Democracia de Assembleia e Democracia de Parlamento: uma breve história das instituições...

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Sociologias, Porto Alegre, ano 12, n o 23, jan./abr. 2010, p. 20-45 SOCIOLOGIAS 20 Democracia de Assembleia e Democracia de Parlamento: uma breve história das instituições democráticas Resumo No debate sobre o imenso legado cultural da Grécia antiga, a questão da democracia é sempre evocada como ideal de participação direta dos cidadãos nas decisões coletivas, em oposição ao conceito moderno de representação política. Na busca não somente de oposições, mas de áreas comuns entre os dois concei- tos, este artigo procura demonstrar que a teoria dos três poderes propugnada por Aristóteles e posteriormente retomado por Montesquieu nos conduz a um proe- minente fio condutor nas relações que se estabelecem entre antigos e modernos Palavras-chave: Democracia. Participação. Representação. * Professora do Instituto de Ciência Política Universidade de Brasília. Doutora em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales - Paris. Pós Doutorado em Teoria e Filosofia da História - Centre Louis-Gernet de Recherches Comparées sur les Sociétés Anciennes - EHESS, Paris. (Bolsista CAPES jun 2006/jul 2007) Marilde loiola de Menezes * DOSSIÊ

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No debate sobre o imenso legado cultural da Grécia antiga, a questão da democracia é sempre evocada como ideal de participação direta dos cidadãos nas decisões coletivas, em oposição ao conceito moderno de representação política.Na busca não somente de oposições, mas de áreas comuns entre os dois conceitos, este artigo procura demonstrar que a teoria dos três poderes propugnada por Aristóteles e posteriormente retomado por Montesquieu nos conduz a um proeminente fio condutor nas relações que se estabelecem entre antigos e modernos.

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    SOCIOLOGIAS20

    Democracia de Assembleia e Democracia de Parlamento: uma breve histria das instituies democrticas

    Resumo

    No debate sobre o imenso legado cultural da Grcia antiga, a questo da democracia sempre evocada como ideal de participao direta dos cidados nas decises coletivas, em oposio ao conceito moderno de representao poltica. Na busca no somente de oposies, mas de reas comuns entre os dois concei-tos, este artigo procura demonstrar que a teoria dos trs poderes propugnada por Aristteles e posteriormente retomado por Montesquieu nos conduz a um proe-minente fio condutor nas relaes que se estabelecem entre antigos e modernos

    Palavras-chave: Democracia. Participao. Representao.

    * Professora do Instituto de Cincia Poltica Universidade de Braslia. Doutora em Sociologia pela cole des Hautes tudes en Sciences Sociales - Paris. Ps Doutorado em Teoria e Filosofia da Histria - Centre Louis-Gernet de Recherches Compares sur les Socits Anciennes - EHESS, Paris. (Bolsista CAPES jun 2006/jul 2007)

    Marilde loiola de Menezes*

    DOSSI

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    Introduo

    Desde os gregos at ns, a ideia de que a democracia sig-

    nifica governo do povo ou governo da maioria tem

    um significado que via de regra denota um governo vol-

    tado para a distribuio mais equitativa do poder e da

    riqueza social. Todavia, entre a cidade-Estado e o Estado

    moderno, o conceito de democracia sofreu deslocamentos importantes

    que proporcionam grande diversidade de abordagens que ora se aproxi-

    mam, ora se distanciam, de seu modelo inicial.

    Uma das modificaes mais significativas no dilogo entre antigos

    e modernos foi certamente a transferncia do processo de participao

    direta do cidado nos negcios pblicos para um sistema centralizado de

    representao poltica. Para os antigos, a esfera pblica dizia respeito ao

    lugar especfico de tomada de deciso poltica por parte de seus cidados.

    No Estado moderno, a participao poltica mediada por um corpo in-

    dependente de polticos profissionais com legitimidade para decidir em

    nome dos cidados. Essa talvez seja a maior diferena entre a democracia

    antiga e a democracia moderna de nossos dias.

    Ao perscrutar oposies e reas comuns entre os dois conceitos de-

    monstramos que a reflexo poltica de Montesquieu nos encaminha ao

    profcuo dilogo entre antigos e modernos.

    Os primrdios

    Ao explicar a etimologia de maldito, Herdoto narra um dos pri-

    meiros episdios que inauguram a histria poltica ateniense. Trata-se de

    um jovem aristocrata que, orgulhoso por ter vencido nos jogos olmpicos,

    recruta um bando de gente de sua idade e tenta se apoderar da Acr-

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    pole, mas fracassa no seu empreendimento e se refugia suplicante ao lado

    da esttua de Atenas (HERDOTO, 1964, Livro V, p. 384). Cylon e seus

    seguidores se rendem sob a condio de no serem condenados morte,

    mas a promessa quebrada e os cmplices de Cylon so todos massacra-

    dos. Posteriormente, em funo do carter sagrado da acrpole, o arconte1,

    responsabilizado e julgado por sacrilgio, seria condenado ao exlio, e to-

    dos os membros de sua famlia, os Alcmenidas, considerados malditos.

    Esta era a lei na cit: se um membro da famlia cometesse um crime

    por homicdio ou sacrilgio, a punio recairia sobre toda a sua famlia e

    todas as geraes futuras. Depois disso, continua Aristteles, os nobres

    e o povo entraram em conflito durante longo tempo.

    Seja pelo carter sagrado da acrpole, seja pela participao popular ou

    pelo conflito aberto que se instaura entre povo e aristocracia, dez anos mais

    tarde tais disputas provavelmente motivaram a entrada na cena poltica do

    que hoje conhecemos como Cdigo de Drcon2. Supostamente escrito em

    621 a.C., a formulao dessas leis tinha como objetivo limitar as vinganas de

    morte entre famlias, prescrevendo punies para os casos de assassinato.

    Aristteles indica algumas pistas do impacto dessas primeiras inicia-

    tivas de regulamentao da vida social: na Constituio de Atenas, chega

    mesmo a induzir uma forma de clivagem na histria poltica de Atenas,

    antes e depois de Drcon, qualificando de regime primitivo as formas

    de organizao social anteriores a Drcon (ARISTTELES, 1967, p. 17-22).

    Quanto tradio hostil que se desenvolve a esse modesto conjunto de

    leis, devemos em parte a Plutarco, na medida em que coloca em dvida

    a eficcia de um cdigo que s conhece como sano a pena de morte (PLUTARCO, 2001, p. 213). Mesmo assim, a lei sobre o homicdio conti-

    1 O termo designa o supremo magistrado da cidade. 2 Grande parte de helenistas (Finley, Hansen, Moss) considera improvvel que Drcon tenha redigido um cdigo de leis ou dotado Atenas de uma Constituio.

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    nuou em vigor at o fim do sculo V antes de Cristo, e uma codificao

    total da vida social s foi implementada bem mais tarde, por meio de Slon. Designado arconte, Slon (entre 594-593 a.C.) assumiu a posio

    de conciliador e legislador ante os problemas econmicos que assolavam

    a sociedade ateniense (ARITTELES, 1967). Os campesinos, em funo

    de suas dvidas progressivas, encontravam-se em situao de total depen-

    dncia em relao aos proprietrios senhores da terra3. Segundo o relato

    de Plutarco, mesmo sendo um euptrida4, somente Slon poderia for-

    mular um pacto entre ricos e pobres: os ricos, em funo das condies

    materiais satisfatrias de Slon; os pobres, por suas qualidades morais5.

    Assim, o lema A igualdade no engendra a guerra, adotado por Slon,

    agradava ricos e pobres: os primeiros porque julgavam que a igualdade

    era fundada em funo de seus prprios mritos e de seus respectivos

    valores; os segundos porque avaliavam a igualdade como um direito de

    todos. (PLUTARCO, 2001, p. 209).

    Uma das primeiras medidas de Slon foi abolir dvidas e decretar

    tambm a interdio de qualquer forma de emprstimo tendo como ga-

    rantia a pessoa do prprio credor. Na esfera da justia, uma de suas pri-

    meiras medidas foi a abolio - salvo a lei sobre homicdio - das leis de

    Drcon. Slon considerava que as penas fixadas por Drcon, no sendo

    escritas com tinta, mas com sangue no distinguiam quem rouba uma

    fruta de quem comete o sacrilgio de um assassinato (PLUTARCO, 2001,

    3 Dentre eles alguns trabalhavam a terra em troca da hectmores; havia os assalariados e mais outros que ofereciam sua existncia como garantia das prprias dvidas: tornavam-se escravos de Atenas ou eram vendidos no estrangeiro. Ainda existiam os que eram obrigados a vender seus filhos para escapar da crueldade dos credores. 4 Proveniente da aristocracia.5 Referindo-se a essa passagem da vida de Slon, Plutarco acrescenta que Phanias de Lesbos, filsofo da Escola peripattica, considerava que para salvar a cite Slon enganava as duas par-tes. Em segredo, prometia aos pobres a partilha dos bens; aos ricos, a confirmao das dvidas por parte dos credores (PLUTARQUE, 2001, Vie Parallles, p. 209).

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    p. 212). No que concerne s magistraturas, Slon no operou grandes

    mudanas, e os cargos continuaram a ser ocupados pelos ricos.

    Atribui-se tambm a Slon a mudana de critrio na diviso do con-

    junto dos cidados atenienses em quatro classes sociais: os pentacosio-

    medimnos, os hippeis, os zeugitas e os tetes seriam classificados no mais

    a partir de seu nascimento, mas a partir de sua fortuna calculada pela

    produo de suas respectivas propriedades (ARISTTELES, 1967, p. 8).

    Ao modificar o critrio de nascimento pelo da aquisio de fortuna na

    diviso do conjunto de cidados, Slon inaugura a possibilidade de par-

    ticipao popular no processo de eleio s mais altas magistraturas. As

    duas primeiras classes (pentacosiomedimnos e hippeis) poderiam compor

    o Tribunal do Aerpago6, e a terceira classe (os zeugitas) poderia igual-

    mente se eleger s magistraturas inferiores. Os ltimos, os tetes, no eram

    contemplados por cargos, mas tinham acesso s assembleias.

    Slon criou o Conselho dos Quatrocentos, composto por cem mem-

    bros de cada tribo, e lhes confiou a tarefa de examinar e avaliar com ante-

    cedncia todos os assuntos a serem debatidos pela assembleia. Tais medi-

    das no impediam a participao do cidado, ao mesmo tempo em que

    impunham certo controle em eventuais excessos por parte do povo. Por

    outro lado, tendo dividido no s a sociedade, mas tambm o acesso aos

    cargos pblicos a partir da fortuna mensurada pela propriedade da terra,

    no era de espantar que os bemnascidos ocupassem posies hegem-

    nicas, ficando o povo com a participao restrita s Assembleias.

    Esses trs ncleos o Conselho dos Aerpagos, o Conselho dos

    Quatrocentos e a Assembleia co nstituam a base de poder das reformas

    solonianas. A Constituio de Slon no era obviamente um corpo siste-

    mtico de leis no sentido moderno do termo, no entanto representava

    uma tentativa bem sucedida de regulamentao da vida social, na qual se

    6 Tribunal ateniense que na poca clssica era formado pelos antigos arcontes.

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    podia estabelecer determinado equilbrio entre a ao dos proprietrios

    de terra e a maioria campesina.

    Em 507, Clstenes substitui a tradicional Constituio aristocrtica

    por uma nova forma de Constituio democrata. As reformas no interior

    da velha ordem social se operam a partir de uma vertente que institui

    uma nova diviso geogrfica e poltica da tica e outra que amplia o

    Conselho dos Quatrocentos, que passa a ter quinhentos membros. A nova

    Boul dos Quinhentos, a Assembleia e o Tribunal do Povo constituem os

    principais fundamentos de uma estrutura poltica que vai perdurar por

    mais 700 anos (HANSEN, 1993).

    Ekklsia, Boul , Hli

    A ekklsia era a Assembleia do Povo e nela o cidado ateniense adulto de sexo masculino tinha direito a palavra e voto. Reunia-se com um mnimo de seis mil cidados, numa colina chamada Pnyx, nas pro-ximidades da gora. Dela estavam excludos escravos, estrangeiros, mu-lheres, crianas e cidados privados de seus direitos polticos (atimoi).7 Caso algum representante desses segmentos fosse encontrado durante a realizao de uma Assembleia, poderia ser condenado a srias punies.

    Aristteles descreve a ekklsia como o frum credenciado para deci-dir a paz e a guerra; para construo e/ou rompimentos de alianas; para a promoo de leis, bem como para aplic-las em caso de banimentos, de confiscaes ou de pena de morte. Era tambm atravs da Assembleia que os magistrados prestavam contas de suas decises durante (ou ao trmino de) seus respectivos mandatos (ARISTTELES, 1964, Cap. X, p. 115).

    A Assembleia era convocada pela Boul dos Quinhentos e se reunia quarenta vezes por ano ou quatro vezes por pritania. Os prtanes (em

    7 A perda dos direitos polticos era causada por delitos como maus-tratos aos pais, no-cum-primento dos deveres militares; dilapidao do patrimnio; prostituio etc.

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    nmero de nove) presidiam a Boul dos Quinhentos e a Assembleia do Povo. Eram compostos pelos cinquenta membros de uma das tribos que compunham a Boul dos Quinhentos e que durante um dcimo do ano exercia a pritania, ou seja, a Presidncia da Boul. A ordem pela qual as dez tribos da tica se sucediam exercendo a pritania era sorteada a cada ano (ARISTTELES, 1967, p. 46). Alm das reunies semanais, a Ekklsia kyria era uma Assembleia maior, mais longa e se reunia uma vez por pritania.

    A Constituio de Atenas, de Aristteles, fornece-nos exemplos de variadas formas de deliberaes das assembleias: decidiam com a mo elevada se os magistrados deveriam (ou no) continuar nos respectivos cargos; deliberavam sobre questes ligadas defesa do pas; faziam a lei-tura dos bens confiscados pelo Estado, das denncias de alta traio e do julgamento sobre os direitos de sucesso de uma filha piclre8.

    Tambm cabia Assembleia, na sua sexta prytania, incluir na ordem do dia a aplicao (ou no) do voto sobre o ostracismo, assim como sobre a aplicao (ou no) de votao contra os sykophantes9 ou contra todo aquele sobre os quais pesavam acusaes de eventuais omisses em rela-o aos interesses do povo. Tais acusaes, provenientes de atenienses ou de metecas10, s poderiam ser realizadas em nmero de seis: trs denn-cias por categoria (ARISTTELES, 1967, p. 47).

    Uma outra assembleia era consagrada aos suplcios. Nesta, todo cidado poderia colocar um ramo de suplicante, significando que gos-taria de propor uma discusso ou deliberao sobre outros assuntos (pri-vados e pblicos) que no necessariamente constassem da pauta da as-sembleia. Duas outras Assembleias eram consagradas a assuntos gerais, porm as leis ordenavam que em cada uma delas deveriam ser debatidas

    8 A filha que herdou o patrimnio, em caso de ausncia de herdeiro do sexo masculino.9Os sykophantes eram acusadores quase profissionais. A justia ateniense no possua algo como o Ministrio Pblico, que em nome da cite defendesse os interesses da coletividade. A defesa dos interesses pblicos ficava ao encargo do conjunto dos cidados.10 Estrangeiro autorizado a viver na cit.

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    trs questes relativas a coisas sagradas, trs questes relativas a arautos ou embaixadores e mais trs questes profanas.

    Quanto pauta das assembleias, no se tinha direito de votar ne-nhuma questo sem o parecer da Boul. A pauta eram examinada com antecedncia pela Boul dos Quinhentos, e era essa instncia que decidia a ordem do dia da ekklsia. Da mesma forma que a probouleuma era um projeto elaborado pela Boul e submetido votao da ekklsia. Para ser ratificado, a Assembleia precisava do qurum mnimo de seis mil cida-dos votando com seus jetons (psphoi) com a mo para o alto. Os jetons eram distribudos aos participantes da Assembleia no momento de sua chegada. Como ningum poderia ter dois psphoi mo, isso garantia a contagem correta dos votos (HANSEN, 1993, p. 160).

    As eleies dos estrategos, dos hipparques e dos outros funcion-rios militares era tambm feita pela Assembleia. Os estrategos eram os generais comandantes do exrcito em terra e mar, investidos de plenos poderes nos campos de batalha. Em Atenas esse colegiado trabalhava jun-to com a Boul dos Quinhentos e presidiam a Helli, o Tribunal do Povo. Constituam um colegiado de dez cidados eleitos por um ano e renova-o indefinida. Hipparques era a denominao que se dava lista de ca-valeiros eleitos na Assembleia11. A escolha dos estrategos e dos hipparques ocorria a partir da primeira aps a sexta prytania se os pressgios fossem favorveis (ARISTTELES, 1967, p. 48). Essa operao exigia igualmente o voto preliminar da Boul.

    Constituindo-se na principal instncia de participao poltica, a ekklsia ocupava lugar e excelncia como principal base poltica das ins-tituies democrticas atenienses. a instncia direta de participao do cidado. Entretanto, apesar de tal participao ser aberta a todos, Arist-teles chama a ateno para o fato de que as assembleias eram dominadas

    11 Segundo o testemunho de Tucdides, nas vsperas da guerra do Peloponeso existiam mil hippar-ques (Hrodote - Thucydides. Oeuvres completes. Paris: Edio Bibliothque Pliade, 1964).

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    pelos demagogos, que com sua retrica conduziam o povo a aprofundar

    a clivagem entre ricos e pobres e ao mesmo tempo o induzia a confiscar

    recursos do Estado por meio da distribuio irresponsvel do dinheiro p-

    blico com os pequenos espritos12. Esses oradores (rhtors) tinham bas-

    tante domnio sobre as assembleias. Mesmo que todo cidado, em tese,

    tivesse direito palavra, eram os demagogos verdadeiros profissionais da

    poltica, que se sucediam na tribuna.

    Para o filsofo, deliberamos melhor quando todos deliberam em

    comum: o povo com os nobres e os nobres com o povo (ARISTTELES,

    1964, cap. X, p. 115). Isso significa que os membros da Assembleia deve-

    riam ser escolhidos de forma igual, por eleio ou por sorteio, a partir das

    diversas classes da cidade-Estado. Como os cidados do povo constituam

    a maioria, os sorteios ou os pagamentos dos salrios deveriam ser feitos

    tendo como base o mesmo nmero dos nobres presentes na Assembleia.

    Por esse artifcio, tanto o povo como os nobres teriam asseguradas suas

    participaes, de forma equilibrada, nas assembleias do povo.

    A caracterizao do meio termo aristotlico entrava assim em con-

    tradio com a noo democrtica de governo do povo, governo de

    maioria. Para os filsofos do sculo IV, a democracia se caracteriza pela

    participao do povo em todas as matrias e em todos os assuntos. O regi-

    me democrtico teria assim como princpio bsico a participao popular

    em todas as instncias da cidade-Estado. A possibilidade de representa-

    o justa e equilibrada dos dois segmentos sociais - povo e aristocracia

    - se chocava com o princpio da isonomia democrtica.13

    12 Aristteles se refere a misthoforia, lei de Pricles que obriga a cite a um pagamento aos pobres que comparecem Assembleia. Para Aristteles, quando o Estado no tem muitos recursos preciso s raramente convocar a ekklsia (ARISTTELES, La Politique, op. cit cap. XVIII, p. 212-213).13 A isonomia o princpio bsico da igualdade poltica, o que no significa igualdade diante da lei dos modernos, embora fosse a igualdade de todos cidados para exercer seus direitos polticos.

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    A Constituio de Atenas se refere a uma outra instituio central na

    compreenso da democracia ateniense: a Boul dos Quinhentos (ARIS-

    TTELES, 1967, p. 48). Este Conselho foi institudo por Clstenes em 507

    a.C. e tinha como base organizacional uma nova diviso poltica e militar

    da tica: dez tribos, trinta circunscries e 139 municipalidades (dmes).

    Os membros do Conselho, os quinhentos bouleutes, eram escolhidos por

    sorteio: cinquenta representantes do conjunto de cidados de cada tribo

    (ARISTTELES, 1967, p. 46). Para ser bouleute era necessrio ter pelo

    menos trinta anos de idade e ter passado com sucesso pela dokimasie, isto

    , um exame prvio magistratura.14

    Cada tribo exercia uma prytania fixada nesta ordem: as quatro pri-

    meiras durante 36 dias, as seis ltimas durante 35 dias. Os cinquenta

    membros de cada tribo deveriam servir no comit executivo do Conselho

    por um dcimo do ano. O Conselho era guiado pelo ano bouleutique,

    cuja durao era de dez meses (prytaneiai) e no de doze meses, como no

    ano civil atual. A ordem de sucesso das tribos, a prytania, era igualmente

    sorteada ao final de cada pritania.

    Os prytanes faziam suas refeies em comum na rotonde (tholos) re-

    cebendo do Estado uma recompensa em dinheiro. Eram responsveis pela

    convocao da Boul e da Assembleia do Povo. O Conselho se reunia to-

    dos os dias, exceo dos feriados, e a Assembleia quatro vezes por pryta-

    nia. Os prytanes se responsabilizavam por todas as tarefas do Conselho,

    como tambm faziam uma sntese de todos os assuntos em pauta a serem

    debatidos pela Assembleia do Povo. Eram igualmente os prytanes que fa-

    ziam a seleo do que deveria ser tratado na ordem do dia das Assembleias.

    Ao Conselho cabia julgar a ao dos magistrados, principalmente os

    responsveis pela manipulao de fundos. Aqui tambm o julgamen-

    14 Aristteles nos d uma indicao do que seriam essas questes: Quem o teu pai e a qual dme ele pertence? Quem o pai de teu pai? Quem a tua me? Quem o pai da tua me e a qual dme ele pertence? (Constitution d'Athnes,op.cit., p. 46).

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    to no era definitivo, havendo a possibilidade de apelar para uma outra

    instncia, o Tribunal do Povo (Hli), que em Atenas julgava processos

    civis e criminais, aes de ordem privada e de ordem pblica. Alm disso,

    examinava as questes ligadas a denncias de magistrados, bem como

    julgava os processos polticos. Algumas vezes anulava os decretos que

    haviam sido votados pela Assembleia e as leis votadas pelos nomothtes15.

    Poderia fazer parte do Tribunal do Povo (Hli) todo cidado com

    mais de trinta anos, condio de que no fosse devedor do tesouro

    pblico ou estivesse privado de seus direitos polticos. Qualquer cidado

    que tentasse assumir o jri sem preencher esses pr-requisitos e fosse

    delatado e reconhecido como culpado seria condenado e mantido em

    priso at o dia em que quitasse a dvida que lhe causara a delao e mais

    uma multa imposta pelo Tribunal.

    A cada ano, um corpo de seis mil pessoas era sorteado entre os ci-

    dados voluntrios de mais de trinta anos. Uma vez sorteados prestavam

    o sermo (hliastique) no qual se engajavam a votar de acordo com a lei

    os decretos da Assembleia e do Conselho; prometiam tambm que iriam

    escutar imparcialmente a defesa e a acusao. A partir desse momen-

    to os cidados formavam um corpo de hliastes que seria sorteado para

    compor um jri que normalmente variava entre duzentos e quinhentos

    cidados, podendo chegar a 1.500, dependendo do porte da acusao.

    Em geral, as questes de ordem privada envolviam cerca de 201 a 401

    cidados. As demais, de ordem pblica, 501 cidados.

    So essas trs instituies que originadas no sculo V vo encarnar

    os principais fundamentos do pensamento poltico moderno. Nesse di-

    logo constante com o legado dos antigos, cremos ser em Montesquieu

    que podemos encontrar o fio condutor dessas zonas comuns que se

    15 Comisso legislativa constituda por cidados (cem, por exemplo) sorteados por meio de um painel de seis mil jurados, para legislar durante uma jornada.

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    estabelecem entre as instituies polticas dos antigos e dos modernos.

    Mesmo se no Esprit des Lois o autor se demonstra fascinado pela histria

    de Roma, no se pode negar a influncia da Grcia antiga na obra de

    Montesquieu sobretudo na figura do grande legislador Slon e na herana

    do pensamento filosfico de Plato e Aristteles.

    Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judicirio

    Analisando a Constituio Inglesa no famoso Livro IX do Esprit des Lois, Montesquieu reflete sobre a relao entre as leis fiadoras da liber-dade poltica e suas respectivas constituies. A ideia geral do autor era analisar os mais variados significados da palavra liberdade, assim como a suposta relao entre liberdade e democracia. Em outras palavras, se o objetivo da sociedade a liberdade de seus membros, que tipo de gover-no poder garantir tal liberdade? Montesquieu se empenha em primeiro lugar em fazer a diferena entre a liberdade filosfica, ligada questo da vontade do agente, e a liberdade poltica, ligada ao cumprimento das leis. Um povo livre na medida em que suas leis esto em consonncia com seus costumes e tendncias. Em um estado guiado pelas leis, a liberdade consiste em fazer no aquilo que queremos fazer, mas aquilo que deve-mos fazer (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. III, p. 395).

    Dessa forma, a liberdade poltica deriva no da vontade individual, mas do exerccio do cumprimento da lei. Entretanto, sendo os homens [...] seres particulares inteligentes, podem ter leis que eles fizeram, mas que tambm no fizeram (MONTESQUIEU, 1951, Livro I, cap. I, p. 232). As primeiras so as leis positivas, que podem ser criadas, mudadas e supri-midas pelas autoridades estabelecidas. As segundas so as leis absolutas, universais e eternas. Sendo as leis eternas naturalmente justas, nenhuma autoridade constituda poder mud-las ou aboli-las. Na medida em que nenhuma lei positiva pode ofender o ideal de justia divina, pode-se pen-

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    sar numa justia que seja universal e ao mesmo tempo derivada da razo

    humana. Nessa hiptese a lei se constitui na prpria razo humana, no

    sentido de que ela governa todos os povos da terra; as leis polticas e civis

    de cada nao so casos particulares onde se aplica essa razo humana

    (MONTESQUIEU, 1951, Livro I, cap. III, p. 237). Dessa forma, Montes-

    quieu recusa a ideia de que o homem possa de forma autnoma e arbitrria

    constituir suas prprias leis. Estas devem resultar de uma relao ontolgica

    entre o mundo natural universal e o mundo singular dos homens.

    De outro modo, a liberdade de um povo, de um Estado, depende

    tambm da justia de suas leis. Entretanto, para que estas leis sejam real-

    mente justas preciso que consigam obstar as ambies humanas. A ideia

    de justia de Montesquieu est diretamente relacionada sua concepo

    de natureza humana: qualquer pessoa que detenha um mnimo de po-

    der tentar exced-lo. Portanto, todo poder de um homem ou de muitos

    sobre os outros conduz inexoravelmente a um aumento de poder. Todo

    aquele investido de poder poder ficar vulnervel a cometer excessos.

    Por esse motivo, nem a democracia nem a aristocracia se constituem, de

    forma espontnea, em Estados livres. S se encontra liberdade poltica

    nos governos moderados. Somente estando os poderes contrabalanados,

    separados, equilibrados por um corpo intermedirio, que se pode limi-

    tar a inclinao natural ao abuso de poder.

    Para que se possa preservar o poder de todos os excessos preciso

    que o poder detenha o poder (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap.

    IV, p. 395). Sendo o homem limitado por sua prpria natureza (MON-

    TESQUIEU, 1951, Livro I, cap. I, p. 233), encontra-se sempre sujeito a

    erros e a imprevisibilidades. Como ser inteligente, consegue constante-

    mente violar as leis estabelecidas por Deus e aquelas que estabelece para

    si prprio (MONTESQUIEU, 1951, Livro I, cap. I, p. 234). Para no se

    entregar a mil paixes o homem deve ser constantemente reconduzi-

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 12, no 23, jan./abr. 2010, p. 20-45

    SOCIOLOGIAS 33

    do. Sujeito a tanta vulnerabilidade, coube aos filsofos adverti-los com

    leis morais, ticas. Para viver em sociedade, aos legisladores igualmente

    compete advertirem-nos com leis polticas e civis. As liberdades moral e

    poltica s podero ser atingidas com a prtica da moderao. Embora

    o Esprit des Lois no se proponha a ser uma obra de cunho moral, nada

    impede que o bem moral e o bem poltico possam se unir em nome da

    paz e do bem coletivos.

    com essa expectativa que se refere ao Estado como detendo trs

    tipos de poderes: o legislativo, o executivo e o judicirio: No h li-

    berdade se o poder de julgar no for separado do poder legislativo e do

    executivo (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. IV, p. 396). A ideia de

    Montesquieu era impedir que um mesmo homem exercesse os trs pode-

    res: o de fazer as leis, o de executar as resolues pblicas e o de julgar os

    crimes ou as contendas entre particulares. A autoridade poltica deve ser

    exercida por mecanismos institucionais que assegurem o funcionamento

    equilibrado entre os trs poderes. Os mecanismos incluem uma Consti-

    tuio moderada, na qual a colaborao entre os trs poderes permita

    cooperao e complementaridade funcional articuladas, que os obrigaro

    a agir em concerto (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. VI, p. 405).

    Assim, no fazendo parte do poder legislativo, o poder executivo

    no poder entrar nas disputas que se travam na formulao e na apro-

    vao das leis. Por sua vez, estando o poder executivo isento da reda-

    o das leis, detm, dessa forma, o direito de impedimento, isto , o

    direito de anular uma resoluo tomada por outro (MONTESQUIEU,

    1951, Livro XI, cap. VI, p. 401), o direito de veto. Considerando que a

    sociedade tem necessidade de leis que possam regulamentar a conduta

    de cada um em particular e da sociedade em geral, as leis regulamentam

    melhor aquilo que devemos aos outros do que tudo que se deve a si

    mesmo(MONTESQUIEU, 1951, Livro VII, cap. X, p. 343).

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 12, no 23, jan./abr. 2010, p. 20-45

    SOCIOLOGIAS34

    Recusando a via aberta por Hobbes, em que o Leviatan se constitui

    no nico legislador em todos os domnios da sociedade, para Montes-

    quieu as leis positivas no devem sua existncia nem sua justificao ao

    domnio restrito dos homens. Dada a precariedade do homem sempre

    sujeito ignorncia e ao erro as leis positivas devem ter como modelo

    as leis naturais, nicas a atingirem a infinita perfeio divina.

    Para atingir essa justia universal, Montesquieu afirma que ao contr-

    rio do poder executivo, que deve ficar nas mos de um monarca, uma vez

    que precisando tomar decises rpidas ser mais bem administrado por um

    do que por muitos (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. VI, p. 401-402),

    o poder legislativo ficar mais bem ordenado se administrado por muitos

    do que somente por um. A ideia de um executivo solitrio e um legislativo

    coletivo reflete bem o mago das preocupaes do pensamento poltico

    montesquiano: a delimitao do poder e a consolidao de mecanismos

    institucionais que possam oferecer estabilidade ao sistema poltico.

    Montesquieu v nos mecanismos institucionais uma garantia face

    capacidade do homem em violar sem cessar as leis que Deus estabe-

    leceu e mudar as que ele mesmo estabeleceu (MONTESQUIEU, 1951,

    Livro I, cap. I, p. 234). A consolidao de instituies polticas pautadas

    na justia e na impessoalidade constituiriam uma proteo confivel para

    que o homem no ficasse sujeito a mil paixes, esquecendo a si mesmo

    e ao seu prprio criador: por essa razo que os filsofos devem adverti-

    los com suas leis morais, e os legisladores atravs de suas leis polticas e

    civis (MONTESQUIEU, 1951, Livro I, cap. I, p. 234).

    Aos legisladores compete aproximarem a terra do cu, transfor-

    mando-se no segundo vetor que compe o equilbrio institucional: o

    poder legislativo, a ser composto de duas cmaras: uma cmara alta e

    outra cmara baixa.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 12, no 23, jan./abr. 2010, p. 20-45

    SOCIOLOGIAS 35

    Para Montesquieu, em todos Estados livres cabe ao povo o poder

    de se governar e de fazer as leis. Sendo impossvel nos grandes Estados e

    problemtico nos pequenos, preciso que tenham seus representan-

    tes, porque um dos grandes embaraos causados pela democracia

    a limitao do povo quanto a suas respectivas capacidades no exerccio

    dos cargos pblicos. A grande vantagem dos representantes que seriam

    capazes de discutir os negcios do Estado e ao mesmo tempo superar um

    dos grandes vcios das democracias antigas, ou seja, o excesso de poder

    proveniente do povo.

    Confiado a duas cmaras, o poder legislativo teria esta configurao:

    uma cmara alta, composta de um corpo de nobres; e uma cmara baixa,

    composta por um corpo a ser escolhido para representar o povo. O corpo

    de nobres deveria ser hereditrio pela sua prpria natureza, enquanto o

    povo deveria ter o direito de escolher seus representantes. As duas cmaras

    teriam suas Assembleias com suas respectivas deliberaes, de acordo com

    seus interesses e suas distintas posies. Tendo em vista que o equilbrio

    deve tambm prevalecer no interior dessas duas cmaras, a parte do po-

    der legislativo composta pelos nobres seria mais indicada para cumprir essa

    funo. Sendo o povo conduzido por suas paixes, os nobres assumiriam

    um poder moderador. Como o poder hereditrio pode ser eventualmente

    potencializado e se transformar num poder autoritrio, vulnervel a ponto

    de seguir seus prprios interesses e a esquecer os interesses do povo, esse

    poder dever sempre deter a faculdade de impedir, mas nunca a facul-

    dade de estatuir. Montesquieu distingue a faculdade de impedir como

    sendo o direito de tornar nula uma resoluo tomada por outra pessoa,

    enquanto que a faculdade de estatuir o direito de conceder por si mes-

    mo ou de corrigir aquilo que concedido por outro. Dessa forma, cabe ao

    corpo representativo impedir abusos e no conceder direitos.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 12, no 23, jan./abr. 2010, p. 20-45

    SOCIOLOGIAS36

    Quanto ao poder judicirio, Montesquieu o considera um poder

    menor16: Os juzes da nao representam apenas a boca que pronuncia

    as palavras da lei; seres humanos que no podem moderar nem a fora

    nem o rigor da lei (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. V, p. 404). Sendo

    prerrogativa do legislativo operar qualquer mudana nas leis, ao judicirio

    compete apenas a tarefa de a elas se submeter. Por outro lado, o poder de

    julgar no deve ser dado a um corpo permanente, mas exercido por pessoas

    sorteadas do conjunto do povo, em certas pocas do ano, de acordo com a

    lei, para formar um tribunal cuja durao deve ser estabelecida de acordo

    com as necessidades de cada caso: Dessa forma, o poder de julgar um

    dos poderes mais terrveis entre os homens no sendo vinculado nem a

    um certo estado nem a uma certa profisso, torna-se, de certa forma, um

    poder invisvel e nulo (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. V, p. 388).

    Montesquieu entende por poder invisvel e nulo o fato de se tratar

    de um corpo que apesar de no congregar os juzes de forma permanente

    e duradoura se legitima enquanto instncia capaz de garantir a justia ao

    conjunto da coletividade. E por que tal distino? Para ele, os outros dois

    poderes executivo e legislativo podem ter como agentes um corpo

    ou um s representante permanente, uma vez que no exercem o poder diretamente sob um particular: sendo o poder legislativo representante

    da vontade geral do Estado, e o poder executivo a execuo dessa von-

    tade geral, estes poderiam agir com iseno e distncia. Quanto ao poder

    judicirio, a nica forma de transform-lo em poder neutro, no aderente

    a nenhuma das partes integrantes do conflito, quando seus integrantes

    so escolhidos de forma imparcial. Entende-se dessa forma a razo pela

    qual Montesquieu considera o judicirio como um poder menor, na justa

    medida em que ele se dirige ao particular e no ao geral, ao universal.

    16 Guardando todas as reservas de uma traduo literal, no Livro XI, cap. VI, p. 401, Montesquieu afirma que: Dos trs poderes que ns falamos, o de julgar , de certa maneira, nulo (nulle).

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 12, no 23, jan./abr. 2010, p. 20-45

    SOCIOLOGIAS 37

    Transformando o judicirio em um corpo voltil, Montesquieu d

    mostras de sua inquietao em relao a um corpo que por sua prpria na-

    tureza poder julgar a conduta individual de todo cidado da coletividade.

    Como garantir a imparcialidade de um poder que julga os membros da co-

    munidade? Enquanto nos demais poderes a subjetividade continuamente

    protegida pelo apelo sociedade e ao bem-comum, o que fazer de um

    poder que exerce funes invisveis, quase divinas? Tais inquietaes so

    contornadas por Montesquieu atravs de duas proposies complemen-

    tares. A primeira, de ordem subjetiva, procura assegurar a adoo de leis

    precisas que possam evitar a opinio particular do juiz (MONTESQUIEU,

    1951, Livro XI, cap. VI, p. 399). A segunda, de ordem objetiva, assegura o

    direito de que em casos extremos, de grandes acusaes, o prprio infra-

    tor possa escolher aquele que lhe ir julgar. Ambas as propostas buscam a

    imparcialidade e a neutralidade como forma de contornar um dos poderes

    mais problemticos das democracias modernas: o sistema judicirio.

    Democracia de Assembleia e Democracia de Parlamento

    A anlise das trs principais instituies polticas atenienses indica que

    a participao direta nas decises coletivas constitui a base da democracia

    na Grcia antiga. Tendo como princpio bsico o exerccio do poder pelo

    povo (dmos), a democracia antiga se ope democracia dos modernos,

    cujo nico poder se resume escolha daquele que vai decidir em nome

    do povo. Deste modo, o estudo sobre o legado cultural de Atenas parece

    reforar a oposio clssica entre a chamada democracia participativa e a

    democracia representativa. A partir dessa tica, a to propalada crise da

    democracia se confunde com a crise do sistema de representao poltica.

    Como consequncia da falta de credibilidade do atual sistema,

    apontam-se duas grandes mazelas: a apatia poltica e a corrupo.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 12, no 23, jan./abr. 2010, p. 20-45

    SOCIOLOGIAS38

    A apatia pode ser a consequncia natural da falta de confiana nos

    polticos e em suas respectivas capacidades de defender os interesses da

    coletividade. Estando em crise o sistema poltico, os eleitores no se sen-

    tem estimulados a participar da vida pblica e dos negcios do Estado.

    Quanto aos polticos, suas aes ficam condicionadas aos interesses de

    seus partidos e s estratgias pessoais que lhes possam garantir vitria no

    prximo pleito. A progressiva autonomia da classe poltica em relao ao

    conjunto da coletividade pode ser a consequncia natural do processo.

    Quanto corrupo, passa a ser igualmente considerada conse-

    quncia natural do sistema de representao poltica, considerado lugar

    prprio para os descalabros do funcionamento dos governos e das ins-

    tituies. Os polticos vm a ser considerados como suspeitos face ao

    decoro parlamentar e distribuio equitativa dos recursos pblicos. Na

    conscincia difusa da sociedade, os representantes subordinam os inte-

    resses pblicos aos interesses individuais, ao mesmo tempo em que no

    operacionalizam a separao entre o pblico e o privado.

    Nestes termos aumenta o fosso entre antigos e modernos. Sendo asse-

    gurada aos povos antigos a participao direta nos negcios pblicos, a ten-

    so entre governantes e governados torna-se constitutiva das democracias

    representativas. A ideia subjacente a esse tipo de formulao a certeza de

    que o povo estaria naturalmente credenciado a escolher alternativas mais

    justas para a coletividade, enquanto as escolhas dos representantes esta-

    riam pautadas pelos interesses pessoais e pelo desejo nico de reeleio.

    Opor a democracia participativa como expresso de um consenso

    forjado a partir dos interesses coletivos e a democracia representativa como

    expresso dos interesses individuais reduzir a democracia a um consenso

    que (embora desejado) dificilmente se realiza. Sendo a democracia no s

    o modelo de um regime poltico, mas tambm a expresso de uma experi-

    ncia histrica, antigos e modernos sabem que somente atravs das tiranias

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 12, no 23, jan./abr. 2010, p. 20-45

    SOCIOLOGIAS 39

    ou de monarquias absolutas possvel eliminar a tenso entre gover-nantes e governados. A prpria Assembleia do Povo era constantemente palco de cises e dissensos. O embate clssico entre filsofos e sofistas o exemplo mais expressivo que desautoriza qualquer ideia de convivncia harmnica entre os cidados e o poder, na Grcia antiga.

    Apesar de se constituir numa importante fonte de reflexo, a alter-nativa terica estritamente baseada na oposio entre democracia par-ticipativa e democracia representativa nos parece estril. Opostamente, se incorporarmos reas comuns s tradicionais oposies clssicas entre um e outro modelo podemos constatar que em ambos os regimes de historicidades17 a base da democracia e de toda deciso feita por maioria atravessada de tenses, conflitos e muitas vezes de fortes cises entre governantes e governados. O povo, tal como qualquer outra classe social, no se comporta de forma homognea, e no seu interior guarda cises, dissensos incontornveis. Logo, quer na ekklsia, quer no parlamento, a tenso entre governantes e governados no representa uma fratura no regime poltico. Ao contrrio, constitutiva do regime democrtico.

    Uma outra rea comum a ser destacada no estudo dos antigos e dos modernos se refere questo da busca de equilbrio entre os poderes cons-titucionais e o cidado. Sem querer forar uma continuidade entre a Boul dos Quinhentos, a Assembleia, o Tribunal do Povo e os Trs Poderes Consti-tucionais, podemos indicar que as preocupaes modernas em estabelecer equilbrio entre os poderes do povo e de seus respectivos representantes certamente no eram totalmente ignoradas pelo modelo ateniense.

    Em Montesquieu, a autoridade poltica deveria ser exercida por me-canismos institucionais que pudessem assegurar o funcionamento equili-

    brado entre os poderes, permitindo que fossem eles obrigados a agir em

    17 Esta expresso usada por Franois Hartog, quando se refere relao que cada sociedade em particular estabelece com o passado, o presente e o futuro. Essa multiplicidade do tempo definida pelo autor como rgimes d'historicit (HARTOG, Franois. Rgimes D'Historicit: prsentisme et expriences du temps. Paris: Seuil, 2003).

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    SOCIOLOGIAS40

    concerto (MONTESQUIEU, Livro XI, cap. VI, p. 405). Os dados histricos

    demonstram que os eleitos da Boul dos Quinhentos eram responsveis pela

    pauta da Assembleia e pela execuo de suas respectivas deliberaes. Qual-

    quer proposio proveniente do Conselho considerada ofensiva s leis da

    cit poderia ser levada para o julgamento do Tribunal do Povo18. A descrio

    dessas atribuies sugere que a Boul dos Quinhentos e o Tribunal do Povo

    funcionavam como um contrapoder da Assembleia, da mesma forma que a

    anlise indica tambm a existncia de cooperao e vigilncia mtuas entre a

    Assembleia do Povo, a Boul dos Quinhentos e o Tribunal do Povo.

    Reforando essa pista analtica, se recorrermos aos filsofos do sculo

    IV, a filiao entre antigos e modernos torna-se mais clara. Na Apologia (de

    Plato), Scrates se refere s trs principais instituies da cit: a Ekklsia,

    a Boul e a Heliia (PLATO, 1966, Tomo I, 25a/25b). No captulo X da

    Poltica, Aristteles se refere igualmente a essa estrutura poltica como cons-

    tituda por trs poderes essenciais a toda forma de governo: um poder

    deliberativo que se ocupa de todos os negcios do Estado; um poder exe-

    cutivo composto pelas magistraturas; e um terceiro poder constitudo pe-

    los magistrados, o poder judicirio (ARISTTELES, 1964, cap. X, p. 115).

    Um terceiro aspecto ou uma terceira rea comum a ressaltar estaria

    circunscrito no prprio conceito de representao: como o povo em As-

    sembleia no exercia todas as funes governamentais, a representao

    no era totalmente desconhecida na Grcia antiga. Certas tarefas de

    ordem do executivo em particular eram delegadas aos magistrados.

    Atenas possua aproximadamente setecentos postos para os magistrados,

    sendo seiscentos deles sorteados e o restante escolhido por eleies.19 A

    18 Hansen esclarece, inclusive, que mais da metade dos decretos votados pela Assembleia sofriam retificaes da parte da Boul dos Quinhentos (La democratie athenienne. lpoque de Dmosthne, op.cit., p. 138-140).19 Mogens Hansen, na obra La democratie athenienne. lpoque de Dmosthne op. cit, rea-liza uma das mais arrojadas pesquisas sobre o desenho organizacional das instituies atenienses.

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    SOCIOLOGIAS 41

    diferena entre um e outro regime histrico era que, no caso dos antigos,

    todos os magistrados estavam sob o controle da Assembleia.Os atenienses reservavam a designao por eleio s magistraturas

    que eram consideradas vitais: os generais (estrategos), os altos funcion-rios militares e os das finanas pblicas. Era atravs de cargos eletivos que se encontravam as maiores personalidades da cidade-Estado. Os magis-trados eleitos poderiam ser reeleitos indefinidamente20.

    Sendo a designao dos governantes realizada por meio de eleies em intervalos regulares, um dos princpios bsicos do regime representativo, po-demos admitir que o conceito de representao no era completamente des-conhecido pelos atenienses. Aristteles, na Poltica, parece confirmar nossa hiptese: [...] so consideradas como democratas as magistraturas atribudas pela sorte, e como oligrquicas as que so atribudas por eleio (ARIST-TELES, 1964, p. 105). Seguindo Aristteles, a grande oposio operada entre a democracia antiga e a democracia moderna, ou seja, o fiel da balana que opera a separao entre uma e outra seria o uso das eleies em detri-mento do sorteio. E por que o sorteio se constitui no principal fundamento do regime democrtico? Porque obedece a dois princpios constitutivos da democracia ateniense: o princpio da isonomia e o princpio da isegoria.

    A isonomia o princpio da igualdade poltica, isto , igualdade perante a lei e direitos iguais a todos os cidados para o exerccio de seus direitos polticos. O segundo princpio, a isegoria, fundamenta-se na igualdade de condio em relao ao uso da palavra. Isto , o direito igual de cada cidado de fazer proposies na Assembleia.

    Quanto s eleies, princpio bsico da democracia representativa, a escolha dos cidados se d baseada no princpio da competncia, isto , da certeza de que somente os melhores, os notveis, os aristos, os bem-nascidos, poderiam conduzir os negcios do Estado. Nunca o regime

    20 O mais famoso general do sculo V, Pricles, foi eleito estratego entre 20 a 22 vezes segui-das, e Phocion ficou no posto durante 45 anos (Plutarco. Vie Parallles).

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    SOCIOLOGIAS42

    representativo utilizou o sorteio como forma de escolha de seus repre-sentantes. Dessa forma, para ns contemporneos, parece curioso ou at inslito pensarmos no uso do sorteio como forma legtima de participao poltica. Enquanto a oposio participao versus representao forjou uma base rica de discusses, de debates e querelas, poucas so as refe-rncias analticas que fazem meno s relaes que envolvem o sorteio e a eleio entre antigos e modernos. E por qu?

    Referindo-se s abordagens pautadas na oposio entre antigos e modernos, Franois Hartog sugere que subjacente a todas essas grandes querelas pode-se encontrar uma construo social sobre o presente. As-sim, a clssica querela animada por Benjamin Constant Libert des An-ciens compare celle des modernes (CONSTANT, 1997) tinha como interesse principal formular uma resposta que pudesse substituir os valo-res herdados da Revoluo por uma viso mais liberal da sociedade.

    Em Constant a liberdade moderna a liberdade civil ou individual. A liberdade antiga era a participao coletiva dos cidados no exerccio da soberania. Sob o pretexto de uma recusa a uma volta incua ao pas-sado, Constant se reserva o direito de omitir que sua reflexo concerne muito mais ao presente do que ao passado da Frana. Seu adversrio principal seria Rousseau, no os antigos21. Para Hartog, no o presente, mas o passado que atravessa essa fico terica. (HARTOG, 2005a).

    Depois de sublinhar a ligao existente entre a liberdade de uns e a escravido de outros, Rousseau se refere soberania como o exerccio pleno da vontade geral: sendo o soberano um ser coletivo, s pode ser representado por ele mesmo: o poder pode muito bem ser transmi-tido; mas a vontade, no (ROUSSEAU, 1962). A ideia de representao rousseauniana contribuiria no para a liberdade, mas para a escravizao do cidado moderno. Para Constant, longe de ser sinal de servilismo, a representao significaria a libertao do indivduo para que este no se

    21 Hartog se refere clssica querela Libert des Anciens et Libert des Modernes.

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    SOCIOLOGIAS 43

    tornasse escravo da vida pblica. Assim, os antigos seriam livres e escra-

    vos. Quanto aos modernos, seriam livres e representados.

    Essa foi uma das proeminentes querelas que deram origem a in-

    meras clivagens entre antigos e modernos. Dentre elas a clssica discusso

    entre participao e representao22. Enquanto inveno dos antigos, a par-ticipao s poderia ser utilizada pelos gregos, uma vez que seria incompa-

    tvel com as dimenses do Estado moderno. Tal impossibilidade tcnica

    levou os antigos a ignorarem a representao, que seria uma descoberta

    dos modernos. Quanto ao sorteio, mesmo no sendo incompatvel com

    as dimenses do Estado moderno, foi praticamente banido da prtica pol-

    tica e pouco desenvolvido no campo da reflexo filosfica23.

    evidente que a fico terica a que se refere Hartog est no

    fato de que nem a representao uma inveno do Estado moderno,

    tampouco a participao privilgio da cidade-Estado. A inverso de ti-

    pos ideais em experincias histricas submerge os antigos num patamar

    sagrado, cujo valor arqueolgico apreciado por diletantes portadores

    de uma singular curiosidade intelectual. parte o valor catrtico da ex-

    perincia, resta-nos o saudosismo de um passado idealizado trado pelos

    atributos da modernidade. Sendo os antigos o ideal de perfeio, e os

    modernos os profanos do templo, seria o caso de nos perguntarmos:

    por que ainda estudamos os gregos?

    Longe de nos lanarmos a uma nova querela Sorteio dos antigos

    e Eleio dos modernos este artigo se prope a uma linha de reflexo

    em que oposies e reas comuns entre antigos e modernos possam se

    constituir em importantes fontes de anlise e debate no contexto das de-

    mocracias contemporneas.

    22 Nos anos sessenta Finley escreveu uma interessante anlise sobre a democracia dos anti-gos e a dos modernos (Dmocratie antique et dmocratie moderne. Paris: Petite Biblithque Payort, 1976).23 No domnio da filosofia poltica podemos destacar autores como Finley, Hansen, Lenoir, Manin, que sob ngulos diferentes insistem nesse debate.

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    SOCIOLOGIAS44

    Direct Democracy and Parliamentary Democracy: a brief history of the democratic institutions

    Abstract

    In the debate on the immense cultural legacy of ancient Greece, the issue of democracy is always mentioned as an example of the direct participation of citizens in collective decisions, as opposed to the modern concept of political representation. In the search not only for differences but also for similarities be-tween the two concepts, this article intends to demonstrate that the theory of the separation of powers, advocated by Aristotle, and later Montesquieu, leads to a prominent connection between ancient and modern democracy.

    Keywords: Democracy. Participation. Representation.

    Referncias

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    Recebido: 02/10/2007

    Aceite final: 02/04/2008