Delírios
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Delírios
Holbein Menezes
Posfácio
Priscilla Menezes
1
Primeiro subtítulo:
... de um nonagenário.
Segundo subtítulo:
Farrapos memorialísticos
de uma longa vida vivida.
Terceiro subtítulo:
Verdades que só se dizem
depois que se conquista
imputabilidade.
Quarto subtítulo:
Relembranças dos
muitos livros que li.
Quinto subtítulo:
Eu vi, e às vezes vivi!
2
Proposição:
o “nãodito” (ou o fantástico)
não é o contrário antagônico
do dito embora o dito não seja
necessariamente a reprodução
do objeto sobre o qual se quis
dizer.
O nãodito está no subjacente
do objeto, é seu interior, sua
“coluna do meio”, a parte não
expressa seja pela linguagem
seja pela técnica acadêmicas;
todavia, manifestada pela
penumbra da insinuação às
vezes desfocada, às vezes
inteligente, mas sempre
poética.
[Obs. Na filosofia dialética
materialista, contrário
antagônico é a situação
oposta de um fenômeno,
contradição que carece de ser
resolvida para que o fenômeno
3
se desenvolva; e essa resolução
só pode ocorrer pela via
revolucionária a fim de
processar-se um salto em
qualidade; por isso que pela
forma evolucionista ocorreria
apenas acumulação
quantitativa.]
A antítese nem sempre é o
antagônico da tese (embora
represente seu contrário) e
pode ser materializada por
muitos meios inclusive pelas
dúvidas que a própria tese
possa suscitar uma vez que a
antítese representa o
movimento do novo que
quer vir a ser.
De igual modo
a síntese não é o sumário da
tese posto que é seu
desenvolvimento; é a antiga
tese modificada em qualidade
4
embora conservando em
quantidade algo da antiga tese;
visto que em toda tese existem
elementos de antítese, e em
toda antítese há elementos
tanto da velha quanto da nova
teses.
É o que a dialética quer
significar com “penetração de
opostos”.
Os filósofos chineses
nomearam os elementos tese e
antítese, de “yang” e “yin”: o
primeiro é a força ativa,
positiva e masculina do
princípio do Universo; o
segundo é a força passiva,
negativa e feminina desse
mesmo princípio; mas uma
força
não é mais importante que a
outra nem pode prescindir
uma d’outra; há que
coexistirem ambas para
5
operar-se o desenvolvimento;
não existe desenvolvimento só
“yang” ou só “yin”.
A própria metáfora bíblica da
criação do homem, ao usar
aquela linguagem “nãodita”,
criou “yin” (feminino=Eva) do
meio (costela) do “yang”
(masculino=Adão); isso para
que se tornassem forças
dinâmicas iguais para gerar a
Humanidade; por isso que
uma força sem a outra a
Humanidade não se teria
criado.
Portanto, neste livro não
pretendi dizer nada além do
que o texto não disse.
6
Capítulo
primeiro e único
do Livro I.
7
No céu.
Quando voltei à consciência
estava sob uma árvore de copa
larga e fechada. Com vagar e
ainda a sentir algum torpor
olhei vagarosamente em volta:
encontrava-me numa espécie
de clareira, ou talvez extenso
platô decorrente de
nivelamento e aterro, ao meio
do qual erguia-se uma mansão
na forma de U, em estilo
colonial, edificação muito bem
conservada. A cercar o platô,
menos na saída para uma
estrada de cascalhos, um muro
de pedra de cerca de 40 ou 50
centímetros de altura e aí
8
pelos 30 cm de largura. Para
fora do muro, mata fechada
com árvores altas que
impediam ver-se o firmamento
além de um estreito círculo.
9
Solilóquio: - Terei morrido?
Será isso o céu? E a casa do
senhor será aquela? Onde
estão os santos ministros de
deus e o seu exército de
arcanjos, anjos e querubins?
10
Nesse cismar, eis que uma
mulher alta de seus trinta anos
toda vestida com mantos
brancos, em passos lentos se
aproxima de mim; agacha-se
próximo de onde eu estou,
toma minha mão direita na
sua, beija-a e pergunta-me:
- Quem é o Senhor?
Respondo-lhe com outra
pergunta:
- Onde estou? Parece-me que,
tal Parsifal, me perdi na
floresta e desmaiei de tão
cansado.
- Mas o Senhor agora está a
se sentir bem?
11
- Não de todo. Ainda que
lúcido experimento alguma
prostração...
- Seu nome, por favor?
- Meu nome? Ora meu nome...
mas como é que me chamo
mesmo? Desculpa, minha
senhora, esqueci.
- Onde o Senhor mora?
- Lembro-me de que era numa
grande cidade de muitos
arranha-céus, com mais de
dois milhões de pessoas, uma
cidade grande e suja, muito
suja, e por isso malcheirosa.
Por enquanto é do que me
recordo.
12
- Deve ser uma das cidades do
Brasil dirigidas pelo partido
dos trabalhadores...
- Como é que é?!?
- Nada não. Esqueça.
Ocorreu-me a pergunta em
vista de algumas notícias que
recebi recente do Brasil.
- Sobre o “mensalão”?
- O Senhor também sabe desse
tipo de sujeira?
- Lembro-me de alguma
coisa... Daquele tribunal que
se proclama supremo... em
especial do seu presidente que
esbravejou alto e bom som nos
microfones das tevês do meu
13
País: “Nada existe acima deste
Tribunal!”
- Não excetuou nem o Senhor
Deus?
- Nem também o povo, em
nome de quem todo poder é
constituído, e exercido!
- E há quem pense que a
consciência coletiva é o
décimo superior das mentes, e
que tudo mais deve está
debaixo dela. O Senhor Deus...
- Não entendi essa.
- Não entendeu? O Senhor não
está a sentir nenhuma dor?
- Muita dor, senhora! Muita. A
dor da decepção, espasmos de
frustração, agonia da
14
ingratidão, náuseas de
traições..., “... o odioso
sentimento de indignação que
as deslealdades provocam...”, a
repetir Leonardo Padura em
“O homem que amava os
cachorros.”
- Qual é sua idade?
- Nem sei direito, porém mais
de noventa anos, disso estou
certo.
- Mas o Senhor aparenta
menos idade.
- Do lugar de onde eu vim
aprende-se muito cedo que “as
aparências enganam”.
- E de qual lugar o Senhor
pensa que vem?
15
- Talvez do inferno!
- Mas no inferno não existe
ninguém vivo. Todos foram
queimados no fogo
purificador!
- E a senhora acha que estou
vivo?
- Estamos a conversar, não
estamos?
- E os mortos não conversam
entre si?
- Além de muitas moradas, na
Casa do Senhor Deus há
muitos tipos de vidas; o
Senhor Deus, por exemplo,
ressuscitou seu único Filho...
- A senhora acredita nessa
história? Aceita que o senhor
16
deus tenha sido tão masdeísta
ao ponto de sacrificar o filho
único?
- O Senhor tem filhos?
- Acho que gerei oito, com
alguns dos quais não me dou
bem; e dois morreram, um
natimorto e outro com dez
anos.
- Por que o Senhor desaveio-se
com seus filhos?
- Dei-lhes tudo que criamos...
- O quê?
- Dei-lhes a casa que fizemos /
que venderam sem pudor /
nem isso de tolhimento.
17
- Definitivamente o Senhor
não está bem! Está a delirar!
- Dei-lhes todo teu acervo /
tuas vestes tão bonitas / tuas
joias preciosas.
- Ah! Compreendi! O Senhor
está a recitar um poema...
- Dei-lhes por fim teu jazigo /
ao lado do meu sepulcro /
“Bodas de Diamante!”.
- ?
- Leonardo Boff.
- Quem é Leonardo Boff, o
poeta desses tercetos?
- Autor de reflexões, não de
tercetos.
- E esses tercetos?
18
- Os compus eu próprio em
saudade de minha ex
companheira, com a qual vivi e
convivi 61 anos. Bodas de
Diamante!
- Leonardo Boff... Leonardo
Boff... acho que já ouvi falar
nesse nome.
- “A doença chamada
homem”. Esta frase é do
filósofo Friedrich Nietzsche e
quer dizer: o ser humano é um
ser paradoxal, são e doente:
nele vivem o santo e o
assassino.”
- Senhor, essa não é uma
reflexão sadia; um Santo é um
Santo e um assassino é um
pecador capital!
19
- “Bioantropólogos,
cosmólogos e outros afirmam:
o ser humano é, ao mesmo
tempo, sapiente e demente,
anjo e demônio, diabólico e
simbólico.”
- Quais antropólogos afirmam
tais absurdos?
- “Freud dirá que nele vigoram
dois instintos básicos: um de
vida que ama e enriquece a
vida e outro de morte que
busca a destruição e deseja
matar”.
- Sigmund Freud foi um
herege; por isso está a pagar
no Hades por sua vaidade de
negar ou pôr em dúvida
20
verdades eternas e imutáveis
da Fé Cristã.
- Parece que quem está a
delirar é a senhora. No ser
humano, segundo o filósofo
Leonard Boff “...coexistem
simultaneamente as duas
forças. Por isso, nossa
existência não é simples mas
complexa e dramática. Ora
predomina a vontade de viver
e então tudo irradia e cresce.”
- Não é verdade, o Homem é
imagem e semelhança de
Deus!
- Então deus... Ora, aprendi
com o cientista brasileiro, meu
amigo Victor Andrade, que
nada existe além do cérebro.
21
- O Senhor está a citar mais
um herege! Por que não cita o
sábio Apóstolo São Paulo?
- Portanto “... o que acontece
conosco, não acontece do jeito
que acontece com os outros
animais, por motivo da
constituição de seus cérebros.”
- Todos os seres da Natureza
são criação de Deus. O Livro
Sagrado registra a
determinação do Senhor
Deus: “Produza a terra seres
viventes conforme a sua
espécie: animais domésticos,
répteis e animais selváticos,
segundo a sua espécie.”
- Victor Andrade ainda
escreveu: “Nos seres humanos,
22
acontece diferente porque o
nosso cérebro é dividido em
dois hemisférios.
- O Senhor especifica os seres
humanos, mas a águia, por
exemplo, enxerga muito mais
do que os humanos. O cão tem
olfato superior ao dos
homens. E os morcegos
portam radares próprios...
- E a senhora ainda diz que
somos a imagem e semelhança
de deus!
- O Senhor Deus...
- Continua meu amigo Victor:
“... o (hemisfério) esquerdo
tem a função de dar
consciência lógica às
23
informações que lhe são
transmitidas pelo direito.”
- Esse Victor é
neurocirurgião?
-Victor é psicanalista didata,
Membro Fundador da
International Neuro-
Psychoanalysis Society.
Escreveu no seu livro “Um
diálogo entre a Psicanálise e a
Neurociência: “... o
hemisfério direito compete
transmitir informações novas
com conteúdo afetivo que
podem ser rejeitadas
(negadas) pelo esquerdo em
seu apego obsessivo à ordem
interna estabelecida.
24
- O Senhor me parece estar
muito confuso; gostaria de
conversar com o Santo
Médico Psiquiatra daqui da
Casa do Senhor Deus?
- Por quê? A senhora acha que
sou doido?
- Não! Desculpe se o levei a
duvidar; minha missão é de
Fé e Esperança!
- Mas não estou a duvidar,
tenho certeza!
- Certeza de quê?
- De que sou doido.
- Não! Doido o Senhor não é!
Apenas o que o Senhor está a
dizer é que não é normal.
25
- E o que é normal?
- O seu filósofo Leonardo Boff
não lhe ensinou?
- Meu filósofo é também um
teólogo.
- Ótimo. A teologia se ocupa
de Deus e da Casa do Senhor.
- Mas não de um único deus.
- Só existe um único Deus
verdadeiro!
- Não aceito isso não. Sei que
meu teólogo se indigna diante
da bestialidade dos homens
que a senhora diz ser a
imagem e semelhança...
- Parece que seu teólogo não
consegue alcançar a grandeza
26
de Deus nem compreender o
alcance do livre arbítrio.
- Ele registrou em recente
artigo: “Por que escrevo isso
tudo? É em razão do
tresloucado que no dia 5 abril
numa escola de um bairro do
Rio de Janeiro matou à bala
doze inocentes estudantes
entre 13-15 anos e deixou
outros doze feridos.”
- Essa lamentável ocorrência
indica falta de Crença em
Deus!
- Meu teólogo escreveu: “Já se
fizeram um sem número de
análises, foram sugeridas
inúmeras medidas como a da
restrição da venda de armas,
27
de montar esquemas de
segurança policial em cada
escola e outras.”
- O que quer dizer que as
Autoridades Constituídas já
tomaram providências.
- Assim não parece ao meu
teólogo. Boff disse o contrário:
“Tudo isso tem seu sentido.
Mas não se vai ao fundo da
questão. A dimensão
assassina, sejamos concretos e
humildes, habita em cada um
de nós.”
- Quem habita em cada um de
nós é o Espírito Santo!
- “Temos instintos de agredir e
de matar. É da condição
humana, pouco importam as
28
interpretações que lhe
dermos.”
- O Papa Francisco não pensa
dessa forma.
- O papa Francisco está a
cometer sublimação.
- A Sublimação é uma Atitude
Cristã.
- Meu teólogo Boff não aceita
isso. Prega o contrário: “A
sublimação é a negação desta
antirrealidade que não nos
ajuda.”
- Ajuda, sim!
- Porque, segundo Boff,
“Importa assumi-la e buscar
formas de mantê-la sob
controle e impedir que inunde
29
a consciência, recalque o
instinto de vida e assuma as
rédeas da situação”.
- Isso é coisa de Sigmund
Freud, o herege que nunca
teve Fé Religiosa nem respeito
para com as crenças
religiosas alheias.
- A religião é o ópio do povo.
- Ah! Essa não é ideia do Sr.
Sigmund Freud!
- Freud escreveu, numa carta a
Albert Einstein, que tudo o
que faz criar laços emotivos
entre os homens, tudo o que o
civiliza, toda educação, toda
arte e toda competição,
trabalha contra a agressão e a
morte.
30
- Já começo a gostar do
Senhor Freud...
- Mas tal conceito sobre os
homens levou-o a ser expulso
da Academia de Ciência de
Viena. O Complexo de Édipo,
por exemplo...
- O Senhor não quer ir falar
com nosso Santo Psicólogo?
- Essa música que estou a
ouvir ao longe é de Ludwig van
Beethoven, é o terceiro
movimento do Quarteto nº
132, também conhecido como
“Hino do Agradecimento”.
- É a música preferida do
Senhor Deus.
- Quem está a executá-la?
31
- O Quarteto dos Querubins.
Esse adágio representa o
agradecimento do compositor
ao Senhor Deus pela
recuperação dele Beethoven
de séria enfermidade.
- É uma das mais sublimes
criações musicais de todos os
tempos. Entretanto, pela
complexidade da sua notação
penso que Beethoven, ao invés
de querer agradecer a alguém,
desejou desafiar os músicos de
seu tempo...
- Então o Senhor acha que
não é um Hino de
Agradecimento ao Senhor
Deus?
32
- ...pretendeu desafiar os
conjuntos de corda a tocarem
esse adágio com a perfeição
exigida pela notação. O grupo
bem-sucedido poderia então
ser considerado um exímio
conjunto! Acho que o orgulho
de Beethoven quis dar um
recado: só grandes músicos
serão capazes de tocar o maior
compositor que o Mundo
conheceu, ELE!
- O Senhor distorce tudo!
“Heiliger Dankgesang eines
Genesenen an die Gottheit, in
der lydischen Tonart”, é um
agradecimento à Divindade
pela recuperação que
Beethoven obteve após grave
33
enfermidade. Assim registra a
História.
- Não. Beethoven, muito
senhor do seu talento, é que se
tinha grande. Quando se
encontrou com Mozart em
Viena em 1787, não o procurou
para ter aulas com Mozart,
como registram alguns
biógrafos, mas para desafiar
Mozart, exibindo-se.
- Como é que o Senhor sabe
disso?
- Não sei, deduzo pelo
comportamento de Mozart;
pelo menoscabo com que
devotou à peça que Beethoven
tocou para ele; considerou-a
34
“muito barulhenta”, e nada
disse sobre a interpretação.
- Qual foi a peça?
- Mozart não lhe deu muita
atenção nem conselhos, nem o
aceitou como aluno. Isso deve
ter magoado muito a
Beethoven.
- Mera suposição.
- Enquanto Mozart sempre se
perguntava “Quem sou?”,
Beethoven afirmava, “Eu
sou!”
- Mais conjecturas.
- Em 1797 Beethoven anotou
em seu caderno de notas:
“Coragem! Apesar de todas as
35
falhas do corpo, meu talento
deve triunfar!”
- Pelo que sabemos aqui na
Casa do Senhor Deus, o
compositor Amadeus Mozart
também era ambicioso.
- Na verdade, Mozart não
criou nenhuma linguagem
musical.
- Mas na Terra, os Senhores
consideram-no gênio.
- Todo gênio é distorcido. Em
carta de 14 de maio de 1778,
Mozart afirma que para
compor é preciso “permanecer
na ideia”.
- E o que é “permanecer na
ideia”?
36
- Ideias levadas às últimas
consequências conduzem a
nada.
- O Senhor pensa complicado!
- Um velhinho, de 89 anos,
barbicha como eu, Rex Stout.
- Esse está cá na Casa do
Senhor Deus desde 1975.
- E o gorducho Nero Wolfe?
- Esse nunca foi criatura, foi
personagem.
- Também não havia espaço
físico para ele aqui...
- A Casa do Senhor é
Infinitamente Grande!
- E em que outro Universo se
situa a casa de deus... se o
37
próprio Universo é finito
segundo Einstein.
- O Físico Albert Einstein não
está na Casa do Senhor Deus.
- Mas escreveu angustiada
carta a Sigmund Freud
intrigado com o
comportamento dos homens
que se proclamam filhos de
deus!
- Li essa carta, Einstein
perguntou: “Podemos superar
esta dilaceração no humano?”
- E Freud respondeu: “Não
existe a esperança de suprimir
de modo direto a agressividade
humana.”
38
- Ele está enganado. Existe,
sim, em se praticando o Culto
ao Senhor Deus!
- Freud, que era médico e
sabia das coisas humanas
afirmou o contrário; que nos
homens “vigoram dois
instintos básicos: um de vida
que ama e enriquece a vida e
outro de morte que busca a
destruição e deseja matar.”
- Talvez Freud tenha razão:
agora estou a me lembrar de
que Caim matou Abel...
39
- Resignado, Freud terminou a
carta: "... esfaimados
pensamos no moinho que tão
lentamente mói, que
poderemos morrer de fome
antes de receber a farinha".
- E por falar em “esfaimados”,
esta seca de agora no
Nordeste Brasileiro é a
septuagésima que a História
registra.
- E quem produz as estiagens,
deus, os homens, confluências
climáticas, ou o quê?
- Os homens que, no exercício
do seu livre arbítrio, um
Santo Dom dado pelo Senhor
Deus, estão a destruir a
Natureza que Ele criou.
40
- Dom ou Dan?
- Que é isso de “Dan”?
- Da dupla “Dida e Dan”. Que
manda no Banco do Brasil e na
Caixa de Previdência dos
Funcionários do Banco do
Brasil.
- Não entendo o que o Senhor
está a dizer: ora, se a Caixa é
dos, por que não é o dos que
manda nela, e sim a dupla
Dida e Dan?
- Porque assim interessa ao
Ministro da Fazenda.
- Quem é o Ministro da
Fazenda?
- Um prestidigitador contábil.
41
- Que é isso de prestidigitador
contábil?
- Uma pessoa que transforma
déficit em superávit.
- Isso acontece no Brasil?
- À revelia da Presidente.
- Então por que a Presidente
não troca o Ministro da
Fazenda?
- Porque um ex-presidente não
deixa.
- No Brasil há presidente e ex-
presidente que mandam
simultaneamente?
- No Brasil faz mais de dez
anos que quem manda é a
política de poder da casta
42
sindical do partido dos
trabalhadores.
- Trabalhador não é quem
trabalha?
- No Brasil, o partido dos
trabalhadores pertence aos
que não trabalham, os “boss”
sindicalistas que pululam
soberanos, sem vínculo com a
relação de produção; e isso
vem de longe, desde o tempo
do finado Getúlio Vargas.
- Getúlio Vargas não foi
aquele Presidente que se
matou?
- Foi.
- Qual motivo levou-o a
suicidar-se?
43
- Para entrar na História!
- E como Presidente ele não
entraria na História?
- Acho que ele desconfiava que
não. Depois de ter mandado
matar muita gente por meio do
seu chefe de Polícia, Felinto
Strubing Müller...
- Esse era alemão?
- Tenente do exército
brasileiro, promovido a
capitão por Luis Carlos
Prestes, comandante de uma
Coluna de Revolucionários.
- Mas Prestes não foi preso a
mando desse chefe de polícia,
Felinto Müller?
44
- Prestes e sua esposa, Olga
Benário; esta executada em
Benburg, na Alemanha de
Hitler para onde Felinto
Müller a havia deportado.
- Felinto Müller era nazista?
- Meu teólogo Leonardo Boff
explica a atitude do Müller: “A
dimensão assassina... habita
em cada um de nós. Temos
instintos de agredir e de
matar.”
- Também já começo a gostar
desse seu teólogo. Sim, porque
a tal dimensão assassina que
habita os homens preferiu
Barrabás ao Filho de Deus,
Jesus.
45
- Mas a “dimensão assassina”
não terá sido também do pai-
deus de jesus?
- Ao contrário! Foi um Santo
Sacrifício, para salvar os
pecadores...
- Que a parte masoquista de
jesus aceitou: “... não seja
como eu quero, e, sim, como
tu queres.”
- ... para salvar os pecadores.
- É. As pessoas assustadas em
geral atraem a maldade dos
outros.
- Jesus não estava assustado
ao pedir “Meu Pai, se possível
afasta de mim este cálice”.
46
- Qualquer aventura existe
mais na narrativa do que nos
fatos.
- O Filho de Deus ofereceu seu
Sangue em holocausto para a
salvação dos homens.
- A palavra sangue tem às
vezes um poder maior do que a
palavra morte.
- Esse é pensamento seu?
- É um pensamento do escritor
brasileiro Luiz Alfredo Garcia-
Roza.
- O Senhor está a ter
relembranças dos livros que
leu?
- Assim como observamos a
realidade externa, também
47
perscrutamos a realidade
interna.
- Que é realidade interna?
- É a composta por lembranças
que só adquirem significado
quando repercutem na
percepção.
- Perceber não é tomar
consciência dos objetos?
- Freud: o ego emite catéxias
de atenção exploratória do
mundo exterior que vão
encontrar o objeto a meio-
caminho.
- Assim também acontece com
a percepção da realidade
interna?
48
- Freud nunca deixou claro o
mecanismo de percepção da
realidade interna; mas não a
atribuía à percepção.
- Atribuía a quê?
- Separou percepção e
consciência.
- ?
- Atribuiu à consciência a
qualidade de receber
excitações do mundo interno.
- Que significa isso?
- Excitações do mundo interno
constituem-se exclusivamente
de sensações de prazer e
desprazer.
49
- O Senhor sente mais prazer
aqui na Casa do Senhor Deus
do que no lugar de onde vem?
- Lá na minha megalópole suja
e malcheirosa perdi muitas das
antigas certezas, mas não
cheguei à verdade nenhuma;
pelo contrário, ampliei minhas
dúvidas e cismas.
- Que antigas certezas o
Senhor tinha?
- De que todos nascemos no
piloto automático, mas apenas
alguns assumem o comando.
- Que significa essa metáfora?
- Quando ganhei a
aposentadoria fiquei sem
50
saber o que fazer com o resto
da minha vida.
- A lei da aposentadoria é
humana, e assim falha; só a
Lei de Deus é Efetiva e
Perfeita.
- Os homens ao fazer suas leis
pretendem estar expressando
no microcosmo humano a
ordem do macrocosmo.
- Nos humanos, todo segredo
escrito é para ser descoberto.
Por analogia, todas as leis
cuidam, não para serem
cumpridas mas,
especialmente, para não
serem descumpridas; porque
no Brasil há as leis que pegam
e leis que não pegam.
51
- Quem faz sinal para tudo,
não faz sinal para nada.
- O Senhor acredita que o
nada existe?
- O nada é uma abstração
desde que não corresponda ao
zero.
- E por que o zero que é
nenhum não deva
corresponder ao nada que
também é nenhum?
- Engels: porque o zero é
muito rico, mais rico em
conteúdo do que qualquer
outro número.
- ?
- Ponha-se seis zeros ao lado
direito da unidade e esta se
52
transforma em um milhão de
unidades.
- Essa é uma verdade dos
homens, mas não é a Verdade
do Deus Pai.
- O zero anula qualquer outro
número pelo qual seja
multiplicado.
- Quando eu era gente, nunca
fui bom em tabuada...
- Quem foi bom em tabuada
foi Albert Einstein.
Já se fazia tarde. A arcanja
começava a bocejar. Os lindos
olhos cor de avelã aos poucos
perdiam o brilho. O franzido
53
na testa indicava cansaço.
Perguntei:
- Aqui na casa do senhor deus
não se descansa?
- Só aqui na Casa de Deus é
que experimentamos o
Descanso Profundo e Eterno!
Boa-noite, Senhor!
- Até amanhã.
Na manhã seguinte procurou-
me a Dra. Quê Escopeta,
brasileira de origem italiana.
E, com a empáfia comum a
todos os médicos, que se
julgam senhores da vida e da
morte, foi logo comandando:
- Preciso ver sua identidade.
54
- Identidade não se vê,
percebe-se pelo conjunto de
características que distinguem
uma pessoa.
- Refiro-me a sua cédula de
identidade. Por favor!
- Não tenho documento algum.
Perdi todos os papéis que se
encontravam no meu
embornal.
- O Senhor é um cavalgante?
- Sou caminhante. E não me
posso chamar nem de
Pacífico nem de Jubiloso,
talvez Desgraçado, como na
“Walquíria”, de Wagner. O
sofrimento dá voltas em torno
de mim como um caracol em
sua casa.
55
- Já conversei com a Arcanja
Recepcionista, a qual me
informou que o Senhor é
metido a gênio.
- Gênio é um tipo que faz
acontecer coisas sem ter ideia
de que elas vão acontecer...
- O Senhor parece-me
conturbado, um tanto louco!
- Acertou na mosca. Meu
desejo de vencer a morte que
se avizinha tem-me
transtornado.
- Como médica, posso
garantir-lhe que é impossível
desviar a finalidade da morte.
56
- Mas num mundo que é
governado à toa pode-se
contar com coincidências.
- Devemos sempre desconfiar
das coincidências.
- Curei-me de um câncer de
próstata em razão de
coincidências.
- Um câncer de próstata não é
resultado de coincidências.
- Mas a cura é.
- A cura, qualquer cura, é
resultado de estudos e
pesquisas e tratamento.
- A minha experiência de
paciente ensinou-me que a
cura do câncer de próstata é
57
resultado direto da obstinação
do canceroso.
- E como se manifestou esse
seu estado de obstinação?
- Pela teimosia. Sou teimoso
tal um jumento chucro.
- No mal de Parkinson a
máquina humana trepida e
para; no câncer são células
que não param de crescer...
- Obra de deus...
- O Senhor Deus nada tem a
ver com isso. São sempre as
circunstâncias, subproduto do
livre arbítrio.
- De trás para frente: meu
irmão morreu... de câncer de
próstata.
58
- Sabia disso. O fato está nos
nossos Santos Registros.
- Ele era médico e pela lógica
um médico que se tem dono da
vida e da morte não devia
morrer.
- Ora, disparate! Se médico é
dono da vida e da morte,
como o Senhor diz, era de se
esperar que devia viver para
sempre!
- A espera é feita mais de
fantasia do que de realidade.
- Não enrole, quais foram as
“circunstâncias”?
- A fundamental circunstância:
à beira da morte meu irmão
59
disse-me: você será o
próximo.
- O Senhor era mais velho do
que ele?
- Ele era mais velho do que eu
dois anos.
- Que idade ele tinha quando
morreu?
- Setenta e poucos.
- Quantos anos o Senhor tem
agora?
- Mais de noventa!
- Havia outros irmãos?
- Mais novo do que eu, dois
homens e uma mulher. Os
homens já morreram, nenhum
de câncer de próstata.
60
- O câncer prostático não é
hereditário, a medicina
constata apenas que numa
família onde um membro foi
portador de câncer de
próstata, outros têm a
probabilidade de sê-lo
também.
-Mas na Natureza os iguais
tendem a se agrupar e a
expelir os diferentes...
- Que o Senhor quer dizer com
isso?
- Em geral são os pequenos
detalhes que agem sobre a vida
da gente.
- Que pequenos detalhes?
61
- Quando meu irmão médico,
já moribundo, predisse meu
câncer de próstata, só a partir
daí foi que eu soube que havia
próstata!
- Sim.
- Fui consulartar-me com um
urologista. O toque indicou
tumoração suspeita. Aí ele
pediu biópsia.
- A biópsia confirmou a
existência da neoplasia
maligna?
- Não; deu negativa. O PSA é
que registrou um íncide acima
do normal.
62
- Identificações táteis, visuais
e indiciantes são pouco
confiáveis.
- No ano seguinte fiz novo
toque retal e nova biópsia; o
índice do PSA aumentara, mas
a biópsia continuava a dar
negativa.
- Quando é que o Senhor
conheceu que era portador de
neoplasia prostática?
- Três anos depois da morte de
meu irmão médico. Foi
necessária raspagem
transuretal da próstata para a
biópsia registrar o câncer.
- É a isso que o Senhor chama
de “circunstâncias”?
63
- A potencialidade para a vida
ou para morte está presente,
com igual intensidade, em
todas as pessoas; as pessoas é
que não atentam para os
pequenos detalhes.
- E o Senhor acha que sua
obstinação, ou teimosia como
o senhor denomina, é um
pequeno detalhe?
- O hábito é a usina da
mediocridade; mas obstinação
é formação superior.
- O Senhor se considera
superior?
- Obstinado. Sem coragem
não se pode fazer nada.
Aqueles que não têm coragem
viram as costas à vida. Quando
64
eu acho que posso parar de
procurar, é justamente quando
começo a procurar.
- E o que é que o Senhor está a
procurar aqui na Casa do
Senhor Deus?
- Não foi num processo de
busca que me deparei com este
lugar parasidíaco; perdi-me na
floresta, e ao subir numa pedra
para visualizar a situação,
escorreguei e caí; bati a cabeça
e desfaleci. O corpo não mente
nem engana: quando senti
fome, aos trancos e barrancos
vim ter aqui.
- O Senhor já comeu alguma
coisa?
65
- Não, mas saciei-me de
sabedoria. Para mim bastou.
- O Senhor Deus costuma
dizer: “Os seres humanos são
um sintoma de busca
obsessiva de alguém ou de
algum lugar que os façam
felizes.”
- A esse “algum lugar” ou “esse
alguém”, Freud chamou de
NIRVANA.
- Conheço essa especulação de
Freud. Até indicou o útero
materno como a “situação
paradisíaca”.
- A senhora já leu Freud!
66
- Nunca fiz psicanálise, o
Senhor Deus é meu Pastor,
nada me faltará!
- Fizemos 30 anos!
- Fizemos quem?
- Minha família. Minha
mulher artista plástica e mãe,
e nossos filhos. Trinta anos!
- O Senhor fez trinta anos de
psicanálise?
- A família, se somadas todas
as análises individuais.
- Guardo curiosidade de saber
como é uma sessão de
psicanálise.
- Compram-se cinquenta
minutos do tempo do analista.
67
- Análise é um comércio, que
se vende e se compra?
- Não é do gênero mercantil
mas se não se compra não se
tem. Não há análise gratuita.
- O analista conversa,
pergunta, faz exames,
investiga, ausculta os
pacientes?
- O mais das vezes fica calado,
e quando fala é para dizer:
“Seu tempo terminou. Até a
próxima sessão.”
- E como se processa o
tratamento médico?
- Por via da atenção flutuante.
- “Atenção flutuante”? Isso
não é contraditório?
68
- Provocar com a mudez
manifestações de crises de
culpa.
- Um tanto sádico...
- Talvez não sejam crises. Crise
não é periódica? O
permanente não é função?
- A ignorância é a mais
perigosa das doenças. Mas
continuando com o assunto
anterior: como é que o Senhor
enfrentou o câncer de
próstata?
- De frente. A pegar o touro
pelo cifre. Com a firme
convicção de que a vida é mais
importante do que a morte.
Um dia de vida vale toda uma
eternidade duvidosa...
69
- Fez cirurgia?
- Fiz radioterapia.
- Não ficou com sequelas?
- Fiz radioterapia
tridimensional. A radiação
dirigida para o tumor e não
sobre o órgão que abriga o
tumor. A destruir assim o
tumor sem nenhum efeito
secundário no órgão
albergueiro.
- Reconheço que é um avanço
da medicina moderna, a
busca da interioridade, do
específico e não do geral.
Aliás, as especialidades
médicas de hoje brotaram
dessa tendência.
70
- Os médicos idosos são contra
as especialidades porque
aprenderam nas antigas
Faculdades que os seres
humanos são macrocosmos;
enquanto os laboratórios de
agora constatam que as
doenças em geral são
microcósmicas.
- Foi um prazer conversar
com o Senhor. Agora será a
vez de o Senhor falar com o
Arcanjo Encarregada do setor
Histórico-social.
- E se eu não quiser falar?
- São apenas procedimentos
de rotina.
71
- Aqui também funcionam as
normas da burra burocracia
oficial do Banco do Brasil?
A Dra. Quê Escopeta virou-me
as costas de maneira abrupta,
autêntica médica que é, e
dirigiu-se à mansão celestial.
Alguns minutos depois, de lá
saiu um senhor de meia-idade,
gorducho, andar lento,
cabisbaixo, vestido com sapato
sem graxa nem meia, calça e
paletó gastos, camisa de listas,
gravata-borboleta e barba por
fazer.
- Sou o Arcanjo Encarregado
do Setor Histórico-Social.
- Que significa isso?
72
- Somos o Cadastro da Casa
do Senhor Deus.
- Não tenho bens imóveis, não
sou sócio de nada, nem
pertenço à empresa comercial
alguma; nem tenho dinheiro
em bancos nem também no
bolso...
- Mas o Senhor possui um
passado, e se o tem, é senhor
também de uma história.
Queremos saber qual é a sua
história.
- Para quê?
- Para o Livro que o Filho do
Senhor Deus está a escrever
faz dois mil anos.
73
- “Nada corrompe um homem
de modo tão profundo como
escrever um livro.”
- Quem disse essa
barbaridade?
- Nero Wolfe.
- Quem é Nero Wolfe?
- Um detetive privado.
- Nero Wolfe?
- O Gordo.
- Aqui no meu “Lap Topper”
não há registro de Nero
Wolfe, só de Nero Claudius
Caesar Augustus Germanicus,
que nasceu em 15 de
novembro do ano 37 dC e
74
morreu em Roma no ano 68
dC.
- O meu Nero é um
personagem criado pelo
escritor estadunidense Rex
Stout.
- O Nero Cláudio também foi
um personagem, aliás, um
estranho e complicado
personagem da História.
- É, nunca se sabe o que uma
conversa vai decidir... até que
se a tenha realizado.
- Não percebi o que o Senhor
quer dizer com isso.
- Nem eu próprio.
75
- Sejamos objetivos, seu nome,
por favor; e data e local de
nascimento.
- “Sou uma Sombra! Venho de
outras eras / do
cosmopolitismo das
moneras...”
- É um nome comprido
demais, em extensão só perde
para o nome do primeiro Rei
do Brasil: Pedro de Alcântara
Francisco Antônio João
Carlos Xavier de Paula
Miguel Rafael Joaquim José
Gonzaga Pascoal Cipriano
Serafim de Bragança e
Bourdon.
- É, só se consegue tirar
alguma coisa do pensamento
76
dos burocratas se se coloca
outro no seu lugar.
- E a data e local do seu
nascimento?
- O hábito é mesmo a usina da
mediocridade! Rex Stout tinha
razão.
- Pelo que me informaram os
Assessores Técnicos do Senhor
Deus, o Senhor é brasileiro,
nasceu no Brasil, no Nordeste
brasileiro, no flagelado Ceará.
Nosso GPS é Santo e
Purificado!
- Qual GPS? O Global
Positioning System da
espionagem estadunidense ou
o tupiniquim Guia da
Previdência Social, sistema de
77
arapongagem da Receita
Federal do Brasil?
-Nosso GPS é a Guardamoria
do Paraiso Santificador, que
informa ao Senhor Deus sobre
todas as coisas, em especial os
milagres dos candidatos a
Santos.
- Mas os santos não são
escolhidos pelo papa?
- O Papa é o Chefe da Igreja
de Deus, é seu Representante
na Terra.
- Houve uma papisa...
- Isso é lenda.
- Houve dois papas...
- Calúnia!
78
- “Houve reis e santos
analfabetos, como houve
nações ágrafas”.
- Isso é charada?
- Antônio Houaiss em uma
conferência durante um
encontro de escritores em
Brasília.
- Tenho muito que fazer, estou
com a mesa abarrotada de
papéis. Vamos logo: data e
local de nascimento?
- Escreva aí: trinta e um de
fevereiro.
- Pelo Calendário Gregoriano
adotado em 1582 pelo Santo
Papa Gregório XIII, não
existe a possibilidade de
79
alguém ter nascido em trinta
e um de fevereiro. O
Calendário Juliano estava em
atraso de quase uma semana
em relação ao calendário
solar, por isso...
- Onde você aprendeu tudo
isso?
- Ora, na Internet!
- Estimava fosse na santa
biblioteca celestial.
- A Guardamoria do Paraíso
Santificador possui a mais
completa biblioteca do
Universo!
- Maior do que a da santa sé,
que já é enorme?
80
- A Biblioteca da Santa Sé foi
criada com as sobras dos
livros e documentos que
guardamos na Guardamoria
do Paraiso Santificador.
- Estimava tivesse sido com os
butins tomados dos hereges,
pela santa iquisição.
- Data de nascimento!!
- Pois. Se o papa gregório viu-
se obrigado a tirar três dias do
mês de fevereiro para
consertar erro do seu coirmão
juliano, também posso tirá-los
do dia do meu nascimento.
- Anotado: 28 de fevereiro.
- Parece-me que tanto a mente
humana quanto a não humana
81
não passam de mera pilhéria.
Engels disse: “o pensamento
falso levado até a sua
conclusão lógica, chega
regularmente ao contrário do
seu ponto de partida.”
- Engels? Desconheço.
- Friedrich Engels, alemão,
escreveu um extraordinário
livro: “Dialética da Natureza”,
cujos direitos autorais deu-os
a Karl Marx para ajudá-lo a
manter-se e manter a sua
família.
- A Natureza é Obra de Deus!
Está no Gênesis.
- Obra de deus... Ora, a criação
do mundo é obra do acaso!
Consequência do Big Bang.
82
- O Senhor está a blasfemar!
- Toda blasfêmia vista pelo
retrovisor pode vir a se tornar
lógica e coerente.
- O Senhor é metido a
engraçado...
- Parece que estou é metido
numa baita enrascada!
- Então seja sensato e
coerente e claro nas suas
respostas.
- Às vezes a diferença entre ser
sensato ou ser tolo não
depende da gente...
- Depende de quê?
- Nenhum homem com um
pouco de juízo pode supor que
83
as palavras de outro homem
tenham, exatamente, o mesmo
significado para ambos.
- Já notei que o Senhor adora
provérbios; já leu os de
Salomão, filho de Davi, o rei
de Israel?
- Gosto do número 20,
versículo 1º: “Grita na rua a
sabedoria, nas praças levanta a
sua voz; do alto dos muros
clama, à entrada das portas e
nas cidades profere as suas
palavras.”
- Estou a entender sua
cavilação. Mas esse Santo
Provérbio não justifica os
movimentos de
insubordinação e baderna
84
recentemente acontecidos no
Brasil.
- O partido dos trabalhadores,
quando não estava no poder,
pregava: “O povo unido jamais
será vencido!”
- As coisas não são tão
assustadoras quanto
parecem, quando encaradas à
luz dos ensinamentos do
Senhor Deus.
- Então responda-me com
franqueza: a indicação do
número 31 do versículo citado,
dos provérbios: “Portanto
comerão do fruto do seu
procedimento...”, justifica as
balas de borracha e as bombas
de gás?
85
- !?!
- Porque não existe
democracia do povo, pelo
povo, e para o povo; todo o
poder é grupal. Pelo menos
assim nos ensina da História
da Humanidade. O poder há
sempre sido exercido por e
para uma casta, desde Moisés.
- Mas na Biblioteca da
Guardamoria do Paraíso
Santificador existem uns
livros escritos por marxista
que falam em classes.
- Para efeito didático, esses
escritos dividiram a
humanidade em classes.
- Então na realidade não há
classes?
86
- Não. As classes gerais
especificadas por Karl Marx,
operários, camponeses,
burguesia e capitalistas, foram
para efeito metodológico, a fim
de comportar o livro que Marx
estava a escrever, “O Capital”.
- O capital do Senhor Deus
são as Rezas e Orações.
- Até a se tornarem o ópio do
povo.
- Aqui na Casa do Senhor
dividimos a Humanidade em
Crentes e ímpios.
- As crenças são resultantes da
função precípua do hemisfério
esquerdo do cérebro humano.
87
- E o livre arbítrio não é uma
Dádiva Divina?
- O livre arbítrio no sentido de
liberdade não existe. Porque
os humanos somos sempre
aprisionados as nossas
lembranças, e em função
delas, agimos.
- Lembranças são recordações
ou memórias?
- Registros mnemônicos.
Quando duas pessoas estão a
conversar, uma e outra nutrem
expectativas de respostas
correspondentes as suas
necessidades.
- Não comprendi.
88
- Não há duas pessoas no
mundo cujos interesses sejam
idênticos.
- Por quê?
- Porque é difícil para cinco
pessoas viverem sob o mesmo
teto durante três dias sem
terem arranhado a pele dos
seus egos.
- O Senhor pensa assim?
- Meu escritor predileto, Rex
Stout.
- Os anteriores Irmãos em
Deus que lhe inquiriram...
- E eu estou a ser inquirido?
- Ninguém adentra a Casa do
Senhor Deus sem que
89
saibamos e avaliemos sua
história.
- Porventura foi avaliado
aquele ladrão crucificado ao
lado do cristo?
- Deus e seu Filho, o Senhor
Jesus, são Oniscientes. Leram
no coração do ladrão.
- Quer dizer que também
sabem tudo sobre mim?
- Sabem.
- Então, e por que estou a ser
perguntado?
- Rotina.
- Rex Stout disse que a
curiosidade é uma forma de
90
atração mas eu acho que é de
atracação.
- O que o Senhor quer dizer
com essa metáfora,
“atracação”? É o ato de
encostar embarcações aos
cais?
- Chegou a vez de eu dizer:
Santa Ingenuidade! Estou a
me referir ao ato de aprisionar,
prender, essas coisas.
- Aprisionar ou prender o quê
ou a quem?
- A mim.
- Mas o que queremos aqui na
Casa do Senhor Deus é a sua
Salvação.
- E eu estou a correr perigos?
91
- Todos os homens que não
creem em Deus Todo
Poderoso, correm perigo.
- Quais perigos?
- De ir para o Inferno.
- Mas eu já moro no inferno!
- Nossa eficiente
Guardamoria do Paraiso
Santificador diz que o Senhor
reside no Brasil.
- Você conhece o Brasil?
- Só por meio dos nossos
Satélites.
- E também por espiões de
batina.
- Na Casa do Senhor Deus não
temos espiões, não
92
concorremos com os Estados
Unidos.
- E a universal estrutura da
igreja católica, é o quê?
- São Agentes para a Salvação
de almas, não espiões.
- E o exército da salvação?
- Essa organização não
pertence ao Reino do Senhor
Deus.
- Mas arranca dinheiro dos
trouxas em nome de deus.
- Num mundo de causa e
efeito todas as coincidências
são suspeitas.
- Essa frase era minha, só
estava esperando uma deixa.
93
- Essa frase é de Rex Stout.
- Mas Rex Stout é o meu autor
predileto e não o seu.
- Na verdade nunca o li; dele
sei e do seu pensar pelos
pareceres da Guardamoria do
Paraiso Santificador.
- Aqui também fazem-se
pareceres?
- Resumos, sínteses,
apanhados dos jornais da
Terra arquivados na GPS.
- Se na biblioteca do GPS
daqui existem romances
policiais, já começo a gostar do
GPS.
94
- Sabemos que o Senhor é
também escritor de romances
policiais.
- Apenas escrevi uns três...
- Editou-os?
- Por conta própria, um! E
nesse criei um detetive,
Arsênio Lobato.
- Alguma influência do Arsene
Lupin do escritor francês
Maurice Leblanc?
- Meu detetive não é ladrão, é
mulherengo.
- Lupin, no livro “A agulha
oca”, decifra o enígma desta
frase: “Retirada do volume PT
Camaradas partiram com ele
e aguardarão instruções até
95
oito horas manhã PT Tudo
bem PT”.
- Pelo visto você leu o livro.
- E o Senhor foi capaz de
decifrar o mistério contido
nesse enigma?
- Muito fácil.
- Muito fácil por quê?
- Por via do efeito burrice;
quando o PT entra num
negócio escuso deixa sempre o
rabo do lado de fora.
- !?!
- Pelo seu sorriso à moda
“Madona”, já vi que entendeu.
- O Senhor criou um só
detetive?
96
- Criei dois; há também o
Comissário Marximiano
Engels de Jesus.
- Que nome esdrúxulo!
- Em razão de o método de
investigação do Comissário
seguir a dialética dos elos
essenciais dos acontecimentos.
- Que significa isso?
- Promete desculpar-me se me
alongar na explicação? É que
envolve conceitos filosóficos.
- Que conceitos?
- A compreensão do mundo.
Seu desenvolvimento como
diminuição e aumento (ou
seja, evolução) ou como
97
unidade de contrários (ou seja,
revolução).
- Que isso quer dizer?
- Como diminuição e aumento
representa o evolucionismo
vulgar, e as mudanças são
quantitativas, de aumento e
diminuição.
- E da maneira dialética-
materialista, como ocorre o
desenvolvimento?
- Qualitativamente, como
resultado das contradições
internas de cada fenômeno;
tais contradições, uma vez
resolvidas por via de processos
revolucionários, produzem
saltos em qualidade.
98
- Muito palavrório.
- Na sua função de descobridor
das causas das ocorrências
policiais, meu comissário
Marximiano não perdia tempo
com os fatos exteriores das
ocorrências policiais – o quê?
onde? como? quando? – mas
sim com o interior de cada
ocorrência, em especial na
busca do elo essencial.
- Lá vem mais palavrório...
- Pensar é função superior das
pessoas capazes; constatar,
todos constatamos.
- Está a me chamar de vulgar,
eu, Provedor Celestial do
Senhor Deus Criador de
Todas as Coisas?
99
- Estou a informar sobre a
maneira de como o meu
comissário Marximiano
resolvia seus casos policiais.
- E ele os solucionava?
- No caso que meu livro
descreve, para o comissário
Marximiano o elo essencial
residia no “perfume de rosa”
que ele sentiu no interior do
carro de Mônica Lima e Silva,
que capotou, matando-a.
- Como fez tal dedução?
- Esse intenso “perfume de
rosa” deu ao comissário a
certeza de que Mônica era uma
mulher româtica.
- Sim. E daí?
100
- Os româticos vivem de
fantasias e ilusões; destarte,
Mônica jamais pensaria em
atentar contra a própria vida,
um gesto destituído de
qualquer sublimidade. O
desatre, portanto, não deveria
ser um desastre comum, talvez
uma ocorrência preparada...
para parecer desastre.
- Ja começo a entender:
alguém preparou o carro da
Senhora Mônica para ocorrer
um acidente, é isso?
- O começo da solução: se
existia um “alguém”, quem era
esse ou essa?
- Estou a entender. Daí a
importância de examinarem-
101
se os aspectos interiores dos
casos e não apenas responder
o quê? onde? quando? como?
- E o “perfume de rosa”
constituia-se em elo essencial.
- Romântica e ingênua, de
alguma maneira a Senhora
Mônica teria deixado o
“leitmotiv”. Mas de que
maneira?
- Pela mais comum das
maneiras, uma carta.
- Carta?
- Carta é a mais comum das
intimidades dos ingênuos.
- Mas a quem?
102
- Na psicologia de Mônica, ao
marido por quem era
obcecada.
- E o elo essencial para
encontrar tal suposta carta ao
marido era...
- O “perfume de rosa”.
- Por quê?
- Em que comum lugar os
românticos poem cartas
“secretas” para serem
obrigatória e posteriormente
descobertas?
- Todos os românticos agem
assim?
- Os suicidas românticos, para
vingarem-se entre aspas dos
objetos de seu afeto doentio,
103
ao cometerem suicídio
“acreditam” que vão produzir
nesses objetos sentimentos de
culpa.
- Na suposição ou eperança de
que poderá trazer o objeto do
afeto de volta a si.
- Isso. A morte material e
própria nunca é pensada como
morte real e sim como modo
de barganha.
- Daí a razão da existência de
uma carta da Senhora
Mônica.
- Já está pensando
dialeticamente.
- E o elo essencial será um
livro onde os românticos
104
escondem as coisas
destinadas a serem
descobertas?
- Exatamente.
- E a inter-relação dessa
conjectura com o “perfume de
rosa”...
- O livro “O Nome da Rosa”, de
Umberto Eco.
- E lá estava a carta da
Senhora Mônica ao marido,
na biblioteca da casa!
- Sim, no livro de Umberto
Eco.
- Os suicidas românticos são
bem engenhosos.
105
- Porque são instintivos e não
racionais. E como instintivos
aprendem que os únicos
segredos em segurança são os
não escritos; pois quando
escritos são para serem
descobertos.
- As coisas nunca são
assustadoras quanto parecem
se vistas por dentro.
- Outra deixa minha.
- Desculpe. Prossigamos.
- Levar adiante o quê?
- A feitura de sua fé-de-ofício.
- Meu prontuário?
106
- Sim, seu prontuário; mas
não no sentido que a polícia
dá a esse documento.
- Também aqui na casa do
senhor deus tem polícia?
- Se o ponto fraco dos
humanos fosse somente a
besteira, ninguém seria
condenado às penas do
Inferno!
- Isso é do “Auto da
Compadecida”, do Ariano
Suassuna. Uma fala do João
Grilo.
- Sei que é. Mas esses seus
“delírios” estão prenhes de
frases tiradas de livros!
107
- Mas eu avisei no começo:
Relembranças dos muitos
livros que li.
- Quer dizer, plágios.
- Plágio só se efetiva quanto o
trecho é ipsis litteris.
Aproveitar-se das suas ideias é
tudo que os escritores
desejam. Sinal de que foram
lidos e apreciados. E nesse
caso não acontece o sofisma da
“intenção presumível”...
- Li alhures que sem plateia, a
entrada é apenas uma
chegada; vimos isso no
julgamento do “mensalão”.
- E eu li em Mary Westmacott
que “um cachorro possui
108
extraordinária capacidade de
levantar o ego” dos homens.
- ?
- Porque “para o cachorro o
dono é um deus idolatrado”!
- ??
- E que “... o problema do
segundo filho é que é sempre o
anticlímax”!
- ???
- Que em geral o leitor olha o
começo do livro, percebe do
que se trata, salta para o fim
para conhecer o desfecho e
volta para o meio para saber
por quê.
109
- Noto que o Senhor está
sempre a fazer da vida
pilhéria.
- A vida é que não me leva a
sério.
- E observo também que o
Senhor é simpatizante do
partido dos trabalhadores...
- De jeito nem maneira! Errou!
O partido dos trabalhadores é
o asilo dos espiroquetas
salvados do derrotado partido
comunista.
- Do nosso Santo GPS recebi
informações de que o Senhor
escreveu um livro sobre sua
experiência como militante
comunista.
110
- Escrevi, mas nunca
publiquei.
- Por que?
- Não sei. O livro até que foi
elogiado pelos que tiveram
oportunidade de lê-lo.
- Pela veracidade do relato?
- Pela necessidade de se
criticar o comunismo, a grande
frustração de toda uma
geração. Servi ao partido
durante mais de quinze anos.
Por todo esse longo tempo
nunca me deram o direito,
nem a oportunidade, para
analisar e criticar.
111
- Mas o partido se
proclamava lutar contra a
ditadura e pela democracia.
- A fotografia da chamada
“vanguarda brasileira”, o
escritor Osvaldo Peralva a
divulgou no livro “O Retrato”.
- Temo-lo na Santa Biblioteca
da Guardamoria do Paraíso
Santificador.
- Peralva, e outros tantos
ingênuos, éramos apenas
auxiliares do comitê central.
- Que era quem mandava...
- Não. Quem mandava era a
comissão executiva.
- Então, decisões tomadas
coletivamente.
112
- Não. Quem concebia as
decisões era o secretário
político do secretariado
nacional composto de cinco
camaradas pertencentes à
comissão executiva.
- Luis Carlos Prestes era o
Secretário Político.
- Na prática, era Diógenes
Arruda, o “procurador” e
“porta-voz” de Prestes... que
estava escondido e ocupado na
prazerosa tarefa de fazer
filhos!
- E vocês os demais dirigentes
eram o quê?
- Éramos paus-mandados,
tínhamos que cumprir sem
discutir, fazer sem perguntar,
113
porque a razão das coisas
constituía privilégio do
secretariado nacional.
- Parecido com o que acontece
aqui na Casa do Senhor Deus;
só que aqui o Senhor Deus é
Onissapiente, e representa a
Verdade e a Vida.
- Também diziam isso lá.
- Quem figurava de “deus” no
partido comunista?
- Diógenes Arruda, vulgo
Bigode.
- Mas Luis Carlos Prestes era
o secretário-geral.
- Ele pensava que era, mas
Arruda manipulava-o. A
pretexto da segurança do
114
“cavaleiro da esperança”,
Arruda mantinha-o em
cativeiro numa fazenda nas
confundas do interior do
Brasil. Só Arruda sabia onde
Prestes estava escondido e só
Arruda comunicava-se com
Prestes.
- E os militantes não
protestavam?
- Militante, milita. Todas as
coisas do mundo têm seus
contrários e o contrário de
herói é filho bastardo. Os
militantes não passavam
disso: éramos todos filhos
bastardos.
- Mas pelo que consta nos
registros da Santa Biblioteca
115
do Paraíso, tanto Arruda
quanto Prestes foram
expulsos...
- É, foram expulsos do partido
comunista, como traidores!
- Quem então ficou a mandar?
- O partido quebrou-se tal
galho seco: sem seiva, e
bichado. Os impulsos
“mandonistas” de cada
dirigente da executiva nacional
levou-os a cada um fundar seu
próprio partido comunista.
- Isso lembra-me o sacerdote
agostiniano Martin Lutero e a
Reforma...
116
- Mas na reforma protestante
não surgiu nenhum Roberto
Freire, surgiu?
- A reforma protestante foi
contra o vendedor de
indulgências, Johann Tetzel,
que “pregava” que os pecados
podiam ser purgados por
meio das indulgências que ele
vendia...
- A sujeira no comportamento
humano é inerente à raça
humana.
- Só a Fé no Senhor Deus nos
poderá salvar!
- Na política partidária dos
homens não se pode ter amigo
com quem não se possa brigar,
117
nem inimigo com quem não se
possa fazer as pazes.
- Quem disse isso?
- Um destacado político
cearense. Dizia também: antes
da eleição voto em todos, no
dia da eleição voto num só,
mas depois da eleição digo que
votei no que ganhou!
- Pelo seu modo desabusado
de criticar, o Senhor se
considera superior!
- Com um metro e cinquenta e
oito de altura não posso ter a
veleidade de querer ser
superior a nada.
- O Senhor me obriga a fazer
uso de um lugar-comum: nos
118
pequenos frascos é que estão
os grandes perfumes.
- Adágio popular já fora de
moda. Quase tudo agora é
miniatura. O nano é a medida
elétrica do Século XXI, e dos
futuros tempos.
- Só o Senhor Deus nasceu
Grande, é Grande e
continuará Grande!
- Amém.
- O Senhor está a zombar de
mim?
- ...por outro lado, nano
lembra-me mano; o mano
médico, vinte anos antes de
morrer de câncer de próstata
escreveu um conto que ganhou
119
o “Premio Jabuti” de
Literatura, em o qual conto
descreve com pormenores os
padecimentos de um
personagem também vítima
mortal de câncer de próstata.
Não é isso intrigante?
- É premonição, um Dom que
o Senhor Deus dá a alguns
homens, por merecimento!
- No caso do meu irmão parece
castigo!
- Por que castigo?
- Porque meu irmão foi vítima
de padecimentos mui
semelhantes aos descritos por
ele com ironia no conto
premiado.
120
- ?
- Tal qual; até a cena
insignificante da sonda vesical
para captar urina direto dos
rins em virtude da obstrução
dos ureteres. Como no conto, o
coletor ficava amarrado ao pé
dianteiro da cama, para não
deixar o paciente ver a cor da
urina.
- Coincidências demais!
-As cenas de morte de meu
irmão e do personagem só são
desconformes numa situação:
sentindo-se no fim da vida o
personagem sentia
necessidade – talvez para não
pensar no seu próximo e
inevitável falecimento – de
121
divertir-se com qualquer coisa,
e na falta de algo risível, da
sacada do apartamento onde
residia, sorrindo contava os
carros que cruzavam as duas
pontes de Florianópolis e
imaginava um estória
engraçada para cada carro;
enquanto meu irmão, que
morava numa casa, jamais
aceitou sair do seu escritório,
que transformara em quarto.
- Seu irmão era médico de que
especialidade?
- Ginecologista e Obstetra. E
professor Universitário.
Deputado estadual pelo PDT,
nas horas vagas.
122
- O Senhor se dava bem com
seu irmão?
- Eu o considerava meu irmão
e o tratava com extrema
fraternidade; mas ele era
arredio e ácido comigo.
Quando meus filhos
criticavam-me por aceitar essa
desigualdade de tratamento,
eu respondia: sou irmão dele,
ele é que não me tem como
irmão; e isso é problema dele.
- Como o seu ídolo Freud
explica isso?
- Como a psicanálise explica,
não sei; eu compreendia e
tomava como forma de
rejeição.
- Rejeição a quê e a quem?
123
- O inconsciente do filho
desmamado capta o desmame
como consequência da nova
gestação em processo; e após o
nascimento do irmão ou irmã
transfere sentimentos de
rejeição para a criança recém-
nascida que o substituiu nos
generosos cuidados da mãe.
- É o caso do Senhor e seu
irmão médico?
- Pode ter sido o caso da
gratuita rejeição do meu irmão
médico, para comigo. Ele
nasceu em dezembro de 1921 e
eu devo ter sido gerado nove
meses depois, em setembro de
1922. De nove meses a um
ano, e às vezes mais, era o
124
tempo da amamentação
naqueles recuados tempos.
- Quando nada, uma
explicação lógica.
- Quando nada, uma
racionalização.
- Que o Senhor quer dizer com
“racionalização”?
- Conforme a definição do
Dicionário Houaiss: “processo
de caráter defensivo pelo qual
um indivíduo apresenta uma
explicação coerente ou
moralmente aceitável para
atos, ideias ou sentimentos
cujos motivos verdadeiros não
percebe”!
- Interessante isso!
125
- Também é assim aqui na casa
do senhor seu deus?
- Na Casa do Senhor Deus não
há lugar para rejeição. Aqui
tudo é Amor e Bondade!
- Há um apartamento vago
para mim?
- É para avaliar e decidir do
seu destino que os Santos
Auxiliares do Senhor Deus
estão a inquiri-lo.
- E se eu levar pau nos
exames?
- Vai para o Purgatório, para
purificar-se. A depender do
resultado do seu julgamento
poderá ou não viver a Vida
Eterna.
126
- Mais eu não quero viver a
vida eternamente; desejo
apenas completar o centenário
que tanto pode ser de
nascimento quanto de vida
vivida.
- Que significa isso de vida
vivida; há vida não vivida?
- Em termos psicanalíticos,
considera-se vida a vida
uterina.
- E também segundo os Santos
Princípios da Casa do Senhor
Deus.
- A proibição do papa ao
aborto...
- Com base no Sexto
Mandamento do Senhor Deus,
127
comunicado ao Povo de Deus
pelo Santo Profeta Moisés:
“Não matarás”.
- Quer dizer que Moisés
antecipou-se a Freud na
compreensão do começo da
vida?
- Foi o Filho do Senhor Deus,
Jesus Cristo, que estendeu o
significado dos “Dez
Mandamentos de Deus”.
- Quando garoto frequentei
por três anos a escola
dominical presbiteriana;
jovem, li a Bíblia ao lado da
História do PCUS; adulto,
rejeitei os absurdos da Bíblia;
mas agora ancião consulto-a
sempre que necessário. É o
128
livro mais antigo da
Humanidade; e o mais sábio,
sabendo-se lê-lo.
- O Senhor Jesus ao estender
as sumárias Leis de Deus à
intenção, completa em São
Mateus 5:28 os Santos
Mandamentos de Deus.
- Quer dizer, o homem não é
somente o que faz mas
também a sua intenção de
fazê-lo. Porque o pensamento
é a matéria do cérebro e o ato,
apenas realização. Isso é puro
Freud!
- E há também a tal “intenção
presumida” de que o Senhor já
nos falou.
129
- Reinvenção do presidente da
corte suprema acima da qual
nada mais existe.
- Ele pensa assim talvez por
influência do anjo rebelde
Lúcifer.
- Li alhures que deus não tirou
de Lúcifer seu poder angélico.
- Óbvio. Da mesma forma
como o Brasil não foi
descoberto pelo português
Pedro Álvares Cabral; o
Senhor Deus já o tinha feito
quando fez a Terra e o Céu.
- Mas está a ser “reinventado”
pelo sumo sacerdote das leis
brasileiras cuja pose e
aspiração aristocráticas
levaram-no a pescar até nas
130
águas turvas da constituição
fascista de Mussolini.
- Os culpados no processo AP
470 são inocentes?
- Os culpados do mensalão são
culpados!
- E por que o Senhor volta-se
contra quem os condenou?
- Volto-me contra quem
condenou sem prova nos
autos, com base na intenção
presumida ou na abrangente
dinâmica dos fatos.
- No seu entender o Senhor
José Dirceu não era o chefe?
- Era o Chefe da Casa Civil, e
como tal é difícil entender
desconhecesse a manobra de
131
poder do partido dos
trabalhadores em cuja
agremiação política Zé Dirceu
exercia efetiva liderança; mas
conhecer não quer dizer fazer,
praticar.
- Saber de um erro e nada
fazer para corrigi-lo é
compactuar com o erro.
- Moralmente, sim; mas não
do ponto de vista das leis
humanas, e, em especial, sem
provas nos autos.
- Todos os condenados foram
julgados à revelia das provas
dos autos?
- Apenas o considerado “o
Chefe”, Zé Dirceu. Por
pinimba pessoal do presidente
132
do tribunal que se vangloriou
ao proferir a sentença de
condenação: “Nada existe
acima de nós”.
- O que levou o Presidente da
Corte a atitudes tão
evidentemente ácidas para
com o Sr. José Dirceu?
- Aqui se permite imaginar?
- “Não farás para ti
imagem...”
- Não, não é isso. Refiro-me
aos possíveis motivos da
atitude hostil do presidente da
corte em relação ao Zé Dirceu.
- Na verdade, na verdade, na
casa do Senhor Deus estamos
a tentar entender esse
133
comportamento do Sumo
Sacerdote.
- Pedindo perdão por usar o
achismo, acho que por trás
dessa animosidade há uma
resposta.
- Uma resposta de quem e a
quê?
- Zé Dirceu, oriundo do
partidão, e nele educado,
assimilou como nenhum outro
o mandonismo vigente na
executiva do partido
comunista.
- Mas, pelos nossos registros,
o Sumo Sacerdote da Corte
Suprema nunca foi militante
do Partido Comunista.
134
- Imagino animosidades
surgidas devido a algum
comentário pouco lisonjeiro
do Zé Dirceu ao então
candidato a ministro da
suprema casa.
- Isso no tempo da indicação
do nome do Advogado para
compor a mais alta Corte do
País.
- Por esse tempo a lista de
candidatos a Ministro do
Supremo deve ter passado pelo
crivo do Zé Dirceu, que poderá
ter opinado contra.
- Só por isso?
- E também é sabido que Zé
Dirceu não é chegado à cor
preta... só à vermelha.
135
- Muito possível um
comentário desairoso do Sr.
José Dirceu contra a cor do
Advogado candidato.
- Daí a vendeta. Não está no
santo livro dos provérbios,
mas sei de um adágio popular
dos humanos que diz: “a
vingança é um prato que se
come frio”.
- As palavras do Santo Livro
dos Provérbios são palavras
de Deus!
- E o Zé Dirceu entrou numa
“fria”!
- Que é “entrar numa fria”?
- O ministro presidente deu-
lhe o troco com a subjetividade
136
da “intenção presumida”, e
carregou nas penas. Aliás, o
ministro encarna bem a figura
bíblica do “sumo sacerdote”.
- O Filho de Deus, Jesus
Cristo, não respondeu a
Pilatos. Aceitou o julgamento
e a condenação.
- Entre nós humanos grande
parte das pessoas sábias na lei
dos homens considera o
julgamento do mensalão um
ato político e não de justiça.
- Mas o Senhor acredita que
houve de fato tentativa do
Partido dos Trabalhadores de
permanecer no poder pelo
viés da compra de votos?
137
- Houve. Da mesma forma
como houve compra de votos
de deputados e senadores para
a manobra que tornou possível
no Brasil a reeleição para
presidente da república.
- Aqui na Casa do Senhor
Deus sabemos que manobra
semelhante foi também
perpetrada para transferir a
capital do País para Brasília.
- Em qualquer país dos
humanos as leis são pensadas
e feitas para favorecer castas.
- Por isso as leis dos homens
são falhas ou convenientes. Só
as Leis de Deus são Absolutas
porque Justas!
138
- Ora, se a negação da vida
está essencialmente contida na
própria vida, os fatos da vida
também.
- Que o Senhor entende como
“negação da vida”?
- A morte.
- Mas a morte pode vir a ser o
começo da Vida Eterna.
- A morte é sempre a
decomposição de organismos
vivos; de todos os organismos
vivos, e não somente do
homem.
- Está escrito: “Porque tu és
pó e ao pó hás de voltar"
(Gênesis. 3:19). Entretanto,
139
aos homens o Senhor Deus
deu-lhes uma Alma Imortal.
- Desde que se tome alma
como energia, concordo. Desse
ponto de vista, a energia dos
mortos sobrevive. Ou
transforma-se.
- “No princípio era o Verbo...”,
do Evangelho Segundo São
João.
- Aliás, o verbo está a ser
muito maltratado por escribas
oportunistas nestes tempos de
supremacia do “marketing”.
- Reconheço que a mágica da
Internet universalizou e
nivelou a mediocridade.
140
- Que pariu escritores de
sucesso tipo Paulo Coelho.
- Seu irmão médico, escritor
laureado com o “Prêmio
Jabuti” de Literatura, escrevia
bem?
- Contava histórias muito bem,
era engenhoso com o que
narrava, mas escrevia um
pobre Português.
- Mas pertencia a Academia
de Letras de Santa Catarina!
- Zé Sarnei faz parte da
academia brasileira de letras,
entretanto...
- Aqui na Casa do Senhor
Deus, seus Porta-vozes
Profetas e Evangelistas em
141
que pese terem sido pessoas
simples, inspirados pelo
Espírito Santo conseguiram
escrever corretos e bons
Textos Sagrados.
- A bíblia é mais um livro de
poesia do que de prosa.
- Qual o motivo de o Senhor
classificar assim o Livro de
Deus?
- Pela liberdade literária dos
livros da bíblia. Sem
compromisso com a realidade
objetiva.
- De que modo?
- Pelo uso excessivo de
parábolas e metáforas e
profecias.
142
- Mas as Parábolas e
Metáforas e Profecias foram
escritas em Hebraico Bíblico...
- Aí é que está: o hebraico
bíblico é o dialeto do
judaísmo.
- É a Língua de Deus!
- O hebraico bíblico difere do
hebraico moderno tanto na
gramática quanto no
vocabulário; até na fonologia.
Dialeto um tanto inventado,
quiçá oportunista, que poucos
dominavam, e assim não se
pode saber se os livros escritos
nesse hebraico foram bem
escritos à luz da gramática
hebraica moderna.
143
- Para o Senhor Deus,
escrever correto é escrever
segundo a Sua Santa
Verdade.
- É o que faz o Paulo Coelho; a
gramática coelhista não segue
regras de vernáculo nenhum
senão do dialeto de faturar
grana.
- Aqui na Santa Biblioteca do
Paraíso temos alguns livros
do Escritor Paulo Coelho.
- O que não honra a santa
biblioteca; o ex-presidente dos
Estados Unidos, Bill Clinton,
andava com um livro do Paulo
Coelho debaixo do sovaco...
- Por que o Senhor não usa a
palavra axila?
144
- Pelo mesmo motivo de um
antigo deputado federal por
Sobral usar fiofó em vez de
ânus.
- Que motivo?
- Ignorância. Certa vez o tal
deputado ao receber em casa
uma visita solene, para se
mostrar erudito e havendo
esquecido o termo ânus, na
presença da visita solene
perguntou alto e bom som ao
filho: - Menino, qual foi o
apelido que o médico botou no
fiofó de tua mãe?
- E de que doença sofria a
mãe?
- Hemorroida.
145
- É o mesmo deputado que se
hospedava no Hotel Serrador,
na Cinelândia?
- É outro. Embora ambos de
Sobral.
- Igualmente ignorantes?
- No Brasil, deputados e
senadores são políticos, não
precisam ser letrados. A
estória do Hotel Serrador não
envolve sinonímia, mas sim
concordância verbal.
Perguntado pelo viva-voz da
recepção do Hotel em que
estava hospedado quem era
fulano de tal dos anzóis, gritou
lá da sua poltrona no hall de
entrada: É eu!
146
- Aqui na Santa Biblioteca da
Casa do Senhor temos todas
as gramáticas de todas as
línguas da Terra.
- Até do cearês?
- Do linguajar cearense temos
dois dicionários e um
vocabulário.
- Conheço o “Orélio Cearense”,
de Andréa Saraiva e o
“Dicionário Cearense”, do
Marcus Gadelha.
- O “Vocabulário Popular
Cearense”, do professor
Raimundo Girão, é um livro
de grande responsabilidade,
criteriosa compilação feita
com base em abundante
leitura e muito estudo dos
147
bons mestres da língua
portuguesa.
- O Ceará tórrido e hostil e
flagelado compensa-se ao
tentar ser “um corpo com
células de criatividade por
todos os lados e um grupo de
células de humor por todo o
corpo”, como escreveu
Cândido Neto na orelha do
“Orélio”.
- Os cearenses estão até a
pleitear terem um Santo
próprio ...
- Sei disso. Meu santo padim
pade ciço. Poderoso chefão!
- Mas há muitas dúvidas na
Santa Comissão de Querubins
responsável pela apuração da
148
conduta e dos milagres
necessários à Santa
Beatificação. Dúvidas sobre
certos atos praticados ou
consentidos pelo referido
Padre.
- Em Jaguaruana, minha terra
natal, propala-se à boca
pequena a respeito de um
pacto do padim ciço com
Lampião.
- A Santa Comissão de
Querubins jamais apurou a
veracidade de tal acusação.
Ao contrário, apurou que o
Padre Cícero Romão Batista,
em vez de armas e munições
deu Santos Rosários a
Lampião e seus asseclas,
advertindo-os de que só
149
utilizassem os Santos
Rosários depois de largarem o
cangaço.
- Mas Lampião foi promovido
a capitão pelo governo!
- Foi. Mas não pela deputado
Floro Bartolomeu nem por
influência do Padre Cícero e
sim pelas mãos do funcionário
público Pedro de Albuquerque
Uchoa, integrante do
batalhão patriótico criado
pelo governo federal para
combater a Coluna Prestes. A
Coluna Prestes foi um
brilhante feito estratégico e
tático!
150
- A coluna Prestes foi a
primeira grande ilusão e erro
de Luis Carlos Prestes.
- Houve outras ilusões e
erros?
- A quartelada de 1935. Que
representou três grandes
mentiras e nenhuma verdade.
- Aqui na Casa do Senhor
Deus estamos interessados em
compreender razões
humanas.
- As três mentiras: primeira,
Antônio Maciel Bonfim, nome
de guerra Miranda, era
secretário geral do PCB no
tempo da quartelada de 1935.
Nessa qualidade, inventou e
enviou informações para o
151
Komintern (Terceira
Internacional) sobre a situação
pré-revolucionária no Brasil
de 1935. Louvado nessa
invencionice de Miranda, o
Komintern despachou Prestes,
que estava em Moscou, de
volta ao Brasil para liderar o
partido e assumir o comando
da revolução socialista.
- E as outras duas mentiras?
- Que o movimento de massa
da pequena-burguesia
denominado Aliança Nacional
Libertadora não estava, como
informara Miranda à Moscou,
a ser dirigido pelo partido
comunista; era um movimento
popular capitaneado pelos
remanescentes do tenentismo
152
da Revolta dos 18 do Forte de
Copacabana (1922), da
Comuna de Manaus e Coluna
Prestes, ambas revoltas de
1924.
- E a terceira mentira?
- Antônio Maciel Bonfim,
vulgo Miranda, que se tinha
secretário geral do PCB, não o
era, e talvez nunca o tenha
sido. Luis Carlos Prestes de há
muito já fora cooptado pelo
Komintern para assumir o
cargo de secretário geral, e foi
nessa condição que Prestes,
desprezando e isolando
Miranda e seu grupelho,
assumiu a direção do partido e
o comando da quartelada de
1935.
153
- Mas isso não é uma mentira,
é um fato histórico.
- A grande e preocupante
enganação é o fato de o Prestes
ter sido nomeado, por Moscou,
chefe de um partido da classe
operária sem nunca ter sido
operário e nem ao menos
militante de qualquer outro
partido operário.
- Atitude de menoscabo para
com os comunistas
brasileiros!
- E evidência do “dedo de
Moscou”.
- Vladimir Lenin, Mao
Tsetung, Ho Chi Minh e outros
dirigentes de revoluções
socialistas vitoriosas também
154
não eram operários...
Descendiam da pequena-
burguesia.
- Mas todos eles militaram por
muito tempo nos partidos
comunistas de seus países, e
foram escolhidos chefes pelos
comunistas de seus países; o
vietnamita Ho Chi Ming, por
exemplo, foi um dos
fundadores do Partido
Comunista Francês.
- E a única verdade?
- A única verdade é que o
materialismo-dialético de Luis
Carlos Prestes não passava de
metafísica-kantiana. A grande
paixão de Prestes sempre foi a
matemática; Prestes
155
acreditava que o número é real
tal como existe em si mesmo.
Tanto que na prisão da Rua
Frei Caneca, onde passou mais
de dez anos numa cela isolada,
estava a escrever um
compêndio... de matemática!
- Só por isso?
- No fundo, todas as atitudes
de Prestes à frente do PCB
possuem caráter messiânico,
de salvador do Brasil; para
Prestes quem errava era o
partido e não ele.
Inconscientemente se julgava
um messias...
- Aqui na Casa do Senhor
Deus nós sabemos que é fácil
falar na terceira pessoa. E
156
quanto à atuação do Senhor
no Partido Comunista?
- Sempre fui sub, do quarto
escalão.
- Que isso significa na
prática?
- Posso pedir um tempo?
- Que é pedir um tempo?
- Um interregno, uma pausa,
descanso.
- O Senhor está a se sentir
cansado?
- Ao contrário, receio que
possa estar a cansar...
- Os Santos Arcanjos nunca
cansam, estamos
acostumados, a Humanidade
157
é complexa demais, e
problemática. Está sempre a
carecer dos cuidados dos
Eleitos do Senhor Deus.
- Somos um saco, né?
O burocrata mor, ou seja, o
Arcanjo Encarregado do Setor
Histórico-Social da Casa de
Deus que se sentara a meu
lado numa cadeira especial de
alumínio, que abria e fechava
sob pressão, e a trouxera
consigo debaixo do braço –
lembrei-me imediatamente do
genial e esquisito pianista
Glenn Gould, o qual sempre
portava consigo, para os
concertos que dava, cadeira de
158
modelo igual –, o gentil e
paciente Arcanjo levantou-se,
fechou a cadeira, tomou de sua
pasta de executivo,
cumprimentou-me com
vigoroso aperto de mão e
dirigiu-se à sede do palácio
celestial.
E desse palácio surgiu outro
Arcanjo. Dirigiu-se a mim.
Esperei. Anunciou-se:
- Sou o Arcanjo do Senhor
Deus Encarregado dos
Assuntos Sindicais.
- Até aqui?!?
- Até aqui o quê?
159
- Mas você não pertence ao
partido dos trabalhadores,
pertence?
- Não entendo o que o Senhor
quer significar com partido
dos trabalhadores.
- Nem eu. Trabalhador é quem
trabalha, é parte da relação de
produção, é a parte explorada
que ganha enquanto a parte
que explora é a que paga.
- O Senhor não está a trocar
os termos?
- Talvez. Porque a mais-valia é
o tanto da exploração, mas
valia mais que a exploração
fosse maior a fim de os
explorados ganharem mais...
160
- Muito confuso!
- É confuso, sim. Vou tentar
explicar: para produzir dada
mercadoria há que se ter
meios de produção ou
ferramentas de trabalho.
Porém tais meios eles por si só
não produzem mercadorias
nem riquezas, necessitam de
alguém que os manipule; a
esse alguém chama-se de
trabalhadores ou força de
trabalho. Essa operação custa
dinheiro, e então surge
necessariamente o capitalista,
que é aquele que tem o
dinheiro e paga, mas não faz
parte da relação de produção...
- Aqui na Casa do Senhor
Deus não há dinheiro e nem
161
força de trabalho; todos
temos tarefas e funções. E o
Senhor Deus é nosso Pastor,
por isso nada nos falta!
- Mas lá de onde vim não é
assim. Muitos trabalham para
poucos, os poucos ganham
muito e os muitos que
trabalham ganham pouco.
- Mas isso é injusto!
- E perverso.
- Quem criou esse jogo injusto
de relacionamento?
- Quem criou todas as coisas
dos céus e da terra?
- O Senhor Deus é o Criador
dos céus e da terra. Está
escrito no Livro Santo do
162
Senhor, no Segundo Capítulo
do Primeiro Livro de Moisés,
Versículo quatro.
- Portanto...
- Com a desobediência de
Adão e Eva o Senhor Deus
criou o trabalho: “No suor do
rosto comerás o teu pão.”
- Até que enfim descobri quem
inventou o trabalho...
- Mas quem se apropriou da
força do trabalho foram os
bolchevistas...
- Concordo inteiramente. Para
os bolchevistas o trabalho é
um dever social, quem não
trabalha não come, estava no
163
preâmbulo da constituição da
união soviética.
- Isso devido à
desobediência...
- Mas só a partir dessa
desobediência pode o homem
ser fecundo e crescer e
multiplicar-se, como, aliás,
tinha ordenado Deus em
Gênesis 1:21 antes da
desobediência...
- O Senhor está a fazer
confusão... talvez com algum
propósito.
- Com o propósito de
compreender e desfazer a
confusão que não foi criada
por mim.
164
- Já me haviam prevenido de
que o Senhor é comunista,
ateu.
- E à toa.
- É à-toa, como consta do
“Novo Manual de Português”,
de Celso Luft, ou à toa?
- Agora, depois do novo acordo
ortográfico, de janeiro de
2009, o hífen foi eliminado, a
forma correta é, pois, à toa.
- Estar à toa significa estar a
esmo, sem fazer nada, não é?
- Correto. Dei-lhe o significado
de estar a vagabundar.
- O Senhor não tem ocupação?
165
- No Brasil, depois dos
noventa anos de vida nossa
única pré ocupação de
macróbios é nos manter vivos!
- Mas as falas de todos os
governos brasileiros que
temos arquivadas no Arquivo
Celestial do Senhor Deus
dizem da preocupação das
Autoridades com os anciãos.
- Mentira deslavada!
- Essa mentira deslavada
ocorre em todos os países do
mundo?
- Não. Só no Brasil, porque só
no Brasil a velhice é uma praga
que precisa ser combatida e
eliminada.
166
- Por que uma praga?
- Pela paga...
- Isso é um trocadilho?
- É uma aliteração.
- Repito a pergunta: por que
no Brasil a velhice tem que ser
eliminada?
- Porque alegam que custamos
muito aos planos de saúde,
pesamos demais no orçamento
da união e dos estados, e,
quando mais precisamos nos é
negada assistência médica de
qualidade. Aliás, os próprios
médicos preferem nos ver
longe de seus consultórios.
- Observo que o Senhor
reclama demais. Não foi por
167
acaso que me preveniram que
o Senhor é comunista.
- Não sou, fui; nem para ser
comunista sirvo mais.
- O Senhor é comunista desde
jovem?
- Desde quando tive
conhecimento de que no
regime comunista cada pessoa
seria obrigada a produzir
riqueza de acordo com sua
natural capacidade, mas só
receberia benefício na
conformidade de suas
necessidades.
- Se é assim, então aqui na
Casa do Senhor Deus temos o
comunismo!
168
- Se é assim, então aqui é o
único lugar do universo onde
se pratica o comunismo.
- A União Soviética não era
um país comunista?
- Não. A URSS foi um país
socialista.
- E qual é a diferença entre
comunismo e socialismo?
- No socialismo, cada pessoa é
obrigada a produzir riqueza de
acordo com sua natural
capacidade, mas recebe
remuneração correspondente
a essa capacidade.
- Não percebo a diferença.
- Nota-se que você é
sindicalista. No Brasil o
169
sindicato é uma organização
dirigida por uma pessoa
“esperta” – o presidente – que,
em geral, perpetua-se no
cargo; vive às custas dos
trabalhadores associados e do
imposto sindical obrigatório.
Os marxistas chamamos-lhes a
eles de “lúmpemproletários”.
- As pessoas associadas ao
sindicato pagam imposto
para ser do sindicato?
- E não só o imposto sindical
senão também uma
mensalidade que é descontada
na magra folha de pagamento
mensal do trabalhador; e, nos
acordos trabalhistas, generosa
percentagem é ainda
170
malandramente incluída a
favor dos sindicatos.
- Para que esses pagamentos?
- Para que os presidentes e
diretores dos sindicatos
tenham automotores de luxo,
viagem, às vezes com a família,
a pretexto de congressos de
trabalhadores; com todas as
despesas pagas e...
- Ainda tem mais?
- ... e, sem despender um
centavo, sejam candidatos a
cargos eletivos nas casas
legislativas!
- O Senhor é trotskista?
- Sou marxista anarquista.
171
- Anarquista é o mesmo que
ser anarquizado?
- Anarquista, segundo a
definição do dicionário
Houaiss, é quem “sustenta a
ideia de que a sociedade existe
de forma independente e
antagônica ao poder exercido
pelo Estado”.
- E o Estado o que é?
- No Brasil o estado é uma
engenhosa e complexa e
multifacetada engrenagem
para cobrar impostos.
- Só para isso?
- No Brasil, maiormente sim.
- Não serve para mais nada?
172
- Para enriquecer a casta que
estiver no poder.
- Casta?
- De caráter hereditário.
- Determinado por genes?
- Transmitido por sucessão. O
presidente, no fim do seu
mandato, escolhe seu sucessor
o qual, no fim do seu período
de governo, entrega de volta a
presidência ao anterior
presidente, até ambos
completarem curtos períodos
de vinte anos. Getúlio,
militares, petistas...
- Petistas é o quê?
- Rescaldo do finado partido
comunista.
173
- Esse comunismo parece
onipresente.
- Quem é onipresente é a
miséria!
- Desde quando o Senhor é
comunista?
- Para usar uma metáfora
psicanalista, desde o útero de
minha mãe. Mundanamente,
desde a década 40 do Século
passado. Entrei no PCB em
1946.
- Foi compelido, catequizado
ou cooptado?
- Fui por vontade própria. Na
rua em que eu morava,
defronte de minha casa havia
uma célula do partido
174
comunista então na legalidade.
Faz muito tempo, mas ainda
me recordo do nome: Célula
25 de Março. Por mera
curiosidade atravessei a rua e
fui assistir a uma reunião.
- Impressionou-se com o que
ouviu!
- Impressionei-me com o baixo
nível teórico dos comunistas.
Então eu já lera alguma coisa
de Lênin, lera o “Manifesto
Comunista” de Marx e a
“Dialética da Natureza”, de
Engels.
- Os membros da célula não
discutiam os princípios
marxistas?
175
- Os membros daquela célula o
máximo que sabiam era o
nome de Stalin; ignoravam até
o seu prenome, Iosif...
- Discutiam então o quê?
- Nada. O secretário político da
célula lia um papel em que
estavam arroladas tarefas, e
distribui-as entre os
participantes.
- Tarefas de educação
política?
- Tarefas de passar rifas,
vender os jornais do partido,
fazer pichação em muros,
comparecer às manifestações
públicas programadas pelo
comitê estadual ou municipal
ou distrital do partido; essas
176
coisas práticas do cotidiano
partidário.
- O Senhor aceitou alguma
tarefa?
- Foi aí que começou tudo: no
fim da reunião, a pessoa que a
presidira dirigiu-se a mim,
agradeceu a minha presença e
perguntou se eu gostaria de
colaborar.
- E o Senhor?
- Respondi: por que devo
colaborar? Com o quê? Para
que fim? Qual era o objetivo
político das tarefas? Por
exemplo: a pichação da
palavra de ordem “Abaixo a
ditadura de Dutra”. Ora, o
presidente Eurico Gaspar
177
Dutra tinha sido eleito em
escrutínio legal e legítimo e
democrático, eleição realizada
sob a supervisão do tribunal
eleitoral.
- Que respondeu o presidente?
- O secretário político
argumentou que o General
Dutra era remanescente da
ditadura de Vargas, fora seu
Ministro da Guerra. Respondi:
mas o partido comunista
participou da campanha
“Queremos Getúlio”.
- Verdade histórica.
- Perguntei: os senhores aqui
não discutem e analisam as
tarefas que recebem da direção
do partido? O secretário
178
político respondeu: discutimos
o modo de como realizar as
tarefas. A razão política das
tarefas compete à direção do
partido.
- Aqui na Casa do Senhor
Deus também não discutimos
as missões que recebemos
porque o nosso Deus e Senhor
é onisciente e, assim, infalível.
Não erra nunca!
- Os comunistas também
pensavam assim com relação
ao “pai” Stalin, a quem
consideravam sábio e infalível.
Houve até aquele célebre
telegrama de Prestes a Stalin,
chamando-o de Guia e Pai dos
comunistas do mundo inteiro.
179
- No caso desse telegrama de
Prestes, era culto à
personalidade de Stalin,
bajulação; no nosso caso em
relação a Deus é Devoção, Fé,
Crença.
- Aí eu respondi ao secretário
político da célula: uma palavra
de ordem é uma conclamação,
e uma conclamação só pode
ser estabelecida se
corresponder à realidade, se
mantiver relação com as
necessidades de
desenvolvimento de uma dada
sociedade, se estiver em
consonância com as condições
objetivas existentes no
momento, e se puder ser
compreendida pela massa a
180
quem é dirigida; senão vira
palavrório.
- Em um livro escrito por um
comunista li: “A prática sem a
teoria é cega; a teoria sem a
prática é inoperante.”
- Então você leu a “História do
PCUS” que, enganosamente,
se propalou ser da lavra de
Joseph Stalin?
- E não foi?
- Nunca foi. Stalin apropriou-
se de um manuscrito da
“História da Revolução”,
produzido por Lev Kamenev,
Nikolai Bukharin e Grigori
Zinoviev.
- E assumiu a autoria?
181
- A bem da verdade, não
assumiu, mas depois que
expulsou do partido esses três
companheiros, e mandou
assassiná-los, deixou que os
puxa-sacos atribuísse a ele a
autoria da “História do PCUS”.
E é nessa “História”, onde há
um capítulo sobre teoria e
prática, que está a frase citada
por você.
- Vamos continuar...
- Sim. O secretário político
saiu com a generalidade de
que no Brasil a luta política era
pela completação da revolução
democrático-burguesa, para
por fim aos resíduos feudais
ainda existentes.
182
- Compreensão mecanicista
baseada na teoria do
materialismo histórico a
respeito do determinismo na
sucessão das etapas de
desenvolvimento das
sociedades.
- Teoria que Lênin houvera
espatifado com a tomada do
poder num país de maioria
camponesa, e com imensos
restos feudais; a contrariar
também, e destarte, a Segunda
Internacional que sustentava
que a tomado do poder só
poderia acontecer nos países
da Europa aonde se haviam
completado a revolução
democrático-burguesa.
183
- A historia do
desenvolvimento social é
sempre um vir a ser.
- !?!
- Seu espanto talvez decorra
de o Senhor julgar que os
cristão são metafísicos. Do
ponto de vista do
desenvolvimento da História,
somos evolucionistas. O Livro
de Deus mostra que os
cristãos são evolucionistas.
- Oportunistas. A trajetória da
igreja romana, de adaptação
dos seus rígidos dogmas aos
hábitos e estágios de
desenvolvimento das várias
sociedades, comprova a
184
assertiva. Mas o mesmo já não
ocorre com o judaísmo...
- O que o Senhor quer
significar como “judaísmo”?
- Civilização e cultura judaicas;
as crenças religiosas, dogmas e
rituais praticados no Estado de
Israel de hoje, dogmas e
rituais que diferem do
islamismo dos povos do
Oriente Médio e do
catolicismo da América Latina.
- O Senhor Deus e seu Único
Filho estão muito
preocupados com a situação
no Oriente Médio.
- Que situação?
185
- De guerras e destruição. As
terras por onde Jesus Cristo
passou e as cidades em que
viveu e pregou a Palavra de
Deus estão sendo destruídas...
em nome do próprio Senhor
Deus!
- A bestialidade humana está a
ir além da crueldade dos
primatas, dos quais
descendemos.
- O homem é criação do
Senhor Deus!
- A psicanálise de Freud fala
dos instintos de vida e de
morte comuns a homens e
animais selváticos...
186
- O homem não descende dos
animais selváticos, é criação
de Deus!
- Você refere-se à criação do
mundo segundo o absurdo do
Gênesis?
- Sim. Mas absurdo, não!
- Meu professor na Escola
Dominical da Igreja
Presbiteriana de Fortaleza,
diante do nosso espanto com a
sumarização quase mágica do
Gênesis sobre a formação do
Universo...
- Quando a Palavra de Deus
em Gênesis diz que “em
princípio criou Deus os céus e
a terra” está a querer
significar que criou um corpo
187
celeste, o planeta Terra. Está
no versículo 10 do primeiro
capítulo do Livro Gênesis.
- ... na verdade meu professor
ensinava que a palavra usada
nas sagradas escrituras foi
“Bereshit” e não “Bareshit”;
“Bereshit” quer significar “Em
princípio”, enquanto
“Bareshit” significa “No
princípio”.
- E seu professor está certo.
Aprendemos na Escola
Superior de Teologia da Casa
do Senhor Deus que a
preposição usada no Livro do
Gênesis foi “bet” (Em) e não
“bat” (No).
188
- Meu professor ia mais longe:
a palavra “Bereshit” em
hebraico é formada pelo verbo
“Reshit” com a preposição
“Bet”; esta preposição possui o
significado de “criar do nada”.
Ou seja: “Em princípio...
- Mais uma vez correto. Tem
sentido lato de “mais ou
menos”, “ pode ter sido
assim”.
- O professor dizia que a
preocupação do Livro do
Gênesis fora moral, e não
cosmogônica.
- Concordo. O versículo 1 do
Capítulo 1 da Palavra de Deus
deve ser entendido como
189
“pode ter sido assim” ou “mais
ou menos assim”.
- Até que enfim concordamos
em alguma coisa.
- Esse texto não é o mais
antigo das Sagradas
Escrituras, é até o mais
recente, tem cerca de 2700
anos. Nesse tempo, se algum
autor escrevia “Em princípio”
estava a querer chamar a
atenção para o uso de signos,
do simbólico (“Era uma
vez...), do que para o texto
como narração.
- Tanto que a descrição no
Gênesis mais parece uma
canção; tem até refrão: “Foi a
190
tarde e a manhã do primeiro
dia.”!
- “Foi a tarde e a manhã do
segundo dia” quando se criou
“os céus e a terra”.
- “Foi a tarde e manhã do
terceiro dia”, quando a Terra
começou a produzir.
- Nesse tempo, a indústria
fundamental era a olaria.
Tudo era feito de barro.
- Por outro lado, deus criou
tudo tão só pela “palavra” (o
“Dabar” hebraico, o “Logos”
grego, o “Verbo” latino)! Da
boca prá fora, como o povo
diz.
191
- Mas o Senhor Deus
condescende em ser oleiro,
mergulha as mãos no pó da
terra e esculpe Adam, que em
hebraico quer dizer
Humanidade.
- E beija esse homem-
humanidade para lhe soprar o
hálito de vida, o vento de deus,
o “ruah” hebraico.
- Certo!
- Mas, por favor, agora me
permita um ato de afeto e
justiça: aprendi tudo isso com
o emérito professor em
teologia, Ricardo Labuto
Gondim, em homenagem a
quem tiro meu boné de couro
de preá.
192
- Devolver a Cesar o que é de
Cesar.
- Dar ao autor de “Deus no
Labirinto” o mérito de ter-me
esclarecido sobre o aparente
absurdo do “Gênesis”.
- Na verdade, essa é a
simbologia por trás do Texto
Sagrado do Gênesis!
- A Humanidade é a mais alta
expressão do desenvolvimento
da matéria!
- A Humanidade é a mais alta
expressão do Amor de Deus!
- Mas não passamos de um
vaso de barro... de esperanças.
- A Humanidade é depositária
do “ruah” de Deus. Como cada
193
parte de Deus é o todo em si,
cada pessoa tem dentro de Si
a Luz do Criador.
- Daí a evolução qualitativa do
gênero humano, que supera o
lema do “olho por olho”
subtraído do código de
Hamurabi.
- Daí a beleza inconversível e
talvez inapreensível do “amai
os vossos inimigos”.
- Mas o fundamentalismo, que
é expressão da ortodoxia,
destrói a beleza do afeto, que
só foi resgatava e recriada
com Sigmund Freud.
- E como esse pseudo
recriador entende a beleza do
afeto?
194
- Segundo meu amigo Victor
Andrade, só no útero materno
o ser humano (ainda feto) vive
o estado de “narcisismo”
(felicidade) total e absoluto.
- O estado de felicidade total e
absoluta só se pode viver aqui
na Casa do Senhor Deus!
- Meu amigo e cientista Victor
diz que o nascimento do feto –
a arrancada abrupta do estado
nirvânico total e absoluto – irá
subverter o estado nirvânico
do bebê, que então inicia “um
movimento selfcentrífugo na
direção dos órgãos mais
diretamente estimulados
durante o nascimento –
coração e pulmões, além da
pele” – como, aliás, ocorre em
195
toda situação de sofrimento
físico.
- Muito complicado!
- A vida humana é que é
complexa. E sofrida desde o
nascimento.
- De fato o Senhor Deus havia
previsto esse sofrimento...
- O senhor deus decretou o
sofrimento da mulher e não do
feto. Em Gênesis 3:16 está
escrito: “Multiplicarei
sobremodo os sofrimentos da
tua gravidez; em meio de
dores darás à luz filhos.”
- Esse sofrimento decorre da
desobediência; que se não
196
verifica no ser em estado de
gestação.
- Justificação supérflua. Não
aceito. Prefiro a explicação do
meu amigo Victor Andrade:
“A saída do ambiente aquático
e bem delineado do útero e o
lançamento em um ambiente
aéreo e não delimitado
provocarão uma sensação de
desintegração...”
- Desculpe-me. Estamos a
esquecer a finalidade desta
inquirição.
- Nos sindicatos o comum é
falar abobrinhas...
197
Com essa provocação o
Arcanjo Encarregado dos
Assuntos Sindicais levantou-
se, pegou sua mala de
executivo, revestida de couro
de carneiro, pôs no bolso do
lenço os óculos de leitura com
armação de casco de tartaruga,
endireitou a gravata estilo
italiano, voltou-se e se dirigiu
à sede da Casa do Senhor.
Fiquei a pensar: as coisas
celestiais assemelham-se
bastante com as coisas
terreais.
E da suntuosa Casa de Deus
saiu um senhor de vasta
cabeleira, cara de santo e jeito
de Maestro ou cara de Maestro
198
e jeito de santo, redundância,
por isso que todo Maestro tem
a parecença de condutor de
almas, intérprete que é de
criações alheias (como se dele
fossem), sentenciador do
tempo e do ritmo e da
intensidade das obras
musicais dos grandes
compositores eruditos. E
muito mais: julgam-se
“ministros” em corte suprema
das intenções presumidas da
escrita musical – acima dos
quais, acreditam, nada mais
existe (remember Hebert Von
Karajan) – uma vez que se
têm intérpretes absolutos da
Obra Musical.
199
- Você deve ser o querubim
encarregado da música
celestial, não é?
- Errou! Não sou Querubim,
sou Santo, que é uma
categoria superior; sou o
“Kapellmeister” da Casa do
Senhor Deus.
- Quer dizer, não é um
“kapellmeistermusik”
qualquer?
- Não existe um
“kapellmeistermusik”
qualquer, todos os Maestros
somos Regentes de
Orquestras.
- Desculpe-me, estava a
referir-me a músicos sem
200
imaginação. Que nesses
tempos de agora pululam...
- Aqui na Casa do Senhor
Deus só tocamos música
erudita.
- Erudito ou eruditismo?
- A música que se executa aqui
na Casa do Senhor Deus segue
as regras de composição
greco-romano, aliás, normas
concebidas por inspiração do
Espírito Santo...
- Missas, réquiens e oratórios,
coisas assim?
- Não!
- Releve-me a ignorância, mas
eu nuca entendi essa tripla
201
divisão para músicas de
caráter litúrgico.
- Porque não estudou direito.
Missa é uma composição que,
em geral, divide-se em três
partes: Primeira parte, Kyrie,
Gloria in excelsis e Credo;
Segunda parte: Santus e
Benedictus; e, Terceira parte,
Agnus dei.
- E réquiem?
- Réquiem é a música
composta com a finalidade de
fazer parte do ofício dos
mortos, e principia sempre
com o “réquiem aeternum
dona eis”. Não segue a liturgia
das Santas Missas.
202
- Expressão latina que
significa...
- Em Portugês significa “Dai-
lhes o Repouso Eterno”.
- Enquanto oratório...
- Oratório é um conjunto de
peças musicais sobre assuntos
religiosos de cunho
dramático, assuntos quase
sempre tirados da Bíblia
Sagrada que é a Palavra do
Senhor Deus.
- Músicas para serem
executadas nas igrejas.
- Não. Errou! Músicas para
serem tocadas fora das
Santas Igrejas, em teatros e
203
auditórios sem qualquer
cenário nem vestes litúrgicos.
- Criadas no período barroco.
- Não. Músicas que se
contrapõem ao recitativo
estático em o qual o conjunto
musical serve apenas de
acompanhamento ao Bel
Canto.
- Obra revolucionária, o
Maestro Harnoncourt...
- O Maestro Nikolaus
Harnoncourt referiu-se à
música barroca como
“requintada e esotérica”, e ser
ela “o ponto final e culminante
da evolução de quase dois
séculos”. E o que evolui não
revoluciona.
204
- Pois. É justamente por
representar “ponto final” de
uma etapa que dá caráter
revolucionário à música
barroca: por isso que o “ponto
final” de uma mesmice
enfadonha.
- Com o barroco a música
deixou de ser apenas canção e
dança. Evoluiu, não
representou movimento de
revolta. Não destruiu nada.
- Mas na França e na Itália o
barroco expressou-se como
uma arte autônoma, que iria
resultar na elaboração da
sonata e do concerto; e
mais tarde, da sinfonia. A
música saiu das igrejas e
invadiu os salões.
205
- Não. O Senhor está mais
uma vez equivocado. A
música jamais saiu das
Santas Igrejas; a música
passou a ser também
executada em salões feudais e
nas salas públicas destinadas
para concertos musicais:
anfiteatros, teatros,
auditórios etc. Movimento que
não eliminou, acrescentou;
evoluiu, portanto.
- Evolução, para usar sua
palavra, que representou o
adeus aos cantos gregorianos,
e foi quase sua extinção...
Surgiram os instrumentos e
com esses os conjuntos
musicais.
206
- Algumas Santas Igrejas dos
anos 900 dC já adotavam o
“organum”, que adicionou ao
cantochão uma ou mais vozes.
- Mas “organum” não é o
instrumento que se conhece
hoje pelo nome de “órgão”.
- Não, não é; repito:
“organum” é a natural
evolução do cantochão. Com a
adição de outras vozes e
alguns ritmos.
- Não se pode precisar quando
surgiram os instrumentos
musicais. Entretanto o
Maestro Harnoncourt
considera possível que a “...
simples imitação sonora de
207
ruídos de animais” canoros
possa ter sido a origem.
- Talvez por isso, por tentar
imitar a Santa Natureza
criada pelo Senhor Deus é que
os instrumentos antigos
possuíam sonoridade
diferente, com timbres
agradáveis ao ouvido...
- Peraí, pelo que aprendi com
meus poucos estudos de
Física, timbres são dados fixos
de cada tom musical, e
específico para cada
instrumento. Um Fá
produzido por um violino cria
uma dada estrutura de
harmônicos, mas o mesmo Fá,
se gerado pela flauta, cria
outra estrutura de
208
harmônicos; embora ambos os
tons sejam a nota Fá.
- Sim, mas os instrumentos
musicais de um mesmo tipo
podem soar diferentes e
possuir caráter próprio; isso
ocorre devido a sua mecânica
de fabricação.
- Mas você disse que os
instrumentos antigos tinham
timbres agradáveis, e não é
bem assim.
- Então por que é?
- Primeiro, nem todos os
instrumentos musicais antigos
possuíam timbres eufônicos;
segundo, porque timbre é
resultado, representa o som
característico de um dado
209
instrumento, é a expressão da
curva harmônica de cada tom
de um dado instrumento.
- Observo que o Senhor está a
querer ensinar Padre-Nosso a
vigário. Seja. De fato, um
violino Stradivarius soa mais
agradável do que um violino
moderno. Daí custarem tão
caro.
- Não. Não soam
obrigatoriamente “mais
agradável e, se custam mais
caro, deve-se ao fator raridade;
a raridade é um dos
componentes que produzem
os preços. Mais raros os
objetos de arte, mais caros.
210
- Todos os violinos, quando
emitem uma nota Fá, estão a
criar igual estrutura
harmônica.
- Agora chegou a minha vez de
esclarecer! Um Fá produzido
por um violino moderno soa
diferente (mas não
necessariamente melhor) de
um Fá produzido por um
Stradivarius (embora as curvas
harmônicas sejam iguais)
porque...
- Êpa! Sabe dizer por que isso
acontece?
- Sei. Em virtude do formante.
Formante resulta do modo
peculiar de como um dado
instrumento é fabricado; ou
211
seja, é determinado pela
relação mútua dos materiais
empregados na fabricação de
cada unidade de dado
instrumento: madeira, plástico
e metal; também, do tipo de
cola, da solda, do verniz etc.
Por isso, dois violinos de alta
qualidade, um Stradivarius e
um Guarnerius, ambos
fabricados no Século XVII por
artífices da mais alta
competência, soam diferentes.
Assim, pois, não é pela
antiguidade nem pela
qualidade do artesão, é em
decorrência do modo de
fabricação e do material
empregado.
212
- O cravo tem sonoridade
diferente do seu sucessor, o
moderno piano de concerto.
- Não, parece que você está a
tergiversar. Foi o pianoforte
que sucedeu ao cravo.
- Desculpe o engano.
Concordo. O primeiro
pianoforte foi construído em
1709; Bartolomeo Cristofori
deu a ele o nome de
“gravicembalo col piano e
forte”.
- Que quer dizer “cravo com
suave e forte”.
- O pianoforte da época de
Wolfgang Mozart cobria
apenas cinco oitavas, e
213
pesava 175 libras, cerca de 80
quilos.
- Enquanto o piano moderno
cobre seis oitavas e pesa o
dobro.
- Oitava, não sei se o Senhor
sabe, é o intervalo, ascendente
e descendente, entre as sete
notas da escala diatônica: Dó,
Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si.
- Sabia. Isso quer significar
que no teclado do pianoforte o
Dó (ou qualquer outra nota)
repete-se cinco vezes,
enquanto no teclado do piano
moderno, repete-se seis.
- Até que o Senhor não é tão
ignorante em música quanto
eu imaginava.
214
- A modéstia me inibe de
dizer-lhe “muito obrigado”.
- Mas desconfio que o Senhor
não sabe que também há
diferenças sonoras, em
especial de afinação, entre os
chamados “grand pianos”
modernos para concertos.
- Não sabia não.
- Pois aprenda. As mais
afamadas marcas são:
Becstein, Bosendorfer
Imperial, Fazioli F308 (o
número 308 refere-se aos três
metros e oito centímetros do
seu comprimento. É o maior
piano de concerto do Mundo),
Steinway D e Yamaha.
215
- Interessante... essa cultura
inútil.
- Não é cultura inútil. E tem
mais: somente os pianistas
virtuose, os Maestros, os
afinadores de piano e alguns
técnicos em gravação
conseguem estabelecer
diferenças de sonoridade
entre tais marcas.
- Gosto muito das “Sonatas”
para piano de Beethoven.
- O gênero musical sonata
nasceu na Itália. De início, em
oposição à cantata e à tocata.
- Qual a diferença entre
cantata e tocata?
216
- Vejo com satisfação que o
Senhor é curioso, gosta de
aprender.
- Gosto de aprender, mas não
sou curioso.
- Cantata é a composição feita
para vozes humanas,
enquanto tocata destina-se a
instrumentos.
- Nunca entendi a razão da
nomenclatura estabelecida por
Bach nos seus prelúdios e
fugas.
- São 48 Prelúdios e 48 Fugas.
Um prelúdio serve de
introdução a uma fuga. Mas o
Senhor quis referir-se às
suítes de Johann Sebastian
Bach, não é verdade?
217
- Sim. E o que é courante?
- Um movimento de uma
suíte. Suíte são movimentos
de dança. Courante é um tipo
de dança antiga de origem
francesa em a qual os
dançarinos movimentam-se
de forma lenta e em círculo.
- E gavota?
- Uma dança do tipo minueto,
mas bem mais rápida.
- Minueto?
- Dança de origem francesa
caracterizada por
movimentos lentos e
compassados de pessoas em
grupo.
- E bourrées?
218
- Dança executada em tempo
duplo, exigindo movimentos
rápidos e vivos; de origem
francesa.
- E forlana?
- Ainda movimentos de dança,
mas rápidos; de origem
italiana.
- Quer dizer, todas as partes de
uma suíte são concebidas para
dançar-se...
- Não. As suítes não são para
se dançar. São sequências
musicais compostas a partir
de danças antigas.
- Também não consigo
estabelecer a diferença entre
ópera-bufa e ópera-cômica.
219
- A diferença é sutil; a ópera-
cômica é composta com a
finalidade de produzir risos;
enquanto a ópera-bufa, ainda
que nela preponderem tipos
burlescos, há uma história,
um leit motiv, que faz da peça
um drama cantado. Mozart
foi o grande mestre da ópera-
bufa.
O santo kapellmeister da Corte
Celestial olhou para seu
“metrônomo” de horas tipo
relógio de pulso, bateu na testa
larga, passou as mãos na vasta
cabeleira já em desalinho, e
saiu sem despedir-se. Fiquei a
pensar: o modo de
comportamento celestial
220
assemelha-se bastante com o
modo de comportamento
terreal...
De macacão velho, folgado e
um tanto sujo, boné a cobrir a
careca, óculos espessos
revelando miopia de grau
elevado, mãos calejadas mas
firmes, nos dois pulsos a moda
relógio dois esquisitos
aparelhos: um multímetro
miniatura e um mini
decibelímetro. Riso fácil,
dentes perfeitos, lábios finos,
olhos azuis ou...
- Você deve ser o serafim
encarregado da reprodução do
221
som musical aqui da casa do
senhor, acertei?
- Em parte. Sou o Arcanjo
Encarregado da Audiofilia
Celestial.
- Também aqui existem
audiófilos?
- Existimos os que nos
utilizamos da música em
conserva para que não falte
permanentemente boa música
em redor do Senhor Deus.
- E há igualmente os
chamados equipamentos
eletrônicos “high-end”?
- Não, nem “low-end”. Temos
“apparatus” de um único
elemento condutor, revestido
222
de especiais nuvens
consolidadas; “apparatus”
que desempenha o papel de
acoplador, aumentador e
transformador, uma espécie
de fone de ouvido que
funciona sem eletricidade
hidráulica nem térmica nem
eólica, apenas pela poderosa
energia do afeto ao qual
damos o nome de “dai-e-dar-
se-vos-á.”
- Uma espécie de lei de
Talião...
- A Lei de Talião babilônica,
do Código de Hamurabi, de
1780 aC, correspondia, na
ação de reciprocidade do
crime e pena, à lei do “olho
por olho, dente por dente”. Na
223
Santa Lei de Deus que regula
o Afeto, o “DAR” do Filho de
Deus representa a
reciprocação do Seu Santo
Afeto para com a
Humanidade.
- Concordo, e aplaudo. Sempre
considerei que o afeto é
sentimento de duas mãos: o
dar deve ser do tamanho do
receber e o receber do dar; ou
seja, o ato de receber deve
corresponder entrega afetiva
do recebedor ao doador;
porque reciprocar é a forma
como se materializam os dois
aspectos do afeto.
- O Senhor Deus deu seu único
Filho para ter de volta as
224
Criaturas que Ele próprio
criara.
- Mas as ingratas criaturas que
deus criou preferiram
Barrabás... Judas preferiu as
quarenta moedas...
- Leornardo Padura
reconhece: “... descobrir a
futilidade de todos os orgulhos
humanos e a dimensão exata
de sua insignificância cósmica
diante do poder essencial do
eterno.”
- Parodiando: pois foi com
pesar e muita tristeza que
senti na própria carne a
insignificância das palavras
diante dos atos; pois quem
225
seus afetos negociam comete
sempre ingratidões.
- É “... o odioso sentimento de
ingratidão que as
deslealdades provocam.”
Ainda Leonardo Padura.
- O afeto ou catéxias ou libido,
que é a força vital, o princípio
da vida humana, ramifica-se
em amor e ódio ou prazer e
desprazer ou instinto de vida e
instinto de morte. Já o
desafeto representa o
predomínio do ódio sobre o
amor.
- Esse predomínio
consubstanciou-se por meio
do beijo de Judas na face do
Filho de Deus.
226
- E é por esse fato que
desprezo o beijo na face, em
geral hipócrita e falso.
- E qual a forma do beijo que o
Senhor considera representar
um ato de afeto?
- O beijo nos lábios! E agora
chegou a minha vez de citar
Leonardo Padura: “... a mãe...
costumava depositar ... na
comissura dos lábios do filho...
beijos úmidos ... para que o
sabor doce da saliva
permanecesse ... na boca por
mais tempo...”.
- Por que a ingratidão é uma
das doenças mais difíceis de
curar.
227
- Pois na Ilha do Desterro, lá
na minha casa terrena, o
predomínio da ingratidão
materializou-se na
mesquinhez que presidiu a
venda do Ateliê de Pintura de
Jarina Menezes – que
guardava o melhor da obra
dessa extraordinária artista –
em troca de quarenta moedas
podres... Em consequência,
toda a obra de uma vida está a
se estragar por falta de abrigo
próprio...
- Isso porque na verdade não
havia empatia entre os
herdeiros e a obra da artista...
- Baixa-fidelidade.
228
- E assim voltamos ao tema
da alta-fidelidade.
- Que parece ser o objetivo
deste encontro.
- O que os terrenos chamam
de alta-fidelidade (fidelidade
absoluta do som) aqui na
Casa do Senhor Deus nós
denominamos de auto-
fidelidade, isto é, fidelidade ao
próximo como a si mesmo.
Porquanto, se nos amamos,
que é nossa obrigação
primeira, estamos a amar
também quem nos criou, o
Senhor Deus.
- E é também de barro que o
oleiro divino fabrica a
conserva musical aqui no céu?
229
- É de fio.
- Fio metálico como nos
tempos dos primeiros
gravadores de som?
- Fio de lã de nuvem. Nuvens
que produzem a chuva, chuva
que molha a terra, terra que
produz os frutos... Louvado
seja o Senhor Deus!
- E as enchentes e os
maremotos e as tsunami.
- Regra geral, enchentes e
maremotos são consequências
da ação predatória do homem
sobre a Santa Natureza
criada por Deus no Primeiro
Dia da Criação.
230
- Ou acomodação e
aperfeiçoamento da obra de
deus... que não se mostrou tão
perfeita assim...
- Tal como num livro em
preparação, como neste que o
Senhor está a criar, muitas
vezes pode ocorrer que o
criador do livro torne-se
criatura, e o livro tome as
rédeas da narração.
- Você tem razão, neste livro
isso já aconteceu muitas vezes.
Quando menos eu esperava
estava a escrever o que não
pensara escrever; e uma vez, o
que não devia ou convinha
escrever.
231
- O que o Senhor não devia ou
não convinha escrever?
- Por exemplo: que na Terra
não há rico fora da
desonestidade; porquanto
todo rico da Terra foi, antes,
um desonesto!
- Desonesto em relação às
leis?
- De deus e dos homens.
Desonestos por índole e
pendor.
- O Senhor tem provas disso?
- Não sou supremo nem me
considero acima de todas as
coisas, mas as provas
abundam; não as tenho
comigo porque não sou
232
processo nem jornal, e nem
arquivo público; mas tanto
processos arquivados quanto
os arquivos dos jornais estão aí
para provar que um rico,
qualquer rico, sua fortuna
adveio de desonestidades.
- Pode dar algum exemplo?
- Aqui no Ceará, por exemplo,
a base da fortuna dos ricos de
agora vem de desonestidades
praticadas por parentes
antepassados.
- Quem foram eles?
- Uma dessas riquezas foi
constituída pela via de licenças
de importação fajutas. No
Brasil houve um tempo em
que licenças para importação
233
de mercadorias só poderiam
ser autorizadas por
departamento competente
sediado no Rio, e concedidas
para importação de aparelhos
e remédios destinados a
hospitais e casas de caridade.
Entretanto, nesse mencionado
tempo tais licenças foram
desonestamente modificadas
por um funcionário de
Fortaleza a serviço do
empresário corruptor,
alteradas para contemplar
importação de tecido de linho
ou máquinas de costura.
- O Senhor tem prova disso?
- Está nos jornais da época, e
nos arquivos do Banco do
Brasil. Escândalo que até
234
determinou a extinção da
CEXIM e à criação da atual
CACEX. E tem mais.
- Tem?
- Outro rico do Ceará
aumentou sua fortuna com
manobras desonestas com o
objetivo de apropriar-se de
bancos particulares.
- Santa Mãe de Deus!
- Ainda outro: pela via ignóbil
da utilização de artigos de
alimentação, como o açúcar,
por exemplo, avariados pelo
sal marinho no decorrer do
transporte de Pernambuco
para o Ceará. Nos armazéns do
comerciante o produto
avariado era misturado com
235
produto não danificado com o
fim de diminuir o índice de
contaminação; depois dessa
maquiagem, era vendido como
se bom e puro fosse. Com isso,
esse empresário ganancioso
recebia das seguradoras a
indenização correspondente à
avaria, e dobrava o ganho com
a venda aos consumidores do
produto misturado como se
estivesse em bom estado.
- Mas isso é mais que
estelionato, é atentado contra
a vida!
- Tem ainda mais. Existem os
grileiros que, à sombra do
poder apoderaram-se das
terras devolutas dos morros do
Mucuripe que pertenciam aos
236
antigos povoadores uma vez
que doadas, em regime de
sesmaria, pelo Imperador do
Brasil.
- O Senhor tem prova de tudo
isso?
- As provas encontram-se nas
páginas dos jornais dos anos
da década de 50 do Século
passado. Quem duvidar que vá
à biblioteca pública ou
arquivos de jornais, e
pesquise. E sobre as terras do
Mucuripe e adjacências, que
levante nos cartórios a origem
e a legitimidade das certidões
de propriedade dos inúmeros
lotes, hoje valiosas
propriedades de uns poucos.
237
- E sobre as manobras
desonestas para apropriação
de bancos particulares, quer
esclarecer com mais detalhes?
- Infelizmente, essas manobras
jamais foram noticiadas pelos
jornais. Portanto, não posso
provar nem indicar onde estão
as provas; e as pessoas que me
contaram tal falcatrua, já
faleceram. Entretanto, essas
pessoas disseram-me que uma
das manobras consistia em o
grande capitalista cearense
depositar no pequeno banco
particular grande quantidade
de dinheiro sob a promessa
verbal de não sacá-lo em
menos de seis meses; os donos
do banco, garantidos por essa
238
promessa verbal, emprestaram
o dinheiro ao público com
prazo de até 120 dias.
Disseram-me ainda os
saudosos e queridos falecidos,
que o grande capitalista, antes
de 90 dias, emitiu um cheque
de alta quantia contra um dos
tais bancos. Ora, como não
havia numerário em caixa
disponível para pagar o cheque
visto que o depósito fora todo
aplicado em empréstimos
populares, o grande capitalista
pressionou os diretores do
banco, ameaçando-os de
protestar o cheque caso não
fosse pago em quarenta e oito
horas. Apavorados, os
diretores do banco viram-se
obrigados a ceder suas ações
239
ao grande capitalista que,
assim, passou a ser o único
dono do banco.
- O Santo Filho do Senhor
Deus advertiu: “Mas ai de vós,
os ricos!”
- O homem de Nazaré foi um
sábio! Ainda que tenha
cometido o pecado da
reciprocidade dependente.
- Que é isso da “reciprocidade
dependente”?
- A cada atitude, os
mandamentos cristãos atribui
uma dada obrigação; ”Como
quereis que os homens vos
façam, assim fazei-o vós
também.”; “Dai, e dar-se-vos-
á”. E assim por diante.
240
- É a reciprocidade divina.
- É a reciprocidade
condicionada. Para receber é
preciso dar!
- Mas isso não corresponde a
Lei de Talião?
- Ora, se o afeto é via de duas
mãos, o receber terá sido
decorrente de um dar.
- Não é assim que se deve
entender este mandamento
bíblico: “Como quereis que os
homens vos façam, assim
fazei-o também.”
- Mas o “dai e dar-se-vos-á”
significa ter que dar para
depois receber. Primeiro vem
241
o dar, depois, e em
consequência, o receber.
- O Senhor Deus, primeiro deu
a vida do seu único Filho...
- Por isso que deus é uma
abstração... ou um bobo.
- Ora, o Senhor está na Casa
do Senhor Deus, mais
respeito!
- Não. Estou sentado nesta
pedra dura faz mais de
quarenta e oito horas...
- Conversou com Santos,
Arcanjos, Querubins e Anjos.
- Conversei com pessoas que
se diziam santos, arcanjos,
querubins e anjos. A
inquirirem-me! Nem no tempo
242
da ditadura militar passei por
isso.
- O Senhor foi preso por ser
comunista?
- Salvamo-nos, minha mulher
e eu, mercê de circunstâncias
muito especiais.
- Pela Santa vontade do
Senhor Deus!
- Por puro acaso. Um amigo de
infância, amizade mui
consolidada, na idade adulta
tomou rumo diferente e até
oposto ao meu: tornou-se
combatente operante
anticomunista enquanto eu
assumia posto de comando na
hierarquia regional do partido
comunista; e minha
243
companheira Jarina Menezes
era Presidente da Federação
das Mulheres do Ceará, uma
organização a serviço do PCB.
- Tudo quanto os militares
torturadores andavam à
caça...
- Num certo dia, meu saudoso
compadre e amigo, Vicente de
Paula Gaspar (louvado seja
para sempre!), em companhia
de um padre da arquidiocese
do Ceará estavam em uma sala
do palácio episcopal a folhear
os arquivos do então
departamento de ordem
política e social – DOPS – para
escolher nomes para suas
tarefas contrarrevolucionárias.
244
- A Missão Católica
Anticomunista...
- Ao passar as fichas que eram
centenas, surpreendido deu
com minha ficha. Ficou
nervoso. Apreensivo foi até à
letra J e lá estava a ficha de
sua comadre Jarina. Adveio-
lhe de imediato duas certezas:
a fraternidade e o afeto
estavam acima de qualquer
outra convicção, e, tinha
porque tinha que destruir as
duas fichas. Mas o padre ali
presente...
- E o Senhor ainda não
acredita no poder do Senhor
Deus.
245
- Vicente raciocinou e agiu
depressa. Lembrou-se de que
haviam chegado informes da
atividade comunista na cidade
portuária de Camocim.
Nervoso, perguntou ao padre
onde ele tinha posto a carta
que viera de Camocim. O
padre informou que a pusera
no cofre do palácio. Diante
dessa informação, compadre
Vicente pediu ao padre o favor
de ir buscar a tal carta para ele
poder comparar nomes.
Quando ficou a sós, pegou as
duas fichas, de Jarina e minha
e pôs dentro da camisa, entre a
camiseta de algodão e a camisa
social. E na hora do almoço,
quando foi fazer a refeição em
sua casa, tirou as duas fichas e
246
queimo-as no fogão a lenha
que então se usava.
- Obra de Deus!
- É a segunda vez que o senhor
insinua isso; será que deus o
abstrato preocupar-se-ia com
dois comunistas escrachados?
- Todos somos Filhos de Deus!
- Por essas circunstancias, e
mais, como já residíamos
então no Rio de Janeiro, e
Jarina não exercia nenhuma
atividade política lá, e eu, no
rigor da clandestinidade
estava ligado exclusivamente
ao secretariado nacional do
Partidão, por tais
eventualidades humanas,
escapamos!
247
- Louvado seja o Senhor Deus
e seu Amado Filho.
- Você também vem inquirir-
me? – perguntei ao jovem
Anjo que se achegou a mim, e,
sem espanar a sujeira natural
da mureta, sentou-se na pedra
onde eu estava sentado; riu
seu riso largo e espontâneo de
jovem sem recalques, a
mostrar os fartos dentes da
generosa boca; calça jeans,
sapato-tênis de plástico,
camisa 10 da seleção
brasileira, disfarçada cicatriz
de “piercing” no nariz
proeminente, olhar tristes de
santo, um rosário de alvas e
pequenas pedras de marfim
248
enrolado no punho a molde
pulseira, porém simples como
a verdade; a fazer mímica e em
tom de recitação respondeu a
minha pergunta:
- “Tua pele é sombra, poça
d’água no escuro. Pressinto
teu cabelo emaranhado. Que
cultivas entre os fios?
Sementes, filtros de amor,
ossos de reis assassinados,
uma pirâmide com a Esfinge
dentro? Quais perguntas
enroladas nesses nós? Com
tua testa sustentas a noite, o
riso dos homens tontos, a
alegria de todo deslize. Rasga
o dia com teus dentes.
Guardas uma onça dentro da
tua boca tensa, anunciam
249
insurreições os teus quadris.
No peito, um milhão de
pernas correndo com a
alegria da revolta. Se coloco o
ouvido rente a ti, escuto o
farfalhar de asas, o mar
revolto, o rugir da terra, um
grito de pavor. Agitam
minhas pernas pensar nas
tuas afundando a terra
escura. Queima a minha boca
pensar na tua garganta
aberta para o dia ainda tão
sem fim.”
- Mas esse é um trecho de um
texto de minha neta Priscilla,
divulgado no seu blog
www.errotacito.blogspot.com.
br!
250
- É, sim. Participo intenso da
vida intelectual terrena pela
pena de sua neta; ela é minha
psicógrafa.
- Minha neta tem talento
bastante para não necessitar
de ajuda alheia, nem mesmo
daqui do além.
- A noção humana do Além...
- Desculpe. Força do hábito de
espernear. No meu país nada é
genuíno, nem nós próprios
que somos mistura do
cruzamento de raças
diferentes.
- João Grilo...
- O personagem do Ariano
Suassuna?
251
- O esperto mameluco que o
avô de Priscilla recriou para
fazê-la crescer.
- Quando chegou à Ilha do
Desterro, Pris tinha apenas
cinco anos! Olhos sem brilho,
corpo sem viço, choramingava
na mesa sem querer ingerir
nada. Para fazê-la comer
comecei a inventar casos com
base no personagem das
histórias de Trancoso que
minha avó Aninha contava. O
personagem central desses
casos era João Grilo .
- E fê-la crescer mesmo!
Priscilla é hoje uma talentosa
criadora de textos densos e
enigmáticos. Como este:
252
“A pele que avança é mesmo
minha, um tipo de dança que
inventei, é assim: fecho os
olhos no quarto escuro ou no
meio de uma avenida louca,
coloco as mãos em forma de
prece bem rígidas rente ao
rosto. Dentro da boca, a
língua dança. Todo o resto
denuncia um corpo penitente,
até meio santo. Tipo desses
que meditam enquanto o
querosene aguarda o fósforo
riscar. Mas minha invenção é
a língua bailarina. Avança e
recua em direção ao céu da
boca, as gengivas, ao escuro
da garganta. Quando danço,
minha pele alteia, ganha uma
253
vida toda dela. Meus ossos
repousam dentro de um corpo
que não cessa de nascer.”
- Remete-me à Clarice
Lispector, com nuanças
contraponteadas: o fato e o
símbolo; a frase que afirma / a
sentença que sugere; o
significado definido / o
entendimento conjecturado;
uma estrada de rodagem / um
caminho nas nuvens; a crueza
do cotidiano / a leveza do ser
poetizado; a ironia nas
situações descritas / as
situações irônicas apenas
subentendidas; a amargura
subjacente nas palavras
escolhidas com um dado fim
atemorizante / a doçura
254
vocabular sem finalidade
senão a beleza da língua culta.
Porém em ambas, tão só
composições literárias; não
são gritos de dor, são
pensamentos pacientemente
organizados; pensamentos que
são a matéria dos cérebros
humanos. Ouça, por exemplo,
Clarice:
“Não entendo. Isso é tão vasto
que ultrapassa qualquer
entender. Entender é sempre
limitado. Mas não entender
pode não ter fronteiras. Sinto
que sou muito mais completa
quando não entendo. Não
entender, do modo como falo,
é um dom. Não entender, mas
não como um simples de
255
espírito. O bom é ser
inteligente e não entender. É
uma benção estranha, como
ter loucura sem ser doida. É
um desinteresse manso, é uma
doçura de burrice. Só que de
vez em quando vem a
inquietação: quero entender
um pouco. Não demais: mas
pelo menos entender que não
entendo.”
- Escute Priscilla: “Cultivo a
rigidez de uma mulher diante
do atirador de facas. Ando
rija entre os porteiros de
Copacabana, os entregadores
de panfletos, as meninas
lindas de vestidos leves. O
medo do assédio, o medo da
água na boca, dissimulada
256
seriedade. Reajo alucinada
aos homens que catam coisas
do chão, vejo sobre eles o
manto dos profetas, dos
santos, dos espertos. Preciso
me cuidar para não acabar
como eles, só eu e a rua plena,
que tremor.”
- A mágica que eu era obrigado
a fazer, os esforços
verborrágicos para
encompridar as histórias até o
prato de Priscilla esvaziar-se;
porque a cada frase do conto
de carochinha improvisado eu
punha uma colherada cheia de
comida na pequena boca da
pequena Pris. Ao fim de três
meses, minha neta engordara
cinco quilos!
257
- Tão empolgado o Senhor fica
com a neta, que esqueceu que
lá atrás deixou uma frase
minha sem comentários.
- Qual?
- A noção humana do Além...
- Como se o além fosse o
mundo dos espíritos.
- Os jovens da Casa do Senhor
entendem e aceitam que o
espírito não é alma, é energia
cósmica.
- Freud achava que o espírito é
o inconsciente humano.
- Que o Senhor Deus deu aos
homens após a desobediência,
para contrabalançar suas
fantasias plenipotenciárias.
258
- Como assim?
- O inconsciente é o freio
invisível do Senhor Deus, é o
barro do qual o homem foi
feito pelo Oleiro Divino, é o pó
a que todos os humanos
voltarão. É, em resumo, a
sensatez do meio-termo!
- Meio-termo a que Priscilla
metaforicamente se reporta no
seguinte trecho: “Calma, não
larga ainda do meu braço. Eu
te guiei com os olhos, agora
me leva um pouco pela
escuridão. Vou fechar as
pálpebras e você me diz
alguma coisa da cegueira
enquanto me leva até a porta
de tua casa. Um dois três e já.”
259
- Meio-termo a que o Apóstolo
de Jesus, São Paulo, por
metáfora estabeleceu no já
citado versículo 11 do capítulo
13 da Primeira Epístola aos
Coríntios: “Quando eu era
menino... , quando cheguei a
ser homem...”. A desrazão e a
razão.
- O hemisfério esquerdo do
cérebro, e o direito.
- O Senhor deu a entender em
outro ponto de sua inquirição
que só o ser humano possui
cérebro com dois hemisférios.
- É. E errei. Até recebi
mensagem do meu amigo
psicanalista Victor Andrade, a
quem tenho levado parte das
260
conversas que aqui tenho tido.
Victor esclareceu:
“O que diferencia o ser
humano não é o fato de
possuir dois hemisférios, pois
os outros animais também os
possuem. A diferença é que no
ser humano o hemisfério
esquerdo possui uma função
especializada que permite a
verbalização e a consciência da
subjetividade (consciência do
"eu"), enquanto os outros
possuem apenas a consciência
primária, de natureza
perceptiva. O hemisfério
esquerdo humano é analítico e
racional, ao passo que o direito
permaneceu com a função
anterior comum aos demais
261
animais, sendo a sede da
intuição, da sensibilidade e da
empatia. Por isso, uma lesão
cerebral que leva à
incapacidade de falar e mesmo
de raciocinar logicamente, se
não atingir o hemisfério
direito pode permitir que o
indivíduo trauteie uma
melodia ou mesmo xingue
palavrões (neste caso, as
palavras não expressam ideias,
mas emoção, no caso, de
raiva). Por aí, você vê que o
ganho em capacidade analítica
representa perda em
capacidade afetiva. Por isso, os
animais costumam ter uma
"inteligência emocional" mais
aguda que os humanos, pois
mantiveram os dois
262
hemisférios intactos. No dia
em que o ser humano dominar
amplamente esse
conhecimento, dará tanta
atenção ao desenvolvimento
do hemisfério direito quanto
ao esquerdo, pois toda a
educação tem privilegiado a
esfera cognitiva da mente
(hemisfério esquerdo). Por
isso, meus netos (filhos da
Yasmin) foram "alfabetizados"
também em música: ao
entrarem para a escola
convencional, também
passaram a aprender piano e
violino, de modo que desde
cedo aprenderam a ler notas
musicais e também a apreciar
os grandes mestres da
música.”
263
- Todos os Santos e Arcanjos e
Querubins e Anjos da Casa do
Senhor Deus sabem ler a
escrita musical.
- Um dia antes de me perder
nesta grande floresta que
circunda este belo lugar ouvi a
“Quinta Sinfonia” de Anton
Bruckner – que compôs
algumas sinfonias tidas pelos
críticos como teológicas – na
interpretação da orquestra
“Staatskapelle Belin”, sob a
regência do judeu Daniel
Barenboim. Produz uma
emoção de quase fazer chorar.
- Soube que o Senhor apreciou
bastante o terceiro
movimento do “Quarteto Opus
132” de Beethoven, executado
264
ontem pelo Quarteto dos
Querubins, a pedido do
Senhor Deus.
- Tido como o agradecimento
do Compositor, ao senhor
deus, pela cura de Beethoven
de uma maléfica doença.
- Versão que o Senhor
contestou.
- A imaginação dos
musicófilos, ajudada pela
necessidade de os fazedores de
opinião de se tornarem
famosos, criou também a
lenda de que a “Sexta
Sinfonia” de Von Beethoven
são relembranças da vida
campesina.
- E não são?
265
- Primeiro ocorreu uma
confusão involuntária: a
Quinta Sinfonia de Beethoven
foi, por algum tempo,
denominada de Sexta, e a
Sexta de Quinta, misturada
essa decorrente de terem sido
as duas peças compostas
(terminadas) quase ao mesmo
tempo. E por ter sido a Sexta
apresentada em público
primeiro do que a Quinta,
ainda que na mesma noite de
22 de dezembro de 1808. Mas
nas partituras originais o
compositor restabeleceu a
cronologia.
- As verdades das partituras
são inquestionáveis.
266
- Nas partituras Beethoven
ficou em dúvida com respeito
à intenção da sua Sexta
Sinfonia: de início indicou-a
como sendo "... memórias da
vida campestre." Algum
tempo depois, quando
descreveu o significado dos
cinco movimentos, fez uma
observação intrigante.
Expressou: "Mais expressão
de sensações do que pinturas."
Quer dizer, mais drama e
menos enlevo. Mas não vacilou
quanto ao intento da Quinta
Sinfonia. Dela ele afirmou,
categórico: "Assim bate o
destino à porta."
- O que importa é o caminho e
não para onde ele nos conduz.
267
- Será que na vida estamos
indo ou vindo?
- Gosto deste bate-bola.
Explica mais que livros
inteiros. Aliás, os homens em
geral não sabem de verdade o
que é importante.
- Para mim, ancião, o que
conta na vida é a experiência!
- O que de fato importa é o
sentimento que uma dada
coisa provoca; não a forma
da coisa ou como ela é feita.
- Mas não são as chamadas
“coisas importantes” o tipo de
coisas que nos deixam
recordações.
268
- O Senhor sente assim porque
não é jovem.
- Quando se atinge a idade dos
noventa anos é então que se
sabe que a vida é divertida.
- Ao contrário, sabemos aqui
na Casa do Senhor Deus que
quando se atinge noventa
anos angustia-se por
experimentar que defeitos e
falhas tornam-se motivos de
desamor.
- Os jovens pensam que os
velhos são tolos, mas os velhos
sabem que os jovens é que são
tolos.
- Não me ofendeu. As
palavras duras só ferem
quando não são claras. De
269
mais a mais, o Senhor está a
citar Agatha Christie
- Cada um de nós é como vive
e o que lê.
- Aceitando os infortúnios
quase sempre os homens os
expulsam.
- Quando se conhece o perigo
não se arisca coisa alguma.
- A autocompaixão é um
trabalho muito absorvente...
- A esperança mentirosa que
todo jovem tem é a mesma
esperança mentirosa que todo
velho um dia teve.
- Aprendemos aqui na Casa
do Senhor Deus que é possível
conseguir qualquer coisa que
270
se deseje, se realmente se
deseja com todas as forças.
- Para se conseguir o que se
deseja é preciso pagar um
preço ou assumir um risco, e,
por vezes, ambas as coisas.
- Alguns ensejam a rejeição
pela confiança que nutrem
nos próprios julgamentos.
- Ora, se temos conhecimento
e julgamos com base nele, por
que precisamos acreditar?
- Acreditar no melhor de
alguém é fazer o melhor por
esse alguém.
- Pois eu acho que é melhor
odiar a deus do que à
271
Humanidade. Deus pelo
menos é uma abstração...
272
Clarice Lispector
versus
Priscilla Menezes.
273
Clarice Lispector: “Não
suporto meios termos. Por
isso, não me doo pela metade.
Não sou sua meia amiga nem
seu quase amor. Ou sou tudo
ou sou nada. Dizem que a vida
é para quem sabe viver, mas
ninguém nasce pronto. A vida
é para quem é corajoso o
suficiente para arriscar e
humilde o bastante para
aprender.”
Priscilla Menezes: “O corpo da
única mulher que olhei sabe
como era? Comprido, espesso,
negro, brilhante, violento.
Tinha umas cicatrizes no
quadril. A prima que se despia
nos banhos de cachoeira, que
274
deixava frestas milagrosas nas
portas dos banheiros, a prima
que cruzava as pernas
lentamente. Quando cheguei
ela já tinha um filho e esperava
outro. Eu me embolando para
dentro e ela colocando uns
corpos no mundo fora. Cegar
foi assim, minha filha, o
mundo de relance, o corpo de
uma mulher linda e depois só
a notícia dos nascimentos e
das mortes. Vê só, cegar não
foi muito diferente de viver. A
minha casa é aqui.”
275
Suíte contraponteada:
a jovem
e o ancião;
avô
versus neta.
Minha neta, você escreveu:
“Abandonar a subjetividade
como estrutura, é pensar uma
subjetividade fraturada,
estatelada, transformada pelo
acaso.”
- Ainda que estrutura,
concreta ou abstrata, como
definição seja a “organização,
disposição e ordem dos
elementos essenciais que
276
compõem um corpo” (corpo
que também pode ser concreto
ou abstrato). O que não pode é
ser uma estrutura sem
finalidade, sem nutrientes
para o corpo, tão só destinada
a sustentar um não corpo
transformado pelo acaso
(circunstâncias) ou por leis
naturais em algo não
verdadeiro, apenas imaginado
por mentes privilegiadas. Voto
contra.
Você escreveu: “Não quero
falar de mim, quero inventar
na minha fala.”
- Toda fala (ou toda escrita) é
fala própria, pessoal, e, às
vezes, particular. Mas não
deve ser praticada como
277
dialeto, muito menos em
“gíria” para pequenos grupos
de... “iluminados”. Voto
contra.
Você escreveu: “É preciso
exercitar a rebelião. Recusar-
se a ficar preso a regras.”
- A rebeldia é a essência do
desenvolvimento, de qualquer
desenvolvimento, do de
apenas dois passos à frente
embora seja-se obrigado, por
força de circunstâncias, vez
que outra dar-se um passo
atrás. Além de exercitá-la há
que se a organizar. E não se
entenda “organização” como
“arrumação”. Arrumar é
burocratizar; enquanto
organizar é estabelecer
278
objetivo, meios e número. E
também momentos. Por isso
que nem todos os momentos
transformam-se em o
momento. Voto a favor.
Você escreveu: “Cair, para
perder o medo da queda.
Inventar intimidade com a
queda, para perder o medo da
queda. Inventar a queda,
para deixar de morrer,
caindo.”
- Eu trocaria de verbo, em vez
de “cair” eu tiraria o prefixo
“ca” e ficava com o verbo
universal IR, verbo que pode
ser de qualquer gênero:
transitivo, intransitivo,
pronominal, hermafrodita
confesso e juramentado, o
279
escambau, desde que..., pois é,
desde que não nos tornemos
“lobrigadores”. Porque ver
passar não é passar. Voto a
favor, mutatis mutandis.
Você escreveu: “As operações
ficcionais dão-se como
montagens entre o
improvável e o plausível.”
- Voto a favor. Tudo no
Universo é um vir a ser em
ponto de intermezzo: nem É,
porque nada em movimento É,
está a ser e se está a ser, não é,
SERÁ! Trocando em miúdos: o
presente não existe uma vez
que agora (e o meu agora já
será diferente do seu agora)
já estamos no passado do
presente ali atrás escrito; e o
280
“SERÁ” é uma abstração como
todo futuro. Logo, minha
Querida, só há uma realidade:
O PASSADO!
Você escreveu: “Penso que
todo acontecimento possui
potência para além da
verificação de suas verdades
factuais, pois constroem um
campo de veracidades
próprias.”
- O diabo é que a verdade é
quase abstrata de tão
complexa. Vê-se um objeto ali
sobre a mesa; mas esse objeto
não é ele em si, pronto e
acabado, e imperativo; é a
representação dele no cérebro
de cada um; é o resultado das
ondas de lúmenes que o objeto
281
irradia, que se encontram a
meio-caminho com catéxias
(ondas exploratórias) emitidas
pelo cérebro do circunstancial
observador. Ora, não existem
dois cérebros humanos iguais
(os gráficos das encefalografias
estão a indicar) nem dois
momentos de lúmenes
semelhantes; logo... o que eu
vejo num dado instante é
diferente do que o que você vê,
e o objeto, assim, pois, pode
ser diferente do que vemos...
para nós dois ambos; e tome-
se como diferente, nuanças.
Ora, bolas! Voto a favor.
Você citou: “Somando as
incompreensões é que se ama
verdadeiramente.”
282
- O afeto (amor) é um
fenômeno. A “lei” fundamental
dos “fenômenos” é seu dele
movimento constante e
contraditório. Que parte do
SER para o VIR A SER a fim
de criar um temporário outro
SER que já traz em seu bojo
elementos contrários ao seu
temporário status de SER, o
qual, pela lei universal do
movimento, constituirá outro
SER... assim até que a
decomposição (a morte,
amém) os separe. As
incompreensões de hoje serão,
pois, as compreensões de
amanhã! Voto a favor.
283
Você citou: “Enquanto eu
imaginava que Deus é bom só
porque eu sou ruim.”
- A gente é aquilo que
necessitamos ser. E o
quantum e o caráter desse
“necessitamos” não depende
de nossa vontade nem de
nossas vãs filosofias; depende
de nossas estruturas
emocionais, do
balanceamento – que é
pessoal e intransferível – entre
nossos instintos de vida e de
morte, de construção e
destruição, de amor e de
desamor. E quem mete a
colher nessa panela é o senhor
SUPEREGO, o Loge (quebra-
galho) do “Ciclo do Anel” de
284
Richard Wagner; para bem de
nossa sobrevivência. Voto a
favor.
Você escreveu: “Mas me
embriago de coragem
travando uma batalha
silenciosa entre os ossos das
minhas costelas.”
- A coragem é sempre um
estágio do medo. Não há o
corajoso só nem o medroso só.
Somos sempre mocinho e
bandido no “western” da vida
pessoal. O ato de coragem ou a
atitude de covardia
constituem-se bebedeiras
ocasionais. Voto a favor.
Você escreveu: “Do pai herdei
um olho no avesso da pele, da
285
mãe os ossos que se
escondem.”
- Primeiro: o pai não é quem
faz, é quem cria! E você foi
criada pela “mãepai”. Com os
dois olhos em casa e o corpo
inteiro na rua. Posto que
provedora exclusiva.
Educando e educanda; fazer
para aprender ou aprender,
fazendo. Os ossos do esqueleto
com um cérebro prenhe de
afeto. Deu no que deu: um
talento! Voto contra.
Você escreveu: “Quando eu
era criança, sempre queria ir
mais além do corpo.”
286
- Como por exemplo: subir
tateando prenhe de medo no
“flamboyant” do quintal,
ascender os toscos degraus da
escada improvisada que seu
avô fez especialmente para
você ver o mundo de outro
plano, mais alto, mais além.
Voto a favor.
Você escreveu: “Manter a
alma em estado puro é mantê-
la bruta.”
- Por incrível que pareça, a
alma existe. Não é o espectro
imaterial que as religiões nos
oferece; é a corrente elétrica
cósmica que circula pelo
Universo e o mantém
desequilibrado desde o evento
do big bum. E o ser humano é
287
a mais alta realização desse
cataclismo, o que já é notável!
Mesmo porque o seu bruto
quer significar o mesmo que
champagne brut, ou seja, sem
doçura artificial... Voto a favor.
Você escreveu: “Míope e
vulgar, poucas combinações
são mais providenciais.”
- Inconvenientes, não sei, pois
“míope e vulgar” já é dose!
Existem ignorante e falastrão;
ladrão e “nouveau riche”;
Academia Brasileira de Letras
e Paulo Coelho; ou José
Sarney etc. É, “todo vira-lata é
altivo porque é rei da sua
vadiagem”, ou vulgaridade.
Voto a favor.
288
Você, para finalizar essa
arenga, escreveu: “O fracasso
é também uma potência. O
desvio dita a norma. A
infâmia pode ser grande
virtude.”
- E a mentira uma grande
verdade. O beijo na face
lembra traição; o beijo na boca
nos remete aos lençóis; só o
beijo nos lábios é puro afeto.
Voto a favor.
Cai o pano...
289
Sextilhas trissílabos
tônicos (Para minha neta
Priscilla Menezes).
Era uma vez...
eu contava
prá você,
pequena,
histórias
de João Grilo.
Hoje trago
histórias
cabeludas,
emoções
opostas,
problemas.
290
Era uma vez...
brincava,
criança,
na casa de
madeira
cor de rosa.
Hoje, moça,
brinca com
palavras
surreais
com sentido
subjetivo.
Era uma vez...
pé ante pé
291
da escola
de inglês
ia prá casa
comigo
a brincar,
sorrindo,
inocente
e pura,
e feliz.
Criança!
Hoje, adulta
viaja
sozinha,
tímida,
com medos;
292
vence-os!
Massapê,
vó Jarina,
fim do mundo!
Saudades.
Não foi aqui!
Não foi não!
As flores
às vezes
desabrocham
em monturos.
Em ruínas
nada cresce.
“Olhai os
293
lírios
do campo!”
Do nada
floreiam,
disse Jesus.
O nada
é tudo?
O zero
é nada?
um zero
à direita
de qualquer
número
decuplica
seu valor!
294
Onde o nada?
Não existe!
Outrora
menina
tímida.
Duvidosa
agora!
Saudade!
Saudade!
Quem dera
voltassem
os tempos!
Inocência.
Esperança!
295
Espera
esperança!
“Olhai os
lírios
do campo!”
E espera!
Fim do Livro.
296
Posfácio:
A dança ou A anatomia dos Anjos
Priscilla Menezes
Há uma outra versão que diz que quando ele
chega ao céu os anjos dançam. Incontáveis
querubins andróginos o saúdam com um baile de
samba de gafieira. Entre zigue-zagues,
malandragens, inversões, travadas, abraços e
enroscos, os anjos riem. Ele fica de canto, só
olhando, os pequenos pés afundando as nuvens
fofas. De vez em quando um querubim tropeça e é a
maior troça. Aos anjos só é permitido fazer festa
quando uma alma alegre é acolhida. Suas grandes
asas atrapalham um pouco a movimentação, mas
também criam uma impensada forma de erotismo.
As penas roçam os olhos angelicais, acariciam seus
braços, por vezes se prendem por um instante entre
suas pernas. Quando dançam, os anjos elaboram
seu complicadíssimo sexo. Feito de purezas
297
dilatadas e perversas conjunturas de cócegas e
ânsias. Quando acontece esse baile, é possível que
na terra chova, ou que ventanias exageradas varram
as ruas e os campos nus. O tremor dos anjos
bailarinos afeta a terra sobremaneira, por isso é
sabido no céu que alegria é a força mais perigosa
que há.
A anatomia dos anjos é uma coisa
interessante. Uma espécie de maquinaria, um
labirinto de carne e voo. Quando ele chegou ao
baile, impressionou-se primeiro foi com aqueles
corpos. Diferente do que se pensa, os anjos não são
menos carnais que os humanos. São apenas corpos
densos que o Misterioso dotou com longas asas.
Pura humanidade alada. Não são perfeitamente
belos e santos, talvez um pouco pálidos e
entediados, isso sim. Uma anja que já tinha cansado
de dança chegou perto dele e lhe deu boas-vindas:
- O céu dança sua vida. Esteja em casa.
Olhou bem para a anja e viu que parecia uma
mulher do norte, uma cabocla, mistura de negra
298
com índia, de lábios grossos, cabelo escuro e olhos
puxadinhos. Suas asas não eram perfeitamente
brancas, tendiam mais para um ocre sutil. Outros
anjos tinham as asas cor de chumbo; essas, em sua
opinião, as mais garbosas. A anja-cabocla lhe olhava
com certo interesse amedrontado, um ar de
dissimulação. Quando conseguiu falar, perguntou:
- Mas o que é isso, afinal?
- Esse é o céu em festa. Sempre que sobe até
nós uma alma verdadeiramente alegre, temos
permissão do Misterioso para dançarmos e
ouvirmos músicas populares. Lá pelo quinto dia,
também poderemos beber vinho. Sim, porque a
festa durante vinte dias e vinte noites terrestres. O
Misterioso fica meio contrariado, porque diz que o
vinho bebido assim para a festa, e não na sagrada
comunhão, é homenagem aos deuses antigos, é
Bacanal, entende? Mas trato é trato. Nós
sustentamos as arquiteturas celestes, vigiamos o
obscuro e a claridade do humano, levamos
mensagens para o mundo inferior, passamos dias
299
meditando diante de claridades, assistimos ao balé
do Espírito que insiste em tremular sobre as águas
por um velho hábito. Em troca de tudo, podemos
fazer festas quando uma alma verdadeiramente
alegre vem até nós. É a Lei.
Ele estava estarrecido. Um pouco com aquela
história toda, com aqueles tratos, com o fato de ser
ele a alma alegre. Mas, sobretudo, porque a anja-
cabocla era uma perdição. Como podia uma anja ser
assim tão sensual? Os lábios carnudos, o sotaque do
norte, um hálito de cajá. Havia muitas coisas que,
aquela altura, desejava saber, uma delas era se lhe
seria permitido flertar com aquela anja, ou mesmo
chegar a toca-la. Ali, era preciso reaprender tudo,
até a arte do cortejar.
- Escuta, como é o teu nome ?
- É Lidiane.
- Ô Lidiane, não tá parecendo que essa festa é
para mim não. Eu não estou entendendo nada, será
que alguém pode me explicar alguma coisa ?
- Você sabe dançar?
300
Não sabia. Mas notou que ali, sobre as
nuvens, seus pés adquiriam uma sabedoria própria.
A gafieira foi substituída por um Fox Trot, percebeu
que conseguia dar incríveis giros, viradas e twists.
Dançou por muitas horas, parando apenas quando
passava um avião muito perto da nuvem onde
estava. Os anjos estavam acostumados, mas ele
levava um enorme susto cada vez que isso acontecia.
Quando anoiteceu, começaram a dançar um
forró arrasta-pé e os ânimos se exaltaram. Sentiu
que era hora de buscar alguma explicação. Notou
que um anjo bastante andrógeno observava tudo de
canto. Magro, negro, alto, cabelos cheios,
começando a virar um black power e traços
bastante delicados, deixando em dúvida o gênero da
criatura em questão. Decidiu puxar assunto.
- Oi, você também não dança forró?
- Na verdade danço muito bem, eu queria
mesmo era falar com você.
Tinha a voz aguda e aveludada, mas ainda
poderia apostar que era um rapaz. Sua era belíssima
301
e reluzia sobre a noite estrelada. Tinha olhos que
cintilavam, como quem olha para algo perigoso ou
muito fascinante. Sua asas eram alvas, belíssimas,
usava uma camiseta preta de algodão e calças justas
também pretas. Seus sapatos pareciam pantufas, só
que mais modernas. O anjo continuou:
- Eu vi você dançando. É de fato uma alma
alegre. Apenas os alegres conseguem dançar em
meio a incompreensão.
- Mas eu não gosto de não entender. Você
pode me explicar como é o céu? Por que eu estou
aqui e como será minha estadia?
- Olhe, aos anjos é vedada a possibilidade de
dizer verdades. Segundo as Misteriosas Leis, dizer
verdades é um dos pecados capitais, nos
arremessaria direto ao submundo, para que
ardêssemos, corpo e asa, na caldeira dos Contadores
de Verdade.
- Mas então, terei que ficar aqui sem nada
saber?
- O Misterioso, porém, tem misericórdia.
302
Deixa que nos comuniquemos com o que há de mais
puro no ser: o corpo.
Por essa ele não esperava. Não parecia do
caráter de Deus considerar o corpo superior às
verdades metafísicas, aquilo o surpreendia
verdadeiramente. Mas ainda não entendia como
faria para obter qualquer informação. Estava
cansado, com fome, queria um pouco de privacidade
e, além de tudo, começava a sentir os sinais de uma
enxaqueca terrível.
- Mas então, como você se comunica pelo
corpo?
- Você pode tocar em mim, cada parte do meu
corpo, e do seu também, tem um pensamento. Está
nos Secretos Escritos que o ser humano se engana
muito acreditando ser a cabeça o centro da razão. A
razão é elétrica, sanguínea, corre na pele. Basta que
você toque na parte do meu corpo que quiser que
verá o que meu corpo pensa e sabe.
303
Aquilo mais parecia roteiro de
pornochanchada. Um argumento metafísico, até
sublime, mas que só pode funcionar com algum tipo
de sacanagem. Sentia que aqueles anjos estavam
tirando uma com a cara dele. Mas o anjo estendeu
sua bela mão e, sem pensar muito, ele o tocou. Foi
como se seu corpo fosse tragado para dentro de uma
esfera luminosa. Primeiro só conseguia enxergar a
luz, aos poucos sua visão foi voltando ao normal.
Quando pode olhar, viu que estava em outra nuvem,
esta isolada e silenciosa. Olhava para baixo e,
estranhamente, podia ver tanto à distância, como de
perto, dependendo apenas do seu desejo de ver. De
repente, soube.
Entendeu a fragilidade dos mistérios além-
vida. Como se levasse um choque, ele recebeu um
lampejo revelador: os anjos são aquilo que querem
ser. Em verdade, os anjos eram apenas homens e
mulheres que acreditavam, em vida, que quando
morressem virariam anjos. O Mistério, de fato, era a
fé. Dependia da criatividade de cada mente
304
fervorosa o seu destino na Eternidade. Mas “fé”
ainda não era a palavra certa, mais do que crer, era
preciso desejar. Os anjos eram aqueles que
desejavam sê-lo. Então a Lei secreta que rege o
universo era o desejo. Daí uma certa androginia na
maioria dos corpos angelicais, fruto desse desejo
bruto que transborda o gênero como é entendido na
Terra. Os Anjos, acima de tudo, eram os que
desejavam para muito além do corpo. Queriam ser
meio macho, meio fêmea. Queriam o dom
impensado do voo. Queriam a carne em brasa toda
suspensa em penas. Queriam ser a própria medida
do impossível.
Com outro choque, soube então porque não
lhe coube esse destino: nunca em vida havia
desejado ser anjo após a morte, bem pelo contrário,
se sentia muito mais tentado a dar uma olhada no
que se passada no submundo, nas obscuras e
fervorosas câmeras do Outro. Então, com a
sensação de um súbito arremesso, viu-se em uma
nuvem muito alta, de onde já não podia saber mais
305
nada da Terra. Soube que estava muito perto do
limite onde se pode chegar sem se queimar no Sol.
Soube que estava só. Ali, o esclarecimento que havia
obtido lhe parecia uma triste notícia. Se os homens
viviam, após a morte, aquilo que em vida desejavam
viver, por que é que ele estava ali naquele céu banal
repleto de clichês? Nunquinha que em vida tinha
desejado isso para si. Então, como se um soco no
estômago lhe tirasse o fôlego, veio-lhe a resposta: o
texto.
Era de conhecimento do Misterioso, esse
grande amante das letras, que ele havia deixado por
escrito um longa descrição de como seria sua
experiência no Além. Havia descrito, em um belo
texto, longos acontecimentos em um céu como
aquele: feito de nuvens, anjos e a notícia de um
Deus ausente. Seus anjos eram burocratas falastrões
que, por ora, apenas dançavam. Estava tudo
planejado para que, em seguida, tivesse a
oportunidade de viver o céu assim como ele havia
desejado, a ponto de tê-lo criado por escrito. Sentiu
306
então o fervor da raiva subindo-lhe pelo corpo: eles
não haviam entendido nada!
Acontece que seu desejo não era pelo céu,
mas pelo texto! Seu texto, por sua vez, não era
confissão de um desejo escuso, nem atestado de
nenhuma fé. O sentido do texto se fazia na escritura
e só texto poderia revelar o seu próprio mistério,
quem o escreve pouco sabe sobre ele. O escritor só
sabe de uma coisa: do irresistível chamado da
escrita. Seus temas, seus argumentos, suas aporias
nada mais são que vias por onde percorrer para
frequentar o texto. Esse sim, seu verdadeiro
interesse.
Quando voltou à nuvem, o anjo estava com os
olhos arregalados pois havia compreendido que o
Misterioso – pasmem – tinha cometido um engano.
Não era aquele, pois, o destino-desejo daquele
homem. O anjo silenciosamente recolheu sua mão e
pediu que ele o seguisse. Andaram na direção de
uma pequena torre de pedras que, até então, não
havia notado. Dentro dela, havia uma escada em
307
formato caracol, que descia rumo a uma escuridão
indevassável. O anjo disse:
- É preciso corrigir um engano. Seu destino é
outro. Esse você encontrará quando descer por
essas escadas.
Ele sentiu um novo ânimo lhe afetar o corpo,
mas também um certo medo. O que encontraria ali?
O anjo continuou:
- Aqui é o paraíso dos escritores: a biblioteca.
Nunca soube como é de fato, pois não é o meu.
Olha, a verdade é que todos vamos ao paraíso
depois da vida. Não importa se o sujeito deseja o
inferno e vai para lá, pois em verdade aquele inferno
é a sua delícia, seu ardor. Houve um erro, digamos,
de interpretação de texto. O Misterioso, através dos
meus olhos, deu-se conta disso agora quando você
acessou os Mistérios. Seu desejo não era o céu como
escreveu, mas o próprio escrever. E é por isso que
você vai ser transferido. Mas saiba que você
conseguiu aquilo que talvez todos os escritores
desejam: você confundiu a ordem perfeita do
308
Mistério. Agora descerá em direção aos Mistérios da
Biblioteca. Boa viagem.
Enquanto ia descendo as estreitas escadarias,
sentiu um fervor de orgulho animando o peito:
conseguira, trapaceara o próprio Deus. Sempre
tinha tido admiração por João Grilo, esse astuto
enganador, e agora havia superado mesmo a mais
brilhante de suas façanhas. E não sabia bem como,
só sabia que tinha sido assim. Antes de mergulhar
no obscuro e encontrar seu definitivo e correto
Paraíso, pode ouvir a Misteriosa Gargalhada. Deus
ria de seu próprio engano. Quanto a ele, estava
orgulhoso e animado, mas lamentara uma única
coisa: não poder mais dançar com Lidiane. Ô Anja
deliciosa!