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coleção TRANS Gilles Deleuze CONVERSAÇÕES 1972 -1990 Tradução Peter Pál Pelbart

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coleção TRANS

Gilles Deleuze

CONVERSAÇÕES1972 -1990

TraduçãoPeter Pál Pelbart

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EDITORA 34 CONVERSAÇÕESEditora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (011) 816-6777 [email protected] I - DE O ANTI-ÉDIPO A MILLE PLATEAUX

Carta a um crítico severo 11

Copyright © Editora 34 Ltda. (edição brasileira), 1992Pourparlers, 1972 - 1990 © Les Éditions Minuit, Paris, 1990

Entrevista sobre O anti-Édipo (com Félix Guattari) 23

Entrevista sobre Mille plateaux 37A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CO FIGURA UMA

APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.II - CINEMA

Revisão técnica:Luiz Orlandi

Três questões sobre Seis vezes dois (Godard) 51

Sobre A imagem-movimento 62

Sobre A imagem-tempo 75

Dúvidas sobre o imaginário 80

Carta a Serge Daney: Otimismo, pessimismo e viagem 88

Título original:Pourparlers, 1972 - 1990

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:Bracher & Malta Produção Gráfica

Revisão:Claudia bãoraes

III - MICHEL Foucsuut

r Edição - 1992, 3' Reimpressão - 2000

Rachar as coisas, rachar as palavras 105

A vida como obra de arte 118

Um retrato de Foucault 127

CIP - Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

IV - FILOSOFIA

Os intercessores 151Deleuze, Gilles, 1925 . 1995

D39c Conversações, 1972 . 1990 I GiIles Deleuze; traduçãode Peter Pál Pelbart. - Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992232 p. (Coleção TRANS)

Sobre a filosofia 169

Sobre Leibniz 194

Tradução de: Pourparlers, 1972 - 1990 Carta a Réda Bensmaía, sobre Espinosa 203

1. GiJles Deleuze, 1925 . 1995· Entrevistas. 2. Literatura·Discursos, conferências erc. 3. Cinema - Discursos, conferências ele.4. Psicanálise - Discursos, conferências etc. 5. Filosofia· Discursos,conferências ete. Ciência política - Discursos, conferências ete.r. Título. lI. Série.

V - POLÍTICA

ISBN 85-85490·04·7

Controle e devir 209

Post-scriptum sobre as sociedades de controle 219

n·()641CDD - 194CDU - 1(44)

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belde. Não há aí nenhum retorno ao "sujeito", isto é, a umainstância dotada de deveres, de poder e de saber. Mais GO quede processos de subjetivação, se poderia falar principalmen-te de novos tipos de acontecimentos: acontecimentos que nãose explicam pelos estados de coisa que os suscitam, ou nosquais eles tornam a cair. Eles se elevam por um instante, e éeste momento que é importante, é a oportunidade que é pre-ciso agarrar. Ou se poderia falar simplesmente do cérebro: océrebro é precisamente este limite de um movimento contí-nuo reversível entre um Dentro e um Fora, esta membranaentre os dois. Novas trilhas cerebrais, novas maneiras de pen-sar não se explicam pela microcirurgia; ao contrário, é a ciên-cia que deve se esforçar em descobrir o que pode ter havidono cérebro para que se chegue a pensar de tal ou qual manei-ra. Subjetivação, acontecimento ou cérebro, parece-me que éum pouco a mesma coisa. Acreditar no mundo é o que maisnos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desa-possaram dele. Acreditar no mundo significa principalmentesuscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem aocontrole, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de su-perfície ou volume reduzidos. É o que você chama de pietàs.É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade deresistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Ne-cessita-se ao mesmo tempo de criação e povo.

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POST-SCRIPTUMSOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE

in L'Autre Journal, n° 1, maio de 1990.

I. Histórico

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculosXVIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. Elasprocedem à organização dos grandes meios de confinamen-to. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado aoutro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois aescola ("você não está mais na sua família"), depois a caser-na ("você não está mais na escola"), depois a fábrica, de vezem quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meiode confinamento por excelência. É a prisão que serve de mo-delo analógico: a heroína de Europa 51 pode exclamar, aover operários, "pensei estar vendo condenados ... ". Foucaultanalisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamen-to, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir noespaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma for-ça produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forç~selementares. Mas o que Foucault também sabia era da brevi-dade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujoobjetivo e funções eram completamente diferentes (açambar-car, mais do que organizar a produção, decidir sobre a mor-te mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressiva-mente, e Napoleão parece ter operado a grande conversão deuma sociedade à outra. Mas as disciplinas, por sua vez, tam-bém conheceriam uma crise, em favor de novas forças que seinstalavam lentamente e que se precipitariam depois da Se-

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gunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já nãoéramos mais, o que deixá vamos de ser.

Encontramo-nos numa crise generalizada de todos osmeios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, fa-mília. A família é um "interior", em crise como qualquer outrointerior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentesnão param de anunciar reformas supostamente necessárias.Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exérci-to, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estãocondenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se ape-nas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalaçãodas novas forças que se anunciam. São as sociedades de con-trole que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Con-trole" é o nome que Burroughs propõe para designar o novomonstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro pró-ximo. Paul Virilio também analisa sem parar as formas ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas dis-ciplinas que operavam na duração de um sistema fechado.Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias,formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elassejam destinadas a intervir no novo processo. Não se deve per-guntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois éem cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujei-ções. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confi-namento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento adomicílio puderam marcar de início novas liberdades, mastambém passaram a integrar mecanismos de controle que ri-valizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temerou esperar, mas buscar novas armas.

lI. Lógica

Os diferentes internatos ou meios de confinamento pe-los quais passa o indivíduo são variáveis independentes: su-põe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem co-

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mum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passoque os diferentes modos de controle, os controlatos, são va-riações inseparáveis, formando um sistema de geometria va-riável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer ne-cessariamente binária). Os confinamentos são moldes, distin-tas moldagens, mas os controles são uma modulação, comouma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente,a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudas-sem de um ponto a outro. Isto se vê claramente na questãodos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forçasinternas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível paraa produção, o mais baixo possível para os salários; mas numasociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a em-presa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conheciao sistema de prêmios, mas a empresa se esforça mais profun-damente em impor uma modulação para cada salário, numestado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios,concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos detelevisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimemadequadamente a situação de empresa. A fábrica constituíaos indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem dopatronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindi-catos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a em-presa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável comosã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduosentre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. Oprincípio modulador do "salário por mérito" tenta a própriaEducação nacional: com efeito, assim como a empresa subs-titui a fábrica, a formação permanente tende a substituir aescola, e ° controle contínuo substitui o exame. Este é o meiomais garantido de entregar a escola à empresa.

Nas sociedades de disciplina não se parava de recome-çar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nassociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, aformação, o serviço sendo os estados meta estáveis e coexis-

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tentes de uma mesma modulação, como que de um deforma-dor universal. Kafka, que já se instalava no cruzamento dosdois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formasjurídicas mais temíveis: a quitação aparente das sociedadesdisciplinares (entre dois confinamentos), a moratória ilimitadadas sociedades de controle (em variação contínua) são doismodos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito,ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos deum para entrar no outro. As sociedades disciplinares têm doispólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número dematrícula que indica sua posição numa massa. É que as dis-ciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é aomesmo tempo que o poder é massificante e individuante, istoé, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exer-ce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Fou-cault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral dosacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o po-der civil, por sua vez, iria converter-se em "pastor" laico poroutros meios). Nas sociedades de controle, ao contrário, oessencial não é mais uma assinatura e nem um número, masuma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedadesdisciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto doponto de vista da integração quanto da resistência). A lingua-gem numérica do controle é feita de cifras, que marcam oacesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diantedo par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se "divi-duais", divisíveis, e as massas tornaram -se amostras, dados,mercados ou "bancos". É o dinheiro que talvez melhor ex-prima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disci-plina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro - queservia de medida padrão -, ao passo que o controle remetea trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como ci-fra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. Avelha toupeira monetária é o animal dos meios de confina-mento, mas a serpente o é das sociedades de controle. Passa-

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mos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regimeem que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nasnossas relações com outrem. O homem da disciplina era umprodutor descontÍnuo de energia, mas o homem do controleé antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contí-nuo. Por toda parte o surf já substituiu os antigos esportes.

É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tiposde máquina, não porque as máquinas sejam determinantes,mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhesdarem nascimento e utilizá-Ias. As antigas sociedades de so-berania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas,relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham porequipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo daentropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de con-trole operam por máquinas de uma terceira espécie, máqui-nas de informática e computadores, cujo perigo passivo é ainterferência, e, o ativo, a pirataria e a introdução de vírus.Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamen-te, uma mutação do capitalismo. É uma mutação já bem co-nhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do séculoXIX é de concentração, para a produção, e de propriedade.Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamen-to, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção,mas também eventualmente proprietário de outros espaçosconcebidos por analogia (a casa familiar do operário, a esco-la). Quanto ao mercado, é conquistado ora por especializa-ção, ora por colonização, ora por redução dos custos de pro-dução. Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido paraa produção, relegada com frequência à periferia do TerceiroMundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da meta-lurgiaou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção.Não compra mais matéria-prima e já não vende produtosacabados: compra produtos acabados, ou monta peças des-tacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quercomprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a

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produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou parao mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábricacedeu lugar à empresa. A família, a escola, o exército, a fá-brica não são mais espaços analógicos distintos que conver-gem para um proprietário, Estado ou potência privada, massão agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, deuma mesma empresa que só tem gerentes. Até a arte aban-donou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos

. do banco. As conquistas de mercado se fazem por tomada decontrole e não mais por formação de disciplina, por fixaçãode cotações mais do que por redução de custos, por transfor-mação do produto mais do que por especialização da produ-ção. A corrupção ganha aí uma nova potência. O serviço devendas tornou-se o centro ou a "alma" da empresa. Informam-nos que as empresas têm um alma, o que é efetivamente anotícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora oinstrumento de controle social, e forma a raça impudente denossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rá-pida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a dis-ciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homemnão é mais o homem confinado, mas o homem endividado.É verdade que o capitalismo manteve como constante a ex-trema miséria de três quartos da humanidade, pobres demaispara a dívida, numerosos demais para o confinamento: o con-trole não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mastambém a explosão dos guetos e favelas.

tn. Programa

Não há necessidade de ficção científica para se conceberum mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posiçãode um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, ho-ruem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari ima-gil10u uma cidade onde cada um pudesse deixar seu aparta-uu-nro, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (divi-

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dual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia tambémser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que contanão é a barreira, mas o computador que detecta a posição decada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.

O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apre-endidos em sua aurora, deveria ser categoria1 e descrever oque já está em vias de ser implantado no lugar dos meios deconfinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia.Pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às anti-gas sociedades de soberania, retomem à cena, mas devidamen-te adaptados. O que conta é que estamos no início de algu-ma coisa. No regime das prisões: a busca de penas "substitu-tivas", ao menos para a pequena delinquência, e a utilizaçãode coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar emcasa em certas horas. No regime das escolas: as formas decontrole contínuo, avaliação contínua, e a ação da formaçãopermanente sobre a escola, o abandono correspondente dequalquer pesquisa na Universidade, a introdução da "empre-sa" em todos os níveis de escolaridade. No regime dos hos-pitais: a nova medicina "sem médico nem doente", que res-gata doentes potenciais e sujeitos à risco, que de modo algumdemonstra um progresso em direção à individuação, como sediz, mas substitui o corpo individual ou numérico pel~ cifrade uma matéria "dividua1" a ser controlada. No regime deempresa: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produ-tos e os homens, que já não passam pela antiga forma-fábri-ca. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreendermelhor o que se entende por crise das instituições, isto é, aimplantação progressiva e dispersa de um novo regime dedominação. Uma das questões mais importantes diria respeitoà inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, àluta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, con-seguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas deresistência contra as sociedades de controle? Será que já sepode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de

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combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedemestranhamente para serem "motivados", e solicitam novosestágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a queestão sendo levados a servir, assim como seus antecessoresdescobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Osanéis de uma serpente são ainda mais complicados que osburacos de uma toupeira.

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