Denis Coitinho Significado Razões e Contexto

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[T] Significado, razões e contexto [I] Meaning, reasons and context [A] Denis Coitinho * Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Programa de Pós-Graduação em Filosofia, São Leopoldo, RS, Brasil [R] Resumo O objetivo central deste artigo é apresentar uma posição cognitivista e contextualista no que diz respeito à atribuição de significado aos conceitos normativos de dever, cor- retoe erradousados em sentenças cotidianas. Argumentaremos que esses concei- tos normativos são melhor compreendidos em termos de razões para agir. Após várias distinções iniciais de esclarecimentos, apontaremos para uma estratégia naturalizada da normatividade não reducionista, bem como para um procedimento de isolamento visando à justificação dos juízos normativos. Por fim, defenderemos que a atribuição de verdade aos juízos normativos se dará em um âmbito de convergência prática. [P] Palavras-chave: Significado. Razões para ação. Contexto. [#]# [#] [B] * DC: doutor em Filosofia, e-mail: [email protected] Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 27, n. 40, p. 297-324, jan./abr. 2015 DOI: 10.7213/aurora.27.040.AO03 ISSN 0104-4443 Licenciado sob uma Licença Creative Commons

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  • [T]

    Significado, razes e contexto [I]

    Meaning, reasons and context

    [A]

    Denis Coitinho*

    Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Programa de Ps-Graduao em Filosofia, So Leopoldo, RS, Brasil

    [R]Resumo

    O objetivo central deste artigo apresentar uma posio cognitivista e contextualista no

    que diz respeito atribuio de significado aos conceitos normativos de dever, cor-reto e errado usados em sentenas cotidianas. Argumentaremos que esses concei-tos normativos so melhor compreendidos em termos de razes para agir. Aps vrias

    distines iniciais de esclarecimentos, apontaremos para uma estratgia naturalizada

    da normatividade no reducionista, bem como para um procedimento de isolamento

    visando justificao dos juzos normativos. Por fim, defenderemos que a atribuio de

    verdade aos juzos normativos se dar em um mbito de convergncia prtica. [P]Palavras-chave: Significado. Razes para ao. Contexto. [#] # [#]

    [B]

    * DC: doutor em Filosofia, e-mail: [email protected]

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 27, n. 40, p. 297-324, jan./abr. 2015

    DOI: 10.7213/aurora.27.040.AO03 ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

  • Abstract

    The main aim of this paper is to show a cognitivist and contextualist view with regard to the

    attribution of meaning of the normative concepts of ought, right, wrong used in or-dinary statements. We will argue that these normative concepts are best understood in terms

    of reason for actions. After several initial clarifications of distinctions, we will point out to a

    non-reductionist naturalized strategy of normativity, as well a procedure of isolation aimed

    the justification of normative judgments. Finally, we will hold that the attribution of truth to

    normative concepts will take place in a framework of practical convergence.[#][K]Keywords: Meaning. Reasons for action. Context.

    I

    Considere as seguintes sentenas:

    Eu devo levar o guarda-chuva. Voc deve cumprir sua promessa. errado estuprar e sequestrar. Dizer que 15 o resultado da adio de 10 e 3 errado. Solidariedade a atitude correta nessa hora de necessidade. correto usar o cinto de segurana na estrada.

    Sentenas como as acima referidas so usadas de forma habitu-al em nossa linguagem cotidiana. Mas, quando usamos esses termos normativos de dever, correo e erro, qual seria o significado que atribumos a eles, quer dizer, o que as pessoas parecem significar quando usam esses conceitos normativos no discurso corrente? Ser que esses termos teriam uma unidade semntica ou o seu significa-do seria sempre relativo a algum tipo de particularidade? Em outros termos, ser que seu significado atribudo seria sempre indetermina-do por estar vinculado estrutura emocional do agente ou se pode-ria falar em algum tipo de determinao que no estivesse baseada

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  • na reivindicao da existncia de uma propriedade independente da mente humana? Seria possvel afirmar um tipo de determinao de conceitos normativos sem a defesa de um referente metafsico estranho uma descrio naturalstica do mundo, mas, antes, vinculada a uma concepo que destaca o papel do contexto para a atribuio do signifi-cado? Argumentarei neste artigo em favor dessa possibilidade.

    Veja que esse problema da indeterminao do significado no parece ser exclusivo dos conceitos normativos, uma vez que se pode encontrar uma dificuldade similar quando tentamos compreender, tambm, a atribuio de significado de termos no normativos usados corriqueiramente. Por exemplo, quando um professor diz 25 + 27, o que o sinal de adio significa? Haveria algo a ser descrito de forma objetiva ou apenas encontraramos uma prescrio de adicionar os n-meros 25 e 27 e, dessa forma, chegar ao resultado 52? Mas, em sendo assim, o sinal de adio no deveria ser tratado apenas em termos na-turais, pois seu significado pareceria tambm possuir uma fora nor-mativa que obrigaria o agente a agir de certa maneira. O problema a que se chegaria por consequncia que no se poderia atribuir verdade ou falsidade a essas sentenas, uma vez que elas seriam compostas de termos fortemente prescritivos, o que implicaria em sua subjetividade1.

    Meu objetivo aqui defender uma posio cognitivista a respei-to das sentenas morais e no morais que fazem uso desses conceitos normativos, isto , que esses juzos normativos podem ser tomados como verdadeiros ou falsos, de forma a tratar a atribuio de signifi-cado dos conceitos de dever, correo e erro e outros similares como possuindo uma descrio natural em conexo com a prescritivi-dade, descrio essa que estar ambientada no contexto de sua criao

    1 Sobre o problema de como seguir uma regra, ver Wittgenstein (2001, 185). Ver, tambm, o captulo 2 de Kripke (1982). Um problema similar foi apontado por Quine ao identificar a indeterminao do significado via indeterminao da traduo, de forma que Gavagai poderia significar Coelho, mas, tambm, Parte do coelho ou Fase do coelho, dependendo do contexto de sua enunciao, de forma que a sentena Gavagai significa coelho no poderia ser tomada como verdadeira ou falsa. Ver Quine (1960, 12, p. 51-57).

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  • e seu uso2. Em outras palavras, defenderemos uma posio cognitivista e contextualista, de forma a considerar que os agentes podem possuir um conhecimento moral e poltico contextualizado pela histria e pela cultura. Um importante papel da filosofia moral, penso, mostrar que ns poderamos obter e usar esse conhecimento cotidianamente e que, em o usando, provavelmente nossas vidas melhorariam. Dessa forma, nossa linha de argumentao apontar para uma estratgia de natura-lizao da normatividade, bem como para um procedimento de iso-lamento para a justificao dos juzos normativos, a fim de conectar a verdade a um contexto de convergncia prtica. Para tal empreendi-mento ser possvel, vrias distines e delimitaes iniciais se fazem necessrias. Mas, antes, importante esclarecer o que estou entenden-do pelos termos normativos de dever, correto e errado.

    II

    Quando digo que Eu devo levar o guarda-chuva ou que Eu devo cumprir a promessa, o que o termo dever parece significar? O en-tendimento comum quando eu digo que devo levar o guarda-chuva o mesmo que dizer que eu tenho uma razo para levar o guarda-chuva, da mesma forma que dever cumprir a promessa significaria apenas ter uma razo para cumprir a promessa. Mas o que seria uma razo? Em um sentido primitivo, razo uma considerao que conta em favor ou contra algo, tal como Scanlon considera, isto , uma razo uma considerao que conta em favor de se ter certa atitude ou agir de cer-ta forma3. Por exemplo, levar o guarda-chuva ou cumprir a promessa

    2 Essa compreenso de significado que estou usando prxima concepo de Gibbard em sua tentativa de definir o significado em termos normativos e em termos empricos. Em Meaning and normativity, Gibbard (2012) faz referncia a sua concepo de significado e de como ela se aproxima da apresentada por Lance e Hawthorne, que defendem que um ato de fala de fazer uma afirmao de significado normativo, isto , dizer o que algo significa normativo e, sendo assim, as afirmaes de significado teriam mais em comum com as sentenas de moralidade do que com as sentenas da cincia. Ver Gibbard (2012, p. vii-xi). Ver, tambm, Lance e Hawthorne (1997, p. 2).

    3 Scanlon defende uma concepo primitiva de razo, de forma que uma razo uma considerao que conta em favor de algo para uma dada questo. Ver Scanlon (1998, p. 18, 2014, p. 1-15). Parfit e Nagel defendem uma posio similar. A esse respeito, ver Parfit (2011, p. 31) e Nagel (2012, p. 101-105).

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  • significaria identificar um fato que serviria de base para a ao. Nesses dois casos especficos, estar nublado um fato para se levar o guarda--chuva, da mesma forma que querer ser honrado um fato para se cumprir a promessa. Veja-se que o conceito de dever poderia, ento, ser substitudo pela expresso ter uma razo, que, por sua vez, po-deria ser substituda pela expresso reconhecer um fato. Assim, Eu devo levar o guarda-chuva parece ser intercambivel com a sentena Eu tenho uma razo para levar o guarda-chuva, que, por sua vez, pa-rece intercambivel com a sentena Eu reconheo o fato de estar nublado para levar o guarda-chuva.

    E os termos correto e errado? Da mesma forma que dever, correto e errado tambm parecem poder ser explicados em termos de razes para a ao. Dizer que errado estuprar seria o mesmo que dizer que se tem uma razo para no se estuprar, da mesma forma que dizer que correto usar o cinto seria equivalente a dizer que se tem uma razo para se usar o cinto, que igual a dizer que se reconhece o fato da im-portncia da segurana. J vimos que as razes para a ao so tomadas como fatos que contaro como fundamentos da ao. Mas, qual a natu-reza mesma que esses fatos teriam e como seria possvel conhec-los? Esses fatos poderiam ser tomados como verdadeiros ou falsos ou seu reconhecimento seria puramente arbitrrio, ou, ainda, poderiam apenas expressar uma atitude de aceitao de imperativos, normas ou a adoo de um plano, ou mesmo a expresso de uma aprovao? Mesmo reco-nhecendo a relevncia fulcral das questes metafsicas e epistemolgi-cas envolvidas aqui, neste artigo teremos por foco a questo semntica a respeito da atribuio de significado a esses fatos, problematizando as implicaes de uma posio cognitivista e contextualista.

    Mas, agora, voltemos a nosso exemplo anterior. J vimos que esse dever significa ter uma razo para levar o guarda-chuva ou cumprir a promessa, que, por sua vez, significa reconhecer o fato de estar nublado para levar o guarda-chuva e reconhecer o fato de querer ser honrado para cumprir a promessa. Agora, precisamos acrescentar que defenderemos que esse fato precisa ser tomado como verdadeiro ou correto para contar como uma razo para um agente. Por exemplo, estar nublado precisar ser um fato tomado como

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  • verdadeiro para contar como uma razo, da mesma forma que que-rer ser honrado precisar ser um fato tomado como correto para va-ler como uma razo para a ao do agente. Voltaremos a essa questo posteriormente. Mas, antes, importante especificar algumas condi-es adicionais para entendermos esse modelo de razes para ao. A primeira que o fato que conta como uma razo para ao deve estar conectado ao desejo do agente particular. Por exemplo, o agente precisa desejar ficar seco para que o fato de estar nublado conte como uma razo para ele levar o guarda-chuva. Em um caso em que ele(a) esteja voltando de uma longa estadia em uma cidade muito quente e seca por exemplo, voltando de Cuiab no ms agosto , estar nubla-do pode contar como uma razo para ele(a) deixar o guarda-chuva em casa. A segunda condio que o agente precisa ter uma capacidade racional para reconhecer esse fato. Por exemplo, ter capacidade per-ceptual, inferencial e de memria etc. condio necessria para ver que est nublado e inferir que quando est nublado chove, a partir das lembranas de casos em que dias chuvosos eram precedidos por tem-po nublado. Importante ressaltar que eu estou considerando o tomar algo como uma razo para fazer uma ao como um estado psicolgico natural, de forma semelhante a como os expressivistas consideram o estado mental de adotar um plano ou aceitar uma norma4.

    Antes de passar para a prxima seo, em que pretendo fazer as distines entre propriedades e conceitos, significado solipsista e comunitrio e conceitos normativos morais e no morais, gostaria de destacar o que foi dito at aqui e que pode ser sintetizado da seguinte forma: dizer que um sujeito S tem um dever para fazer uma ao a o mesmo que dizer que S tem uma razo para fazer a, que o mesmo que dizer que S reconhece um fato para fazer a, que equivalente a dizer que S tem uma crena p que uma razo para fazer a. Dado que essa crena p de S estar relacionada com certas circunstncias e tempo especfico, temos a seguinte formulao:

    4 Para os expressivistas, um juzo moral um estado mental que expressa a adoo de um plano ou a valorao de uma norma. Por exemplo, para Gibbard (2012, p. 169-170), crenas de deveres so como estados mentais de planejar, e, assim, juzos normativos que usam a palavra dever devem ser tomados em termos de planos. Para Blackburn (1998, p. 48-51), quando as pessoas valoram coisas, elas expressam a si mesmas em termos do que bom, mau, obrigatrio, correto etc.

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  • (1) O dever de S significa a crena p ser uma razo para S, em circunstncias C e tempo t, fazer a.

    Como a condio de racionalidade humana parece implicar na condio de intencionalidade da ao, teramos:

    (2) A crena p uma razo para S, em circunstncias C e tempo t, ter a inteno i de fazer a.

    III

    Aps essas consideraes iniciais sobre a atribuio de significa-do dos conceitos normativos, deixem-me fazer referncia a uma impor-tante distino entre propriedades e conceitos. Essa distino muito relevante para os nossos propsitos de defender a verdade ou correo de juzos normativos sem apelar para a existncia de uma referncia metafsica que seria o fundamento dessa verdade e, muito menos, de-pender de uma intuio especial para reconhecer essas propriedades. Quando falamos de conceitos, estamos falando do contedo de nossos pensamentos; entretanto, quando falamos de propriedades, estamos falando da estrutura do mundo5. fcil ver essa distino com uso de alguns exemplos. Comecemos com a palavra cor. Pode-se definir cor como a caracterstica de uma radiao eletromagntica visvel de comprimento de onda situado num pequeno intervalo de espectro ele-tromagntico [...](FERREIRA, 1986, p. 474). Veja-se que quando de-finimos cor, o que fazemos estabelecer um conceito de cor como um fenmeno tico relacionado a diferentes comprimentos de onda do espectro eletromagntico. Por outro lado, quando o cientista identifica que essa faixa varia entre 380 e 750 nanmetros e, assim, diz que a faixa

    5 Gibbard (2012, p. 25-31) apresenta uma interessante distino entre propriedades e conceitos similar que estamos fazendo. Inclusive, ele faz referncia distino fregeana entre sentido (Sinn) e referente (Bedeutung), de forma que se pode ter dois sentidos ou conceitos distintos de Hspero e Fsforo, por exemplo, e ambos os conceitos referirem mesma propriedade, a saber, o planeta Vnus. O sentido da expresso Hspero Hspero e Fsforo Fsforo, bem como da expresso Hspero Fsforo no dado pelo referente Vnus, e, assim, o sentido seria mais que o referente. Ver, tambm, Frege (1952, p. 23-25).

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  • visvel da cor varia entre 380 a 750 nanmetros, ele est explicando uma propriedade no mundo. Nesse caso, o conceito de cor como onda corresponde faixa de 380 a 750 nanmetros, da mesma forma que o conceito de gua como lquido incolor, essencial vida, corresponde propriedade natural de H2O.

    Mas, no caso do conceito de justia, por exemplo, essa corres-pondncia parece no ocorrer, pois no se teria uma propriedade na-tural da Justia a ser descrita pelo cientista, embora seja bastante com-preensvel explicar o justo em termos do que conforme o direito ou do que respeita a liberdade e igualdade etc. O caso da justia bastante esclarecedor para o que estamos discutindo, pois ele mostra, inclusive, que temos diversos conceitos do que seja justia, muitos deles antitticos, como no caso de tomar o justo como o que res-peita a igual liberdade, ou no caso de compreender o justo como o que respeita a igualdade equitativa de oportunidades. Talvez a inexistncia dessa propriedade natural da Justia explique, ao menos parcialmente, o porqu de ainda no termos conseguido chegar a um entendimento comum do que seja o justo.

    Veja-se que, no caso do conceito de dever, essa correspondn-cia tambm parece no ocorrer, da mesma forma que parece no ocor-rer com os conceitos de correto e errado, pois no se teria uma propriedade natural do Dever ou da Correo ou do Erro, embora seja compreensvel explicar o dever em termos de ter uma razo para ou ter uma obrigao para fazer algo, da mesma forma que compreensvel explicar o correto em termos de uma ao que se tem fortes razes para realizar e que gera satisfao. Isso parece mos-trar que o puro referencialismo no pode explicar todos os objetos do pensamento, e isso ainda mais significativo se pensarmos no mbito da linguagem moral. Tomar um juzo moral como verdadeiro no , necessariamente, fazer referncia a nenhuma propriedade metafsica estranha a nosso mundo natural e social. Pelo contrrio, tomar o juzo moral de dever ser solidrio como verdadeiro, por exemplo, apenas implicaria apontar para uma forte razo que um agente moral tem em fazer certa ao, o que conduzir ao reconhecimento do fato que ser tomado como correto, por exemplo, reconhecer o fato de que uma vida

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  • bem-sucedida exige um comportamento virtuoso. Essa verdade no se basear na correspondncia; antes, ela ser uma questo de convergn-cia prtica, como veremos posteriormente.

    Outra distino muito importante para nossa investigao en-tre significado solipsista e significado comunitrio. Nossa afirmao de que o uso dos conceitos normativos tomado como razes para a ao e de que tomar algo como uma razo implica em tomar um fato como verdadeiro est ancorada na compreenso de que essa atribuio de significado no pode ser solipsista, isto , que ela no poderia ser com-preendida como uma propriedade intrnseca na mente do agente, mas, preferencialmente, que essa atribuio de significado melhor enten-dida como uma propriedade que envolve a comunidade integral do agente. Da mesma forma que no podemos falar com sentido de uma linguagem privada, a questo do significado s parece ser inteligvel se pensarmos em termos de um significado comunitrio. Em termos on-tolgicos, a defesa de um significado solipsista implicaria na defesa da existncia de uma propriedade no mundo natural que fosse um signifi-cado e que seria capturada pela mente de um indivduo isolado. Como nossa descrio natural do mundo no conta com esse tipo de entida-des nem com essa capacidade mental, falar de significado guarda uma relao estreita com as exigncias que fazemos uns aos outros. E isso quer dizer que a sentena A solidariedade a atitude correta nessa hora de necessidade no contaria com uma propriedade metafsica de correo, mas com uma compreenso comum de que a solidarieda-de a atitude adequada a ser executada nessa circunstncia especfica de necessidade. Concordando com Dewey, o significado seria sempre compartilhado e incorporado, e isso parece implicar que ele no teria uma existncia psquica isolada, mas que seria uma propriedade do comportamento humano fundado na experincia6.

    Por fim, gostaria de tangenciar um contraste entre os conceitos normativos que so usados em sentenas morais dos que so usados

    6 A concepo que Dewey (1925, p. 166-207) defende que o significado deve chegar da experincia e, assim, estaria fundado na experincia sensrio-motora. Por sua vez, os significados incorporados so entendidos via recursos imaginativos para formar o pensamento abstrato e, dessa maneira, inclui algo comum entre as pessoas e os objetos, que uma comunidade de participao.

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  • em sentenas no morais. J vimos anteriormente que o uso dos concei-tos de dever, correto eerrado implicam em serem tomados como uma razo para ao, que, por sua vez, parece implicar em um reco-nhecimento de um fato que deve ser tomado como verdadeiro. Alm disso, algo contar como uma razo para ao est circunscrito ao desejo do agente e de sua capacidade de racionalidade. Isso parece explicar as sentenas normativas no morais, tais como as que dizem que eu devo levar o guarda-chuva, que errado dizer que 15 o resultado da adio de 10 e 3 e que correto usar o cinto de segurana. Mas quando usamos conceitos normativos em sentenas morais parece que tambm precisamos contar com uma capacidade moral do agente para reconhecer um dado fato. Por exemplo, quando dizemos que devemos cumprir a promessa, esse dever parece ser tomado como uma razo para a ao, o que parece implicar o reconhecimento da verdade do fato de que queremos ser honrados, e isso explicaria o porqu de dever-mos cumprir a promessa. Alm do desejo e da capacidade racional para reconhecer esse fato, parece que o agente precisar contar com algo a mais, isto , precisar contar com uma capacidade moral, que pode ser compreendida como uma disposio para o reconhecimento de fatos com certo relevo. Vejamos como isso se daria.

    Observemos o seguinte quadro comparativo. Se tomarmos como referncia o modelo contratualista, o dever de cumprir a promessa pode ser visto como uma disposio para reconhecer aquilo que ra-zovel, como o que aceitvel por todos, isto , como uma disposi-o para identificar o que consensual e agir conforme essas regras. Se olharmos para o contratualismo de Scanlon, por exemplo, a resposta para essa questo que o princpio devemos cumprir a promessa pode ser tomado como um fato, em razo de ele no poder ser rejeitado razoavelmente7. Por outro lado, se tomarmos como referncia um mo-delo da tica das virtudes, o importante seria poder contar com uma disposio para reconhecer o fato de que querer ser honesto ou virtu-oso explicaria por que deveramos cumprir a promessa, o que parece

    7 Scanlon (1998, p. 189-197) defende que nosso pensamento sobre o certo e o errado est estruturado pelo objetivo de encontrar princpios que os outros, na medida em que tambm possuem esse objetivo, no poderiam razoavelmente rejeitar.

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  • conduzir a um desejo de ter certo tipo de carter8. Por um lado, o fato poderia ser tomado pelo o que no pode ser razoavelmente rejeitado; por outro, poderia ser tomado como aquilo que desejvel univer-salmente pelos agentes. Assim, razoabilidade e desejabilidade, nessa perspectiva, poderiam ser tomadas como capacidades necessrias para o reconhecimento do fato moral, quer dizer, como uma disposio para o reconhecimento desse fato, tanto de um ponto de vista externalista como de um ponto de vista internalista. Veja-se que isso diferente de tomar o dever como uma razo meio-fim para ao, tal como seria o reconhecimento do fato de querer a estabilidade social para cumprir a promessa ou de querer as vantagens de ser honrado e isso ser a razo para o cumprimento da promessa.

    Parece que algo transborda ao observarmos as razes morais em relao s razes meio-fim ou mesmo em relao s razes pro tanto9: um ponto de vista comum que ser uma razo conclusiva ou decisiva para a ao e que parece implicar em atitudes reativas ou autorrea-tivas, como indignao e culpa, ou mesmo exigncias por direitos e responsabilidades10. Mesmo considerando bastante relevante essa di-ferena observada, nosso estudo recair sobre as caractersticas espe-cficas da atribuio de significado aos conceitos normativos em geral. No restante desse artigo, buscaremos apresentar algumas estratgias para tentar responder a possveis objees endereadas a uma posio cognitivista, estratgias essas que buscaro conectar a verdade a um contexto de convergncia prtica.

    8 De forma geral, a tica das virtudes defende que uma ao correta aquela que seria praticada por um agente virtuoso, entendido como o que pode identificar os meios adequados para um fim bom. Em outras palavras, o agente virtuoso aquele que tem uma disposio para escolher acertadamente, o que implicar uma disposio para ter certo tipo de carter (virtuoso), que um padro comportamental desejvel por possibilitar uma vida bem-sucedida. Ver Foot (1978, p. 1-18) e McDowell (1979, p. 331-336).

    9 Broome (2013, p. 53) define uma razo pro tanto da seguinte maneira: Uma razo pro tanto para N (uma pessoa) fazer F (ao) algo que desempenha para F o papel em uma explicao refletida do porqu N deve fazer F, ou em uma explicao refletida do porqu N no deve fazer F [...]. O ponto central que uma razo pro tanto, embora tenha um peso considervel, no pode ser confundida com uma razo conclusiva.

    10 Estamos dizendo que uma razo moral um fato conclusivo para uma ao e que esse fato visto como o ponto de vista comum que pode ser percebido nas atitudes que os agentes tomam em relao aos outros e em relao a si prprios, o que parece apontar para a natureza prtica e interpessoal da moralidade. Ver Blackburn (1998, p. 1-23). Ver, tambm, Darwall (2013, p. 151-167), Korsgaard (1996, p. 11), Scanlon (2010, p. 56-88) e Nagel (1986, p. 138-140).

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  • IV

    Deixem-me retomar o que foi dito at o presente momento e adi-cionar um importante elemento em nossa formulao do que parece ser uma atribuio de significado aos conceitos normativos de dever, correto e errado. Quando algum afirma que errado dizer que 15 o resultado da adio de 10 e 3, parece que o termo errado significaria ter uma razo para desconfiar do resultado da operao da adio, que, por sua vez, parece significar reconhecer o fato de que 13 a res-posta adequada para dizer que 15 a resposta errada. importante acrescentar que, para contar como uma razo para o agente, esse fato precisa ser tomado como verdadeiro ou correto. Por exemplo, 13 ser a resposta adequada precisar ser um fato tomado como verdadeiro pelo agente para contar como uma razo para dizer que 15 o resultado er-rado, da mesma forma que respeitar a dignidade humana precisar ser um fato tomado como correto para servir como uma razo para no estuprar e sequestrar. O ponto aqui parece claro: apenas se tomarmos um fato como verdadeiro teramos uma razo conclusiva para fazer ou evitar uma dada ao. Se esse fato fosse tomado como provvel, ento parece que apenas poderamos contar com uma razo suficiente para a ao, o que poderia implicar em um deficit de normatividade. Com isso, podemos atualizar nossa formulao anterior da seguinte maneira:

    (3) Tomar p como verdadeira uma razo para S, em circunstn-cias C e tempo t, fazer a.

    E, ceteris paribus,

    (4) Tomar p como verdadeira uma razo para S, em circunstn-cias C e tempo t, ter a inteno i de fazer a.

    importante esclarecer que tomar um fato como verdadeiro uma razo conclusiva ou decisiva para a ao e no apenas uma razo suficiente ou uma razo pro tanto. Por exemplo, no tomar o fato de que correto respeitar a dignidade humana como verdadeiro poderia

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    implicar em uma concepo em que o agente deveria pesar razes para decidir seu curso de ao ou mesmo considerar a questo em uma pers-pectiva histrica ou comunitria. E, assim, esse fato seria tomado ape-nas como provvel ou garantido de certa forma, o que parece trazer por consequncia que apenas teramos uma razo limitada para fundamen-tar a ao. Mas, nos juzos normativos que estamos considerando, no parece haver alguma dvida a respeito desses fundamentos da ao. A importncia da segurana, bem como a regra aritmtica da adio, tomada no como provvel, mas como verdadeira em nosso cotidiano11. No estou afirmando que no haja limites em um conjunto de casos em que os fatos no possuiriam valores de verdade determinados, mas apenas um valor prima facie. Veja o caso em que encontramos razes al-ternativas que devem ser pesadas em um processo de deliberao, por exemplo, deliberando se o respeito pela vida humana mais importante ou no do que a autonomia, considerando o caso da moralidade ou imo-ralidade do aborto. Apenas estou dizendo que as verdades normativas parecem impulsionar o agente para ao e cobrar reaes apropriadas. Como dito acertadamente por Korsgaard, conceitos normativos existem porque ns temos problemas normativos, e temos problemas normati-vos porque temos capacidade de reflexo sobre o que devemos fazer e naquilo que devemos acreditar. Em suas palavras:

    Conceitos normativos como correto, bom, obrigao, razo so nossos nomes para solucionar os problemas normativos, para os quais estamos procurando uma soluo. E se em algum momento formos bem suce-didos em resolver esses problemas, ento, haver verdades normativas: isto , declaraes que empregam conceitos normativos corretamente (KORSGAARD, 1996, p. 47).

    11 Scanlon (2014, p. 107) faz uma distino importante entre relaes normativas fortes, que ele chamar de razes conclusivas e relaes normativas mais fracas, que ele chamar de razes suficientes. O fundamental ser identificar qual a razo mais forte em dada circunstncia C, por exemplo, p ou q. Se q for uma razo mais forte que p, ento o agente deve escolher fazer a ao por essa razo. As razes podem variar em sua fora, mas isso no significa que elas sejam opcionais. Parfit (2011, p. 32-33, 1984, p. ix-x; 443-454) faz uma distino semelhante entre razes decisivas, mais fortes, e razes suficientes. Quando se tem razes decisivas para agir de certa forma, esse ato o que devemos fazer, e ele racional. Essa posio claramente contrasta com a de Dancy (2004, p. 15-16), que defende que todas as razes para ao so razes contribuintes (contributory), isto , como uma caracterstica cuja presena faz de algo um caso para agir.

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    Afirmar que verdades normativas parecem impulsionar o agente para ao, bem como cobrar atitudes apropriadas, pode ser um recurso atraente para aqueles que querem defender a possibilidade do conheci-mento moral e poltico. Entretanto, uma objeo j habitual a esse mo-delo cognitivista que estamos defendendo poderia questionar se, para afirmar essas verdades normativas, no se precisaria contar com entida-des estranhas a nosso mundo natural que seriam correspondentes aos juzos verdadeiros, bem como se teria que contar com um tipo especial de intuio para conhec-las12. Penso que uma forma interessante de responder a essa objeo metafsica que j foi postulada por Mackie, com seu argumento da estranheza, seja por meio do uso de uma con-cepo de naturalizao da normatividade que no seja reducionista. Quero fazer referncia a duas estratgias que me parecem muito efi-cientes para dar conta dessa objeo, a saber, a estratgia expressivista de Blackburn e a estratgia das qualidades secundrias de McDowell.

    Os expressivistas, de forma geral, tomam um juzo normativo como um estado mental (natural) que expressa a adoo de um plano ou a aceitao de uma norma. Em Ruling passions, Blackburn (1998) procura compreender as normas morais, tais como obrigaes, deveres e valores, como parte da descrio natural do mundo, no habitando um lugar diferenciado, algo como uma esfera dos valores em separa-do. O esquema usado por Blackburn procura explicar o funcionamento do pensamento tico da seguinte maneira: quando as pessoas valoram algo, elas se expressam em termos do que bom, mau, obrigatrio, correto, justificvel etc. (BLACKBURN, 1998, p. 48-49). O ponto seria no olhar para as propriedades e proposies ticas, mas, antes, olhar para o que elas revelam em termos de expresses do que as pessoas aceitam como valor. Assim, S pensar que X bom implicaria que S valora X. Isso parece significar que, quando S valora, est expressan-do seus desejos, emoes, intenes, isto , S estaria expressando seu conjunto motivacional, que entendido por estados mentais e, logo,

    12 O argumento da estranheza de Mackie (1977, p. 38-42) postula que, se existissem valores morais objetivos, teriam de existir: (i) propriedades diferentes de tudo que se conhece do mundo natural e (ii) um tipo especial de intuio para reconhecer essas estranhas propriedades. Dado que no existem essas propriedades em nossa descrio do mundo, bem como no existe esse tipo de intuio especial, valores morais objetivos no existem.

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    estados naturais (BLACKBURN, 1998, p. 48-51). O recurso parece ser o seguinte: acreditar que X bom ou correto ter uma valorao favor-vel apropriada de X. E, dessa forma, no haveria alguma condio de verdade ou algum fato em que sua mera apreenso pudesse determi-nar os valores. Nas palavras de Blackburn (1998, p. 70): Para qualquer fato existe uma questo do que fazer sobre isso. Mas, uma discusso sobre valores apenas uma discusso do que fazer sobre as coisas13.

    Por mais atraente que seja esse expediente, em razo de poder ex-plicar as normas que usamos cotidianamente como naturalizadas, isto , como estados mentais que expressam como valoramos, creio que o nus, para os expressivistas, seja o de no poder contar com um mtodo ade-quado para determinar objetivamente o que vai ser considerado como bom e correto, para alm de expresses subjetivas. Isso parece apon-tar para uma fraqueza justificacional, e o relativismo surge como seu principal problema. Um enredo alternativo, tal como desenvolvido por McDowell, penso que responde eficientemente mesma objeo, com a vantagem adicional de poder contar com um mtodo adequado para a justificao dos conceitos normativos. Sua estratgia ser fazer uma analogia entre os valores morais e as qualidades secundrias dos objetos, tais como as cores, o que parece possibilitar tomar um valor moral como natural, mas no identificado com um referente do mundo puramente objetivo, em razo da necessidade de sensibilidade subjetiva para seu reconhecimento. Perceber que algo virtuoso guardaria alguma seme-lhana com a percepo da vermelhido de um objeto.

    Em Values and secondary qualities, McDowell (2007) apresenta uma tese de que valores morais so reais, mas que no seriam indepen-dentes da sensibilidade humana. Para tal, faz uma analogia entre valo-res e qualidade secundrias, tais como as cores. A diferena importante que as qualidades primrias dos objetos seriam puramente objetivas e existiriam mesmo que os agentes no as percebessem, tais como a forma, a extenso ou o volume. Por outro lado, qualidades secundrias

    13 importante ressaltar a sofisticao dessa proposta e que ela no estaria subscrevendo um ceticismo ou relativismo tout court. E isso assim porque a valorao de algo como bom ou correto no estaria ligada a uma simples expresso de um sujeito isolado. Quando algum diz que algo bom ou correto, est afirmando um estado em que uma direo de inteno dada para a articulao de nossas vidas prticas e escolhas (BLACKBURN, 1998, p. 69).

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    so subjetivas e dependem da percepo do sujeito, tais como as cores, o odor ou o gosto. Elas so subjetivas, mas so reais (McDOWELL, 2007, p. 137-141). A analogia entre valores e qualidade secundrias ressalta que as atitudes avaliativas, que para McDowell so estados da vontade, so como as experincias com as cores, ambas ininteligveis se tomadas em afastamento de nossa sensibilidade. Assim, o valor seria como uma qualidade subjetiva, pois no estaria localizado no mundo objetivo. O exemplo dado o da admirao como uma experincia de valor em analogia com a percepo da vermelhido. Enquanto a propriedade de ser admirado estaria representada como presente no objeto admirado, a admirao seria essencialmente subjetiva, de forma semelhante ex-perincia da vermelhido, que apenas pode ser uma propriedade en-tendida a partir das experincias humanas (McDOWELL, 2007, p. 142).

    Entretanto, McDowell alertar acertadamente que o relevante de quando falamos de virtudes o seu mrito, que vai alm da analogia antes proposta. E isso quer dizer que as circunstncias de nossas aes serem boas ou ms sero uma questo de mrito, preferencialmente a serem explicadas por uma resposta causal. Por exemplo, ser solidrio ou salvar uma vida tende a ser uma resposta com mrito, uma vez que acreditamos que uma boa ao foi feita e, assim, juzos de valor seriam um caso de mrito (McDOWELL, 2007, p. 142)14.

    Isso parece nos conduzir a uma importante questo sobre a jus-tificao, isto , sobre como esses fatos que estariam sendo tomados como verdadeiros poderiam ser justificados. Veja-se que, no modelo utilizado por McDowell, uma ao ser boa apenas se tiver mrito. Por exemplo, ser solidrio em um caso de necessidade seria uma reposta com mrito. Mas o que constituiria esse mrito? Seria uma questo de valorao pessoal, como parece ser o caso na proposta expressivista? Creio que no, uma vez que o mrito considerado por McDowell se trata, antes, de uma deciso coletiva, pois parece retratar uma crena comum de que uma boa ao foi realizada. Lembremos que, em um

    14 Para alm da analogia entre valores e cores, McDowell (2007, p. 143) apresenta um interessante argumento pragmtico para responder a essa objeo no cognitivista: Mas, se nos restringirmos s explicaes de um ponto de vista mais externo, em que valores no estariam em nosso campo de viso, negaramos a ns prprios um tipo de inteligibilidade a que aspiramos [...]. Para uma posio similar de um cognitivismo naturalista, ver, tambm, Thomas (2010, p. 38-45).

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    modelo de tica das virtudes, o trao de carter desejvel por todos os indivduos universalmente porque ser esse trao comportamental que possibilitar uma vida boa. A limitao da estratgia expressivista, en-to, seria que ela parece s oferecer uma explicao do porqu X bom, isto , dizer que X bom ter uma valorao favorvel apropriada de X. Mas parece no estar equipada para dizer como podemos justificar o dito que X bom para alm de uma explicao valorativa subjetiva15.

    V

    Estaria correta a objeo de Mackie a respeito da necessidade de um tipo especial de intuio para o reconhecimento dessas verdades normativas, quer dizer, seria necessrio um tipo especial de intuio intelectual para a percepo dessas verdades? Creio que podemos res-ponder a essa objeo epistemolgica fazendo referncia ao mtodo do equilbrio reflexivo, pois ele parece mostrar de forma adequada a especificidade do domnio de verdades normativas sem reivindicar ne-nhum status intuicionista de tipo realista.

    O mtodo do equilbrio reflexivo um procedimento para ajustar princpios morais s intuies morais. Comea-se isolando uma classe de juzos morais ponderados; esses juzos so modelados pela reflexo, de forma que eles so filtrados por uma srie de pressuposies em um contexto apropriado. Em Rawls, por exemplo, eles so filtrados em um contexto de confiana que se tem neles. Ento, esses juzos ponderados, que afirmam que a intolerncia religiosa e a discriminao racial so in-justas, por exemplo, servem para se estipular um conjunto de princpios universais que devem captar essa sensibilidade moral. O prximo passo contrastar esses juzos ponderados e princpios universais com algu-mas teorias de fundo relevantes, tais como a teoria da estabilidade social e as teorias da pessoa e da sociedade como morais etc. Se esses juzos

    15 O que estamos tematizando uma distino importante entre justificao e explicao. Por exemplo, explicar como se d a valorao da solidariedade como tendo mrito no a mesma coisa que justificar o mrito dessa ao, e isso quer dizer que a dimenso normativa prescritiva e no puramente descritiva. A esse respeito, ver Korsgaard (1996, p. 14-15). Ver, tambm, Nagel (2012, p. 18-20) e Scanlon (2014, p. 58-61).

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    ponderados forem coerentes com os princpios e as crenas das teorias de fundo, ento eles estariam justificados. A fora do mtodo estaria em nos mostrar uma forma apropriada de raciocnio moral, em que se che-garia a concluses normativas determinadas a partir da plausibilidade de alguns juzos particulares que parecem corretos aps cuidadosa re-flexo, em conexo com a coerncia com algumas crenas de teorias de fundo (DANIELS, 1979, p. 257-258; RAWLS, 1999, p. 15-19, 40-46).

    Mas, para alm do importante papel da coerncia para se ter jus-tificao, a relevncia do equilbrio reflexivo parece ser a de possibilitar um mtodo para se chegar a crenas justificadas sobre temas ou dom-nios que no podem ser observados pela percepo, tais como justia, moralidade, normatividade, lgica etc. O que parece distintivo no m-todo para o que estamos discutindo que no se chegaria a juzos pon-derados em equilbrio reflexivo por alguma percepo fatual, mas, sim, a partir de certas condies para identificar a razoabilidade do ponto de partida. Scanlon faz uma importante afirmao a esse respeito: decidir tratar algo como um juzo ponderado envolve decidir que o fato que visto como verdadeiro sob certas condies est fundado em trat--lo, ao menos provisoriamente, como sendo verdadeiro (SCANLON, 2014, p. 83). A verdade do juzo ponderado ser estipulada, ento, em certo contexto, isto , a partir de certas condies apropriadas para se ter segurana da verdade ou correo desses juzos. E isso parece nos revelar um tipo de conhecimento de verdades normativas que no es-tar referido a nenhuma intuio racionalista de tipo platnica.

    Todavia, qual seria mesmo o status epistemolgico dos juzos ponderados no mtodo do equilbrio reflexivo, e como se daria a co-nexo da verdade ao contexto? Parece que, se ns isolarmos a primeira etapa do mtodo, ficar mais claro o papel que estamos atribuindo ao contexto para a atribuio de verdade. J vimos que se inicia o procedi-mento isolando uma classe de juzos ponderados, isto , juzos a que se chega aps um processo de reflexo, quer dizer, a que se chega por um procedimento de filtragem. Na justia como equidade de Rawls, por exemplo, eles so filtrados a partir da confiana que se atribui a eles, uma vez que sero estipulados com base em certas condies conduti-vas para evitar o erro de julgamento. Por exemplo, podemos descartar

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    aqueles juzos feitos sob hesitao ou nos quais temos pouca confiana. Da mesma forma, podemos descartar aqueles juzos feitos quando es-tamos tristes ou aterrorizados. Importante ressaltar que essa filtragem teria o papel de revelar nossa sensibilidade moral16. O relevante em ob-servar apenas esse primeiro estgio que ele parece mostrar um mto-do para a justificao de juzos a partir de sua garantia evidencial direta. O ponto que quero destacar que podemos entender essa primeira etapa do mtodo de uma forma contextualista, de maneira a considerar os inputs no equilbrio reflexivo como possuidores de uma justificao direta em nossa experincia e que poderiam ser confirmados a partir de sua coerncia com um sistema coerente de crenas17.

    Agora vejamos como isso poderia funcionar nas sentenas nor-mativas que estamos analisando. Haveria alguma garantia evidencial direta para os juzos normativos que dizem que errado estuprar e se-questrar ou que se deve cumprir promessas ou que correto usar o cinto na estrada? Creio que sim. E penso que essa garantia evidencial direta seria possibilitada por um contexto de convergncia prtica18. Em outros termos, penso que podemos mostrar que esses juzos rele-vam verdades normativas em um contexto especfico de convergncia prtica, o que implica tomar esses juzos normativos como verdadei-ros a partir de um apoio evidencial direto, que pode ser reconhecido e justificado em razo do compartilhamento de um sistema coerente de

    16 No artigo Outline of a decision procedure for ethics, Rawls (1951, p. 181-183) explica as condies apropriadas para se chegar aos juzos ponderados como relacionadas s condies de julgamento de uma classe de juzes competentes. Aos juzes competentes exigido que seu julgamento seja feito: (i) com a imunidade das consequncias; (ii) com a manuteno de sua integridade; (iii) sobre casos reais de conflito de interesses; (iv) a partir de uma cuidadosa investigao sobre os fatos; (v) de forma a se sentirem certos; (vi) com estabilidade; (vii) intuitivamente no que diz respeito aos princpios ticos.

    17 Alan Thomas (2010, p. 198-220) faz uma interpretao semelhante ao considerar os juzos ponderados com um status epistmico prima facie, o que implicar considerar o equilbrio reflexivo em afastamento de um modelo coerentista de justificao, mas no significar consider-lo em proximidade com um fundacionalismo moderado, tal como DePaul (1987, p. 472) e Ebertz (1993, p. 201-204) consideram. Para Thomas, os juzos ponderados possuem uma garantia evidencial direta, o que revelaria que o contextualismo seria a melhor maneira de compreender o mtodo, uma vez que, para o contextualismo, h crenas bsicas que servem para a justificao de crenas no bsicas, mas as crenas bsicas so justificadas em um dado contexto.

    18 Estou usando o termo convergncia prtica de forma similar que Williams (1985, p. 154-155) usa o termo convergncia da razo prtica. O ponto central que as crenas ticas verdadeiras, apenas em um sentido oblquo, seriam aquelas que nos ajudariam a encontrar nosso caminho em um mundo social melhor.

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    crenas e habilidades de fundo. Nesse caso o procedimento seria isolar uma classe de juzos normativos ponderados por meio de uma filtra-gem que tomaria o conhecimento como comum, o qual se daria em um mundo social, a partir de um sistema de habilidades e capacidades de fundo, que seria o contexto de justificao das crenas bsicas. Assim, a questo recai sobre um tipo de conhecimento adequado para se che-gar a esses juzos normativos, e, para contar como um juzo normativo ponderado, ele deve, para alm de ser assegurado com confiana, pare-cer claramente verdadeiro19. Ou seja, esse conhecimento estar relacio-nado a um tipo especfico de semntica contextualista.

    De forma geral, tomo a semntica contextualista como afirma-tiva de que o valor de verdade das sentenas que constituem algum discurso D podem variar de um contexto ao outro, devendo as normas semnticas governar essas sentenas, e, assim, o valor de verdade das sentenas seria sensvel aos parmetros contextualmente variveis20. O valor de verdade de juzos normativos sobre uma ao ser correta ou errada, por exemplo, dependeria do contexto especfico em que o juzo feito. No discurso cotidiano, quando fazemos sentenas norma-tivas, elas parecem obrigar uma certa atitude e, assim, em um contexto comunicativo, parecem ser tomadas como verdadeiras para poderem obrigar. Esse contexto comunicativo a que me refiro o de convergn-cia prtica, em que os agentes parecem partir de um conhecimento convergente para pronunciar as sentenas normativas, como as que dizem que correto usar o cinto na estrada e que a solidarieda-de a atitude correta, exigindo um tipo de comprometimento. Penso que esse conhecimento convergente pode ser melhor compreendido se

    19 Scanlon (2014, p. 82-83) faz uma interpretao similar do mtodo de equilbrio reflexivo para a determinao do que se poder contar como razes para ao ou crenas sobre conjuntos. Para algo contar como um juzo ponderado sobre alguma questo, no seria suficiente assegurar esse juzo com confiana, uma vez que seria necessrio, tambm, que isso fosse visto como claramente verdadeiro quando se pensa sobre a questo a partir de boas condies.

    20 Mark Timmons (2004, p. 116) caracteriza a semntica contextualista da seguinte maneira: (i) a verdade de uma sentena uma questo de sua correta assertabilidade, que, para sentenas descritivas comuns, (ii) uma conexo das vrias normas e prticas que governam um tipo de discurso e o mundo, (iii) que no requerem a existncia de propriedades que sero correspondentes ao dito verdadeiro, (iv) sendo que as normas e prticas para a correta assertabilidade no so monolticas no interior da linguagem, variando de contexto a contexto, dependendo de certos fatores, como o tipo e o propsito do discurso, e (v) no assumem uma posio verificacionista.

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    verificarmos que estamos falando de um tipo de conhecimento que: (i) se d em um mundo social, (ii) comum, (iii) tem por base certas habilidades e capacidades de fundo e (iii) contextual. Explicarei esses elementos constitutivos de uma convergncia prtica para, posterior-mente, retornar ao procedimento de isolamento.

    Comecemos com o carter social do conhecimento. Dizer que o conhecimento se d em um mundo social querer estabelecer a ver-dade em um contexto de interao social, o que nos remete observa-o das condies do discurso em sociedade. Essa dimenso social do conhecimento j nos revela uma forte contraposio ao modelo carte-siano, que tem por foco o sujeito isolado do conhecimento, ao buscar as rotas sociais para o conhecimento, como na poltica, no direito, na educao etc., bem como observando os grupos como sujeitos do co-nhecimento, por exemplo, a sociedade, os jurados, os legisladores etc.21 Para nossa investigao, isso relevante, porque estamos considerando a possibilidade do conhecimento de um grupo, isto , dos cidados de uma sociedade como a nossa a partir de prticas comunicativas coti-dianas. A segunda caraterstica que esse conhecimento no seria uma propriedade de um sujeito isolado, mas algo comum ao grupo, isto , o conhecimento seria coletivo. Por exemplo, saber que a democracia o melhor regime poltico contemporaneamente um caso de conheci-mento comum, em razo de ele estar baseado em uma deliberao so-cial ou coletiva, alm de parecer orientado, tambm, por uma intencio-nalidade coletiva, e isso seria inteiramente diferente do conhecimento de um sujeito sobre qual seria a melhor poltica de ao de dado gover-no. Para um propsito comum de viver em coletividade, o grupo deve escolher o melhor meio para esse fim, por exemplo, o melhor regime poltico. Possuir propsito comum j requer discusso e deliberao sobre os juzos que a coletividade pode endossar. Importante ressaltar que essa deliberao no um caso de pesar razes por um sujeito iso-lado, como seria o caso de um sujeito pesando razes para saber se a

    21 Alvin Goldman (1999, p. 4) diz acertadamente que a epistemologia tradicional, especialmente de tradio cartesiana, sempre foi fortemente individualista, tendo como foco operaes mentais de agentes cognitivos isolados de outras pessoas. Mas, dada a natureza interativa do conhecimento no mundo contemporneo, a epistemologia individual precisa de uma contraparte social: a epistemologia social.

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    sade deve ser pblica ou privada, mas, antes, ela tem por base o pesar razes pelo grupo, o que conduzir a uma considerao da histria, e, assim, os juzos coletivos corretos seriam os que passariam pelo teste da coerncia (consistncia) com os juzos tomados como corretos de um ponto de vista histrico, impessoal22.

    Outro importante elemento para compreendermos a especifici-dade da convergncia prtica que nosso conhecimento comum, que ocorre em um mundo social, d-se sob uma estrutura de crenas bsi-cas compartilhadas pelos cidados e, alm disso, sob uma base mais profunda, que so capacidades, habilidades, tendncias, hbitos, pres-suposies, saberes prticos e que parecem ser prvios aos estados in-tencionais. Searle faz uma importante distino entre os desejos e as crenas dos agentes para o que ele chamar de background, habilidades no intencionais que so condio para aes intencionais das pessoas. Ele exemplifica a questo da seguinte forma: eu tenho a inteno de ir a uma livraria comprar alguns livros e, tambm, desejo ir a um res-taurante almoar; mais especificamente, desejo um tipo particular de livros e acredito que certo restaurante o melhor da vizinhana. Veja-se que essa uma estrutura intencional de crenas e desejos. Mas, para alm disso, eu sei andar e me comportar em livrarias. Tambm, tomo como dado que o cho ir me sustentar enquanto caminho e que os livros so legveis e no comestveis, da mesma forma que tomo como dado que a comida ser comestvel e no legvel. Esse conhecimen-to pr-intencional, da mesma forma que minha habilidade de comer colocando a comida na boca e no no ouvido e ler segurando o livro diante dos olhos e no o esfregando na barriga pr-intencional. O que esse fato parece revelar que nossas crenas e nossos desejos, por mais distintos que sejam e, muitas vezes, contraditrios entre si, tero como

    22 Philip Pettit (2011, p. 250-253) analisa que uma deliberao coletiva acontece pelo uso de uma razo coletiva. Falar de uma razo coletiva nada mais que falar de grupos com propsitos e que faro uso de um procedimento centrado nas premissas, o que significa um procedimento em que a concluso do processo deliberativo ser resultado do reconhecimento da adequao das premissas.

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    condio de possibilidade algo comum, compartilhado por todos os agentes da comunidade23.

    VI

    Dado que esse background comum a todos os agentes de uma comunidade e anterior aos desejos e s crenas dos agentes, podemos usar esse argumento para responder, ao menos parcialmente, objeo de que crenas em um fato no teriam significncia prtica, uma vez que sozinhas elas no poderiam motivar o agente a agir. O ponto central da objeo que faltaria a disposio para a ao, isto, um conjun-to motivacional, tal como um conjunto formado por desejos, emoes, disposies, que impulsionariam a ao do agente. Mas, se pudermos reconhecer que as crenas asseguradas por um sujeito, bem como seus desejos, possuem um pano de fundo pr-intencional, ento, parece que tanto uma crena quanto um desejo poderiam motivar a ao do agente, em razo de essas crenas e esses desejos serem formados a partir de um pano de fundo comum e anterior. Wittgenstein esclarece como se daria essa conexo. Em suas palavras:

    Mas eu no obtive meu quadro do mundo (Weltbilber picture of the world) pelo convencimento de mim mesmo de sua correo; nem eu te-nho esse quadro em razo de estar convencido de sua correo. No: ele o pano de fundo (Hintergrund background) herdado contra o qual eu distingo entre o verdadeiro e o falso (WITTGENSTEIN, 1975, 94).

    Creio que o ponto central dessa conexo feita por Wittgenstein seja dizer que nosso quadro do mundo, formado pelas proposies que sustentam a base de nosso conhecimento, so formadas e tomadas como verdadeiras ou falsas a partir desse pano de fundo pr-intencio-nal. Essas proposies podem ser entendidas como anlogas s regras

    23 Searle (1999, p. 107-109, 1995, p. 127-147) aponta que podemos identificar um background profundo, comum a todas as culturas, por exemplo, andar de p e colocar a comida na boca, diferenciando-o das prticas locais, que variam de acordo com a cultura, por exemplo, comer carne de porco ou ter esse alimento como proibido. Importante frisar que Searle defende ser a capacidade de racionalidade uma capacidade de background, que condio de possibilidade dos estados intencionais.

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    de um jogo, aprendidas por uma prtica. Importante observar que nos-so conhecimento formado por um conjunto de proposies, em que temos proposies verdadeiras ou falsas, por sua derivao de outras proposies, e proposies bsicas, que so justificadas em um contex-to. Para Wittgenstein, as proposies fulcrais so as que se sustentam sozinhas, quer dizer, elas seriam verdadeiras contingentemente e jus-tificadas em um dado contexto (WITTGENSTEIN, 1975, 253). Mas o que isso significaria? Na linguagem wittgensteiana, significaria que elas se justificariam pela escolha de uma forma de vida (lebensform), em que se faria um exame do quadro do mundo herdado e se estabeleceria um comprometimento em dado jogo de linguagem (WITTGENSTEIN, 1975, 65, 204). Isso parece nos mostrar que, uma vez que nossas cren-as bsicas seriam escolhidas na forma de um comprometimento com certo tipo de vida, e que essa escolha teria por base o background, por exemplo, certas prticas que nos ensinam a andar, a comer, a falar e a valorar, ento acreditar que p uma razo conclusiva para a seria um motivo para S fazer a, ao menos se considerarmos o aspecto racional da motivao, e no apenas seu aspecto de eficcia causal24.

    Aps essas referncias, quero concluir retomando o procedimen-to de isolamento, para ressaltar a tese de que as verdades normativas so identificadas em um contexto de convergncia prtica. A ideia bsi-ca a de que se ns formos chamados para filtrar os juzos normativos cotidianos a partir de um conhecimento convergente e, ento, identi-ficar os juzos normativos em que temos confiana e que nos parecem verdadeiros, parece no haver problema em reconhecer que identifica-ramos alguns juzos normativos ponderados. Juzos normativos que no tivessem nossa confiana plena, nem que nos parecessem verda-deiros, seriam descartados. Por exemplo, os juzos que dizem que de-vemos punir retributivamente ou que correto permitir a adoo por casais gays no contariam como juzos normativos ponderados, uma vez que eles abordam questes que ainda no obtiveram consenso, isto

    24 Como identificado acertadamente por Donald Davidson (1980, p. 3-4), desejos no so apenas supostos para causar aes, mas tambm servem para racionaliz-las, e, com isso, podemos observar que a motivao parece ter dois aspectos, a saber, um aspecto de eficcia causal e um aspecto racional.

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    , que ainda no podem ser justificadas a partir de um ponto de vis-ta comum. No fim, creio que juzos normativos do tipo que afirmam que se deve cumprir promessas, que errado estuprar e seques-trar e que correto usar o cinto na estrada passariam facilmente pelo processo de filtragem, em razo de eles parecerem coerentes com nosso conhecimento convergente o que parece oportunizar uma ga-rantia evidencial direta para serem tomados como juzos normativos ponderados.

    Penso que a importncia do procedimento, se houver alguma, seja a de nos mostrar de forma mais evidente nossa capacidade nor-mativa, isto , nossa capacidade para, num contexto comunicativo, identificar os fatos que impulsionam o agente para ao e que exigem atitudes apropriadas. E, a todo momento, em nosso cotidiano, creio que somos chamados a usar essa capacidade reflexiva para justificar aquilo que devemos fazer e no que devemos acreditar. Pode no ser uma resposta definitiva para o problema semntico de saber sobre qual o significado atribudo aos conceitos normativos, mas penso que co-nectar a verdade ao contexto nos oportuniza uma rota alternativa e, possivelmente, mais promissora para essa complexa tarefa.

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    Recebido: 14/11/2014Received: 11/14/2014

    Aprovado: 15/02/2015Approved: 02/15/2015