demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel...

16
As religiões afro-brasileiras no espaço público: uma discussão inicial sobre demandas por direitos e reconhecimento 1 Lucía Copelotti 2 Resumo: Esta comunicação tem como objetivo refletir sobre os contornos que assumem as reivindicações por direitos e reconhecimento empreendidas pelos religiosos de matriz afro-brasileira. Para tanto, debruço-me sobre as controvérsias em torno do uso do meio ambiente em rituais religiosos da umbanda e do candomblé, mais precisamente sobre a proposta de implementação da política pública do projeto do Espaço Sagrado da Curva do S, na avenida Edson Passos, no Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. A emergência de conflitos envolvendo, de um lado, o direito ao livre exercício de culto, a partir dos usos de espaços públicos para a realização de rituais religiosos, e, de outro, reivindicações que visam a conservação da natureza, explicita a tensão entre o reconhecimento da diversidade no plano da cidadania e no plano da biodiversidade. Assim, torna-se visível o descompasso entre direitos constitucionalmente garantidos e a preservação ambiental. Parece relevante pensar, portanto, nas variações da concepção e da apropriação do espaço público, aludindo, entre outras coisas, às múltiplas dimensões da noção de cidadania. Palavras-chave : religiões afro-brasileiras; espaço público; controvérsias; cidadania; reconhecimento. Nos contextos multiculturais contemporâneos a diferença configura-se como um importante dispositivo na produção das demandas por direitos e nas lutas por reconhecimento empreendidas pelos sujeitos. Podemos observar novas formas de reivindicações que incorporam às dinâmicas políticas, jurídicas e morais as noções como “ diversidade cultural” , étnica, religiosa, fazendo com que o acento à diferença seja a força motriz das mobilizações coletivas. Nessa direção, o acionamento de uma identidade diferenciada permite ao ator conceder visibilidade a suas lutas, e alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível” , permitindo com que as demandas e justificações ganhem inteligibilidade e gramaticalidade nas arenas públicas. A passagem da condição de invisibilidade 3 para a visibilidade, como propõe Honneth (2014), implica não apenas no conhecimento, mas no reconhecimento do outro 1 Trabalho apresentado na V Reunião Equatorial de Antropologia e XIV Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste, realizadas entre os dias 19 e 22 de julho de 2015, em Maceió, AL, Brasil. 2 Mestranda em Antropologia pelo PPGA/UFF e pesquisadora associada ao Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP). Contato: [email protected]

Transcript of demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel...

Page 1: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

As religiões afro-brasileiras no espaço público: uma discussão inicial sobre

demandas por direitos e reconhecimento1

Lucía Copelotti2

Resumo: Esta comunicação tem como objetivo refletir sobre os contornos que assumem

as reivindicações por direitos e reconhecimento empreendidas pelos religiosos de matriz

afro-brasileira. Para tanto, debruço-me sobre as controvérsias em torno do uso do meio

ambiente em rituais religiosos da umbanda e do candomblé, mais precisamente sobre a

proposta de implementação da política pública do projeto do Espaço Sagrado da Curva

do S, na avenida Edson Passos, no Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro.

A emergência de conflitos envolvendo, de um lado, o direito ao livre exercício de culto,

a partir dos usos de espaços públicos para a realização de rituais religiosos, e, de outro,

reivindicações que visam a conservação da natureza, explicita a tensão entre o

reconhecimento da diversidade no plano da cidadania e no plano da biodiversidade.

Assim, torna-se visível o descompasso entre direitos constitucionalmente garantidos e a

preservação ambiental. Parece relevante pensar, portanto, nas variações da concepção e

da apropriação do espaço público, aludindo, entre outras coisas, às múltiplas dimensões

da noção de cidadania.

Palavras-chave: religiões afro-brasileiras; espaço público; controvérsias; cidadania;

reconhecimento.

Nos contextos multiculturais contemporâneos a diferença configura-se como um

importante dispositivo na produção das demandas por direitos e nas lutas por

reconhecimento empreendidas pelos sujeitos. Podemos observar novas formas de

reivindicações que incorporam às dinâmicas políticas, jurídicas e morais as noções

como “diversidade cultural”, “étnica”, “religiosa”, fazendo com que o acento à

diferença seja a força motriz das mobilizações coletivas. Nessa direção, o acionamento

de uma identidade diferenciada permite ao ator conceder visibilidade a suas lutas, e

alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”,

permitindo com que as demandas e justificações ganhem inteligibilidade e

gramaticalidade nas arenas públicas.

A passagem da condição de invisibilidade3 para a visibilidade, como propõe

Honneth (2014), implica não apenas no conhecimento, mas no reconhecimento do outro

1 Trabalho apresentado na V Reunião Equatorial de Antropologia e XIV Reunião de Antropólogos do

Norte e Nordeste, realizadas entre os dias 19 e 22 de julho de 2015, em Maceió, AL, Brasil. 2 Mestranda em Antropologia pelo PPGA/UFF e pesquisadora associada ao Núcleo Fluminense de

Estudos e Pesquisas (NUFEP). Contato: [email protected]

Page 2: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

por meio de um ato de consideração das singularidades que cada pessoa aporta no

espaço público. A luta por reconhecimento implica, assim, na construção intersubjetiva

dos atores, na medida em que o self é o dispositivo moral por excelência de

reconhecimento da condição do sujeito no contexto contemporâneo. A produção de

nossa identidade diz respeito, dessa forma, a um processo, ao mesmo tempo, autônomo

e relacional, pois dependemos do reconhecimento e da estima alheia de modo a

construirmos uma auto-imagem positiva (HONNETH, 2014).

De acordo com Charles Taylor (2000), a emergência de uma política do self nas

sociedades modernas4 advém da mudança de um registro da honra para o registro da

dignidade. Segundo o autor, no registro da honra, correspondente ao antigo regime, a

identidade se expressa associada ao status, ao papel social instransponível do indivíduo

inscrita numa pirâmide societária. Por sua vez, a noção de dignidade, ao conferir uma

humanidade comum às pessoas e solapar as hierarquias que informavam esse

pensamento do antigo regime, desloca esse sentido de identidade numa direção na qual

a singularidade (racial, étnica, gênero, etc.) é a tônica do modelo.

O declínio da sociedade hierárquica e a emergência da modernidade possibilitou,

com a passagem do registro da honra para o da dignidade, a emergência de uma política

da autenticidade. Esse processo de transição repercutiu, como sugere Taylor, no modo

como o “individualismo igualitário”, enquanto uma ideia valor nos termos dumontiano,

reforçou a política de autenticidade diante da pluralização e singularização dos papéis e

identidades dos atores na arena pública contemporânea. Ou seja, nesse contexto, o

reconhecimento da autenticidade dos sujeitos supõe a organização de um mundo no qual

cada self é uma unidade, uma célula autônoma da organização societária. Segundo o

autor, o ideal de autenticidade pauta-se em uma ideia de que o sujeito deve ser fiel a si

mesmo na busca de sua autorrealização e autodefinição, salvaguardando seus aparatos

identitários específicos.

Desse modo, a emergência de um vocabulário político-moral associado ao self

realça as diferenças existentes entre indivíduos que se pensam e se auto-representam em

suas singularidades identitárias. Este processo, de singularização e diferenciação dos

sujeitos, tem desencadeado a conformação de papéis e identidades sociais vinculadas

3 Como sugere Honneth (2014), invisibilidade diz respeito não a uma condição relativa à presença fisica,

mas a uma não existência no mundo social, motivada pela ausência de reconhecimento. 4 Sociedades democráticas ocidentais onde prevalecem modelos igualitários com foco nos direitos

individuais e na igualdade de direitos entre os cidadãos.

Page 3: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

aos pertencimentos de múltiplas naturezas, tais como o religioso e o étnico (Mota,

2014).

A proposta de Charles Taylor (2000) aponta para a centralidade da defesa do

reconhecimento público da diferença, conjugada à afirmação de direitos fundamentais e

direitos coletivos, como forma de garantir a proteção dos grupos culturais. Neste

sentido, o autor sugere que a defesa de uma política de reconhecimento deve pautar-se

no valor da diferença e na sua relevância para a constituição das identidades pessoais e

de grupos, além de fomentar uma ideia de igualdade que busca tratar igualmente os

diferentes, em busca de uma igualdade equitativa. Taylor (2000) contrapõe-se, assim, à

ideia de cidadania liberal tradicional consubstanciada somente na igualdade formal e

abstrata entre os indivíduos, apostando em uma noção de cidadania que engloba o

direito à diferença e constitui-se pela luta por direitos diferenciados.

Nesse sentido, Luís Roberto Cardoso de Oliveira(2002) chama a atenção para a

importância de explicitar as formas diversas como diferentes contextos jurídicos e

políticos lidam com a questão do reconhecimento das diferenças e do tratamento das

demandas por direitos diferenciados. Tal observação torna-se pertinente na medida que,

ao acentuar o caráter diferencial desses tratamentos, ilumina aspectos relevantes na

configuração dessas lutas por direitos de cidadania muitas vezes invisibilizados por

abordagens jurídico-políticas mais formalistas, que comparam sem atender para a

singularidade de cada contexto.

Na obra Direito legal e insulto moral: dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e

EUA (2002), Luís Roberto Cardoso de Oliveira nos apresenta o resultado de pesquisas

desenvolvidas sob uma perspectiva comparada e por contraste, que abordam as

dimensões legal e moral dos direitos e da cidadania tomando como campo empírico o

caso brasileiro, canadense e americano. O que o autor nos apresenta ao longo do

capítulo seis e sete do livro é uma reflexão sobre as possibilidades da articulação entre

direitos individuais e identidades coletivas para a definição das cidadanias nas

democracias contemporâneas, a partir do exame da relação entre as dimensões legais e

morais da cidadania, iluminando uma dimensão das relações sociais que, normalmente,

não é considerada nas análises legais e políticas.

Desta forma, como observa Cardoso de Oliveira (2002) a ótica liberal

anglo-americano está orientada pela importância que é atribuída à universalização de

direitos entre os cidadãos, assentada nos direitos individuais e numa visão radical sobre

a igualdade de direitos entre os cidadãos. Assim, apesar de algumas diferenças

Page 4: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

importantes, tanto no caso das demandas por reconhecimento do Québec ou daquelas

associadas ao multiculturalismo nos Estados Unidos, o tratamento uniforme,

preconizado por essa lógica liberal, é percebido pelos indivíduos que estão

reivindicando o reconhecimento de suas identidades, como produtor de discriminação e

de negação ao status igualitário por eles reivindicado. Nesses casos, a desconsideração

constitui-se como o reverso do reconhecimento.

No contexto brasileiro, por sua vez, a noção de igualdade constitui-se alicerçada

sob uma lógica do tratamento diferenciado, baseada na constatação da desigualdade de

status entre os cidadãos. Nesta concepção, a realização da igualdade no plano da justiça

supõe a relativização ou diferenciação de direitos no plano da cidadania. Dessa forma, a

igualdade no Brasil é concebida sob uma lógica do tratamento diferenciado, produzindo,

desse modo, a distribuição desigual de direitos, pois há uma dificuldade em articular a

visão abstrata e amplamente compartilhada sobre a igualdade de direitos no plano da

cidadania e a orientação freqüentemente hierárquica das ações ou práticas cívicas na

vida cotidiana.

Em um investimento similar ao realizado por Cardoso de Oliveira (2002), a

proposta de Fabio Reis Mota (2014), ao debruçar-se sobre a questão das políticas de

reconhecimento, indica a necessidade de compreendermos as implicações locais e os

contextos às quais as categorias analíticas e nativas de outras tradições jurídico-politicas

estão submetidas. Em sua obra Cidadãos em toda parte ou cidadãos à parte?, Mota

(2014) analisa a forma como os diversos dispositivos políticos e jurídicos são

agenciados nas mobilizações coletivas pelos grupos que, a partir de uma pluralidade de

justificações e argumentos, demandam no espaço público o acesso a direitos e

reconhecimento por meio da reivindicação de identidades diferenciadas. Segundo o

autor, a articulação de demandas fundamentadas em direitos de cidadania com

demandas por reconhecimento de identidades indica novas formas de ação coletiva no

espaço público.

A partir do estudo comparativo entre Brasil e França (MOTA, 2014),

acompanhando as demandas de direitos e reconhecimento dos quilombolas e dos

antilhanos, respectivamente, o autor aponta para os contornos singulares que essas

demandas assumem, dado o caráter diferencial das lógicas jurídico-políticas que

Page 5: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

informam cada contexto5. Mota (2014) procura evidenciar “os dispositivos discursivos

dos atores, explicitando suas gramáticas e sensibilidades jurídicas, para melhor

compreender como os atores coordenam suas ações nesses diferentes espaços públicos”

(p.150). Assim, no espaço público francês o que se observa é a tendência a uma forte

recusa dos vínculos e diacríticos dos sujeitos para a promoção da justiça, sejam eles

culturais, raciais, etc. De forma distinta, no caso brasileiro se produz uma valorização

dos laços, de uma cultura tradicional ou de uma etnia diferenciada, para a aquisição e

distribuição dos bens simbólicos da justiça.

A partir dos dados da pesquisa que venho desenvolvendo para o mestrado, neste

texto, apresentarei uma discussão inicial acerca dos contornos que assumem as

demandas por direitos e reconhecimento empreendidas pelos religiosos de matriz afro-

brasileira. Para tanto, debruço-me sobre as controvérsias em torno do uso do meio

ambiente em rituais religiosos da umbanda e do candomblé, mais precisamente sobre a

proposta de implementação da política pública do projeto do Espaço Sagrado da Curva

do S, na avenida Edson Passos, no Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. De modo geral,

meu interesse consiste em tomar emprestado as linhas condutoras das controvérsias

públicas que envolvem duas gramáticas políticas, bem como dois mundos (Boltanski e

Thévenot, 1991): o religioso e o ambiental. Logo, interessa-me seguir os atores

envolvidos nesses cenários de modo a tornar inteligíveis as operações práticas

discursivas que os mesmos acionam para dar visibilidade às suas demandas de direitos e

reconhecimento.

Com a intenção de perceber como estes agentes se inserem no espaço público e

os contornos que assumem suas reivindicações, no ano de 2014 acompanhei algumas

atividades promovidas no âmbito do projeto. A escolha desse cenário, como um dos

casos a serem explorados parece pertinente na medida em que a luta dos religiosos pela

implementação de um “espaço de uso público religioso” legalmente instituído e com a

5 A comparação entre as lutas por reconhecimento dos antilhanos na França e das comunidades

“remanescentes de quilombos” no Brasil apresentadas por Mota (2014) é relevante na medida em que

coloca dois sistemas distintos em contraste. Se, por um lado, a ideologia universalista francesa opõe-se

radicalmente a qualquer tipo de tratamento diferenciado no espaço público, por outro lado, no Brasil

predomina uma ideologia particularista do acesso ao público, baseada na concepção hie rárquica de

desigualdade de status entre os cidadãos. Faz-se necessário perceber, então, como as categorias são

construídas e apropriadas de forma dinâmica pelos atores e como eles mobilizam os dispositivos

classificatórios para reivindicar “justiça” ou “reconhecimento”.

Page 6: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

estrutura adequada onde possam realizar suas práticas rituais e culturais, configura-se

como uma demanda por direitos de cidadania.

A proposta de implementação do Espaço Sagrado da Curva do S

As religiões afro-brasileiras não restringem aos terreiros as suas práticas rituais,

uma vez que para sua realização é preciso, em muitos casos, a utilização de espaços

externos; é preciso circular pela cidade à procura de lugares e objetos que permitam a

realização das oferendas; a realização do axé6(Silva, 1995, p.197). Entre esses lugares,

destacam-se os espaços naturais, onde os diferentes grupos religiosos realizam seus

rituais devocionais.

Assim, parece necessário atentar para os efeitos produzidos pelas controvérsias

em torno da presença de resíduos religiosos na natureza, resultantes das oferendas

depositadas em espaços públicos, sobretudo em áreas de conservação ambiental, uma

vez que tais situações têm influenciado o modo de organização do segmento afro-

brasileiro, bem como as respostas fornecidas pelos religiosos à sociedade.

O grupo Meio Ambiente, Espaço Sagrado foi criado no ano de 1997, no âmbito

do Parque Nacional da Tijuca, com a finalidade de refletir acerca da resolução dos

conflitos envolvendo o uso público religioso de áreas de conservação ambiental. Desde

então as religiões de matriz afro-brasileira reivindicam o direito de continuar utilizando

o espaço da Curva do S na realização dos seus rituais religiosos. A escolha deste local

se deu, não apenas em função de sua utilização desde muito tempo por praticantes do

candomblé e da umbanda para a realização de atividades religiosas, mas também por

oferecer facilidade de acesso e privacidade aos usuários, uma vez que seus atrativos

naturais estão mais afastados da estrada (COSTA, 2008).

O projeto de instituição do Espaço Sagrado da Curva do S teve início em

outubro de 2011. Tal projeto foi pensado pelos seus propositores, como uma política

pública que visa criar um espaço específico para a realização de rituais religiosos nos

entornos de uma unidade de conservação7, mais precisamente o Parque Nacional da

6 É energia mágica, universal, sagrada, contida e transmitida através de elementos representativos da

natureza. 7 Segundo a Lei nº 9.985/2000, que regulamenta a art. 225 da Constituição Federal, entende-se por

unidade de conservação o “espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais,

com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de

conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias

adequadas de proteção”.

Page 7: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

Tijuca (PNT), situado na cidade do Rio de Janeiro. A proposta de instituição do Espaço

Sagrado insere-se no âmbito da gestão compartilhada do PNT entre o poder público

federal, estadual e municipal, em diálogo com as lideranças religiosas e articulado pelo

programa Ambiente em Ação e pelo seu núcleo Elos da Diversidade.

O programa Ambiente em Ação é fruto da iniciativa da Superintendência de

Educação Ambiental da Secretaria de Estado do Ambiente do Rio de Janeiro

(SEAM/SEA) em parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e

tem como objetivo “apoiar a construção coletiva da sustentabilidade ambiental através

da articulação, fortalecimento e implementação de políticas públicas voltadas para

questões sociais, culturais e ambientais” (CÔRREA et all., 2013:3). O programa

divide-se em três linhas de ação que tem como foco a realização de atividades junto a

grupos sociais discriminados, marginalizados e em maior vulnerabilidade social e

ambiental, como os moradores de comunidades de favelas cariocas, os praticantes da

umbanda e do candomblé, e o público LGBT8, buscando enfrentar os conflitos,

discriminações, preconceitos e injustiças sociais e ambientais históricas vivenciadas

por esses segmentos. Nesse contexto, o núcleo Elos da Diversidade apresenta-se como a

linha de ação voltada para os religiosos e tem por objetivo enfrentar o conflito gerado

pelo uso religioso de áreas naturais protegidas por lei, como parques e reservas. Por

meio do desenvolvimento do diálogo entre os saberes tradicionais e o conhecimento

científico, a intenção é alcançar um objetivo comum: o cuidado e proteção da natureza.

O projeto de implementação do Espaço Sagrado da Curva do S surgiu, então,

como uma das propostas do Elos da Diversidade. Segundo Aureanice Côrrea9, o projeto

é

[...] fruto desse processo coletivo, [no qual] estão sendo construídos

processos educativos dialógicos com o povo de santo e políticas

públicas que respeitem e garantam a diversidade da vida e das culturas em

unidades de conservação e seu entorno, com foco na criação de um Espaço

Sagrado, coletivamente pensado e gerido e legalmente instituído, que

atenda as necessidades e demandas da conservação da natureza e de

seu público religioso usuário. [...] através dessa iniciativa busca-se resgatar

a sacralidade da natureza e fortalecer os elos entre os conhecimentos

tradicionais e científico, como meios para a sustentabilidade social e

ecológica. (CORREA et al.,2013, p.4)

8 LGBT é a sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros.

9 Coordenadora Acadêmica do Programa Ambiente em Ação e Diretora do Instituto de Geografia da

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Page 8: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

Em uma produção audiovisual de divulgação do projeto do Espaço Sagrado da

Curva do S10 destaca-se a importância de gerenciar o conflito referente à necessidade de

conservação e direito à livre expressão religiosa, disposto pelo Artigo 5º, inciso VI da

Constituição Federal11. Para Carlos Frederico Loureiro, coordenador pedagógico do

Elos da Diversidade, o Espaço Sagrado tem duas dimensões importantes: uma relativa

à estrutura física, da organização do espaço; outra referente à gestão, organização e

participação das pessoas na definição das diretrizes, no cuidado do espaço. Busca-se,

então, estruturar nessa área um espaço tanto do ponto de vista físico, quanto estabelecer

normas para o uso adequado do espaço, de forma a encompassar a preservação

ambiental e o livre exercício religioso.

Nessa direção, Lara Moutinho da Costa, ex-Superintendente de Educação

Ambiental e uma das idealizadoras do projeto, aponta para a necessidade de

regulamentação da prática, uma vez que “a religião busca também a conservação da

natureza”. Para ela, a religião é erroneamente acusada de ser poluidora em decorrência

da falta de uma política pública de coleta regular de resíduos nesses espaços de uso

tradicional De acordo com suas palavras: “Está na hora do poder público encarar isso de

frente e a gente propor a regulamentação da prática. Compatibilizando a conservação

com o uso religioso, o que é totalmente possível. O nosso desafio é esse mesmo”.

Os embates em torno da apropriação do espaço para a realização de rituais

religiosos oferecem alguns elementos para refletirmos sobre articulação entre diferentes

cosmologias e o reconhecimento da diversidade dos usos dos espaços públicos. Lima

(2000) aborda o dilema do espaço público brasileiro observando que nossa cosmologia

de administração de conflitos se baseia na suposição de que o público é pensado como

unidade referida ao Estado. Supõe-se que regras não são aplicadas de forma universal,

mas sim particularizadamente e estão sob domínio estatal. E é essa cosmologia da

apropriação diferencial, particularizada, do público no Brasil que propicia dificuldade

de gerenciamento dessas múltiplas formas de apropriações.

Torna-se necessário refletir, então, acerca da regularização dos espaços de

acordo com os seus usos e apropriações. De modo a problematizar como a apropriação

10

Os nomes foram preservados devido à condição de “figura pública” desses sujeitos. Essas fa las

compõem um vídeo de divulgação do Projeto do Espaço Sagrado da Curva do S, disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=B4wJPasRm6k#t=105 11

O Art. 5º , no seu inciso VI determina: “ é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo

assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de

culto e a suas liturgias” (BRASIL, 1988)

Page 9: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

do espaço público liga-se, em um cenário multicultural, à luta por direitos de cidadania

e às reivindicações do reconhecimento das autenticidades e diferenças (TAYLOR,

2000).

Dentro desse contexto, o projeto justifica-se pela constatação de que a

proposição de constituição de um espaço, legalmente delimitado, onde as religiões afro-

brasileiras possam desenvolver suas práticas rituais e culturais, inscreve-se em um

processo de luta desse segmento não só pela garantia de seus direitos constitucionais,

mas como um importante instrumento no combate às situações de intolerância, que

pretendem coibir ou mesmo reprimir as práticas religiosas de matriz africana. Como

afirma Aureanice,

A prática cultural e religiosa do povo de santo precisa ser respeitada. [...] nós

ouvimos relatos “ah, isso aqui é coisa do demônio!” Não! Nós estamos aqui

marcando no espaço de que orixá é axé, é beleza da vida, não tem nada de

demonizar. Não aceitamos esse estigma; esse estigma ficou no passado .

Então hoje, inclusive nessa ação de combate à intolerância religiosa, nós

temos a presença do Pr. Franciso. Que está mostrando que os homens de fé,

os homens de bem, eles se entrelaçam, e não se separam. Essa é a grande

verdade. E essa é a grande beleza da nossa luta. [Aureanice Côrrea,

dezembro de 2014]

A história das religiões de matriz afro-brasileira está permeada por atos de

desrespeito e de negação de direitos, devido ao lugar marginal que tais religiões ocupam

na nossa sociedade, e a uma série de preconceitos e discriminações que recaem sobre

eles, baseadas “na produção histórica de representações negativas sobre as religiões

afro-brasileiras” (ORO e BEM, 2008: 306). Essas representações refletem, como sugere

Ana Paula Miranda (2010), o tratamento concedido a esses religiosos, que tem a sua

condição de “pessoas dignas” negada, na medida em que são invisibilizados enquanto

sujeitos merecedores de reconhecimento pleno de seus direitos de cidadania. Como

salienta a autora, a agenda política contemporânea desses grupos “tem sido marcada por

solicitações que reafirmam suas identidades diferenciadas como um elemento positivo

na luta pelo reconhecimento em face da sociedade nacional” (MIRANDA, 2010:144).

Page 10: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

O uso “público religioso” de áreas de preservação ambiental e a conformação do(s)

espaço(s) público(s) da cidadania

O projeto do Espaço Sagrado da Curva do S está associado a uma proposta de

desmistificação dessas expressões religiosas e de suas práticas, buscando combater as

imagens distorcidas que se tem sobre elas, bem como de orientação e conscientização

dos religiosos para a importância da preservação do meio ambiente por meio da criação

de cadernos de orientação, da realização de mutirões de limpeza12 e de oficinas que

propõem a readequação das práticas tradicionais das religiões afro-brasileiras, de modo

a “auxiliar na conduta diante da natureza e estimular cada praticante a se mobilizar para

protegê-la e para conquistar o direito de realizar suas práticas religiosas em espaços

preservados pelo Estado brasileiro” (CÔRREA et alli, 2014).

A emergência de conflitos envolvendo, de um lado, o direito ao livre exercício

de culto, a partir dos usos de espaços públicos para a realização de rituais religiosos, e,

de outro, reivindicações que visam à preservação ambiental, explicita a tensão entre o

reconhecimento da diversidade no plano da cidadania e no plano da biodiversidade.

Tornando visível o descompasso entre direitos constitucionalmente garantidos e a

preservação ambiental, fazendo desta uma justificativa para se desconsiderar, em muitos

casos, garantias legais (MOTA, 2014). A tentativa de proibição do uso de áreas do

Parque Nacional da Tijuca (PNT) para a realização de rituais religiosos de matriz afro-

brasileira configura-se na opinião de Aureanice como uma prática de exclusão

concebida como uma ação de “racismo ambiental”, uma vez que outras denominações

religiosas realizam suas práticas no PNT13. Assim, de acordo com suas palavras,

O racismo ambiental está vinculado à ação da exclusão do indivíduo de

professar sua prática religiosa. No caso das religiões de matriz africana esses

são mais discriminados, porque é uma religião vinculada ao negro, a esse

passado...O racismo no Brasil não é dito, mas é vivido. [...] Ai a

preocupação do Espaço Sagrado. Quando a gente está firmando este espaço

12 Os mutirões de limpeza na Curva do S, realizados semanalmente, buscam dar visibilidade pública e

recuperar, do ponto de vista religioso, a área em que se firmará o Espaço Sagrado. Esses mutirões ficam a

cargo dos monitores socioambientais do programa Ambiente em Ação. 13 De acordo com Boniolo (2014), segundo um levantamento realizado pelas coordenações de cultura e

de educação ambiental do PNT os “grupos religiosos” que se destacam pelo uso do Parque são: “Igreja

Católica, Druidismo e Wicca, Budista/Taoísta, Movimento Interreligioso (MIR), Espíritas, Ciganos, Afro -

Brasileira, Vaishnava, Xamanismo, Esotéricos e Evangélicos”. Dentre as principais atividades realizadas

por esses grupos podemos citar: “celebração de casamentos e batizados, missas, orações individuais ou

coletivas, meditações, cânticos, adoração à natureza, leituras de livros, danças, rituais de exorcismo,

cerimônias festivas, banhos e oferendas” (PLANO DE MANEJO, 2008, Anexo XXXII).

Page 11: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

aqui, [nossa preocupação] é dizer “não, não exclua! Não aceitamos essa

exclusão!”. Nós temos o direito de professar nossas práticas, nossa religião,

de fazer nossos ritos na natureza. Até por que a natureza é nosso maior bem

simbólico.

A solução encontrada pelos integrantes do Elos da Diversidade, para garantir a

possibilidade dos praticantes da umbanda e do candomblé continuarem utilizando

espaços dentro do Parque e do seu entorno, como a Curva do S, busca promover a

regulamentação e reformulação das práticas rituais pelo desenvolvimento de ações de

conscientização e educação ambiental que visam a compatibilizar a preservação da

natureza com o uso religioso.

Em dezembro de 2014 participei da 5ª Oficina do Espaço Sagrado da Curva do

S, evento que marcou o fim da primeira etapa do projeto que, como mencionei

anteriormente, iniciou os seus trabalhos em outubro de 2011. A última atividade

programada pelos integrantes do Elos da Diversidade, no âmbito do projeto de

constituição do Espaço Sagrado e do programa Ambiente em Ação, consistiu na

inauguração das três placas instaladas no local e no lançamento das cartilhas. Com o

título “Orixá é Natureza – Cuidando das florestas e das águas”, esses materiais

pretendem orientar os adeptos do candomblé e da umbanda “para práticas

culturais/religiosas em unidades de conservação e áreas naturais protegidas por lei”,

bem como contribuir “para o conhecimento sobre o direito [...] de utilizar os espaços

públicos para praticarmos nossos rituais e acerca da necessidade de preservarmos a

natureza”. As cartilhas, organizadas por acadêmicos vinculados ao projeto, integrantes

da SEA e religiosos, estão divididas em diferentes seções nas quais, cada uma dessas,

chama a atenção para alguns dos aspectos centrais envolvidos na realização de rituais

religiosos em áreas naturais. Dentre essas, a seção intitulada “Sobre a garantia dos

nossos direitos”14 ressalta:

Temos o direito de realizar nossas práticas na natureza. Cabe ao poder

público garantir nossos direitos e criar espaços com políticas públicas que

assegurem locais limpos, acessíveis, preservados e protegidos, assim como,

as fontes, as matas, nascentes pertencentes aos territórios-terreiros. A

liberdade religiosa está na Constituição Federal, que em seu artigo 5º, inciso

VI, diz: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo

14

A cartilha está organizada em sete seções: Nossas Matas são Sagradas; Sobre a garantia dos nossos

direitos; Cobrar direitos exige de nós também responsabilidades; Algumas orientações de como proceder

no contato com áreas naturais preservadas; Quais materiais devemos usar; E o uso do fogo?; A

simplicidade dos orixás e a integração com a natureza.

Page 12: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei,

proteção aos locais de culto e suas liturgias”. (CÔRREA et all., 2014)[grifos

meus]

No caso das cartilhas, o que esses materiais parecem indicar é que há o

entremeamento de duas concepções dentro do espaço público da cidadania. Por um

lado, temos o espaço público que poderíamos chamar de cívico, no qual se reivindica e

mobiliza um vocabulário que faz referência aos dispositivos jurídicos – instrumentos,

decretos, leis constitucionais - que visam o reconhecimento dos direitos dos grupos

religiosos.

Por outro lado, vemos o aspecto do sagrado, do lugar da conformação de uma

cidadania que não é do plano cívico, mas da espiritualidade, e que revela a

bidimensionalidade na conformação do espaço público, aportada por essa dimensão. Na

cartilha, faz-se menção aos territórios-terreiros, espaços naturais, onde os diferentes

grupos religiosos realizam seus rituais devocionais, os quais são carregados de

conteúdos simbólicos e são identificados como espaços sagrados, espaços santuários,

sítios naturais sagrados, ou seja, lugares propícios para o contato com as forças da

criação e para realização de práticas religiosas.

Nesse sentido, um aspecto relevante no que diz respeito aos contornos que

assumem tais demandas diz respeito ênfase dada pelos religiosos à necessidade do poder

público reconhecer as singularidades das práticas religiosos e culturais de matriz afro-

brasileira, não apenas por uma relação particular com a natureza, mas atendendo

também para os elementos que constituem sua cosmologia e configuram sua visão de

mundo.

Nós estamos falando de ancestralidade. É uma satisfação ter aqui o poder e a

academia, mas o nosso maior valor, a nossa maior riqueza, a nossa barra de

ouro, é a sabedoria da tradição e da ancestralidade. [...] Para lidar conosco

também tem que abrir os ouvidos, para ouvir qual é o nosso olhar; como nós

entendemos. Porque não somos só nós: são os orixás, são as entidades; todas

as energias . [Mãe Torody D’Ogum, fala durante o lançamento do Espaço

Sagrado Cachoeira Rio da Prata, dezembro de 2014]

Desse modo, a luta pela instituição do Espaço Sagrado envolve uma

multiplicidade de seres – humanos e não humanos – que se articulam e influenciam as

disputas e os processos. De acordo com Aureanice, “o projeto fica entre a razão e a

sensibilidade”. A razão, porque o objetivo é a constituição do Espaço Sagrado e, para

tanto, faz-se preciso trabalhar para efetivá-lo; a sensibilidade, porque que os orixás

Page 13: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

“participam o tempo todo das decisões”. Assim, não se trata de uma política pública

qualquer,

Nós temos o encantamento de uma política pública15

e é isso que os

dirigentes, secretário, governador, têm que entender. Não é uma política

pública qualquer, ela é encantada. Porque ela é também, e ela é mais do que

tudo, o desejo dos nossos orixás. [Aureanice, dezembro de 2014, grifos

meus]

Nesse contexto, a dimensão ecológica, a cívica e a espiritual apresentam-se

imbricadas na constituição das demandas elaboradas pelo grupo diante do poder

público. Portanto, parece necessário romper com a normatividade emprestada à ideia de

cidadania e de espaço público. Parece relevante pensar nas variações dessa concepção,

atendendo, entre outras coisas, para as múltiplas dimensões da construção dos espaço(s)

público(s) da(s) cidadania(s).

O que essas múltiplas dimensões revelam são operações e representações

distintas das que ordenam uma lógica estritamente cívica, produtora de uma

compartimentalização radical entre público e privado; entre Estado e religião, etc. Essa

lógica não é equivalente ao contexto que venho acompanhando que parece indicar que

não se trata de uma questão anticívica ou mesmo anti-laicidade. Não há uma oposição

entre o religioso e o cívico. Antes, aponta-se para uma outra conformação do civismo,

na qual há a possibilidade de inscrição do sagrado como constitutivo, inclusive, do

espaço da cidadania, indicando a existência de formas diferenciadas de conformação

dos espaços públicos.

Portanto, torna-se fundamental atendermos para o cárater local ou situado das

lógicas simbólicas e jurídico-politicas que possibilitam aos atores formular suas

demandas por direitos, levando em consideração as crenças, moralidades, valores,

códigos e significados compartilhados por estes. Uma vez que toda produção cultural é

local, ou seja, é feita a partir de determinado contexto, esta condição hermenêutica

carrega consigo a responsabilidade da percepção da pluralidade de significações que

emergem dos diferentes “saberes locais” (GEERTZ, 2004).

15

Segundo Aureanice, essa foi uma observação realizada por Roberta Boniolo (2014) em sua dissertação

acerca do projeto do Espaço Sagrado da Curva do S, e da qual ela se apropriou por considerá-la

“fantástica”.

Page 14: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

Considerações Finais

Ao longo do texto procurei chamar a atenção para a importância de atendermos

para o caráter contextual envolvido na mobilização das categorias acionadas pelos

atores em suas demandas por reconhecimento e salientar os paradoxos das lógicas que

informam a conformação dos espaços públicos.

Nesse sentido, inspirada pelas relevantes contribuições oferecidas pelos autores

apresentados acima, busquei salientar que a possibilidade de discutir o “uso público

religioso” de áreas de conservação natural aponta para a singularidade das lógicas que

atuam na configuração das demandas por direitos de cidadania.

Compreender o caráter local e situado das lógicas simbólicas e jurídico-politicas

que informam o contexto brasileiro, é fundamental na produção de uma análise das

controvérsias em torno do uso religioso do espaço público, bem como na apreensão dos

contornos particulares que ganham as lutas por direitos e reconhecimento empreendidas

pelos praticantes das religiões de matriz afro-brasileira.

A emergência de demandas por reconhecimento, como a que informa a luta dos

candomblecistas e umbandistas para a constituição do Espaço Sagrado da Curva do S, é

possível no contexto brasileiro, mas ela não é extensiva a outros contextos, informados

por diferentes gramáticas morais e políticas. Pois como assinala Mota (2014) a

mobilização de identidades ou de pertencimento a grupos étnicos como importantes

dispositivos na luta por direitos e reconhecimentos, pode ser observada em diferentes

contextos multiculturais, entretanto devemos atender para o fato de que as categoriais se

constituem “(...) de acordo com as gramáticas e cosmologias locais e são apropriadas,

lidas e incorporadas pelos atores no espaço público de modo diverso” ( p.28).

Desta forma, a incorporação da diferença permite conceder contornos

particulares não só à configuração das demandas, mas à própria constituição dos

espaço(s) público(s) da(s) cidadania(s), uma vez que estes se constituem sob lógicas

próprias, “que informam as ações e cosmologias dos atores em contextos particulares”

(MOTA, 2014, p.27).

Referências Bibliográficas

BOLTANSKI, Luc e THÉVENOT, Laurent. De la justification. Les économies de la

grandeur. Paris: Gallimard, 1991.

Page 15: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

BONIOLO, Roberta Machado. “Um tempo que se faz novo”: o encantamento de uma

política pública voltada à regulamentação dos rituais de religiões afro-brasileiras.

Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade

Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2014.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Direito legal e insulto moral: dilemas da

cidadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: Por uma teoria interpretativa da cultura. In:

A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p.13-41.

HONNETH, Axel. Visibilité et invisibilité. Sur l'épistémologie de la “ reconnaissance .

In.: Revue du MAUSS, 2004/1no 23, p. 137-151.

______________ Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.

São Paulo: Ed. 34, 2003. 296p.

LIMA, Roberto Kant de. A antropologia da academia: quando os índios somos nós. 2.

ed. rev. ampl. Niterói: EdUFF, 1997

MIRANDA, Ana Paula M. Entre o privado e o público: considerações sobre a

(in)criminação da intolerância religiosa no Rio de Janeiro. In: Anuário Antropológico,

2010.

MOTA, Fabio Reis. Cidadãos em toda parte ou cidadãos à parte? Demandas de

direitos e reconhecimento no Brasil e na França. Rio de Janeiro: Conseqüência, 2014.

_______________. O meio ambiente contra a sociedade? Controvérsias públicas,

reconhecimento e cidadania no Brasil. DILEMAS - Vol. 7 – nº1 - JAN/FEV/MAR

2014: 39-57

_______________. Regimes de envolvimento e formas de reconhecimento no Brasil e

na França. Niterói: Revista Antropolítica, 32(1): 129-147, 2012

SILVA, Vagner Gonçalves da. Orixás da Metrópole. Petrópolis: Vozes, 1995.

TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. In: Argumentos Filosóficos. São

Paulo: Edições Loyola, 2000.

Fontes

Page 16: demandas por direitos e reconhecimento1 Lucía Copelotti Copelotti...alcançar, como sugere Axel Honneth (2003), a condição de cidadão “visível”, ... espaço público. A luta

CÔRREA, Aureanice; LOUREIRO, Carlos Frederico; PIRES, Bianca S. Orixá é

Natureza: cuidando das florestas e das águas. Material impresso, 2014.

CÔRREA, Aureanice; COSTA, Lara Moutinho da; LOUREIRO, Carlos Frederico. O

Processo de Implantação do Espaço Sagrado em Unidade de Conservação: o Caso da

Curva do S no Parque Nacional da Tijuca na Cidade do Rio de Janeiro. Disponível em

http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal14/Procesosambientales/Impacto

ambiental/11.pdf Acesso em 17 jul. 2014

COSTA, Lara Moutinho da. A Floresta Sagrada Da Tijuca. Estudo de Caso de conflito

envolvendo uso público religioso de Parque Nacional. Dissertação de Mestrado,

Programa de Estudos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social,

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2008.