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Documento do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial Associado à Fundação Armando Alvares Penteado - N. 41 2006 Democracia 7: Aló Presidente Petróleo e Democracia na Venezuela Norman Gall Parte 2: A revolução bolivariana Hoje, aos 52 anos de idade, Chávez é astro e mestre de cerimônias de seu próprio programa de TV dominical, o Aló Presidente, em que usa uma boina vermelho-vivo, às ve- zes um uniforme militar cáqui ou uma jaqueta que envolve seu torso nas cores vermelha, amarela e azul da bandeira da Venezuela. Ele canta canções com sua voz retumbante de barítono, conta histórias de sua própria vida, anuncia programas do governo e se compraz com os elogios e a gratidão de pobres e bajuladores. O Aló Presidente chega a durar seis horas. Às vezes o envelhecido Fidel Castro apa- recia como co-apresentador, com ministros do gabinete e generais do exército ao fundo. É basicamente assim que seu governo é administrado. Chávez vem substituindo me- tade de seus ministros a cada ano, às vezes demitindo-os pela televisão. 1. O caminho revolucionário A persona ideológica de Chávez é um misto de mitolo- gia e confusão. Seus contatos com o marxismo começaram Norman Gall é diretor executivo do Instituto Fernand Braudel e editor do Braudel Papers. O presente artigo retoma uma série de ensaios publicados em 1973, quando o autor residia na Venezuela como American Universities Field Staff Reports. Esses artigos estão disponíveis em www.normangall.com. Reuters

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Documento do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial Associado à Fundação Armando Alvares Penteado - N. 41 2006

Democracia 7: Aló Presidente

Petróleo e Democracia na Venezuela

Norman Gall

Parte 2: A revolução bolivariana

Hoje, aos 52 anos de idade, Chávez é astro e mestre de cerimônias de seu próprio programa de TV dominical, o Aló Presidente, em que usa uma boina vermelho-vivo, às ve-zes um uniforme militar cáqui ou uma jaqueta que envolve seu torso nas cores vermelha, amarela e azul da bandeira da Venezuela. Ele canta canções com sua voz retumbante de barítono, conta histórias de sua própria vida, anuncia programas do governo e se compraz com os elogios e a gratidão de pobres e bajuladores. O Aló Presidente chega a durar seis horas. Às vezes o envelhecido Fidel Castro apa-recia como co-apresentador, com ministros do gabinete e generais do exército ao fundo. É basicamente assim que seu governo é administrado. Chávez vem substituindo me-

tade de seus ministros a cada ano, às vezes demitindo-os pela televisão.

1. O caminho revolucionário

A persona ideológica de Chávez é um misto de mitolo-gia e confusão. Seus contatos com o marxismo começaram

Norman Gall é diretor executivo do Instituto Fernand Braudel e editor do Braudel Papers. O presente artigo retoma uma série de ensaios publicados em 1973, quando o autor residia na Venezuela como American Universities Field Staff Reports. Esses artigos estão disponíveis em www.normangall.com.

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cedo, pouco depois de ter se mudado de seu povoado natal para estudar num liceu na capital estadual de Barinas. Estudante colegial, ele sofreu a influência do vetera-no comunista José Esteban Ruiz Guevara, pai de dois de seus amigos, que abriu sua biblioteca a Chávez para que este pudesse ler a história da Venezuela e ter contato com os clássicos marxistas.

O Dr. Edmundo Chirinos, um psicana-lista de Caracas que se descreve como “o conselheiro de Chávez em situações psico-lógicas críticas”, diz que deu assistência ao presidente após o fracasso de seu segundo casamento e o ajudou a controlar tiques nervosos com exercícios de respiração e relaxamento. Cético quanto à capacida-de de formulação ideológica de Chávez, Chirinos diz: “Ele não é um intelectual. Mas é fantástico em enganar as pessoas. Elas pensam que ele é um homem lido. Na realidade, ele memo-rizou uma ou duas páginas de livros de todos os tipos. Faz as pessoas pensarem que ele conhece os autores profundamente. Ele ama o poder mais que qualquer outra coisa. O poder o possui. A cafeína é sua droga; ele toma entre 26 e 30 xícaras de café preto por dia. No entanto, gosto dele como pessoa, apesar de seus de-feitos. Ele é como um adolescente. Gosto de sua espontaneidade”.

Seu Estado natal de Barinas foi um campo de batalha no século 19, repleto de lendas e heróis mitológicos, com seus imensos rebanhos bovinos alimentando exércitos nas guerras da Independência e Federal. Um de seus heróis é Ezequiel Zamora, um comerciante de província que se tornou líder guerrilheiro na Guerra Federal (1959- 63) e, mais recentemente, ícone esquerdista da luta pela terra. “Sou a reencarnação de Ezequiel Zamora”, dizia Chávez a seus amigos, expressando o te-mor de que pudesse morrer como morreu Zamora, com um tiro nas costas. Outro de seus heróis era Pedro Pérez Delgado, conhecido como Maisanta, rebelde local contra a ditadura de Juan Vicente Gómez

(1908-35). Chávez afirmava que Maisan-ta foi seu bisavô.

Em 1974 Chávez foi um dos 150 cade-tes venezuelanos que viajou ao Peru para assistir às cerimônias de comemoração do 150o. aniversário da batalha de Aya-cucho, que pôs fim ao domínio espanhol na América do Sul. Ele se impressionou com o “Governo Revolucionário das For-ças Armadas” do presidente Juan Velasco Alvarado, que tomou o poder em 1968, promoveu uma reforma agrária radical e transformou bancos, fazendas e fábricas desapropriados em cooperativas e “comu-nidades industriais” dirigidas por seus tra-balhadores. “Eu tinha 21 anos de idade, estava no último ano da Academia Militar e já tinha motivações políticas claras”, re-cordou Chávez. “Para mim, como jovem militar, foi uma experiência emocionante

conviver com a revo-lução nacional peru-ana. Pude conhecer Juan Velasco Alvara-do pessoalmente. [...] Durante anos eu li o manifesto revolucio-nário, os discursos daquele homem, o Plano Inca”.

Herma Marksman, uma professora de

história que durante nove anos foi aman-te de Chávez, o conheceu numa festa em 1984 e acompanhou sua carreira de conspirador. “Nós entretínhamos um ao outro”, ela recordou. “Falávamos de po-lítica. Mais tarde, recitávamos poemas e cantávamos. Chávez não é grande cantor, mas ele não se inibe em cantar em todas as oportunidades possíveis, e diante de qualquer platéia”. Como conspirador, dis-se ela, “Hugo era um líder que trabalhava incansavelmente todos os dias do ano. Eu ficava próxima a ele. Ele organizava os en-contros, determinava a agenda, contatava as pessoas”. Seu antigo companheiro e co-conspirador Francisco Arias Cárdenas, que rompeu com Chávez para disputar a presidência com ele em 2000 mas hoje é o embaixador da Venezuela nas Nações Unidas, recordou que Chávez “dirigia cin-co horas [...] para assistir a uma reunião de uma hora de duração. Ele liderava nos-

“Ele não aceita nem dissidência,

nem opiniões divergentes.”

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so grupo porque era quem trabalhava mais. Chávez é um estrategista fantás-tico. Quando estávamos no Exército, fez um curso de guerra psicológica em El Salvador. Ele se tornou grande pro-ponente da psicologia inversa, ou seja, levar os adversários a subestimar sua força”. No entanto, em momentos de-pressivos dizia: “Eu destruo tudo que toco”.

Em 1980, no início de sua carreira de conspirador dedicado, Hugo Chá-vez foi apresentado ao veterano líder guerrilheiro Douglas Bravo por seu ir-mão Adán Chávez, que até pouco an-tes havia sido o embaixador venezue-lano em Cuba e que, com a doença de Fidel Castro, retornou a Caracas para ser Ministro da Casa Civil. Adán era, desde 1965, membro da Frente Revo-lucionária Venezolana (FRV), formada após a expulsão de Bravo do Partido Comunista da Venezuela (PCV), em 1962, por continuar a “luta armada”, contrariando as ordens de Moscou. Bravo desempenhou um papel cha-ve ao criar um contato entre o PCV e as forças armadas, no preparo dos levantes que levaram ao fim da dita-dura de Pérez Jiménez, em 1958. Na década de 1980, ele se tornou assessor político de Chávez, apresentando-o a outros conspiradores militares. Seu último encontro se deu em outubro de 1991, quando Chávez rejeitou o plano de Bravo para uma greve in-surrecional que antecederia a revolta militar de fevereiro de 1992. “Quería-mos que a sociedade civil participasse ativamente do movimento revolucio-nário”, disse Bravo mais tarde. “Isso era exatamente o que Chávez não de-sejava. Ele queria que a sociedade civil o aplaudisse, mas não participasse. Ele não aceita nem dissidência, nem opi-niões divergentes”.

Após o fracasso do levante de fe-vereiro de 1992 de oficiais militares de médio escalão contra o presidente Carlos Andrés Pérez (1974-79; 1989-93), Chávez virou astro da mídia ao render-se aos rebeldes após não con-seguir tomar o palácio presidencial em Caracas, embora controlassem as

mais importantes bases militares da Venezuela. Ele foi autorizado a gravar um apelo por televisão aos outros re-beldes, para se renderem e evitar mais derramamento de sangue. Em lugar disso, seus captores o deixaram ir ao ar ao vivo, dizendo: “Companeros, la-mentavelmente, nossos objetivos não foram alcançados na capital, por ora. Mas é hora de refletirmos agora que novas situações irão surgir para que o país tome o rumo de um destino melhor [...]. Agradeço a vocês por sua lealdade e coragem, e, diante de vocês e da nação, assumo a responsabilidade por este movimento militar bolivaria-no. Muchas gracias.”

Aos 38 anos de idade, Chávez já era um conspirador dedicado havia 15 anos. Quando lecionou história mili-tar da Venezuela na Academia Militar, formou o núcleo do grupo que, mais tarde, se tornaria o movimento “Boli-variano”. Ali ele aproveitou a oportu-nidade de conquistar o apoio de ca-detes e oficiais mais jovens que, mais tarde, o ajudaram a executar seus pla-nos. Na revolta de 1992, Chávez foi o único conspirador que falhou em sua missão, mas, apesar disso, tornou-se uma celebridade para as massas, far-ta da corrupção e indignadas com o tratamento de choque que lhes fora imposto para acabar com os enormes

déficits públicos. Foi eleito, em 1998, como o presidente mais jovem da his-tória da Venezuela.

Numa viagem a Buenos Aires, pouco após sua libertação da prisão em 1994, Chávez conheceu e ou-viu atentamente Norberto Ceresole, um sociólogo argentino de posições fascistas que fora assessor de Velasco no Peru. Ceresole tornou-se impor-tante influência no pensamento po-lítico de Chávez. Os dois voltaram a encontrar-se na Colômbia. Depois percorreram o interior da Venezuela num carro velho, Ceresole ouvindo os discursos feitos por Chávez diante de platéias pequenas. Em 1995 Ceresole

foi expulso da Venezuela, para onde retornou em 1999, após a eleição de Chávez. Partidário da ala de extrema direita do peronismo, Ceresole escre-veu em um tratado, Caudillo, Ejército, Pueblo (2000), que a revolta de 1992 foi “a militarização necessária da po-lítica, a condição sine qua non para a existência de um modelo pós-demo-crático venezuelano. Ninguém deve se surpreender com o surgimento de um partido cívicomilitar como condutor secundário - atrás do caudilho nacio-nal - do processo revolucionário vene-zuelano [...]. Em minha opinião, hoje já estão presentes todos os elementos que poderão fazer de Hugo Chávez o

A defesa da “Revolução Bolivariana” - Reuters

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líder de toda a América hispânica”. O filósofo Alberto Arevalo Ramos argu-mentou que “Ceresole o convenceu de que ele era um segundo Simón Bolívar, o embriagou com essa me-galomania de ser um líder universal e histórico”. Em 1999, Ceresole teve 48 horas para deixar a Venezuela, depois de Chávez dizer a seu chefe de inte-ligência, Jesús Urdaneta, “este velho vagabundo está me incomodando. Dê um jeito nele”. Mais tarde, Ceresole atribuiu sua expulsão a uma conspira-ção judaica.

Embora hoje se oponha à absten-ção na eleição presidencial progra-mada para o dia 3 de dezembro, o próprio Chávez havia inicialmente defendido a abstenção em massa antes de candidatar-se na eleição presiden-cial de 1998. Ganhou aquele pleito com 56% dos votos, aproveitando a oportunidade oferecida pelo declínio dos partidos políticos tradicionais. De fato, a abstenção do eleitorado cansa-do das sete eleições e plebiscitos reali-zados entre 1998 e 2000 contribuiu em muito para que ele pudesse con-solidar seu poder. Uma nova “Cons-tituição Bolivariana”, aprovada num referendo com abstenção de 62% dos eleitores, criou uma nova Assembléia Nacional que Chávez controlava. Ele usava a nova legislatura como instru-mento para um expurgo no Judiciário e para indicar gente sua para o Con-selho Nacional Eleitoral e os cargos de procurador, defensor público e con-trolador das finanças públicas.

2. O Grand Tour

As pretensões geopolíticas de Chá-vez o levam para muito longe da Ve-nezuela. Deixa de cuidar dos proble-mas de seu próprio povo enquanto percorre o mundo. Entrega bilhões de dólares a potenciais aliados. Com-pra armas e procura aparecer como astro sobre vários palcos. Não deixa passar nenhuma oportunidade de in-sultar o presidente George W. Bush, um alvo fácil que ele já chamou de

“monstro imperialista”, “imbecil!” e “Sr. Perigo”, enquanto lança avisos a seus seguidores sobre uma invasão iminente da Venezuela pelos Estados Unidos. Os ataques de Chávez a Bush parecem ser o tema mais importante de sua campanha para reeleição. Aos risos e aplausos na Assembléia Geral das Nações Unidas, Chávez chamou Bush “o diabo” que “veio aqui on-tem”, apontando a tribuna que, dizia, “ainda tem cheiro de enxofre”. O Wall Street journal observou que o discurso de Chávez “marcou o ponto alto tea-tral para uma reunião anual da ONU onde o anti-americanismo aberto não só voltou a ser moda, como também muito apreciado pela platéia”.

Em julho de 2006, para evitar dissensões nas forças armadas, Chá-vez elevou 64 oficiais para a patente de general, antes de embarcar numa viagem mundial de 17 dias a bordo de seu Airbus presidencial, passando pelo Vietnã, Irã, Catar, Mali, Rússia e Belarus, confiando que seus assessores cubanos de segurança seriam capazes de controlar as tensões no setor mili-tar. Retornando à Venezuela no dia 3 de agosto, ele rapidamente anunciou outra viagem, partindo no dia 21 do mesmo mês para a China, Malásia e Angola. Assim chegou a fazer 23 viagens nos primeiros oito meses de 2006, visitando 31 países em 59 dias fora da Venezuela. O jornal espanhol El País comentou que Chávez estava “usando a opulência proporcionada a ele pelo preço do petróleo para com-prar armas e favores políticos, formar alianças com regimes antidemocráti-cos e aplaudir a repressão da liberda-de”. Alguns dias depois de anunciar seu apoio à candidatura da Venezuela a uma vaga no Conselho de Seguran-ça da ONU, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ao Financial Times: “Converso muito com o presidente Chávez sobre a necessidade de com-portar-se de maneira que não crie pro-blemas para outros países”.

Chávez foi o primeiro presiden-te latino-americano a visitar Belarus desde a independência desse país, em

1991, com a queda da União Soviéti-ca. No aeroporto de Minsk, antes de reunir-se com o último ditador co-munista da Europa, Alexander Luka-shenko, e de visitar a “Linha Stalin” de fortificações na fronteira com a Polônia, Chávez propôs uma aliança estratégica, dizendo que “Belarus está desenvolvendo um modelo de Esta-do social como o que estamos cons-truindo na Venezuela”. Embora ele tivesse adiado uma escala proposta em Pyongyang para reunir-se com o di-tador Kim JongIl, a Venezuela defen-deu o disparo de sete mísseis no Mar do Japão feito pela Coréia do Norte, conferindo credibilidade aos relatos segundo os quais Chávez estaria nego-ciando a compra de mísseis coreanos. “Os Estados Unidos é o representante maldito do capitalismo”, declarou em discurso de duas horas proferido em Hanói, diante da Câmara do Comér-cio e Indústria do Vietnã. “O capita-lismo levará a humanidade à perdição e destruirá tudo”, disse ele, ignorando que há duas décadas o Vietnã comu-nista vem aderindo a políticas voltadas ao mercado que lhes propicia avanços enormes em crescimento econômi-co, redução da pobreza e aumento da expectativa de vida. O presidente da Câmara, Vu Tien Loc, ficou perplexo, dizendo: “O Vietnã está aderindo à economia de mercado, então, nessas circunstâncias, o que ele falou sobre o capitalismo não me parece apropria-do”.

Chávez fez uma escala em Lon-dres para um discurso e uma sessão de elogios recíprocos com o prefeito da cidade, Ken Livingstone. Num ato de generosidade singular, Chávez concordou em vender diesel a preços subsidiados para a frota de 8 mil ôni-bus da capital britânica. A renda per capita da Venezuela é de aproximada-mente US$ 6 mil, enquanto a de Lon-dres é US$ 40 mil. Um memorando interno disse que o governo venezue-lano vai ganhar “cooperação maciça de propaganda” da venda. “Essa co-operação pode ser colocada dentro e fora dos ônibus. Além disso, o gabi-

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troca de petróleo por bananas de Granada. Estão sendo ven-didos ao todo 220 mil barris de petróleo por dia (bd) de petró-leo com financiamento fácil no valor de aproximadamente US$ 2 bilhões. Boa parte dessa ati-vidade recente visa conquistar apoio para a candidatura da Ve-nezuela a uma vaga no Conse-lho de Segurança das Nações Unidas, à qual os Estados Unidos se opõem mas que conta com o apoio de vários países caribe-nhos, latino-americanos, africa-nos e árabes, influenciados pela generosidade de Chávez.

Para realizar estes planos, Chá-vez criou organizações regionais como a Petrocaribe, o Petrosur, a Telesur (televisão por satélite), a Petroandina, o Banco Sur (banco de desenvolvimento) e a ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas), boa parte delas não saiu do papel. Quando a Vene-zuela uniu-se à Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai no Mercosul, Chávez propôs transformar a or-ganização numa aliança militar e num “Megaestado” com Consti-tuição e moedas únicas.

Chávez é o segundo venezue-lano a tentar moldar o futuro da Bolívia. O primeiro foi Simón Bolívar, em cuja homenagem a república recebeu seu nome e cuja “grande idéia” de uma Cons-tituição boliviana com presiden-te vitalício foi rejeitada pelas eli-tes locais.

Chávez tornou-se aliado es-treito do presidente boliviano Evo Morales, tanto antes quan-do depois da eleição de Mora-les por maioria esmagadora, em dezembro de 2005. Cuba, Vene-

Chávez já prometeu cerca de US$ 35 bilhões em projetos no exterior visando conquistar in-fluência política, sobretudo na América Latina. A gama de ini-ciativas é espetacular. Entre elas está a compra de mais de US$ 3,3 bilhões em títulos do gover-no argentino, além de uma rede de postos de combustíveis em Buenos Aires. Para consolidar o que Chávez chamou de “o eixo Caracas-Buenos Aires”, Venezue-la e Argentina pretendem lançar um título binacional, o Bono Sur, por outros US$ 2 bilhões. Chávez também prometeu comprar US$ 100 milhões em títulos de cada um dos governos da Bolívia, Pa-raguai e Costa Rica. Autorida-des explicaram que a aquisição dos títulos estrangeiros é uma maneira de esterilizar a enorme entrada de petrodólares na eco-nomia, para conter a inflação doméstica. Um novo mercado secundário foi criado quando US$ 2,4 bilhões em títulos ar-gentinos foram revendidos pelo governo a bancos venezuelanos, à taxa de câmbio oficial, sendo que os bancos os revendem no-vamente no mercado internacio-nal pelo câmbio paralelo, o que lhes proporciona um lucro gran-de e lhes confere acesso mais li-vre a dólares, sob controle cam-bial.

Chávez prometeu construir ou modernizar refinarias no Brasil, Cuba, Panamá, Uruguai, Argenti-na, Equador e Paraguai. A Vene-zuela oferece petróleo a preços fortemente descontados a várias repúblicas centroamericanas e caribenhas, às vezes em termos de troca, como, por exemplo, a

zuela e Bolívia assinaram em Ha-vana um “Tratado Comercial dos Povos” dois dias antes de Mora-les anunciar a nacionalização do setor petrolífero boliviano, no dia primeiro de maio. A Vene-zuela deve trocar 200 mil barris de diesel por mês por remessas de soja boliviana. Chávez pro-meteu à Bolívia uma ajuda que vai totalizar US$ 2 bilhões (mais de 20% do PIB boliviano). Mé-dicos e professores cubanos es-tão trabalhando em projetos de saúde e alfabetização na Bolívia. A Venezuela criou um fundo de US$ 100 milhões para fornecer crédito a pequenos agriculto-res na Bolívia. Uma companhia binacional, a Minesur, desen-volveria o potencial boliviano de mineração. A PDVSA pagou pela transmissão televisiva das partidas da Copa do Mundo a comunidades rurais e é acusada de também ter pago anúncios de televisão de apoio à campa-nha de Evo Morales para mudar a Constituição boliviana. A Ve-nezuela vai construir duas bases militares bolivianas na fronteira com o Brasil. Evo Morales viaja pelo mundo num avião a jato que Chávez lhe emprestou. Ele percorre a Bolívia em dois heli-cópteros Super Puma que tam-bém lhe foram emprestados por Chávez, com medo dos riscos de Morales viajar nos helicópteros do governo boliviano.

Semanas antes de Morales anunciar a nacionalização das empresas estrangeiras que ope-ram a indústria boliviana de gás natural, enviando tropas para ocupar suas instalações, con-tadores da PDVSA visitaram os

Generosidade

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própria sofre uma escassez gra-ve de técnicos para manter a produção de petróleo em que-da em seu próprio país? Essa pergunta foi respondida rapida-mente quando, três meses após o decreto de nacionalização de Morales, quase todos os téc-nicos da PDVSA voltaram para casa depois de o novo governo “suspender” a tomada das insta-lações de empresas estrangeiras, por falta de dinheiro e pessoal especializado.

Discursando diante dos che-fes de Estado de 53 nações afri-canas, na Gâmbia, em julho de 2006, Chávez exortou à criação de “uma comissão para articu-lar uma estratégia para petró-leo, gás e petroquímica para a África e América Latina. Somos potências energéticas. Coorde-nemos um projeto, o Petrosur, e em pouco tempo veremos mi-

escritórios dessas empresas, junto com funcionários bolivia-nos, para averiguar possíveis fraudes. Desde então, cerca de 200 contadores e técnicos da PDVSA vêm ajudando a prepa-rar a pequena estatal boliviana, Yacimientos Petrolíferos Fiscales de Bolívia (YPFB), para adminis-trar o setor. Além disso, foram anunciados US$ 1,5 bilhão em projetos de Chávez e Morales para a produção de petroquími-cos, fertilizantes e asfalto, e para a separação dos líquidos do gás natural; uma companhia bina-cional para certificar as reservas bolivianas de petróleo e gás, e a instalação em toda a Bolívia de 34 postos de combustíveis com a marca Petroandina. Os críticos de Chávez perguntam: como a PDVSA pode arcar com o custo de enviar tantos técnicos para trabalhar na Bolívia, quando ela

lagres para a independência e o desenvolvimento econômico”. Em sua viagem à África, Chávez reuniu-se por meia hora com o presidente do Mali e ofereceu equipar um hospital na capital do país, Bamako.

Esse tipo de generosidade provoca ressentimento na Vene-zuela, em vista da deterioração e carência de materiais básicos em seus próprios hospitais, cen-tros de saúde e clínicas. De acor-do com sondagens de opinião recentes, entre 63% e 84% dos venezuelanos se opõem às ini-ciativas de ajuda externa lança-das por Chávez para conquistar liderança geopolítica. Aproxima-damente metade acredita que os problemas como corrupção, criminalidade, desemprego, in-flação e pobreza estão se agra-vando, enquanto um quarto en-xerga melhorias.

nete do prefeito vai desenvolver um plano bem articulado para disseminar a cooperação”.

Chávez fechou vários negócios em Moscou. Ele já tinha encomendado 100 mil fuzis Kalashnikov AK-103 para uso do exército e de uma milícia de 2 milhões de homens e mulheres que está sendo formada para defender a pátria. Uma firma russa de armas está licenciando à Venezuela a produ-ção de 25 mil fuzis AK-103 por ano, numa fábrica a ser construída com ajuda russa, e que, segundo Chávez, pode ser utilizada para exportar armas a países vizinhos. Seus agentes andam fazendo compras para formar um ar-senal de armas sofisticadas previsto para custar uns US$ 30 bilhões. Além dos Kalashnikovs, em Moscou Chá-vez assinou US$ 3 bilhões em pedi-dos de 24 caças-bombardeiros Sukhoi (Su-30) e 33 helicópteros blindados

de ataque. Ele pretende adquirir en-tre dez e 15 submarinos lançadores de mísseis, várias dúzias de tanques de batalha e veículos blindados T- 90 e 138 embarcações navais de superfície. O jornal russo Vedomosti noticiou que a Venezuela vai comprar mísseis terra-ar Tor-M1. “Vamos ter uma barreira de defesa sobre o Caribe”, Chávez anunciou. Essas aquisições de armas deixam os vizinhos da Venezue-la receosos. O ex-presidente brasileiro José Sarney avisou do “desejo declara-do [de Chávez] de fazer da Venezuela uma potência militar. [...] O Brasil e outros países sulamericanos não po-dem concordar com nenhuma políti-ca de militarização, e, para começar, devem advertir Chávez que ninguém concorda com isso”.

Em discurso em Moscou em 10 de novembro de 2005, Chávez disse a seus anfitriões: “Quero render ho-

menagem à União Soviética pelo bem legado à humanidade com o simples fato de sua existência. Estendo a vo-cês minhas condolências pela maneira como a experiência soviética termi-nou. Dou-lhes meus parabéns porque um dia tudo isso explodirá e a Améri-ca Latina será o que a Rússia não pôde ser”.

Chávez criou grupos paramilitares de elite sob seu comando pessoal, in-dependentes das forças de segurança regulares, mas também fala de uma espécie de resistência guerrilheira, da “guerra assimétrica”, para repelir uma invasão norte-americana. Suas compras de armas no exterior buscam compensar o baixo nível de pronti-dão operacional das forças armadas com 100 mil homens, às quais nos últimos anos têm faltado uniformes, botas, capacetes, proteção corporal, suprimentos alimentícios, munição

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e caminhões. A utilidade de todos os novos equipamentos será posta à pro-va pelo nível de organização militar. Os caças Sukhoi avançados requerem treinamento intensivo dos pilotos e procedimentos de manutenção sofis-ticados para que sejam mantidos em prontidão para combate. Os oficiais do exército regular podem opor re-sistência à distribuição de rifles russos para a milícia civil.

Rodovias e viadutosNas três décadas anteriores à de

1990, a Venezuela investiu mais de US$ 100 bilhões em obras públicas, aproximadamente US$ 40 mil per ca-pita, dos quais US$ 45 bilhões foram gastos durante o boom petrolífero de 1974-82. A maior parte dos hospitais públicos e das centenas de clínicas locais do país foi construída durante essas décadas, além de 12.500 esco-las, 45 mil quilômetros de estradas pavimentadas, redes de água, esgoto e telefonia, grandes barragens hidrelé-tricas e de irrigação. Boa parte dessa nova infra-estrutura está se deterio-rando rapidamente por falta de ma-nutenção.

De acordo com Giovanni Bianco, da Faculdade de Engenheiros da Ve-nezuela, 90% das pontes construídas antes de 1960 se encontram em esta-do de “pré-colapso” devido à falta de manutenção, e estão na mesma situ-ação 60% das pontes erguidas entre 1960 e 1990 e 30% das construídas desde 1990. Os cortes de energia elé-trica são freqüentes, apesar do enorme potencial hidrelétrico. A deterioração da infra-estrutura é largamente vista como um fracasso institucional, com desperdício, negligência e corrupção que acompanharam os anos do boom.

A infiltração de água dos barracos e das avalanches em Caracas tem gera-do impactos crescentes na infraestru-tura e na logística. Em 4 de janeiro de 2006, esses movimentos de terra provocaram fissuras no grande via-duto que passava sobre o profundo desfiladeiro de Tacagua, impedindo o uso da rodovia de 17 quilômetros na

tortuosa descida até a costa do Cari-be, que liga Caracas ao porto de La Guaira e ao aeroporto internacional de Maiquetia, suas principais cone-xões com o exterior.

A notícia foi recebida com indig-nação pública e receio dos efeitos da negligência da qual é vítima a infraes-trutura da Venezuela: rodovias, pon-tes, portos e rede elétrica. “Durante anos a queda do viaduto permanecerá como símbolo vivo do fracasso total do governo Chávez, após oito anos no poder, sem concluir uma única gran-de obra que beneficie a população e

a economia no longo prazo”, obser-vou o boletim semanal Veneconomy Weekly. “O país está literalmente de-sabando, e danos estruturais de longo prazo estão sendo perpetrados contra a economia”. Os blecautes elétricos freqüentes provocados pela falha em investir em geração e transmissão de eletricidade causaram violentas mani-festações públicas em vários Estados do interior. Em 2005 houve 84 cortes importantes de energia elétrica.

O fechamento da rodovia, utiliza-da por 50 mil veículos por dia, vem provocando perdas enormes, com im-

pacto na produção total e na inflação. Com dois túneis e três viadutos, foi uma das obras de prestígio da ditadu-ra Pérez Jiménez. Como façanha de engenharia, era comparada ao Canal do Panamá. Foi descrita como “a ro-dovia mais cara do mundo”, concluí-da em 1953, a tempo da décima Con-ferência Interamericana de Ministros do Exterior em Caracas. O viaduto mais próximo a Caracas, que fazia a ponte sobre o desfiladeiro de Tacagua, foi fechado porque os pilares que o suportavam cederam e racharam sob a pressão dos movimentos da terra re-sultante de décadas de infiltração dos esgotos das favelas nos morros vizi-nhos da rodovia. Dez semanas depois, o viaduto quebrou ao meio e desabou no despenhadeiro, levantando uma enorme nuvem de pó. Um estudan-te universitário que passava no local comentou: “Ver aquilo foi como o desabamento do World Trade Center em Nova York, ao qual assisti na TV, com a diferença de que eu estava ali hoje. O viaduto se rompeu como uma bolacha, com um barulho que deixa-va você tonto”.Em questão de horas, moradores dos ranchos estavam vas-culhando os escombros do viaduto para levar embora pedaços de cobre e alumínio para revender. “Estou levan-do a grade para fazer um galinheiro em minha casa”, disse um deles.

Em 1987, quando os ranchos fo-ram se estendendo mais pelos córre-gos do vale de Caracas, engenheiros descobriram que esses movimentos de terra ameaçavam provocar o de-sabamento do viaduto que rachou. Desde 1987, 18 ministros de Obras Públicas nos últimos cinco governos sabiam da ameaça ao viaduto e à ro-dovia pelas avalanches e a infiltração de água. Chávez trocou de ministros de obras sete vezes em oito anos, sem tomar medidas efetivas. Pouco depois de assumir o poder, em 1999, ele can-celou um contrato com uma compa-nhia mexicana para desenvolver uma via expressa alternativa entre Caracas e La Guaira. No dia em que o viaduto desabou, o presidente foi à televisão

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para dizer que a queda “veio para o bem, já que poupou a despesa de de-molição do viaduto”.

Médicos cubanos e saúde públicaA decadência do sistema de saú-

de pública da Venezuela é uma saga que começou há duas décadas. “O sistema de estações de saúde pública e hospitais funcionou razoavelmente bem, com grandes melhoras durante a bonança petrolífera da década de 1970, mas deteriorou rapidamente após a desvalorização da moeda em 1983, quando o preço do petróleo caiu”, disse um ex-ministro da Saúde, Angel Rafael Orijuela. “Com a desva-lorização, começaram as deficiências que continuam até hoje. Os gastos com a saúde pública diminuíram ra-pidamente. Os indicadores de saúde começaram a diminuir em algumas áreas. O problema era agravado pela corrupção”.

Não havia roubo de materiais por funcionários, como dizem alguns. Era pior. Salários eram pagos a fun-cionários inexistentes. Sindicalistas assinavam recibos por medicamentos e equipamentos vendidos a preços in-flados, sem licitação, que nunca che-gavam a ser entregues.

Nas últimas duas décadas foram feitos esforços para reorganizar os ser-viços de saúde empobrecidos pelo zi-guezague das políticas. Enquanto isso, a saúde da população se deteriorava. Em 2002-03, durante uma recessão grave, a mortalidade infantil subiu, interrompendo uma queda de longo prazo. A mortalidade materna teve um aumento de 13% desde 1998. En-tre 1998 e 2004, os casos de malária dobraram. As mortes provocadas por diabetes e hipertensão aumentaram de maneira acentuada.

As visitas a hospitais e clínicas locais mostram o fracasso da saúde pública. Na clínica Leonardo Ruiz Pineda, no projeto habitacional superbloques 23 de Enero, em Caracas, uma das bases de apoio popular a Chávez, não exis-tem chapas para radiografias, não há produtos químicos para exames labo-

ratoriais, faltam espátulas para exames de garganta e não há remédios. Uma equipe de 40 funcionários atende a apenas 50 pacientes por dia. Os 22 mil médicos e 6 mil instrutores de esportes cubanos que estão vivendo e trabalhando em comunidades pobres, dentro do programa Barrio Adentro, vêm gerando um grande impacto de propaganda, tanto dentro quanto fora da Venezuela. Mas esses médicos se especializaram em medicina preven-tiva e podem fazer somente cirurgias simples ou algum tratamento odonto-lógico. Pacientes com doenças ou feri-mentos graves enfrentam filas longas nos hospitais públicos.

“O problema de nossos hospitais é o volume de pacientes e o alto ín-dice de criminalidade”, disse um mé-dico venezuelano, fazendo referência à triplicação do índice de homicídios nos últimos dez anos. “Em uma noi-te apenas chegam oito homens com ferimentos de bala no tórax”, disse ele. “Mas dispomos de apenas quatro tubos para drenar seus pulmões, de modo que os outros quatro morrem. Falta gaze, material para suturas, de-sinfetantes e luvas cirúrgicas. Nosso hospital tem uma máquina para fa-zer tomografias, mas não tem quem a opere”. Por segurança os elevadores do hospital foram desativados. Seus corredores estão repletos de baratas e apresentam anos de sujeira entranha-da. Os próprios médicos se revezam para comprar papel higiênico, lenços de papel, álcool e água oxigenada.

Um executivo de uma multina-cional foi a Cuba recentemente para concluir uma venda de equipamento hospitalar, pago por Chávez, para ser usado em Cuba, na Venezuela e na Bolívia. O executivo disse que espe-rava encontrar-se com autoridades do Ministério da Saúde cubano para ana-lisar os detalhes do acordo. Em lugar disso, foi chamado para uma reunião à meia-noite com Fidel Castro. Após três horas de discussões detalhadas, o executivo perguntou a Castro porque ele estava cuidando pessoalmente das negociações. “Chávez me pediu que

o fizesse”, respondeu Fidel. “Ele não confia em sua própria gente”.

3. O Bezerro de Ouro

A mídia internacional vem fazendo uma boa cobertura do boom de con-sumo da Venezuela. Uma matéria da televisão BBC sobre a revolução de Chávez começou com cenas de jovens divertindo-se numa boate lotada de Caracas. O New York Times relatou que “numa manhã recente de domin-go, clientes gastadores esvaziaram o Vintage, um bar da moda, de quase toda sua vodca de melhor qualidade. Ali perto, na revendedora Chevrolet Castellana, os compradores têm que esperar oito meses para receber as chaves de automóveis que pagaram há tempo. E, num fim de semana recente na Loja Digital LG e na RCA Elec-tronics no shopping center Sambill, a confiança dos consumidores ajudou a esvaziar os estoques de televisores e geladeiras. ‘Mesmo nossos operários da construção vêm gastando seus sa-lários inteiros assim que são pagos’, disse Gerardo Pereira, 33, proprietá-rio do Vintage, que afirma nunca ter visto venezuelanos de todas as classes sociais gastarem tanto”. O Miami He-rald relatou: “Eles dirigem Hummers e Audis novos. Usam relógios Cartier e carregam bolsas Montblanc. E quase sempre pagam em dinheiro vivo”. Um funcionário da loja Montblanc num shopping center contou: “Eles com-pram tudo: relógios, bolsas, canetas, seja o que for. E pagam sempre em dinheiro vivo, especialmente os mi-litares”. Wilmer Ruperti, que fechou lucrativos contratos com o governo depois de fretar navios-tanque para ajudar Chávez a superar a greve de Petróleos de Venezuela (PDVSA) em 2002-3, teria gastado US$ 1,6 milhão na Christié´s, em Londres, para ad-quirir duas pistolas que pertenceram a Bolívar. Alguns dos bem-sucedidos oficiais militares que ocupam cargos chaves no governo podiam ser vistos no Hipódromo de Caracas, assistindo

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às corridas de seus cavalos purossan-gues recém-comprados. Consumido-res venezuelanos ávidos retornaram a Miami com sua frase clássica: “Ta barato, clame dos”: As mercadorias compradas por eles na Flórida au-mentaram em 130% nos últimos três anos, chegando a US$ 5,5 bilhões. De acordo com o diretor da Câmara de Comércio Venezuelano-Americano na Flórida, “uma grande parte dos no-vos investimentos privados venezue-lanos nos Estados Unidos vem sendo feita por chavistas”.

Com taxas de juros controladas pelo governo, o crédito ao consumi-dor aumentou 128% no último ano. A economia venezuelana, que estivera estagnada nas duas décadas passadas, mergulhou numa recessão profunda em 2002-3, perdendo 17% do PIB, principalmente em função dos dis-túrbios políticos e da greve na PDV-SA, mas em 2004-5 cresceu 29%. O crescimento acelerado continua em 2006, movido pela alta dos preços do petróleo e o enorme aumento dos gastos públicos. A grande maioria dos entrevistados numa pesquisa da Da-tanálisis diz que as condições de vida melhoraram. Hoje, quase todo adulto possui telefone celular. O consumo de uísque escocês, um símbolo de status, cresceu 60% em 2005. Um humo-rista de televisão de origem humilde, Benjamin Rausseo, conhecido como o Conde de Guácharo, ao anunciar sua candidatura à presidência, prome-teu construir um “uisqueduto” entre a Escócia e a Venezuela, ironizando o gosto de Chávez por megaprojetos.

O mercado acionário de Caracas subiu 67%, alcançando um novo pico nos 12 meses encerrados em julho de 2006. A inflação atingiu seu ponto máximo em 103%, em 1996, mas caiu para 14% em 2005, segurada pe-los controles sobre os preços, o câm-bio e as taxas de juros. Mas o efeito dos controles de preços está se des-gastando, criando a ameaça de mais inflação e a escassez de café, ovos, sardinhas, carne, farinha de milho, frango e leite, levando ao esgotamen-

to dos estoques nos supermercados subsidiados Mercal. Esses produtos só se encontram a preços do mercado negro. Os preços de apartamentos su-biram 20% nos seis primeiros meses de 2006. A demanda cresce à medida que o suprimento de dinheiro (M2) vem aumentando à taxa anual de 63% em 2006. O Banco Central se esforça desesperadamente para impedir que a liquidez aumente em ritmo ainda maior.

O Banco Central se tornou tecni-camente insolvente porque foi obriga-do a contrair empréstimos pesados de bancos, a juros altos, para absorver o excesso de liquidez, ao mesmo tempo em que esgotava seu capital, atenden-do a ordens de Chávez para transferir

US$ 10 bilhões ao Fonden, um fun-do de desenvolvimento sob o contro-le pessoal do presidente. O Fonden recebeu outros US$4,6 bilhões da PDVSA, que foi obrigada a sacrificar investimentos em exploração e pro-dução. Os gastos públicos em 2006 estão subindo 124%, com o governo contraindo empréstimos grandes para cobrir um déficit previsto para chegar a 3% do PIB, apesar do aumento da receita petrolífera. O governo vem gastando além de sua capacidade. Aludindo ao boom petrolífero des-perdiçado dos anos 1970, o relatório mensal LatinSource observou:

A história está se repetindo, à medida que as contas fiscais entram no verme-lho em meio a uma bonança petrolífera inusitada. Enquanto isso, a produção petrolífera estagna, a economia se torna

mais vulnerável, e a oportunidade de construir mecanismos de estabilização vai se perder mais uma vez [...]. Pare-ce haver apenas uma saída possível na Venezuela quando os preços petrolíferos altos e em ascensão se somam a eleições presidenciais: aumentos acentuados nos gastos do governo, forte presença do go-verno na economia e controles admi-nistrativos para gerir os preços relativos de acordo com a agenda política. [...] O modelo político e econômico atual só pode sustentar-se com preços de petróleo altos e crescentes. Se o preço do petróleo se estabilizar ou começar a cair, Chá-vez terá que optar entre avançar com a revolução às expensas do bem-estar da nova elite e correr o risco de perder o apoio desta, ou manter o status das no-vas elites às expensas de uma base maior da sociedade.

As MisionesA popularidade de Chávez se baseia

em seus programas sociais, as missio-nes, ampliados nos meses que antece-deram o referendo de agosto de 2005, quando foi ameaçado de afastamento da presidência. Nos últimos três anos, o governo gastou US$ 13 bilhões em 17 missões - aproximadamente US$ 1 mil por cada venezuelano que vive na pobreza. Um terço desse dinhei-ro saiu do orçamento, e dois terços de fundos controlados pessoalmente por Chávez. As missões abrangem um largo espectro de atividades e propor-cionam remunerações modestas a seus participantes. As mais importantes são a Misión Robinson, um programa de alfabetização em estilo cubano que oferece ensino primário para adultos; a Misión Ribas, de ensino secundário para adultos; a Misión Sucre, o estudo nas recém-criadas “Universidades Bo-livarianas”; a Misión Barrio Adentro, formada por profissionais médicos e instrutores de esportes cubanos que vivem e trabalham em comunidades pobres; a Misión Mercal, supermer-cados subsidiados; a Misión Milagro, que envia 280 mil venezuelanos e ou-tros latino-americanos a Cuba para serem submetidos a cirurgias para a

“A história se repete à medida

que as contas fiscais entram no

vermelho.”

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remoção de catarata; a Misión Miran-da, de treinamento de milícias civis; a Misión Vuelvan Caras, de organização de cooperativas, a Misión Identidad, de registro de cidadãos sob supervisão cubana, e a Misión Habitat, um pro-grama habitacional público.

Não foi feita nenhuma avaliação independente da eficácia desses pro-gramas. A falta de transparência e de prestação de contas impede que o público saiba quanto é gasto com burocracia e publicidade. Uma pes-quisa da Datanálisis constatou que 47% dos entrevistados faziam com-pras nos supermercados Mercal, 21% eram atendidos pelo Barrio Adentro, apenas 5,7% pela Suvre, 20% pela Misión Robinson e não mais de 1,8% pelas cooperativas Vuelvan Caras.

Chávez demitiu sucessivos minis-tros da Habitação por alcançarem apenas uma parte minúscula de sua meta de construção de 150 mil no-vas unidades habitacionais por ano. Oficiais militares designados para trabalhar nas agências habitacionais foram acusados de exigir propinas em dinheiro equivalente a 25% do valor dos contratos públicos e de criar suas próprias empresas construtoras para conseguir contratos para eles mes-mos. Em sua viagem recente à China, Chávez anunciou que uma empresa chinesa vai construir 20 mil casas na Venezuela.

Um especialista que trabalha di-retamente com os programas disse: “O impacto das missões parece ser mais político e econômico do que educacional. O governo emprega as missões para mobilizar pessoas nas comunidades pobres para eleições e grandes manifestações, para as quais freta frotas de ônibus. Algumas pes-soas apreciam a oportunidade de estudar, mas muitas estão desempre-gadas e precisam do dinheiro que re-cebem para matricular-se. O governo anuncia estatísticas impressionantes relativas a matrículas e graduações, mas não há avaliação qualitativa”. Um sociólogo que trabalha com as cooperativas Vuelvan Caras disse que

“60 mil cooperativas recebem em-préstimos governamentais. Muitas delas são socorridas repetidas vezes. Elas passam muito tempo aguardan-do o dinheiro. O governo lhes dá capital e máquinas. Ele tentou traba-lhar com grupos grandes. Não conse-guiu que um número suficiente se ca-dastrasse, então reduziram o número mínimo para cinco membros. Muitos desses membros são funcionalmente analfabetos”. Enquanto isso, Chávez anunciou a criação de mercados de escambo como “a única maneira de romper com o capitalismo, começan-do por baixo”.

Carlos Molina, o superintendente nacional das cooperativas, constatou “debilidades de valores e princípios” numa amostra de 2.376 cooperati-vas inspecionadas entre as mais de 220 mil formadas com o patrocínio do governo. “As cooperativas na Ve-nezuela são organizadas de maneira muito pragmática”, disse ele, “por-que a maioria é criada para reduzir os custos trabalhistas de empresas. Em muitos casos os membros são traba-lhadores não assalariados que não participam das decisões. Elas acabam virando oficinas que empregam tra-balhadores explorados e mal remune-rados”. Irregularidades financeiras fo-ram constatadas em 2.110 das 2.376 cooperativas estudadas.

Os participantes se sentem gratos pela remuneração mensal que rece-bem dos programas das mìsiones, mas há problemas de distribuição. “O processo revolucionário não é ruim”, comentou Efraim Torres, que vive numa pequena casa de tijolos ao lado do córrego sinuoso onde nasceu, 40 anos atrás, e onde hoje hospeda um instrutor esportivo cubano, sem co-brar aluguel. “Mas Chávez quer criar seu tipo próprio de socialismo. Há muito favoritismo e corrupção na distribuição do dinheiro e das cestas de alimentos. As pessoas não se ali-mentam melhor. Mas a distribuição melhora na época eleitoral. Não há empregos. O lixo se espalha à nossa volta, nas ruas e nos barrancos, por-

que encarregaram uma cooperativa de fazer a coleta do lixo”.

Alguns depoimentos comoventes emergem dos programas educacio-nais, dados por pessoas pobres que estão estudando para serem mecâ-nicos, costureiras ou cabeleireiras. “Nosso presidente está me dando uma oportunidade de fazer meu so-nho virar realidade”, disse Miguel Antonio Castillo, 60 anos, que está tentando terminar o ensino médio na Misión Ribas. Ele é um dos mui-tos milhares de venezuelanos que re-cebem bolsas-auxílio mensais de US$ 50 a US$ 100 enquanto estiverem matriculados. Depois de concluir a Misión Ribas, ele será aceito auto-maticamente numa Universidade Bo-livariana. Mas o ensino é tão super-ficial e politizado que os formandos têm poucas perspectivas de conseguir emprego.

Os programas sociais não conse-guiram gerar empregos, apesar de a economia andar crescendo ao ritmo de 9%. Isso tem sido chamado de um crescimento oco, fortemente de-pendente da receita petrolífera, dos gastos governamentais e das impor-tações. Metade das fábricas da Vene-zuela fechou suas portas desde 1998, sob a pressão dos controles de preço e sobre o câmbio externo e das obstru-ções burocráticas que visam reduzir as dimensões do setor privado, que em 2005 sofreu a perda de 218 mil empregos. De acordo com José Guer-ra, ex-economista chefe do Banco Central, “o espaço criado pela falên-cia das fábricas nacionais foi ocupado por importações e por um arquipéla-go de pequenas unidades de produ-ção criadas pelo Estado, chamadas unidades de produção social, coope-rativas e núcleos de desenvolvimento endógeno, que são totalmente inca-pazes de competir no mercado e so-brevivem apenas graças aos subsídios que recebem do orçamento nacional, subsídios esses que estão devorando o maior valor de receitas públicas que a Venezuela jamais recebeu”. O se-tor público absorveu 256 mil novos

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trabalhadores em 2005, gerando um ganho global de apenas 32 mil, num mercado de trabalho que tem 1,1 mi-lhão de desempregados e 5,2 milhões de pessoas que trabalham no setor informal, sendo que 500 mil pessoas ingressam no mercado de trabalho todo ano. Muitos desempregados já desistiram de procurar trabalho e, em lugar disso; entram nas missões.

Nas últimas duas décadas a crise social gerou multidões de buhone-ros (camelôs) que lotam as avenidas principais de Caracas, espalhando-se pelas calçadas sob lonas plásticas com suas mercadorias (CDs e DVDs pi-ratas, cosméticos, pequenos artigos eletrônicos, roupas, pasta de dentes, celulares, etc). Seus direitos infor-mais de uso do espaço lhes são “alu-gados” por funcionários da prefeitu-ra. Um estudo recente mostrou que as barracas dos buhoneros já excedem em número os estabelecimentos co-merciais formais, sendo que a con-corrência por espaço e preços levou ao fechamento de 30% das lojas da cidade nos últimos cinco anos. Essas barracas são a maior fonte de novos empregos em Caracas, funcionando em três turnos, com o proprietário de cada barraca e dois empregados informais. Uma indústria de suporte fornece aos buhoneros alimentação, transporte diário, armazenagem de suas mercadorias e até mesmo em-préstimos. Uma pesquisa constatou que o buhonero “médio” é mulher, tem escolaridade secundária, even-tualmente grau universitário incom-

pleto, há seis anos nessa atividade. Alguns deles estão entrando na eco-nomia formal, com a companhia de eletricidade privada vendendo liga-ções para as barracas de cachorro-quente e uma cooperativa lhes ven-dendo seguro-saúde. O Boulevard de Sabana Grande, no passado repleto de lojas de alta moda e de cafés onde os intelectuais conversavam por ho-ras, hoje fica lotado de bancas que bloqueiam o trânsito e as entradas dos edifícios. Os buhoneros coloniza-ram as arcadas subterrâneas das mo-numentais torres gêmeas de Silencio, outra obra gigantesca da ditadura Pérez Jimenez, que nas décadas de 1950 e 1960 abrigaram vários mi-nistérios. Desde então, as torres se converteram em símbolo do colapso da administração pública. Elas entra-ram em decadência quando a maioria dos ministérios as abandonou. Sa-queadores arrancaram seus aparelhos de ar condicionado, as molduras das janelas, o revestimento de mármore dos corredores e saguões e as luxuosas portas dos elevadores e corrimãos das escadarias, todos feitos de bronze. Os buhoneros instalaram suas próprias lanchonetes e seus mictórios nas áreas públicas das torres. Freqüentemente bandos de jovens de ambos os sexos ameaçam os transeuntes com lâminas e facas e roubam seus relógios, anéis, celulares, carteiras e bolsas. O jornal El Universal noticiou o caso de um homem que arrancou um bebê dos braços de uma mulher e desapareceu com ele num carro que partiu em

alta velocidade, deixando a mulher a gritar para a polícia: “Era minha neta!”.

MatadoresA neta raptada se enquadra num pa-

drão maior de seqüestros e assassina-tos que se repete por toda a Venezuela. Em meio à triplicação dos homicídios entre 1995 e 2005, promotores inves-tigaram 597 assassinatos cometidos por matadores de aluguel, dos quais apenas 11 resultaram em julgamentos e condenações. Quatro quintos des-sas mortes ocorreram nos Estados de Táchira e Apure, na fronteira com a Colômbia. Outros 262 assassinatos a tiros ocorreram em Táchira nos sete primeiros meses de 2006. Em uma série de reportagens sobre assassinatos encomendados, o jornal El Nacional relatou que uma morte encomenda-da custa US$ 200 em Táchira. “Os matadores têm envolvimento com funcionários do Estado”, disse Pedro Díaz, da Una Luz por la Vida, uma associação de familiares de vítimas de assassinatos. “O único assassino que se encontra preso é aquele que matou meu filho, porque eu pus pressão so-bre as autoridades. Não existe segredo nisso. Você vai à Praça Bolívar e con-trata um matador”. No dia em que o artigo saiu no jornal, outro filho de Díaz foi assassinado. O El Nacional reportou que “mais de cem sindicalis-tas de Ciudad Guayana já morreram, vítimas dos matadores de aluguel. As entradas das indústrias básicas e das obras de construção tem sido o palco desses crimes, a maior parte dos quais passou impune”. Muitos assassinatos tiveram ligação com disputas envol-vendo vagas de trabalho, numa cidade onde o desemprego atinge 65% e que, no passado, foi vista como a fronteira industrial da Venezuela.

No dia 20 de julho, os corpos criva-dos de balas, amarrados e queimados de oito pessoas de uma mesma famí-lia foram encontrados numa casa de fazenda isolada, parte das 70 vítimas dos pistoleiros de aluguel em Apure em 2006. “No município de Páez, a

Reuters

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vida de uma pessoa pode custar só 15 mil bolivares (sete dólares)”, disse o padre jesuíta Jesús Rodriguez Villaro-el. Ele conta que garotos de 12 a 17 anos são recrutados por guerrilhei-ros colombianos e por uma facção pró Chávez (a Frente Bolivariana de Libertação), e pagos para matar. “Al-guns trabalham para grupos subversi-vos, outros para quadrilhas crimino-sas. Devido à inutilidade da polícia, as pessoas se sentem desprotegidas e fazem justiça com as próprias mãos. Elas procuram o mesmo matador que assassinou um parente seu e lhe pagam mais para matar a pessoa que encomendou o crime”.

CorrupçãoA ameaça à estabilidade representa-

da pelos problemas sociais e a queda na produção petrolífera é agravada pe-los escândalos de corrupção e os atri-tos internos que afligem a “Revolução Bolivariana”. Eles começaram pouco depois de Chávez assumir o poder, em 1999. Jesús Urdaneta, camarada mili-tar de Chávez e seu amigo de 20 anos, foi nomeado chefe da inteligência na-cional. Urdaneta reclamou da corrup-ção no novo governo. Contou de um último almoço que teve com Chávez, durante o qual lhe disse: “Olhe aqui, Chávez, eu me rebelei contra um go-verno desonesto e corrupto, e o seu governo é a mesma coisa!”.

Em sua campanha à presidência em 1998 Chávez prometeu o comba-te duro à corrupção. “Se um juiz, um governador, um general, seja quem for, estiver envolvido em algum ato de corrupção”, ele anunciou, em meio ao fluxo constante de histórias sobre corrupção este ano, “precisamos cor-tar sua cabeça, sem dó nem piedade”. Ele disse a seu ministro do Interior e da Justiça, Jesse Chacón: “Você conta com meu total apoio na batalha até a morte contra a corrupção”.

O caso mais notório de corrupção de que se tem notícia até agora, veio à tona no povoado natal de Chávez, Sabaneta, no Estado de Barinas. Ele envolve a apropriação indevida de

fundos que seriam investidos na cons-trução da Usina de Açúcar Ezequiel Zamora (CAEEZ), onde estavam tra-balhando vários oficiais do exército e 37 técnicos cubanos. A CAEEZ era presidida por Antonio Albarrán, mais tarde nomeado ministro da Agricul-tura e Terras, acusado anteriormente de organizar invasões de terras de par-ticulares em Barinas, com apoio mi-litar. O escândalo envolve o sumiço de US$ 1,5 milhão em fundos para o projeto, máquinas roubadas e US$ 1 milhão em madeira de uma flo-resta pertencente à CAEEZ. Firmas pertencentes a oficiais do exército e autoridades públicas foram pagas por serviços que jamais foram feitos e por bens que nunca foram entregues. Pe-quenos plantadores de cana em Saba-

neta disseram ter sofrido grandes pre-juízos porque não tinham comprador para sua produção, já que a CAAEZ ainda está sendo construída, três anos depois do prazo previsto para o início de suas operações. “Aos domingos [no Aló Presidente] o presidente nos diz que nos mandou milhões, mas onde está esse dinheiro?” indagou um agri-cultor. “É doloroso vê-los desviar esse dinheiro para seus próprios bolsos”. Um inquérito legislativo constatou que a maior parte do dinheiro esta-va sendo desviada para uma unidade local do exército, que emitira US$ 160 mil em cheques falsos, e que US$ 655 mil tinham sido dados de pro-pina por empresas contratistas. Um general e dois outros oficiais foram presos envolvidos no caso, mas não foram indiciados. O governador de Barinas, Hugo de los Reyes Chávez,

pai do presidente, proibiu manifes-tações públicas depois de estudantes terem cercado seu palácio para protes-tar contra o atraso no pagamento de suas bolsas de estudo. O governador disse que contou a seu filho sobre o problema, mas não teve resposta. Dias depois, 4.500 operários da construção fizeram uma passeata até o gabinete do governador para exigir uma inves-tigação sobre o assassinato de cinco sindicalistas. Phil Gunson, o corres-pondente em Caracas da Newsweek e da The Economia, relatou que “embo-ra oficiais militares tenham sido acu-sados de apropriação indevida ou mau uso de recursos públicos, totalizando centenas de milhões de dólares em alguns casos, nenhum deles foi indi-ciado, e alguns ainda conservam seus cargos no governo”.

Num esforço para alcançar a auto-suficiência na produção de alimentos, o governo ampliou o crédito agrícola em 50% em 2005, mas a área culti-vada aumentou em apenas 1,4%. O município de Zaraza (população: 70 mil) é uma região chave de produção de milho no Estado de Guarico, que tradicionalmente produz metade da safra venezuelana de milho. Apesar de um aumento grande no crédito agrícola em Zaraza, a produção so-freu uma queda de 70%. Proprietá-rios de terras locais se apoderaram do dinheiro, criando cooperativas falsas formadas pela coleta de assinaturas e dados pessoais de moradores locais, incluindo prostitutas locais, em troca de propinas de US$2 mil. “No ano passado a Fondaga (o órgão de crédito agrícola) enviou fiscais aos bordéis”, contou um funcionário municipal. “Encontraram debaixo das camas sa-cas de milho para semente, que seriam trocadas por aguardente nas lojas de bebidas alcoólicas”.

Barinas logo voltou aos noticiários, com a intensificação das rixas internas entre chavistas. Em junho de 2006, Antonio Barazarte, assistente do juiz do Tribunal Supremo de Justiça Luis Velázquez Alvaray, matou-se com um tiro na cabeça no banheiro de sua es-

“O governo porá fim à corrupção ou a corrupção porá fim ao governo.”

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tação de rádio em Barinas, horas de-pois de Velázquez ter sido expulso do tribunal pela Assembléia Nacional, acusado de receber US$ 4 milhões em propinas por contratos para a cons-trução de um novo complexo para abrigar o tribunal. Velázquez fugiu do país, depois de acusar figuras de desta-que do regime - o vice-presidente José Vicente Rangel, que dirige o governo durante as ausências freqüentes de Chávez, o presidente da Assembléia Nacional, Nicolás Maduro, e o mi-nistro do Interior e da Justiça, Jesse Chacón - de dirigir uma quadrilha de “anões” que atuariam no Judiciário, envolvendo-se em extorsões e influên-cias indevidas para decidir o resultado de julgamentos. Velázquez disse que foi pressionado para depositar US$ 209 milhões de recursos pertencen-tes ao Judiciário no banco Baninvest, pertencente em parte ao irmão de Jes-se Chacón, Arné.

Velázquez era um advogado de pro-víncia, eleito ao Congresso pelo parti-do de Chávez, o Movimento Quinta República (MVR). Ganhou elogios por ter redigido legislação que pos-sibilitou a Chávez encher o Tribunal Supremo de Justiça com seus seguido-res. Assim Velázquez conquistou uma vaga para ele próprio no TSJ. Após sua expulsão, Velázquez vinculou al-tos funcionários do governo ao assas-sinato por carro-bomba, em novem-bro de 2004, de Danilo Anderson, promotor que foi elogiado postuma-mente pelo regime como combatente em prol da justiça revolucionária, mas que, segundo a oposição, teria con-duzido um esquema de extorsão em conluio com altas autoridades. Então vieram os assassinatos de um assisten-te de Francisco Ameliach, major apo-sentado do exército que está dirigindo a campanha de reeleição de Chávez, e de quatro gerentes financeiros en-volvidos com líderes do regime. Uma das mortes foi vinculada ao sumiço de US$ 45 milhões do Fundo de Garan-tias de Depósito e Proteção Bancária (Fogade) enviados ao Banque Natio-nal de Paris (BNP). O dinheiro foi

transferido misteriosamente para a CBLS Portfolio, firma administrada pelo representante do BNP em Ca-racas, Arturo Ehrlich, que foi assassi-nado em 9 de abril de 2006. O vice-presidente do comitê de auditoria da Assembléia Nacional, controlada por Chávez, avisou: “Se o governo não puser fim à corrupção, a corrupção porá fim ao governo”.

As novas acusações de corrupção vieram à tona no momento em que três facções distintas teriam emergi-do no interior do regime: o chavis-mo com e sem Chávez e o chavismo contra Chávez. Velázquez integrava a facção com Chávez, enquanto seus acusadores eram líderes do grupo contra, que buscavam o controle total sobre o Judiciário. Consta que a ter-ceira facção, o chavismo sem Chávez, incorpora políticos civis e militares que ocupam posições estratégicas no governo. Estes acreditam que a cor-rupção, as ausências do presidente e seu distanciamento de sua base polí-tica criam um cenário propício à ação de uma nova força que viria salvar a Venezuela da desintegração. Há rela-tos persistentes de ressentimento nas forças armadas diante da penetração cubana no establishment militar.

4. Petróleo e desordem

A desordem que se espalha pelo governo e a sociedade da Venezuela vem solapando a indústria petrolífe-ra, principal pilar de apoio ao sistema político e a principal esperança de recuperação das décadas de pobreza crescente.

A produção petrolífera mundial hoje mal consegue acompanhar a demanda mundial. A produção nos Estados Unidos, maior consumidor mundial de petróleo, caiu do pico de 9,6 milhões de barris por dia (BD), em 1970, para cerca de 5,1 BD hoje. Dos 319.176 poços que esta-vam produzindo nos Estados Unidos em 2002, cerca de quatro-quintos (260.466) rendiam menos de 15

barris por dia (BD). Os campos pe-trolíferos tradicionais do Oeste da Venezuela, por estarem em operação há oito décadas, estão se esgotando. Aproximadamente 70% da produção mundial sai de campos antigos, já lar-gamente esgotados, com recuperação adicional estimada entre 30% e 40% dos depósitos remanescentes. O Mar do Norte está exaurindo suas reservas recuperáveis. A produção mexicana pode já ter passado de seu pico. Dis-túrbios políticos provocam a redução das exportações da Nigéria e do Ira-que, enquanto outros países membros da OPEP bombeiam seus poços quase à sua capacidade máxima, ao mesmo tempo em que a demanda cresce na China, Índia e Estados Unidos. Novas regiões produtoras na Rússia, África e Ásia Central estão expostas a riscos políticos. “A incerteza extrema tem sido um tema constante nos últimos anos”, reportou recentemente a Agên-cia Internacional de Energia (AIE).

As estimativas relativas às reservas mundiais são incompletas e podem enganar. Na década de 1980, lutando para manter suas cotas de exportação da OPEP dentro de um ambiente de preços baixos, quase todos os países membros da OPEP deram declara-ções dúbias sobre aumentos de suas reservas. Hoje os níveis das reservas de países ricos em petróleo como Arábia Saudita e Kuait são bastante questio-nados. Em 1997, a estatal petrolífera mexicana Pemex, segunda maior for-necedora dos Estados Unidos, decla-rou 40 bilhões de barris de reservas. Quando adotou os métodos mais rígidos da Comissão de Valores Mo-biliários (SEC) dos Estados Unidos, a Pemex reduziu suas estimativas de reservas de 40 bilhões de barris (BB), em 1997, para 2,3 BB em 2000 e 12,6 BB em 2002. O campo petrolífero gi-gantesco de Cantarei!, responsável por 60% da produção da Pemex, é amea-çado de uma queda de 75% em sua produção até 2008. O governo mexi-cano acha mais fácil financiarse com a receita da Pemex do que aumentando os impostos. Assim, a falta de recur-

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sos dificulta a atividade de exploração, obrigando o México a importar 19% dos produtos refinados que consome.

Os problemas da Pemex e da PD-VSA refletem tendências preocupan-tes na estrutura da indústria petrolí-fera mundial. Antigamente, antes da bonança dos preços petrolíferos na década de 1970, o fornecimento e o comércio internacionais eram contro-lados e administrados por um grupo pequeno de grandes empresas, conhe-cidas como as Sete Irmãs. Hoje 77% das reservas mundiais de petróleo e gás natural são controladas por empresas petrolíferas estatais, que bombeiam apenas a metade da produção glo-bal, refletindo o que a The Economist descreve como “falha sistêmica em investir”. Apesar de afirmar possuir grandes reservas, a Indonésia tornou-se importadora líquida de petróleo, de-vido à falha da estatal Petromina em desen-volver novos campos. A produção conjunta da Venezuela, Nigéria, Indonésia e Irã caiu em 990 mil BD no último ano (entre julho de 2005 e julho de 2006). Em julho de 2006, a agitação política na Ni-géria impediu a produção de 150 mil BD, além dos 500 mil que já tinham sido fechados.

Tudo isso deixa a economia mun-dial mais vulnerável a acontecimentos imprevistos como os furacões que fus-tigaram o Golfo do México em 2005 e o cancelamento, em agosto de 2006, de 400 mil BD de produção da Baía Prudhoe, no Alasca, ou 8% da pro-dução americana, devido a vazamen-tos nas tubulações enferrujadas de oleodutos alimentadores. Enquanto os preços do petróleo subiam, o Wall Street Journal relatou que “críticos dizem que as empresas de petróleo subinvestiram em novas instalações produtoras, à medida que as empresas

enfatizam mais o controle de custos que a manutenção. Mas executivos do setor se queixam de que muitas vezes a pressão pública frustra suas tentativas de criar mais infra-estrutura, como por exemplo novas refinarias”. Con-tando com Prudhoe Bay, “o maior campo petrolífero jamais descoberto na América do Norte”, Daniel Yergin, guru da Cambridge Energy Associa-tes, estimou que “cerca de 2,3 BD da capacidade [mundial] hoje se encon-tra fora da produção”. Yergin previu um aumento nessa capacidade, para 110 BD, até 2015, com base numa análise da atividade atual e de 360 novos projetos, incluindo “hidrocar-

bonetos não tradicionais” tais como a produção em grandes profundidades em águas territoriais do Brasil e da África ocidental, das areias petrolífe-ras canadenses, da faixa de petróleo pesado do Orinoco, na Venezuela, e dos líquidos feitos de gás natural. Ele acrescentou: “Tudo isso ressalta o fato de que, embora os desafios debaixo da terra sejam grandes, as incertezas - e os riscos - que mais preocupam ainda são os que estão sobre a terra”.

Em meio a essa incerteza, o declí-nio e a desorganização da indústria petrolífera venezuelana pode ser tão importante para a economia mundial quanto era a Venezuela meio século atrás, quando a produção mundial

se encontrava em expansão acelerada e a Venezuela era a maior exportado-ra mundial. De acordo com a AIE, a produção venezuelana caiu em 27% em relação ao seu pico recente de 3,28 BD, em 1997, para 2,5 BD em julho de 2006. No mercado petrolífe-ro arrochado de hoje, com a produ-ção e o consumo mundiais oscilando em torno de 86 BD e a demanda au-mentando quase 2% ao ano, apesar dos preços altos, uma queda maior na Venezuela geraria mais aumentos nos preços e mais ansiedade.

O principal mercado do petróleo venezuelano é os Estados Unidos, que importa 1,4 BD de petróleo cru

e produtos refinados da Venezuela, ou seja, cerca de 11% de suas importações. No úl-timo meio século a Venezuela tem sido fornecedora estratégica dos Estados Unidos, devido a sua proximi-dade com os portos da Costa do Golfo - cin-co dias de viagem de um petroleiro, contra 30-40 dias no caso do petróleo vindo do Oriente Médio. Além disso, a Citgo, subsi-diária da PDVSA, é proprietária integral

de cinco refinarias norte-americanas e sócia em outras quatro dotadas de capacidade especializada para proces-sar os crus pesados venezuelanos, com alto teor sulfúrico. As quedas recentes na produção venezuelana exerceram papel significativo na redução da ca-pacidade excedente global de 5,6 BD, em 2002, para cerca de 1 BD hoje, a maior parte dela na Arábia Saudita.

O clímax das viagens recentes de Chávez foi sua visita de seis dias à China, a quarta desde que é presi-dente. Sua estratégia de transferir as exportações petrolíferas dos Estados Unidos para a China foi articulada em 18 acordos assinados em Pequim. Ele anunciou planos para elevar as ex-

Incêndio numa refinaria.“Erro humano” - Reuters

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portações para a China de 70 mil BD para 1 MBD em cinco anos. Enco-mendou da China 18 superpetroleiros para transportar o petróleo, apesar de o custo do transporte da Venezuela à China ser de 11 a 13 dólares o barril, contra apenas 2 a 3 dólares por bar-ril enviado às refinarias americanas na Costa do Golfo do México. Os chine-ses esperam que a Venezuela absorva a diferença nos custos do transporte.

Um novo relatório do General Accountability Office dos Estados Unidos observou que “as reduções de longo prazo na produção e nas expor-tações petrolíferas da Venezuela cons-tituem motivo de preocupação para a segurança energética dos EUA, espe-cialmente em vista da oferta baixa e demanda alta no mercado petrolífero mundial. Se a Venezuela não manti-ver ou ampliar seu nível de produção atual, o mercado petrolífero mundial pode arrochar-se ainda mais, exer-cendo mais pressões tanto no nível quanto na volatilidade dos preços da energia”.

O impacto doméstico do declínio do setor petrolífero da Venezuela é mascarado pelos altos preços atuais do petróleo e por gestos políticos de Chávez, hoje o chefe inconteste da PDVSA. Após a nacionalização do se-tor petrolífero venezuelano, em 1976, os políticos venezuelanos procuraram evitar as perturbações e ineficiências que afligem a Pemex e outras estatais petrolíferas, possibilitando à PDVSA desenvolver uma reputação de profis-sionalismo e competência. Mas, as-sim que Chávez foi eleito, em 1998, ele começou a politizar a empresa. Desde então, a PDVSA já teve seis executivos-chefes, enquanto Chávez lotava seus quadros de pessoal supe-riores com indicados por razões polí-ticas, motivando uma resistência que levou à greve geral de dois meses em dezembro de 2002 a janeiro de 2003, na qual petroleiros e executivos do se-tor se uniram num esforço desespera-do para forçar a renúncia de Chávez, ou, pelo menos, eleições presidenciais antecipadas.

A greve atuou como pivô no declí-nio da PDVSA. Chávez resistiu aos grevistas, apesar dos prejuízos pro-fundos acarretados à economia vene-zuelana. A greve converteu-se numa demissão em massa. Chávez despediu 18 mil empregados da PDVSA, in-cluindo a maior parte de seu quadro técnico de geólogos, geofísicos e en-genheiros de reservatórios. Os centros de treinamento e pesquisas da estatal foram desmantelados. Com isso, a PDVSA perdeu boa parte de sua base de conhecimentos e de seu capital hu-mano. Desde então vem ocorrendo uma longa sequência de acidentes e incêndios nas refinarias da empresa, devido à ausência de técnicos qualifi-cados. O abandono dos poços margi-nais durante e após a greve provocou

a perda permanente de 400 mil BD de capacidade de produção. Até agora em 2006 já ocorreram 17 incêndios e explosões em refinarias da PDVSA, graças principalmente a erros huma-nos. Um incêndio ocorrido em 17 de julho numa torre da unidade de des-tilação Amuay do Complexo de Refi-no de Paraguaná, o maior da América Latina, interrompeu as operações por seis meses. A produção em Paraguaná, que envia produtos refinados prin-cipalmente à costa leste dos Estados Unidos, foi fortemente reduzida, obrigando a PDVSA a comprar gaso-lina no exterior para suprir o mercado interno e cumprir seus contratos de exportação. O acidente também pro-vocou a escassez de GLP (gás liquefei-to de petróleo), o gás de cozinha.

Não apenas Chávez despediu a massa crítica de técnicos da PDVSA,

como proibiu outras empresas pe-trolíferas que operam na Venezuela, além das companhias que trabalham sob contrato com elas, de contratá-los. Isso obrigou a muitos a deixarem o país, criando uma diáspora de pe-troleiros venezuelanos que hoje tra-balham nos Estados Unidos, Canadá, Espanha, México, Argentina, Colôm-bia, Arábia Saudita, Catar, Iraque e Ásia Central.

Sob pressão política de Chávez, a PDVSA vem gastando mais para fi-nanciar os programas sociais da “Re-volução Bolivariana” do que com suas próprias necessidades de investimen-to. A PDVSA anunciou um novo plano estratégico, o Plan Siembra Pe-trolera, para aumentar a produção do país de 2,5 BD hoje, segundo estima-tivas independentes, para 5,8 BD até 2012, com investimentos de US$ 56 bilhões. O plano foi criticado como mera reformulação de um plano an-terior da PDVSA, usando aproxima-damente os mesmos números, sendo os US$ 56 bilhões em investimentos planejados um valor muito aquém do que foi necessário para um aumento muito menor de capacidade durante os anos 1990. A PDVSA transferiu tanto dinheiro para o governo que, apesar dos preços altos de petróleo, ela enfrenta um déficit de fluxo de caixa de US$ 5,3 bilhões em 2006. Recentemente PDVSA aumentou sua estimativa do custo do Plan Siembra Petrolera dos US$ 56 bilhões já anun-ciados para US$ 130 bilhões, preven-do tomar empréstimos de US$ 40 bi-lhões para financiar o plano.

Cerca de um terço do dinheiro para o Plan Siembra Petrolera deve vir das empresas estrangeiras operando na Venezuela. Essas empresas pararam de investir após receber faturas de bilhões de dólares em 2005 a título de impos-tos atrasados e de serem obrigadas a tornar-se sócias minoritárias da PDV-SA. Em março de 2006, o ministro da Energia e do Petróleo, Rafael Rami-rez, anunciou os termos draconianos sob os quais as empresas estrangeiras contratadas, depois de já terem inves-

Um gasoduto de mais de 8 mil km

na Amazônia?

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tido US$ 26 bilhões na Venezuela, te-riam que operar em empresas de capi-tal misto, como sócias minoritárias da Corporação Venezuelana de Petróleo (CVP), uma subsidiária da PDVSA. Essas condições incluem o pagamen-to de mais impostos e royalties, a ces-são do controle operacional das joint ventures e a renúncia à arbitragem internacional de disputas, que passam a ter que ser decididas em tribunais venezuelanos. O Estado venezuelano determinaria os níveis de produção de petróleo cru e aprovaria os orçamen-tos e planos operacionais anuais. As 22 empresas petrolíferas estrangeiras têm fortes razões para permanecer na Venezuela sob essas condições, devido aos preços petrolíferos atuais altos e às imensas reservas da Venezuela. Ade-mais, se partirem, é possível que não possam recuperar seus investimentos fixos, já que o governo declarou ilegais os contratos antigos, apesar de terem sido aprovados pelo Congresso e o Tribunal Supremo de Justiça na déca-da de 1990. As empresas estrangeiras produzindo 600 mil BD cru extra-pesado na Faixa do Orinoco também devem transformar-se sócios minori-tários em joint ventures com PDVSA.

No entanto, os poços petrolíferos desgastados pela idade da Venezuela necessitam de manutenção intensiva. Nove décimos deles precisam de in-jeção de gás ou água para conservar o petróleo fluindo para a superfície, devido à queda na pressão natural dos reservatórios. “A PDVSA se politizou e hoje não conta com as habilidades administrativas e know-how necessá-rio para redigir um plano de negócios digno de crédito”, disse Diego Gon-zález, engenheiro aposentado da PD-VSA e atual diretor do Instituto de Petróleo e Mineração, IPEMIN. “Os contratos são concedidos atendendo a caprichos, sem licitação prévia. Como a maioria de seus engenheiros de re-servatórios foi despedida após a greve, faltam à PDVSA os técnicos capazes de reparar os poços. Se os poços não passam por reparos periódicos, os problemas mecânicos se multiplicam.

Um poço normalmente produz pe-tróleo, gás, água e areia. São necessá-rios reparos quando um poço produz água e areia em demasia. Trata-se de um trabalho caro e delicado, realizado com uma equipe de 30 empregados que usam equipamentos de perfura-ção e reparo que custam US$ 20 mil por dia. É preciso remover as bombas, os tubos de produção e a árvore de Natal (o conjunto de válvulas dos po-ços que impedem explosões). Limpar o reservatório significa disparar bolas ou balas de aço dentro do poço, para descompactar a areia. Hoje 21 mil po-ços da PDVSA estão fechados por fal-ta de reparos, um número que cresce sem parar, enquanto 14 mil estão em produção”.

Passando por cima dos problemas financeiros, técnicos e de mão-de-obra qualificada de PDVSA, Chávez ousou ao propor a construção de um gasoduto de US$ 20 bilhões, conhe-cido como o GASUR, que teria 8 mil quilômetros de extensão, para enviar gás da Venezuela à Argentina, que tem necessidade urgente de gás impor-tado. O GASUR atravessaria toda a extensão do território brasileiro, com incentivos para fornecer gás a cidades da Amazônia e do nordeste do Brasil. Os governos brasileiro e argentino en-dossaram a proposta de Chávez, um sonho antigo de engenheiros, visto há muito tempo como impraticável e para o qual ainda faltam estudos de viabilidade. O consultor venezuelano Nelson Hernandez observou que os engenheiros teriam que enfrentar uma temporada de chuvas de oito meses na região amazônica, e o gasoduto teria que atravessar muitos rios, riachos e pântanos. Com inundações sazonais de até 12 metros de profundidade, disse ele, seria difícil manter abertas as estradas de penetração necessárias para a manutenção do gasoduto.

O custo do gás do GASUR na Ar-gentina, incluindo o transporte, seria US$ 134 por barril de equivalente petrolífero, muito superior ao custo de outras alternativas, como a im-portação de mais gás boliviano ou a

construção de navios e instalações in-dustriais especializados para a impor-tação de gás liquefeito natural (GLN) da Venezuela à Argentina. Para tornar ainda mais exótica a história, Chávez anunciou que venderia o gás vene-zuelano para o gasoduto GASUR ao preço subsidiado de US$ 1 por mi-lhões de unidades térmicas britânicas (Mbtu), contra os preços atuais de US$ 4 por Mbtu do gás boliviano en-viado ao Brasil e US$ 6 pelos envios de gás doméstico aos EUA.

A proposta de Chávez para o GA-SUR é baseada nos 151 trilhões de pés cúbicos (tpc) da reserva comprovada de gás natural que a Venezuela pos-sui, a maior da América do Sul e nona maior do mundo. Entretanto, 90% dos depósitos venezuelanos de gás es-tão associados a depósitos petrolíferos e não foram independentemente cer-tificados. Da produção atual de gás, 70% é reinjetada em operações para manter a pressão nos reservatórios em produção. No passado, a Venezuela fez poucos trabalhos de exploração de gás não associado. Hoje o país sofre uma escassez tão grande de gás utili-zável que a produção de petróleo na região do lago Maracaibo está dimi-nuindo rapidamente por falta de gás disponível para injetar nos reservató-rios. Ademais, a Pequivem, empresa petroquímica filiada à PDVSA, anun-ciou seu próprio plano de expansão de US$ 26 bilhões, apesar de não pos-suir gás suficiente para sua produção atual. Se a exploração marítima que vem sendo feita pela Chevron e a no-rueguesa Statoil for bem-sucedida, a Venezuela pode contar com entre 1,7 e 2,5 bilhões de pés cúbicos adicio-nais por dia de gás disponível, o que mal daria para cobrir a escassez atual para seu mercado interno. Está sendo construído um gasoduto para a im-portação de gás da Colômbia.

No dia 17 de dezembro de 2005, Chávez e o presidente Lula lançaram a pedra fundamental de uma refinaria de 200 mil BD em Pernambuco a ser construída e financiada conjuntamen-te pela PDVSA e a Petrobrás. A nova

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refinaria está sendo construída ape-sar dos protestos de engenheiros da Petrobrás. “Isso está sendo feito por razões políticas”, disse um veterano engenheiro de refinaria da Petrobrás. “Nossa refinaria na Bahia foi ampliada para atender ao mercado do nordeste. A modernização de uma refinaria já existente custa entre US$ 5 mil e US$ 8 mil por cada barril de capacidade diária acrescentada, enquanto uma refinaria nova custa de US$ 15 mil a US$ 18 mil. A Venezuela já produz muito os crus pesados. O Brasil não precisa desse tipo, porque já exporta entre 250 mil e 300 mil BD da Bacia de Campos, com prejuízo, para que possamos importar produtos e petró-leos leves. Cada 100 mil BD de cru venezuelano que importarmos para a refinaria de Pernambuco significará ter que exportar 100 mil BD a mais, com prejuízo. A decisão final sobre a construção ou não da refinaria de Per-nambuco será tomada pelo próximo governo brasileiro”.

Em 2004 a Venezuela declarou ou-tros 232 BB de reservas de petróleo extrapesado, com base nas estimativas geológicas de 1.300 bilhões de barris de petróleo existentes sob uma sava-na ao norte do rio Orinoco, uma das maiores concentrações mundiais de hidrocarbonetos, a partir da qual qua-tro empresas estão produzindo 600 mil BD com técnicas de recuperação avançadas. No período pré-colombia-no, os indígenas utilizavam o alcatrão presente na região do Orinoco para revestir suas canoas e choupanas e para fins medicinais. O primeiro poço de exploração na Faixa Petrolífera do Orinoco (antiga Faixa do Orinoco) foi perfurado pela Exxon em 1936, mas foi abandonado em pouco tem-po porque a alta gravidade específica e a viscosidade do petróleo descoberto o tornavam pesado demais para fluir naturalmente para a superfície.

Conhecida antigamente como Fai-xa Betuminosa, mas desde então reba-tizada de Faixa Petrolífera do Orinoco, a região produz 600 mil BD de petró-leo cru melhorado, graças a inovações

tecnológicas recentes feitas sob um esforço de investimento de US$ 13 bilhões realizado na década de 1990 pela PDVSA e operadoras estrangei-ras como a Conoco-Phillips, Exxon-Mobil e Statoil. Essas operadoras pu-deram produzir petróleo cru sintético de médio a leve, removendo átomos das moléculas de betume e, em alguns casos, acrescentando hidrogênio. O petróleo extrapesado é transforman-do numa commodity exportável no Complexo Industrial Jose, próximo à costa caribenha, uma cidade virtual

de tubulações, lagoas de tratamento de água, chaminés, poços e tanques de armazenagem. A PDVSA calcula que pode recuperar economicamente 18% dos 1,3 trilhão de barris de pe-tróleo extra-pesado que diz existir no Orinoco, apesar de que a recuperação atual é só 4% do petróleo existente. A expectativa é que novas tecnologias (diluentes, sistemas de extração base-ados no fogo, etc.) levem a índices de recuperação mais altos no futuro.

Multiplicar produção do Orinoco no futuro exige descarte ou venda de volumes enormes de enxofre e coque

contidos no petróleo cru extra-pesa-do. Dos 429 mil BD extraído no Ori-noco em 2003 implicava extrair 14 mil toneladas diárias de enxofre e 15 mil toneladas diárias de coque. Multi-plicar essa produção 10 vezes exigiria investimentos maciços para criar 10 novas cidades de tubulações, lagoas de tratamento de água, chaminés, poços e tanques de armazenagem, similar ao Complexo Jose. Não haveria merca-do para os 50 milhões de toneladas de enxofre produzidos em um ano, nem para os 500 milhões de toneladas produzidos em 10 anos, com grandes riscos ao meio-ambiente. Nem existe na Venezuela lugares adequados para tantos complexos para melhorar crus extra-pesados, que devem estar perto de portos de águas profundos.

Ao invés de fazer investimentos pesados no Orinoco para garantir a produção para décadas futuras, a PDVSA fechou contrato com estatais petrolíferas estrangeiras - do Brasil, Irã, Índia, Rússia, China, Argentina e Uruguai - para medir e aumentar as reservas comprovadas da Faixa. Ne-nhuma dessas empresas possui expe-riência anterior com petróleos crus extrapesados.

A Venezuela terá que acrescentar 400 mil BD de capacidade nova to-dos os anos apenas para estabilizar a produção atual. Mas resta ver quantos recursos financeiros e técnicos serão investidos em sua produção futura. O orçamento atual da PDVSA prevê gastos de US$ 8,2 bilhões com pro-gramas sociais, dois terços mais que seus investimentos em exploração e produção. De acordo com as esta-tísticas oficiais mais recentes, apenas cinco poços de exploração foram ativados na Venezuela entre 1998 e 2003. Desde 1990 não foi descober-to nenhum campo petrolíferonovo. Com os altos preços atuais do petró-leo, a exploração mundial é tão inten-sa que os equipamentos de perfuração são muito escassos, o que limitaria a atividade exploratória da PDVSA no uturo próximo. A estatal quer alugar 27 equipamentos por cinco anos ao

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custo de US$ 4,3 bilhões, ou US$ 50 mil por dia. Dos 129 equipamentos de exploração existentes na Venezuela, 93 estão ativos. Dos 33 inativos, 17 pertencem à PDVSA e se encontram em depósitos ou deteriorados, alguns relegados a sucata.

Na inauguração dos esforços de empresas petrolíferas estrangeiras para certificar as reservas do Orinoco, uma cerimônia de quatro horas de dura-ção que foi transmitida pela televisão, Chávez anunciou: “Até novembro de 2007 vamos dobrar nossas reservas comprovadas, chegando a 171 bilhões de barris e passando a ter a segunda maior reserva do mundo. Até outubro de 2008, teremos certificado 235 bi-lhões de barris. Assim, em dois anos vamos triplicar nossa reserva atual, de modo a chegar a 316 bilhões de barris”, o que, afirmou, será a maior reserva do mundo. Chávez não expli-cou como isso será feito, em vista dos problemas técnicos, os baixos níveis de investimento e de mão-de-obra qualificada da PDVSA, com muitos técnicos enviados para trabalhar em projetos no exterior.

5. Uma história de um idiota?

Depois de passar três semanas na Venezuela, onde vivi por seis anos e onde meus dois filhos nasceram, sen-ti que Chávez e seu “socialismo para o século 21” podem durar mais dois ou três anos. Esse é um ponto de vis-ta pessoal. Posso estar equivocado. A maioria dos observadores pensa que Chávez vai permanecer enquanto os preços do petróleo se mantiverem altos. Mas minha impressão é que, independentemente dos preços do petróleo, Chávez vai afundar na de-sordem crescente que o cerca e que sua própria negligência e sua tolice temerária vieram agravar. O mais tris-te dessa história é que a desordem vai continuar por muito tempo depois de Chávez ter partido. A Venezuela vai permanecer uma sociedade polarizada e degradada enquanto não forem lan-

çadas iniciativas coerentes e corajosas, num esforço de longo prazo para su-perar esses problemas. Sem solucioná-los a era de Chávez pode acabar se re-velando, nas palavras de Shakespeare, “uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, que não quer di-zer nada”.

No início deste ensaio eu disse que a Venezuela serve de aviso sobre os custos da degradação e da falência das instituições públicas. Felizmente, outros países já reagiram diante des-se perigo. Argentina, Bolívia, Brasil e Peru sofreram o trauma da hiperinfla-ção nas décadas de 1980 e 1990, uma experiência que não querem repetir. A Venezuela foi salva da hiperinflação por sua receita petrolífera, que reduziu sua competitividade e tornou seus lí-deres cegos à necessidade de lidar com seus problemas estruturais de longo prazo. A ameaça de desintegração de sociedades organizadas em outras re-públicas latino-americanas fortaleceu a tendência à estabilidade democráti-ca desses países. O desafio com que se defrontam essas democracias hoje está na fraqueza de seu desempenho eco-nômico e institucional.

Um novo modelo econômico está emergindo - um modelo de níveis muito altos de urbanização que exige grandes investimentos públicos com inflação baixa e requer uma nova es-tratégia política. O futuro da demo-cracia será influenciado pela quali-dade da determinação e criatividade com que serão enfrentados esses de-safios, na busca por uma estabilidade econômica e a ampliação das oportu-nidades. O futuro será promissor se as instituições democráticas puderem ser fortalecidas nas próximas décadas, de modo a superar falhas nos sistemas de justiça, segurança pública, educação, infra-estrutura e regulamentação eco-nômica, especialmente negligenciadas na Venezuela. Tratamse de empreen-dimentos de longo prazo para atender a necessidades amplamente reconhe-cidas para a operação de sociedades complexas. Esses esforços enfrentam as incertezas decorrentes da novidade

e persistência. Se a persistência cede às frustrações, podem surgir novida-des como populismo que, com fre-qüência, resultam em ditaduras. Essa é uma das razões da ascendência da “Revolução Bolivariana” de Hugo Chávez, que pode não durar muito e que não traz solução para as dificulda-des enfrentadas pela Venezuela e para outros países da América Latina.

Um mistério que cerca a política venezuelana envolve essa questão: Por que um grupo de políticos e intelec-tuais de talento - Rómulo Betancourt, Raúl Leoni, Juan Pablo Pérez Alfonzo, Andrés Eloy Blanco, Rafael Caldera, Rómulo Gallegos, Mariano Picón Sa-las, Luis Beltrán Prieto e muitos ou-tros - puderam estabelecer em meados do século 20 uma democracia que durou quatro décadas? E por que a Venezuela não produziu nenhuma li-derança democrática comparável hoje que seja capaz de fazer oposição eficaz a uma ditadura que vem ocupando es-paço cada vez maior? Os democratas de antes, em sua maioria, nasceram no atrasado interior da Venezuela e ti-veram menos educação formal do que os milhões de venezuelanos hoje com diplomas universitários. Eles propu-nham um programa claro e convin-cente, enquanto os democratas de hoje não oferecem alternativa estraté-gica à “Revolução Bolivariana” capaz de superar a pobreza, a polarização e a desordem que ameaçam a sociedade organizada. Essa é a essência do vácuo político atual.

Se as eleições presidenciais se reali-zarem conforme o previsto, no dia 3 de dezembro, Chávez poderá vencer por grande número de votos, auxi-liado pelo controle que exerce sobre a máquina eleitoral e seus gastos com programas sociais. A oposição protesta contra o que afirma ser o inchamento fraudulento do número de eleitores cadastrados, as divergências em torno de práticas de recontagem de votos e as suspeitas de violação do voto secre-to pela tomada de impressões digitais dos eleitores quando eles utilizam as urnas eletrônicas. Metade dos muni-

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cípios venezuelanos tem mais eleitores cadastrados do que habitantes em ida-de para votar. Em Maracaibo, cerca de 1.900 eleitores foram cadastrados com a mesma data de nascimento no mesmo distrito. Centenas de Outros eleitores apresentavam o mesmo nú-mero em suas cédulas de identidade. Quando a campanha começou, a Comissão Nacional Eleitoral (CNE), controlada por Chávez, confirmou que vai utilizar a tomada computa-dorizada das impressões digitais dos eleitores. Vicente Díaz, o único mem-bro oposicionista da CNE, dizia que o cadastramento das impressões digitais vai assustar os eleitores, levando à abs-tenção em massa. As urnas eletrônicas foram fornecidas por uma empresa da Flórida, Smartmatic, dirigida por técnicos venezuelanos com conexões políticas e na qual o governo da Vene-zuela detém 28% das ações.

Mas é possível que as eleições não aconteçam. Muitos sentem que a úni-ca opção realista de que dispõe a opo-sição consiste em enfraquecer a legi-

timidade de Chávez, apelando para a abstenção, como foi feito em de-zembro de 2005, quando três quar-tos do eleitorado deixaram de votar.

Chávez afirmava que iria con-quistar 10 milhões de votos, ou 63% do eleitorado, até que dois candidatos rivais in-gressaram na disputa, o que

o levou a reduzir a promessa para 6 milhões. Seu principal ri-

val é Manuel Rosales, governador do Estado de Zulia. Rosales é um

político experiente, tendo saído das fileiras da Acción Democratica em seu Estado natal. A principal pro-messa da campanha de Rosales é

distribuir mensalmente 20% da re-ceita de PDVSA às 2,5 milhões de famílias mais pobres. Antes de um

largo espectro de grupos de oposição ter se unido para apoiar Rosales, os analistas de opinião estimavam que Chávez poderia conseguir 5

milhões ou 6 milhões de votos se 30% ou 40% dos eleitores com-

parecessem para votar, e menos do que isso se o índice de comparecimen-to fosse inferior a 30%. Pesquisas três meses antes da eleição ainda apontam Chávez como ganhador, mas com menores margens de diferença.

Outros 21 candidatos já ficaram co-nhecidos como defensores de Chávez, sendo que 15 deles foram cadastrados junto às autoridades eleitorais pouco antes do prazo final de 24 de agosto. Cada um desses candidatos chavistas tem direito a tanto tempo na rádio e na televisão quanto os dois principais candidatos oposicionistas. E cada um deles tem direito a manter dois repre-sentantes seus em cada mesa eleitoral, possibilitando ao governo lotar os lo-cais de voto com seus partidários.

A abstenção em massa em eleições presidenciais é relativamente nova na Venezuela. Na eleição presidencial de 1988, 18% dos eleitores se abstive-ram, proporção que subiu para 30% no referendo sobre a rescisão do man-dato, ganho por Chávez em agosto de 2004; 45% se abstiveram nas eleições

estaduais de outubro de 2004, 68% na eleição municipal de agosto de 2005 e 75% na eleição parlamentar de dezembro de 2005. Alfredo Kel-ler, pesquisador veterano em sonda-gens de opinião, relatou que apenas 30% dos eleitores potenciais - em sua maioria chavistas engajados - declara-ram que pretendem votar na eleição presidencial de dezembro de 2006, enquanto outros 30% expressaram apoio crítico e 40% decididamente rejeitam Chávez.

De acordo com Keller, surge uma contradição entre o apoio popular a Chávez e a discordância com suas po-líticas manifestada entre as mesmas pessoas entrevistadas, 72% das quais rejeitam suas idéias de “socialismo para o século 21”, incluindo os ata-ques à propriedade privada, enquanto 63% se opõem ao fato de ele gastar grandes quantias para ganhar apoio geopolítico no exterior. Uma sonda-gem mais recente conduzida pela Da-tanálisis apontou para uma queda de 5% ao mês nas intenções de voto em Chávez, que teriam caído para 55%. Dos entrevistados, 80% se manifesta-ram insatisfeitos com a maneira como ele lida com a criminalidade, 70% se opõem a sua campanha contra os Es-tados Unidos e dois terços se dizem insatisfeitos com a maneira como ele enfrenta a corrupção. Outra pesquisa aponta que 93% dos pobres entrevis-tados são a favor da propriedade pri-vada.

“A partir deste momento, o fura-cão bolivariano entra em erupção; a nova maré vermelha chegou”, disse Chávez, usando camisa vermelha tal como seus seguidores, num comício em que formalizou sua candidatura. “Se os candidatos [oposicionistas] re-tirarem suas candidaturas, atendendo a planos imperialistas, tenham a certe-za de que seus amos em Washington e seus lacaios aqui vão lamentar o fato. Isto não é uma ameaça. Recomendo que não o façam, porque esse contra-ataque vai apenas aprofundar e acele-rar a Revolução Bolivariana”. Como que para dar credibilidade ao aviso,

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Chávez radicalizou suas nomeações políticas nos últimos meses e deu um formato militar a sua campanha para reeleição. Em outro comício Chávez anunciou planos para criar “um parti-do único para representar a Repúbli-ca ao mundo”, juramentando 11.358 “batalhões” e 44.698 “pelotões” de seus seguidores, com o objetivo de somar dois milhões de voluntários, sob a supervisão intensa da milícia “Comando Francisco Miranda”. Essas equipes estarão encarregadas de per-correr as cidades do interior do país para acompanhar o cumprimento das metas da campanha eleitoral. Esses quadros podem ser úteis a Chávez em eventuais confrontos numa eleição apertada na apuração dos votos.

Cedo ou tarde os venezuelanos terão que se perguntar por quanto tempo ainda o país poderá suportar os erros caros cometidos por Chávez, seu discurso polarizador e seu descaso para com os problemas fundamentais da Venezuela. Eles terão que decidir se o dinheiro do petróleo é ou não um carma que os predestina ao desper-dício, à pobreza e à desorganização. Chávez se enquadra nos estereótipos latino-americanos arcaicos, falan-do no jargão de um líder estudantil e agindo como um ditador militar com roupagem populista como visto muitas vezes no passado. Seus discur-sos longos são repetitivos e fracos em conteúdo, destituídos da densidade e originalidade que seu mentor Fidel

Castro manifestava nos primórdios da Revolução Cubana. Mas Chávez vem demonstrando possuir um instinto de sobrevivência e um oportunismo que estavam ausentes em mártires mar-xistas como Che Guevara e Salvador Allende. A grande pergunta para o futuro próximo é: por quanto tempo ainda a capacidade de manobra de Chávez vai sobreviver à desordem que o cerca?

O autor agradece a Jimmy Brandon Neves de Ávila por sua assistência nessa pesquisa.

Tradução: Clara Allain.