens, dar urn criterio concreto.POlS, se as copias ou fcones Sao boas imagens e bern funda­das, e porque sao dotadas de semelhanc;a. Mas a semelhan­c;a. nao deve ser entendida como uma relac;ao exterior: eiava~.menos de uma coisa a outra do que de uma coisa a umaIdela, u~a vez q~e ~ a Ideia que compreende as relac;oes eproporC;oes constitutivas da essencia interna. Interior ee~pi.ritual, a semelhanc;a e a medida de urna pretensao: aCOPI~ nao parece verdadeiramente a alguma coisa senao nar;>edlda em que p~ece a I~eia da coisa. a pretendente naoe conforme ao objeto senao na medida em que se modela(interiormente e espiritualmente) sobre a Ideia. Ele naomer.ece a qua~dade (por exemplo, a qualidade de justo)~en~o na medlda em que se funda sobre a essencia (ajustic;a) . Em suma, e a identidade superior da Ideia quefunda a boa pretensao das copias e funda-a sobre Uma se­mel~anc;a i~terna ou derivada. Consideremos agora a outraespe~le de Imagens, os simulacros: aquilo a que pretendem,o objeto, a quahdad: etc., preten~er;>-no por baixo do pano,grac;as a uma agressao, de urna msmuac;ao, de uma subver-

1 . Sofista. 236b. 264c.

sao, "contra 0 pai" e sem passar pela Ideia 2. Pretensaonao fundada, que recobre uma dessemelhanc;a assim comourn desequilibrio interno.

Se dizemos do simulacro que e uma copia de copia,urn Icone infinitamente degradado, urna semeIhanc;a infinita­mente afrouxada, passamos a margem do essencial: a dife­renc;a de natureza entre simulacro e copia, 0 aspecto peloqual formam as duas metades de uma divisao. A cOpia euma imagem dotada de semelhanc;a, 0 simulacro, umaimagem sem semelhanc;a. a catecismo, tao inspirado noplatonismo, familiarizou-nos com esta noc;ao: Deus fez 0

homem a sua imagem e semelhanc;a, mas, pelo pecado, 0

homem perdeu a semelhanc;a embora conservasse a imagem.Tornarno-nos simulacros, perdemos a existencia moral paraentrarmos na existencia estetica. A observac;ao do cate­cismo tern a vantagem de enfatizar 0 carater demonfaco dosimulacro. Sem duvida, ele produz ainda urn efeito desemelham;a; mas e urn efeito de conjunto, exterior, e produ­zido por meios completamente diferentes daqueles que seacham em ac;ao no modelo. a simulacro e construfdo sobreuma disparidade, sobre uma diferenc;a, ele interioriza umadissimilitude. Eis por que nao podemos nem mesmo defini­-10 com relac;ao ao modele que se imp5e as copias, modelo,do Mesmo do qual deriva a semelhanc;a das copias. Se 0

simulacro tern ainda urn modelo, trata-se de urn outromodelo, urn modelo do autro de onde decorre uma desse­meIhanc;a interiorizada 3.

Seja a granqe trindade platonica:· 0 usuarlO, 0 pro­dutor, 0 imitador. Se 0 usuario esta no alto da hierarquiae porque julga sobre fins e dispoe de urn verdadeiro saberque e 0 do modele ou da Ideia. A copia poderia serchamada de imitac;ao na medida em que reproduz 0 modele;contudo, como esta imita\=ao e noetica, espiritual e interior,ela e uma verdadeira produc;ao que se regula em func;aodas relac;oes e proporc;oes constitutivas da essencia. Hasempre urna operac;ao produtiva na boa copia e, para corres­ponder a esta operac;ao, uma opiniiio justa ou ate mesmourn saber. Vemos, pois, que a imitac;ao e determinada atomar urn sentido pejorativo na medida em que nao conse­gue passar de urna simulac;ao, que nao se aplica senao aosimulacro e desigua 0 efeito de semelhanc;a somente exterior

2. Analisando a relat:ao entre a escritura e 0 logos, Jacques Derridareenoontra reahnente esta figura do platonismo: 0 pai do logos, 0 pr6priologos, a escritura. A escritura e urn simulacra, urn falso pretendente. n3medida em que pretende se apoderar do logos p<lr viol8ncia e por ardil oumesmo suplanta-lo sem passar pelo pai. Cf. "La Pharmacie de Platon".Tel Quel, rf? 32, p. 12 e s. e n9 33, p. 38 e S. A rnesrna figura se encontraainda no PoJ.ftjco: 0 Bern como pai da lei, a lei ela pr6pria, as constitui!rDes.As boas constitui!;6es sao c6pias; mas se tornam simulacros assim que violamou usurparn a lei, esquivando-se ao Bern.

3. 0 Dutro, com efeito, nao e somente uma defici&lcia que afeta a,irnagens; ete pr6prio aparece como urn modelo possivel, que se opOe ao bommodelo do Mesmo: cf. Teeteto 176e, Timeu 28b.

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I:

e improdutivo, obtido por ardil ou subversao. La naoexiste mais nero mesma opiniao justa, mas uma especie derefrega ironica que faz as vezes de modo de conhecimento,uma arte da refrega exterior ao saber e a opiniao 4. Piataoprecisa 0 modo como este efeito improdutivo e obtido: 0

simulacro implica grandes dimens6es, profundidades e dis­tancias que 0 observador nao pode domiuar. E porqueDaD as domina que ele experimenta uma impressao de semc­Ihanc;a. 0 simulacro inc1ui em si 0 ponto de vista dife­rencial; 0 observador faz parte do proprio simulacro, quese trausforma e se deforma com seu ponto de vista 5. Emsuma, h:i no simulacra urn devir-louco, urn devir ilimitadocomo 0 do Filebo em que "0 mais e 0 menos VaG sempre" a

frente", urn devir sempre outro, urn devir subversivo dasprofundidades, bibil a esquivar 0 igual, 0 limite, 0 Mesmoou 0 Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo,mas nunca igual. Impor urn limite a este devir, ordemi-loao mesmo, torna-Io semelhante - e, para a parte que per­maneceria rebelde, recalea-Ia 0 mais profundo possivel,eucerra-Ia numa caverna no fundo do Oceano: tal e 0

objetivo do platonismo em sua vontade de fazer triunfar osicones sabre as simulacros.

o platonismo funda assim todo 0 dominio que a filo­sofia reconhecera como seu: 0 dominio da representac;aopreenchido pelas copias-kones e definido nao em uma rela­~ao extriDseca a urn objeto, mas Duma rela<;ao intrinsecaao modelo ou fundamento. 0 modelo platonico e 0 Mesmo:no sentido em que Platao diz que a Justic;a nao e nadaalem de justa, a Coragem, corajosa etc. - a determinac;aoabstrata do fundamento como aqniJo que possui em primeirolugar. A copia platonica e 0 Semelhante: 0 pretendenteque recebe em segundo lugar. A identidade pura do modeloou do original corresponde a similitude exemplar, a purasemelhan,a da copia corresponde a similitude dita imitativa.Nao se pode dizer, contudo, que 0 platonismo desenvolveainda esta potencia da representac;ao por si mesma: ele secontenta em -balizar 0 sen dominic, ista e, em fnnda-Ia,:seleciomi-Io, exc1uir dele tudo 0 que viria embaralhar seus~imites. Mas 0 desdobrar da representac;ao como bern fun­dada e Iimitada, como representac;ao finita, e antes 0 objetode Aristoteles: a representac;ao percone e cobre todo 0

dominio que vai dos mais altos generos as menores esreciese 0 metodo de divisao toma entao seu procedimento tradi-

4. Cf. Republica, x, 602a e So1ista, 268a.5. X. Audouard mostrou muito bern este aspecto: os simulacros "silo

'COnstruc;6es que incluem 0 angulo do observador, para que a Husao Se produzado ponto mesmo em que 0 observador se encontra... Nao e na realidade 0estatuto do nao-ser que e enfatizado, mas este pequeno desvio, da imagem.real, que se prende ao ponto de vista ocupado pelo observador e que constituia possibilidade de constr'uir 0 simuIacro, obra do sofista" ("Le Simulacre"Cahiers pour Z'analyse, nQ 3). '

cional de especificac;ao que nao tinha em Platao. Podemosdesignar urn terceiro momenta quando, sob a influencia doCristianismo, nao se procura mais somente fundar a repre­senta9ao, torna-la possivel, nem especifica-la ou determina­.-Ia como finita, mas tornd-la intinita, fazer valer paraela uma pretensao sobre 0 ilimitado, faze-Ia conquistar 0

infinitamente grande assim como 0 infinitamente pequeno,abrindo-a sobre 0 Ser alem dos generos maiores e sobreo singular aquem das menores especies.

Leibniz e Hegel marcaram com seu genio esta tentativa.Contudo, se ainda assim nao saimos do elemento da repre­sentac;ao e porque permanece a dupla exigencia do Mesmoe do Semelhante. Simplesmente, 0 Mesmo encontrou urnprincipio incondicionado capaz de faze-lo reinar no ilimi­tado: a razao suficiente; e 0 Semelhante encontrou umacondic;ao capaz de aplica-lo ao ilimitado: a convergenciaou a continuidade. Com efeito, uma noc;ao tao rica comoa de compossibilidade, de Leibniz, significa que, sendo asmonadas assimiladas a pontos singulares, cada serie queconverge em torno de urn destes pontos se prolonga emoutras series convergindo em torno de outros pontos; urnoutro mundo come,a na vizinhanc;a dos pontos que fariamdivergir as series obtidas. Vemos pois como Leibniz excluia divergencia distribuindo-a em "incompossiveis" e conser­vando 0 maximo de convergencia ou de continuidade comocriterio do melhor mundo possivel, isto e, do mundo real.(Leibniz apresenta os outros mundos como "pretendentes"menos bern fundados.) Da mesma forma, para Hegel,mostrou-se resentemente ate que ponto os drculos da diale­tica giravam em torno de urn so centro, repousavam Dumso centro 6. Monocentragem dos circulos au convergenciadas series, a filosofia nao deixa 0 elemento da representac;aoquando parte a conquista do infinito. Sua embriaguez efingida. Ela persegue sempre a mesma tarefa, Iconologia eadapta-a as exigencias especulativas do Cristianismo (0 infi­nitamente pequeno e 0 infinitamente grande). E semprea selec;ao dos pretendentes, a exclusao do excentrico e dodivergente, em nome de uma finalidade superior, de umarealidade essencial ou mesmo de urn sentido da historia.

A estetica sofre de uma dualidade dilacerante. Designade urn lado a teoria da sensibilidade como forma da expe­riencia possivel; de outro, a teoria da arte como reflexaoda experiencia real. Para que os dois sentidos se juntem epreciso que as proprias condic;6es da experiencia em gera!se tornem condi90es da experiencia real; a obra de arte,

6. Louis Althusser escreve a propi6sito de He,geI: "Circulo de circulos,a consciencia s6 tern urn unico centro que a determina: seriam precisosdrculos tendo urn outro centro do que ela, circulos descentrados, para queeIa fosse afetada em seu centro por sua eficacia, em suma, que sua essenciafosse sobredeterminada par eles ..." (Pour Marx, ed. Maspero, p. 101.)

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de seu lado, aparece entao realmente como experimenta9aO.Sabe-se por exemplo que certos procedimentos literarios(as outras artes tern equivalentes) permitem contar variashistorias ao mesmo tempo. Nao ha duvida de que e esteo carater essencial da obra de arte moderna. Nao se tratade forma nenhuma de pontos de vista diferentes sobre umahistoria que se supoe ser a mesma; pois os pontos de vistapermanecem submetidos a uma regra de convergencia.Trata-se, ao contr:rrio, de historias diferentes e divergentes,como se uma pmsagem absolutamente distinta correspon­desse a cada ponto de vista. Ha realmente uma unidadedas series divergentes enquanto divergentes, mas e urn caossempre excentrado que se confunde ele proprio com aGrande Obra. Este caos informal, a grande letra deFinnegan's wake nao e qualquer caos: e potencia de afir­ma9aO, potencia de afirmar todas as series heterogeneas,ele "complica" em si todas as series (de cnde 0 interesseque Joyce tern por Bruno, como teorico da complicatio).Entre estas series de base se produz uma especie de resso­ntincia interna; esta ressonancia induz urn movimentoforrado, que transborda das proprias series. Todos estescaracteres sao os do simulacro, quando rompe suas cadeiase sabe a snperficie: afirma enHio sua patencia de fantasma,sua potencia recalcada. Lembramo-nos de que Freud jamostrava como 0 fantasma resulta de duas series pelomenos, uma infantil e a outra pos-pubertaria. A cargaafetiva ligada ao fantasma explica-se pela ressonanciainterna da qual os simulacros sao portadores e a impressaode morte, de ruptura ou de desmembramento da vidaexplica-se pela amplitude do movimento for9ado que asarrasta. Reunem-se assim as condi90es da experiencia reale as estruturas da obra de arte: divergencia das series,descentramento dos circulos, constitui9aO do caos que oscompreende, ressonancia interna e movimento de amplitude,agressao dos simulacros 7.

Tais sistemas, constituidos pela coloCa9aO em comuni­ca9aO de elementos dispares ou de series heterogeneas, saobastante ordinarios em urn sentido. Sao sistemas sinal­-signo. 0 sinal e uma estrutura em que se repartem dife­ren9as de potencial e que assegura a comunica9ao dosdispares; 0 signo e 0 que fulgura entre os dois niveis daarIa, entre as duas series comunicantes. Parece realmenteque todos os fenomenos respondem a estas condi90es namedida em que encontram sua razao em uma dissimetria,em uma diferen9a, uma desigualdade constitutivas: todosas sistemas fisicos sao sinais, todas as qualidades sao signos.

7. Sobre a obra de arte modema e notadamente Joyce, d. Umberto.Eco, A _Obra aberta. No prefacio de seu romance Cosmos. Gombrowicz fazobserya(,lOes profundas sobre a constituic;ao das series divergentes, sobre amaneIra pela qual ressoam e se comunicam no seio de um caos.

"E verdade, todavia, que as series que os bordejam perma­necem exteriores; por isso mesmo, tambem as condi90es desua reprodU9aO permanecem exteriores aos fenomenos.Para falar de simulacro, e preciso que as series heterogeneassejam realmente interiorizadas no sistema, compreendidas oucomplicadas no caos, e preciso que sua diferen9a sejaincluida. Sem duvida, ha sempre uma semelhan9a entreseries que ressoam. Mas 0 problema nao esta ai, estaantes no estatuto, na posi9aO desta semelhan9a. Conside­femas as duas formulas: "so 0 que se parece difere","somente as diferen9as se parecem". Trata-se de duasleituras do mundo, na medida em que uma nos convida apensar a diferen9a a partir de uma similitude ou de umaidentidade preliminar, enquanto a outra nos convida aocontrario a pensar a similitude e mesmo a identidade comoo produto de uma disparidade de fun do. A primeira defineexatamente 0 mundo das copias ou das representa90es;coloca 0 mundo como icone. A segunda, contra a pri­meira define 0 mundo dos simulacros. Ela coloca 0

proprio mundo como fantasma. Ora, do ponto de vistadesta segunda formula, importa pouco que a disparidadeoriginal, sobre a qual 0 simulacro e construido, seja grandeou pequena; ocorre que as series de base nao tenham ~enao

uma pequena diferen9a. Basta, contudo, que a dispandadeconstituinte seja julgada nela mesma, nao se prejulgue apartir de nenhuma identidade preliminar e que tenha 0

dispars como unidade de medida e de comunica9aO. Entaoa semelhan9a nao pode seL pensada senao como 0 produtodesta diferen9a interna. Importa pouco que 0 sistema sejade grande semelhan9a externa e pequena diferen9a interna,ou 0 contrario, a partir do momento em que a semelhan9ae produzida sobre a curva e que a diferen9a, pequena ougrande, ocupe 0 centro do sistema assim descentrado.

Reverter 0 platonismo significa entao: fazer subir ossimulacros, afirmar seus direitos entre os icones ou as copias.o problema nao concerne mais a distin9ao Essencia-Apa­rencia, ou Modelo-copia. Esta distin9ao opera no mundoda representa9ao; trata-se de introduzir a subversao nestemundo, "crepusculo dos idolos". 0 simulacro nao e umacopia degradada, ele encerra uma potencia positiva que negatanto 0 original como a c6pia, tanto 0 mod~lo como a repro­dur;iio. Pelo menos das duas series divergentes interiori­zadas no simulacro, nenhuma pode ser designada como 0

original, nenhuma como a copia 8. Nao basta nem mesmoinvocar um modelo do Outro, pois nenbum modelo reslste

8. Cf. Blanchot, "Le Rite des dieux", La N.ouvelle revue j1'anyaise,julho de 1965: "urn universo ern que a imagern delXa de ser segunda c?mtelac;ao ao modelo, ern que a irnpostuta p~et~nde it verdade, em 9ue, eohrn,nao hli mais original, mas uma ete~a cmtill.'-c;ao"em que se dlSpersa, noclarao do d.esvio e do retorno, a 3us8nCl3 de ongern (p. 103).

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Ii vertigem do simulacra. Nao ha mais ponto de vistapriviIegiado do que objeto comum a todos as pontos devista. Nao ha mais hierarquia possivel: nem segundo, nemterceiro. .. A semelhan,a subsiste, mas e produzida comoo efeito exterior do simulacra, na medida em que se cons­troi sabre as series divergentes e faz com que ressoem. Aidentidade subsiste, mas e produzida como a lei que com­plica todas as series, faz com que todas voltem em cadauma no curso do movimento for,ado. Na reversao doplatonismo, e a semelhan,a que se diz da diferen,a interio­rizada, e a identidade do Diferente como potencia primeira.o meSilla e 0 semelhante DaD tern mais por essencia senaoser simulados, ista e, exprimir 0 funcionamento do simulacra.Nao ha mais sele,ao passive!. A obra nao-hierarqnizada eurn condensado de coexistencias, urn simultaneo de aconte­cimentos. E a triunfo do falso pretendente. EJe simulatanto a pai como a pretendente e a noiva numa superposi,aode mascaras. Mas a falso pretendente nao pode ser ditofalso com rela,ao a urn modelo suposto de verdade, muitomenos que a simuIa,ao nao pode ser dita uma aparencia,uma ilusao. A simula~ao e 0 proprio fantasma, ista e, 0efeito do funcionamento do simulacra enquanto maquinaria,maquina dionisiaca. Trata-se do falso como patencia,Pseudos, no sentido em que Nietzsche diz: a mais altapotencia do falso. Subindo Ii superficie, a simulacra fazcair sob a potencia do falso (fantasma) a Mesmo e a Seme­Ihante, a modelo e a copia. Ele torna impossivel a ordemdas participa,6es, como a fixidez da distribui,ao e a deter­mina,ao da hierarquia. Instaura a mundo das distribni,6esnomades e das anarquias coroadas. Longe de ser urn novofundamento, engole todo fundamento, assegura urn univer­sal desabamento (effondrement) , mas como acontecimentopositivo e alegre, como effondement: "Atras de cadacaverna uma outra que se abre, mais profunda ainda eabaixo de cada snperficie, urn mundo subterraneo mais vasto,mais estrangeira, mais rico e sob todos as fundos, sob todasas funda,6es, urn subsolo mais prafundo ainda" 9. Comopoderia Socrates se reconhecer nestas cavernas que nao saomais a sua? Com que fio, uma vez que a fio se perdeu?Como sairia dai e como poderia ainda ser distinguido dosofista?

Que a Mesmo e a Semelhante sejam simulados naosignifica que sejam aparencias e iIus6es. A simula,aodesigna a patencia para produzir urn efeito. Mas nao esomente no sentido causal, uma vez que a causalidade conti­nuaria completamente hipotetiea e indeterminada sem ainterven,ao de outras significa,6es. E no sentido deHsigno", saido de urn processo de sinaliza~ao; e e no sentido

9. PaM alem do bem e do mal, § 289.

de "costume" ou antes de mascara, exprimindo urn processode disfarce em que, atras de cada masc~ra, apar~ce out,:aainda. .. A simula,ao assim compreendlda nao e separa­vel do eterno retorno; pais e no eterno retorno que sedecidem a reversao dos ieones au a subversao do mundorepresentativo. Ai, tudo se passa como se urn conteudolatente se opusesse ao conteudo manifesto. 0 conteudomanifesto do eterno retorno pode ser determinado conformeao platonismo em geral: ele representa_ entao a ,?aneirapela qual a eaos e organizado sob a a,ao do demmrgo esabre a modelo da Ideia que Ihe imp6e a mesmo e asemelhante. 0 eterno retorno, neste sentido, e a devir­-Iouco controlado, monocentrado, determinado a copiar aeterno. E e desta maneira que ele apareee no mit? fun­dador. Ele instaura a copia na imagem, subordma aimagem Ii semelhan,a. Mas, lange de representar a verdadedo eterno retorno, este conteudo manifesto marca antes suautiliza,ao e sua sobrevivencia mitica em uma ideologia. quenao a suporta mais e que perdeu a seu segredo. . E Justolembrar quanta a alma grega em geral e a platomsmo emparticular repugnam ao eterno retorno t~mado ~m suasignifica,ao latente 10. E preciso dar razao a NIetzschequando trata a eterno retorno com_o sua propria id.eia. ~erti­ginosa, que nao se alimenta senao em fontes dlOn\S1aeaSesotericas, ignoradas au recaleadas pelo platomsmo.. C~rta­mente, as raras exposi,6es que Nietzsche faz a respelto flcamno conteUdo manifesto: a eterno retorno como a Mesmoque faz voltar a Semelhante. Mas como nao ~er a despra­por,ao entre esta tr!vial verdade n::tural, que na? ultrapassauma ordem generahzada das esta,oes e a emo,ao de Zara­tustra? Bem mais, a exposi,ao manifesta nao existe senaopara ser refutada secamente par Zaratustra: uma vez parao anao uma outra a seus animais, Zaratustra reprova-a portransfo;mar em vacuidade alga que e singularmente profunda,em uma "cantilena" 0 que e de uma musica diferente, emsimplicidade circular a que e diferentemente tortuoso. Noeterno retorno, epreciso passar pelo conteudo. manifest~, m~ssomente para atingir ao conteudo latente sltuado nu~ pesabaixo (caverna par tras de to~a caverna ... ) Entao,,?que parecia a Platao nao ser malS do, que um e~elto e~t~r~1revela em si a inalterabilidade das mascaras, a lmpasslbih­dade dos signos.

o segredo do eterno retorno e que nao exprime deforma nenhuma uma ordem que se op6e ao caos e que asOOmete. Ao contrario, ele nao e nada alem do que a caos,potencia de afirmar a caos. Ha urn ponto no qual Joyce

10. Sobre a reticencia dos gregos e notadaroente Pintio c~m rela~aoao eterno retorno, d. Charles Mugler, Deux themes de la cosmologle grecque,ed. Klincksieck, 1953.

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e nietzschiano: quando mostra que 0 vicus of recirculationnao JXK1e afetar e fazer girar urn "caosmos". A coerenciada representa~o, 0 eterno retorno substitui Dutra caisa, suapropria cao-errancia. ~ que, entre 0 eterno retorno e 0

simulacro, M urn la90 tao profundo, que urn nao pode sercompreendido senao pelo outro. 0 que retorna sao asseries divergentes enquanto divergentes, isto e, cada qualenquanto desloca sua diferen9a Com todas as outras e todasenquanto complicam sua diferen9a no caos sem come90 nemfim. 0 circulo do eterno retorno e urn circulo sempreexcentrico para urn centro sempre descentrado. Klossowskitern razao de dizer do eterno retorno que e "urn simulacrode doutrina": ele e realmente 0 Ser, mas somente quandoo "ente" esimulacra 11, 0 simulacra funciona de tal maneiraque uma semelhan9a e retrojetada necessariamente sobre~uas series de bases,.e urna identidade necessariamente pro­Jetada sobre 0 mOVlmento for9ado. 0 eterno retorno e,pois, efetivamente 0 Mesmo e 0 SemeIhante, mas enquantosimulados, produzidos pela simula9ao, pelo funcionamentodo simulacro (vontade de potencia). :E neste sentido queele subverte a representa9ao, que destr6i os icones: ele naopressup6e 0 Mesmo e 0 Semelhante, mas, ao contriirio,constitui 0 unico Mesmo daquilo que difere, a unica seme­Ihan9a do desemparelhado. Ele e 0 fantasma unico paratodos os simulacros (0 ser para todos os entes). :E potenciapara afirmar a divergencia e 0 descentramento. Faz deles

.() objeto de uma afirma9ao superior. :E sob a potencia dofalso pretendente que ele faz passar e repassar 0 que e.Assim, nao faz retornar tudo. :E ainda seletivo, faz a dife­ren9a, mas nao ii. maneira de Platao. 0 que seleciona saotodos os procedimentos que se op6em ii. sele9ao. 0 queexclui, 0 que niio faz retornar, e 0 que pressup6e 0 Mesmoe 0 Semelhante, 0 que pretende corrigir a divergencia,recentrar os cfrculos ou ordenar 0 caDs, dar urn modelo efazer uma copia. Por mais longa que seja sua historia, 0platonismo nao Deorre senao uma s6 vez e Socrates cai sobo cutelo. Pois 0 Mesmo e 0 Semelhante tornam-se simplesiIus6es, precisamente a partir do momento em que deixamde ser simulados.

Definimos a modernidade pela potencia do simulacro.Cabe ii. fiIosofia nao ser moderna a qualquer pre90, mJlitomenos intemporal, mas destacar da modernidade algo queNietzsche designava como 0 intempestivo, que pertence ii.modernidade, mas tambem que deve ser vOltada contra ela- "em favor, en 0 espero, de urn tempo por vir". Nao enos grandes bosques nem nas veredas que a filosofia se

11. KLOSSOWSKI, Pierre. Un si funeste des;;. Gallimard, p. 226. Ep'p. 216-218, em .que Klossowski .c0menta as palavras da Gaia Ciencia, § 361:o prazer da simulal;a?, explodmdo como potencia, recalcando e assim cha~

made carMer, submerglndo-.o por vezes ate extingui-Ie .....

elabora mas nas cidades e nas rnas, inclusive no que Mde mal~ factkiD nelas. 0 intempestivo se estabelece comrela9aO ao mals longinguo passado, na. reversao do pla.to­nismo, com rela9ao ao presente, no, ~lmulacro con<:ebldocomo 0 ponto desta modernidade cnllca, com rela9ao aofuturo no fantasma do eterno retorno comO cren9a ~o futuro;o facticio e 0 simulacro nao sao a mesma COlsa. Atemesmo se op6em. 0 facticio e sen$re uma c6pia de copia,que deve ser levada ate ao ponto em que muda de naturezae se reverte em simulacro (momento da Pop'Art). 0facticio e 0 simulacro se op6em nO cora9ao da modernidade,no ponto em que esta acerta todas. a,;; suas cO!'ta~~ .assimcomo se op6em dois modos de destrw9ao: .os dOIS niiIismos.Pois hii urna grande diferen9a entre destrwr para conservare perpetuar a ordem restabelecida das represent~9~es, dosmodelos e das copias e destruir os modelos e as ~plas parainstaurar 0 caos que cria, que faz marchar os slffiulacros elevantar urn fantasma - a mais inocente de todas asdestrui96es, a do platonismo.

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'-. I.U\"IIl:i\"IU Il:i U ~IIIIU.U"'. U

Depois de Epicuro, Lucrecio soube determinar 0 objetoespeculativo e pnitico da filosofia como "naturalismo". Aimportancia de Lucrecio em filosolia esti ligada a essa dupladetermina<;ao.

Os produtos da Natureza nao sao separiveis de umadiversidade que Ihes 10 essencial. Mas pensar 0 diverso comodiverso 10 uma tarela dilicil em que, segundo Lucrecio,todas as filosolias precedentes lracassaram 1. Em nossomundo a diversidade natural aparece sob tres aspectos quese recortam: a diversidade das especies, a diversidade dosindividuos que sao membros de uma mesma espede, a diver­sidade das partes que comp5em um individuo. A especili­cidade, a individualidade e a heterogeneidade. Na,o himundo que DaD se manifeste na variedade de snas partes,de seus lugares, de suas margens e das especies que os povoa.Nao hi individuo que seja absolutamente identico a outroindividuo; nao hi bezerro que nao seja reconhecivel parasua mae, nem conchas ou graos de trigo que sejam indis­cerniveis. Nem hi corpo que seja composto de parteshomogeneas; nem uma erva, nem urn curso d'agua que DaD

impliquem uma diversidade de materia, uma heterogeneidadede elementos, cnde cada especie animal, por sua vez, naopossa encontrar 0 alimento que Ihe convem. Inlere-se daia diversidade dos proprios mundos sob estes tres pontos devista: as mundos sao inumeniveis, freqiientemente de esp6­cies diferentes, as vezes semelhantes, sempre compostos deelementos heterogeneos.

1. Em toda a parte critica do Livra T, Lucrecia reclama sem cessaruma tazao do di ....erso. Os diferentes aspectos da diversidade sao descritosno Livro II, 342-376, 581-588, 661-681, 1052-1066.

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Com que direito esta inferencia? A Natureza deve serpensada como 0 principio do diverse e da sua produ~ao.

Mas urn principio de produ~ao do diverse s6 tern sentidodesde que niio reuna seus pr6prios elementos num todo.Nao se vera nessa exigencia urn circuIo, como se Epicuroe Lucrecio quisessem apenas dizer que 0 principio do diversodeveria ser ele mesmo diverso. A tese epicuriana e berndiversa: a Natureza como produ,ao do diverse nao podeser senao uma soma infinita, ista e, uma Soma que DaOtotaliza seus pr6prios elementos. Nao ha combina~ao capazde abranger todos os elementos da Natureza ao mesmotempo, nao ha mundo uniea ou universe total. Physis naoe urna determina~ao do Uno, do Ser ou do Todo. ANatureza nao e coletiva, mas distributiva; as leis da Natu­reza (foedera naturai, por oposi~ao as pretensas foederafati) distribuem partes que nao se totalizam. A NaturezaDaD e atributiva, mas conjuntiva: ela se exprime em "e"e DaD em "6". Isto e aquila: alternancias e entrelat;:a­mentos, semelhan~as e diferen~as, atra~5es e distra~5es,nuan,as e arrebatamentos. A Natureza e capa de Arlequimtada feita de cheios e vazios; cheios e vazia, seres e nao­-ser, cada urn dos dois se apresentando como ilimitado e aomesmo tempo limitando 0 outro. Adi~ao de indivisiveis,ora semelhantes ora diferentes, a Natureza e bern mais umasoma, mas nao urn todo. Com Epicuro e Lucrecio come­~am os verdadeiros atos de nobreza do pluralismo emfilosofia. Nao veremos mais contradi~ao entre 0 hino aNatureza-Venus e 0 pluralismo essencial a esta filosofiada Natureza. A Natureza e precisamente a potencia, maspotencia em nome da qual as coisas existem uma a uma,sem possibilidade de se reunirem todas de uma vez, nemde se unificar numa combina~ao que Ihe fosse adequada ouse exprimisse inteira de uma s6 vez. 0 que Lucrecio cen­sura aos predecessores de Epicuro e terem acreditado noSer, no Uno e no Todo. Estes conceitos sao as manias doespirito, as formas especulativas da cren~a no fatum, asformas teol6gicas de urna falsa filosofia.

Os predecessores de Epicuro identificaram 0 principioao Uno ou ao Todo. Mas 0 que e urn, senao tal objetoperecivel e corruptivel que se considera arbitrariamenteisolado de todo outro? E 0 que e que forma urn todo,senao tal combina~ao finita, cheia de buracos, que, arbitra­riamente, se acredita que reline todos os elementos da soma?Nos dois casos 0 diverse e sua produ~ao nao sao compreen­didos. Nao se engendra 0 diverso a partir do Uno senaosupondo que nao importa 0 que possa nascer de naoimporta 0 que, e portanto, qualquer coisa do nada. Naose engendra 0 diverse a partir do todo senao supondo queos elementos que formam esse todo sao contrarios capazes

de se transformar uns nos outros: outra forma de dizerque uma coisa produz uma outra mudando de n~t~eza,

e que qualquer coisa nasce do nada. Porque os filo~ofos

antinaturalistas DaD quiseram levar em eonta 0 vazlO, 0

vazio se apoderou de tudo. Seu S~r, seu Uno, seu ,!,o~o

sao sempre artificiais e DaD naturals, sempre c?rrUptIvelS,evaporados, porosos, inconsistentes e quebradl~os; Elesprefeririam dizer: "0 ser e nada", a reconhecer: h~ serese ha 0 vazia, ha seres simples no v.azio e vaz.l~ nosseres compostos 2. A diversidade do ~1~~rsO os. fllosofossubstituiram a identidade ou 0 contradltono, mmtas ~e~es

os dois ao mesmo tempo. Nem identidade nem contra~l~ao,

mas semelhan~as e diferen,as, composi~5es e decomp?sl~oes,

"conexoes densidades, choques, encontros, mOVlmentosgra~as ao; quais se forma toda c?isa" 3. Coordena~5es edisjun~5es, loal e a Natureza das COisas. .

o naturalismo necessita de urn principio de caus~dade

fortemente estruturado que de conta .da produ~.ao _dodiverso, mas que 0 fa~a como composl~ao, comblDa~oes

diversas e nao totalizaveis entre elementos da Natur~za.

1Q) 0 atomo e aqniIo que deve ser pensado, aqniIo quenao pode ser senao pensado. 0 Momo ~ para 0 pensamentoo que 0 objeto sensivel e para os sentldos:. 0 obleto qu~

se destina essencialmente ao pensamento,. obleto ~ue se d~

ao pensar, da mesma forma como 0 obleto senslvel. se daaos sentidos. 0 atomo e a realidade absolu~a daqniIo quee pensado, como 0 objeto sensivel, a re~ldad~ absol,utadaquilo que e percebido. Que 0 atomo nao sela sensl;,ele nem 0 possa ser, que ele seja esse~cialme':'te oc~t'; e 0eleito de sua pr6pria natureza e nao da Im~erfel~ao. denossa sensibilidade. Em primeiro lu~ar, 0 m.etod? eplcu­'ano e urn metodo de analogia: 0 obleto senslvel e dotado~e partes sensiveis, mas hii um minima sensivel que ~epre­senta a menor parte do objeto; da mesma forma, 0 atomoe dotado de partes pensadas, mas hii urn mir;imo p~ns~d.o

que representa a menor parte do Momo. 0 a~omo !r;d~vI­

sivel e lormado de minima pensados, como 0 obJeto divIslvele composto de minima sensiveis 4. Em segundo lugar, ?metodo epicuriano e urn metodo de pass~gem ou d~ transl­~ao: gniado pela analogia, se passara ~o senslvel .aopensado e do pensado ao sensivel por transl~5es.: paulatzm,a medida que 0 sensivel se decomp5e e, se c0m.poe. Passa­-se do amllogo noetico ao amilogo senslvel, e l.nversament~,

por uma serie de graus concebidos e estabelecldos a pararde urn procedimento de exaustao.

2. Cf. Livro I, a critica~ de Hera:J.ito~ Empedoc1es e Ana~~;~76~.obreo nada que ronda eSsas concep9QeS pre-eplcunanas, cf. I, 657-669,

3. I, 633-634.4. I, 599-634, 749-752.

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29) A soma dos :Homos e infinita, justamente porqueeles slio elementos que nlio se totalizam. Mas essa soma nlioseria infinita se 0 vazio tambem DaD 0 fosse. 0 vazia e 0

cheio se entrela,am e se distribuem de tal forma que asoma do vazio e dos atamos, por sua vez, e ela mesmainfinita. Esse terceiro infinito exprime a correla,lio funda­mental entre os atomos e 0 vazio. 0 alto e 0 baixo novazio resultam da correla,ao do pr6prio vazio com osatomos; 0 peso dos atomos (movimento de cima para baixo)resnlta da correla,lio dos Momos com 0 vazio.

39) Os atomos se encontram na queda, nao em virtudede sua diferen,a de peso, mas em virtude do clinamen. 0clinamen e a razlio do encontro ou da rela,lio de urn Momocom outro. 0 elinamen esta fundamentalmente ligado 11teoria epicuriana do tempo, pe,a essencial do sistema. Novazio, todos os atomos caem com velocidade igual: urnMomo nlio e mais ou menos rapido em fun,lio de seu pesomas em fun,lio de outros atomos que retardam mais oumenos sua queda. No vazio, a velocidade do Momo e igualao seu movimento numa direrao uniea num nUnimo detempo continuo. Esse minima exprime a menor dura\=aopossivel durante a qual urn Momo se move numa dadadire,lio, antes de poder tomar outra dire,lio sob 0 choquede urn outro Momo. Ha pois urn minimo de tempo, naomenos que urn minimo de materia ou de atomo. De acordocom a natureza do atomo, esse minimo de tempo continuoremete 11 apreenslio do pensamento. Ele exprime 0 pensa­menta mais rapido e mais curto: 0 atomo se move "taorapido quanto 0 pensamento" 5. Mas, desde entao, devemosconceber urna dire,lio originaria de cada atomo, como umasintese que da ao movimento do atomo sua primeira dire­,lio, sem a qual nao haveria choque. Esta sintese se faznecessariamente num tempo menor que 0 minimo de tempocontinuo. Tal e 0 elinamen. 0 clinamen ou declina,lionao tern nada a ver com urn movimento obliquo que viriapor acaso modificar uma queda vertical 6. Ele esta pre­sente todo 0 tempo: ele nao e urn movimento secundario,nem uma determina,ao secundaria do movimento que seproduziria nurn momento qualquer, num lugar qualquer.o elinamen e a determina,lio original da dire,lio do movi­mento do atomo. :e uma especie de eonatus: urn diferen­cial da materia, e por isso mesmo urn diferencial dopensamento, de acordo com 0 metodo da exaustao. Dai 0

sentido dos termos que 0 qualificam: ineertus nlio significaindeterminado, mas nlio designavel; paulum, incerto tem­pore~ intervallo minima significam "em urn tempo meDorque 0 minimo de tempo continuo pensavel".

5. Cf. Epicuro, Carta a HeJ'odoto. 61-62 (sobre 0 minima de tempocontinuo).

6. II, 243-250.

49) :e por isso que 0 clinamen nlio manifesta .nenhumacontingencia, nenhuma indetermina,lio. EI~ m~mfesta, a?contrario coisa bern diversa: a lex atomi, ISto e, a plurah-, .. . ., .dade irredutivel das causas ou das senes caUSalS, a lffipOSSI-bilidade de reunir as causas em urn todo. Com efeito, 0

clinamen e a determina~ao do encontro entre series causais,cada serie causal sendo constituida pelo movimento de urnatomo e conservando no encontro toda sua independencia.Nas famosas discuss5es que opiiem os Epicuristas aosEst6icos, 0 problema nao recai direta.mente sobre, contin­gencia e necessidade, mas sobre causahdade e destmo" OsEpicuristas, como os Est6icos, afirmam a •. causahdade(nenhurn movimento sem causa); mas os EStOlcoS queremainda afirmar 0 destino, isto e, a unidade das causas "entresi". Ao que os Epicuristas objetam que nlio se afirma 0

destino sem introduzir a necessidade, isto e, 0 encadeamentoabsoluto dos efeitos uns com os outros. E verdade que osEst6icos retrucam que cles absolutamente nlio introduzema necessidade, mas que os Epicuristas por sua vez nlio podemrecusar a unidade das causas sem cair na contingencia e noacaso 7. 0 verdadeiro problema e: ha uma unidade dascausas entre si? 0 pensamento da Natureza deve reunir ascausas em urn todo? A grande diferen,a entre os Epicu­ristas e os Est6icos e que eles nao operam a mesma cisaoda rela~ao causal. Os Est6icos afirmam uma diferen,a denatureza entre as causas corporais e seus efeitos incorporaIs,se bern que os efeitos remetam aos efeitos, e forrnem umaconjugafao~ enquanto que as causas remetem as causas. eformam urna unidade. Os Epicuristas, ao contrario, afIT­mam a independencia ou a pluralidade das series causaismateriais, em virtude de uma declina<;ao que afeta cadauma; e e somente nesse sentido objetivo que 0 clinamen podeser dito acaso.

59) Os atomos tern grandezas e figuras diversas. Mas 0

atomo nao pode ter uma grandeza qualquer, pois atingiriae nltrapassaria 0 minimo sensivel. Os Momos nlio podemtambem ter uma infinidade de figuras, pois toda diversi­dade de figura implica seja uma permuta,lio dos minimade Momos, seja urna multiplica,lio desses minima q~e nliopoderia ser levada ao infinito sem que 0 atomo, malS urnavez, nao se tornasse ele mesmo sensiveI 8. as contornos eas figuras dos atomos nlio sendo em numero infinito, haentao uma infinidade de Momos do mesmo contorno e demesma figura.

6\') Urn atomo qualquer que se encontre com outroqualquer nlio se combina com e1e: os atomos, de outra ma­neira, forrnariam urna combina,lio infinita. 0 choque, na ver-

7. Um dos temas prineipais do De Pato de CIcero.8. II. 483499.

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dade, e tanto repulsivo quanto combinatorio. Os ,homosse combinam n_a medida em que suas figuras 0 permitem.Suas combma90es se desfazem sob 0 impacto de outrosMomos que quebram 0 enlace, perdendo seus elementos queaderem a outros compostos. Se se diz que os atomos saO':germes _especificos" au "sementes", e porque quaIqueratomo nao entra em composi9ao com qualquer outro.

79) Toda combina9aO sendo fjnita, ha uma infinidade decombina90es. Mas nenhuma combina9aO e formada deuma ?~ca especie de atomos. Os atomos sao pois germesespeclficos num segundo sentido: eles constituem a hetero­geneidade_ d~ diverso consigo mesmo num mesmo corpo.o que nao l';Opede que, num corpo, os diferentes Momost~ndam, em vlrtude de seu peso, a se distribnir segundo suaflgura: em nosso mundo os Momos de mesma figura seagrupam formando vastos compostos. Nosso mundo dis­tribui seus ,~Iem~n~os ~~ tal forma que os da terra ocupamo centro, ex~nmmdo, fora deles, as que vaG formar 0mar, 0 ar, 0 eter (magna res) 9. A fiIosofia da Naturezanos diz: hetero~eneidade do diverso consigo, e tambemsemelhan9a do d,verso consigo.

, 89) Potencia do diverso e de sua prodU9aO, mas tambempotencIa de reprodu<;ao do diverso. :E importante ver comoessa segunda. potencia decorre da primeira. A semelhan9ad~corre do dIverso enquanto tal e da sua diversidade. Nao~Ia mundo nem co!'po que nao percam elementos, a cadam~tant~, e que nao encontrem outros de mesma figura.Nao ha mundo nem corpo que nao tenham eles propriosseus semelhantes no espa<;o e no tempo. :E que a produ9aode qualquer composto supoe que os diferentes elementoscapazes de 0 formar sejam eles mesmos em numero infinito'e]es DaD teriam nenhuma chance de se encontrar se cad~urn deles, no vazia, fosse 0 unico de sua especie au limitadoem numero. Mas, como cada urn deles tern uma infinidadede semelhantes, eles nao produzem urn composto.--sem queseus semelhantes nao tenham a mesma chance de renovaras partes dele e mesmo de reproduzir urn composto seme­lhante 10. Este argumento das chances vale sobretudo paraos mundos. Com razao mais forte ainda, os corpos intra­mundanos dispoem de urn principio de reprodu<;ao. Elesna~cem, com, e.feito, nos meios ja compostos, onde cada urnreune urn maXlmo de elementos de meSma figura: a terra,o ma~, 0 aI, 0 6tef, as magnae res. os grandes esteios quecons~t~em. noss~ ~undo e se prendem uns aos outros portransl90es msenSlvelS. Urn determinado corpo tern seu lugarnum desses conjuntos ". Como esse corpo nao cessa de

9. V, 449-454.10. II, 541~56B.

11. V, 128-131.

perder elementos da sua composi9ao, 0 conjunto em que elese banha Ihe fomece outros novos, seja por via direta, sejaatraves de uma ordem determinada, a partir de outrosconjuntos com os quais se comunica. Mais ainda: umcorpo tera seus semelhantes em outros lugares, no elementoque 0 produz e 0 alimenta 12. :E por isso que Lucrecioreconhece urn Ultimo aspecto do principio de causalidade:urn corpo nao nasce apenas de determinados elementos,que sao como sementes que 0 produzem, mas tambem numdeterminado meio, que e como uma mae apta a reproduzi-Io.A heterogeneidade do diverso forma uma especie de vita­lismo dos germes, mas a semelhan9a do proprio diverso,uma especie de panteismo das maes 13.

A fisica e 0 naturalismo do ponto de vista especulativo.o essencial da fisica esta na teoria do infinito, e dosminima temporais e espaciais. Os dois primeiros Iivros deLucrecio sao conformes a esse objeto fundamental da fisica:determinar 0 que e verdadeiramente injinito e 0 que nao 0 e,distinguir 0 verdadeiro infinito e 0 falso. 0 que e verda­deiramente infinite e a soma dos aromos, ° vazio, a somados Momos e do vazio, 0 numero de ;itomos de mesmafigura e mesmo contomo, 0 numero de combina90es e osmundos semelhantes ou diferentes do nosso. 0 que nao einfinito sao as partes do corpo e do Momo, os contomos efiguras do Momo, e sobretudo toda combina<;ao mundana ouintramundana. Ora, e de se observar que, nessa determi­na9ao do verdadeiro e do falso infinito, a fisica opera demaneira apoditica; e e ai, tambem, que ela revela suasubordina9aO com rela9ao it pratica ou it etica. (Aocontrario, se a fisica procede hipoteticamente, como paraexplicar urn fenomeno finito, ela pouco contribni para aetica 14.) Devemos entao perguntar por que a determina9aoapodftica do verdadeiro e do falso infinito, especulativa­mente, e 0 meio necessario da etica ou da pratica.

o fim ou objeto da pratica e 0 prazer. Ora, a pratica,nesse sentido, nos recomenda apenas todos os meios desuprimir e de evitar a dor. Mas nossos prazeres ternobstaculos mais fortes que as proprias dores: os fantasmas,as supersti90es, os terrores, 0 medo de morrer, tudo 0 queforma a inquieta9aO da alma 1S. 0 quadro da humanidadee um quadro da humanidade inqnieta, aterrorizada maisque dolorida (mesmo a peste se define nao apenas pelasdores que transmite, mas pela inquieta9aO generalizada queinstitni). :E a inquieta9ao da alma que multiplica a dor;

12. n, 1068: "cum locus est pTaesto!'13. I, 168. E II, 708: semin,ibtJ,s certis certa genetTice.14. Cf. Epicuro, CaTta a HeT6doto, 79.

. 15. A introdu\<iio do Livl'o II e constTulda sobre esta oposi\<ao: paraeVltar a dor tanto quanto e possivel, bastam poucas coisas _ mas para veneera perturba\<ao da alma e preciso uma me mais profunda.

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e ela que a torna inveucivel, mas sua origem e outra e bernmais profunda. Ela se compoe de dois elementos: uma Husiioviuda do corpo, Husiio de uma capacidade infiuita de pra­zeres; depois uma segunda Husiio prajetada ua alma, ilusiiode uma dura9iio iufiuita da propria alma, que uos entregaiudefesos a ideia de uma iufiuidade de dores possiveisdepois da morte 16. As duas Husoes se eucadeiam: 0 medodos castigos infinitos e a san9iio uatural dos desejos Himi­tados. E sobre esta terra que se deve procurar Sisifo eTitios; "e aqui embaixo que a vida dos tolos se torna urnverda~e!ro infe~no" 17. Epicura ch~ga mesmo a dizer que,se a lllJust19a e urn mal, se a cupldez, a ambi9ao, meSIDao deboche siio maus, e porque eles nos entregam a ideiade uma Puni9iio que pode sobrevir a todo instaute 18. Estareutregue iudefeso a iuquieta9iio da alma e justameute acondi9iio do homem ou 0 praduto da dupla Husiio: "HojeDaD ha nenhuro meio, nenhuma forma de resistir, pais sao?s penas eternas que e precise temer na morte" 19. E por1880 que para Lucrecio, como para Spinoza mais tarde, 0

homem religioso tem dois aspectos: avidez e augustiacupidez e culpabilidade, complexo estrauho, gerador d~cnmes. A iuquieta9iio da alma e pois feita do medo demorrer quando nao estamos ainda mortos, mas tambemdo medo de uiio estarmos aiuda mortos quando ja 0 esti­vermos. Todo 0 problema e 0 do priucipio dessa iutran­qtiilidade ou dessas duas Husoes.

E af que intervem uma teoria epicuriana mnito bonitae dificH. Dos proprios corpos ou dos compostos at6micosem~nam ,:onstantemente elementos particularmente sutis,f1Uldos e tenues. Esses compostos de seguudo grau siio dedois tipos: ou eIes emanam da prafundeza do corpa, ouse despreudem da superficie (peles, tuuicas ou tecidos, enve­lopes, cascas, aquila que Lucrecia chama de simulacros eEpicuro, de idolos). Conforme atingem 0 animus e aanima, produzem qualidades sensiveis. Os sons, os adores,as sabores, as ealoTes, remetem sobretudo as emissoes deprofundidade, euquanto que as determiua90es visuais, formase cores remetem aos simulacras de superfici.;:' Na verdadee ainda mais complicado, pois cada sentido parece combinarinforma90es de profundidade e de superficie; as emissoesprofundas passam pela superficie, e os envelopes superficiaisao se desprenderem do objero siio convertidos por camadasanteriormente enterradas. Por exemplo, os ruidos das pro­fundezas tornam-se vozes quando encontram em certassuperficies perfuradas (boca) condi90es para sua articula9iio.

16. LUCrt?cio insiste tanto sobre urn como sobre 0 outro desses aspectos:I,. 110-119; III, 41-73; III, 978-1023; VI, 12-16. Sabre a capacidade infi­mla dc prazeres, cf. Epieuro, Pensamentos, 20.

17. III, 1023.18. Epicuro, Pen.samentos, 7, 10, 34, 35.19. I, 110-111.

Inversameute, OS simulacros de superficie somente emitemas cores e as formas sob a luz que, ela: vem das ~rofu.:'-­dezas. Em todo caso as ernissoes e slmulac~os naO saoevidentemeute tomados como compastos de atomos, mascomo qualidades apreeudidas a distaucia sobre e uo o~Jet?;a distaucia e dada pelo f1uxo de ar que a.travessa. 0 orgaodos sentidos e por aquele que as emlssoes. e sl~ulacrasabrem diaute de si 20. E por isso que 0 obJeto e s:mprepercebido tal qual ele dev~ ~er perce?i~o,. em fun9ao ?Oestado dos simulacros e emlssoes, da dlstancla que e1es t:ma vencer, dos obstaculos que encoutram, das deforma90es

que sofrem ou dos choques de que siio alvo: ao bm deurn longo percurso os envelopes visuais uii? .uo~ colhemcom 0 mesmo vigor, as vozes perdem sua dlstl~9ao. Massempre subsiste a prapriedade de serem refendas a urnobjeto; e, uo casO do tato, 0 unico seutido ,que,apreer;tdeo objeto sem iutermediario, 0 dado de superflcle e refe~ldoa profundidade e aquilo que se apreeude sobre 0 obJetoe percebido como residindo em seu fuudo 21. .

De oude provem esse vinculo com 0 objeto, do qualentretanto as ernissoes e simulacros se desf~zern? :'-cred.l­tamos que seu estatuto, ua filosofia de, EP1CurO, ~ao sejaseparilvel da teoria do tempo. Seu carater esseucla!, comefeito, e a rapidez com a qual eles atrave~sam 0 espa90. Epar isso que Epicura emprega para 0 SImulacra a m.esmaformula que para 0 atomo (embora uiio uo mesmo seundo):ele vai "tao nipido quanto 0 pensamento" E ~ue, e!Uvirtude da analogia, ha urn minima d: tempo senslvel naomenos que um minimo de tempo peusaveI. Ora, da mesmaforma como a decIina9iio do atomo se faz UUID tempo meUorque 0 tempo peusavel, embora ela ja e~teja la uo _menortempo que se possa pensar, assim tambem, a. emlssao dossimulacras se faz uum tempo meuor que 0 mmlIDO de temposensivel embora eIes jil estejam no menor tempo que sepossa s~utir, e nos pare~m estar aiuda uo o!"j~to quandonoS atingern. "No momenta percebido como. umc? ~e ~lSSl­mula urn grande numero de momentos cUja eXIstenCla araziio descobre, de tal forma que a todo momento, emtodos os Jugares, todo tipo de ~lmu!aC~os s~ encontra anosso alcance 22," 0 simulacra e pOlS lusenslvel, s~me~tee sensivel a imagem que leva a 9u.alidade, .e que e feltada sucessao fiuito rapida, da somatona de mmtos slm~lacrosidenticos. 0 que dizemos da rapidez d':. forma9ao d~ssimulacros e ainda verdade para as emaua,oes da p!ofundl­dade, mas em menor medida: as slmulacros saO m~lsrapidos que as emana90es, como se houvesse com rela,ao

20. IV, 245-260.21. IV, 265-270.22. IV, 794-798.

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ao tempo sensivel diferenciais de diversas ordens 23. Vemosentao sobre que se baseia a originalidade do metodo epicu­riano, onde se combinam os recursos da analogia e dagrada<;ao. :£ a teoria do tempo, e seu carater "exaustivo",que asseguram a unidade dos dois aspectos do metodo.Pois hi urn minimo de tempo sensivel tanto quanta urnminimo de tempo pensavel, e urn tempo menor que 0

minima nos dois casos. Mas, simuitaneamente, os temposanalogos ou as determina~oes anaIogas do tempo se organi­zam numa grada~ao, grada~ao que nos faz passar dopensavel ao sensivel e vice-versa: 19) tempo menor que 0

minimo de tempo pensavel (incertum tempus efetuado peloclinamen); 29) minimo de tempo continuo pensavel (rapi­dez do Momo nurna mesma dire~ao); 39) tempo menorque 0 minimo de tempo sensivel (punctum temporis, ocupadopelo simulacro); 49) minimo de tempo continuo sensivel(ao qual corresponde a imagem que assegura a percep~ao

do objeto)24.Ha urna terceira especie, distinta tanto das emana~es

saidas da profundeza como das simula~oes desprendidas dasuperficie das coisas. Sao os fantasmas, que gozam degrande independencia com rela~iio aos objetos e de umaextrema mobilidade, de extrema inconstiincia nas imagensque formam (uma vez que nao sao renovados por cons­tantes ernissoes do objeto). Parece pois que a imagem,aqui, tern 0 lugar do proprio objeto. Dessa nova especie

. de simulacros hi tres variedades principais: teologica,onirica, erotica. Os fantasmas teologicos sao feitos desimulacros que se cruzam espontaneamente no ceu, ondedesenham imensas imagens de nuvem, aitas montanhas efiguras de gigantes 25. :E que, de qualquer forma, os simu­lacros se encontram em toda parte; nao cessamos de nosbanhar neles, de sermos atingidos por eIes como por fluxosde ondas. Entao acontece que, muito lange dos objetosdos quais emanam, com os quais perderam toda rela~ao

direta, eles formam essas grandes figuras autonomas. Suaindependencia os toma tanto mais cambiaveis; dir-se-ia queeles dan~am, que falam, que modificam seu tom e gestosao infinito. Tanto isso e verdade, como lembrar. Hurne,que na origem da cren~a nos deuses nao hi a pernianencia,mas antes 0 capricho e a variabilidade das paixoes 26. 0

23. Os simulacros visuais tern. dois privilegios com reJacao as emanar;oesprofundas: justamente porque se desprendem da superficie, nao modificamsua ordem nem sua figura, e pot isso sao representativos; por outro ladoeles vlio mais nipido pois encontram menoo obstaculos. Cf. IV 67-71 199-209:

. 24. .A analogia dessa gradatao aparece claramente' quand~ EpicurodlZ dos SlnlUlacros, como dos atomos, que eles Vao "tao rapido quanta 0pensa~ento" (Carta a Her6doto, 48); e quando Lucrecio aplica a rapidezdes SlffiulacrOS as mesmas expressoes que para a rapidez dos Momos novazio (IV, 206-208 e II, 162-164).

25. IV, 130-142.26. V, 1169 e s. A bern dizer, Lucrecio faz intervi'r dois elementos

coexistentes, a mobilidade do fantasma e a perman~ncia da ordem celeste.

segundo genero de fantasmas e constitui~o por simuI~crosparticularmente sutis e delgados, provemen~es. de o!,J~tosdiversos, aptos a se dissolver, condens~r ~ dlsslpar, rapldose tenues demais para se oferecerem a Vista, mas capazesde fomecer ao animus visoes que !he sao proprias: cen­tauras, cerberos e assombra<;oes, au ainda todas as imagensque correspondem ao desejo, ou ai~da ~ sob~etU<!0 asimagens de sonho. Nao que 0 deseJo seJa aqUi cnador,mas ele toma 0 espirito atento, e 0 faz seleclOnar entr.etodos os fantasmas sutis que nos banham aqueles que malsconvem' e com maior razao 0 espirito, recolhido e sub-

, f ~merso quando 0 corpo dorme, se abre a esses a~~asmas .Quanto ao terceiro genero, os fantasmas eroticos, eletambem e constituido por simulacros emitidos por objetosmuito diversos, aptos a se condensar ("a .muIber que acre­ditamos ter em nosSOS bra~os aparece subltamente transfor­mada em homem"). E sem duvida a imagem constituidapor esses simulacros esta Iigada ao objeto de amor rea!;mas diferentemente do que acontece com as outras necessl­dad~s, 0 objeto nao pode ser abs.orvido ne~ po~suido,somente a imagem inspira e ressusclta 0 deseJo, mrragemque nao assinala mais uma realidade consistente: "de urnrosto bonito ou de uma bela tez, nada se oferece ao gozodo corpo, exceto simulacros tenues, rniseravel esperan~a

levada pelo vento" 28.

o tempo se manifesta com rela~ao ao movimento. :Epor isso que falamos de urn tempo do pensamento comrela~ao ao movimento do atomo no vazio, e de urn temposensivel com rela~ao a irnagem movel que percebemos, ouque nos fazem perceber as quali~ades dos com~o~tos

atomicos. E falamos de urn tempo ronda menor 0 mmunOde tempo pensave!, com rela~ao ao clinamen como deter­mina~ao do movimento do atomo; e de urn tempo menorque 0 minimo de tempo sensivel, com rela~ao aos sirnu­lacros como componentes da imagem (para esses compo­nentes ha ate ordens diferenciais de rapidez, sendo asemana~oes profundas menos rapidas que os simulacros desuperficie, e estes menos rapidos que a terc~ira es~€:ci~).Talvez 0 movimento em todos estes sentidos seJa constitutivOdos "acontecimentos" (eventa, aqnilo que Epicuro chamasintomas) por oposi~ao aos atributos ou proprie~ades(conjuncta) de tal forma que 0 tempo deve ser dito 0

acontecimen'to dos acontecimentos, 0 "sintoma dos sintomas"que se depreende do movimento 29. Pois os atributos sao

27. IV. 722 e s., 962 e s.28. IV, 1094-1096. .'29. Cf. Sextus Empirieus, ADV. Math., X, 219. A teona do aconteCl~

mento tal como a encontramos no texto de Epicuro (Carta a Her6doto. 68-73)e na de Lucrecio (I 440-482) e ao mesmo tempo rica e obseura, muitobreve. Somente 0 'vazio sendo incorporal. 0 acontecimento n!o tem um

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as propriedades que nao podem ser abstraidas ou separadasdo ~rpo: aSSlffi ~ forma, a dimensao ou 0 peso do ,homo;o~ all~d~ as .qu~lidades de um composto que exprimem adlsposl~ao a~omlca se!" a qual deixa de ser 0 que e (calordo fogo, .flUldez da a,gua). Mas 0 acontecimento exprimeantes ~qUllo que se da e que se vai sem destruir a naturezada COlsa, porta~to urn gra.u de movimento compativel coms~a ordem: asslm os n.'0vlmentos dos compostos e de seus'sImuIacros, .ou as mOVlmentos e colis5es de cada atomo;e_se 0 naSCI~ento e a~ morte, a composi~ao e decomposic;aosao aconte~lme.ntos, e em fun~ao de elementos de uma-o.rdem mfenor a. do! compostos, e cuja existencia e compa­t~v~1 com a vana~ao dos movimentos numa passagem aolinnte dos tempos correspondentes.

.Podemos e~tao .responder a questao do falso infinito.Os sll~~acros na? .sao percebidos em si, mas somente suasomatona num mlU1mo de tempo sensivel (imagem). Naoo~st.ante, da mesma forma que 0 movimento do :homo nummmlmo de tempo continuo pensavel prova a declina~aoqu~ se faz entretanto num tempo menor que esse mInima:a lmagem prova a sucessao e a somat6ria dos simulacrosque,se fazem, num tempo menor que 0 minimo de tempo'70nt~nuo senslVel. E, da mesma forma que 0 clinamenI,:,sprra ao pensamento falsas concep~oes da liberdade osslmulacros msplram a sensibilidade urn falso sentiment~ davontade e do. desej? Em virtude de sua rapidez que osfaz ser e agzf. abaIxo do minima sensivel, os simulacrosproduzem a m17agem de um fa/so infinito nas imagens que~or~, e fazem nascer a dupla ilusao de uma capacidademflmta de prazeres e de uma possibilidade infinita de tor­mentos, ~~sa mistura de avidez e de angustia, de cupideze c~pabIildade _tao cara.cteristi<;a. do homem religioso. Epartlcularmente na te:celra especle, a mais rapida, adosfantasmas, que se asslste ao desenvolvimento da ilusao edos mit;" que a aC0n.'~anham. Numa mistura de teologia,de _ercll.sma e de omnsmo, 0 desejo amoroso nao possuisenao slmul~cros que Ihe fazem conhecer 0 amargor e 0tormento ate mesmo em seu prazer que ele deseja infinito'e nossa crenc;a nos deuses repousa em simulactos que no~parecem dan~ar, modificar seus gestos, lan~ar vozes que!10~ .prometem penas eternas, em suma, representar amfmlto.

Como imp~dir .a ilusao senao pela distin~ao rigorosado verdadelro mflmto e a justa aprecia~ao dos tempos

:S~:~~~l ~~min~0i:~rall propriamen;e. fala?doj s,em duvida existe uma rela~ao(471477) 0 u aero,.e em ultuna lllstanCIa com 0 movimento do atomobe -d t '. d q~e penrute ,aos Est6icos dar ao acontecimento um estatutoefe~os ed::mma 0 e seu seCCIOnamento do. causo.lidade, a partir do. qual os

. erem em naty.reza das causas; isso ja nao OCOrre com os E icuri~~cd "'dccIOnam a fdela!<aof ,causal segundo series que conservam uma hgmog;~:~~-u e a causa e 0 e elto.

,-

encaixados uns nos outros, com as passagens de limite queeies implicam? Tal e 0 sentido do Naturalismo. Entao osproprios fantasmas tomam-se objetos de prazer, inclusive noefeito que produzem e que aparece enfim tal como e: urnefeito de rapidez e de leveza, que se vincula a interferenciaexterior de objetos muito diversos, como urn condensado desucessoes e de simultaneidades. 0 falso infinito e 0 prin­cipio da inquieta~ao da alma. 0 objeto especulativo e 0objeto pratico da filosofia como Naturalismo, a ciencia e 0prazer, coincidem sobre este ponto: trata-se sempre dedenunciar a ilusao, 0 falso infinito, 0 infinito da religiaoe todos 0 mitos teologicos-eroticos-oniricos em que seexprime. A quem pergunta: "para que serve a filosofia?",e precise responder: que outro interesse tern senao 0 delevantar a imagem de urn homem livre, de denunciar todasas for~as que tern necessidade do mito e da inquieta~ao dealma para afirmar sua potencia? A Natureza nao se opoeao costume, pais h;i costumes naturais. A Natureza nao seopoe a convenc;ao: que 0 direito dependa de convenc;oesnao e1Cclui a existencia de urn direito natural, isto e, deuma fun~ao natural do direito que mede a ilegitimidade dosdesejos a perturba~ao de alma de que se fazem acompanhar.A Natureza nao se opee ainven~ao, nao sendo as inven~5es

senao descobertas da propria Natureza. Mas a Natureza seopoe ao mito. Ao descrever a historia da humanidade,Lucrecio nos apresenta uma especie de lei de compensa~ao:

a infelicidade do homem nao provem de seus costumes, desuas conven~5es, de snas inven~5es, nem de sua industria,mas da parte de mito que ai se mistura e do falso infinitoque introduz em seus sentimentas como em suas obras. Asorigens da linguagem, a descoberta do fogo e dos primeirosmetais se juntam a realeza, a riqueza e a propriedade,miticas em seu principia; as conven90es do direito e dajusti~a, a cren9a nos deuses; ao uso do bronze e do ferro,o desenvolvimento das guerras; as inven~oes da arte e daindustria, 0 luxo e 0 frenesi. Os acontecimentos que fazema infelicidade da humanidade nao sao separaveis dos mitosque os tomam possiveis. Distinguir no homem 0 queprovem do mito e 0 que provem da Natureza, e, na propriaNatureza, distinguir 0 que e verdadeiramente infinito e 0que nao 0 e: tal e 0 objeto pr:hico e especulativo doNaturalismo. 0 primeiro filosofo e naturalista: ele dis­corre sob a natureza, em lugar de discorrer sobre os deuses.Tern 0 merito de nao introduzir na filosofia novos mitosque retirariam a Natureza toda sua positividade. Os deusesativos sao 0 mito da religiao, como 0 destino 0 mito deuma falsa filosofia, e 0 Ser, 0 Urn, 0 Todo, 0 mito de umafalsa filosofia toda impregnada de teologia.

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Jamais se levou tao lange a empresa de "desmistificar".o mito e sempre a expressao do falso infinito e da inquie­ta~ao da alma. Uma das constantes mais profundas doNaturalismo e denunciar tudo que e tristeza, tudo que ecausa de tristeza, tudo que tern necessidade da tristeza paraafirmar seu poder 30. De Lucrecio a Nietzsche, 0 mesmofim e buscado e atingido. 0 Naturalismo faz do pen­samento uma afirma~ao, da sensibilidade uma afirma~ao.

Ele ataca os prestigios do negativo, ele destitui 0 negativode toda potencia, ele nega ao espfrito do negativo 0 direitode falar em filosofia. :E 0 espirito do negativo que" fazia dosensivel uma aparencia, e ainda ele que reunia 0 inte­Iigivel em urn Urn ou em urn Todo. Mas esse Todo, esseUrn, nao eram senao urn nada do pensamento, como essaaparencia um nada da sensa~ao. 0 Naturalismo, segundoLucrecio, e 0 pensamento de uma soma infiuita onde todosas elementos DaD se compoem aD mesma tempo, mas, inver­samente tambem, a sensa~ao de compostos finitos que naose somam como tais uns com as Qutros. Dessas duasformas 0 mUltiplo e afirmado. 0 multiplo enquanto mUlti­pIo e objeto de afirma~ao, como 0 diverso enquanto diversoobjeto de alegria. 0 infinito e a determina~ao inteligivelabsoluta (perfei~ao) de uma soma que nao compoe seuselementos em urn todo; mas 0 proprio finito e a determi­na~ao sensivel absoluta (perfei<;ao) de tudo aquilo que ecomposto. A pura positividade do finito e 0 objeto dossentidos; a positividade do verdadeiro infinito, 0 objeto dopensamento. Nenhuma oposi<;ao entre esses dois pontos devista, mas uma correla~ao. Lucrecio fixou por muito tempoas impIica~oes do Naturalismo: a positividade da Natureza,o Naturalismo como filosofia da afirma~ao, 0 pluralismoligado a afirma~ao multipla, 0 sensualismo Iigado a alegriado diverso, a critica pratica de todas as mistifica<;oes.

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30. Nao se pade evidentemente considerar a descri~iio tl'agica da pestecomo 0 final do poema. Ela coincide excessivamente com a lenda da loucurae do suicidio. que os cristaos propagaram para mastrat 0 triste fim pcssoalde urn Epicurista. Por outro lado, pade ser que Lucrecia estivesse 10uco aoHm de sua vida. Mas e igualmente VaG invocar clados supostos da vida paraconcluir do poema OIl trata·lo como urn conjunto de sintomas de oude seconcluiria do caso "pessoal" do autor (psican8J.ise de araque). Certamentenao is as'Sim que se apresenta 0 problema das tela!;oes da psicanaLise e daarte - d. 33.- serie.

II. Fantasma eLiteratura Moderna

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~ ••'IUo;)o;)UVVo;)A.1 UU

os Corpos-Linguagem

A obra de Klossowski e construida sobre urn adminivelparalelismo do corpo e da linguagem, ou antes, sobre urnareflexiio de urn no outro. 0 raciocinio e a operagiio dalinguagem, mas a pantomima e a operagiio do corpo. Pormotivos ainda a determinar, Klossowski concebe 0 racioc1niocomo sendo de essencia teol6gica e tendo a forma do silo­gismo disjuntivo. No outro pOlo, a pantomima do corpo eessencialmente perversa e tern a forma de uma articulagiiodisjuntiva. Dispomos de urn fio condutor para melhorcompreender este ponto de partida. Por exemplo, os biolo-­gistas nos ensinam que 0 desenvolvimento do corpo procedeem cascata: urn membro e determinado como pata antesde se-Io como pata direita etc. Dir-se-ia que 0 corpoanimal hesita ou procede por dilemas. Da mesma forma,o raciocfnio vai por cascatas, hesita e bifurca em cada nivel.o corpo e urn silogismo disjuntivo; a linguagem e urn ovoem vias de diferenciagiio. 0 corpo oculta, encerra urnalinguagem escondida; a linguagem forma urn corpo glorioso.A mais abstrata das argumentagoes e uma mimica; mas apantomima dos corpos e urn encadeamento de silogismos.Niio se sabe mais se e a pantomima que raciocina ou 0

raciocfnio que faz mfmica.De uma certa maneira, nossa epoca descobre a perver­

siio. Ela niio tern necessidade de descrever comporta­mentos, de compor narrativas abominaveis. Sade precisavadisso, mas h:i urn legado de Sade. Procuramos antes a"estrutura", isto e, a forma que pade ser preenchida porestas descrigoes e narrativas (uma vez que ela as tornapossiveis), mas niio tern necessidade de se-lo para ser .ditaperversa. 0 que chamamos de perverso e precisamenteesta potencialidade de hesitagiio objetiva no corpo, esta

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pat~ que nao e nem direita nem esquerda, esta determi­?-a~.ao po~ cascata, esta dife~e.ncia~ao que jamais suprime 0mdlferenclado que ne!a se dIvIde, esta suspensao que marcacada momento da diferen~a, esta iroobiliza~ao que marcacada momenta da queda. Gombrowicz pode intitular deA Pornograf,a urn romance perverso que nao comportanenhuma narratIva obscena e que mostra somente jovenscorpos suspensos que hesitam e que caem, em urn movi­ment~ _coagulad~. Em Klossowski, cuja tecnica e OIitra,descn~oes seXU31S aparecem, com uma grande for~a maspara "pree~cher" a hesita~ao dos corpos e distribui-I~ nasp,:rrtes do sIlogi~mo disjuntivo. A presen~a de tais descri­~oes assume entao uma fun~ao lingiiistica: nao se trata defala~ dos corpos tais como sao antes da linguagem ou forada h~guagem, m~s, 3,? contnirio, de formar com as palavrasurn corpo ~Ion.oso para ~s puros espiritos. Nao ha?bsce~o em 81, dlZ KIoSSQwski; ista e, 0 obsceno nao e amtrusao do .corpo na linguagem, mas sua comum reflexaoe 0 ate de linguagem que fabrica urn corpo para 0 espiritoo ato. pelo qual a linguagem assim se ultrapassa a si mesma'refletmdo urn corpo. "Nao hii nada de mais verbal do qu~os excessos da carne... A descri~ao reiterada do atocarnal nao sorr:ente d~ conta da transgressao, ela pr6pria euma transgressao da hnguagem pela linguagem" '.

_ De uma outra ma~eira, nossa epoca descobre a teologia.Nao temos mars necessldade de acreditar em Deus. Procu­ramos, .antes, a "estrutura", ista e, a forma que pade serpreenchlda pelas cren~as, mas que nao tern necessidade demodo .al~um, de se-I? p~ra ser chamada de teoI6gica.' Ateolo~Ia e agora a clencla das entidades nao existentes, ama~elra s~gundo a ,!u~1 estas entidades, divinas ou anti­dlvm3s, Cnsto ou anticnsto, animam a linguagem e formampara. ela este corpo glorioso que se divide em disjun~oes.Reahza-s: .a predi~ao de Nietzsche sobre 0 la~o entre Deuse a grama~ca; . mas d:sta .vez 0 la~o e reconhecido, querida,atu~do, mlm~t~zado, hesltado", desenvolvido em todos ossentid?s da dlsjun~ao, posta a servi~o do anticristo, DionisiocruclfIcado.. Se .a perver~a." e a potencialidade pr6pria aocorpo, a equlvocldade 0 e a teologia; elas se refletem uma~a out~a;" s~ uma e a pantomima por excelencia, a o~trae 0 raclOClOIO por excelencia.

pe onde 0 carilter admiriivel da obra de Klossowski:a u~'dade da teologia e da pornografia, neste sentido bernpa~tlCular. 0 que. e preciso chamar de pornologia superior.E ': est~ s~a manelra de superar a metafisica: a argumen­ta~ao ?1.lffilC~ e a p~nto?lima silogistica, 0 dilema no corpoe a disjun~ao no sIloglsmo. As violenta~oes de Roberte

1. Un S'i !uneste cUsir. Gallimard, 1963. pp. 126-127.

escandem os raciocinios e as alternativas; inversamente, ossilogismos e os dilemas se refletem nas posturas e nasambigiiidades do corpo 2. 0 la~o do raciocinio e da des­cri~ao sempre foi 0 problema 16gico mais alto, sua formamais nobre. :B 0 que vemos ocorrer com os 16gicos, inca­pazes de pOr fim a este problema, talvez por 0 colocaremem condi~oes mnito gerais. As condi~oes duras, cortantes,sao aquelas em que a descri~ao concerne a perversao doscorpos em patologia (a cascata organica disjuntiva) e emque 0 raciocinio concerne a eqnivocidade da linguagemem teologia (0 silogismo espiritual disjuntivo). 0 problemada rela~ao raciocinio-descri~ao recebera em Sade uma pri­meira solU9ao, da maior importancia te6rica e tecnica,filos6fica e literaria. Klossowski abre vias completamentenovas porque coloca as condi~oes de nossa concep~ao

rnoderna tanto da perversao Como da teologia ou anti­teologia. Tudo come~a com este brasao, esta reflexao docorpo e da linguagem.

o paralelismo se apresenta, em primeiro lugar, entrever e falar. Jii no romance de Des Forets, que colocavaem cena urn tagarela-voyeur, ver designava urna opera~ao

ou urna contempla~ao mnito especial: pura visao dosreflexos que multiplicam 0 que refletem e queconferem aovoyeur uma participa~ao mais intensa do que se ele experi­mentasse estas paixoes, cujo duplo ou cuja reflexao sobreos semblantes de outrem ele agora persegue. Assiro tam­bern em Klossowski, quando Octave instaura a lei dehospitalidade de acordo com a qual "dii" sua mulherRoberte aos convidados. Trata-se, para ele, de mulliplicara essencia de Roberte, de criar tantos simulacros e reflexosde Roberte quanta 0 numero de personagens que com elaentrem em rela~ao e de inspirar a Roberte urna especie deemul~ao de seus pr6prios duplos, gra~as aos quais Octave­-voyeur possni e conhece melhor a mulher, mais do que sea guardasse, simplificada, para si mesmo. "Era precisoque Roberte tomasse gosto por si mesma, que livesse curio­sidade de se reencontrar naquela que eu elaborava comseus pr6prios elementos e que pouco a pouco ela qnisesse,por urna especie de emula~ao com seu pr6prio duplo,ultrapassar ate mesmo os aspectos que se esbo~avam emmeu espirito: importava pois que ela fosse constantementecercada por jovens a procura de facilidades, homens dispo­niveis" 3. Assim e a posse visual; s6 se possui bern aquiloque jii e possuido. Nao somente possuido por urn outro,

2. No Bain de Diane (Pauvert cd., 1956), 0 silogismo disjuntivo torna-scum metodo geral de interpreta"ao do mite e de reconstitui"iIo do corporal nomito.

3. La Revocation de Z':tdit de Nantes, ed. de Minuit, 1954, p. 59.Este livro forma, com HebeTte ce soir (cd. de Minuit, 1953) e Le Souffleur(Pauvert ed., 1960), uma trilogia que foi reeditada sob 0 titulo de LeaLois de l'ho,sp£talite (Gallimard, 1965).

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II,

II

I

pois 0 outro aqui nao e mais do que urn disfarce e, nolimite, nao tern existencia. Mas possuido por urn morto,possuido pelos espiritos. Nao se possui bern a nao seraquilo que e expropriado, posta fora de si, desdobrado,refletido sob 0 olhar, multiplicado pelos espiritos possessivos.Eis por que a Roberte do Soul/leur e 0 objeto de urn pro­blema importante: podera haver "urn mesmo morto paraduas viuvas"? Possuir e, pois, dar a passuir ever estedado, ve-Io multiplicar-se no dom. "Semelhante coloca~ao'

em comum de urn ser care mas vivo nao deixa de ter umacerta analogia com 0 olhar consagrado de urn artista" 4

(relembrariamos urn estranho tema do roubo e do dom nape~a de Joyce Os exi/ados).

Se a fun~ao da vista consiste em dobrar, desdobr.ar,multiplicar, a do ouvido consiste em ressoar, fazer ressoar.Toda a obra de Klossowski tende para urn objetivo iinico:assegurar a perda da identidade pessoal, dissolver 0 eu, e 0

esplendido trofeu que os personagens de Klossowski trazemde uma longa viagem nos confins da loucura. Mas, justa­mente, a dissolu~ao do eu deixa de ser uma determina~ao

patologica para se tornar a mais alta potencia, rica empromessas positivas e salutares. E 0 en 56 e "dissoluto"porque primeiro foi dissolvido: nao somente 0 eu que eolhado, que perde sua identidade sob 0 olhar, mas aqueleque olha e que se poe assim fora de si, que se multiplicaem seu olhar. Octave enuncia seu projeto perverso acercade Roberte: "Leva-Ia a prever quando seria vista ... ,incita-Ia a destacar sellS gestos deste sentimento de si semnunca se perder de vista ... , faze-Ia atribui-Ios a seu reflexoate ao ponto dela se mimetizar de alguma forma a simesma... "5 Mas ele tambem sabe muito bern que itfor~a de olhar ele acaba por perder a propria identidade,coloca-se fora de si, multiplica-se no olhar tanto quanta 0

outro sob 0 olhar - e que e este 0 conteiido mais profundoda id6ia do Mal. Aparece entao a rela~ao essencial, acumplicidade da vista com a palavra. Pois que condutamanter, diante destes dupIos, simulacros au reflexos, a naoser falar? Aquilo que so pode ser visto ou 0 que sopode ser ouvido, 0 que nao 6 nunca confirmado ppr urnoutro orgao, 0 que e 0 Objeto de urn esquecimento namem6ria, de urn Inimaginavel na imagina9ao, de urn Irnpen­savel no pensamento, - que fazer de tudo isso a nao serfalar a respeito? A propria linguagem 6 0 duplo Ultimoque exprime todos os duplos, 0 mais alto simulacro.

Freud elaborava casais ativo-passivo, no modo dovoyeurismo e do exibiciouismo. Este esquema nao podesatisfazer Klossowski, segundo 0 qual a palavra 6 a iinica

4. La Revocation, p. 48.5. La Revocation, p. 58.

atividade capaz de corresponder com a pa.ss~vidade ~a vista,a iinica a~ao correspondendo com a pmxao da vlSta. Apalavra e nossa conduta ativa com respeito aos re~;xos,ecos e duplos, tanto para recolM-los ,como lara ~usclt~-Ios.Se a vista e perversa, a palavra tambem 0 e. POlS, eVlden­temente, DaO se trata, como faria uma crian~a, de falar ao~duplos e aos simulacros. Trata-se de falar deles. A quem.Aqui, ainda, aos espiritos. Quando "?-<:meamos""ou "desig­names" algo ou algu6m, com a condl~ao de faze-Io com aprecisao e sobretudo com 0 estilo necessarios, tambem ?"denunciamos": apagamos 0 Dome ou antes fazemos surgIfsob 0 nome a multiplicidade do denominado, desdobramos,refletimos a coisa damos muitas coisas a ver sob a mesmapalavra, assim c~mo ver da, em ~um olhar, muitas c~oisasa falar. Nao falamos nunca alguem, falamos de alguem auma poH':ncia apta a refleli-Io e a ~~plica-Io; por }~SOmesmo DaO 0 nomeamos sem denuncla-Io a urn esplntocomo estranho espelho. Octave diz, no seu esplendidoorgulho: Eu nao falei a Roberte, nao a "~?meei" l7mespirito; ao contrario, nomeei Roberte ao esplnto e aSslma "denunciei", para que 0 espirito revele 0 que esconde,para que libere, enfim, 0 que reline sob sen nOI?e 6. Oraa vista induz a palavra e ora a palavra conduz a vIsta. Massempre M a multiplica~ao e a reflexao daquilo que e VlStOe 0 que e falado e tambem daquele que ve e que fala:aquele que fala participa da grande dissolu~ao dos eu, emesmo comanda-a ou provoca-a. Michel Foucault escr~veusobre Klossowski urn belo artigo, em que analisava 0 logodos duplos e dos simulacros, da vist~ e da lingu~gem;. eleai designava as categorias klossowskianas da vlsao: SIIDU­

lacro similitude simula~ao 7. Correspondem a elas as cate­goria~ de ling~agem: evoCa9aO, provoca~a~, reVO.ga9aO.Assim como a vista duplica 0 que ve e mull1phca 0 vldente,a linguagem denuncia 0 que diz e multiplica 0 falante(por exemplo, a multiplicidade das vozes superpostas noSou//leur) .

Que os corpos falam, ja 0 sabemos M bastante tempo.Mas Klossowski designa urn ponto que e quase 0 ce~troem que a linguagem se forma. Latiuista, :Ie evoca QUlUl1­liano: 0 cerpo e capaz de gestos que dao a entender 0

contrario daquilo que indicam. Tais gestos sao 0 eqUlva­lente daquilo que chamamos, na linguagem, solecismos 8.

Por exemplo urn bra~o repele 0 agressor enquanto 0 outroespera e p;rece acoIM-lo. Ou entao urna mesma maorepele, mas nao pode faze-Io sem oferecer sua palma. Eo jogo dos dedos, uns retos, outros dobrados. Octave tern

6. Robe1'te, p. 31 (este capitulo chama-se "A Denuncia"). .7. FOUCAULT, Michel. La Prose d'Acteon. Nouvel1,e revue fraT/fa lse•

margo de 1964.8 . La Recocation, pp. 11-12.

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?OiS uma col~,~o de quadros secretos, do pintor imagm' ,.onnerre, proxImo ao meSilla t I ano

e Courbet, que sabe que . empo a, ngres, C.hasseriaucorpos, assim Como no es~op~:ur,a esta no so~e~lsmo dosdescri,oes imaginarias Sii~ como ~I!h:0 de LucrecI~.. Estasdiio ritmo a La R' , nantes estereol1plas que

, evocatIOn. Enos seus de nh .pameis de uma grande beleza " se OS reals,damente indeterminado 0 0 '_KIosso";Ski .delxa proposita­determinar a miio como r?ao_ sexua, livre para sobre­prec~samente, qual e a POSit~~~~e ~~s s,?lecdismos. Mas,amblguO de sen "gesto mao, e sen gesto

em Suspenso"? Tal t 'encarna,iio de uma otenc' " ges 0 e alinguagem: 0 dilema p d' ~a '!ue e ~am?em interior aA pro osito do ,a ISJun,ao, 0 silogIsmo disjuntivo.escreve~ "Se ela qU~dro r.epresentando Lucrecia, Octavepassara' por ter tra~~oe, vf:dentemente trai; se niio cede,

'" , 0 que, morta por seu agresssera, por acrescimo caJuniada Ve I d or,resolvido se suprinrlr desd . .mo- a ce er por terderrota? au entiio . . e que livesse propalado suacondi ii pnmelro ela resolveu ceder com aM dU~i~ad~e ~~:r~rece~ e~ seguida, tendo falado? Niiotisse, matar-se-ia ~ua :~r-~:-i: p~:r:: ~e~~e: se niio refle-ao refletir-se em sen To'eto 1m latamente. Ora,bra,os de Tarquinio / c~ de .m?rte, ela se lan,a noslevada talvez r '. ~o 0 I,:,smua Santo Agostinho,por esta conf:iiosuapoPrroePsrtlea COjbl,.a, pune-se em seguida

, so eCIsmo' 0 qu 'gnifi'•sucumbir aD temar da d ' e 81 casucumbe diria eu a sua es?nr.a, co,,:,o diz Ovidio. Eladuas: a 'cobi,a de' seu pro;~~pn~ cO~I~a que se cinde empara se descobrir carnal" 9 Epu or elxa de ~ado .0 pUdordilema em cascata e . IS que, em sua Idenlidade, 0a determina,iio do co~p~es~~ em suspe,:,so representam tantoMas que 0 elemento cornu mo. 0 movlm:nt? d,a Iinguagem.outra coisa. m seJa a reflexao mdlca-nos ainda

a corpo e Iinguagem ' .Na reflexiio a fie - porque e essenclalmente "flexiio".

cindi~a, op~sta a ~to r~g:~i~:\~~r:c~~ ~~mo desdobra~a,por Sl mesma Iiberada de t d ' aparece enfunmente. Em:una dUO 0 q~e a esconde ordinaria-suas longas miios ~~nt:b~:~a da Revocation, merguIhandosiio agarradas por duas 10nga~UjO,_ Rober~e sente .que elasas suas... Em Le Souffleur ma~s mUlto parecldas comcruzam snas maos e entre ' as nas Roberte Se batem,convidado "assopra'" S la~am sens dedas, enquanto urn.termina Com urn . eparem-na! E Roberte ce soirde chaves V' gesto de ROberte oferecendo urn "mo!hoo apanha"~ c~~~r que toca com os dedos nele, mas nunca

. em suspenso, verdadeira cascata conge-9. La Ret;ocation, pp. 28-29.

lada, que reflete todos os dilemas e todos os silogismos deque Roberte, durante sua violenta,iio, foi atacada pelos"espiritos". Mas se 0 corpo e flexao, a linguagem tambemo e. E e preciso uma reflexiio das palavras, uma reflexiionas palavras para que apare,a enfim Iiberada de tudo 0 quea recobre, de tudo 0 que !he esconde 0 carater flexionalda lingua, Na sua adminivel tradu,iio da Eneida, Klos­sowski ilumina este ponto: a busca estilistica deve fazerjorrar a imagem a partir de uma reflexiio refletida em duaspalavras, oposta a si, refletida sobre si nas palavras. Tale a patencia positiva de urn "solecismo" superior, fOIl;ada poesia constituida no choque e na copuIa,ao das palavras.Se a Iinguagem imila os corpos, niio 0 faz pela onomatopeia,mas pela flexiio. E se os corpos imitam a Iinguagem, niioo e pelos orgaos, mas pelas flexoes. Assim, ha toda urnavantomima interior aIinguagem, como ha urn discurso, umanarrativa interior ao corpo. Se os gestos falam e primeiroporque as palavras mimetizam os gestos: "0 poema epicode Virgilio e, com efeito, urn teatro em que siio as palavrasque mimetizam os gestos e 0 estado de alma dos persona­gens. .. Siio as palavras que tomam uma atitude, niio oscorpos; que se tecem, nao as vestimentos; que cintilam,DaD as armaduras ... "10 E haveria mnito a dizer sobre asintaxe de KIossowski, feita ela propria de cascatas e desuspensoes, de flexoes refletidas. Na flexiio ha esta dupla"transgressiio" de que fala KIossowski: da Iinguagem pelacarne e da carne pela Iinguagem 11. Ele soube tirar daiurn estiIo, urna mimetica, ao mesmo tempo uma lingua eurn corpo particulares.

Qual 0 papel destas cenas em suspensao? Trata-semenos de captar nelas uma persevera,iio, uma continua,iio,do que apreenM-las em si mesmas como 0 objeto de umarepeti,iio fundamental: "A vida reiterando-se para se reto­mar em sua queda, como retendo seu sapra numa apreensaoinstantlinea de sua origem; mas a reitera,iio da vida porsi mesma ficaria desesperada sem 0 simulacro do artistaque, reproduzindo este espetacuIo, chega ele mesmo a livrar­-se da reitera,iio" 12. Estranho tema de uma repeti,iio quesalva e que salva em primeiro lugar da propria repeti,iio.E verdade que a PsicanaHse nos ensinou que nossa doen,aera a repeti,ao, mas tamrem que nos curavamos pela repe­ti,iio. Le Souffleur e precisamente a narrativa de urnasalval;ao, de uma "cura". Esta cura, contudo, deve-semenos aos cuidados do inquietante doutor Ygdrasil do queaos exercicios de teatro, a repeti,iio (ensaio) teatral. Maso que deve ser 0 ensaio no teatro para ser salvador? A

10. Introdu~lto a tradu~o da Encida.11. Un si funeste desir. p. 126.12. La Revocation, 2- 15.

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Roberte do Sauffleur atua em Raberte ce sair; e eIa sed.esdobra e~_duas Roberte. Ora, se eIa repete Com dema­smda exatIdao, se atua COm excesso de naturalidade arepeli)'ao nao alcan)'a seu objetivo e 0 mesmo se da se'eIaatua mal e reproduz COm impericia. Novo dilema insoIliveI?Ou ~a_o sera preciso, talvez, imaginar duas especies derepelI)'ao: urn fa!so e urn verdadeiro, Urn desesperado e urnsaIutar, urn apnslOnador e outro Iibertador, urn que teria aexatidao como criterio contraditorio e 0 outro dependendode autros criterios?

Urn tema percorre toda a obra de Klossowski: aoposi)'ao da troca e da verdadeira repeti)'ao. Pois a trocaimplica somente a semeIhanp, ainda que extrema. E elaque tern por criterio a exatidao, com a equivalencia dosprodutos trocado,s; e eIa que forma a faIsa repeti)'ao, aquelade q~e. todos nos adoecemos. A verdadeira repeti)'ao, aocontrano, aparece Como uma conduta singular que mante­mos com rela)'ao ao que nao pode ser trocado nem subs­tituldo: assim, 0 poema que repetimos, impedidos queestamos de mudar-Ihe uma so paIavra. Nao se trata maisde uma equivalencia entre caisas semelhantes, DaD se tratanem mesmo de uma identidade do Mesmo. A verdadeirarepeti)'ao se dirige a algo de singular, que nao pode sertrocado e a algo de diferente, sem "identidade". Ao invesde trocar 0 semelhante e de identificar 0 Mesmo ela auten­tifica 0 diferente. Eis como a oposi)'ao se des~nvolve emKlossowski: Theodore heroi do Sauffleur, retoma as "leisda hospitalidade" de Octave, que consistem em muitiplicarRoberte, dando-a a convidados, a haspedes. Ora, nestaretomada, Theodore se choca com uma estranha conCor­rencia; 0 palacio de Longchamp e uma institui)'ao de Estado,em que cada esposa cleve ser "declarada", segundo regrasfiscais e normas de equivalencia, contribuir para a coloca~aoem comum das mulheres e dos homens 13. Mas, justa­mente, na institui)'ao de Longchamp, Theodore ve ao mesmotempo a caricatura e 0 contrario das leis de hospitalidade.De nada adianta 0 doutor Ygdrasil dizer a eIe: "0 senhorSe mantem firme no prop6sito de dar, sem nenhuma retri­bui)'ao, sem nada receber de volta. Mas 0 seuilOr naopode viver sem se submeter it lei umversal da troca. .. Apratica da hospitalidade, tal como 0 senbor a concebe, naopoderia ser unilateral. Como toda hospitalidade, esta tam­bern, e esta em particular, exige a reciprocidade absoIutapara ser viaveI e e este 0 passo que 0 senbor nao querdar: a coIoca)'ao em comum das muIheres pelos homense dos homens pelas muIheres. E preciso agora ir ate 0

fim, consentir em trocar Roberte com outras muIheres,aceitar ser infieI a Roberte como 0 senhor se obstina a

13. Le Souffleuf'. p. 51 e s., p. 71 e s.

querer que ela 0 seja" 14. Theodore fica surdo, ele sab~ quea verdadeira repeti)'ao esta no dom, em uma economla dodom que se opoe it economia mercantIl da troca ( ...homenagem a Georges Bataille). Que 0 haspede e su.areflexao, nos dois sentidos da palavra, se ~p~nham ao pala­cio. E que, no hOspede e no dom, a repetl)'a~ sUfJa como ~

mais alta potencia do que nao pode ser ob]~to de .troca."a esposa prostituida pelo esposo, nem por ISSO delxa de

, bOO I d " 15ser a esposa, bern DaD cam lave 0 esposo .Como Theodore se cura - ja que estava doent~ e ]a

que se trata de sua cura - ao termino de uma viagemate it beira da loucura? Precisamente, ele esteve doenteenquanto 0 risco de uma troca veio comprometer e corroersua tentaliva de urna repeti)'ao pura. Roberte e a muIherde K nao se trocavam a tal ponto que nunca se soube quemeta uma e quem era a outra, ate ~e~mo na~ luta em q~e

elas cruzavam suas maos? E 0 propno K n~o se tr~cana

com Theodore, para !he tomar tudo e desvlar as 1~ls dahospitalidade? Quando Theodore (ou K ?) se ~ura e por­que ele compreende que a repeti)'ao nao es.ta_ em uI?aextrema semelhan)'a, que ela nao esta na exalJdao daqUl!oque e trocado, que nao esta nem mesmo em uma rel?rod,u)'aodo identico. Nem identidade do Mesmo nem eqUivalenclado semelhante, a repeti)'ao esta na intensidade do Dlferente.Nao h:i duas mulheres que se parecem e q~e se fazempassar por Roberte; nao ha tampouco dOlS. seres e~

Roberte, na mesma mulher. Mas Roberte de~lgna em Slmesma uma "intensidade", compreende em 81 uma dlfe­ren)'a, uma desigualdade, cujo proprio e r~tornar ou serrepetida. Em suma, 0 duplo, 0 reflexo, 0 sln:ulac,:o, abr~­

-se enfim para entregar seu segredo: a repelJ)'ao n~o supo~

o Mesmo ou 0 Semelhante, nao faz deles prehmm~res, eela, ao contrario, que produz 0 unico "mesma" daqU110 quedifere e a linica semelhan)'a do diferente. K convalescente(ou Theedore?) e 0 eco do Zaratustra convalescente ~eNietzsche. Todas as "designa)'oes" se desmoronam. e sa.o"denunciadas", para dar lugar ao sistema pleno das mtensl­dades. Ja 0 casal Octave-Roberte remete a uma puradiferen)'a de intensidade no pensament?; os nomes deOctave e de Roberte deixaram de deslgnar COlsas paraexprimir intensidades puras, eleva)'oes e quedas 16. • _

Tal e a rela)'ao entre as cenas congeladas e a repeti)'ao.Uma "queda" uma "diferenc;a", uma "su8pensao" refletem­

, 'd ~-se na reprise, na repeti)'ao. Neste sentl 0, 0 corpo

14. Le Souffleur, pp. 211, 212. 218.15 Le SouffLeur p. 214. ob f .16: Cf. Posfacio' as Lois de l'hospit~lit~: .. "Um. nome. R eIte, 01 uma

designa\fao hl espec[fica de intensidade pnmelra ; assn!!. 0 c~sal e.dt~r:;b/h(p;.epidcrme e a luva nao designam coisas. mas expnmem mtensl a s334-336),

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II

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r~flete na Ii.nguagem: 0 proprio a linguagem e retomar emSl a cena fixa e faze.r deJa urn acontecimento do espirito,ou antes, ~ ac~nteclmento dos "espiritos". E na lingua­gem, no selO da Imguagem, que 0 espirito apreende 0 corpoos gestos do corpo, como 0 objeto de uma repetigao funda:mental. :E: a dlferenga que da aver e que multiplica oscorp~s;. mas e a repetigao que da a falar e que autentificao mu!tIpl?, q?,e dele faz acontecimento espiritual. Klos­sowski ~z: Em Sade, a linguagem nao chega a see~got~, !ntoleravel a si mesma, ap6s ter se encarnigadod,as mtel:os sobre a mesma vitima... Nao pode havert~ansgressao. '!O ato carnal Se nao e vivido como um aconte­clmento espmtual; ':'las para apreender seu objeto, e precisoprocurar e reproduzlr 0 acontecimento numa descrigao reite­rada do ato carnal" 17. Finalmente, 0 que e urn Porno­grafo? :E: 0 repetidor, e 0 iterador. E que 0 literato seja~ssenclalmente Iterador deve nos ilustrar sobre a relagao daIll~guagem com 0 corpo, sobre 0 limite e a transgressaomutuos q~e cada qual encontra no outro. No romance deGombroWIcz, La Pornographie, lembramo-nos de que ascenas supre~~s sao tambem congeladas: papeis que 0 heroi(ou_ os her?lS!) voyeur-falador-literato, homem de teatro,Impoe a dOlS jovens; cenas que so assumem sua perversi­dade pel~ indiferenga dos jovens um ao outro; mas cenasque ~uJmmam com um movimento de queda, urna diferengade _mvel, retomada em uma repetigao da linguagem e davIsao; cenas de possessao, falando propriamente pois que0." jovens sao possufdos em espirito, destinados' e denun­clados pelo voyeur-falador. "Nao, nao decfdidamentetoda a cena nao teria apresentado urn c~rater tao escan:daloso, se nao fosse tao incompativel com seu ritrno naturaltao congelada, imovel, estranha... Suas maos acima d~~uas cabe9as, tocaram-se !nvoluntariamente. E,'no meSmoInstante, foram reconduzldas para baixo, com vioIencia.Durante algum tempo ambos contemplaram com atengaoas ~uas maos entrelagadas. E bruscamente cafram; nao sesabm bem qual dos dois havia feito 0 outro cair a pontode se ~creditar que suas maos os derrubaram 18.' :E: bomque~OlS autores tao novos, tao importantes, tao diferentest~mbem, encontrem-se no. que t~n!le ao tema do corpo­-!mguagem. e da pornografla-repetIgao, do pornografo-repe_tidor, do hterato-iterador.

. Qual e 0 ~ilema? Em que consiste 0 silogismo disjun­t,VO que 0 expnme? 0 corpo e linguagem. Mas ele podeocul!ar a pala~ra que e, pode encobri-Ia. 0 corpo podedesejar e d:seja geralmente 0 silencio a respeito de SUasobras. Entao, recalcada pelo corpo, mas tambem proje-

17. Un si tuneste desir, pp. 126-127.18. GOM:BROWICZ, W. La Pornographie. Julliard ed., pp. 147 e 157.

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tada, delegada, alienada, a palavra torna-se ? discurso deurna bela alma, que fala das leis e das vtrtudes e quesilencia sobre 0 corpo. :E: claro, neste caso, que a propriapalavra e por assirn dizer pura, mas que 0 silencio sobreo qual repousa e impuro. Calando-se, ao mesmo tempoencobrindo e delegando sua palavra, 0 corpo nos abandonaas irnaginagoes silenciosas. Roberte, na grande cena deviolentagao pelo Colosso e pelo Corcunda (isto e, pOIespiritos que marcam neles mesm~s uma ,diferenga. de nfv71como Ultima realidade), ouve-se d,zer: 'Que farels de nose que vamos fazer de vossa carne? Poupa-Ia-emos porquee ainda capaz de falar ou entao vamos trata-Ia como sedevesse guardar silencio para sempr~?.. Como (vossocorpo) seria reo delicioso senao em vlrtude da palavra queoculta?" 19 E Octave a Roberte: "Nao tendes senao urncorpo para encobrir vossa palavra" 20. Com efeito, R;0bertee presidente da comissao de censura; e!a fala ~as VIrtudese das leis' ela nao deixa de ter austendade, nao matou a"bela al';a" que esta nela.... Suas palavras sao. pm:asmas seu silencio, impuro. Pois, gra9as ~ este sI1enclo,ela imita os espiritos; ela os provoca, pOlS provoca suaagressao, eles agem sobre seu COIPO em seu corpo, sob aforma de "pensamentos indesejaveis", ao mes~o tempocolossais e anoes. Tal e 0 prirneiro termo do d,lema: ouRoberte se cala, mas provoca a agressao dos espfritos, seusilencio e tao menos puro quanto mais 0 e sua palavra ...

Ou entiio, e preciso urna linguagem i~pura, obscena,irnpia, para que 0 silencio sej a. pm:o e,~ lin!l"agem, puralinguagem que repousa neste sIlenclO. Falal e des~pare­

cemos" dizem os espiritos a Roberte 21. Klossowskl pre­tendera' dizer apenas que falar evita pens~mentos sobrecoisas vis? Nao: da mesma forma como a Imguagem ~~a

que faz um silencio impuro e uma provocllfiio. ?O .espmtopelo corpo, a Ijnguagem irnpura q~e. faz 0 s!lenc~o puroe urna revogllfiid do corpo pelo espmto. Como dizen;' osherois de Sade, nao sao os corpos presentes que excltamo libertino, mas a grande ideia do que nao esta prese!':e;e em Sade, "a pornografia e uma fonna de luta do espmtocontra a carne". Mais precisamente, 0 que e que e revo­gado no corpo? Klossowski responde que e a integridadedo corpo; e que, por isso, a identidade da pessoa acha-s:como suspensa, volatilizada. Sem duvida, esta resposta ebastante complexa. Ela basta, contudo, para nos fazerpressentir que 0 dilema corpo-linguagem se. estabelece defato entre duas relagoes do corpo e da Imguagem. A"linguagem pura - silencio impuro" designa uma certa

19. Babette, pp. 73 e 85.20. Boberte, p. 133. . C£21. Bobette, p. 85. E sobre esse movirnento do pura e do Impuro, .

Un ri funeste desir, pp. 123-125.

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rela<;ao, em que a linguagem reune a identidade de umapessoa e a integridade de urn corpo em urn eu responsavel,mas faz silencio sobre todas as for<;as que dissolvem esleeu. Ou entao a propria linguagem torna-se uma destasfor~as, encarrega-se com todas estas fOf9as e faz aceder 0corpo desintegrado, 0 eu dissolvido, a urn silencio que eo da inocencia: eis 0 outro termo do dilema, "linguagemimpura - silencio pura". Se preferem, a aIternativa estaentre duas purezas, a falsa e a verdadeira, a da responsa­bilidade e a da inocencia, a da Memoria e a do Esqueci­mento. Colocando 0 problema no plano lingliistico, LeBaphomet diz: ou nos lembramos das palavras, mas seusentido permanece obscuro; ou emao 0 sentido aparece,quando desaparece a memoria das palavras.

Mais profundamente, a natureza do dilema e teologica.Octave e professor de Teologia. Todo 0 Le Baphomet eurn romance de Teologia, que opOe 0 sistema de Deus e 0

sistema do Anticristo como os dois termos de uma disjun<;aofundamental 22. A ordem da cria<;ao divina, com efeito,prende-se aos corpos, esta suspensa aos corpos. Na ordemde Deus, na ardem da existencia, os carpas dao aDS espf­ritos ou antes Ihes impoem duas propriedades: a identidadee a imortalidade, a personalidade e a ressurrectibilidade, aincomunicabilidade e a integridade. Como dizia Antoine,sobrinho docil it teologia tentadora de Octave: "0 que e aincomunicabilidade? - E 0 principio segundo 0 qual 0 serde urn individuo nao poderia ser atribuido a varios indi­viduos e que constitui propriamente a pessoa como identicaa si mesma. - Qual e a fun<;ao privativa da pessoa? ­A de tornar nossa substancia inapta a ser assumida poruma natureza seja inferior, seja superior a nossa" 23. Eenquanto ligado a urn corpo, encarnado, que 0 espiritoadquire a personalidade: separado do corpo, na morte, elereencontra sua potencia equivoca e multipla. E e enquantoreunido a seu corpo, que 0 espirito adquire a imortalidade,sendo a ressurrei<;ao dos corpos a condi<;ao da sobrevivenciado espirito: liberado de seu corpo, declinando seu corpo,revogando sen corpo, 0 espirito cessaria de existir, mas"subsistiria" em sua inquietante patencia. A morte e aduplicidade, a morte e a multiplicidade saO pois as verda­deiras determina~oes espirituais, as verdadeiros aconteci­mentos do espirito. Compreendemos que Deus seja 0

inimigo dos espiritos, que a ordem de Deus va contra aardem dos espiritos: para instaurar a imortalidade e a per­sonalidade, para imp6-las it for<;a aos espiritos, Deus deveapostar nos corpos. Ele submete os espiritos it fun<;aoprivativa da pessoa, it fun<;ao privativa da ressurrei<;ao. A

22. Le BaDhomet. Mercure de France ed", 1965.

23·omrrorrCr4·Sfrat.m DESOCIAlS f tl'J:d... ,.

realizac;ao das vias de Deus e a "vida da carne" 24. Tantoque Deus e essencialmente 0 Traidor: ele e traidor dosespiritos, traidor dos sopros e, para prevenir s?a resposta,reduplica sua trai~ao encarnando-se ele propflo" 25. "Nocome~o era a trail;;3.o".

A ordem de Deus compreende todos estes elementos:a identidade de Deus como ultimo fundamento, a identidadedo mundo como meio ambiente, a identidade da pessoacomo instancia bern fundada, a identidade do corpo comobase enfim a identidade da linguagem como potencia para, .designar todo 0 resto. Mas esta ordem de Deus se construmcontra uma outra ordem: outra ordem que subsiste nela eque a corroi. Aqui come<;a 0 Baphomet: A servi<;o deDeus, 0 grao-mestre dos Templilrios tern por missao fazera triagem dos sopros, impedi-Ios de misturar-se, esperandoo dia da ressurrei<;ao. E, pois, porque ja existe entre asalmas mortas alguma inten<;ao rebelde, uma inten<;ao de sesubtrair ao juizo de Deus: "As mais antigas espreitam asmais recentes e, misturando-se por afinidades, elas se enten­dem para apagar urnas nas outras sua responsabilidadepropria" 26. Urn dia 0 grao-mestre reconhece urn soproque se insinua em suas proprias volutas: e Teresa, a santa,e Santa Teresa! Deslumbrado pela prestigiosa convidada, 0

grao-mestre se queixa a ela da "complica<;ao" de sua tarefae da rna vontade dos espiritos. Mas, longe de se compa­decer, Teresa profere urn discurso inaudito: que 0 nlimerodos eleitos e fechado, que mais ninguem e condenavel, nemsantificavel; que os espiritos ficaram como libertos daordem de Deus, que se sentem dispensados de ressuscitar eque se aprestam em penetrar, seis ou sete, em urn so corpo,no embriao, para se descarregar de sua pessoa e de suaresponsabilidade. Teresa em pessoa e rebelde, profeta darebeliao: ela anuncia a morte de Deus, a reversao de Deus."Eu me exclui ido llUmero dos eleitos." Para urn jovemteologo que amaya, ela soube obter uma nova existenciaem urn outro corpo, depois uma terceira... Nao era jaa prova de que Deus renunciava it sua ordem, qUf. renun­ciava aos mitos da pessoa incomunicavel e da ressurrei~ao

definitiva, ao tema do "uma vez por todas" implicadonestes mitos? Em verdade, uma ordem da perversidade fezexplodir a ordem divina da integridade: perversidade nobaixo-mundo, onde reina urna natureza turnultuosa exube­rante, plena de violenta<;oes, de estupros, e de travestimentos,pois que varias almas entram no mesmo corpo e que umamesma alma possui varios corpos; perversidade no alto, poisque os proprios sopros se misturam. Deus nao pode mais

24. Roberle, p. 73.25. Roberte. p. 8l.26. Le Baphomet, p. 54.

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garantir nenhuma identidade! E a grande "pornografia", adesforra dos espiritos, ao mesmo tempo sobre Deus e sobreos corpos. E Teresa anuncia ao grao-mestre seu destino: eleproprio nao mais sabera fazer a triagem dos sopros! Entao,tornado por uma especie de raiva e de ciume, mas tambempor uma louca tenta~ao e ainda por urn duplo desejo decastigar e par a prova Teresa e, enfim, pela vertigem dosdilemas que perturbam suas volutas (pois sua conscienciasucumbira em meio a "desconcertantes silogismos"), 0 grao­-mestre insufla 0 sopro de Teresa no corpo ambiguo de urnjovem; jovem pajem que, outrora, havia dado trabalho aosTemplarios e quehavia sido enforcado durante uma cena deinicia~ao. Seu corpo, em Ievita~ao e em rota~ao, marcadopelo enforcamento, miraculosamente conservado, reservadopara uma fun~ao que vai subverter a ordem de Deus, recebe,pois, 0 sopro de Teresa. Insufla~ao anal, a qual respondeno corpo do pajem uma forte rea~ao genita!.

Eis pois 0 outro termo do dilema, 0 sistema dos sopros,a ordem do Anticristo que se opoe ponto a ponto a ordemdivina. Ele e caracterizado por: a morte de Deus; a des­trni~ao do mundo; a dissolu~ao da pessoa; a desintegra~ao

dos corpos; a mudan~a de fun~ao da Iinguagem que naoexprime mais do que intensidades. Afirma-se com freqiien­cia que a filosofia na sua historia mudou de centro de pers­pectiva, substitnindo 0 ponto de vista do eu finito ao dasubstancia divina infinita. A virada seria com Kant. Estamudan~a, todavia, e assim tao importante como se diz? Emesmo esta a grande diferen~a? Enquanto guardamos aidentidade formal do eu, nao fica ele submetido a urnaordem divina, a urn Deus unico que 0 funda? K1ossowskiinsiste sobre 0 seguinte: que Deus e a unica garantia daidentidade do eu e de sua base substancial, a integridade docorpo. Nao conservamos 0 eu sem ter que guardar tambemDeus. A morte de Deus significa essencialmente, provocaessencialmente a dissolu~ao do eu: 0 tumulo de Deus etambem 0 tfunulo do eu 27. E 0 dilema encontra talvez suaexpressao mais aguda: a identidade do eu remete sempre aidentidade de alguma coisa fora de nos; ora, "se e Deus,nossa identidade e pura gra~a, se e 0 mundo ambiente emque tudo come~a e acaba pela desigua~ao, nossa identidadee apenas puro gracejo gramatical" 28. 0 proprio Kantpressentira a sua maneira, quando condenou a psicologiaracional, a cosmologia racional e a teologia racional, a urnamarte comum, pelo menos especulativa.

27. Un si juneste desi1', pp. 220-221: "Quando Nietzsche anuncia queDeus esta marta. ista e 0 mesmo que dizer que Nietzsche deve necessaria­mente perder sua identidade... A garantia absoluta da identidade do euresponsavel desaparece no horizonte da consci&aoia de Nieb::sche, 0 qual,por sua vez, confunde-se com este desapareclmento".

28. Les Lois de Z'hospitalite. PosfAcio, p. 337.

Justamente, e a proposito de uma tese de Kant sobrea teologia, tese insolita e particularmente ironica, que 0 pro­blema do silogismo disjuntivo adquire todo 0 seu alcance:Deus e apresentado como 0 principio e 0 seubor do silogismodisjuntivo. Para compreender semelhante tese e precisolembrar-se do la~o que Kant coloca, em geral, entre as Ideiase 0 silogismo. A razao nao se define primeiro por no~oes

especiais que chamariamos de Ideias. Ela se define antespor urna certa maneira de tratar os conceitos do entendimen­to: urn conceito sendo dado, a razao procura urn outro que,tornado na totalidade de sua extensao, condiciona a atribui~aodo primeiro ao objeto ao qual se relaciona. Tal e a na­tureza do silogismo: mortal atribuindo-se a Socrates, procu­ramas 0 conceito que, tornado em toda sua extensao, con­diciona esta atribui~ao (todos os homens) . Assim, 0

procedimento da razao nao colocaria problema particularse nao se chocasse, contudo, com uma dificuldade: e que 0

entendimento dispoe de conceitos originais chamados ca­tegorias. Ora, as categorias se atribuem ja a todos osobjetos da experiencia possive!. Quando a razao encon:rauma categoria, como vai pader encontrar urn Dutro conceltocapaz, em toda sua exten.sao, de condic~?na.r a atri!,ui~ao d~categoria a todos os ob]etos de expenen_c13 posslvel? . ~I,a razao e agora for~ada a inverter no~oes supracondlclo­nantes, que chamaremos de Ideias. E pois em segu,~dolugar que a razao se define como faculdade das Idelas.Chamaremos de Ideia urna no~ao tomada em toda suaextensao, que condiciona a atribui~ao d~ uma categoria derela~ao (substancia, causalidade, comumdade) a todos osobjetos da experiencia possive!. 0 geuio de Kant esta emmostrar que 0 eu e a Ideia que corresponde a categoria desubstancia; com efeito, 0 en condiciona nao somente aatribui~ao desta categoria aos fenomenos do sentido interno,mas aos do sentido externo, em virtude de sua imediatez naomenos grande. 'Assim, 0 eu e descoberto como principiouniversal do silogismo categorico, na medida em que esterelaciona urn fenomeno determinado como predicado a urnsujeito determinado como substancia. Kant mostra tam­bern que mundo e a Ideia que condiciona a atribui~ao dacategoria de causalidade a todos os fenomenos: 0 que fazde "mundo" 0 principio universal do silogismo hipotetico.Esta extraordinaria teoria do silogismo, que consiste emdescobrir suas implica~oes ontologicas, vai pois se encontrardiante de urna terceira e Ultima tarefa, a mais delicada:nao temos escolha, nao resta mais para Deus como terceiraIdeia a nao ser assegurar a atribui~ao da categoria decomunidade, isto e, 0 dominio sobre 0 silogismo disjuntivo.Deus e destituido aqui, pelo menos provisoriamente, de suaspretensoes tradicionais, de criar sujeitos e fazer urn mundo,

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para nao ter mais do que uma tarefa aparentemente humil­de, operar disjun~oes ou pelo menos fuuda-Ias.

Como e isso possivel? li ai que a ironia abre passa­gem: Kant vai mostrar que, sob 0 nome do Deus cristaofilosofico, nunca se entendeu outra coisa. Com efeito de­finimos Deus pelo conjunto de toda possibilidade, na'me­dicta em que este conjunto constitui uma materia "origina­ria" ou urn todo da realidade. A realidade de cada coisadai "deriva": ela repousa, Com efeito, na limita9ao destetodo, "uma vez que urn pouco da realidade e atribnido Iicoisa enquanto 0 resto dai e excluido, 0 que esta de acordocom 0 ou da maior disjuntiva e com a determina~ao do objetopor urn dos membros desta divisao na menor" 29. Em su­rna, 0 conjunto do possivel e urna materia originaria de ondederiva por disjun~ao a determina~ao exclusiva e completado conceito de cada coisa. E Deus nao tern outro sentidoalem de fundar este manejo do silogismo disjuntivo, poisque nos e proibido concluir da unidade distributiva quesua Ideia representa Ii unidade coletiva OU singular de urnser em si que seria representado pela Ideia.

Vemos pois que, em Kant, Deus nao e descoberto comos,:nhor ~o s~ogis~o disjuntivo a nao ser na medida em que adIsJ.un~ao fIque ligada a exclusoes na realidade que deladenva, logo a urn uso negativo e limitalivo. A tese deKlossowski~ com a nova critica da razao que implica, assumeentao todD sen sentido: DaD eDeus, e, ao contrario 0 Anti­cristo. que e 0 senhor do silogismo disjuntivo. E ist~ porqueo antIdeus determma a passagem de cada coisa por todos ospredicados possiveis. Deus, como ser dos seres, e substituidopel~ Baphomet, "principe de todas as modifica~oes", modifi­ca~ao de todas as modifica~oes. Nao M mais realidade ori­ginaria. A disjun~ao nao deixa de ser uma disjun~ao, 0

ou entao nao deixa de ser urn ou entao. Mas, ao inves dadisjun~ao significar que urn certo numero de predicados saoexcluidos de uma coisa em virtude da identidade do con­ceito correspondeIlte, ela significa que cada coisa se abreao infinito dos predicados pelos quais passa, com a condi­~ao de perder sua identidade como conceito e como eu. Aomesmo tempo que 0 silogismo disjuntivo acede a urn prin­cipio e a urn usc diabolicos, a disjun~ao e afirmada por simesma sem cessar de ser uma disjun~ao, a divergencia oua diferen~a tomam-se objetos de afirma~ao pura, 0 ou entaotorna-se potencia de afirmar, fora das condi~oes no conceitoda identidade de urn Deus, de urn mundo ou de urn eu. 0diIema e 0 solecismo adquirem como tais uma positividadesuperior. ContudoJ vimos quanta subsistia alnda em Klos­sowski de disjufl90es negativas au exclusivas: entre a trocae a repetirGoJ entre a linguagem dissimulada pelo corpo e 0

29. KANT. Critiea da Ra={1o Pura (0 Ideal).

corpo glorioso formado pela linguagem e, finalmente, entrea ordem de Deus e a ordem do Anticristo. Mas, precisa­mente e na ordem de Deus e somente nesta ordem, que asdisjun~oes tern valor negativo de exclusao. E e do outrolado, na ordem do Anticristo, que a disjun~ao (a diferen~a,

a divergencia, 0 descentramento) torna-se enquanto tal po­tencia afirmativa e afirmada.

Qual e este outro lado, este sistema do Baphomet, dospuros sopros ou dos espiritos mortais? Eles nao tern a iden­tidade da pessoa, depuseram-na, revogaram-na. Nem porisso deixam de ter uma singularidade, singularidades muIti­plas: flutua~oes formando figuras na crista das ondas. Toca­mos no ponto em que 0 mito klossowskiano dos sopros torna­-se tambem uma filosofia. Parece que as sopros, em si e emnos devem ser concebidos como intensidades puras. li sobest~ forma de quantidades intensivas ou de graus que osespiritos mortos tern uma "subsistencia", enquanto perderama "existencia" au a extensao do corpo. E sob esta forma quesao sinrulares enquanto perderam a identidade do eu. Asintensid';,des compreendem em si 0 desigual ou 0 diferente,cada qual ja e diferen~a em si, tanto que todas estao com­preendidas na manifesta~ao de cada uma. li urn mundo deinten~6es puras, explica Baph~rnet: "nen~um at~or-pr~pr~?

prevalece", "toda inten9ao continua permeavel de Inten~oes. '"so levaria a melhor sobre outra a inten~ao do passado malsinsensata em esperar a futuro", "urn outro sopro vern ao sell'encontro eis que se sup6em mutuamente, mas cada qual se­gundo u~a intensidade varitivel de intenrao". Singulari~adespre-individuais e impessoais, esplendor do On (Se), smgu­laridades m6veis e comunicantes que penetram umas nasoutras atraves de uma iufinidade de graus, de uma infini­dade de modifica~oes. Mundo fascinante em que a iden­tidade do eu se acha perdida, nao em beneficio da identi­dade do Urn ou da' unidade do Todo, mas em proveito de­uma muItiplicidade intensa e de urn poder de metamorfoseem que as rela~6es de potencia atuam umas nas outras. Eo estado do que e preciso chamar de complicatio contra asimplificatio crista. Ja Roberte ce soir mostrava 0 esfor~o

de Octave para se insinuar em Roberte, para nela deslizarsua inten~ao (sua intensiva intencionalidade) e com isso paralhe dar a outras inten90es, ainda que "denunciando-a" aosespiritos que a violam 30. E no Baphomet, quando Teresase insufla no corpo do jovem pajem, e para formar 0 an­drogino ou Principe das modifica~oes que se oferece Ii in-­ten~ao dos outros, que se de a participar aos outros espi­ritos: "Nao sou urn eriador que sujeita 0 ser ao que eriar

o que cria a urn s6 eu e este eu a urn s6 corpo ... " a siste-

30. Roberte, p. 53.

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rna ~o A~ticristo e 0 dos simulacros que se opoem ao mundodas Identidades. Mas ao mesmo tempo que 0 simulacro re­yoga a identidade, ao mesmo tempo em que fala e e falado,ele ocupa 0 ver e 0 falar, inspira a luz e 0 som. Ele se abre~ sua diferen,a e a todas as outras diferen,as. Todos osslmul~cros sobem a superficie, formam esta figura movelna cnsta das ondas de intensidade, fantasma intenso.

Vemos como Klossowski passa de urn sentido ao outroda palavra intentio, intensidade corporal e intencionalidadefalada. 0 simulacro torna-se fantasma, a intensidade torna­se intencionalidade na medida em que toma por objeto umaoutra intensidade que compreende e se compreende a simesma, toma-se a si mesma por objeto, no infinito das inten­sidades pelas quais passa. E 0 mesmo que dizer que ha emKlossowski tada uma "fenomenologia", que segue a escolas­tica tanto como a Husser!, mas que tra,a suas proprias vias.Esta passagem da intensidade a intencionalidade e tambema .do siguo ao sentido. Em uma bela aniilise que fez deNletzsche, Klossowski interpretou 0 "signo" como rastro deuma flutual):ao, de uma intensidade e 0 "sentido" como 0

movimento pelo qual a intensidade visa a si mesma ao visarao outro, modifica-se a si mesma ao modificar 0 outro evolta, enfim, sobre seu proprio rastro 31. 0 eu dissolvidoabre-se a series de papeis, porque faz subir uma intensidadeque ja compreende a diferen,a em si, 0 desigual em si e quepenetra todas as outras atraves enos corpos multiplos. Hasempre urn outro sopro no meu, urn outro pensamento no~euo uma outra posse no que passuo, mil coisas e mil seres1mphcado~ nas minhas complica,oes: todo verdadeiro pen­samento e uma agressao. Nao se trata das influencias quesofrem?s, mas das insufla,oes, flutua,oes que somas, comas quais ~os confundimos. Que tudo s,eja tao "complicado",que Eu seja urn outro, que algo de outro pense em nos numaagressao que e a do pensamento, numa multiplica,ao que ea do corpo, numa vio.lencia que e a da linguagem, e esta aalegre mensagem. POlS nao 'estamos tao seguros de reviver(sem ressurrei,ao) a nao ser porque tantos seres e coisas

p:nsm:' em nos: porque "nao sabemos sempre, ao certo, senao sa~ os outros que continuam a pensar em nos _ maso que e es~e outrem que fornla 0 fora com rela,ao a estedentro que Julgamos ser? -, tudo se reduz a urn so discursoseja a f1utua,oes de intensidade que respondem ao pensa~mento de cada qual e de ninguem" 32. Ao mesmo tempoem que os corpos perdem SUa unidade e 0 eu sua identidadea linguagem perde sua fun,ao de desigua,ao (seu mod~

31. CE. "Oubli et anamnese dans I'experience vecue de I'Hernet retourdu Meme":. em .Nietzsche, ~ahiers de Royaumont, ed. de Minut, 1967.

32. Oubli et anamnese ... ". p. 233.

peculiar de integridade) para descobrir urn valor puramen­te expressivo Oll, como diz Klossowski, "emocional": naorelativamente a alguem que se exprime e que estaria como­vido, mas com rela,ao a urn puro expresso, pura mo,ao oupuro "espirito" - 0 sentido COmo singularidade pre-indi­vidual, intensidade que se volta sobre si mesma atraves dasoutras. :E assim que 0 nome de Roberte nao desiguava umapessoa mas exprimia urna intensidade primeira, ou que 0

Baphomet lan,a a diferen,a de intensidade constitutiva deseu nome, B-A BA ("nenhurn nome proprio subsiste aosopro hiperbolico do meu, assim, como a alta ideia que cadaqual tern de si mesmo e incapaz de resistir a vertigem demeu tamanho" )31. Os valores da linguagem expressiva ouexpressionista sao a provoca,ao, a revoga,ao, a evoca,ao.o que e evocado (expresso) sao os espiritos singulares ecomplicados, que nao possuem urn corpo sem multiplica-lono sistema dos reflexos e que nao inspiram a Iinguagem semprojeta-la no sistema intensivo das ressonancias. 0 que erevogado (denunciado) e a unicidade corporal tanto comoa identidade pessoal e a falsa simplicidade da linguagem namedida em que e incumbida de so designar corpas e mani­festar urn eu. Como dizem os espiritos a Roberte, "somosnos evocaveis, vosso corpo ainda e revogavel" 34.

Da intensidade a intenc;ionalidade: cada intensidadequer a si mesma, intenciona-se a si mesma, volta-se sobreseus proprios rastros, repete-se e inlita-se atraves de tadasas outras. E 0 movimento do sentido. Movimento a serdeterminado como eterno retorno. Iii 0 Souffleur, romanceda doen,a e da convalescen,a, acabava com uma reve!a,aodo etemo retorno; e com a Baphomet, Klossowski cria emsua obra uma seqUencia grandiosa do Zaratustra. 0 dificilesta apenas na interpreta,ao das palavras: 0 eterno retornodo Mesmo. Pois nenhuma forma de identidade e aqui su­posta, uma vez qUe cada eu dissolvido nao volta a passarpor si a nao ser passando nos outros ou so se deseja a simesmo atraves da serie de papeis que nao sao ele proprio.A intensidade, sendo ja diferen,a em si, abre-se sobre se­ries disjuntas, divergentes. Mas, precisamente, porque asseries nao estao submetidas a condi,ao da identidade deurn conceito em geral e muito menos a instancia que as per­corre esta submetida a identidade de urn eu como individuo,as disjun,Oes permanecem disjun,oes, mas sua sintese deixade ser exclusiva ou negativa para assumir, ao contrario, urnsentido afirmativo pelo qual a instancia movel passa por

33. Le Baphomet. p. 137. E, sobre a linguagem puraroente expressivaou "emociona}", em rela!<iio com a no!Oao de Stimmung e em oposiCao coma ~ao de designa!<ao. ef. "La Periode tuxinoise de Nietzsohe", em L'EpM­mere, n9 5, 1968, pp. 62-64.

34. Roberte, p. 84.

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todas as series disjuntas; em suma, a divergencia e a dis­jun9ao tornam-se objeto de afirma9ao como tais. 0 verda­deiro sujeito do eterno retorno e a intensidade, a singula­ridade; dai a rela9ao entre 0 eterno retorno como intenciona­lidade efetuada e a vontade de potencia como intensidadeaberta. Ora, desde que a singularidade se apreende comopre-individual, fora da identidade de urn eu, isto e, comofortuita, ela se comunica com todas as outras singularidades,sem cessar de formar com elas disjun90es, mas passando portodos os termos disjuntos que afirma sirnultaneamente, aoinves de reparti-los em exclusoes. "Nao me resta pois senaome re-querer, nao mais como 0 desembocar de possibili­dades preliminares, nem como uma realiza9ao entre mil,mas como urn momento fortuito, cuja fortuidade mesmaimplica a necessidade do retorno integral de toda a serie" 35.

o que exprime 0 eterno retorno e este novo sentid_o dasintese disjuntiva. Da mesma forma 0 eterno retorno nao sediz do Mesmo ("ele destroi as identidades"). Ao contra­rio, ele e 0 unfeo Mesmo, mas que se diz do que difere emsi - do intenso, do designal ou do disjunto (vontade depotencia). Ele e realmente 0 Todo, mas que se diz do quepermanece designal; a Necessidade, que se diz somente dofortuito. Ele proprio e univoco: ser, lingnagem ou silenciounivocos. Mas 0 ser univoco se diz de existentes que naoo sao, a lingnagem univoca se aplica a corpos que nao 0

sao, 0 silencio "puro" envolve palavras que nao 0 sao. Pro­curariamos, pois, em vao no eterno retorno a simplicidadede urn drcula, assim como a convergencia das series em tornode urn centro. Se hii circulo, e 0 circulus vitiosus deus: adiferen9a ai esta no centro e 0 circuito e a eterna passagematraves das series divergentes. Circulo sempre descentradopara uma circunferencia excentrica. 0 eterno retorno e reaI­mente Coerencia, mas euma caerencia que DaD deixa subsis­tir a minha, a do mundo e a de Deus 36. A repeti9aonietzschiana nao tern nada a ver com a kierkegaardiana ou,mais geralmente, a repeti9ao no eterno retorno nao ternnada a ver com a repeti9ao crista. Pois, 0 que a repeti9aocrista faz voltar, volta uma vez, apenas uma vez: as rique­zas de Joe 0 filho de Abraao, 0 corpo ressuscitado e 0 eureencontrado. Ha uma diferen9a de natureza entre 0 quevolta "uma vez por todas" e 0 que volta por todas as vezes,uma infinidade de vezes. Assim, 0 eterno retorno e real­mente 0 Todo, mas 0 Todo que se diz dos membros dis­juntos ou das series divergentes; ele nao faz voltar tudo, nao

35. "Oubli et anamnese ... ", p. 229. E "La Periode turinoise deNietzsche", pp. 66-87 e 83.

36. Les Lois de l'hospitalite, Posfacio. E "Oubli et anarnnese ... ",p. 233: "Significa isto que 0 sujeito pensante perderia a identidade a partirde urn pensarnento coerente que 0 excIuiria de si mesmo?"

faz voltar nada do que volta uma vez, do que pretende re­centrar 0 circu1o, tornar as series convergentes, rest~urar 0

eu, 0 mundo e Deus. 0 Cristo nao voltara no Cicio deDionisio a ordem do anticristo expulsa a outra. Tudo 0, . .que, fundado em Deus, faz da disjuru;iio um uso negatlvo ouexclusivo, Ii negado, Ii excluido pelo eterno retorno. Tudoisto e remetido a ordem de Deus, que procede uma vez portodas. 0 fantasma do Ser (eterno retorno) so faz voltar ossimulacros (vontade de potencia como simula9ao). Coeren­cia que nao deixa subsistir a minha, 0 eterno retorno e nao­-senso, mas nao-senso que distribni 0 sentido as series di­vergentes sobre todo 0 circuito do circulo descentrado ­pois a "loucura e a perda do mundo e de si mesmo sob aforma de urn conhecimento sem come90 nem firn" 37.

37. Les Lois de l'hospitalite, Posfacio, p. 346.

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~. IVII"'II~I I UUIIII~I ~ v

Mundo sem Outrem

o animal parou de repente de mastigar, guardando entre sensdentes uma Janga gramfnea. Escarneceu, em seguida, com sua barbae se levantou sabre snas patas traseiras. E assim den alguns passosem dire~ao a Sexta-feira, agitando no vacuo seu casco dianteiro,sacudindo sens imensos cornes como se estivesse, de passagem,saudando uma multidao. Esta mfmica grotesca geloli de surpresaSexta-feira. 0 animal estava apenas a alguns passos dele quandose deixou cair para a frente, tomando ao mesmo tempo urn impulsode catapulta em sua dire~ao. Sua cabe!ra mergulhou entre as patasda frente, sens comas apontaram em forquilha e eIe voan em dire4

!rao ao peito de Sexta-feira como uma grande £lecha, guarnecida depenas e de peles. Sexta-feira se lamrou para a esquerda numafra\rao de segundo tarde demais. Urn fedor almiscarado envoI.veu-o ... 1

Estas paginas assim liio belas contam a luta de Sexta­-feira com 0 bode. Sexta-feira said ferido, mas 0 bode mor­renl, "0 grande bode eshi morto". E Sexta-feira anuncia seuprojeto misterioso: 0 bode morto voara e cantara, bodevoador e musical. Para 0 primeiro ponto do projeto, ele seserve da pele, depilada, lavada, poIida, esticada sobre umaestrutura de madeira. Amarrado a uma vara de pescar, 0

bode amplifica 0 menor movimento da linha, assumindo afun9ao de uma gigantesca rolha celeste, transcrevendo asaguas sobre 0 ceu. Quanto ao segundo ponto, Sexta-feiraserve-se da cabe9a e das tripas, faz deles urn instrumentoque coleca em uma arvore morta a fim de produzir uma sin­fonia instantanea cujo unico executante deve ser 0 vento:e assim que 0 rumor da terra e, por sua vez, transportadono ceu e se torna urn som celeste organizado, pansonoridade,"musica verdadeiramente elementar" 2. Destas duas ma-

1. VendTedi au les limbes du Pacifique, Gallimard, 1967, p. 161.2. p. 171.

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II·1I

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i:

neiras 0 grande bode morto libera os Elementos. Observar­se-a que a terra e 0 ar desempenham menos 0 papel de ele­mentos particulares do que 0 de duas figuras completasopostas, cada qual reunindo, por conla pr6pria, os quatroelementos. Mas a terra e 0 que os encerra e os estreita, can­tem-nos na profundidade dos corpos, enquanto que 0 ceu,com a luz e 0 sol, leva-os ao estado livre e puro, liberadosde seus limites para formar uma energia c6smica de super­ficie, una e, contudo, pr6pria a cada elemento. Ha, por con­seguinte, urn fogo, uma agua, urn ar e uma terra terrestresmas tambem uma terra, uma agua, um fogo, um ar aereosou celestes. Ha um combate entre a terra e 0 ceu, em queesta em jogo 0 aprisionamento ou a libera9ao de todos oselementos. A ilha e a fronteira ou 0 lugar deste combate.E por isso que e tao importante saber de que lado vai pen­der; se sera capaz de derramar no ceu seu fogo, sua terra esuas aguas e de se tornar ela pr6pria solar. 0 her6i doromance e a ilha tanto quanto Robinson, tanto quanto Sexta­-feira. A ilha muda de figura no curSo de uma serie dedesdobramentos, nao menos do que Robinson que muda deforma no curso de uma serie de metamorfoses. A seriesubjetiva de Robinson e inseparavel da serie dos estados dailha.

o termo final e Robinson feito elementar em sua ilha,ela propria entregue aos elementos: um Robinson de sol nailha tornada solar, uraniano em Urano. 0 que importa aquinaD e, por conseguinte, a origem, mas, ao contrario, 0 des­fecho, 0 alvo final, descobertos atraves de todo tipo de ava­tares. E a primeira grande diferen9a em rela9ao ao Robinsonde Defoe. Observou-se freqiientemente que 0 tema de Ro­binson em Defoe DaD era somente uma hist6ria, mas 0 "ins­trumento de uma pesquisa": pesquisa que parte da iIha deser­ta e que pretende reconstituir as origens e a ordem rigoro­sa dos trabalhos e das conquistas que delas decorrem como tempo. Mas e claro que a pesquisa e duas vezes falseada.De um lado, a imagem da origem pressupoe 0 que ela pre­tende engendrar (d. tudo 0 que Robinson tirou dos restos donaufragio). De outro lado, 0 mundo re-produzido a partirdesta origem e 0 equivalente do mundo real, isto e, econo­mico ou do mundo tal como seria, tal como deveria ser senao existisse a sexualidade (d. a elimina9ao de toda sexua­lidade no Robinson de Defoe)3. Sera preciso concInir apartir dai que a sexualidade e 0 unico principio fantasticocapaz de fazer desviar 0 mundo da ordem economica rigo-

3. Sobre 0 Robinson de Defoe, d. as observa!iOes de Pierre Macherey,que rnostra como 0 tema da origem esta ligado a uma reprodu!::ao economicado mundo e a uma elimina~ao do fantastico em proveito de nOla pretensa"rea!idade" deste mundo: Pour une theorie de Za production litteraire, ed.Masptho. pp. 266-275.

rosa fixada pela origem? Em suma, em D~foe a inten9ao

era boa: 0 ql1e pode ocorrei"._a Ulll J',Cllllent so, SeIl!Qu!fe.Ill,em uma ilha deserta? Mas 0 problema estava mal colo~ado.Poisan mves de levar um Robinson assexuado a uma ongemque'reproduz um mundo economico a~aIogo ao nosso, ar-

uetipo do nosso, seria preciso conduZlr um .Robmson as­~xuado a fins complelamenle diferenles e ~lve:genles. dosnossoS em um mundo fantastico tendo ele propno des,:,ado.Coloc~do 0 problema em termos de fim e nao de ~lflgem,Tournier se proibe de deixar Robins~,n aband~nar_a ,~Iha. 0fim 0 alvo fmal de Robinson e a desumamza9ao, 0 en­codtro da libido com os elementos livres, a descoberta deuma energia c6smica ou de uma grande Saude elemen~ar,que nao pode surgir a nao ser na ilha e ainda ~a medldaem que a ilha se toroou aerea e solar. Henry Miller falavadestes "vagidos de recem-nascidos dos element?s. fund~men­tais helio, oxigenio, silicio, ferro". E sem duvlda. ha umpouco de Miller e mesmo de La~~nce ne~te RODl~son dehelio e de oxigenio: 0 bode morto Ja orgamza 0 vagIdo doselementos fundamentais.

Mas 0 leitor tem tambem a impressao de que estagrande Saude de Robinson de Tournier es.conde a~o, q~enao e em absoluto milleriano ou lawre.ncla~o..Nao s,:",aeste desvio totalmente essencial que ela Imphca, lOseparavelda sexualidade desertica? 0 Robinson de Toumier se opoeao de Defoe por tres tra90s que se encadeiam com rigo~: elee relacionado afills, a alvos, ao inves de se-Io a ~a or;g~m;ele esexDado; estes fins representam um desvI? fantasticode nosso mundo sob a influencia de uma sexualidade trans­formada aO inv:'s de uma reprodU9ao economica de nossOmundo ;ob a a9ao de um trabalho continuado. Na verdade,este Robinson nao faz nada de perverso; e, contudo, comonos desembara9armos da irnpressao de que ele e pervers?,isto e, segundo a defini9ao de ~reud, aquele que .desvIaquanto aos fins? Era a mesma C~lsa, em Defoe, refenr Ro­binson a origem e faze-Io produzlf. um m~ndo co?forme a,onosso' e a mesma coisa em Tournler refen-Io a flOs e faze­10 de~viar, divergir quanto aos fins. Ref.erido as origens,Robinson deve necessariamente reprodUZlr nossO mundo,mas, referido aoS fins, ele desvia necessariamente. Estranhodesvio que nao e, contudo, daqueles de que nos fala Freud,uma vez que e solar e toma como objet? os elemen.tos: tale 0 sentido de Urano. "Se fosse precIso necessarlamentetraduzir em termos humanos este coito solar; seria conve­niente definir-me sob as especies femininas e como a esposado ceu. Mas este antropomorfismo e um contra-senso.. Emverdade, no supremo grau em que acedemos, Sext~-felra eeu, a diferen9a de sexo esta ultrapassada e Sexta-felra pode

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r

III,

idenl;ificar-se a Venus, do mesmo modo como podemos dizerem lmguagem humana que me abro a fecunda~ao do AstroMai?r" 4. Se e ve.rdade que a neurose e 0 negativo da per­versao, a perversao, de sen lado, nao seria 0 elementar daneurose?

, .0 conceito de perversao e bastardo, semijuridico, semi­medi:o. Mas ~em a medicina, nem 0 direito ganham nadacom ISSO. No mteresse renovado hoje por urn tal conceito,parece que procuramos em uma estrutura da perversao mesma~ r~zao de sua rela~ao eventual muito ambigua, tanto com aJustl~a como com a medicina. 0 ponto de partida e este: aperversao nao se define pela for~a de urn desejo no sistema?as pulsoes; 0 l?erverso nao e alguem que deseja, mas quemtroduz 0 deseJo e?, urn outro sistema e faz com que eledesempenhe, neste sistema, 0 papel de urn limite interior deu?'. foco virtual ou de.~ ponto zero (a famosa ap~tiasadICa). 0 perverso nao e urn eu que deseja, mais do queo .O~tr~, para ele, nao e urn objeto desejado, dotado deeXlstenCIa real. 0 romance de Tournier nao e, contudo,urna tese sobre a perversao. Nao e urn romance de tese.Nem urn romance de personagens, uma vez que nao haOUtr~Ul. Nem urn romance de analise interior, RObliisontendo muit.0. pouca interioridade. :E urn surpreendenteromance cornlCD de aventuras e urn romance c6smico~e avatares. Ao inves de uma tese sobre a perversao,e urn romance que desenvolve a tese mesma de Robinson:o hornem s~m. outrem em sua ilha. Mas a "tese" encontratanto mais sentido quanta mais anuncia aventuras aD

inves de s~ referir a uma origem suposta: ~vai QC()rr~

E~,E.1~~~_.l~S!!Jar~m Q!!!r~Efr Procuraremos, pois, primeiroo que slgmfIca outrem por seus efeilos: buscaremos os efei­tos da ausencia de outrem na ilha, induziremos os efeitos da~resen~a de outrem no mundo habitual, concluiremos 0 quee outrem e em que consiste sua ausencia. Os efeitos deQutrem sao, por conseguinte, as verdadeiras aventuras do es­pirito: urn romance experimental indutivo. Entao a refte­xao filos6fica pode recolher 0 que 0 romance m~stra comtanta for~a e vida.

Q.primeiro efeito de oUlrem e,.~m torno de cada objetoque percebo ou ge cada ideia que. penso, a organiza~ao.<!eu~ mundo mar?,~~, de urn arco, de urn fundo que outrosobJetos, outras Idelas podem sair segundo leis de transi~aoque regulam a passa~em de uns aos outros. Olho urn obieto,em segulda me desvlO; deixo-o voltar ao fundo, ao mesmotempo em que se destaca do fundo urn novo objeto da ntinhaaten~ao. Se este novo objeto nao me fere, se nao vern mechocar com a violencia de urn projetil (como quando bate-

4. p. 185.

c'

mos em alguma coisa que nao vimos), e porque 0 primeiroobjeto dispunha de toda uma margem em que eu sentia jaa preexistencia dos seguintes, de todo urn campo de virtua­Iidades e de potencialidades que eu ja sabia capazes de seatuaIizarem. Ora, urn tal saber ou sentimento de existenciamarginal nao e possivel a nao ser pOr- intermedio de outrem."O'utr,em e para n6s urn poderoso fator de distra~ao, nao so­mente porque nos desconcerta sem cessar e nos lira de nossopensamento intelectual, mas tambem porque basta a possi­bilidade da sua_a~£-ao para lan~ar urn vago clarao sobreurn universo de objetos situados a margem de nossa aten~ao,

mas capaz a qualquer momenta de se tornar 0 centro dela" 5.

A parte do objeto que nao vejo, coloco-a ao mesmo tempocomo visivel para outrem; tanto que, quando eu tiver feiloa volta para atingir esta parte escondida, terei alcan~ado

outrem por tras do objeto, para dele fazer uma totaliza~ao

previsive!. ,g,.os objetos atras de ntim, sinto que eles selig~m.e iQ.rmalIl urn mundo, precisamente porque visiveis evistas Jioroutrem. E esta profundidade para mim, segundoa qual os objetos se invadem ou mordem uns aos outros e seescondem uns atras dos outros, eu a vivo tambem comosendo uma largura possivel para outrem, largura em que sealinham e se pacificam (do ponto de vista de uma outraprofundidade). Em suma, Q.utr~lIl_ ,assegu[a as J!1~rg~lls "'"tran~i,-o~Ln.o.. mun<!Q., Ele e a d09ura das contigiiidadese ',,,das semelhan~as, Ele regula as transforma~oes da forma e /do fundo, as varia~oes de profundidade. Ele impede os as-' .. ,saltos por tras. Povoa 0 mundo de urn rumor benevolente.Faz com que as coisas se inclinem umas em dire\=ao as Qntrase de uma para a outra encontrem complementos naturais.1QuanlliulQs..queixamos. da maldade de outrem, esquecemosesta outra maldade mais temive! ainda, aquela queteriam ascoisas se nao houyesse outrem. Ele relativiza 0 nao-sabido"o nao-percebido; pois outrem para mim ,ntroduz 0 signo donao-percebido no que eu .I"'.!c.~bo, deterntinando-me a apreen-der 0 que nao percebo como perceptivel para outrem. Emtodos estes sentidos e sempre por outrem que passameu desejo e que meu desejo recebe urn objeto. Eunao desejo nada que nao seja visto, pensadO, possuido porurn outrem possive!. Esta ai 0 fundamento de meu desejo.:E sempre outrem que faz meu desejo baixar sobre 0 objetqJ

o que ocorre quando falta outrem na estruturado.Ululldo.? S6 reina a brutal oposi~ao do sol e .da terra, deuma luz insustentavel e de urn abismo obscuro: "a lei surna­ria de tudo ou nada". 0 sabido e 0 nao-sabido, 0 percebidoe 0 nao-percebido enfrentam-se em termos absolutos, num

5. p. 32.

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combate sem nuangas; "m~nh~ VlsaO da ilha esta reduzidaa si mesma, 0 que nao veJo e urna incognita absoluta, emtodos os lugares onde nao estou atuaimenle reina uma noiteinsondavel" 6. Mundo cru e negro, sem potencialidades nemvirtualidades: e a categaria do possivel que se desmoronou.Ao inves de formas re!ativamente harmoniosas, saindo deurn fundo para a ele voltar segnndo uma ordem do espa~o

e do tempo, nada mais do que linhas abstratas, luminosas econtundentes, nada mais do que urn sem-fundo, rebelde esugador. Nada alem de Elementos. 0 sem-fundo e a linhaabstrata substituiram 0 modelado e 0 fundo. Tudo e impla­cave!. Tendo cessado de se estender e se curvar uns em di­re~ao aos outros, os objetos se ergnem amea~adores; desco­brimos entao maldades que nao sao mais as do homem.Dir-se-ia que cada coisa, tendo abdicado de seu modelo, re­duzida a suas linhas mais duras esbofeteia-nos e golpeia­-nos pelas costas. A ausencia de outreID, nos a sentimosquando damos urna topeda, instantes em que nos e reve­lada a velocidade estupidificante de nossos gestos. "A nudeze urn luxo que sO Q homem calorosamente cercado pelamultidao de seus semelliantes pode se oferecer sem perigo.Para Robinson, enquanto nao tivesse mudado de aima, seriaurna prova~ao de uma mortifera temeridade. Despojado deseus pobres fardos - usados, dilacerados, maculados, maSsaidos de varios milenios de civiliza~ao e impregnados dehumanidade -, sua carne era oferecida vulneravel e brancaa irradia~ao dos elementos brutos 7." ;Na<LhaJllaiL!r:,nsi-.~oes; acabou-se a do~ura das contigiiidades e das semellian­~as que nos permitiam habWlr_0 mundo.. Mais nada subsistealem das profundidades infranqueaveis, das distancias e dasdiferen~as absolutas ou entao, ao contrario, de insuportaveisrepeti~oes, assim como extensoes exatamente superpostas.

Camparando os primeiros ekitos de sua presen~a e desua ausencia, podemos dizer 0 que e outrem. 0 engano dasteorias filosoficas e reduzi-Io ora a urn objeto particular, oraaum outro sujeito (e mesmo uma concep~ao como a de Sar­tore do L'Etre et Ie Neant, que se contentava em reunir asduas determina~oes, fazendo de outrem urn objeto sob meuolhar que me ollie, por sua vez, e me transforme em objeto).Mas outrem nao e nem urn obkto no campa de minha per­ce~ao, nem J,llI1S!!i"itO:-que me percebe: J... em primeiro

. lugar, um:u'~trntura.99. cam]>O.perceptiv9, sem a qual estecampo no seu conjunto nao funcionaria como 0 faz. Queesta estrutura seja efetuada por personagens reais, por sujei­t08 variaveis, en para vas e vas para mim, nao impede que etapreexi.sta como condi~ao de organiza~ao em geral aos termos

6. p.47.7. p.27.

que a atualizam em cada campo perceptivo organizado ­o vassc, 0 meu. Assim, Outrem - a priori como estruturaabsoluta funda a relatividade dos outrem como termos efe-

, I 'tnando a estrutura em cada campo. Mas qua e esta estru-tura? :E: a do passive!. Urn semblante assustado e a ex­pressao de urn possivel mundo assustador ou de alguma coisade assustador no mundo que ainda nao vejo. Compreende­mos que 0 possivel nao e aqui urna categoria abstrata desig­nando alguma coisa que nao existe: 0 mundo possivel ex­presso existe perfeitamente, mas nao existe (atualmente) forado que 0 exprime. 0 semblante terrificado nao se parececom II coisa terrificante, ele a implica, a envolve cOlIlO algode diferente, numa especie de tor~ao que poe 0 expresso noexprimente. Quando apreendo, por ~~ vez. e par contapropria, a realidade do que outrem expnmla, nao fa~o nadamais do que explicar outrem, desenvolver e realiza~.0 ~undopassivel correspondente. :E: verdade que outrem Ja da ~acerta realidade aos possiveis que envolve: falan~o, precl~a­

mente. Outrem e a. existencia dopo.ssivelenvolvldo. A Im­guagem 60:-realidade do possivel enquanto tal. 0 eu e 0desenvolvimento, a explica9ao dos possiveis, seu processode realiza~ao no atuaI. De Albertine percebida ao longe,Proust diz que envolve ou exprime a praia e a arrebenta9aadas ondas: "Se ela me tivesse visto, 0 que e que eu pode­ria ter representado para ela? Do seio de que universo elame distinguiria?" 0 arnor, 0 ciume, serao a tentativa de de­senvolver, de desdobrar este mundo possive! chamado Al­bertine. Em suma, outrem como estrutura, e a expre~odg

um mundo possivel,Toexpressoapreendido camo nao exis­tindo ainda fora do que 0 exprime. "Cada urn destes homensera urn mundo possivcl, bastante coerente, com sens v~lores,

seus focos de atra9ao e repulsao, seu centro de gravldade.Por mais diferentes que fossem uns dos outros, estes pos­siveis tiulram a\llalmente em comurn uma pequena imagemda ilha - quae> sumaria e superficial! - em torno da qualse organizavam e nurn canto da qual se encantravam urnnaufrago chamado Robinson e seu servidor mesti90. Mas,por mais central que fosse esta imagem, ela era em cadaqual marcada com 0 signo do provisorio, do efemera, con­denada a voltar no mais breve prazo para 0 nada de ondea retirara 0 naufragio ocidental do Whitebird. E cada urndesses mundos possiveis proclamava ingenuamente sua rea­lidade. Isso e que era outrem: UIn possivel que se obstinaem passar por real" 8.

Podemos compreender melliar os efeitos da !,rese~~a

de outrem. A psicologia modema elaborou uma nca senede categorias que explicam 0 funcionamento do campo per-

8. p. 192.

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ceptivo e das varia~Oes de objetos neste campo: forma-fun­do, profundidade-comprimento, tema-potencialidade perfis­-unidade de objeto, franja-centro, texto-contexto, tetico-nao--tetico, estados transitivos-partes substantivas etc. Mas 0

problema filosofico correspondente nao esta, ao que parece,bem colocado: pergunta-se se essas categorias pertencem aoproprio campo perceptivo e lhe sao imanentes (monismo),ou se remetem a sinteses subjetivas exercendo-se sobre umamateria da percep~ao (dualismo). Estariamos enganados serecusassemos a interpreta~ao dualista sob 0 pretexto deque a percep~ao nao se faz por meio de urna sintese intele<:­tual ajuizadora; podemos evidentemente conceber sintesespassivas sensiveis de urn tipo bem diferente, exercendo-sesobre urna materia (Husser!, neste sentido, nunca renuncioua urn certo dualismo). Mas, mesmo assim, duvidamos deque 0 dualismo esteja bem definido enquanto 0 estabelecer­mos entre uma materia do campo perceptivo e sintcses pre­-reflexivas do eu. 0 verdadeiro dualismo encontra-se alhures:entre os et~tJ1Lda "estrutura Outrepl" no campo perceptivoe os efeitos de sua ausencia, (0 que seria a perce~ao se naohouvesse outrem). E preciso compreender que outrem nao eurna estrutura entre outras no campo da percep~ao (no sen­tido em que, por exemplo, reconhecer-lhe-iamos uma dife­ren~a de natureza com rela~ao aos objetos). Ele e a estru­~"lt q,!~ copdiciona 0 conjunto do camJ1.o_e 0 funclOn,imenli><ieste_coni1!llto, tomando possivel a' constitui~ao'ea aplica~

~ao das categorias precedentes. Nao e 0 eu, e O]ltrem_como,,,-st.t:.utura que torna a percep~ao possivel. Sao pois os mesmosautores que interpretam mal 0 dualismo e que nao escapamda alternativa segundo a qual outrem seria ou um objetoparticular no campo ou entao ~ outro sujeito de campo.Definindo outrell, segundo Tournier, com a expressao deum mundo possivel, fazemos dele, ao contrario, Q_prinf1J2jga priori da orgauiza~ao de todo" campo perceptiYo segundoas categorias, fazemos dele a estrutura que permite 0 fun­cionamento assim como a "categoriza~ao" deste campo. averdadeiro dualismo aparece entao com a ausencia deoutrem: 0 que ocorre, neste caso, para 0 campo perceptivo?Sera que e estruturado segundo outras categorias? ou, aocontrario, abre-se sabre uma materia mnito especial fa­zendo-nos penetrar em um informal particular? Eis a ~ven­tura de Robinson.

A tese, a hip6tese-Robinson, tem uma grande vantagem:apresenta-nos como devido as circunstancias da ilha de­serta 0 desaparecimento progressivo da estrutura Outrem.Cert~mente, ela. sobrevive ~ funciona ainda, muito tempodepOls que Robmson, na Ilha, nao mais encontra te:mosatuais ou personagens para efetua-Ia. Mas vem 0 momen-

to em que tudo acaba: "Os farois desapareceram de meucampo. Nutrida por minha fantasia, durante muito tempoainda sua luz chegou ate mim. Agora, acabou-se, as trevasme envolvem"9. E quando Robinson reencontrar Sexta-feira,nos 0 veremos, nao e mais como outrem que 0 encontrara.E quando, no final, chega urn navio na ilha, Robinson sa­bera que nao pode mais restaurar os homens em sua fun~aode outrem, uma vez que a propria estrutura que preenche­riam desapareceu: "Era isto outrem: um possivel que seobstina em passar por real. E que seja cruel, egoista, imoralnegar esta exigencia, e 0 que toda sua educa~ao havia in­culcado a Robinson mas que ele esquecera durante todosesses anOs de solidao e ele perguntava agora se chegaria al­gum dia a retomar 0 habito perdido"'0. Ora, esta dissolu~ao'progressiva mas irreversivel da estrutura nao e 0 que 0 per­verso atinge por Qutros meios, na sua "ilha" interior? Parafalar como Lacan, a "peremp~ao" de outrem faz com queos outros nao sejam mais apreendidos como outrem, umavez que inexiste a estrutura que poderia dar-Ihes este lugare esta fun~ao. Mas nao e, assim, todo 0 nosso mundo per- 'cebido que se desmorona? Em proveito de outra coisa? .. I

Voltemos, por consegulnte, aos efeitos da presen~a Ge1outrem, tais como decorrem da defini9ao "outrem-expressaode um mundo possive!". 0 efeito fundamental e a disJin~ao

de minha cons.ciencia_e..de seu.objeto. Esta distin~ao dec()r-,fC-_COlU efeito da estrutura Oug,em. Povoando 0 mundo de

-pgs.sWilidad_es,de, fundos, de franjas, de trailsi~oes, -.:..:. 'Ins:crevendo a possibilidade de um mundo espantoso quandoainda nao estou espantado ou entao, ao contrario, a possi­bilidade de um mundo tranqiiilizante quando, eu, me encontrorealmente assustado com 0 mundo, - envolvendo soboutros aspectos 0 mesmo mundo que se mantem diferente­mente desenvolyido diante de mim, - constituindo no mun­do um conjunto de bolhas que contem mundos possiveis::eisj::i'::'lPJlJ>_ou!rJlm'}l. A partir dai, outrem faz com que mi::Jnha consciencia caia necessariamente em urn "eu era", emurn passado que nao coincide mais com 0 objeto. Antes queoutrem apare~a, havia por exemplo um mundo tranqiiilizan-

9. p. 47.10. pp. 192, 193.

11. A concepcao de Tountier compacta evidentemente ecos leibnizj.anos(a monada como expressao de mundo), mas tambem ecos sartrianos. Ateoria de Same em. L'£tre et 1e Neant e a primeira grande teoria de outrem,porgue ultrapassa a altemativa: outrem e urn", obJeto (ainda que fosse urnobjeto particular no campo perceptiVo) ou entao . suic;;i.t;'t (ainda que fos!>Curn outro sujeito para urn outro campo perceP"tivO)? --Sartre aqui e precursordo estruturahsmo, pais ele e 0 primeiro a ter considerado outrem como estru­tura pr6pria ou especificidade irredutivel ao objeto e ao sujeito. Mas como eledefinia esta estrutura pelo "olhar", ca[a de novo nas categorias de objt'!o ede sujeito, fazendo de outrem aquele que me constitui como objeto quandome alba, pronto para se converter em objeto quando a olbo. Parece. __ que ~.

e~tura. _Ou~~m precede 0 othar; este marea antes 0 instante em que aJguem_.vern preencher a estrutura; 0 albar nlio faz mais do que efetuar, atualizar uma~stru~a que deve ser definida independentemente.,

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te, do qU<J! ~ao distinguiamos minha consciencia· outremsurge, !xp:unmdo a p?ssibilidade de urn mundo a;sustador,.que nao e dese~volvldo sem fazer passar 0 precedente.E.? n~da. sou al~m dos meus obietos passados, meu eunao e felto senao de urn mundo. passado, precisamenle

-aque!e. que outrem Jaz passaro Se outrem e uin -mundo'..pOSSIVef,. eu sou urn mundo passado. E todo 0 errodas !C~nas dOCQn?~cimento e 0 de postular a contem­P?raneldade ?o. sUJelto e do objeto, enquanto que urn~ao se constitw a nao ser pelo aniquilamento do outro.De repente se produz urn desligamento. 0 suieito se arran­

ca do obieto, despoiando-o de urna parte de sua cor e deseu. peso. A1~a coisa arrebentou no mundo e todo urnconJunto de COiSas se desmorona convertendo-se em mimCada obieto e desqualificado em proveito de urn sujeito cor~respondente. A luz se torna ollio e nao existe mais comotal: ela nao e mais do que excita9ao da retina. 0 odor tor­na~s~ narina - e 0 proprio mundo se revela inodoro. AmuslCa do ve~to nas mores e refutada: nao era mais do queurn abalo de timpano../ 0 suieito e urn obieto desqualifica­do. Meu ollio e 0 cadaver da luz, da cor. Meu nariz e tudoo que resta dos odores quando sua irrealidade foi demons­trada. Mi~a mao refuta a coisa que segura. 0 problemado conhecImento nasce, entao, de urn anacronismo. Ele im­~Iica a sin:u1taneida~e do sujeito e do obieto, cuias miste­nos::s rela90es gost~.a de esclarecer. Ora, 0 suieito e oobic­to ?ao.podem coeXistrr, urna vez que Sao a mesma coisa, pri­melfO mtegrada ao mundo real, depois iogada fora como re­botalbo 12':' .Qutrem .a~~e~a, por conseguinte,",distin9aod~ CO?SC:le.n~l,!..edeseu obIeto, como distin9ao temporal. ()p~lm~l:o efeIto de sua presen9a concernia ao espa90 e a dis­trlbw9ao ?as categorias da perCeP9aO; mas 0 segundo efeito,talvez ~aIS J:rofundo, concerne ao tempo e a distribui9aO desuas dlmensoes, do precedente e do seguinte no tempo.Corn.o._!Iave~ia. ainda. 11m. passado quando outrem naofunClOna mats? ,--------

. Na-:~;'sencia_de Q!l!r§!!1J a consciencia e seu obieto naof~zem. malS do que urn. NaoM.lIlais possibilidadedc.!'.rro:n~o slmplesmente porque outrem n.iio .csta.m.aiLli, consti­tUl~~O 0 tnbunal de toda realidade, para discutir, infirmar ouvenficar 0 que acredito ver, mas porque, faltando em suaest.mtura, ele deixa a consciencia colar ou coincidir com 0

obJeto ~urn etern~ p~esente. "Dir-se-ia'-por consegiimte;quemeus dias se endireltaram. Nao mais oscilam una sobre osoutros. Mantem-se de pe, verticais e se afirmam orgulhosa­mente em seu valor intrinseco. E como nao sao mais dife­renciados pelas etapas sucessivas de urn plano em vias de

12. pp. 82~84.

eXeCU9aO, eles se parecem a tal ponto que se superpOemexatamente em minha memoria e que me parece viver semcessar 0 meSilla dia 13." A consciencia deixa de ser wna luzsobre os obietos para se tornar uma pura fosforescencia dascoisas em si. Robinson nao e senao a consciencia da iIhamas a consciencia da iIha e a consciencia que a ilha te~deJa mesma e e a ilha nela mesma. Compreende-se entao 0paradoxo da ilha deserta: 0 niufrago, se e 6nico, se perdeua estrutura-outrem, em nada rompe 0 deserto da ilha, anteso consagra. A ilha se chama Speranza, mas 0 Eu quem e?"A questao esti longe de ser ociosa e nem e insoJ6veJ, poisse ele nao e Eu, Eu so pode ser Speranza 14." Eis que pro­gressivamente.$obinson se aproxima de urna reveJa9ao: aperda de outrem, ele 0 experimentara primeiro como umaperturba9aO fundamental do mundo; nada mais subsistia alemda oposi9aO da luz e da noite, tudo se fazia contundente, 0mundo tinha perdido suas transi90es e suas virtualidades.Mas j;le <!escobre (Ientamente) que e outrem, ao contrano,que .P."E.t.u.rbaya. 0 lllUndq. Era ele a perturba9aO. Outremdesaparecldo nao sao mais somente os dias que se retificam.Sao as coisas tambem que nao sao mais baixadas umas sobreas outras. :E: tambem 0 deseio nao mais baixando sobre urnobieto ou urn mundo possivel expresso por outrem. A ilhadeserta entra numa retifica9ao, numa ere9aO generalizada.

A consciencia nao se tornou somente urna fosforescen­cia interior as coisas, mas urn. fogo nas suas cabegas, umaluz acima de cada uma, urn "Eu voador". Nesta luz apareceoutra coisa: urn duplo aereo de cada coisa. "Parecia-me en­trever, durante urn breve instante, uma autra ilha escon­did'a. .. Esta outra Speranza, para ai fui transportadoagora, ai me instalei num momenta de inocencia 15." Eisto que 0 romance descreve de maneira excelente: em cadacaso, 0 extraordinario nascimento do duplo erigido. Ora,qual e ""atame.nt~.a..diferen"aentre a_c.oisa tal_c.omoapa.~". Qempresen9a de outrelll e oduplo que..tende.a..scde&tacarem sua ausencia? :E: que outrem presidia a organiza9ao dOlmundo em objetos e as rela90es transitivas entre estesobietos. Os obietos nao existiam senao pelas possibilidadescom as quais outrem povoava 0 mundo; cada qual nao sefechava sobre si, nao se abria sobre outros objetos a naoser em fun9aO dos mundos possiveis expressos por outrem.Em suma: outrem e quem aprisionava os elementos nolimite dos corpos e, mais ao longe, nos limites da terra.Pois a propria terra nada mais e do que 0 grande corpoque retem os elementos. A terra nao e terra' a nao serpovoada de outrem. Outrem e quem fabrica os corpos com

13. p. 176.14. p. 175.15. p. 177.

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elementos, os objetos com corpos, assim como fabrica seu\ l'!6prio semblante com os mundos que exprime. 0 duplo-liberado, quando outrem se desmorona, nao e, pais, umareplica das coisas. 0 dupIo, ao conti-ario, e a imagem endi­reitada em que os elementos se Iiberam e se retornam, todosos elementos tornados celestes e formando mil figuras capri­chosas elementares. E primeiro a figura de urn Robinsonsolar e desumanizado: "Sol, estas contente comigo? Olha­-me. Minha metamorfose vai bastante no sentido de tuachama? Desapareceu minha barba, cujos pelos vegetavamem diregao da terra, como radiculas geotr6picas. Emcompensagao, minha cabeleira enrola seus cachos ardentescomo urn braseiro voitado para 0 ceu. Sou urna flechadirigida para 0 teu foco ... " 16 Tudo se passa como se aterra inteira tentasse escapar-se pela iIha, nao somente resti­tnindo os outros elementos que retinha indevidamente sob ainfluencia de outrem, mas tragando por si mesma seu pr6­prio duplo aereo que a torna, por sua vez, celeste, que afaz concorrer Com os Qutros elementos no ceu e para asfiguras solares. Em surna, outrem Lo~e+_ enyolvendo Osmundos possiveis, impedia os_dJ!plosde -Se-£ndireitarem.Outrem era 0 grande abaixador. Tanto que a des-estru­turagao de outrem nao e uma desorganizagao do mundo,mas urna organizagao-de po por oposigao a organizagaodeitada, 0 endireitamento, a circunscrigao de uma imagemvertical e sem espessura; depois, de urn elemento puroenfim Iiberado.

Foram necessarias catastrofes para esta produgao dosduplos e dos elementos: nao somente os ritos do grande bodemorto, mas uma formidavel explosao, em que a iIha largoutodo seu fogo e vomiteu-se a si mesma atraves de lima desuas cavernas. Mas, atraves das catastrofes, 0 desejo retifi­cado aprende qual e seu verdadeiro objeto. A natureza e aterra ja nao nos diziam que 0 objeto do desejo nao e 0 corponem a coisa, mas somente a Imagem? E quando desejava­mos 0 pr6prio Outrem, sobre 0 que incidia nosso desejosenao sobre este pequeno mundo possivel expresso que outremhavia cometido 0 engano de envolver dentro de si ao invesde deixa-Io flutuar e voar acima do mundo, desenvolvidocomo urn duplo glorioso? E quando contemplamos esta bor­boleta que saqueia uma flor que reproduz exatamente 0 abdO­men de sua femea e que vai embora levando em sua cabegadois bicos de pOlen, percebemos que os corpos nao saO mai,do que desvios para atingir as Imagens e que a sexualidaderealiza tauto melhor e mais prontamente seu fim quanto maiseconomiza este desvio, dirige-se diretamente as Imagens e,finalmente, aos elementos Iiberados dos corpos 17. A conju-

16. p. 175.17. CE. pp. 100 e 111.

gagao da libido com os elementos, .tal e 0 desvio ~e ~obin­son; mas toda a hist6ria deste deSViO quanto aos ~JllS e tam­bern a "retifica9ao" das coisas, da terra e do dese]o.

Quantas dificuldades foram necessari~s para. se. chegarate ai, quantas aventuras romanescas. POls.a pnmelra rea­gao de Robinson foi 0 desesper~. Ele expnme exatame~teeste momento da neurose em que a .es~tura Outrem fun.cIO­na ainda, embora nao haja mai.' mnguem p~ra preenche-I~,efetua-Ia. De urna certa manerra, ela funcIOna tanto m~srigorosamente quanto nao e mais ocupada por seres re~s.

Os outros nao estao mais ajustados a estrutura; esta funcI,?­na no vazio, tanto mais exigente por isso mesmo. EI~ naocessa de reje'itar Robinson em um passado pessoal nao-re­conhecido, nas armadiIhas da mem6ria e nas do;es da. alu-. - Este momento da neurose (em que e Robmsoncmagao. h' .

. te'rinho que se acha "rejeitado") encarna-se no c lquezro,:uelRobinson partilha com os porcos: "Samente seus oIhos,seu nariz e sua boca afloravam no tapete flutuan!e dasgoticulas de agua e dos ovos de sapo. Liberado. de todos OSseus vinculos terrestres, ele seguia, num devaneIO abobalha­do, fiapos de lembran9as que, retornando. d~ s~~, fsassado,dangavam no ceu nos cord6es das folhas ImoveiS .

o segundo momento, contudo, mostra que a estrut~1faOutrem comega a se esboroar. Libertando-se do chlquelro,Robinson procura urn substituto de outrem, capaz d~ m~n­ter, apesar de tudo, oh,apito que outrem~"a, _aLco~sas. aordem, 0 trabaIho. A ordenagao do tempo pela clepsldra, .ainstauragao de uma produgao supera?u~~ante, 0 est~belecl­mento de urn c6digo de leis, a mulhplIcidade dos h!ulos ~fw\g6es oficiais de que Robinson se encarrega, tudo IStO datestemunho de urn esforgo para repovoar 0 mun~o de outrosque sao aiuda ele mesmo e para manter os efeltos da pre­senga de outrem quando a estrutura abr~ falencia. Mas aanomalia se faz sentir: enquanto 0 R~bmson de Defoe seproibe de produzir alem de sua necessldade, pensand~ queo mal comega com 0 lexcesso da. p~?dugao,. 0 de Tourm~r .selanga em uma produgao "frenetica , 0 tmico mal c.onslstm­do em consumir, na medida em que sempre consurnlll~o.s so­zinhos e para n6s mesmos. E, paralelamente a esta atlV1dadede trabalho, como correlato necessario,. desenvolve-se umaestranha paixao de distensao e de ~exu~hdade. Detendo porvezes sua clepsidra, habituando-se a ~olte se~ fundo de umacaverna, untando seu corpo com leite, Robms~n merguIhaate 0 centro interior da iIha e encontra urn alveolo urn queconsegue se enrodilhar, que e como 0 ~nvelope larvar de seupr6prio corpo. Regressao mais fantastlCa que a da neurose,pois que remonta a Terra-Mae, a Miie primordial: "Ele era

18. p. 34.

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esta pasta mole apanhada em urn monte de pedra, era estafava, tomada na carne maci~a e inabalavel de Speranza" 19.

Enquanto 0 trabalho conservava a forma de objetos comouma por~ao de vestigios acumulados, a involw;ao renuncia atodo objeto formado em proveito de urn interior da Terra ede urn principia de enterramento. Ternos, POrell, a impres~sao de que as duas condutas assim tao diferentes saosingularmente complementares. De uma e de outra parteha frenesi, duplo frenesi definindo 0 momento da psicose eque aparecia, evidentemente, no retorno a Terra e agenealogia Cosmica do esquizofrenico, mas nao menos jano trabalho, na produ~ao de objetos esquizofrenicos incon­sumiveis, procedendo por amontoamento e acumula~ao 20.

Aqui e, pois, a estmtura Outrem que tende ela propria ase dissolver: 0 psicotico tenta aliviar a ausencia dos outremreais instaurando urna ordem de vestigios humanos e adissolu~ao da estrutura organizando uma filia,ao sobre­-humana.

Neurose e psicose sao a aventura da profundidade. Aestrutura Outrem organiza a profundidade.e .l'acifica-a, tor­na-a possivel de ser vivida. Da mesma forma as perturba­~6es desta estmtura implicam urn desregramento, urn enlou­quecimento da profundidade, como urn retorno agressivo dosem-fundo que nao podemos mais conjurar. Tul!£.perdeu sen­tido, tudose lorna .sinlJiLfl{:"LCVJisli,gjQdlJ,,~mo0 'C;hjeto dotrabalho, mesmo 0 ser amado, mesmo.O muiido. .ein..s;,J!1iS­rno e 0 eu no mundp. .. A menos, contudo, que haja umasalva~ao de Robinson. A menos que Robinson invente umanova dimensao au urn terceiro sentido para a expressao"perda de outrem". A menos que a ausencia de Qutrem e adissolu,ao de sua estmtura nao desorganizem simplesmente 0

mundo, mas abram ao contrario uma possibiIidade de salva­~ao. E preciso que Robinson volte a superficie, que descubraas superficies. A superficie pura e, talvez, 0 que outrem nosescondia. E talvez na superficie, assim como urn vapor, queuma imagem desconhecida das coisas se determina e, da ter­ra, urna nova figura energica, urna energia superficial semoutrem possive/. Pois 0 ceu nao significa, em absoluto, umaaltura que seria somente 0 inverso da profundidade. Na suaoposi~ao com a terra profunda, 0 ar e 0 ceu sao a descri,aode uma superficie pura e sobrevoo do campo desta superfi­cie. 0 ceu solipsista nao tern profundidade: "Estranho pre­conceito que valoriza cegamente a profundidade em detri­mento da superficie e que pretende que superficial significanao de vasta dimensao, mas pouca profundidade, enquanto

19. p. 91.20. Cf. as paginas de Henri Michaux descrevendo uma mesa fabricada

por urn es'quiwfrenico, Les Grandes Epreuves de l'esprit, GalIimard, p. 156 e s.A fabricagao por Robinson de um barco transporHl.vel nao deixa de ter ana­logia com isto.

profundo significa, a? contrario, de grande profundidade enao de fraca superffcle. E, contudo, urn sentrmento como 0

amor se mede bern melhor, ao que parece, se e verdade quepode ser medido, pela importancia de sua supe;f!cie ~o quepor seu grau de profundidade ... " 21 Na su~erflcle, pn~elro

se levantam estes duplos ou estas Imagens aereas; depms, nosobrevoo celeste do campo, estes Elementos puros e liberados.A ere~ao generalizada e a das superficies, sua retifica~ao,

outrem desaparecido. Entao os simulacros sobem e conver­tem-se em fantasmas, na superficie da iIha e no voo sobre 0

ceu. Duplos sem seme!han~a e elementos sem constran~men­

to sao os dois aspectos do fantasma. Esta reestrutura~ao domundQ e a grande Saude de Robinson, a conquista da grandeSalfcje ou 0 terceiro sentido de "perda de outrem".

E ai que intervem Sexta-feira. Pois. 0 perso!'agemprincipal, como diz 0 titulo, e Sexta-ferra, 0 Jovem.Somen-te ele pode gniar e acabar a metamorf~se. come~ada

por Robinson e Ihe revelar seu sentrdo, 0 obJetrvo.. Tudoisto, inocememente, superflctalmente. E Sexta-ferra quedestroi a ofdem economica e moral instaurada por Robm­son na i!ha. E ele que faz Robinson deixar de gostar daencosta, tendo feito crescer, segundo seu proprio praze~,

urna outra especie de mandragora. E ele que faz explodlra iIha fumando 0 tabaco proibido perto de urn barnl depolvo;a e restitui ao ceu, a terra, assim como as aguase 0 fogo. E ele que faz voar e cantar 0 bode mo~to

(:= Robinson). Mas e ele sobretudo que apresenta a Robl~­

son a imagem do duplo pessoal, com.o complemento necess:­rio/da imagem da iIha: "Robinson vlra e revrra esta questaoconsigo mesmo. Pela primeira vez ele e~tr.eve clar~mAent~,sob 0 mesti,o grosseiro e estlipido que 0 Irnta,..1\..eXlstenCli!.possivel de urn outro Sexta-feira - como suspeitou outrora,bern antes de descobrir a caverna e a encosta, uma outraiIha escondida sob a ilha administrada" 22. Enfim, e ele queconduz Robinson a descoberta dos Elementos Iivres, mais ra­dicais que as Imagens ou os Duplos, pois que os formam.Que dizer de Sexta-feira, senao que e travesso e moleque,mas apenas na superficie? Robinson nao deixara de ter sen­timentos ambivalentes a seu respeito, so 0 salvando por acaso,gra~as a urn erro de tiro, quando, na realidade, queriamata-Io.

Mas 0 essencia! e que ,sexta,feira nao funcion~ em ;1):>.0,luto como urn outrem reencontrado. E muito tarde, pois aestrutura desapareceu. Ora'elefunciona como urn objeto in­solito, ora como urn estranhocumplice_ Robinson trata-o oracomo um escravo que procura integrar a ordem economica

21. pr. 58-59.22. p. 119.

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da iIha, pobre ~_lllacro,_ ora como 0 detentor de urn segredonovo que ameaya a ordem, misterioso fantasma. Ora quaseComo urn objeto ou urn animal, ora como se Sexta-feira fosseurn alem de si mesmo, urn alem de Sexta-feira, 0 duplo ou ai,magem .de si. ~ra aquem de outrem, ora alem. A diferen~ae essencIaI. POlS outrem, no seu funcionamento normal ex-. ,prune urn mundo possivel; mas este mundo possivel existeem nosso mundo e, se nao e desenvolvido ou realizado semmudar a qualidade de nosso mundo, ele 0 e, pelo menos, se­gundo leis que constituem a ordem do real em geral e a su­cessao do tempo. Sexta-feira funciona bern diferentementeele que indica urn outro mundo suposto verdadeiro urn du:plo irredutivel unicamente verdadeiro e neste outr~ mundourn duplo de outrem que de nao e mais, que nao pode maisser. ,~ao Urn Dutrem, mas urn outro do Dutrem.. Nao umareplica, mas.urn Duplo: 0 revelador dos elementos puros,aquele que dIssolve os objetos, os corpos e a terra. "Pareciaque (Sexta-~eira) pertencia a urn outro reino, em oposi~ao

ao remo telunco de seu senhor sobre 0 qual ele tinba efei­tos devastadores por pouco que tentassemos aprisiona-Io af."Eis por que ele nao e nem mesmo para Robinson objeto dedesejo. Robinson pode muito bern envolver seus joelhos, con­templar seus olbos, ele 0 faz so para apreender seu duplolummoso que quase nao retem mais do que os elementoslivres escapados de seu corpo. "Ora, tratando-se de minbasexualidade, dou-me conta de que nem uma so vez Sexta-feiradesper~ou .em mim uma tenta~ao sodomita. 0 que se explica,em pnmerro lugar, porque ele chegou muito tarde: minbasexualidade ja se tornara elementar e era para Speranza queela se dirigia. .. Nao se tratava para mim de regredir emdire~ao e amores humanos, mas de mudar de elemento semsair do elementar." Outfem baixa: baixa as elementos naterra, a terra em corpos, os corpos em objetos. Mas Sexta­-feira, inocentemente, endireita de novo os objetos e os cor­pos, leva a terra ate 0 ceu, libera os elementos. Endireitarde novo, retificar e tambem eneurtar. Outrem e Urn estra­nho desvio, ele baixa meus desejos sobre os objetos, meusamores sobre os mundos. A sexualidade nao esta ligada age~a~~o a nat; ser ,em urn tal desvio que faz passar por outrempnmelro a dlferen~a dos sexos. :E primeiro e-!Jl outrem, poroutrem, que ,a diferenca dos sexos e fundada estabelecida.!~-,,,urar 0 mundo_s~m gll!r~Jl)...xeendireitar 0 :nillidQ (comoSe~ta.feira 0 fa;" o~ antes como Robinson percebe que Sexta­·felfa 0 faz), e evrtar 0 _deslliQ~:E separar 0 desejo de seuobjeto, de seu desvio por urn corpo, para referi-Io a umacausa pura: os Elementos. "Desapareceram os andaimes deinstitui~6es e de mitos que permitem ao desejo tomar corpo,no duplo sentido da palavra, isto e, de se dar urna forma

definida e fundir urn corpo feminino 23". Robinson naopode mais apreender-se a si mesmo ou apreender Sexta-feira,do ponto de vista de urn sexo diferenciado. A psieanaliseesta livre para ver nesta _aboli~ao do desvi(), nesta separa~ao

da causa do desejo com rel39"ao ao objeto, neste retorno aoselementos, 0 signo de urn instinto de morte - instintotornado solar.

Tudo e aqui romanesco, inclusive a teoda, que se con~

funde com uma fic~ao neeessaria: uma cecta teoria de outrem.Devemos primeiro conceder, a maior impQftancia a concep­~ao_ de--~utrelJ], como estrutura: nao "forma" particular emurn campo--perceptivo (distinta da forma "objeto" ou da for­ma "animal"), mas sistema condicionando 0 funcionamentodo conjunto do campo perceptivo em geral. Devemos poisdistinguir Outrem a priori, que designa esta estrutura e este­-outrem-aqui, aquele-outrem-lti, que designam os termos reaisefetuando a estrutura neste ou naquele campo. Se este outremaqui e sempre alguem, eu para vas, vas para mim, ista e,em cada campo perceptivo 0 sujeito de urn outro campo,outrem a uriori, em compensa~ao, nao e uingnem, pois a es­trutura e transcendente aos termos que a efetuam. Como de­fiui-Ia? A expressividade que define a estrutura Outrem econstituida pela categona do possive!. Qutrem a pri{JrL (.a.existencia dopossivel em geral: na medida em que 0 possivelexistesoriiente como expresso, isto e, em urn exprimente quenao se parece a ele (tor~ao do expresso no exprimente).Quando 0 heroi de Kierkegaard reclama: "possivel, possivel,por favor, senio sufoco", quando James reclama 0 "oxigeniod~ possibilidade", nada mais fazem do que invocar Outrema! priori. Tentamos mostrar neste sentido como outrelIl cgn­dicionava 0 conjunto do campo perceptivo, a aplica~ao a estecampo das categorias do objeto percebido e das dimens5esdo sujeito que percebe, enfim, a distribui~ao dos outrem par­ticulares em cada campo. Com efeito, as leis da perce~ao

para a constitui~ao de objetos (forma-fundo etc.), para a de­termina~ao temporal do sujeito, para 0 desenvolvirnento su­cessivo dos mundos, pareeeram-nos depender do possivelcomo estrutura Outrem. Mesmo 0 desejo, quer seja desejQde objeto ou desejo de_ outrem, deJlOnde die eSfrutura. Naodesejo objeto-a- .!lao ser como expresso por outrem no mododo possivel; nao desejo em outrem senao os mundos possi­veis que exprirne. OutreIll_ aparece ~omo 0 que orgauiza osElementos em Terr.l;atemi em co~pos, os corpos em objet()se que regula e mede ao mesmo tempo 0 objeto, a percep~ao

eo desejo. -Qual e 0 sentido da fic~ao "Robinson"? Que e uma

robinsonada? Um mundo sem outreUl. Tournier sup6e que

23. p. 99.

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atraves de muitos sofrimentos Robinson descobre e conquis­ta uma grande Saude, na medida em que as coisas acabampor se organizar bern diferentemente do que 0 fariam comuutrem preseute, porque [iberam Ulna imagem sem semelhan­9~ urn duplo delas proprias ordinariamente recalcado e-<Jueeste duplo, por sua vez, libera puros elementos ordinaria­mente prisioneiros. Nao e 0 mundo que e perturbado pelaausencia de outrem, ao contraria, e 0 duplo glorioso do mUD­

do que se acha escondido por sua presen9a. Eis a descobertade Robinson: descoberta da snperficie, do alem elementar,do Outro para Outrem. Entao por que a impressao de queesta grande Saude e perversa, que esta "retifica93.0" do mUll­do e do desejo e tambem desvio, perversao? Robinson, con­tudo, nao tern nenhum comportamento perverso. Mas qual­quer estudo sobre a perverssao, qualquer romance sobre aperversao esfor9a-se por manifestar a existencia de uma "es­rrutura perversa" como principio do qual os comportamentosperversos decorrem eventualmente. Neste sentido a estruturaperversa pode ser considerada como aquela que se opoe aesrrutura Outrem e se substitui a ela. E da mesma formacomo os Q!ltrem concretos sao termos atuais e variaveis efe­tuando esta estrutura - outrem, os comportamentos do per­verso, sempre pressupondo uma ausencia fundamental deoutrem, sao somente termos variaveis efetuando a estruturaperversa.

Por que tern 0 perverso a !endencia para se imaginarurn anjo radioso, de belio e de fogo? Por que ele tern, aomesmo tempo, cont;a. a terra, contra a fecunda9ao e os obje­tos de deseJo, este odio que encontramos ja sistematizado emSade? 0 roma~ce de Toumier nao se propoe explicar, mas~ostra. Por al ele reencontra, com a ajuda de meios berndlferentes, os 'estudos psicanaliticos recentes que pareeemdever renovar 0 estatuto do coneeito de perversao e primeirofazem com que ele saia desta ineerteza moralizante em queera mantido pela psiqniatria e 0 direito reunidos. Lacan e

,sua escola insistem profundamente: sobre a necessidade deI'f' compreender os comportamentos perversos a partir de uma

es:rutura e de definir esta estrutura que condiciona os pr6­pnos comportamentos; sobre a maneira pela qual 0 d~o

sofie _U1lla_e.sJ2<lcie de deslocamento nesta estruturae pelaqual ~ Causa do desejo se destaca assim do objeto; sobre amanelra pela qual a dijerenra dos sexos e desautorada peloperverso, em proveito de um mundo andr6gino dos duplos;sobre a anul~ao de outrem na perversao, sobre a posi9aode urn "a1em do Outro" ou de urn Outro de outrem, comose outrem desprendesse aos olhos do perverso sua propria,nerdfora; sabre a "dessubjetiva9ao" perversa - pois e cer-

II, to que nem a vitima nem 0 cumplice funcionam como

outros 24. Por exemplo, nao eporgue-"Ie qu~@, na<LpOI9.1!"deseje fazer sofier 0 outr!,-,gue ,0__sadi~(LQ_c1~~e suaqualidaae-deoutro. :(i 0 inyerso, e _p.orqueele _£.aleS.e~d<l

estriilu:r,'-Outrem e vive sob uma outra estrutura servintlO de,.~. " //.. /".,:."--"-"""'-' .cond19ao a seu mundo vivo, que apreende as outros seJ.acomo vitimas seja como cumplices, mas em nenbum dos dOiScasas DaD as apreende como outrem, sempre ao contni.riocomo Outros do que outrem. Ai, ainda, e chocante ver eIIl JSade ate que ponto as vitimas e os cumplices, com sua re­versibilidade necessaria, nao sao em absoluto captados comooutrem: mas ora como corpos detestaveis, ora como duplosou Elementos aliados (nao sobretudo duplos do heroi, masduplos de si mesmos, sempre saidos de seu corpo a con­quista dos elementos atomicos) 25.

o contra-senso fundamental sobre a perversao consis­te em ;azfi~d;-~~a fenomenologia apressada dos compor­t~entos perversos, em virtude tambem das exigenci.as dodireito, relacionar a perversao a certas ofensas feltas aoutrem. E tudo nOS persuade, do ponto de vista do compor­tamapto, de que a perversao nao e nada sem a presen9a deoutrem: 0 voyeurismo, 0 exibici?nismo etc. , ~as,,, do pontode vista da estrutura, e preciso dlzer 0 contrano: e porque aestrutura Outrem falta, substituida por uma outra estrutura,que os "outros" reais nao podem mais desempenbar.o papelde termos efetuando a primeira estrutura desapareclda, massomente, na segunda, 0 papel de corpos vitimas (no sentidonptito particular que 0 perverso atribui aos corpos~ ou 0papel de cumplices-duplos, cumplices-elementos (ai amda nosentido muito particular do perverso). Q mundo do perver-_so e urn mundo sem outrem, 10go,uDlmundo sem possivel.Outrem e 0 qu"possibilit~ 0 niundo perverso e um munaoem que a"ategorta~donecessiirio substitui completa~;n.~a dopossivel: estranbo spiuozismo em que falta 0 oXlgemo,em proveito de uma energia mais elementar e de um ar ra­refeito (0 Ceu-Necessidade). Toda!'erversao ~ um .o?trem­cidio, urn altruicidio e, par consegumte, urn ~§_~~~l!!~_dos _

_possiveis.- Mas 0 altruicidio nao e cometido pelo comporta­mento perverso, mas sim suposto na estrutura perversa. 0

24. Cf. a coletanea Le Desir et la P~rversjon,. ed. dU.Seuil, 1.96? ,?artigO de Guy Rosolato, "Estudo das pervetsoes sexuals a partIr do fetIch~o- •apresenta observaQ5es muito interessantes. embora talvez urn poueo r~pldas,sobre a "difel'enr;a dos sexos" e sabre 0- "duplo" (pp. 2,5:26). 0 artfgo ~eJean Clavreul "0 casal perverso". mostra que nem a vlhma ou 0 cwnpliceocupam 0 Iugar de outrem !sobre a "~essubjetivat;;ao", d. p. 1l~ e sobre_ adistinr;ao da Causa e do ObJeto do desejO, d., do mesmo autor, Observar;oessobre a questlio da realidade nas perversi3es", La Psychanalyse, nQ 8, p. 290e s,). Parece que estes estudos, fundados no estruturalismo de Laean e suaanalise da Verleugnung, estao em desenvolvimento.

25. Em Sade, ° tema constante das eombinar;oes de moIeeulns.

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que nao impede que 0 perverso seja perverso nao constitu­cionalmente, mas no desfecho de uma aventura que passousegura.mente pela neurose e r090U a psicose. E 0 que sugereTow;mer neste romance extraordiniirio: 15 preciso imaginarRobms~n perverso; a Unica robinsonada 15 a propriaperversao.

5. LOla e a t"lssura

E na Besta Burnana que aparece 0 celebre texto:

A familia nao tinha aprumo, mnitos possuiam uma fissura.Ele sentia mnito bern, em certas horas, esta fissura hereditaria; Dioque ele tivesse rna saude, pais a apreensao e a vergonha de suascrises haviam bastado para emagrece-lo outrora; mas era, no seuser, subitas perdas de equilibria, tais como brechas, orificios pelosquais seu eo lhe escapava, em meio a uma especie de grandefum~a que tudo deformava...

Zola lan9a um grande tema, que sera retomado soboutras formas e com outros meios pela literatura moderna esympre numa rela9ao privilegiada com 0 alcoolismo: 0 te­ma da fissura (Fitzgerald, Malcolm Lowry).

E muito importante que Jacques Lantier, 0 heroi deA Besta Bumana seja vigoroso, sadio, de boa saude. E quea fissura nao designa um caminho pelo quaI passariam ele­mentos morbidos ancestrais, marcando 0 corpo. Ocorre defato a Zola exprimir-se assim, mas ele 0 faz por comodidade.E 15 realmente assim para certos personagens, os macilentos.os nervosos, mas precisamente nao sao eles que carregam afissura ou nao 15 por isso somente que a carregam. A he­reditariedade nao 15 0 que passa pela fissura. ela 15 a propriafissura: a fratura ou 0 oriffcio, imperceptiveis. Em seu ver­dadeiro sentido, a fissura nao 15 uma passagem para umahereditariedade morbida, em si mesma, ela 15 toda a heredita­riedade e todo 0 morbido. Ela nao transmite nada alem desi mesma, de um corpo sao para um outro corpo sao dosRougon-Macquart. Tudo reponsa no paradoxo desta heredi­tariedade confundida com seu veicuio ou seu meio, destetransmitido confundido com sua transmissao ou desta trans­missao que nao transmite nada alem de si mesma: a fissura

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cerebral em um corpo vigoroso, a fissura do pensamento.Salvo acideutes que teremos oportuuidade de ver, 0 soma evigoroso, sadio. Mas 0 germe e a fissura nada mais do quea fIssura. Nestas condi,Oes, esta toma um aspecto de des­tino epico, passando de uma hist6ria ou de um corpo aoutro, formando 0 fio condutor dos Rougon-Macquarl.

o q,:,e e que se distribui em torno da fissura, 0 que eque formlga nas suas bordas? 0 que Zola chama de tem­peramentos, instintos, "as gordos apetites". Mas 0 tempera­mento ou 0 instinto nao designa uma entidade psicofisio­16gica. E uma n09ao mnite mais rica e concreta, uma no~aode romance. Os instintos designam em geral condi,oes devida e de sobrevivencia, condi,oes de conserva,ao de umdeterminado genero de vida em um meio historico e social(aqui, 0 Segundo Imperio). Eis por que os burgueses deZola podem facilmente chamar de virtudes seus vicios e suascovardias, snag ignoIDinias; eis por que, inversamente, Os po­bres sao ffeqiientemente reduzidos a "instintos" como 0 al­coolismo, exprimindo suag condi90es hist6ricas de vida, suamaneira unica de suportar urna vida historicamente determi­nada. Sempre 0 "naturalismo" de Zola e hist6rico e social.o instinto, 0 apetite, tem pois figuras diversas. Ora ele ex­prime a maneira pela qual 0 corpo se conserva em um meiofavoravel dado; neste sentido, ele pr6prio e vigor e saude.Ora ele exprime 0 genero de vida que um corpo inventapara fazer girar em seu proveito os dados do meio, COm 0

risco de destruir os outros corpos; neste sentido, ele e po­tencia ambigua. Ora exprime 0 genero de vida sem 0 qualum corpo nao suportaria sua existencia historicamente deter­minada em um meio desfavoravel, com 0 risco de se destroira si mesma; neste sentido, 0 alcoolismo, as perversoes, asdoen,as, mesmo a seuilidade sao instintos. 0 instinto tendea conservar, enquanto exprime sempre 0 esfor,o de perpetuarum modo de vida; mas este modo e 0 proprio instinto podemser destruidores nao menos do que conservadores no senti­do restrito da palavra. 0 instinto manifesta a degenerescen­cia, a precipita,ao da doen,a, a perda de saude nao menosdo que a saude mesma. Sob todas as suas formas, 0 instintonao se confunde nunca com a fissura, mas mantem com elarela,oes estreitas variaveis: ora a recobre ou a cola de novobem ou mal e por urn tempo mais ou menos longo, gra,as11 saude do corpo; ora ele a alarga, !he da uma outra orien­ta,ao que faz explodir os peda,os, provocando 0 acidente nadecrepitude do corpo. E no Assomoir, por exemplo, em Ger­vaise, que 0 instinto alcoolico vem duplicar a fissura comotara original. (Deixamos, por enquanto, de lado a questaode saber se ha instintos evolutivos ou ideais, capazes enfimde transformar a fissura.)

Atraves da fissura, 0 instinto procura 0 objeto que Ihecorresponde nas circunstancias historicas e sociais de seu ge­nero de vida: 0 vinho, 0 dinheiro, 0 poder, a mulher ...Um dos tipos femininos preferidos de Zola e a nervosa, es­magada pela abundancia de seus cabelos negros, passiva,nao revelada a si mesma e que se soHara no encontro (talera ja Teresa em Therese Raquin, antes da serie dos Rou-

o gon, mas tambem Severine em A Besta Humana. Terrivelb encontro entre os nervos e 0 sangue, entre um tempera­mento nervoso e um temperamento sangiiineo, que reproduza origem dos Rougon. 0 encontro faz ressoar a fissura. Eque os personagens que nao sao da familia Rougon, assimcomo severine, intervem ao mesmo tempo como objeto aosquais se fixam 0 instinto de um Rougon, mas tambem comoseres providos eles pr6prios de instintos e de temperamentoe, enfim, como cumplices on iuimigos, dando testemunho, porsua propria conta, de urna fissura secreta que vem ajuntar-se11 outra. A fissura-aranha: tudo culmina, na familia Rou­gon-Macquart, com Nana, sadia e boa merrina no fundo,em seu corpo vigoroso, mas que se faz objeto para fascinaros outros e comunicar sua fissura ou revelar ados outros- imundo germe. De onde tambem 0 papel privilegiadodo alcool: e gra,as a este "objeto" que 0 instinto opera suamais profunda jun,ao com a propria fissura.

o encontro do instinto e do objeto forma uma ideiafixa, nao urn sentimento. Se Zola romancista intervem nosseus romances, e primeiro para dizer aos leitores: aten,ao,nao acreditem que se trate de sentimentos. Celebre e a insis­tpncia com a qual Zola, tanto em A Besta Humana, como emTherese Raquin, explica que os criminosos nao tem remor­sos. E os amantes nao tem iguaimente amor - salvo quan­do 0 instinto soube verdadeiramente "colar de novo" tornar­-se evolutivo. Nao se trata de amor, nao se trata de remor­sos etc., mas de tor,oes, de estalidos ou, ao contrario, deacalmias, de apaziguamentos, nas rela,oes entre tempera­mentos sempre estendidos por dma da fissura. Zola e ex­celente na descri,ao de uma calma breve antes da grandedecomposi,ao ("era certo agora, havia uma desorganiza,aoprogressiva, como uma infiltra,ao do crime ... "). Esta de­nega,ao do sentimento ern proveito da ideia fixa tem eviden­temente varias razoes em Zola. Invocaremos primeiro amoda do tempo, a importancia do esquema fisiologico. A"fisiologia", desde Balzac, desempenhava 0 papel literariohoje conferido 11 psicamllise (fisiologia de urn pais, de umaprofissao etc.). Mais ainda, e verdade que deste Flauberto sentimento e inseparavel de urn malogro, de urna falenciaou de urna mistifica,ao; e 0 que 0 romance conta e a impo­tenda de um personagem em constituir uma vida interior.

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Neste sentido, 0 natnralismo intrOOuziu no romance tres tiposde personagens, 0 homem da falencia interior ou 0 frustradoo homem das vidas artificiais ou 0 perverso, 0 homem da~sensa~5es rudimentares e das ideias fixas ou 0 animal. Masem Zela, se 0 encontro do instinto e de seu objeto nao chegaa fo:mar urn sentimento, e sempre porque se faz por cimada fissnra, de urna a outra borda. 0 grande vazio interiore causado pela existencia da fissnra. Todo 0 natnralismoadquire entao uma nova dimensao.

Ha, pois, em Zela, dois ciclos desiguais coexistentes in­t~rferindo urn com 0 outro: a pequena e a grande heredila­Tledade, .um.a pequen~ hereditariedade hist6rica e urna gran­de he~edi.tarledade eplCa, urna hereditariedade somatica e umaheredltanedade germinal, uma hereditariedade dos instintos eurna hereditariedade da fissura. Por mais forte e constanteque seja a jun~ao entre as duas, elas nao se confundem. Apequena. h_ereditar~edade e ados instintos, no sentido em queas cond[~oes e.generos de vida dos ancestrais ou dos paispOOem se enrmzar no descendente e agir nele como umanatnreza, por vezes a gera~5es de distancia: por exemplo,urn !~ndo de satide se reencontra ou entao a degrad~aoalcoohca passa de urn a outro corpo, as sinteses inslinto­-ob]eto se transmitem ao mesmo tempo que os modos devida se reconstituem. Quaisquer que sejam os saltos queop~ra, esta hereditar.iedade dos inslintos transmite algumaCOlS,~ de be~ deter.m~ado; e 0 que transmite, ela 0 "repro­duz , ela e heredllarledade do Mesmo. Nao e assim ema?soluto ~a outra_hereditar!edade, a da fissura, pois, n6s' 0VlIDOS, a fIssura nao transIDlte nada a16m de si mesma. Elanao esta ligada a este ou aquele instinto, a urna determina­~ao orgauica interna e muito menos a tal acontecimentoexterior que fixaria urn objeto. Ela transcende os generosde vida, assim, vai de maneira continua, imperceptivel e sf­lencfosa, fazendo tOOa a unidade dos Rougon-Macquart. Afissnra nao transmite senao a fissura. 0 que ela transmit<:nao se deixa deteffilinar como isto ou aquilo, mas e for~osa­mente vago e difuso. Nao transmitindo senao a si mesmaeIa mio reproduz 0 que transmite, nao reproduz urn "mesma":nao reproduz nada, contentando-se em avan~ar em silencioem seguir as linhas de menor resistencia, sempre obliquando:prestes a mudar de dire~ao, variando sua tela, perpetuamenteherdada do Outro.

Observou-se com freqiiencia a inspir~ao cientifica deZela. Mas sobre 0 que recai esta inspira~ao, vinda da Me­dicina de seu tempo? Ela recai precisamente sobre a distin­~ao de duas hereditariedades, distin~ao que se elaborava nopensamento medico contemporaneo: uma hereditariedade ditahom610ga e bern determinada e uma hereditariedade dita "dis-

similar ou de transforma~ao", com carater difuso, definindouma "familia neuropato16gi.ca" 1. Ora, 0 interesse de umatal distin~ao e que se substitui completamente it dualidadedo hereditario e do adquirido ou mesmo torna esta dualida­de impossive!. Com efeito, a pequena hereditariedade ho­m610ga dos instintos pode muito bern transmitir caracteresadquiridos: e mesmo inevitavel na medida em que a forma­~ao do instinto nao e separavel de condi~5es hist6ricas e'sociais. Quanto it grande hereditariedade dissimilar da fissu­ra, ela tern com 0 adquirido urna rela~ao completmnente di­ferente, mas nao menos essencial: trata-se desta vez de umapotencialidade difusa que nao se atualizaria se urn adquiridotransmissivel, de carater interno e externo, nao Ihe desse talou tal determina~ao. Em outros termos, se e verdade queos instintos nao se formam e nao encontram seus objetossenao nas bordas da fissura, a fissura inversamente nao pros­segue em seu caminho, nao estende sua tela, nao muda dedire~ao, nao se atualiza em cada corpo senao em rela~ao

com os instintos que Ihe abrem a via, ora colando-a de novourn pouco, ora alargando-a e aprofundando-a, ate it quebrafinal, tambem,assegurada pelo trabalho dos instintos. A cor­rela~ao e pois constante entre as duas ordens e atinge seumais alto ponto quando 0 instinto se tornou alc06lico e afissura, rachadura definitiva. As duas ordens se esposam es­treitamente, anel envolvido por urn aue! maior, mas Dunease confundem.

Ora, se e justo observar a influencia das teorias cien­tificas e medicas sobre Zola, como seria injusto deixar des,ublinhar a transforma~ao que ele as faz sofrer, a maneiraPela qual ele r,ecria a concep~ao das duas hereditariedades, apotencia poetica que da a esta concep~ao para dela fazer aestmtura nova do "romance familiar". 0 romance integraentao dois elementos de fundo que Ihe eram ate entao es­tranhos: 0 Drama, com a hereditariedade hist6rica dos ins­tintos, 0 Epos, com a hereditariedade epica da fissura. Nassuas interferencias os dois formam 0 ritmo da obra, isto e,asseguram a reparti~ao entre os silencios e os ruidoso Sao osinstinlos, os "gordos apetites" dos personagens que preen­chern os romances de Zela com seus ruidos, formando urnprodigioso rumor. Mas 0 silencio que vai de urn romance

1. Em um artigo sabre Freud e a ciinda Jacques Nassif analisa bre­vemente esta concep~il.o de hereditariedade, tal como eia se encontra, porexemplo, em Charcot. Ela abre 0 caminho no reconhecimento da influSnciados acontecimentos exteriores. "1:; claro que 0 termo fam~1ia e tomado aquiem suas duas aceP!tOes: a do modelo da classifica~ao e a do la90 de parentesco".De um lado as doen~as do sistema nervoso constituem uma s6 familia, deoutro lado esta familia esta indJissoluvelmente unida pelas leis da hereditarieda~

de, Estas permitem expl!tcar 0 fato de nao ser uma mesma doeo"a a setraosmitir eletivamente, mas 56 uma disposi"l1o neuropatica difusa que, pos­teriormente e em fun"l1o de fatores nll.o-hereditSrios, podera especializar-se emuma doeo"a distinta", (Cahiers pour Z'analyse. n9 9, 1968). Evidentemen·te, a familia Rougon Macquart ja tern estes dois sentidos.

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ao outro e sob cada romance, pertenoe essencialmente it fis­sura sob 0 ruldo dos instintos, a fissura prossegue e se trans­mite silenciosamente., ? que a fissura designa ou antes 0 que ela e, este va­

ZIO,. e a Morte, 0 Iustinto de Morte. Os instintos podemmUlt? bern ~a!ar,. fazer. barulho, agitar-se, nao podem e re­cobnr este silenclO malS profundo, nem esconder aquilo deque saem e no qual entram de novo: 0 instinto de morte quenao e um instinto entre as aUlros, mas a fissura em pe~soa,em torno da qual todos os instintos formigam. Em sua ho­menagem a Zola, ao mesmo tempo profuuda e reticente Ce­line e~contrava acel;ltos freudianos para marcar esta pr~sen­~a urnversal do mstinto de morte silencioso, sob os instintosruidosos: "0 sadismo unanime atual procede antes de tudode urn desejo de nada profundamente instalado no homem esobretudo na massa dos homens, uma especie de impacienciaamorosa, quase irresistivel, unanime, pela morte. .. Nossaspalavras vila ate as instintos e por vezes tocarn-nos, mas aomesmo tempo aprendemos que af se detinha e para sempre,nosso poder. .. No jogo do homem 0 Instinto de morte einstinto silencioso esta decididamente bern. colocado, 'ao!~do talvez do egolsmo" 2. Mas pense 0 que quiser Celine,Ja e,;a esta a descoberta de Zola: como os gordos apetitesgravlta.m em torno do instinto de morte, como formigam poruma fissura que e a do instinto de morte, como a mortesurge sob todas as ideias fixas, como 0 instinto de morte sefaz reconhecer sob todos os instintos, como ele constitui porsi s6 a grande hereditariedade, a fissura. Nossas palavrasnao vaG senao ate aos instintos, mas e da autra insUincia doInstinto de morte que elas recebem seu sentido e seu ~ao­-senso, assim como suas combina~oes. Sob todas as hist6­ria~ d~s instintos, 0 epos da morte. Dir-se-ia primeiro queo~ ~n~tmtos recobrem a morte e fazem-na reenar; mas e pro­VISono e mesmo seu ruldo se alimenta de morte. Como sediz na Besta Humana a prop6sito de Roubaud, "e na noiteturva de sua carne, no fundo de seu desejo sujo que san­grava, bruscamente levantou-se a necessidade da morte"E Misard tern como ideia fixa a descoberta das economia~de sua mulher, mas nao pode persegnir sua ideia senao atra­yes do assassinato da mulher e da demoli~ao da casa numcombate silencioso. '

o essencial de A Besta Humana e 0 instinto de morteno personagem principal, a fissura cerebral de Jacques Lan­tier, m~canico de locomotiva. Jovem, ele pressente tao bema manelra pela qual 0 instinto de morte se disfar~a sob todosos apetites, a Ideia de morte sob todas as ideias fixas, agrande hereditariedade sob a pequena, que se mantem isola-

2. "Celine I", L'Herne. n.o 3, p. l'rl.

lado: primeiro das mulheres, depois tambem do vinho, dodinheiro, das ambi~oes que poderia ter legitimamente, Elerenunciou aDS instintos; sen unico objeto e a maquina. 0que ele sabe e que a fissura introduz a morte em todos osinstintos, persegue seu trabalho neles, por eles; e que, naor~em ou termo de todo instinto, trata-se de matar e talvez,tambem, de ser morto. Mas, este silencio que Lant,ier seimpoe, para opo-Io ao silencio mais profundo da fIssura,acha-se, de repente, rompido: Lantier viu, nurn clarao, urnassassinio cometido em urn trem que passava e viu a vftimajogada na estrada; adivinhou quem eram os assassinos, Rou­baud e sua mulher, Severine. E ao mesmo tempo que se poea amar Severine e redescobre 0 dominio do instinto, e amorte que transhorda nele, pois que este amor veio da mortee deve a ela voltar.

A partir deste crime cometido pelos Roubaud desen­volve-se todo urn sistema de identifica~oes e de repeti~oes

que forma 0 ri!rno do livro. Primeiro Lantier se identificaimediatamente ao crirninoso: "0 Dutro, 0 homem entrevistocom a faca na mao, havia ousado! Ah, nao ser covarde,satisfazer-se, enfim, enfiar a faca! Ele, cujo desejo distotorturava ha dez anos!" Roubaud, de seu lado, matou 0 pre­sidente por ciume, tendo compreendido que este violentaraSeverine quando crian~a e Ihe fizera esposar uma mulherconspurcada. Mas, ap6s 0 crime, ele se identifica de umacerta maneira ao presidente: por sua vez, ele da a Lantiersua mulher, conspurcada e criminosa. E se Lantier se poea amar Severine e porque ela participou do crime: ela "eracaino 0 sonho de sua carne". Entao produziu-se a tripliceaCalmia: acaimia de torpor no lar de Roubaud; acalmia deSeverine, que reencontra sua inocencia em seu arnor porLantier; sobretudo acalmia de Lantier, que reencontra comSeverine a esfera dos instintos e que imagina ter preenchidoa fissura: nunca, acredita, desejara mata-Ia, ela que matou("sua posse tinha urn encanto poderoso, ela 0 havia curado~).

Mas ja uma triplice desorganiza~ao sucede aacalmia, segundocadencias desiguais. Roubaud, desde 0 crime, substitui 0

arcool a Severine, como objeto de seu instinto. Severineencontrou urn amor instintivo que Ihe restitui a inocencia;mas nao pode se impedir de misturar a ela uma confissaoexplicita a seu amante que, no entanto, adivinhou tudo.E numa cena em que Severine esperou Lantier, exatamen­te' como Roubaud antes do crime esperara Severine, ela diztudo ao amante, detalha a confissao, precipitando seudesejo na lembran~a da morte ("0 arrepio do desejo perdia­se em urn outro arrepio de morte"). Livre, ela confessa 0

crime a Lantier, assim como, constrangida, ela comessaraa Roubaud suas rela~oes com 0 presidente, as quais provo-

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caram 0 crime. E esta imagem de morte que despertou, elanao pode mais conjnra-Ia, desvia-Ia a nao ser projetando-asobre Roubaud, levando Lantier a matar Roubaud ("Lantierviu~se com a faca na mao, golpeando Roubaud na garganta,aSS1m como este golpeara 0 presidente ... ").

Quanto a Lantier, a confissao de Severine nao Ihe ensi­nou nada, mas terrificou-o. Ela nao deveria ter falado. Amulher que ele amava e que !he era "sagrada" porque en­volvia nele a imagem de morte, perdeu seu poder confes­sando, designando uma outra vitima possive!. Lantier naochega a matar Roubaud. Ele que nao podera matar senao 0

o objeto do seu instinto. Esta situa,ao paradoxal, em quetodo mundo em torno dele mata (Roubaud, severine, Mi­sard, Flore) por raz6es tiradas de outros instintos mas emque Lantier nao chega a matar, ele que carrega, ~ntudo, 0

puro instinto de morte - nao pode ser desfeito senao peloasassinio de Severine. Lantier aprende que a voz dosinstintos 0 enganara; que sen arnor "instintivo" por Severineso em aparencia havia preenchido a fissura, que 0 ruidodos instintos nao tinha senao por urn momenta recoberto 0

Instinto de morte silencioso. E que e Severine que e precisematar, para que a pequena hereditariedade reencontre agrande e que todos os instintos enllJem na fissura: "te-Iacomo a terra, morta"; "0 meSilla golpe dado no presidente,no meSilla lugar, com a mesma raiva. " e os dais assassf­n~os ~aviam se aproximado, urn nao era a logica do outro?"Severme sente em torno de si urn perigo, que interpreta comouma "barreira", uma barragem entre ela e Lantier em vir­tude da existencia de Roubaud. Nao e, contudo, ~ma bar­reira entre ambos, mas somente a fissura-aranha no cerebrode Lantier, 0 trabaho ,ilencioso. E Lantier nao tera remorso,ap6s 0 assassfnio de Severine: sempre esta saude este corpo- " 'sao, Dunea ele passara tao bern, sem remorsos com 0 araliviado, numa grande paz feliz", "a memoria'abo!ida osargaos em urn estado de equilibrio, de saude perfeita". Mas,precisamente, esta saude e ainda mais derrisaria do que seo corpo tiv,esse caido doente, minado pelo :ilcool ou por urnoutro instinto. Todo este corpo pacifico, este corpo de sau­d~, nao e mais do que urn terreno rico para a fissura, urna1imento para a aranha. Ele tera necessidade de mataroutras mulheres. Com toda sua saude, "viver tinha chegadoao fim, ele nao tinha mais diante de si senao esta noile pro­funda, de urn desespero sem !imites, em que ele fugia". Equando seu antigo amigo, Pecqneux, tenta faze-Io cair dot~m, mesmo 0 protesto de seu corpo, seus reflexos, seu ins­tmto_ de CO?Se~Va,ao, sua luta contra Pecqueux, sao umarea,ao deITIsona, que oferece Lantier ao grande Instinto

ainda mais claramente do que se ele se suicidasse e 0 cauduzcom Pecqueux para uma mOfte comUID.

A for,a de Zola esta em todas estas cenas em eco, COmmudan,a de parceiros. Mas 0 que e que assegnra a distri­bui,ao das cenas, a reparti,ao dos personagens e esta logicado''''~instinto? Seguramente, 0 trem. 0 romance abre-se comuma especie de bale das maquinas na esta,ao. Mas, acimade tudo, a breve visao do assassinato do presidente e prece­dida, para Lantier, escandida e segnida pelos trens quepassam, assumindo fun,6es diversas (Car>:. II). 0 tremaparece primeiro como 0 que desfila, espetaculo movel reu­nindo toda a terra e pessoas de toda origem e de todo equalquer pais: contudo, espetaculo ja para uma moribunda,para a vigia imovel assassinada lentamente por seu marido.Urn segundo trem surge, formando desta vez assim como urncorpo gigaute, mas tambem assim como tra,ando uma fissu­ra oeste corpo, comunicando esta fissura a terra e as casas- e "nas duas bordas ... a eterna paixao e ° eterno crime".Urn terceiro e urn quarto trens permitem ver as elementosda via, triucheiras profundas, aterros-barricadas, tuneis. En­fim, urn sexto trem reune as for,as do inconsciente, da iudi­feren9a e da amea9a, ro,audo de urn lade a cabe,a do as­sassinado e de outro 0 corpo do voyeur, puro Instinto demorte cego ,e surdo. Par mais barulheuto que seja, a treme surdo e, gragas a isto, silencio.

A verdadeira significa,ao do trem aparece com a 10­comotiva que Lantier conduz, a Lison. No come,o, elasubstituira, aos seus o!hos, todos os objetos de instinto aosqliais renunciava. E ela propria e apresentada como tendourn instinto, urn. temperamento, "uma necessidade muitogrande de ser lubrificada: os cilindros, sobretudo, devora­vam quantidades impensaveis de graxa, uma fome continua,uma verdadeira devassidao". Ora, 0 que se passa com alocomotiva nao sera 0 mesmo que se passa com a huma­nidade, em que 0 rumor dos instintos remete a uma fissurasecreta, a tal ponto que seria possivel dizer que e ela, alocomotiva, a Besta humana? No capitulo sobre a viagemem plena neve, ela se engaja na via como em uma fissuraestreita em que nao pode mais avan,ar. E quando soo, elase acha fendida, "atingida em algnm lugar por urn golpemortal". A viagem cavou essa fissura que a instinto, 0 ape­tite de graxa, escondia. Alem do instinto perdido, revela-secada vez mais a maquina como imagem de morte, como puroInstinto de morte. E quando Flore provoca 0 descarrila­mento, nao sabemos mais muito bern se e a maquina que eassassinada ou se e ela que mata. E, na Ultima cena doromance, a nova maquina, sem condutor, conduz para amorte soldados embriagados que cantam.

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A locomotiva nao e urn objeto, mas evidentemente urnsimbolo epico, grande Fantasma como ha sempre em Zoiae que reflete todos os temas e as situa~oes do livro. Emtodos os romances dos Rougon-Macquart, ha urn enormeobjeto fantasmag6rico que e tambem 0 lugar, 0 testemunhoe 0 agente. Sublinhou-se freqiientemente 0 carater epico dogenio de Zola, visivel na estrutura da obra, nesta sucessaode pIanos que esgotam, cada qual, urn tema. N6s 0 com­preenderemos melhor se compararmos A Besta Humanacom Therese Raquin, romance anterior it serie dos Rougon­-Macquart. Os dois se parecem muito; pelo assassinato queune 0 casal, pelo encaminhamento da morte e 0 processode desorganiza~ao, pela semelhan~a de Therese e de Seve­rine, pela ausencia de remorso ou a denega~ao de interiori­dade. Mas Therese Raquin e a versao tragica, enquantoA Besta Humana e a versao epica. Em Therese Raquin, 0que ocupa verdadeiramente a cena e 0 instinto, 0 tempera­mento, a oposi~ao dos dois temperamentos de Therese e deLaurent; e se ha uma transcendencia, e somente a de urnjuiz ou de uma testemunha inexoravel que simboliza 0 des­tino tragico. Eis por que 0 papel do simbolo ou do deustragico e representado pela velha Mme Raquin, a mae doassassinado, muda e paralisada, assistindo it decomposi~ao

dos amantes. 0 drama, a aventura dos instintos, DaD se re­flete a nao ser em um logos representado pelo mutismo davelha, por sua expressiva fixidez. Nos cuidados que LaurentIhe impoe, nas declara~oes teatrais que Therese Ihe faz, hiuma intensidade tragica raramente igualada. Mas, precisa­mente, e s6 a prefigura~ao tragica de A Besta Humana;Zola, em Therese Raquin, nao dispoe ainda de seu metodoepico que anima a empresa dos Rougon-Macquart.

Pois, 0 essencial da epopeia e um duplo registro emque os deuses, ativamente, desempenham a sua maneira enum outro plano a aventura dos homens e de seus instintos.o drama, entao, reflete-se em urn epos, a pequena genea­logia em uma grande genealogia, a pequena hereditariedadeem uma grande hereditariedade, a pequena manobra em Umagrande manobra. Dai decorrem conseqiiencias de vanostipos: 0 carater pagao da epopeia, a oposi~aodo destinoepico e do destine tragico, 0 espa~o aberto da epopeiacontra 0 espa~o fechado da tragedia e sobretudo a diferen~a

do simbolo no epico, e no tragico. Em A Besta Humananao e mais simplesmente urna testemunha nem um jniz, eurn agente e um lugar, 0 trem, que desempenha 0 papel desimbolo com rela~ao it hist6ria, operando a grande manobra.Ele tra,a tambem urn espa~o aberto na escala de uma na~ao

e de uma civiliza~ao, contrariamente ao espa~o fechadb deTherese Raquin, dominado somente pelo olhar da velha.

"Desfilavam tantos homens e mulheres na tempestade dostrens ... , seguramente, a terra toda passava por la, .. , aluminosidade levava-os, cia nao estava bern segura de te-losvisto." 0 duplo registro, em A Besta Humana, sao osinstintos rnidosos e a fissura, a Instinto de morte silencioso.Tanto que tudo 0 que ocorre, ceorre em dois niveis, doamor e da morte, do soma e do germe, das duas hereditarie­dades. A hist6ria e duplicada por um epos. Os instintos ouos temperamentos nao ocupam mais 0 lugar essencial. Osinstintos fervilham em torno do trem e no trem, mas 0pr6prio trem e a representa~ao epica do Instinto de morte.A civiliza~o e avaliada de dais pontos, do ponto de vistados instintos que determina, do ponto de vista da fissuraque, por sua vez, a determina.

No mundo que the e contemporaneo, Zola descobrea possibilidade de restaurar 0 epico. A sujeira comoelemento de sua literatura, "a literatura putrida", e a his­t6ria do instinto sobre este fundo de morte. A fissura e 0deus epico para a hist6ria dos instintos, a condi~ao que tornapossivel urna his16ria dos instintos. Para responder itquelesque 0 acusam de exagero, 0 escritor nao tem logos, massomente um cpos, que diz que nlio iremos nunca muitolonge na descri~lio da composi~iio, uma vez que e precisoir ate onde vai a fissura. Indo 0 mais longe possivel 0 Ins­tinto de morte voltar-se-a contra si mesmo? A fissura tem,talvez, elementos para se ultrapassar na dire~ao que cria,cia que nao e preenchida senlio em aparencia e por urn ins­tante pelos gordos apetites? E urna vez que ela absorveto<;los os instintos, pode talvez tambem operar a transmuta­~~o dos instintos, voltando a morte contra si mesma. Fazerinstintos que seriam evolutivos ao inves de serem alc06licos,er6ticos Oll financeiros, conservadores ou destruidores?Observou-se freqiientemente 0 otimismo final de Zola e osromances r6seos entre os negros. Mas, interpretarno-Iosmuito mal se invcearmos uma alternancia; de fato, a litera­tura otimista de Zola nao e diferente de sua literatura pu­trida. :e nurn mesmo movimento, que e 0 do epico, que osmais baixos instintos se refletem no terrivel Instinto deMorte, mas tambem que 0 Instinto de morte se reflete emum espa~ abetto e talvez contra si mesmo. 0 otimismosocialista de Zola quer dizer que, pela fissura, ja e 0 prole­tariado que passa. 0 trem como simbolo epico, com osinstintos que ele transporta e 0 instinto de morte que elerepresenta, esta sempre dotado de um futuro. E as ultimasfrases de A Besta Humana sao ainda um canto ao futuro,quando, Pecqueux e Lantier jogados fora do trem, a maqui­na cega e surda leva para a morle soldados "estupidificadosde fadiga e bebados, que cantavam". Como se a fissura

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nao atravessasse e nao a1ienasse 0 pensamento senao por sertambem a possibilidade do pensamento, aquilo a partir doqual 0 pensamento se desenvolve e se recobre. Ela e 0

obstaculo ao pensamento, mas tamb6m a morada e a potenciado pensamento, 0 lugar e 0 agente. 0 Ultimo romance daserie, Le Docteur Pascal, indica este ponto final epico davolta da morte contra si mesma, da transmuta9ao dosinstintos e da idealiza9aO da fissura, no elemento puro dopensamento "cientifico" e "progressista" em que queima amore geneal6gica dos Rougon-Macquart.

BIBLlOT£Cft Sn~::-l UE CI~~CIIS~b&;hU" [ li\);••~••ia."ii[li

o VISIVEL E 0 INVISIVELM. Merleau-Ponty (Col. debales)

A L6GICA DA CRIAC;AO L1TERARIAKale Hamburger (Col. esludos)

o SENTIDO E A MASCARAGerd A. Bornheim (col. debales)

o que e 0 senlido?Como a nogao de fungao 16glc8, pode ser aplicada aArle?Qual a relagao enlre 0 senlido e a mascara?

Forma x Conteudoem Filosofia, Teoria Literaria, Tealro

Forma x Conleudourn velho lema, uma colocagao nova: verlenles

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I.2.3.4.5.6.7.8.9.

10.II.12.13.14.15.16.17.18.19.20.21.22.

23.24.25.26.27.28.29.30.31.32.33.34.35.36.37.

38.39.40.

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COLE<;:ii.O ESTUDOS

lntrodufiio a Cibernetica. W. Ross AshbyMimesis, Erich AuerbachA Criafiio Glentfjiea, Abraham MolesHomo Ludens, loban HuizingaA Lingiiistica Estrutural, Giulio LepschyA Estrutura Ausente, Umberto EeoComportamenta, Donald BroadbentNordeste 1817, Carlos Guilherme Motaerlstfios-Novas na Bahia, Anita NovinskyA InteIigencia Humana, H. J. Butcherlolia Caetano, Decio de Almeida PradoAs Grandes Correntes da Mistfea fudalea, Gershon ScholemVida e Va10res do Pavo ludeu, Cecil Roth e outrosA L6gica da Criariio Literaria, Kiithe HamburgerSociodiniimica da CuItura, Abraham MolesGramatalogia, Jacques DerridaEstampagem e Aprendizagem [nicial, W. SluckinEstudos Afro-Brasileiros, Roger BastideMorfologia do Macunaima, Haroldo de CamposA Economia das Trocas Simbolicas, Pierre BourdieuA Realidade Figurativa, Pierre FrancastelHumberto Mauro, Cataguases, Cinearte, Paulo Emilio SallesGomesHistoria e Historiograjia, Salo W. BaronFernando Pessoa ou 0 Poetodrama, Jose Augusto SeabraAs Formas do Conteudo, Umberto EcoFilosofia da Nova M usica, Theodor Adornopor Uma Arquitetura, Le CorbusierPercewiio e Experiencia, M. D. VernonFilosafia do Estilo, G. G. GrangerA Tradiriio do Novo, Harold Rosenberglntroduriio a Gramatica Gerativa, Nicolas RuwetSocio/agia da Cultura, Karl MannheimTarsi/a, Aracy Amaralo Milo Ariana, Leon PoliakovL6gica do Sentido, Gilles DeleuzeMestres do Teatro, John Gassnero Regionalismo Gaucho e as Origens da Revolufiio de 1930,Joseph L. LoveSociedade, Mudanra e Polltica, Helio JaguaribeDesenvolvimento Politico, Helio JaguaribeCrises e Aiternativas da America Latina, Helio Jaguaribe

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