Ribeirinhos e suas representações sociais de meio ambiente ...
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DELINEAMENTO HISTÓRICO DO CONTROLE DAS PRÁTICAS DE PESCA NO
RIO CUIABÁ, MATO GROSSO - BRASIL
VERONE CRISTINA DA SILVA1
1. INTRODUÇÃO
Este texto é parte de uma Monografia de Especialização, intitulada “Da
Legitimidade à Ilegalidade: um delineamento histórico do controle das práticas de
pesca no Rio Cuiabá, Mato Grosso - séc. XIX e séc. XX”. Procuro realizar um trajeto a
partir do começo de uma história de controles sobre os ribeirinhos tradicionais do Rio
Cuiabá e que viviam em lugares onde se estruturava o espaço urbano. A partir de uma
pesquisa em documentos do século XIX, indico pistas sobre as disciplinas que foram
sendo implantadas em torno das práticas de pesca, no espaço urbano do Município de
Cuiabá, e nelas, controles das técnicas para a captura do peixe, do manejo dos quintais,
das áreas alagáveis em torno do ambiente onde viviam os ribeirinhos e os pescadores
em função de interesses políticos, econômicos e da estruturação das cidades.
Os ribeirinhos tradicionais2 enfocados neste estudo, ocuparam o Rio Cuiabá em
um contexto de miscigenação, colonizadores e povos indígenas como os Bororo (Boku e
Manoregê no Cerrado cuiabano), os Coxiponês e os Guaná (que vieram acompanhando
as monções pelo rio Paraguai, ocupando a baixada Cuiabana)3. Há também indícios
históricos e a partir de relatos orais dos próprios ribeirinhos, de que os lugares onde
vivem são oriundos de sesmarias, de terras que foram posse de antigos proprietários de
usinas e, ainda de terras que também foram utilizadas para engordas de gado.
As práticas culturais dos ribeirinhos do Rio Cuiabá devem ser vistas em um
conjunto social, articuladas aos usos e manejos dos recursos naturais do lugar,
possibilitando, através das experiências com o ambiente, um conhecimento de captura,
1 Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Mato Grosso-Brasil e pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas do Pantanal, Amazônia e Cerrado. 2 Essa denominação de ribeirinhos tradicionais, utilizada neste estudo, compreende os atores sociais, enquanto ocupantes antigos da beira do rio Cuiabá com descendentes há mais de dois séculos, possuindo entre si, laços de parentesco e através dos seus costumes, realizam atividades comuns como: manejo de roças, quintais, rio, para fins comerciais e de subsistência. 3 Museu Rondon da Universidade Federal de Mato Grosso, 1994, (Mimeo).
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coleta, utilização e transformação de tais recursos, em conseqüência das suas
necessidades sociais e culturais.
Entende-se aqui por práticas culturais as ações que cotidianamente são realizadas
e modificadas. Segundo Certeau (1994:47), práticas culturais é:
(...) uma combinação mais ou menos coerente, mais ou menos fluida de
elementos cotidianos concretos (menu-gastronômico) ou ideológico
(religiosos, políticos) ao mesmo tempo passados por uma tradição (de uma
família, de um grupo social) e realizados dia a dia através dos
comportamentos que traduzem em uma visibilidade social, fragmentos
desse dispositivo cultural, da mesma maneira que a enunciação traduz na
palavra fragmentos de discursos, e, prática é aquilo que é decisivo para a
identidade de um usuário ou de um grupo, na medida em que essa
identidade lhe permite assumir o seu lugar na rede de relações sociais
inscritas no ambiente”.
A interação do ribeirinho com o ambiente possibilita uma prática provavelmente
menos agressiva e uma relação de reciprocidade, que pressupõe uma comunicação
simbólica com o meio ambiente4, constituindo um modo de vida, a princípio particular, em
relação aos outros moradores dos municípios em estudo.
O uso e o manejo dos recursos naturais pelos ribeirinhos tradicionais estão
fundamentados em um saber particular, acumulado pelas práticas realizadas
cotidianamente e pelas necessidades que se estabeleceram ao longo do tempo,
construindo formas similares de ocupação dos espaços e delimitando, ao que tudo
indica, o seu território.
A paisagem que ora visitamos, neste trabalho, traz a composição de um terreno
vivido e modificado por homens e mulheres que aprenderam e construíram suas
experiências ao longo do tempo e à beira de um rio, aqui identificado por ribeirinhos
tradicionais do Cuiabá.
4 Veja em CASTRO. Eduardo Viveiros. Cultura Indígena e Modernidade Ocidental. In A Temática Indígena na Escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus, org. Aracy lopes da Silva e Luís Donisete Benzi Grupioni, Brasília, MEC/MARI/UNECO, 1995.
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Compreender esta paisagem é adentrar em um ambiente que estabelece uma teia
de relações sociais e culturais, organizado por ribeirinhos tradicionais, a partir da sua
lógica, tornando este ambiente habitável e autorizando a produção de um espaço.
O espaço aqui é compreendido, segundo Certeau (1996:202)
como lugar praticado, efeito produzido pelas operações que orientam,
circunstanciam, temporalizam e que levam a funcionar em unidade de
polivalência de programas conflituais.
O espaço, portanto, para Certeau não se reduz ao ambiente geográfico natural,
mas a um conjunto de práticas e experiências realizadas num determinado lugar.
Os ribeirinhos tradicionais realizam um conjunto de ações e movimentos
cotidianos no rio Cuiabá e em seu entorno, acompanhando o ciclo hidrológico, numa
relação social e cultural. Nesse percurso, constroem fragmentos de histórias,
aprendizados individuais e coletivos, com itinerários selecionados a partir de códigos
particulares de comportamento, bem como de reações às diversas teias de poderes
circunstanciais que lhes possibilitam mudanças ou delimitações de outros espaços.
O Rio Cuiabá muito mais do que um fornecedor de recursos naturais para a
sustentabilidade econômica de diversas grupos, bem como para o consumo da água
pelos habitantes dos Municípios do entorno, é um lugar praticado culturalmente por
ribeirinhos tradicionais, onde o imaginário destes usuários depende materialmente da
relação com o rio, através das operações que nele realizam.
À beira deste rio, experiências coletivas são vividas, e seus usuários mais diretos
estabeleceram meios de fazer e praticar o ambiente de uma maneira particular. Para
Benjamin (1993), não há experiência individual sem experiência coletiva, que geralmente
vem carregada de mitos, mediando os homens com o mundo, dando força para a
valorização do seu lugar . Nesta mesma relação de convivência e experiências coletivas
se constrói a memória. Bosi (1994:55-114), a partir das análises de Habwachs indica
que a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, classe social,
escola, igreja, profissão, grupos de convívio e grupos de referência peculiares a este
indivíduo. O grupo é suporte da memória se nos identificamos com ele. Viver num lugar,
onde as lembranças são comuns e nos ligam ao grupo, é viver uma teia de relações de
confiabilidade e identidade cultural. É praticar cotidianamente o ambiente como um
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espaço de histórias fragmentadas é compreender que a menor alteração do ambiente
atinge a qualidade íntima da memória. Por essa via, a memória da pessoa é amarrada à
memória do grupo.
Nesse ambiente de possíveis organizações do espaço cultural, com operações
cotidianas entrelaçam também as atividades econômicas e é sobre elas que o meu olhar
se aproximará. Farei um breve percurso histórico que possibilitará adentrar os
movimentos do começo de uma trama política que celebrou um processo de construção
de constantes controles sobre os usuários mais diretos do Cuiabá, definindo, inclusive,
disciplinas para as práticas de pesca e as maneiras de utilização dos recursos naturais e
das paisagens ribeirinhas.
O século XIX é o século que prevalece como o das construções de novos homens
civilizados e saudáveis para a produção. No contexto da revolução industrial iniciada aos
finais do séc. XVIII, verifica-se timidamente alguns registros sobre a exploração dos
recursos naturais voltada à comercialização5. A revolução industrial consolida o
desenvolvimento econômico e a idéia de progresso e civilização, alterando também toda
uma concepção de natureza. Esta passava a ser encarada sob a ótica do lucro e da
expansão capitalista, assumindo importância pelo valor econômico, de acordo com as
necessidades da indústria e do mercado (Castro & Galetti, 1994: 8)
Nesse mesmo período, a região do médio Cuiabá estava com suas atividades
econômicas voltadas para as usinas açucareiras, através das lavouras canavieiras
surgidas às margens do Rio Cuiabá. Estas abasteciam o mercado local com açúcar e
aguardente e coexistiam com outras atividades realizadas principalmente pelos
ribeirinhos, como engenho, roças, pesca e criação de animais.
Dentre todas essas atividades a pesca se constituía em principal base econômica
da “gente pobre”, moradora nas margens dos rios e nas povoações a elas próximas. A
pesca era feita de diferentes maneiras, mergulhando cestos e peneiras no rio, com redes
“feitas de fios de algodão e cordas de tucum”, com anzol, armadilhas (chiqueiros) nas
quais eram colocadas as iscas. (Castro & Galetti, 1994: 8)
Os ribeirinhos se relacionavam direta ou indiretamente com os espaços onde
estruturava a “cidade” através das relações comerciais, venda dos produtos, das regras e
5 CATRO, M. Inês M. e GALETTII, Lylia S. Guedes. Histórico do Uso da Biodiversidade em Mato Grosso, in Diagnóstico Florestal do Estado de Mato Grosso. CASTRO, Carlos (Org.). Brasília. IBAMA. ITTO-FUNATURA, 1994, p. 8.
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normatizações legais que interferiam nas diferentes atividades econômicas. Mesmo
aqueles que se encontravam nos lugares mais distantes e menos acessíveis, a lei e as
normas adentravam como instrumentos civilizadores. A cidade se construía como o lugar
dos saberes e das verdades, regras e comportamentos a serem seguidos, códigos
sociais e culturais .
O moderno conceito de cidade desqualifica o valor das experiências e substitui as
resistências teimosas das tradições, procurando nivelar de todos os lados e em todos os
aspectos um sujeito anônimo sem identidade, que é a própria cidade na produção de um
espaço próprio, da estabilidade e da ordem.6
Sem dúvida, as intervenções no meio ambiente e mais especificamente no Rio
Cuiabá e sobre as populações ribeirinhas que ocupavam os espaços onde se
estruturavam as cidades de Cuiabá e Várzea Grande, estiveram articuladas ao processo
de formação dos seus espaços urbanos. Autores modernos trazem as visões e
concepções que discutem teoricamente a cidade, e uma delas é esta enquanto questão
técnica, criadora das regras de civilidade no meio ambiente. Nesta abordagem se
estabelece uma civilidade para a população pobre.7
A civilidade para o pobre, considerado pelo pensamento culto, um ser semi-
racional, implicou a noção de disciplina, algo que do exterior constrange as pessoas a um
comportamento previsível e formador de uma segunda natureza do homem sem o recurso
à inteligibilidade dos pressupostos ou à consciência de sua importância. Dessa maneira,
a cidade se utilizou de instrumentos que possibilitassem o pobre seguir regras formais
consideradas apropriadas para se viver em seus espaços.
Regras que possibilitariam a marginalização e desvalorização dos saberes e
práticas para a manutenção de uma ordem política econômica e civilizatória.
Há diversos tipos de controle que se diversificam desde o séc. XIX, através de
decretos, códigos de posturas, portarias municipais voltados a normatizar e disciplinar as
maneiras de utilização do rio.
Pode-se perceber claramente que a intervenção da Lei, no cotidiano dos
ribeirinhos tradicionais, buscava desorganizar os seus saberes, mecanismo próprio do
capitalismo, introduzindo um outro saber sob a linguagem técnica, forçando os ribeirinhos
6 CERTEAU, Michel. Op. cit., p 173. 7 BRESCIANI, Maria Stella. A difícil definição de um objeto in Permanência e Ruptura no Estudo das Cidades, p. 14.
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tradicionais à assimilação obrigatória de outros comportamentos e lógicas,
acompanhados por penas como multas e/ou reclusão presidiária, garantindo assim os
interesses políticos e econômicos mantenedores de uma ordem racional e urbanística.
1. O Uso do “Timbó” (Veneno Vegetal)
A atividade pesca influenciou muitos ribeirinhos na redefinição da sua própria
atividade econômica, estando presente como atividade de subsistência ou comercial e
ainda sendo atividade integrante nas festividades religiosas. O pescador, usuário
tradicional e personagem central deste trabalho, foi entre outros o que mais esteve
cercado pela legislação e pelo controle disciplinador neste espaço.
Assim que a abundância do recurso pesca oportunizou os colonizadores destas
terras para fonte de riquezas; ela passou a ser vista como uma atividade que era mal
aproveitada economicamente pelos habitantes do local, através do uso dos instrumentos
tradicionais e que impediam a entrada do progresso, trazendo o atraso e a estagnação.
A essa idéia articulou-se a ociosidade: obter, sem trabalhar, alimentos e artigos
úteis para a vida cotidiana. Isto era encarado como óbice à inserção dos indivíduos no
mundo do trabalho e das mercadorias, onde, na verdade, a abundância dos peixes, a
existência de um grande número de frutas e de pequenas roças permitiam a
sobrevivência de parte dos moradores locais, sem que estes se vissem forçados a
participar da economia formal e a trabalhar como assalariados ou mesmo prestadores de
serviços.8
Sob estes interesses, buscou-se limitar as práticas culturais dos ribeirinhos que
articuladas aos usos e manejos dos recursos naturais do lugar, possibilitaram através das
experiências com o ambiente, um conhecimento de captura, coleta, utilização e
transformação de tais recursos, em conseqüência das suas necessidades sociais e
culturais.
Por volta de 1831, fazia-se presente o código de proibição para a pesca com o
timbó:
Porque o peixe com o timbó he nocivo a saude, ficando além disso
infestada a agoa por muito tempo, fica prohibido todo o uzo de pesca com
timbó, ou com qualquer vegetal venenozo quer seja praticado em agoas
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correntes, e o que abusar desta prohibição pagará para as obras do conselho
40$000 res ou trinta dias de cadeia.9
Presente nas posturas de saúde pública, o código buscava em seu discurso
justificar os motivos da proibição da pesca com técnicas tradicionais, adquiridas através
dos saberes na prática do rio e das experiências repassadas pela teia da memória do
grupo familiar e da própria comunidade. Esse saber foi desvalorizado em função de um
outro. O código carregava nas entrelinhas, um saber revestido de poder, o saber que
impõe a não utilização de vegetais que poderão ocasionar danos físicos àqueles que
consumirem o pescado. Esse saber vem revestido com uma linguagem técnica, porém
sem comprovações concretas do discurso. O peso da linguagem técnica basta para
impor um poder de obediência. Esse saber vem da cidade, que sacraliza as verdades.
A uso do veneno vegetal (timbó), proibido no documento, é uma prática que
segundo Severi & Pereira10, é empregada por diversas sociedades indígenas da
América do Sul, uma prática muito antiga que varia de país para país, sendo que
algumas são nativas e outras já cultivadas pelo homem. Algumas espécies atuam como
veneno enquanto um grande número provoca a perda de equilíbrio, dormência ou
sufocação nos peixes, sem que sua carne sofra qualquer prejuízo como alimento.
Tudo indica que a prática de pesca com venenos vegetais era comum no rio
Cuiabá e muito realizada pelos pescadores, a tal ponto que incomodou o poder
dominante local que criou um código para controlá-la. Provavelmente os ribeirinhos
conheciam as espécies dos venenos vegetais utilizadas a partir da influência dos saberes
indígenas que ocupavam essas localidades.
O discurso que cerca este documento é o da preocupação com a saúde pública.
Ela está presente enquanto foco de interesse das intervenções técnicas na cidade, que
participa de um movimento do conhecimento que partiu da circunscrição da doença e da
observação dos corpos doentes para a modificação do meio físico onde a doença
aparece.
8 CASTRO, Maria Inês M. e GALETTI, Lylia S. Guedes. Op cit., p.19 e 21. 9 Posturas Policiais de Cuiaba; APM/ Lata. Ano: 1831. Posturas Policiais da Câmara Municipal da Cidade de Cuiabá. Saúde Pública. Titulo 1º, § 9º. 10 SEVERI, Willian & PEREIRA, Marleth Miltes. A Pesca com Venenos Vegetais na Sociedade Indígena Enawene-Nawe e seu Impacto sobre a Comunidade de Peixes. In Relatório do Projeto de Pesquisa BRA0006/94 PNUD Subsistência e Alternativas Econômicas na Sociedade Indígena Enawene-Nawe.
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A questão urbana, por essa mesma razão, nasce junto com a questão sanitária –
preocupações simultâneas com o meio ambiente formador do corpo físico e da moral do
pobre, que poderia contaminar a população rica e reverter as expectativas dos benefícios
do trabalho.11
Os médicos e engenheiros que planejavam e desenhavam a cidade, tratavam a
população marginalizada e pobre como possíveis focos de doença, que precisava ser
tratada, e seu comportamento modificado.
Neste mesmo contexto, em alguns países como França e Inglaterra, eram
realizadas pesquisas que buscavam diagnosticar as causas das epidemias, como por
exemplo o cólera de 1830. Esses estudos, segundo Bresciani (1997)12, foram um
argumento decisivo para relacionar os mais atingidos pela doença (o pobre) como
causadores da epidemia. Era preciso estabelecer normas técnicas para o meio
ambiente, a fim de evitar contaminações e doenças como fixar lugares, regulamentar
práticas nocivas, assegurar captação de águas usadas, destruir águas estagnadas e
córregos poluídos, destruir o costume de amontoar homens e animais. Mato Grosso não
estava muito longe destes pensamentos, pois nos mais longínquos lugares do mundo o
conceito e a estruturação da cidade moderna se constituíam.
2. O Manejo dos Quintais e Terrenos Pantanosos
A casa, os quintais e seu entorno, inclusive os trajetos percorridos pelos
ribeirinhos, eram foco de observações e controles, principalmente se os movimentos
eram realizados nos espaços das cidades. Fazia-se necessário, portanto, a intervenção
das Leis.
A maneira como estavam organizados os espaços e o ambiente onde vivia o
ribeirinho, deveria ser modificada.
A lei provincial de 1861 regulamenta os espaços, propondo ações sobre o meio
ambiente :
Aquele que tiver algum terreno pantanoso onde se estagnem agoas, sera
obrigado a aterral-o dentro do prazo que ordenar o fiscal em consequência
do exame do pantano que o mesmo fiscal deverá fazer com dous pentos
OPAN/GERA-UFMT. Cuiabá, agosto de 1995, p. 35. 11 BRESCIANI, Maria Stella M.Op. cit , p.14.
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endo-se desse exame lavrado auto circunstanciado, findo o prazo, não
estando concluido o aterro, será condenado na multa de 10 a 20#000 reis e
se lhe prorrogará mais o tempo que o fiscal julgar necessária para conclui-lo
finda a qual prorrogação, se julgará ter reincidido na contravenção e pagará
de multa 30#000 reis e então manda-lo-há acabar de aterrar a custa do
possuidor. 13
Estudos recentes que se voltaram a pesquisar ambientes e vidas dos ribeirinhos
nos espaços das cidades, descrevem as diferentes paisagens onde se constroem o seu
cotidiano. Os ambientes habitados pelo ribeirinhos são áreas alagáveis14. Estas
áreas são periodicamente inundadas pelo sobrefluxo dos rios e lagos, ou pela
precipitação direta ou subterrânea, com adaptações características para este sistema.
São altamente produtivas com disponibilidade de recursos alimentares para várias
espécies de peixes, sendo que nesses locais, devido a uma abundância cíclica de
alimento, há um acúmulo de reservas de gorduras para investir em processos
reprodutivos e migratórios que se realizam no rio durante a estiagem, quando os recursos
alimentares para os peixes herbívoros escasseiam.
É sabidamente comprovado que as chamadas várzeas funcionam como “criadoras
naturais” de peixes após a piracema. Esse ambiente é, portanto, uma unidade de
recurso15 importante para a sobrevivência econômica do ribeirinho, um vez que entre
outras questões, está intimamente ligada à manutenção do estoque pesqueiro.
O aterramento dos espaços, a que se propõe o Código, implicava uma
reorganização do espaço, desalojando o ribeirinho e principalmente o pescador de seu
ambiente. Este projeto reproduzia a lógica de uma cidade técnica que não reconhecia a
diversidade de usuários do rio Cuiabá, muito menos a diversificação das paisagens. Os
12 BRESCIANI, Maria Stella M. Op cit., p.15 e 16. 13 IMPL. Leis Provinciais (original) Ano: 1861. Documento Avulso. Registrado à F. 165 v. do livro 4 de Leis. Secretaria do Governo de Mato Grosso, em Cuiabá 2 de julho de 1861. Título 1. Saúde Pública. Art. 3. 14 Estratégias de Sobrevivência de Comunidades Tradicionais no Pantanal Mato-grossense. Coord: SILVA, Carolina Joana da. Projeto do PPCAUB, financiado pelo IDRC-Internacional Development Research Center- Canadá Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pesquisa e Conservação de Áreas Úmidas no Brasil. Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo. Cuiabá, março de 1992. 15 COSTA Jr. Revisão da Proposta Preliminar de Estudos de Levantamento Ambiental. Brasília, setembro de 1997, p. 27. Se levarmos em consideração a variação dos ciclos ecológicos e os limites e possibilidades reconhecidos pelo grupo, pode existir nas unidade de paisagens, locais que em determinadas épocas, há maior maior disponibilidade e concentração de recursos, e que podem ser definidos como unidades de recursos. Assim, determinadas fruteiras podem ser utilizadas como unidades de recursos na caça, pesca,
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aterros consistiam em edificar os espaços alagados com construções, estradas, bem
como limpar o ambiente para urbanizá-lo.
No ano de 1893 outro código de posturas sobre terrenos pantanosos é mais
explícito em suas determinações:
Os possuidores de terrenos pantanosos dentro da capital e outras
povoações da cidade, são obrigados a atterral-os de modo que tornem
seccos e com o necessário declive para não conservar paradas aguas da
chuva, podendo para mais perfeito secamento fazer plantações própria. 16
Aqui o documento menciona o aterramento dos terrenos da capital e outras
povoações da cidade. Adentra mais especificamente nos espaços de interesse dos
dirigentes que os controlavam. Ele estabelece demarcações explícitas de espaço . Pode-
se supor que as práticas e as exigências da lei não estavam sendo cumpridas pelos
ribeirinhos, daí a iniciativa de uma regulamentação mais precisa sob o mesmo conteúdo,
porém mais expressiva quanto aos interesses de organização das cidades.
O terreno pantanoso que para o ribeirinho é conjunto de unidades de recurso, para
os técnicos e administradores da cidade não passava de um espaço de aglomeração de
bichos, mosquitos e de possíveis focos de doenças e contaminação; sendo assim,
precisava ser aterrado, para tornar-se um lugar limpo, de fácil acesso de utilidade pública.
O discurso do público está presente em todos os regulamentos, tomando para si o
controle e as responsabilidades da esfera individual e privada. Os quintais, espaço de
convergência de diversas práticas econômicas e festivas, onde se encontram unidades
de recursos e experiências, são importantes ambientes para a compreensão do espaço
do ribeirinho. Este espaço deixava de ser particular para se tornar público, sendo
administrado através de Decretos normativos.
O Decreto de 1832 já trazia essas normatizações:
Que todas as pessoas que tiverem lagos, chacos e tanques em seus
quintais, os tampem no perfixo tempo de dois mezes, e quando os não
entre outros. 16 Código de Posturas da Câmara Municipal de Cuyaba 1893. Resolução n 3. Livro de Resoluções da Câmara Municipal de Cuiabá. Ano 1893 a 1905. Título V. Art. 75. Pag. 30 a 63 IMPL. Cuyaba 14/09/1893.Registrada no livro competente da Secretaria da Câamara Municipal de Cuyaba em 26/09/1893.
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façam sejam multados em quatro mil reis, dois para o denunciante, e o mais
aplicados para as mesmas obras públicas e que só passarão ter seus poços
para serventia de casa, poderem que serem que sejam guarnecidos de
pedra canga, e na falta da multa refenda dez dias de cadêa sem onuz de
carceragem.17
A vigilância sobre as práticas e os ambientes já se fazia presente nesse período
através de fiscalizações. Os ribeirinhos já utilizavam de tanques nos quintais para
armazenamento dos peixes e também de poços com finalidade de armazenamento da
água para o consumo, ou atividades domésticas.
Chamou-me muito a atenção este documento, na medida em que atualmente nos
quintais de alguns pescadores, ribeirinhos tradicionais, é possível encontrar tanques
utilizados para armazenamento e comercialização de peixes.
Comumente esses tanques têm assegurado o estoque dos peixes para serem
comercializados no período da Semana Santa. Esta data corresponde também ao
período da proibição da pesca no Estado de Mato Grosso (Piracema) ou logo após o seu
término.
São tanques considerados ilegais pelo poder público, e oficialmente devem
passar por uma licença institucional, e serem acompanhados por uma fiscalização
regular das instituições públicas responsáveis; obriga-se ainda o proprietário efetuar
pagamento de tributos para a sua implantação. Essas exigências foram implantadas por
volta da década de 70, pela SUDEPE (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca)
que estimulou a implantação de tanques de piscicultura com finalidade comercial.
É claro que a finalidade dos tanques construídos pelos ribeirinhos tradicionais em
seus quintais, para o depósito e estoque pesqueiro, sofreram mudanças em relação ao
século anterior; porém é importante perceber que esses tanques não tiveram início nesta
década e por outro lado, os controles sobre essas práticas ainda permanecem.
Em cada casa tem um tanque onde são armazenados os peixes. Este
tanque é feito da seguinte forma: cava-se com um trator ou outra maneira,
bate-se com barro. A água não é minada mas o tanque enche com a chuva.
Transcrição: Dulcinéia Martins. 17 Códigos de Posturas de 1832 da cidade de Mato Grosso. Documento Avulso IMPL. Secretário: Francisco
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Ele serve para armazenar o peixe na época da semana santa, já que é um
período em que é proibida a pesca, assim há peixe para ser comercializado.
Os peixes nesses tanques se alimentam de goiaba, manga, milho, mandioca
e no período da seca não seca tudo.18.
O quintal para os pescadores é um espaço de convergência de diversas atividade
sociais realizadas e vividas na comunidade e na relação com as cidades. É a porta de
entrada para se entender a relação do ribeirinho com o meio ambiente , não só enquanto
unidade de recursos como também espaços onde se insinuam as “ilegalidades”, as
práticas que efetivamente se constituem como proibidas.
O Estado tem aberto possibilidades, através de alguns de seus programas
ambientais,19 para que os ribeirinhos tradicionais realizem projetos de sustentabilidade
econômica, incluindo, entre eles, a construção de tanques de piscicultura legalizados. Os
tanques tradicionais dos ribeirinhos, ao invés de, aos olhos do Estado, serem mais uma
possibilidade de atividade econômica principalmente no período da piracema,
contraditoriamente ainda são proibidos.
3. Os Percursos dos Ribeirinhos na Cidade
Assim como, o manejo dos quintais dos ribeirinhos recebeu um forte policiamento,
o movimento de homens e mulheres ribeirinhas pelos espaços urbanos que se
estruturavam também. Em 1897,o código de postura municipal, já se referia aos
ribeirinhos que se movimentavam pelas ruas com fins comerciais:
Proibido vender pelas ruas peixe, carne e outros gêneros próprios de mercado.
Multa 10$000.20.
Os pescadores levavam para as cidades os peixes para serem comercializados.
Geralmente caminhavam pelas ruas com carrinhos de mão, buscando a atenção através
Severino de Castillo. Tradução: Yumiko Takamoto Suzuki. 18 Pesquisa de campo, entrevista realizada com ribeirinho em 25/01/94.In Relatório de Pesquisa Exploratória do projeto “Implicações Sócioambientais do Desenvolvimento Urbano sobre as Populações Ribeirinhas dos Municípios de Cuiabá e Várzea Gande”. GERA/ICHS/UFMT.Cuiabá, 1994. 19 Refiro-me ao PADIC- Programa de Desenvolvimento às iniciativas Comunitárias, em que diversos projetos vêm incorporando a idéia da criação de tanques de piscicultura como sustentabilidade econômica para o período da piracema. 20 Códigos de Posturas da Câmara Municipal de Cuiabá. Resolução nº 29 de 11 de setembro de 1897. Editado em 1909, p. 23. Título VII- Matadouro, Açougues e Venda de Gêneros Alimentícios. Art. 110.
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de cânticos e chamadas aos consumidores. Perambular pelas ruas era símbolo do
homem visto como um inútil, sujeito a não suportar o trabalho disciplinado21. O trabalho
que se exigia era o organizado, onde se têm horas reguladas para acordar e produzir,
incorporando o tempo a ser gasto em função do trabalho assalariado. Era preciso que se
criassem espaços próprios para atuar com a venda dos produtos e esse lugar era o
mercado.
Todos os gêneros que entrarem para o consumo na cidade e povoações
serão conduzidos ao mercado ou lugares designados, onde serão expostos
a venda por espaço de vinte e quatro horas e só depois serão vendidas por
atacado. Os infratores serão punidos com a multa de vinte mil réis cada um
ou oito dias de prisão22.
Homens pobres que perambulavam pelas ruas serviam de motivo para se
estabelecer regras específicas para esta atividade. O trabalho livre não era visto como
trabalho. A mão-de-obra valorizada era a que se vendia e subordinava-se a um patrão, a
um dirigente, só assim o trabalho era visto como produtivo.
Nesse período, as usinas mato-grossenses tinham uma importância grande como
catalisadora de mão-de-obra disponível na região. Elas surgiram no momento da
abolição da escravatura e propunham “aos ociosos” uma ocupação: produzir cana para
fornecer às usinas, pescar para consumo dos trabalhadores das usinas que trabalhavam
em regime de semi-escravidão, altamente dominados pela vigilância policial. As usinas
constituíram-se em importantes meios para a conquista do mercado interno e de fronteira
viabilizando o projeto de construção de uma elite regional que dominou Mato Grosso
durante as três primeiras décadas do século XX.23
Como se percebe, a legislação foi um dos instrumentos estrategicamente criado
para a organização de um espaço ordenado, limpo, civilizado para o trabalho,
possibilitando aos administradores locais adentrar nos espaços que se encontravam fora
do seu controle. Muito mais que impedir a instauração de uma prática, a legislação inibe
as existentes e disciplina outras.
21 ALEIXO, Lúcia Helena Gaeta. Subordinação, Resistência e Trabalho em Mato Grosso (1888- 1930), p. 179. 22 Posturas Municipais de Cuiabá. Decreto Nº 577. Data: 30/11/1880. Capítulo 12º - Do Mercado Público- Art. 47º . 23 ALEIXO, Lúcia Helena Gaeta. Subordinação, Resistência e Trabalho em Mato Grosso (1888- 1930), p.168- 179.
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O pescador que utilizava os recursos naturais e utilizava o rio Cuiabá, aprendeu
também a desenvolver práticas de pesca com instrumentos voltados não só à
subsistência mas também para a comercialização.
O contexto sócio-político da época estava voltado para o estímulo da exploração
dos recursos naturais onde o peixe era um produto que poderia ser rentável
financeiramente. A pesca com rede de arrastão possibilitava a captura de um número
maior de peixes viabilizando o abastecimento regional para as usinas e ainda prestava-
se à iluminação pública das cidades, através do uso de azeite de peixe.
Ainda no séc. XIX, parte do produto das pescarias era utilizado para a fabricação
de azeite, consumido na alimentação e como fonte de iluminação. O azeite de peixe, junto
com o de mamona, figurava na relação dos produtos comercializados nos mercados
públicos de Cuiabá e constituía um importante recurso econômico da população
ribeirinha. Somente em 1874, o querosene substituiu o azeite de peixe e/ou mamona na
iluminação pública . 24
4. O Uso da Malha: A Rede de Arrastão
O uso da rede de arrastão25 na primeira metade do século XIX, tinha a
participação de um número de 12 homens cuja relação de trabalho entre o dono da rede
e os outros pescadores era de assalariamento, e cada pescador realizava uma atividade
específica. O comprimento da rede variava de 80 a 120 braças, e o número de redes
existentes no rio Cuiabá era mínimo; primeiro, porque os donos das redes eram pessoas
com poder econômico elevado para investir nessa prática. Segundo, porque havia
poucos locais apropriados no rio onde eram lançadas as redes.
O documento de 1831 da Câmara Municipal de Cuiabá, retrata um contexto de
disciplinas criadas sobre a pesca com a rede de arrastão:
Tendo mostrado a experiência que as grandes redes que travessão os rios
tem feito a falta daquela abundancia que nesta cidade tinha de peixe, e que
já mais o peixe pode subir para fertilizar os povos do rio acima e que sendo
pescado em cada lance hum muito grande número de peixe que metendo-se
24 CASTRO, Maria Inês M. e GALETTI, Lylia S. Guedes. Op. cit.,p. 14. 25 Para maiores informações sobre a técnica da rede de arrastão e seu funcionamento, veja COSTA Jr.
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em serca denominada chiqueiro levão seis e mais dias a vendê-lo ao povo,
sendo que quando se chega a ultimar a venda se acha amassado e corrupto
alterando por isso a saúde pública he portanto que a camara prohibe redes
grandes que atravessam os rios, e só convém que se pesquem com redes
pequenas cujas terão trinta braças e que os chiqueiros terão 20 palmos em
quadra, e que todos que baterem agora no rio para correr com o peixe, serão
multados por cada ves em trinta mil reis ou 20 dias de cadeia e todas as
redes mais da marca serão multados em dose mil reis o dose dias de cadeia
tornando os fiscais e juizes de Paz de tudo Conhecimento para seguir a
marcha da Ley26.
O tamanho e a medida da rede, instrumento de pesca, passavam a ser
delimitados; só as redes pequenas de 30 braças (que corresponde a 66 m.)27 poderiam
ser utilizadas, as de maior medida estavam a partir desta lei proibidas, assim também os
chiqueiros que deveriam passar a 20 palmos em quadra (que corresponde a 440 cm.).
A marcha da LEI direcionava a estruturação dos espaços das cidades. Adentrava
no cotidiano e desarticulava saberes e práticas através de um policiamento altamente
disciplinador. A prática de pesca com rede de arrastão dava uma imagem de usurpação
da propriedade pública, e o que é público deve ser fiscalizado, controlado, para dar
visibilidade aos administradores locais. A abundância do peixe que estava sendo
explorado no rio Cuiabá, era foco de interesse dos administradores, pois a
comercialização era praticada sem arrecadação fiscal, sem retorno propriamente
econômico, daí a imposição de se estabelecer limites através das medidas para as
redes, e medidas para os espaços de armazenamento do pescado como os
chiqueiros28.
Em 1854, promulga-se uma lei para o controle da pesca na capital,
regulamentando cobrança de impostos sobre cada rede que fosse lançada ao rio.
Dito de 10#000 reis sobre cada uma rede de pescar que for lançada no rio
1993, p. 92 a 95. 26 Posturas Policiais da Camara Municipal de Cuyaba. Título 14. Parágrafo 48. APM/Lata. Ano 1831. 27 Segundo o dicionário Aurélio, cada braça corresponde a 2,20m. e cada palmo corresponde a 22cm. 28 Os chiqueiros são técnicas de armazenamento dos peixes, fabricados com pedras que são alicerçadas dentro do rio, próximo às margens numa altura que não possibilita a fuga do peixe.
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Cuiabá do porto da chácara de João de Louza Ozório para cima e da chácara
do tenente Antônio Joaquim Ferreira Ramos para baixo.
Dito de 30#000 reis por cada vez sobre as que forem lançadas no mesmo rio
no espaço compreendido entre os portos das duas chácaras mensionadas
no parágrafo antecedente. Do 1º de outubro em diante será o imposto de
100#000 reis e cobrado indistintamente de todos os proprietários de redes,
por cada uma vez que as lançarem29.
O perigo de um “ilegalismo popular”, de possíveis manifestações contrárias às
condutas legalmente estabelecidas, identificam as penalidades que assinalam nos
documentos como as maneiras de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância. A
Lei postula uma gestão diferencial, ou seja, abre possibilidades para alguns, faz pressão
sobre outros, exclui uma parte, torna útil outras.30
Em 1801, a fuga de um pescador, declarada na carta do então oficial Monsenhor
Pedro Antônio para o Senhor Tenente Coronel Ricardo Franco, ressalta a participação de
um personagem que operava com a atividade de pesca, presente na história dos
conflitos. Sem descrever as razões que poderiam ter levado ao aprisionamento desse
pescador, este documento aponta indícios que reforçam a presença deste personagem
no contexto das fortalezas, das fugas e das prisões.
Carta de 12 de Fevereiro me avisou por oficial ter havido fuga de dois
indivíduos dessa Fortaleza, um mulato cativo e um pescador, pelo que faço
presente as assinaturas que a esta parte testemunha. O sargento encarregou
aos índios para que em caso de alguma notícia deles procurassem mantê-
los e despachá-los com os oficiais 31.
Fixados não só nos códigos de saúde pública, mas também nos códigos policiais,
os códigos de proibição da pesca vêm carregados de um conjunto de roupagens da
29 Da receita Sancionada e Promulgados no ano de 1854 - Lei nº 8 Cap. 02. Coleção de leis provinciais de Mato Grosso- Capítulo 2º . Augusto Leverger, capitão do Mar e Guerra da Armada Nacional e Imperial Cavalheiro da Ordem Imperial do Cruzeiro Official da Rosa e presidente da província de Mato Grosso. Documentação do Instituto Memória do Poder Legislativo de Mato Grosso. Transcrições de Leis e Decretos e Resoluções 1870-1888. Org. profª Elisabeth Madureira Siqueira. 30 FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 240. 31 Lata 1801 A. Ap . Carta do Monsenhor Pedro Antônio do Forte de Bourbon ao Senhor Tenente Coronel
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autoridade e de um poder que pretendia inibir possíveis ações com possibilidades de
usurpar os recursos que poderiam ser fonte de lucro para a região.
A criação de um policiamento e vigilância na pesca passava a se fortalecer no
imaginário do pescador influenciando o seu comportamento para posturas corretas,
caráter civilizado e nas maneiras de pescar, definindo espaços, instrumentos, e uma
maneira de ver o meio ambiente.
A dimensão do rio como parte do espaço público passa a se instalar cada vez
mais no mundo das cidades, normatizado por outras instituições como a escola pública, a
praça pública, as ruas, os hospitais entre outros. Tudo o que é público é relegado ao
poder do Estado para administrar e controlar.
A pena de reclusão aparece em vários documentos do séc. XIX, voltada ao
controle da pesca no rio Cuiabá. Ele surge segundo Foucault no século XIX, tendo em
vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral
das atitudes e do comportamento dos indivíduos 32.
O controle dos indivíduos e de suas periculosidades passa a ser exercido também
por outros poderes, como a polícia, e por uma rede de instituições de vigilância e de
correção: a polícia, para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, médicas,
pedagógicas, para a correção.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A caminho de um começo dos controles, procurei fazer uma leitura, através de
documentos do século XIX e de fontes orais de pescadores, sobre as intervenções nas
práticas de pesca no rio Cuiabá. Estes controles trouxeram a evidência de uma
preocupação com o ordenamento urbano, na busca da implantação de um modelo de
cidade.
Em favor dos homens ricos e donos de grandes propriedades, os códigos de
posturas foram utilizados, administrando a segurança dos bens e dos recursos que
poderiam gerar riquezas futuras. Estes códigos adentraram nas esferas mais íntimas e
Dr.Ricardo Fanco de Almeida Serra. Tradução: Dijanir Américo Brasiliense. 32 FOUCAULT Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. PUC/ Rio. Departamento de Letras. NAU. Rio de Janeiro, 1996, pag. 86 e 87.
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particulares dos ribeirinhos, procurando moldar e alterar suas práticas.
Para este fim, foram utilizados instrumentos formais, a lei e outros poderes: a
polícia, a prisão, o mercado, as multas, enfim a penalidade cerceou os movimentos e
operações dos ribeirinhos tradicionais nos espaços da cidade, buscando submeter e
fragilizar o pescador ao novo ordenamento espacial, absorvendo o seu conhecimento em
razão de um saber técnico e racional.
6. FONTES PRIMÁRIAS
A) LEIS, DECRETOS, CÓDIGOS, PORTARIAS.
1. Lata 1801 A. Ap . Carta do Monsenhor Pedro Antônio do Forte de Bourbon ao
Senhor Tenente Coronel Dr.Ricardo Fanco de Almeida Serra. Tradução: Dijanir Américo
Brasiliense.
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Fonte Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso. Livro de registro das Atas das
sessões de1919 a 1920. 1ª parte. P. 137
2. Posturas Policiais da Camara Municipal de Cuyaba. Título 14. Parágrafo 48.
APM/Lata. Ano 1831.
3. Códigos de Posturas de 1832 da cidade de Mato Grosso. Documento Avulso
IMPL. Secretário: Francisco Severino de Castillo. Tradução: Yumiko Takamoto Suzuki.
4. Posturas Policiais de Cuiaba; APM/ Lata. Ano: 1831. Posturas Policiais da
Câmara Municipal da Cidade de Cuiabá. Saúde Pública. Titulo 1º, § 9º.
5. Da receita Sancionada e Promulgados no ano de 1854 - Lei nº 8 Cap. 02.
Coleção de leis provinciais de Mato Grosso- Capítulo 2º . Augusto Leverger, capitão do
Mar e Guerra da Armada Nacional e Imperial Cavalheiro da Ordem Imperial do Cruzeiro
Official da Rosa e presidente da província de Mato Grosso. Documentação do Instituto
Memória do Poder Legislativo de Mato Grosso. Transcrições de Leis e Decretos e
Resoluções 1870-1888. Org. profª Elisabeth Madureira Siqueira.
6. IMPL. Leis Provinciais (original) Ano: 1861. Documento Avulso. Registrado à F.
165 v. do livro 4 de Leis. Secretaria do Governo de Mato Grosso, em Cuiabá 2 de julho de
1861. Título 1. Saúde Pública. Art. 3.
7. Posturas Municipais de Cuiabá. Decreto Nº 577. Data: 30/11/1880. Capítulo 12º
- Do Mercado Público- Art. 47º .
8. Código de Posturas da Câmara Municipal de Cuyaba 1893. Resolução n 3.
Livro de Resoluções da Câmara Municipal de Cuiabá. Ano 1893 a 1905. Título V. Art. 75.
Pag. 30 a 63
9. IMPL. Cuyaba 14/09/1893.Registrada no livro competente da Secretaria da
Câmara Municipal de Cuyaba em 26/09/1893. Transcrição: Dulcinéia Martins.
10. Códigos de Posturas da Câmara Municipal de Cuiabá. Resolução nº 29 de 11
de setembro de 1897. Editado em 1909, p. 23. Título VII- Matadouro, Açougues e Venda
de Gêneros Alimentícios. Art. 110.
11. Lei orçamentária nº 896 de 16/07/1923. Cf Indicador das Leis e Decretos...S/d
(Cf. Silva e Silva) citadas por CASTRO, Maria Inês M. e GALETTI, Lylia S. Guedes, p.61-
62.
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12. Decreto Lei nº 221- de 28 de fevereiro de 1967- Dispõe sobre a proteção e
estímulos à pesca e dá outras providências, p. 210 e 211, in COSTA, Maria Diana e
RAMOS, Ondon Costa Braga.
13. Portaria nº 662 de 17 de novembro de 1970. SUDEPE. Ministério da
Agricultura.
14. Decreto 1984 de 05/08 de 1982.
15. Lei de Pesca nº 6672 de 22-10-95. FEMA-MT.
16. Instituto Estadual de Florestas. Proposta que dispõe sobre a criação do
Código Estadual de defesa e proteção à fauna ictiológica e Capítulo I, Título I, Art. 5º.
17. Lei 9433/97 da Política Nacional de Recursos Hídricos.
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7. BIBLIOGRAFIA
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