DELGADO CARVALHO, J. H., Cláusulas Contratuais Gerais; Deveres de Comunicação e de Informação...

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1 Cláusulas contratuais gerais; violação dos deveres de comunicação e de informação quando o contrato conste de documento autêntico O art. 1.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10 – diploma que estabelece o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (RCCG) –, enumera as principais características conferidas a estas cláusulas, definindo-as como cláusulas pré- elaboradas (estipulações que não são objeto de prévia negociação entre as partes), rígidas (sem possibilidade de alteração ou modificação pelo aderente, limitando-se este a subscrevê-las ou a aceitá-las), em regra, utilizadas por pessoas indeterminadas, quer como predisponentes, quer como aderentes (porém, após a alteração introduzida no art. 1.º pelo Decreto-Lei 249/99, de 7/7, também se incluem no âmbito material do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais os contratos individualizados, isto é, os contratos dirigidos a pessoa ou consumidor determinado, cujo conteúdo, previamente elaborado, o destinatário não pode influenciar – cfr. art. 1.º, n.º 2), e ainda com uma intenção uniformizadora, dado que surgem desligadas do contrato em que se inserem. O regime jurídico previsto no Decreto-Lei n.º 446/85 surgiu na nossa ordem jurídica como resposta à necessidade de superar os inconvenientes dos contratos de adesão, perante a inadequação e a insuficiência de um controlo judicial assente apenas nos preceitos do Código Civil, formulados para o contrato tradicional ou clássico (cfr. arts. 227.º, 280.º e 762.º do CCiv). A necessidade de controlo das cláusulas contratuais gerais atua em dois vetores distintos: ao nível da tutela da vontade do aderente durante a fase pré- contratual e ao nível da fiscalização do conteúdo das cláusulas.

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Cláusulas contratuais gerais

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    Clusulas contratuais gerais; violao dos deveres de comunicao e de informao quando o contrato conste de documento autntico

    O art. 1. do Decreto-Lei n. 446/85, de 25/10 diploma que estabelece

    o Regime das Clusulas Contratuais Gerais (RCCG) , enumera as principais

    caractersticas conferidas a estas clusulas, definindo-as como clusulas pr-

    elaboradas (estipulaes que no so objeto de prvia negociao entre as

    partes), rgidas (sem possibilidade de alterao ou modificao pelo aderente,

    limitando-se este a subscrev-las ou a aceit-las), em regra, utilizadas por pessoas

    indeterminadas, quer como predisponentes, quer como aderentes (porm, aps a alterao

    introduzida no art. 1. pelo Decreto-Lei 249/99, de 7/7, tambm se incluem

    no mbito material do Regime das Clusulas Contratuais Gerais os contratos

    individualizados, isto , os contratos dirigidos a pessoa ou consumidor

    determinado, cujo contedo, previamente elaborado, o destinatrio no pode

    influenciar cfr. art. 1., n. 2), e ainda com uma inteno uniformizadora, dado

    que surgem desligadas do contrato em que se inserem.

    O regime jurdico previsto no Decreto-Lei n. 446/85 surgiu na nossa

    ordem jurdica como resposta necessidade de superar os inconvenientes dos

    contratos de adeso, perante a inadequao e a insuficincia de um controlo

    judicial assente apenas nos preceitos do Cdigo Civil, formulados para o

    contrato tradicional ou clssico (cfr. arts. 227., 280. e 762. do CCiv).

    A necessidade de controlo das clusulas contratuais gerais atua em dois

    vetores distintos: ao nvel da tutela da vontade do aderente durante a fase pr-

    contratual e ao nvel da fiscalizao do contedo das clusulas.

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    Com o primeiro nvel de proteo, pretende-se fazer face a clusulas

    contratuais desconhecidas ou incompreensveis, com vista a obter, em cada

    caso concreto, um efetivo e real acordo quanto a todos os aspetos do

    contrato, fazendo-se recair sobre o predisponente o dever de comunicar as

    clusulas na ntegra ao aderente (art. 5., n. 1, do RCCG). Recai ainda sobre o

    proponente o dever de informar, que se desdobra em duas condutas: uma

    conduta ativa, informando o aderente de todos os aspetos relativos s

    clusulas que, em funo da sua extenso e complexidade, justifiquem

    clarificao; e uma conduta passiva, no sentido de que o predisponente dever

    prestar ao aderente os esclarecimentos por este solicitados.

    Estes deveres resultavam j do disposto no artigo 227. do CCiv. O

    legislador sentiu, porm, a necessidade de, por um lado, os reforar em sede

    de clusulas contratuais gerais, e de, por outro, os adaptar s particularidades

    deste novo modelo negocial.

    O regime especfico previsto no Decreto-Lei n. 446/85 no privativo

    dos contratos de adeso, antes visa todos os contratos em que surjam

    clusulas contratuais gerais, pelo que esse regime tambm pode ser aplicado a

    contratos integrados em documentos autnticos (art. 2. do RCCG).

    Os documentos escritos dizem-se autnticos quando so exarados, com

    as formalidades legais, pelas autoridades pblicas nos limites da sua

    competncia ou pelo notrio nos respetivos livros ou em instrumentos

    avulsos, incluindo ainda os certificados, certides e outros documentos

    anlogos por este expedidos (art. 363., n. 2 do CCiv; art. 35., n. 2, do

    Cdigo do Notariado). Os demais documentos so particulares.

    O documento autntico, porque provm duma entidade dotada de f

    pblica, faz prova plena dos factos que nele sejam narrados como tendo sido

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    praticados pela entidade documentadora ou como tendo sido objeto da sua

    perceo direta (arts. 371., n. 1, e 372., n. 2, do CCiv).

    Como a prova plena s cede perante a prova do contrrio (art. 347.

    CCiv), a apresentao como ttulo executivo de um documento autntico

    impe que o executado, para que possa contrariar a sua eficcia vinculativa,

    alegue e prove a falsidade do documento (art. 372. CCiv). A mera

    impugnao incua, perante a presuno de autenticidade do documento,

    pois esta s pode ser afastada mediante o incidente de falsidade (cfr. arts.

    446. a 450. do nCPC). A invocao da falsidade de um documento autntico

    constitui uma exceo oposta ao exerccio do direito pelo credor, por modo

    que o nus da prova da iliso daquela presuno recai sobre quem arguiu a

    falsidade (art. 342., n. 2, do CCiv). , por isso, ao devedor-executado, que

    suscita o incidente de falsidade, que compete o nus da prova da falsidade do

    documento autntico.

    A fora probatria plena dos documentos autnticos no fica afetada se

    o executado alegar falta ou vcio da vontade, pois aquela fora probatria legal

    limita-se a presumir que a vontade manifestada atravs da declarao negocial

    feita pelo outorgante perante o oficial pblico e documentada por este existe

    at que se prove uma divergncia relevante entre a vontade e a declarao ou

    um vcio na formao da vontade.

    No tendo o executado invocado vcios do consentimento, mas antes a

    violao dos deveres de comunicao e de informao sobre o contedo do

    contrato incluindo as consequncias jurdicas do que foi estipulado , nesta

    situao j atingida a fora vinculativa do documento autntico, pois o que

    consta de uma escritura como tendo sido praticado pela entidade

    documentadora est abrangido pela fora probatria plena desse documento

    (art. 371., n. 1, do CCiv).

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    Assim, se numa escritura dada execuo feita meno de que a

    mesma foi lida e o seu contedo explicado aos outorgantes, estes atos praticados

    pelo oficial pblico que a lavrou de comunicao e esclarecimento do

    contedo encontram-se plenamente provados.

    No logrando o executado ilidir aquela fora probatria no mbito do

    incidente de falsidade, subsiste a fora probatria plena do documento, ou

    seja, fica plenamente provado que a escritura dada execuo foi lida aos

    outorgantes pelo oficial pblico que a lavrou e que este tambm lhes explicou

    o seu contedo.

    No tendo sido afastada a fora probatria plena da escritura apresentada

    como ttulo executivo, tambm no se verificam os pressupostos da exceo

    de violao dos deveres de comunicao e de informao das clusulas dessa

    escritura, mesmo que se entenda aplicvel aos instrumentos lavrados por

    notrio o regime previsto no Decreto-Lei n. 446/85.

    Na verdade, para se aferir o no cumprimento dos deveres de

    comunicao e de informao das clusulas contratuais gerais necessrio

    que, em primeira linha, seja demonstrada a falsidade da escritura, uma vez que

    a falsidade em causa diz respeito precisamente s menes que a entidade

    documentadora faz consignar no texto daquela escritura sobre a comunicao

    e o esclarecimento das clusulas que a integram.

    de admitir, contudo, que a leitura feita e as explicaes dadas pelo

    notrio no satisfaam as exigncias do regime previsto no Decreto-Lei n.

    446/85, nomeadamente porque a comunicao no foi adequada a

    proporcionar ao executado o conhecimento efetivo de alguma ou de vrias

    clusulas do contrato ou porque a explicao dada acerca de uma determinada

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    clusula foi insuficiente, pois aquele no foi informado do seu significado e

    das suas implicaes.

    O objetivo do legislador com a implementao daquele regime o de

    assegurar a lealdade na contratao, de modo a tornar efetiva a liberdade

    contratual do aderente, no permitindo que esta se reconduza mera

    liberdade de aceitar ou de recusar as clusulas unilateral e previamente

    elaboradas pela outra parte. O que releva que o aderente possa ter um

    conhecimento efetivo sobre o contedo e o significado dessas clusulas.

    Invocando o executado que o oficial pblico que praticou os atos

    impugnados comunicao e esclarecimento no deu satisfao suficiente

    queles deveres, de modo a permitir-lhe o conhecimento efetivo das clusulas,

    do seu significado e das suas implicaes (por exemplo, que a comunicao

    no foi realizada com a antecedncia necessria), ter aquela parte, primeiro,

    de aceitar como verdadeira a escritura dada execuo, isto , que as clusulas

    foram lidas e explicadas, e invocar, a seguir, quais as insuficincias que

    existiram no cumprimento dos deveres de comunicao e de informao,

    recaindo sobre o predisponente-exequente, a quem compete comunic-las

    (art. 5., n.s 2 e 3, do RCCG), o nus da prova do cumprimento destes

    deveres em harmonia com o Regime das Clusulas Contratuais Gerais.

    Em resumo: sendo dada execuo uma escritura ou outro documento

    autntico que integre clusulas contratuais gerais, com meno de que as

    mesmas foram lidas e explicadas aos outorgantes pela entidade

    documentadora, para que o executado possa invocar com xito a exceo de

    violao dos deveres de comunicao e de informao, essa parte ter de ilidir

    a fora probatria plena do documento com base na sua falsidade ou, em

    alternativa, aceitar o documento como verdadeiro e alegar (j no provar) as

    insuficincias que existiram no cumprimento de tais deveres.

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    O que no basta para afastar a fora probatria do documento autntico

    invocar a mera violao dos deveres de comunicao e de informao, pois

    que, sem antes afastar a fora probatria plena desse documento, sempre

    subsistir o valor de prova legal do mesmo.

    Jos Henrique Delgado Carvalho (Juiz de Direito)

    Jos Henrique Delgado Carvalho(Juiz de Direito)