Democracia e Forças Armadas no Cone Sul

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REFERNCIA BIBLIOGRFICA :

DEMOCRACIA e Foras Armadas no Cone Sul / Organizadores Maria Celina DAraujo e Celso Castro. Rio de Janeiro: Ed. Fundao Getulio Vargas, 2000. 336p.

Disponibilizado em: http://www.cpdoc.fgv.br

SUMRIO

INTRODUO Maria Celina DAraujo e Celso Castro

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PARTE I CASOS NACIONAIS

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ARGENTINA Democracia e Foras Armadas entre a subordinao militar e os defeitos civis Marcelo Fabin Sain

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BOLVIA Cultura estratgica, democracia e Foras Armadas Juan Ramn Quintana

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BRASIL Foras Armadas, direo poltica e formato institucional Elizer Rizzo de Oliveira e Samuel Alves Soares

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CHILE A deteno do general Pinochet e as relaes civis-militares Francisco Rojas Aravena

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PARAGUAI O fim da era Stroessner: militares, partidos e a rota para a democracia Carlos Martini

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URUGUAI Foras Armadas e democracia: um olhar para o passado recente a partir do final do sculo Selva Lpez Chirico

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PARTE II DEBATES

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PRIMEIRA SESSO A transio do regime militar para a democracia Comentrios de Maria Celina DAraujo e Celso Castro

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SEGUNDA SESSO Os militares sob o poder civil Comentrios de Ernesto Lpez

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TERCEIRA SESSO Perspectivas para o futuro Comentrios de Felipe Agero

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ANEXOS Em nome da pacificao nacional: anistias, pontos finais e indultos no Cone Sul Ludmila da Silva Catela Alguns dados comparativos sobre as ditaduras e as transies no Cone Sul Cronologia dos regimes militares e das transies democrticas no Cone Sul

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NDICE ONOMSTICO

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SOBRE OS AUTORES

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INTRODUO

M A R I A C E L I N A D A R A U J O E C E L S O C A S T R O

Este livro rene, na parte I, os trabalhos apresentados no seminrio Democracia e Foras Armadas no Cone Sul, realizado no Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil (CPDOC) da Fundao Getulio Vargas em 26 e 27 de abril de 1999.1 Na parte II, apresentada uma seleo dos debates realizados na ocasio. O objetivo principal do seminrio foi examinar como os militares tmse inserido na nova ordem democrtica que se seguiu ao fim dos regimes1

A realizao do seminrio s se tornou possvel com o decisivo apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agncia que vem h muitos anos prestando assistncia ao CPDOC e, em particular, linha de pesquisa iniciada em 1991 sobre os militares na histria contempornea do Brasil, atualmente com o projeto Democracia e Foras Armadas no Brasil e nos Pases do Cone Sul. O seminrio constitui tambm uma atividade do projeto Brasil em Transio: um Balano do Final do Sculo XX, do Programa de Apoio a Ncleos de Excelncia (Pronex), que tem o CPDOC como instituio-sede e o Programa de PsGraduao em Antropologia e Cincia Poltica da Universidade Federal Fluminense como instituio associada. Para o desenvolvimento do projeto e a organizao do seminrio, contamos tambm com o apoio decisivo e competente de nossa equipe de assistentes e bolsistas Ludmila Catela, Leila Bianchi Aguiar, Carlos Svio, Tatiana Bacal, Priscila Brando, Simone Freitas, Suemi Higuchi, Micaela Bissio Neiva Moreira, Rosane Cristina de Oliveira, Samantha Viz Quadrat, Simone Silva, Luiz Andr Gazir Soares, Joo do Valle e Carolina von der Weid e de Clodomir Oliveira Gomes, tcnico de som. Para a edio do livro, contamos ainda com o apoio providencial do Unibanco.

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militares nos pases do Cone Sul, entendido aqui como um conjunto de seis pases: Argentina, Bolvia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Trata-se de uma unidade que, como tantas outras, pode ser facilmente criticada, mas que, para nossos objetivos, possui em sua definio dois elementos histricos fundamentais. Em primeiro lugar, todos esses pases viveram, em dcadas recentes, sob governos militares autoritrios. Desse modo, experimentaram questes relacionadas ao envolvimento direto da instituio militar na poltica, transio de governos militares para governos civis, consolidao das novas democracias e discusso do papel que as Foras Armadas devem assumir nesse novo cenrio. Em segundo lugar, esses pases vivem hoje um esforo comum de integrao em um bloco regional, atravs do Mercosul. Ou seja, existe uma coincidncia entre o que estamos tratando por Cone Sul e o Mercosul (considerando que Chile e Bolvia so membros associados). Apontar essas proximidades no deve levar idia de que pretendemos avanar no sentido de explicaes gerais para a questo militar no Cone Sul. A perspectiva comparada, por ns adotada na pesquisa que estamos desenvolvendo sobre o tema e que deu origem ao seminrio, visava principalmente a prevenir o estabelecimento de concluses e generalizaes apressadas. Se h similaridades entre os diferentes pases quanto s questes da democracia e das Foras Armadas, h tambm profundas diferenas e particularismos. No pretendemos, portanto, enfatizar nem o plo das semelhanas nem o das diferenas, mas mover-nos entre eles. Esse movimento entre a experincia histrica de pases por vezes to prximos, por vezes to distantes, produziu uma alternncia entre sensaes de familiaridade e de estranhamento que, acreditamos, se mostrou produtiva. A opo por esse esforo comparativo levou-nos a montar um seminrio no qual se enfatizasse no a exposio vertical dos casos particulares de cada pas, mas a discusso horizontal de trs eixos temticos: a) do regime militar democracia; b) os militares sob o poder civil, e c) perspectivas para o futuro. Para tanto, solicitamos previamente que seis especialistas no assunto produzissem trabalhos, estruturados em torno desses trs eixos, acerca de cada pas, de modo a estabelecer uma certa padronizao que facilitasse a discusso. Os trabalhos especficos produzidos para cada pas foram distribudos com antecedncia aos participantes do seminrio e l debatidos. A funo de estimular a discusso temtica ficou a cargo de comentadores escolhidos para cada um dos trs diferentes eixos temticos. O resultado desse esforo, incluindo os debates realizados, apresentado a seguir. No caso argentino, tratado por Marcelo Fabin Sain, a transio teve como marco decisivo a derrota ante a Gr-Bretanha na Guerra das Malvinas (1982). Iniciou-se ento um rpido processo de transferncia do poder para os civis, sempre caracterizado, na literatura sobre o tema, como um colapso. A derrota poltico-militar das Malvinas converteu-se rapidamente em uma crise do regime, alimentada pela fragmentao do poder militar. Com isso, as Foras Armadas no conseguiram articular uma sada poltica controlada, o que as levou a iniciar uma retirada quase incondicional. Essa oportunidade no foi claramente percebida nem aproveitada pela oposio civil,

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tambm ela dividida quanto ao relacionamento a ser estabelecido com o poder militar e a como deveriam ser tratados os crimes cometidos durante a ditadura. Em conseqncia, o processo de transio que se seguiu ao governo militar no foi forte o suficiente para negociar um pacto com setores polticos civis (como nos casos do Brasil, do Chile e do Uruguai), mas tambm no ocorreu a pronta ocupao, pelo poder civil, de todos os espaos abertos pela democracia. Chegou assim ao fim a ditadura mais repressiva da histria argentina, deixando para trs cicatrizes profundas na conscincia nacional. O primeiro governo civil, sob a chefia de Ral Alfonsn (1983-89), da Unin Cvica Radical, privilegiou a manuteno da estabilidade institucional democrtica em detrimento da completa subordinao militar, a partir de uma avaliao segundo Sain equivocada do grau de resistncia e de desestabilizao que os militares poderiam oferecer e da possibilidade concreta de um retorno ao autoritarismo. Desse modo, a poltica do governo em relao aos militares limitou-se tentativa de reviso judicial das violaes aos direitos humanos, sem que fossem implementadas reformas profissionalizantes e democratizantes nas Foras Armadas. A lgica de Alfonsn era que o peso do julgamento recasse sobre os membros das juntas e sobre alguns destacados chefes militares, ficando de fora a maioria dos oficiais envolvidos na guerra suja, dentro da tica de que haviam cumprido ordens. A justia federal conseguiu, no entanto, ampliar o universo dos militares processados, levando o governo, em reao, a aprovar as leis do ponto final e, em seguida primeira rebelio cara-pintada (abril de 1987), de obedincia devida, isentando de julgamento a grande maioria dos militares. A redefinio das relaes civis-militares no sentido da imposio da supremacia do controle civil levou reformulao do papel institucional das Foras Armadas, atravs da Lei de Defesa Nacional de abril de 1988, fruto de amplo consenso partidrio, e que implicou a desmilitarizao da segurana interna e a restrio das funes militares defesa externa. O esprito que regeu essa iniciativa, no entanto, foi logo reformulado no contexto que se seguiu invaso, em janeiro de 1989, de uma unidade do Exrcito por um pequeno grupamento de esquerda, iniciativa prontamente reprimida. Alfonsn criou ento um Conselho de Segurana, para atuar como rgo de assessoramento presidencial em matria de segurana interna e, particularmente, com relao ao anti-subversiva que inclua os chefes das Foras Armadas. Alfonsn, em um primeiro momento, privilegiou o Ministrio da Defesa, subordinando a ele as Foras Armadas. No entanto, a oposio militar e a falta de firmeza governamental impediram a implementao de mudanas estruturais. Algo semelhante ocorreu em relao a duas outras questes importantes: as promoes ao generalato e os oramentos militares. Embora a renovao da cpula militar tenha sido significativa e os gastos militares tenham sofrido cortes considerveis, essas medidas no foram acompanhadas por iniciativas consistentes de reorganizao da instituio militar, o que reforou a crise de identidade militar iniciada com o fim da ditadura.

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As trs rebelies caras-pintadas ocorridas durante o governo Alfonsn no foram tentativas de golpe de Estado e sim provas evidentes da existncia de um srio conflito no interior do Exrcito. Em julho de 1989, Carlos Menem, o candidato peronista vitorioso nas eleies presidenciais, assumiu o governo com a preocupao principal de controlar a hiperinflao em curso. Na rea militar, Menem procurou, em primeiro lugar, resolver as questes pendentes do governo anterior quanto reviso do passado. Com o intuito de promover a pacificao e o reencontro nacionais, Menem indultou tanto os que praticaram delitos durante a ditadura, quanto os envolvidos nos levantes militares caras-pintadas. No obstante, a questo da reviso do passado voltou tona quando o Senado negou, em fins de 1994, a promoo de dois oficiais envolvidos na represso, o que levou Menem a, pouco depois, defender publicamente a atuao das Foras Armadas durante a luta contra a subverso. Em maro de 1995, porm, o ex-capito-de-corveta Adolfo Scilingo tornou pblica a existncia dos vos da morte, gerando um clima que levou, no ms seguinte, o comandante do Exrcito, general Martn Balza, a fazer um pronunciamento pblico reconhecendo os erros cometidos por sua fora durante o regime militar. Esses fatos trouxeram de volta ao centro do debate poltico a questo da reviso do passado. Em relao aos caras-pintadas, Menem procurou control-los designando oficiais de perfil institucionalista para o comando do Exrcito. Em decorrncia, estourou em dezembro de 1990 o maior e mais violento levante desse grupo, prontamente reprimido. Com isso, foi desarticulada a presena poltica dos caras-pintadas dentro do Exrcito, o que Alfonsn no havia conseguido, por interpretar as insurreies como tentativas de golpe de Estado e no, como Menem, como conflitos fundamentalmente internos ao Exrcito. Apesar disso, no que diz respeito ao papel institucional das Foras Armadas, Menem, em diversas oportunidades, procurou criar um consenso favorvel possibilidade de interveno militar em assuntos de segurana interna, contrariando o estabelecido nas leis de defesa nacional e de segurana interna. As iniciativas de Menem em relao s Foras Armadas tambm visaram a adapt-las s diretrizes governamentais de poltica externa, marcadas pelo alinhamento com os Estados Unidos, pela busca de normalizao das relaes com a Gr-Bretanha e pelo esforo de integrao regional no mbito do Mercosul. Como resultados dessa orientao, a Argentina comeou a participar ativamente de foras de paz (por exemplo, enviando tropas ao golfo Prsico em 1991 e Crocia em 1992), desativou o projeto de msseis de mdio alcance Condor II e passou condio de grande aliado extraOtan dos Estados Unidos em 1997. A propsito da reforma da instituio militar, o governo Menem no diferiu em muito das orientaes de Alfonsn. A ampla margem de manobra de Menem com relao aos militares no se traduziu em iniciativas de fundo que visassem reestruturao da instituio militar. Sua maior preocupao foi simplesmente adequar as Foras Armadas poltica econmica. Com isso, os gastos militares continuaram sendo reduzidos, o que resul-

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tou como observa Sain numa virtual paralisia funcional das Foras Armadas. A extino do servio militar obrigatrio, em 1994, tambm obedeceu mais a um clima conjuntural (no caso, o repdio pblico ao assassinato por espancamento de um recruta) do que a uma orientao poltica global de redefinio do perfil profissional dos militares. Em que pese s incertezas e aos desencontros, sob os governos civis assistiu-se, na Argentina, ao surgimento de um novo tipo de relao civilmilitar. O longo passado de autonomia militar e de posicionamento poltico ofensivo deu lugar a um padro defensivo, limitado ao interior da burocracia do Estado, com as Foras Armadas desempenhando um papel secundrio e subordinado no cenrio poltico. Mas, apesar do espao e das possibilidades para desenvolver iniciativas que visassem a reformular mais profundamente a instituio militar e o conceito de defesa, a falta de polticas claras e efetivas nesse sentido deixou evidente, segundo Sain, a incompetncia com que os sucessivos governos civis abordaram a questo militar. Hoje, segundo o autor, o alto grau de subordinao das Foras Armadas argentinas aos poderes constitucionais um fato. O novo cenrio mundial, marcado pelo fim da Guerra Fria, contribuiu para a perda de relevncia da dimenso militar no cenrio internacional e, no mbito do Cone Sul, essas alteraes foram acentuadas pelo processo de integrao regional iniciado em 1985. Apesar desse contexto favorvel implantao de profundas reformas nas Foras Armadas, necessrias inclusive para que chegue ao fim a profunda crise de identidade e de papel institucional que vivem, os governos civis no as implementaram porque no o quiseram. Com isso, conclui Sain, corre-se o risco de perder uma oportunidade histrica importante para assentar em novas bases institucionais, de esprito democrtico, a organizao e o funcionamento da defesa nacional e das Foras Armadas, em sintonia com as condies internacionais, regionais e domsticas que se apresentam na atualidade. Se, nesse quadro, a Argentina viesse a mergulhar no caos econmico e em situaes de grave conflito social, e alguns dirigentes polticos e certos militares postulassem a interveno militar, estaria aberta a possibilidade de um substancial retrocesso institucional, causado desta feita no pela atuao autnoma dos militares e, sim, pela falha da classe poltica em exercer plenamente seu papel. A histria recente da Bolvia, tratada neste livro por Juan Ramn Quintana, tambm marcada, como a argentina, pela experincia de uma derrota, embora mais antiga: a de 1952, quando as Foras Armadas foram batidas nas ruas pelas foras populares da Revolucin Nacional. O peso histrico dessa derrota se fez presente por vrias dcadas no imaginrio nacional, particularmente o militar, como mostra o autor. A transio do ciclo autoritrio militar iniciado em 1964 para um regime democrtico representativo comeou em 1978 e s se completou 1982. Nesse nterim, a Bolvia viveu um dos perodos mais conflituosos de sua histria, ponto culminante segundo Quintana de um longo processo de crise estatal acumulada e no resolvida desde os primeiros anos da Revolucin Nacional. Essa situao, que se convencionou denominar empate catastrfico entre o Estado e a sociedade, teve como caracterstica fundamen-

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tal uma permanente tenso entre o movimento sindical, reunido em torno da Central Obrera Boliviana (COB), e as Foras Armadas como brao armado do plo hegemnico do Estado. No caso boliviano, o processo de transio no teve, como em outros pases da regio, um calendrio mais ou menos pactuado. O retorno democracia decorreu de uma deciso praticamente unilateral das Foras Armadas, confiantes na vitria do candidato corporativo nas eleies de 1978. A derrota sofrida pelo governo lanou a Bolvia numa situao de caos poltico marcada por golpes e contragolpes violentos que levaram o pas beira de uma guerra civil dizia-se anedoticamente que cada dia marcava um golpe frustrado e o incio do planejamento do prximo. A situao de anomia teve seu paroxismo na ditadura cleptocrtica do general Luis Garca Meza (1980/81), profundamente envolvido com o narcotrfico e com grupos paramilitares de direita, e que recebeu o apoio de militares argentinos. Em 1982, o efeito cumulativo das divises internas nas Foras Armadas, da presso do movimento sindical, da perda de apoio dos camponeses (tradicionais aliados polticos dos militares), da oposio de um movimento regional centrado na prspera regio de Santa Cruz de la Sierra e da presso internacional (particularmente a norte-americana) fez com que as Foras Armadas se retirassem incondicionalmente do centro do poder poltico, humilhadas por uma derrota poltica e temerosas de que, a exemplo de 1952, essa derrota se transformasse em um desastre militar. Assumiu finalmente a presidncia o candidato eleito em 1979, Hernn Siles Zuazo, apoiado por um amplo setor de esquerda reunido em torno da Unin Democrtica y Popular (UDP). Ao contrrio do ocorrido em outros pases da regio, os militares no mantiveram prerrogativas jurdicas ou constitucionais condicionando a consolidao democrtica, nem interferiram significativamente no processo poltico, salvo episdios isolados. Por outro lado, como demonstra o autor, a consolidao da supremacia civil sobre as Foras Armadas no foi produto de uma estratgia explicitamente formulada pelos governos civis democrticos. A desprofissionalizao militar atingira seu ponto mximo durante a ditadura, que praticamente transformou as Foras Armadas em uma polcia poltica. Alm disso, a instituio havia mantido elevado grau de autonomia institucional por 18 anos. Por isso, fica difcil entender a conduta de subordinao assumida pelas Foras Armadas sob o poder civil. Isso, contudo, segundo o autor, j um fato, e prova disso so os 17 anos de democracia representativa sem turbulncias provenientes das Foras Armadas. A rpida desarticulao da estrutura repressiva e a profunda depurao nos quadros militares que se seguiu ditadura de Garca Meza ajudam a explicar esse aparente paradoxo. Alm desses dois elementos, o autor ressalta, entre outros, a habilidade da engenharia poltica de Siles Zuazo no trato com os militares e a j mencionada memria do trauma de 1952. Por outro lado, a atomizao do sistema partidrio e a forte presena no Congresso da Accin Democrtica Nacionalista (ADN), partido de Hugo Bnzer, ditador no perodo 1971-78, impediram que se iniciasse imediatamente um julgamento dos delitos cometidos pelos militares.

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O enquadramento dos militares ao sistema democrtico contrasta, segundo Quintana, com a precria liderana civil, carente de vontade, de recursos e de objetivos polticos para institucionalizar sua supremacia e darlhes segurana profissional. Esta seria, em seu entender, a caracterstica central a presidir a relao entre civis e militares na Bolvia aps a transio. At hoje falta uma definio estatal para o desempenho profissional das Foras Armadas que corresponda s profundas mutaes no novo cenrio internacional. Nos ltimos anos, os recursos destinados s Foras Armadas foram cortados drasticamente, mas isso no se deveu a uma poltica de defesa nacional. Resultou, segundo o autor, de um srio divrcio civil-militar, que, alm de ser uma constante na democracia, uma herana no superada desde a ditadura. Essa situao, alm de afetar seriamente o desempenho operacional das Foras Armadas, gera um clima de autonomia institucional incongruente com o controle democrtico. Os planejamentos estratgicos, deixados exclusivamente nas mos dos militares, correm o risco de reeditar velhos padres e lgicas de segurana das dcadas de 1960 e 70. Alm disso, em busca de sua relegitimao institucional, as Foras Armadas engajam-se crescentemente em atividades no-convencionais como a luta contra a pobreza, o narcotrfico (sob forte influncia norte-americana) e a degradao do meio ambiente. O risco que essas atividades, com nfase no trabalho dos rgos de inteligncia, passem a ser o princpio ordenador da adaptao da instituio aos novos tempos e que, com isso, fique cada vez menos precisa a fronteira entre defesa nacional e segurana interna. Em resumo, o modelo de controle civil na Bolvia pode ser caracterizado, segundo o autor, como um modelo de integrao negativa, posto que, ainda que se reconhea a adeso das Foras Armadas democracia, seu grau de profissionalizao muito baixo. O caso brasileiro tratado, neste livro, por Elizer Rizzo de Oliveira e Samuel Alves Soares. A transio do regime militar autoritrio para a Nova Repblica iniciada em 1985 caracterizada como um processo de democratizao pelo alto e por um padro peculiar nas relaes civis-militares, marcado principalmente pela lenta adequao ao novo contexto poltico. Durante o primeiro governo civil, os militares mantiveram diversas prerrogativas e exerceram uma funo tutelar sobre o governo fruto, em grande medida, do baixo apoio institucional de Sarney no Congresso. Nesse contexto, o ministro do Exrcito, general Lenidas Pires Gonalves, apresentava-se como o elemento que garantia a transio poltica e usava sua liderana militar para opinar em assuntos de poltica interna e externa do governo. O carter hbrido do regime parlamentar-presidencialista, definido na Constituio de 1988, , segundo os autores, resultado da atuao dessa tutela, na medida em que os militares explicitamente identificaram como de interesse militar a preservao do regime presidencialista, contra a predominante tendncia pr-parlamentarismo. Nesse contexto ainda, questes sensveis herdadas do regime militar, como a tortura e os desaparecidos polticos, foram tratadas pela maioria dos atores polticos segundo a lgica da protelao, de modo a evitar um confronto direto com o aparelho militar.

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Apenas em 1990, com Fernando Collor de Mello (que, entre outras medidas, extinguiu o Servio Nacional de Informaes e a Secretaria de Assuntos de Defesa Nacional Saden , rgo sucessor do Conselho de Segurana Nacional extinto pela Constituio de 1988, criando em seu lugar a Secretaria de Assuntos Estratgicos SAE), teve incio uma lenta, embora descontnua, elaborao de um novo perfil nas relaes civis-militares. Para os autores, a construo de uma efetiva responsabilidade civil sobre os militares ainda um processo inacabado no Brasil, apesar da ocorrncia de avanos importantes, principalmente durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Entre esses avanos destacam-se a elaborao da poltica de defesa nacional, a distenso militar no Cone Sul, a criao da Comisso dos Desaparecidos e a criao do Ministrio da Defesa. Mas, se o Executivo tem procurado estabelecer uma conduo poltica sobre as Foras Armadas, com resultados parcialmente favorveis, o mesmo no pode ser dito, segundo os autores, do Congresso Nacional, de perfil acentuadamente tmido, ineficiente e irresponsvel mesmo no tocante temtica da defesa. A sociedade civil e especialmente a mdia tambm se manifestariam de modo semelhante, mantendo uma espcie de pacto de silncio, quebrado apenas por eventuais temas negativos referentes instituio militar. Concluindo, as mudanas derivadas da direo poltica razoavelmente eficaz dada pelos ltimos presidentes civis ao tema da defesa nacional debilitaram a histrica disposio dos militares brasileiros de salvar a ptria. No entanto, ainda h muito a ser feito para se atingir um grau elevado de institucionalizao da supremacia civil sobre o poder militar no Brasil, devido falta de co-responsabilidade do Poder Legislativo. No caso chileno, como mostra Francisco Rojas Aravena, a transio marcada pela continuidade da vigncia da Constituio de 1980, imposta em plena ditadura. Aps a derrota do governo no plebiscito de 1988 marco do incio do processo de transferncia do poder aos civis , a manuteno do texto constitucional, mesmo no representando a vontade da maioria dos chilenos, foi aceita pelos partidos reunidos na Concertacin como um mal necessrio para que o processo transicional tivesse continuidade. Em conseqncia, o Chile tem vivido, desde ento, uma situao hbrida: nem uma democracia plena, nem a simples tutela militar, mas um sistema que, embora seja em sua forma e procedimentos democrtico, viciado pelos enclaves autoritrios presentes na Constituio uma espcie de democracia tutelada, ou um regime democrtico de baixa qualidade. A estabilidade da democracia chilena s ser alcanada, afirma Rojas, quando surgir uma nova Constituio, que reflita a vontade da maioria dos chilenos. As relaes civis-militares esto marcadas por essa ambigidade mais ampla que caracteriza a vida poltica chilena. Sua superao em direo a um controle democrtico efetivo sobre as Foras Armadas foi e tem sido um dos principais desafios das administraes de Patricio Aylwin (1990-94) e de Eduardo Frei (1994-2000). Embora o grau de subordinao militar tenha aumentado ao longo da dcada de transio, a persistncia constitucional do conceito de poder arbitral das Foras Armadas, unido ao seu alto grau de autonomia, dificulta a construo de um regime poltico plenamente demo-

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crtico. importante observar que, ao contrrio do que aconteceu, por exemplo, na Argentina, as Foras Armadas chilenas no foram derrotadas militarmente e mantiveram parcelas significativas de poder e autonomia, reforadas por uma auto-estima elevada e pelo apoio de parte expressiva da populao (lembremos que o governo militar obteve 43% dos votos no plebiscito). Outra questo central e ainda no resolvida a violao dos direitos humanos durante a ditadura. O relatrio da Comisin Nacional de Verdad y Reconciliacin, de 1991, que documentou os graves crimes cometidos durante o regime militar, no foi aceito como verdade pelas Foras Armadas nem implicou, at o momento, o incio da reviso judicial desses crimes. Quanto questo dos direitos humanos, como observa o autor, no existe consenso na sociedade e na elite poltica chilenas, coexistindo memrias histricas distintas, contraditrias e que dificilmente chegaro a um acordo. As profundas divises existentes na sociedade chilena em relao ao passado autoritrio vieram tona quando, em outubro de 1998, Pinochet foi preso em Londres, por delitos ligados aos direitos humanos. Esse fato teve imediata repercusso no sistema poltico do Chile, embora, com o passar dos meses, o risco de transbordamento em uma crise poltica interna fosse cedendo lugar a uma definio da situao restrita ao mbito de uma crise diplomtica entre naes. Dois fatos ficam evidentes a partir desse episdio ainda no encerrado hoje (janeiro de 2000). Primeiro, que a questo dos direitos humanos tornou-se, de fato, uma questo de direito internacional, ultrapassando os limites dos contextos polticos nacionais. Segundo, que a ditadura chilena, sustentada pelas Foras Armadas mas altamente personalizada na figura de Pinochet, deixou um legado histrico e institucional que ainda demandar tempo e disputas polticas para ser superado. A ditadura paraguaia tambm foi marcada, como a chilena, pela extrema personalizao do regime, permanecendo Stroessner no poder por 35 anos. No entanto, as diferenas entre os dois casos so profundas. No Chile, manteve-se a separao entre a instituio militar e o governo e, aps o incio da transio, Pinochet permaneceu durante vrios anos como personagem central do cenrio poltico. No Paraguai, a instituio militar manteve vnculos estreitos com o Partido Colorado, e Stroessner, deposto em 1989, exilou-se no Brasil para no mais retornar. Alm disso, antes do golpe militar de 1973, o Chile viveu longos perodos de normalidade democrtica, o que nunca ocorreu na histria do Paraguai. O pacto colorado-militar anterior a Stroessner e constitui, como mostra Carlos Martini, um eixo fundamental para compreendermos a histria paraguaia recente. Usando a tipologia weberiana, pode-se dizer que Stroessner soube aproveitar-se da unidade grantica entre militares e colorados para fortalecer um regime patrimonialista de tipo sultanista. Estabeleceu-se a filiao obrigatria dos oficiais militares ao Partido Colorado e toda a oposio foi excluda. Mas, se a lealdade militar a Stroessner foi conseguida graas permanncia, na cpula da Foras Armadas, de um grupo de oficiais que acumulou poder poltico e econmico (inclusive a possibilidade de negcios ilcitos), esse fato produziu um fechamento na carreira militar.

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A falta de renovao na cpula das Foras Armadas justamente um dos fatores que nos ajudam a entender o envelhecimento do regime stroessnista. Quando o general Andrs Rodrguez derrubou Stroessner em 1989, o pacto militar-colorado no foi desfeito. O que ocorreu foi apenas a substituio de uma faco por outras, vencendo a linha colorada mais afinada com a direo tradicional do partido e sendo derrotada a linha mais dura do stroessnismo. As novas realidades do cenrio internacional foram importantes para que o golpe se convertesse em um processo de transio, mesmo que sem a ruptura do eixo de poder do regime derrotado. Houve um imediato restabelecimento de liberdades pblicas e, posteriormente, durante a administrao Wasmosy (1993-98), foi-se gradualmente construindo uma institucionalidade democrtica, fato indito na histria paraguaia. Contudo, o Estado manteve sua lgica assistencialista e permaneceu o pacto colorado-militar que, com o passar do tempo, teria no general Lino Oviedo seu expoente mximo, agora como candidato favorito em um regime de eleies livres. Oviedo, entretanto, no contava com o apoio irrestrito das Foras Armadas, mas apenas da Cavalaria, a arma tradicionalmente mais forte do Exrcito. Sua vitria nas eleies internas do Partido Colorado que escolheria o candidato presidncia da Repblica, realizadas em setembro de 1997, mergulhou o Paraguai num quadro de crises polticas sucessivas. Oviedo foi judicialmente afastado da disputa presidencial e preso, embora permanecesse como candidato preferido nas pesquisas de opinio. Mas, mesmo preso, conseguiu eleger seu sucessor na chapa colorada, Ral Cubas. O desfecho dramtico desse quadro viria em maro de 1999, com o assassinato do vice-presidente Carlos Argaa, a posterior renncia do presidente Cubas e o exlio de Oviedo. Nessa conjuntura, ficou evidente o peso da presso internacional, a dos pases do Mercosul em particular, no sentido de impedir a quebra da incipiente constitucionalidade democrtica paraguaia. Tambm ficou clara uma mudana no comportamento da maioria da instituio militar, que se eximiu de intervir na poltica, em contraste com a grande presena cidad nas ruas nos momentos cruciais da crise. Para que a democracia paraguaia se consolide, falta ainda resolver a impunidade ante a corrupo generalizada e completar a desmilitarizao do sistema poltico. Sem isso, a transio paraguaia ainda pode ser considerada inconclusa. Os militares uruguaios, como nos lembra Selva Lpez, mantiveram-se, no sculo XX, afastados do jogo poltico uruguaio at o processo de crescente autoritarismo iniciado em 1968 e que culminou no golpe de Estado de 1973. Desde ento e at 1985, quando assumiu o primeiro governo legitimamente eleito, as Foras Armadas estiveram no centro do poder, embora mantendo um presidente civil de fachada. A sociedade uruguaia atingira, em mais de seis dcadas de democracia poltica, um elevado grau de mobilizao social, que os 12 anos de ditadura conseguiram desarticular. Confiantes, como no caso chileno, na institucionalizao do regime atravs do recurso vitria em um plebiscito, o governo sofreu, em 1980, uma derrota que tornou necessria a adoo de um cronograma para a transio. Alm da derrota poltica, atuaram nessa

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direo, como observa a autora, fatores externos e internos, como um contexto internacional desfavorvel continuidade de regimes autoritrios e uma grave crise econmica. A transio viu renascerem foras sociais e polticas profundamente enraizadas na histria do pas. A sociedade civil readquiriu densidade e o pas voltou a viver sob a hegemonia de uma cultura poltica participativa na qual o jogo eleitoral tem primazia. Contudo, como destaca Lpez, a sociedade na qual essas mudanas ocorrem bastante diferente da que existira antes da ditadura, profundamente transformada que foi no s pelos anos de terrorismo de Estado, como pelo impacto da nova configurao que a sociedade de mercado adquiriu, com seus efeitos sociais desintegradores. Com isso, atores sociais que deram densidade sociedade uruguaia na primeira metade do sculo XX perderam grande parte de seu poder e influncia. Segundo a autora, a questo militar aps a transio no pode ser pensada fora desse quadro mais amplo. Os militares uruguaios saram do centro do poder poltico em 1985, porm mantiveram-se institucionalmente coesos e com um significativo grau de autonomia. Faltou democracia emergente competncia e, principalmente, vontade poltica para resolver dois problemas pendentes: a soluo dos crimes contra os direitos humanos ocorridos durante as ditaduras e a necessidade de reinstitucionalizao das Foras Armadas no novo contexto democrtico atravs da reforma de seus padres de socializao profissional e da supresso de prerrogativas militares, como por exemplo a autodefinio de suas misses. Uma eventual vitria da esquerda nas urnas mostraria se esse quadro decorre de uma deficiente subordinao militar pelo poder poltico, ou uma caracterstica substancial da nova democracia uruguaia. Foi contra o pano de fundo dos diferentes casos nacionais, aqui brevemente introduzidos, que se realizou o seminrio e se iniciou o debate reproduzido na segunda parte deste livro. Inclumos ainda, em anexo, um estudo de Ludmila Catela, nossa principal assistente na pesquisa, sobre o tratamento dado questo dos delitos contra os direitos humanos nos diferentes pases da regio. Como resultar evidente da leitura do livro, este um tema sensvel em todos os pases, e que tem recebido tratamentos diferenciados. Todos os autores reunidos no livro concordam em reconhecer a pouca competncia demonstrada pelas lideranas civis, j sob regimes democrticos, no trato de questes ligadas defesa. Se essa deficincia pode ser atribuda em parte ao trauma causado pela recente represso a que essas sociedades foram submetidas, ela certamente mais fruto do pouco peso poltico que as Foras Armadas passaram a ter num cenrio poltico estabilizado e num mundo globalizado. Trata-se de uma deficincia perigosa, caso se tenha um mnimo de viso histrica. Mesmo sem cairmos numa viso pessimista do futuro, nada garante, por exemplo, que a eventualidade de crises econmicas seguidas de graves conflitos sociais no faam vir tona novas variantes da antiga viso messinica e das doutrinas de segurana interna manifestadas, durante tantos anos, pelos militares da regio. De nossa parte, procuramos dar uma contribuio construo dessa expertise civil em

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questes de defesa, no terreno que nos familiar: o do conhecimento e do debate acadmicos. Gostaramos, finalmente, de enfatizar que a pesquisa e o seminrio representaram uma excelente oportunidade para estreitar laos acadmicos entre pesquisadores da regio. A comunidade acadmica brasileira tem historicamente tido pouco contato com nossos pares dos pases vizinhos. Nosso desejo , portanto, que esta pesquisa seja apenas o momento inicial de um intercmbio mais permanente.

PARTE I C ASOS N ACIONAIS

ARGENTINADemocracia e Foras Armadas entre a subordinao militar e os defeitos civis*MARCELO FABIN SAIN

Do regime militar democraciaO trao distintivo que caracteriza o processo poltico argentino desenvolvido entre os anos de 1955 e 1983 foi a crescente e ampla institucionalizao do poder militar como ator poltico. Nesse contexto, as Foras Armadas foram-se convertendo em sujeitos de poder altamente corporativizados e com ampla margem de autonomia institucional no sistema poltico. Isso no s se deveu recorrente inteno militar de consolidar-se como ator tutelar do cenrio poltico, mas tambm, e particularmente, debilidade da liderana civil democrtica, que aceitou, alentou e manteve esse papel como necessrio e legtimo. Por isso, o militarismo no resultou exclusivamente do comportamento poltico dos militares, mas, em grande medida, das limitaes e do comportamento concessivo de grande parte dos dirigentes polticos civis. E no s porque estes justificaram o intervencionismo poltico militar, mas tambm porque procuraram permanentemente tirar proveito tanto da excluso de seus adversrios polticos quanto da emergncia de formas de dominao militarmente sustentadas. Nesse sentido, importante destacar que, a partir da queda do governo do general Juan Domingo Pern, em 1955, o sistema poltico argentino seguiu trs grandes orientaes,

* Traduo de Alexandra Barbosa Silva.

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que se constituram em condies de funcionamento desse cenrio, a saber: a) a excluso poltica do peronismo; b) o papel assumido pelas Foras Armadas de guardies tutelares e fiadoras dessa excluso, e c) a aceitao ativa pela classe poltica no-peronista dessas duas condies anteriores.1 Quando, em 24 de maro de 1976, a Junta Militar composta pelos comandantes-em-chefe das trs Foras Armadas o general Jorge Rafael Videla, o almirante Emilio Eduardo Massera e o brigadeiro Orlando Ramn Agosti assumiu o governo, iniciou-se a ditadura militar mais violenta e transformadora da histria argentina. Tal ditadura implicou uma fissura na ao do poder militar, no s pela tendncia autodefinida e auto-sustentada da interferncia castrense no sistema poltico, mas, particularmente, pela capacidade de reconstituio das condies de dominao social, pela redefinio do papel do Estado e pela reestruturao social e poltica provocada por essa ao, no quadro da mais cruel experincia de terrorismo de Estado observada no Cone Sul. Nessa ocasio, os objetivos da corporao militar no denominado Processo de Reorganizao Nacional (PRN) no se limitaram exclusivamente desarticulao coercitiva da estrutura poltico-social que dava sustentao sociedade populista, mas se estenderam criao de novas bases estruturais e formao, nesse contexto, de novos sujeitos sociais dominantes, tudo isso combinando represso poltica e transformao econmico-social.2 A intensidade da represso revela que o terrorismo de Estado no foi uma reao lgica e proporcional ao da subverso. As caractersticas da mquina repressiva estatal e o nmero de vtimas desse sistema refletem a magnitude do genocdio produzido e demonstram que os objetivos do PRN iam mais alm. Entre 1976 e 1979, foram dadas como desaparecidas cerca de 9 mil pessoas (identificadas).3 Outras 1.898 foram assassinadas, sendo seus cadveres encontrados e identificados posteriormente,4 e calcula-se que entre 5 mil e 9 mil pessoas tenham desaparecido sem haver denncia.5 Em suma, ao longo de toda a ditadura, houve na Argentina entre 16 mil e 21 mil pessoas mortas pela represso processista.61

Ver Lpez (1991 e 1994a). Estas so as concluses a que tambm chega Cavarozzi (1987 e 1988). Ver tambm Rouqui (1986, t. 2) e Potash (1994). 2 Para uma abordagem dessas modalidades de dominao autoritria, ver ODonnell (1972 e 1982), Collier (1979), Garretn (1985) e Rouqui (1982). Para a compreenso do processo de transformao da economia e da sociedade argentinas a partir de 1976, ver, entre outros, Canitrot (1980 e 1981), Schvarzer (1986), Azpiazu, Basualdo & Khavisse (1987) e Azpiazu & Basualdo (1989). Para uma abordagem do processo do PRN, ver Waldman & Garzon Valdes (1983), Duhalde (1984), Oszlak (1984), Fontana (1984), Castiglione (1992), Quiroga (1994) e Yannuzzi (1996). 3 Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Personas (1985). 4 Asamblea Permanente por los Derechos Humanos (1988). 5 Garca (1995), cap. III. 6 NT: O termo processista no original procesista a forma usual com que se faz referncia, na Argentina, ao perodo do citado Processo de Reorganizao Nacional (PRN).

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Por sua vez, ao longo de todo o PRN, as Foras Armadas no conseguiram criar uma estrutura de governo coesa, nem estabelecer uma situao poltico-institucional interna unificada. Fragmentadas institucionalmente e antagonizadas politicamente, acabaram montando um sistema decisrio subordinado a uma multiplicidade de lgicas e interesses polticos quase sempre divergentes. Isso, somado incapacidade demonstrada pelos chefes militares de resolver conflitos sociais e polticos e estabelecer certas vinculaes com a sociedade poltica, afetou a implementao das polticas pblicas e fez com que a crise governamental e a instabilidade do regime fossem padres recorrentes durante todo o perodo autoritrio.7 A derrota poltico-militar das Malvinas marcou o incio da ruptura do regime militar inaugurado em 1976. A crise na qual mergulharam as Foras Armadas e, em particular, o governo militar converteu-se rapidamente numa crise do regime. A fragmentao do poder militar acelerou os tempos polticos da transio, e a pretenso castrense de articular uma sada poltica controlada pelas Foras Armadas diluiu-se no exato momento em que se soube da rendio das tropas argentinas no Atlntico Sul. Apesar de o poder militar no ter abandonado a pretenso de se manter como protagonista no processo poltico que se iniciava, a brusca reduo das margens de manobra disponveis e as tenses e conflitos surgidos no aparato militar o obrigaram a iniciar uma sada poltica com condicionamentos maiores do que os pretendidos. Derrotadas militarmente e fragmentadas politicamente, as Foras Armadas encontravam-se em meio a uma profunda crise profissional, que punha em xeque desde os pressupostos doutrinrios vigentes desde o incio da dcada de 1960 at sua estrutura orgnico-funcional e seu esprito de corpo. O fracasso poltico e econmico do PRN e a derrota blica no Atlntico Sul fizeram sentir seus efeitos sobre os militares e, nesse quadro, as Foras Armadas no tiveram condies de buscar uma sada que fosse conduzida a partir das esferas governamentais do regime e que fosse regulada e determinada pela srie de parmetros impostos por elas ao restante da sociedade poltica, ou pelo menos canalizados sob a forma de pactos com os dirigentes polticos civis. Essa situao favorecia os dirigentes civis, uma vez que lhes oferecia novas oportunidades de enfrentar a transio sem substanciais condicionamentos castrenses. Mas isso no foi percebido pela oposio civil. O grosso desses dirigentes encontrava-se dividido na hora de avaliar a modalidade de relacionamento com o poder militar. Havia uma acentuada divergncia entre os que preferiam estabelecer negociaes com os militares a partir de uma posio de confronto e os que preferiam contemporizar a partir de uma situao de subordinao ao plo castrense. Essas divergncias no se refe7

Ver Fontana (1984), Ricci (1991), Castiglione (1992), Quiroga (1994), cap. II.

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riam apenas ao rumo institucional que o processo de transio deveria seguir, mas tambm s medidas a serem tomadas em relao aos crimes cometidos durante a denominada luta contra a subverso.8 Dessa maneira, a classe poltica civil descartou de antemo a possibilidade de articular uma alternativa de poder em relao ao regime. Assim, a debilidade poltica do governo militar e a fragmentao institucional das Foras Armadas tiveram como contrapartida a fraqueza dos dirigentes civis, dando lugar a um processo de transio singular. Como bem descreveu Ernesto Lpez, tal processo no implicou nenhum tipo de acordo ou modalidade de conciliao entre civis e militares, isto , no houve transio pactuada como sucedeu pouco tempo depois em outros pases da regio , mas tampouco existiu uma total derrota poltica dos militares e uma plena ocupao dos espaos e recursos de poder por parte dos civis que os estabelecessem em uma slida posio de predomnio e controle em relao aos militares.9 Esse processo no configurou uma transio pactuada, mesmo que, em seu princpio e at a guerra austral, tudo parecesse apontar nessa direo. Tratou-se de uma transio por colapso, isto , uma transio determinada pela ruptura do regime militar, cujo desencadeador decisivo foi a derrota das Malvinas. No consistiu numa liberalizao provocada ou forada pela oposio poltica ao poder militar, nem pela mobilizao da sociedade, e sim numa conseqncia da imploso da ditadura.108

As direes da Unin Cvica Radical (UCR) e do Partido Justicialista (PJ), os dois partidos majoritrios no cenrio poltico argentino, inclinavam-se a adotar uma posio de contemporizao com o poder militar. A impresso era de que o impacto centrfugo que a experincia blica havia produzido nos militares tinha atingido tambm a classe poltica civil. Evidentemente, a posio de subordinao que o grosso dos dirigentes partidrios havia assumido perante o poder militar durante a Guerra das Malvinas acabou criando profundos condicionantes que impediram a construo de um mnimo de consenso para enfrentar a sada do regime ou para posicionar-se quanto s seqelas da represso ilegal e dos direitos humanos. Por sua vez, a reivindicao dos organismos de direitos humanos em favor do julgamento e punio dos militares responsveis pelos crimes cometidos durante o combate subverso comeou a contar com forte respaldo social. Contudo, os partidos majoritrios mantiveram uma posio ambgua a esse respeito e, em seu conjunto, no apoiaram decididamente aquela reivindicao. Ver Lpez (1994a) e Caviglia (1992). 9 Lpez (1994a:47-8). 10 Desde o comeo da transio, iniciada com a convocao ao dilogo poltico lanada pelo general Videla em maro de 1980 at a Guerra das Malvinas, todo o espectro poltico e social de oposio situou-se no terreno institucional e discursivo que o poder militar foi definindo, e nenhum dos partidos polticos ou dos atores sociais com a exceo dos organismos de direitos humanos conseguiu formular e articular uma posio diferenciada e alternativa do governo castrense, nem sequer quando este se encontrava em um estado de virtual fragmentao poltica. Diante da decomposio do regime, a classe poltica, vacilante e dividida na hora de enfrentar os militares, no demonstrou capacidade de superar as limitaes que a impediam de conduzir o processo poltico de ento. Por isso, no houve uma transio pactuada ou negociada conduzida pelo plo militar, mas tambm no houve uma ocupao dos espaos de poder deixados pelo poder castrense por parte dos dirigentes civis. Ver De Riz (1984) e Lpez (1994a).

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A partir do colapso do PRN, o cenrio poltico argentino se redefiniu substancialmente. A profunda transformao econmico-social levada a cabo pelo regime militar desestruturou a matriz social e poltica que convertia os setores populares e a classe operria em atores fundamentais do sistema poltico local e, com isso, desarticularam-se as bases de sustentao do peronismo como a mais importante fora poltico-social desse cenrio. Configurou-se ento um novo poder econmico, do qual surgiram novas faces polticas e sociais dominantes. Esse conjunto de mudanas estruturais assentou as bases do novo cenrio poltico. O papel central militar em tais mudanas foi decisivo. Mas tambm foram importantes as mudanas e transformaes que tiveram lugar no interior das prprias Foras Armadas, iniciando-se nelas uma etapa marcada por uma profunda crise profissional que atingiu por inteiro suas instituies e afetou todos os seus quadros.11 Essa situao fez com que desaparecesse a condio de excluso e proscrio do peronismo como parmetro central do cenrio poltico local, ao mesmo tempo que provocou a desarticulao da projeo castrense como agente dessa excluso e, mais ainda, como sujeito de poder institucionalmente autnomo. Assim, o ano de 1983 significou a falncia da lgica poltica inaugurada em 1955 e, em seu conjunto, do tipo de relaes civis-militares que correspondia a essa lgica.12

Civis e militares durante a democratizao O governo de Ral Alfonsn (1983-89)Em 30 de outubro de 1983, o dirigente da Unin Cvica Radical (UCR), Ral Alfonsn, venceu, por ampla margem, o candidato do Partido Justicialista (PJ), talo Luder, nas eleies presidenciais. Era a primeira vez, desde a dcada de 1950, que um candidato no pertencente ao peronismo triunfava em eleies gerais sem proscries ou condicionamentos tutelares por parte das Foras Armadas. Com isso, institucionalizou-se um novo consenso poltico, caracterizado pela inexistncia de condies de excluso e/ou proscrio de qualquer setor poltico ou social, pela ausncia de tutela militar e pela reivindicao coletiva do sistema democrtico como ordem poltica legtima por parte de todo o espectro poltico e social nacional. No que concerne questo militar, impunha-se ao governo e aos dirigentes polticos democrticos um duplo desafio: efetuar a reviso judicial11 12

Lpez (1988a, 1988b e 1994a) e Talento (1987). Abordei mais a fundo o conceito de relaes civis-militares em Sain (1997). Neste trabalho redefini tal termo conforme a experincia poltica dos pases latino-americanos.

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dos crimes cometidos durante a represso ilegal e reinstitucionalizar as Foras Armadas no processo poltico democrtico. Tudo isso devia contribuir para a articulao de relaes civis-militares marcadas, do lado civil, por um exerccio efetivo de governo sobre as Foras Armadas e, do lado militar, pela subordinao castrense s autoridades governamentais.13 A partir desses parmetros, as relaes civis-militares se apresentavam como um cenrio bastante conflituoso. Por um lado, as Foras Armadas tentariam resistir e vetar as iniciativas do poder poltico que visassem reviso do passado ou adoo de polticas de reforma institucional. Por outro, o poder poltico estaria disposto a levar a cabo medidas tendentes a redefinir a presena corporativista do poder militar e a anular as margens de autonomia que pareciam sustentar as instituies castrenses. Assim mesmo, era evidente que o controle civil democrtico das Foras Armadas no resultaria da vontade de subordinao dos militares, excluindo-se, desse modo e de antemo, a possibilidade de uma auto-reforma nesse plano. Apenas a disposio e a capacidade poltica do governo e dos dirigentes democrticos em geral constituam os fatores que poderiam impulsionar a implementao das necessrias medidas reestruturantes. A orientao militar seguida por Ral Alfonsn teve como objetivo central manter a estabilidade institucional democrtica, a partir da interpretao de que as tendncias corporativas e autnomas dos militares configurariam um srio obstculo para esse objetivo de fundo e talvez viessem a possibilitar um retorno ao autoritarismo.14 Sob esse enfoque, o governo voltou-se para os quartis, tentando neutralizar todo fato que pudesse prejudicar a planejada estabilidade institucional, e o fez atravs de uma poltica13 A propsito, nos crculos polticos e acadmicos da poca sustentava-se, quase unanimemente, que o exerccio desse controle civil democrtico sobre os militares era uma condio necessria e indispensvel entre outras para a estabilidade institucional democrtica instaurada e que tal controle deveria resultar da existncia de poucas prerrogativas institucionais para os militares na dinmica democrtica e da reduo das margens de autonomia e corporativizao alcanadas pelas Foras Armadas durante a etapa autoritria precedente. Concretamente, esses objetivos implicavam um longo processo, no qual se impunham certas metas importantes, como a redefinio do papel institucional das Foras Armadas e de suas misses e tarefas especficas; o desenho e a implementao de uma ampla reforma nas estruturas orgnico-funcionais e doutrinais das instituies militares, visando a eliminar as profundas deformaes que possuam; e a reviso das violaes dos direitos humanos cometidas sob o regime militar, demanda esta apoiada num abrangente consenso social. 14 Desse modo, o oficialismo dava s Foras Armadas capacidade suficiente para levar a cabo aes desestabilizantes, quando, na realidade, a decomposio profissional dessas instituies e a profunda revalorizao da democracia por parte da sociedade poltica e civil local no s criavam obstculos a essa possibilidade, mas tambm cerceavam a capacidade militar de projeo tutelar ou ofensiva, fatores que no foram devidamente considerados pelo governo.

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cujo eixo principal era a reviso judicial das violaes aos direitos humanos, mas sem iniciativas de reforma das Foras Armadas que visassem a profissionaliz-las com um vis institucional politicamente democrtico e profissionalmente moderno. Na noite de 13 de dezembro de 1983, a trs dias de sua posse como presidente da nao, Alfonsn anunciou que estava disposto a empreender uma ampla reviso judicial do passado, a fim de no deixar impune o conjunto de delitos cometidos no passado e de restabelecer o Estado de direito na Argentina.15 Sua inteno era proceder ao julgamento dos militares envolvidos nas violaes de direitos humanos cometidas durante o PRN, definindo claramente trs nveis de responsabilidade para os participantes desse processo: os que idealizaram e organizaram o plano repressivo, deram as ordens e instigaram seu cumprimento; os que se excederam no cumprimento das ordens recebidas, cometendo outros delitos; e os que cumpriram estritamente as ordens recebidas, num contexto geral de terror e coao e supondo que o que faziam era legtimo. O governo propunha que o peso do julgamento recasse sobre os dois primeiros grupos, ou seja, sobre os ex-comandantes do PRN e alguns destacados chefes militares, e sobre os que se haviam excedido no cumprimento das ordens recebidas. Mas pretendia eximir do processo judicial os que haviam cumprido estritamente essas ordens. Desse modo, o governo propiciava que a maioria dos militares envolvidos na guerra suja, em especial o oficialato mdio e baixo, maciamente comprometido no grosso das violaes aos direitos humanos, fosse excludo desse julgamento, amparado na obedincia devida e no erro irreparvel, de modo que a reviso judicial se concentrasse apenas nas trs juntas militares e em alguns casos paradigmticos. Alm disso, para o governo, a reviso do passado devia abarcar tambm a investigao e o julgamento criminal das organizaes guerrilheiras atuantes nos anos 1970. Nesse mesmo dia 13, o presidente Alfonsn assinou o Decreto n 157/ 83, no qual declarava a necessidade de abrir processo penal contra os dirigentes nacionais das principais organizaes guerrilheiras atuantes no pas durante os anos 1970, isto , os Montoneros e o Ejrcito Revolucionario del Pueblo16 pelos delitos de homicdio, associao ilcita, instigao pblica a delitos, apologia ao crime e outros atentados contra a ordem pblica. Tambm assinou o Decreto n 158/83, pelo qual decidia submeter a julgamento sumrio, ante o Conselho Supremo das Foras Armadas, os integrantes da junta militar que usurparam o governo da nao em 24 de maro de15 16

La Prensa, Buenos Aires, 14-12-1983. Eram eles: Mario Eduardo Firmenich, Fernando Vaca Narvaja, Ricardo Armando Obregn Cano, Rodolfo Gabriel Galimberti, Roberto Cirilo Perda, Hctor Pedro Pardo e Enrique Gorriarn Merlo.

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1976 e os integrantes das duas juntas militares subseqentes,17 em funo dos delitos de homicdio, privao ilegal da liberdade e aplicao de tortura aos detidos, sem prejuzo dos demais de que sejam autores imediatos ou mediatos, instigadores ou cmplices.18 Em 15 de dezembro, promulgou ainda o Decreto n 187/83, criando a Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Personas (Conadep) com o objetivo de esclarecer os fatos relacionados ao desaparecimento de pessoas ocorrido no pas, ou seja, de empreender uma ampla investigao a respeito.19 Por sua vez, em 22 de dezembro, o Congresso Nacional sancionou a Lei n 23.040, pela qual se abolia por inconstitucionalidade e se declarava nula a Lei de Anistia n 22.924, que havia sido promulgada em setembro desse ano pela ltima Junta Militar e em razo da qual se haviam extinguido as aes penais decorrentes dos delitos cometidos por ocasio ou por motivo da preveno ou represso de atividades terroristas ou subversivas, e daqueles cometidos com motivao ou finalidade terrorista ou subversiva.20 Ficava, assim, aberto o caminho jurdico para que se iniciasse o processo de reviso proposto pelo governo e pretendido pelo conjunto da sociedade. Mais tarde, no dia 9 de fevereiro de 1984, o Parlamento aprovou a Lei n 23.049, que introduziu uma srie de reformas no Cdigo de Justia Militar, tais como a possibilidade de interposio de recurso de apelao ante a17

Tratava-se do general Jorge R. Videla, do brigadeiro Orlando R. Agosti, do almirante Emilio E. Massera, do general Roberto E. Viola, do brigadeiro Omar Graffigna, do almirante Armando J. Lambruschini, do general Leopoldo F. Galtieri, do brigadeiro Basilio Lami Dozo e do almirante Jorge I. Anaya. 18 Tal norma estabeleceu que a sentena do tribunal militar seria apelvel ante a Cmara Federal nos termos das modificaes que o Congresso introduziria no Cdigo de Justia Militar. 19 Para tanto, a Conadep foi autorizada a receber denncias e provas sobre aqueles fatos e remet-las imediatamente Justia [...]; averiguar o paradeiro das pessoas desaparecidas [...]; determinar a situao de crianas subtradas tutela de seus pais ou tutores [...], e intervir nos organismos e tribunais de proteo de menores; denunciar Justia qualquer tentativa de ocultamento, subtrao ou destruio de elementos comprobatrios [...]; [e a] emitir um relatrio final, com uma explicao detalhada dos fatos investigados, aos 180 dias a partir de sua constituio e a requerer a todos os funcionrios do Poder Executivo, dos organismos subordinados a ele, de entidades autrquicas e das Foras Armadas e de segurana que lhe fornecessem relatrios, dados e documentos, assim como permitissem o acesso aos lugares que a Comisso se dispusesse a visitar em vista de seu dever [...], o que era de cumprimento obrigatrio. Tal comisso foi integrada por altos funcionrios do servio pblico nacional ou, segundo o governo, por personalidades caractersticas por seu zelo na defesa dos direitos humanos e por seu prestgio na vida pblica do pas. Integravam a comisso o jurista Ricardo Colombres, o cardiologista Ren Favaloro, o ex-vice-reitor da Universidade de Buenos Aires, Hilario Fernndez Long, o bispo da Igreja Evanglica Metodista Carlos Gattinoni, o epistemologista Gregorio Klimosky, o rabino Marshal Meyer, o bispo da Igreja Catlica Jaime de Nevares, o jurista Eduardo Rabossi, a jornalista Magdalena Ruiz Guiaz e o escritor Ernesto Sbato. 20 Na Lei n 23.040 estabeleceu-se que aquela auto-anistia militar carecia de todo efeito jurdico para o julgamento das responsabilidades penal, civil, administrativa e militar emergente dos fatos que ela pretende cobrir [...].

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Justia Federal contra as sentenas emitidas pelos tribunais militares e a obrigao do Ministrio Pblico Fiscal de promover tal recurso em suas respectivas jurisdies. Com referncia competncia da Justia Militar sobre as violaes aos direitos humanos, a lei determinou que o Conselho Supremo das Foras Armadas supremo tribunal em matria penal castrense ficaria encarregado do julgamento dos delitos imputveis aos militares das Foras Armadas e aos integrantes das foras de segurana, policial e penitenciria sob controle operacional das Foras Armadas e que atuaram desde 24 de maro de 1976 at 26 de setembro de 1983 nas operaes empreendidas com o motivo alegado de reprimir o terrorismo. E, por ltimo, no que se refere ao princpio de obedincia devida, disps-se que, com relao aos atos cometidos pelo pessoal [...] que atuou sem capacidade decisria, cumprindo ordens ou diretivas que responderam a planos aprovados e supervisionados pelos comandos superiores orgnicos das Foras Armadas e pela Junta Militar, era possvel presumir-se, salvo evidncia em contrrio, que se cometeu um erro irreparvel com base na legitimidade da ordem recebida, exceto quando consistisse no cometimento de atos atrozes e aberrantes. Este ltimo aspecto refletia o critrio radical (da Unio Cvica Radical) de diferenciao dos trs nveis de responsabilidade mencionados anteriormente. Em 20 de setembro de 1984, a Conadep entregou ao presidente Alfonsn o relatrio final sobre suas investigaes acerca das conseqncias da represso ilegal. Nele, a comisso afirmava que existiu uma metodologia repressiva concebida para produzir atos e situaes tomando por base a seqncia seqestro-desaparecimento-tortura e que os delitos cometidos no mbito desse esquema decidido, planejado, conduzido e levado a cabo pelo Estado dificilmente poderiam ser entendidos como um conjunto de excessos, tal como afirmado no discurso militar. Assinalava-se que, desde 24 de maro de 1976, dezenas de milhares de pessoas haviam sido privadas ilegalmente de sua liberdade e, dessas, umas 8.960 continuavam ento desaparecidas.2121

No referido relatrio afirmou-se que a particularidade da metodologia repressiva decorreu da total clandestinidade em que se atuara, da pertinaz negativa oficial em reconhecer a responsabilidade dos organismos interventores e da existncia e generalizao da prtica da tortura. O esquema clandestino de represso foi posto em prtica pelos denominados grupos-tarefa formados por integrantes das diversas Foras Armadas e de segurana, que atuavam diretamente sob as ordens dos respectivos comandos de zonas e subzonas nas quais as autoridades militares dividiram o pas. Esses grupos, por sua vez, atuaram nos centros clandestinos de deteno a comisso identificou cerca de 340 , lugares onde se executou a poltica terrorista. Alm disso, especificou-se que muitas das pessoas ilegalmente detidas foram posteriormente exterminadas, sendo sua identidade ocultada e, em alguns casos, sendo seus corpos destrudos para impossibilitar uma posterior identificao. E, finalmente, ressaltou-se que o regime militar havia organizado o crime coletivo, um verdadeiro extermnio em massa e que isso no decorrera de um excesso na ao repressiva, mas da execuo de uma fria deciso (Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Personas, 1985:223-4).

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No entanto, o Conselho Supremo das Foras Armadas, encarregado do julgamento dos ex-comandantes militares do PRN e dos militares envolvidos nos crimes cometidos durante a represso ilegal, no s foi dilatando os prazos estabelecidos para a tarefa de que estava incumbido, como tambm advogou, em muitas ocasies, a ilegitimidade de tais julgamentos e at reivindicou a atuao das Foras Armadas durante o PRN. Isso revelava a m vontade desse tribunal para processar e condenar seus camaradas. Em vista disso, em 4 de outubro de 1984, a Cmara Federal de Apelaes da Capital Federal se reuniu e tomou conhecimento dos processos iniciados por fora do Decreto n 158/83, e em 22 de abril de 1985 comearam as audincias do julgamento oral e pblico dos ex-membros das juntas militares que conduziram a ditadura. Finalmente, em 9 de dezembro desse mesmo ano, esse tribunal emitiu uma sentena condenatria dos implicados.22 Tais condenaes decorreram do fato de se haver provado o cometimento de numerosos e diversos delitos no quadro de um plano criminal de combate ao terrorismo baseado em procedimentos clandestinos e ilegais, que havia sido planejado, montado e posto em prtica pelas Foras Armadas.23 Quanto responsabilidade penal dos subalternos que participaram da ao ilegal da represso, a Cmara, pelo inciso 30 da sentena, ordenou o julgamento dos oficiais superiores sob cujas ordens agiram os diferentes subcomandos repressivos, e de todos os militares que tivessem tido responsabilidade operacional no combate subverso, com o que, ao contrrio da inteno governamental, ficava aberta a possibilidade de que se ampliassem os processos e, com isso, o nmero de militares processados e eventualmente condenados pelos crimes cometidos no passado. Desde fins de 1985 haviam sido abertos em todo o pas mais de 1.500 processos judiciais contra membros das Foras Armadas e de segurana, a maioria deles em atividade. Neste contexto e ante o fracasso das tentativas do governo radical para que a Justia pusesse um ponto final em tais julgamentos, em 5 de dezembro de 1986 o presidente Alfonsn enviou ao Congresso um projeto de lei determinando basicamente a extino da ao22

O tribunal condenou por unanimidade os seguintes oficiais da reserva: general Jorge Rafael Videla, pena de recluso perptua; almirante Emilio Eduardo Massera, pena de priso perptua; brigadeiro Orlando Ramn Agosti, pena de quatro anos e seis meses de priso; general Roberto Eduardo Viola, pena de 17 anos de priso; almirante Armando Lambruschini, pena de oito anos de priso. O general Leopoldo Fortunato Galtieri, o brigadeiro Omar Rubens Graffigna, o almirante Jorge Isaac Anaya e o brigadeiro Basilio Lami Dozo, todos da reserva, foram absolvidos. 23 Na introduo da parte dispositiva da sentena, o tribunal resumiu os fundamentos centrais da mesma, indicando que, apesar de os comandantes militares disporem de todos os meios operacionais e legais para enfrentar e impedir a ao das organizaes subversivas, escolheram e aplicaram indiscriminadamente procedimentos clandestinos e ilegais tais como a priso por meios violentos, a deteno clandestina, o interrogatrio sob tortura e, em muitos casos, a eliminao fsica das vtimas (El Diario del Juicio. Buenos Aires, Perfil, 28-1-1986).

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penal contra todo militar acusado de delitos durante a represso processista. Em 23 de dezembro desse ano, essa iniciativa foi sancionada na Lei n 23.492, chamada de Lei do Ponto Final, pela qual se consagrou a extino da ao penal contra os que figurassem como autores dos delitos previstos na Lei n 23.049, isto , os delitos imputveis aos militares das Foras Armadas, e ao pessoal das foras de segurana, policial e penitenciria sob controle operacional das Foras Armadas e que atuou desde 24 de maro de 1976 at 26 de setembro de 1983 nas operaes empreendidas com o motivo alegado de reprimir o terrorismo, sempre que o referido militar no fosse chamado a prestar declarao por tribunal competente dentro do prazo de 60 dias corridos, contados a partir da promulgao da lei, ou que, havendo sido chamado anteriormente, no tivesse sido processado nem o fosse dentro desse prazo. Conhecidos os termos da Lei do Ponto Final, os tribunais federais de todo o pas decidiram suspender as frias judiciais de janeiro e acelerar os processos em curso, com o intuito de julgar o maior nmero possvel de militares envolvidos, pondo em evidncia que seus juzes no estavam dispostos a assumir a responsabilidade da iseno macia de julgamento de militares comprometidos com a guerra suja, tal como pretendia o governo radical. Passados os 60 dias, o nmero de militares processados chegava a 450, sendo a maioria oficiais de alta patente, tanto da reserva quanto da ativa. Vale dizer que dos 1.200 militares e policiais que, em dezembro de 1986, estavam sendo processados judicialmente por crimes cometidos durante a represso processista, 750 se livraram do processo em conseqncia da aplicao da Lei do Ponto Final.24 A questo dos julgamentos no estava, porm, resolvida para Alfonsn, que, depois da primeira rebelio cara-pintada, ocorrida em abril de 1987, decidiu levar adiante uma nova tentativa legislativa. Assim, em 13 de maio, o Poder Executivo enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei propondo a delimitao do alcance do dever de obedincia no mbito das Foras Armadas. Nele, se estabelecia a presuno, sem admisso de prova em contrrio, de que aqueles que na data do cometimento do ato eram oficiais comandantes, oficiais subalternos, suboficiais e pessoal de tropa das foras armadas, de segurana, policiais e penitencirias no so passveis de punio pelos delitos a que se refere o art. 10, inciso 1 da Lei n 23.049, por haver agido em virtude de obedincia devida.2524 25

Ver Fraga (1989:117-20). Segundo o projeto de lei, tudo isso se fundamentava na interpretao de que os implicados haviam agido em estado de coero sob subordinao a superior e em cumprimento de ordens, sem faculdade ou possibilidade de inspeo, oposio ou resistncia a elas quanto sua oportunidade e legitimidade. Assim mesmo, no projeto se estabelecia a no-aplicabilidade do benefcio da obedincia devida aos delitos de violao, subtrao e ocultamento de menores ou substituio de seu estado civil e apropriao extorsiva de imveis.

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Este era, pois, o critrio de iseno de responsabilidade penal pelo qual o governo pretendia dar um ponto final aos julgamentos em curso e, com isso, acabar de vez com a reviso do passado. No obstante, no Senado, os parlamentares governistas e alguns partidos provinciais introduziram uma substancial modificao no projeto enviado pelo governo, ampliando o alcance da no-punio por obedincia devida aos oficiais superiores que no fossem comandantes-em-chefe, chefes de zona militar, chefes de subzona, ou chefes de fora de segurana, policial ou penitenciria, caso no se chegasse concluso judicial, antes de transcorridos 30 dias da promulgao desta lei, de que tiveram capacidade decisria ou participaram da elaborao de ordens. Com essa modificao, em 5 de junho de 1987 o Congresso sancionou a Lei n 23.521 de delimitao do alcance do dever de obedincia, livrando de processo a maioria dos militares imputados nos julgamentos em curso. Com efeito, at dezembro de 1988, dos aproximadamente 450 militares, policiais e civis que no momento da promulgao da Lei de Obedincia Devida estavam sendo processados judicialmente, s ficaram enquadrados nessa condio 15 generais e dois almirantes, todos na reserva.26 Por sua vez, em 1983, a redefinio das relaes civis-militares em funo da imposio do controle civil sobre as Foras Armadas implicava, entre outras coisas, a reformulao dos parmetros institucionais que regulavam a defesa nacional e, em seu quadro, o papel institucional das Foras Armadas. Concretamente, isso supunha a anulao da legislao ento vigente e a sano de um novo instrumento legal que assentasse a defesa nacional e as organizaes armadas do Estado sobre novas bases conceituais e institucionais, o que, por sua vez, implicava desmilitarizar a segurana interna e privilegiar a defesa nacional como o mbito de organizao e atuao das Foras Armadas. No obstante, e apesar da importncia do tema, s em 13 de abril de 1988 se sancionou a Lei n 23.554, de Defesa Nacional. Esta definiu defesa nacional como a ao estatal destinada soluo daqueles conflitos que requerem o emprego das Foras Armadas, de forma dissuasiva ou efetiva, para fazer frente a agresses de origem externa. Desse modo, as Foras Armadas foram institudas como instrumento militar da defesa nacional e esta passou a ser um mbito de competncia institucional particular e diferente do correspondente segurana interna.27 Um aspecto relevante da sano da Lei n 23.554 foi o fato de esta resultar de um amplo consenso partidrio, depois de um longo trmite parlamentar, no qual no foram poucas as presses castrenses para obst-la. Isso deixou cla26 27

Fraga (1989). Ademais, nesta lei, determinou-se que a segurana interna fosse regida por uma lei especial e estabeleceu-se que as questes relativas poltica interna do pas no podiam constituir hipteses de trabalho dos organismos de inteligncia militar.

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ro que os militares no contavam com suficiente poder poltico para impor condies s autoridades governamentais e parlamentares quando estas atuavam de forma coligada e assumindo posies convergentes em um tema to importante para a institucionalizao democrtica. Contudo, no levou muito tempo para que os objetivos que levaram promulgao da Lei n 23.554 passassem por profunda reviso e reformulao. Em fins de janeiro de 1989, ou seja, uma semana depois de cerca de 40 militantes do pequeno grupo de esquerda Movimientos de Todos por la Patria (MTP) protagonizarem a violenta invaso do 3 Regimento de Infantaria do Exrcito, no bairro de La Tablada, em Buenos Aires, o presidente Alfonsn promulgou o Decreto n 83/89, criando o Conselho de Segurana como rgo de assessoramento presidencial em matria de segurana interna e, particularmente, de ao anti-subversiva. Os comandantes das Foras Armadas compunham esse conselho. Esse decreto foi reforado em 10 de maro de 1989, quando o mandatrio promulgou o Decreto n 327/89, estabelecendo as bases institucionais para prevenir e evitar a formao ou a atividade de grupos armados cuja atitude ponha em perigo a vigncia da Constituio Nacional, ou atente contra a vida, a liberdade, a propriedade ou a segurana dos habitantes da nao. Para a efetivao de tais medidas, a norma fixava que o presidente da nao contasse com o assessoramento do Conselho de Segurana criado pelo Decreto n 83/89. Assim, com essas duas normas o governo rompeu o acordo de base que havia propiciado a sano da Lei n 23.554, posto que elas permitiam a interveno das instituies militares em aes destinadas a pr fim s atividades de grupos terroristas.28 Linhas de pensamento semelhantes ditaram a orientao militar de Alfonsn quanto questo da reestruturao castrense. A inteno de reformar a rea da defesa constava do programa de governo da UCR.29 Assim, em um primeiro momento, o governo viabilizou uma srie de mudanas significativas na estrutura de comando das Foras Armadas, designando o Ministrio da Defesa como principal instncia de gesto institucional des28

Alfonsn optou por essa sada em nome da estabilidade institucional. Mas a invaso de La Tablada no significou o ressurgimento do fenmeno subversivo na Argentina. Tratou-se de um fato isolado, produzido por um grupo minsculo e sem ramificaes nem insero poltica. O que, por certo, tornava vulnervel a estabilidade institucional era o desajuste econmico e social existente nessa poca, que alguns meses mais tarde provocou a sada prematura de Alfonsn do governo. Em conseqncia, aqueles decretos responderam, antes, ao impulso concessivo com que o governo radical considerou a questo militar durante os cinco anos e meio de sua gesto. 29 Nesse programa de governo, a UCR propunha-se conseguir um novo tom moral entre os militares, redimensionar e desenvolver as trs Foras Armadas, modernizar sua organizao funcional e operacional, re-hierarquizar o Estado-Maior Conjunto (Emco), unificar as doutrinas e as estratgias de planejamento, capacitar seus quadros e desburocratizar sua estrutura orgnica; em suma, promover uma profunda reestruturao orgnico-funcional nas Foras Armadas.

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sas foras e os estados-maiores gerais como escalo bsico para sua gesto operacional.30 No obstante, o projeto de reestruturao orgnico-funcional das Foras Armadas, que, durante os primeiros meses do governo radical, o ministro da Defesa, Ral Borrs, e o titular do Emco, general Fernndez Torres, tentaram viabilizar, foi rapidamente abandonado aps a morte do primeiro e a sada do cargo do segundo. As reformas efetuadas foram parciais e levadas a cabo em um clima marcado pelo antagonismo militar originado, principalmente, pelo repdio castrense aos julgamentos e pela falta de firmeza governamental, sendo insuficientes para produzir as mudanas estruturais planejadas com o fito de fazer frente profunda crise profissional por que passavam as Foras Armadas. Essa insuficincia, por seu turno, manifestou-se em relao a outras duas questes importantes, como a da administrao das passagens para a reserva e das promoes das cpulas das Foras Armadas e a dos gastos oramentrios destinados defesa. No que se refere ao primeiro aspecto, houve uma permanente renovao das chefias militares. Com efeito, durante toda a gesto alfonsinista, passaram para a reserva 80 generais, 33 almirantes e 47 brigadeiros, e foram promovidos 53 generais, 33 almirantes e 34 brigadeiros, o que, na verdade, diminuiu as chances de uma relao estvel do governo com as Foras Armadas.31 Quanto questo oramentria, o governo promoveu uma considervel reduo nos gastos militares. Em 1983, esses gastos representavam 3,47% do PIB, enquanto que em 1984 caram para 2,31%, em 1985 e 1986, para 2,30%, em 1987, para 2,28% e em 1988, para 2,12%. Alm disso, tal processo se deu no contexto de uma brusca reduo do gasto pblico e de uma paralisao geral da atividade econmica, o que, em seu conjunto, fez com que a referida reduo fosse superior a 50% em termos reais.32 Contudo, essa queda dos gastos militares no se fez acompanhar de medidas para30

Essas mudanas consistiram na supresso dos cargos de comandante-em-chefe das trs foras e na criao dos cargos de chefe de estado-maior geral de cada fora, como escalo hierrquico superior de cada uma delas; na hierarquizao do Emco como instncia mais importante da conduo militar das Foras Armadas, concentrando o comando castrense, o emprego conjunto e a integrao das foras; na transferncia para o Ministrio da Defesa da atribuio de decidir sobre nomeaes, deslocamentos, baixas e passagem reserva dos oficiais superiores; na transferncia para o Ministrio da Defesa do controle acionrio das empresas pertencentes Direccin General de Fabricaciones Militares que estava subordinada ao Exrcito e de todas aquelas cuja propriedade cabia s Foras Armadas; e na implementao de um novo sistema de planejamento, programao e oramento na rea desse ministrio, mediante o qual se melhorou substancialmente a gesto e o controle dos recursos oramentrios na rea da defesa. Alm dessas, no foram muitas as mudanas efetuadas. Em outubro de 1984 decidiu-se a dissoluo do I Corpo de Exrcito, mas as duas grandes unidades que o compunham apenas foram remanejadas para outros corpos. 31 Fraga (1989:168-70). 32 Scheetz (1995).

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reorganizar as instituies armadas, readaptando-as s necessidades econmicas e oramentrias do pas, o que acentuou a crise militar. Quanto atitude governamental frente s rebelies castrenses ocorridas durante a gesto radical, as diretrizes seguidas no pareceram distanciarse dos dficits observados nos outros aspectos analisados. As tenses e os conflitos que se vinham desenvolvendo no interior dos quartis desde a derrota das Malvinas, somados s limitaes oficiais para estabilizar as relaes civis-militares, explodiram com a primeira rebelio cara-pintada, ocorrida em abril de 1987, e se estenderam ao sistema poltico. A essa rebelio, conhecida como Rebelio da Semana Santa, seguiram-se outras, como a de Monte Caseros, em janeiro de 1988, e a de Villa Martelli, em dezembro de 1988.33 Durante o primeiro levante, os rebeldes comandados pelo tenentecoronel Aldo Rico pediram a destituio do chefe da fora e reivindicaram uma sada poltica para os julgamentos em curso, esclarecendo que o movimento no tencionava dar um golpe de Estado, nem supunha uma ao contra as autoridades constitucionais, mas que se tratava de um problema interno do Exrcito. De qualquer modo, a gravidade dos acontecimentos causou uma rpida mobilizao popular em defesa da ordem institucional. Por seu turno, o governo, que inicialmente havia descartado a possibilidade de fazer concesses aos rebeldes, dialogou com estes e negociou os termos para o fim do levante.34 As outras rebelies ocorridas durante a gesto alfonsinista foram pipocando medida que se agravava o conflito surgido em abril de 1987 entre os caras-pintadas e o comando do Exrcito.35 Diante do agravamento da situao, as medidas governamentais no se revelaram eficazes para solucionar a crise. Primeiro, o governo no percebeu que essas rebelies no se limitavam a reivindicar uma soluo poltica para os julgamentos em curso dos militares que haviam cometido crimes durante a represso ilegal, mas que significavam um confronto entre setores que competiam pela conduo do Exrcito e que, alm disso, tinham vises e estratgias diferentes para operacionalizar um objetivo comum, dado pela rearticulao do protagonismo poltico do Exrcito. Segundo, o tipo de soluo ensaiado pelo governo deixou aberta e latente tal confronto na medida em que no promoveu a desarticulao de um dos setores em luta e, em particular, no impli33 34

Examinei mais a fundo esse processo em Sain (1994). Ibid., cap. IV. 35 No decorrer das trs primeiras rebelies, aumentou o nmero de militares delas participantes 150 na da Semana Santa, 350 na de Monte Caseros e mil na de Villa Martelli , sua durao ampliou-se quatro dias na primeira, cinco dias na segunda e oito dias na terceira , mais unidades se envolveram nos fatos e elevou-se o nvel hierrquico dos que as encabearam. Ao fim desses levantes, foram processados 432 militares, entre oficiais e suboficiais. A maioria desses processos deu lugar a sanes disciplinares no mbito da Justia Militar. Em princpios de 1990, os processos existentes no passavam de 100 e apenas se mantinham 340 sanes disciplinares.

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cou a excluso do setor rebelde do Exrcito.36 Por fim, a atitude do governo em relao crise militar e s rebelies caras-pintadas, longe de permitir a superao do conflito poltico surgido e da fragmentao institucional existente, contribuiu decisivamente para o aprofundamento da crise.

O governo de Carlos Menem (1989-98)Em 14 de maio de 1989, o candidato presidencial do Partido Justicialista (PJ), Carlos Menem, venceu as eleies gerais presidenciais por ampla margem em relao ao candidato radical, Eduardo Angeloz. Segundo o cronograma constitucional, o eleito devia assumir o cargo presidencial em 10 de dezembro desse ano, mas a profunda crise econmico-social desencadeada entre os meses de fevereiro e junho de 1989 e a incapacidade governamental de control-la anteciparam a sada de Alfonsn do governo nacional, e este passou o governo a Menem em 8 de julho.37 Diferentemente do ocorrido durante o mandato de Alfonsn, em fins dos anos 1980 os militares no eram mais vistos como uma ameaa ordem institucional democrtica, nem eram atores com capacidade de vetar e/ ou pressionar o poder poltico; por isso, as Foras Armadas no ocuparam um lugar privilegiado entre as prioridades governamentais. Estas, ao contrrio, se concentraram na necessidade de conter o colapso econmico que se instalou em meio feroz hiperinflao eclodida no incio de 1989, fazendo com que a administrao menemista se preocupasse em resolver a profunda crise fiscal e em reorientar a economia local aplicando um modelo de reforma capitalista de carter ortodoxo.3836

As negociaes que puseram fim ao primeiro levante implicaram a passagem para a reserva do chefe do Emge, general Ros Ere e sua substituio pelo general Dante Caridi, que no se identificava com os caras-pintadas, mas como subchefe do Exrcito foi nomeado o general Fausto Gonzlez, aceito pelos rebeldes. Finalizada a rebelio, Rico e seus seguidores foram detidos e processados pela Justia Militar, sendo que em 5 de junho desse ano foi sancionada a Lei de Obedincia Devida. Por seu turno, o trmino do levante de Villa Martelli ocorreu mediante negociaes nas quais o governo s participou como mero observador. Tratou-se de um acordo militar, levado a cabo na tarde do domingo, 4 de dezembro de 1988, entre o coronel Seineldn na ocasio, chefe dos rebeldes e o general Caridi. Como o eixo do conflito e das negociaes girou em torno do confronto interno do Exrcito entre os caras-pintadas e o comando dessa fora, os termos do acordo determinaram a sada de Caridi do Emge, a aplicao de uma anistia interna aos processados pelos levantes anteriores e o julgamento de Seineldn como nico responsvel por esse levante. O governo, que sempre negou a existncia desse pacto militar, submeteu Seineldn Justia Militar como nico responsvel pelo levante e decidiu manter o general Caridi frente da instituio, ainda que em pouco tempo tenha sido substitudo no cargo pelo general Gassino. 37 Ver Palermo & Novaro (1996). 38 Ver Smith (1993), Bouzas (1993) e Bustos (1995).

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Nesse contexto, a diretriz poltica adotada pelo presidente Menem para lidar com a questo militar seguiu duas grandes orientaes. Numa primeira etapa, concentrou-se na soluo dos dois principais problemas surgidos durante a gesto alfonsinista e que, em 1989, ainda configuravam questes altamente conflituosas nas relaes civis-militares. O primeiro relacionava-se com a ainda persistente reivindicao castrense de uma soluo poltica para a reviso do passado, isto , a demanda de alguma medida governamental anistia, comutao de penas e/ou indulto que beneficiasse os poucos militares que ainda estavam sendo processados judicialmente e os ex-comandantes do PRN j condenados. O outro problema era a ativa presena, no Exrcito, do setor poltico cara-pintada, que protagonizara trs rebelies durante o governo radical e que pretendia assumir o comando da arma. Numa segunda etapa, a poltica militar menemista se limitou a iniciativas em matria castrense decorrentes fundamentalmente do modelo de reforma econmica e da poltica de insero internacional formulada pelo governo, tentando adaptar as instituies armadas e a poltica militar aos parmetros centrais da poltica externa e s novas condies econmicooramentrias vigentes no pas. O rumo seguido por Menem com relao problemtica dos julgamentos diferiu daquele seguido por Alfonsn.39 Durante a campanha eleitoral que antecedeu sua eleio a presidente da nao, Menem defendeu a necessidade de se chegar pacificao nacional resolvendo de uma vez por todas os mais graves problemas que enfrenta o pas, entre eles a questo militar. J no governo, para o mandatrio peronista, a questo central consistia em dar algum tipo de soluo s condenaes e aos processos pendentes envolvendo membros da ativa ou da reserva das Foras Armadas, de maneira que essa questo e suas eventuais derivaes no gerassem nenhum tipo de conflito poltico com as instituies castrenses. Para tanto, em fins de setembro de 1989, Menem declarou publicamente que estava disposto a acabar com as seqelas dos julgamentos, indultando no s os militares que ainda estavam sendo processados e os ex-comandantes condenados, mas tambm os processados e condenados pelas rebelies ocorridas durante o perodo de Alfonsn.40 Pretendia pr um fim em tal situao e estabelecer, conseqentemente, novos padres de relacionamento com os militares. Em conseqncia desse39 Durante a gesto de Alfonsn, Carlos Menem havia-se oposto a todo tipo de medida que tendesse a restringir ou dar um ponto final na reviso judicial das violaes aos direitos humanos cometidas durante a represso ilegal. Em 30 de novembro de 1986, em pleno debate pblico sobre a Lei de Ponto Final, Menem sustentou que no era partidrio nem do Ponto Final nem da anistia. Em dezembro de 1988, reiterou que no estava de acordo com a anistia. 40 Em junho de 1989, 460 membros das Foras Armadas estavam sendo afetados por algum tipo de deciso judicial ou sano disciplinar: havia sete condenaes e 18 processos por crimes cometidos durante o combate subverso; trs condenaes em funo da Guerra das Malvinas; e 92 processos em curso e 340 sanes disciplinares de militares envolvidos nos trs levantes caraspintadas ocorridos at o momento (Fraga, 1989:162-3).

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anncio, em 6 de outubro de 1989, Menem promulgou os decretos ns 1.002/ 89, 1.003/89, 1.004/89 e 1.005/89, indultando militares, policiais e civis condenados e/ou processados por delitos cometidos durante sua participao na represso subverso e ao terrorismo entre os anos de 1976 e 1983; os civis pertencentes a organizaes guerrilheiras na dcada de 1970 que haviam sido condenados e/ou processados por sua participao em aes subversivas ou terroristas; os militares e civis indiciados, processados e/ou condenados por seu envolvimento nos trs levantes militares realizados at o momento; e os militares responsveis pela conduo poltica e castrense do conflito blico no Atlntico Sul. Posteriormente, em 29 de dezembro de 1990, promulgou o Decreto n 2.741/90, indultando os ex-comandantes da ltima ditadura que haviam sido condenados em 1986. Nesse mesmo dia, tambm promulgou o Decreto n 2.742/90, indultando o ex-chefe da organizao guerrilheira Montoneros, Mario Eduardo Firmenich. Com isso, Menem ps em prtica sua poltica de pacificao e reencontro nacional. Essas medidas tiveram um duplo efeito