depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

26
1 O DEPOIMENTO SEM DANO EM ANÁLISE: A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA – ADRIANA KARLA DE CASTRO NAPOLI 1 RESUMO O presente artigo refere-se a uma análise do projeto denominado “Depoimento sem Dano”, atualmente em tramitação no Senado Federal. Primeiramente será feita uma explanação sobre o referido projeto, como este foi desenvolvido, além da maneira como o psicólogo nele atuaria. Posteriormente será abordada a repercussão deste Projeto no âmbito da Psicologia e os posicionamentos a respeito. PALAVRAS-CHAVE: “Depoimento sem Dano”. Abuso sexual. Psicologia. ABSTRACT This article refers to an analysis of the so-called project “no damage deposition” that is currently seeking approval by the Federal Senate. First of all, this project will be explained, as well as how it was developed and how the psychologist would act. Then, it will approach the repercussion of this project concerning the field of Psychology and the positions about it. KEY-WORDS: “No damage deposition”. Sexual abuse. Psychology. INTRODUÇÃO O abuso sexual infantil praticado contra crianças e adolescentes é uma situação complexa e grave que vem se tornando mais freqüentemente denunciado aos órgãos policiais e conseqüentemente, após sua investigação, desemboca no Judiciário. Durante esse processo, as vítimas acabam sendo as maiores prejudicadas, pois são levadas a 1 Artigo apresentado ao Curso de Especialização em Psicologia Jurídica da Universidade Católica de Brasília, como requisito para obtenção ao título de Especialista em Psicologia Jurídica. Artigo aprovado por Maria Aparecida Penso – Orientadora e Luciano Santo - Membro. Brasília, 05 de agosto de 2010.

Transcript of depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

Page 1: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

1

O DEPOIMENTO SEM DANO EM ANÁLISE: A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA – ADRIANA KARLA DE CASTRO NAPOLI1

RESUMO

O presente artigo refere-se a uma análise do projeto denominado “Depoimento sem Dano”, atualmente em tramitação no Senado Federal. Primeiramente será feita uma explanação sobre o referido projeto, como este foi desenvolvido, além da maneira como o psicólogo nele atuaria. Posteriormente será abordada a repercussão deste Projeto no âmbito da Psicologia e os posicionamentos a respeito.

PALAVRAS-CHAVE: “Depoimento sem Dano”. Abuso sexual. Psicologia.

ABSTRACT

This article refers to an analysis of the so-called project “no damage deposition” that is currently seeking approval by the Federal Senate. First of all, this project will be explained, as well as how it was developed and how the psychologist would act. Then, it will approach the repercussion of this project concerning the field of Psychology and the positions about it.

KEY-WORDS: “No damage deposition”. Sexual abuse. Psychology.

INTRODUÇÃO

O abuso sexual infantil praticado contra crianças e adolescentes é uma situação

complexa e grave que vem se tornando mais freqüentemente denunciado aos órgãos

policiais e conseqüentemente, após sua investigação, desemboca no Judiciário. Durante

esse processo, as vítimas acabam sendo as maiores prejudicadas, pois são levadas a 1 Artigo apresentado ao Curso de Especialização em Psicologia Jurídica da Universidade Católica de Brasília, como requisito para obtenção ao título de Especialista em Psicologia Jurídica. Artigo aprovado por Maria Aparecida Penso – Orientadora e Luciano Santo - Membro. Brasília, 05 de agosto de 2010.

Page 2: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

2

relatarem diversas vezes o fato, muitas vezes em ambiente e de maneira não adequada,

caracterizando-se assim, uma nova violência perpetrada contra as mesmas, a chamada

revitimização.

No tocante à escuta da criança/adolescente vítima, esta é confrontada com o peso da

responsabilidade de relatar o abuso e fornecer então, a valiosa prova testemunhal, que

viabilizará a punição de seu agressor. Ocorre que no mais das vezes, não é levado em conta

seu estado psíquico e capacidade de elaborar o ato de violência sofrido, geralmente

praticado no seio de sua família e por uma pessoa próxima, por quem nutre sentimentos

ambivalentes de lealdade, medo e afeto.

A preocupação com a maneira de ouvir a criança/adolescente, com seus receios e

com o ambiente em que geralmente é tomado seu depoimento, fez com que operadores do

direito se vissem confrontados com suas limitações neste sentido, valendo-se assim, de sua

inter-relação com outras áreas do saber, em especial a Psicologia, ressaltando-se a

importância da interdisciplinaridade no campo multifacetado do abuso sexual infantil.

Percebeu-se que a criança e o adolescente não poderiam ser submetidos a uma oitiva

padrão, nos moldes tradicionais, pois estes não são “adultos em miniatura” e ainda não têm

desenvolvidos determinados aspectos cognitivos, emocionais e simbólicos e, sendo assim,

não têm condições de se expressar de maneira objetiva, o que estaria inviabilizando uma

melhor coleta de provas pelo Judiciário.

Com essa preocupação em mente, foi desenvolvido pelo Judiciário do Rio Grande do

Sul, o denominado “Depoimento sem Dano”, preconizando uma tomada de depoimento de

maneira mais ‘adequada’ às necessidades infantis e supostamente condizente com seu nível

de desenvolvimento. Além disso, é pleiteada a compulsoriedade deste projeto em todo o

país.

Contudo o chamado “Depoimento sem Dano” vem sendo alvo de controvérsias e

críticas, especialmente de profissionais da área Psi, encontrando eco no próprio Conselho

Federal de Psicologia. O objetivo do presente artigo é apresentar alguns dos diversos

posicionamentos concernentes à metodologia adotada pelo “Depoimento sem Dano”, sobre

o papel do profissional de Psicologia dentro desta prática e de que forma o psicólogo se

enquadra dentro do projeto em análise e as repercussões desta atuação no âmbito ético da

profissão.

Primeiramente far-se-á um retrospecto histórico, acerca do papel da criança na

sociedade e a crescente importância que passou a ter, seguida de uma exposição acerca do

abuso sexual infantil, suas características e particularidades, bem como uma explanação a

Page 3: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

3

respeito do Projeto “Depoimento sem Dano” e em que consiste sua metodologia.

Posteriormente, será abordado o estado da arte em que se encontra o método em apreço,

fazendo-se menção a diversos autores que comentam e discutem tal questão e finalmente

uma análise conclusiva a respeito de todo o exposto.

RETROSPECTO HISTÓRICO – A CRIANÇA NA SOCIEDADE

Atualmente, a criança e o adolescente vêm ocupando lugar de destaque na sociedade,

com a priorização da proteção de seus direitos e elaboração de leis, como o Estatuto da

Criança e do Adolescente, para garantir que estes não sejam desrespeitados. A própria

Constituição Federal, em seu artigo 227, estatui: É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Todavia, nem sempre foi assim. Segundo o historiador Ariès (1973), até por volta do

século XII, não havia lugar para a criança, fato este constatado através das obras artísticas

medievais, as quais não contemplavam a infância e tampouco tentava representá-la.

Acrescenta que a criança era vista como um “adulto em miniatura”, não sendo

consideradas suas características e peculiaridades de indivíduo em desenvolvimento.

Devido à grande mortalidade infantil daquela época, às crianças não era dada grande

importância, não se acreditava que estas continham dentro de si a personalidade de um

adulto em formação, e desta forma reinava uma certa indiferença quando morriam,

geralmente de doenças.

Somente a partir do século XIV, começa a haver um progresso na consciência

coletiva do sentimento de infância, explicitado em uma representação mais freqüente das

crianças em suas diferentes etapas de desenvolvimento.

O aparecimento do retrato da criança morta, posteriormente, no século XVI, marcou

um momento muito significativo na história do sentimento da infância. Ele denota que a

morte da criança não era mais considerada como uma perda inevitável, demonstra o

crescimento de sua relevância no ambiente familiar e na sociedade, pois passa a se fazer

necessário guardar sua lembrança, fixá-la na memória, e não se faz isso com quem nada

significa: a criança passa a ser importante. (ARIÈS, 1973)

Page 4: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

4

Acrescenta o autor que uma nova sensibilidade passou a ser voltada para as crianças,

que passaram a ocupar um lugar na sociedade e na família, sendo vistas como seres

dotados de “alma”. Iniciou-se, assim, um amplo movimento de interesse em favor da

infância, corroborado pela ampla iconografia que retratava os infantes.

No que se refere à realidade brasileira, enfatiza Del Priore (1991) que com a

colonização, as crianças indígenas tornaram-se o alvo primordial da catequização jesuíta,

vendo-se privadas e destituídas de sua identidade cultural. Eram obrigadas, desde muito

cedo, a presenciarem pregações cristãs sob pena de sofrerem rigorosos castigos, embora

compreendessem pouco o que era dito.

Já as crianças africanas, em sua tenra idade, ingressavam no ciclo de exploração,

vivenciando o que deveria ser sua infância em meio à escravidão e à realização de horas

intensas de trabalho forçado e torturas. Para essas crianças não existia o sentimento de

infância que já havia sido desenvolvido de forma ainda que incipiente para as crianças

européias. Eram relegadas ao descaso.

Menciona ainda que a história nativa também revela situações de pedofilia, as quais

eram convenientemente ignoradas pela sociedade daquela época. Afirma que existem

registros de que jesuítas e também os senhores de engenho, abusavam sexualmente de

crianças índias e negras, sendo as pequenas vítimas, nada mais que objetos para satisfação

da lascívia de seus algozes.

Consoante Rangel (2001) é recente a concepção de criança como indivíduo em

desenvolvimento e também sujeito de direitos. Os maus tratos, abusos físicos e sexuais,

perpetrados contra crianças sempre estiveram presentes na sociedade, desde tempos

remotos, como revelam diversos estudos históricos.

Ressalta a autora que somente a partir do século XVIII, passa a haver alterações

significativas nas concepções sobre a infância. Começa a desenvolver-se um sentimento de

preocupação com a saúde e o desenvolvimento infantil, buscando-se coibir a ocorrência de

maus tratos no seio familiar.

A criança, que até o século XVIII, era praticamente ignorada, passou a ter relevância

e receber, a partir de então, uma atenção que até hoje vem se mantendo em ascensão. A

psicologia infantil, a importância dada à maternidade, a pedagogia, são exemplos desse

novo modo de encarar a criança, demonstrando repulsa à violência que fazia parte de seu

cotidiano.

No entendimento de Rangel (2001), o século XX foi pródigo na elaboração de

estudos e instrumentos legais em favor da criança. A Declaração de Genebra, de 1924,

Page 5: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

5

dispôs sobre a necessidade de se assegurar aos infantes proteção integral, tornando-se tema

recorrente em diversos tratados internacionais. Tal orientação foi inserida na Declaração

Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e também no Pacto de São José –

Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, em 1969, que previu o direito da

infância à proteção, como dever da família, da sociedade e do Estado.

A Convenção Internacional dos Direitos da Criança compilou normas preexistentes

contidas em diversos instrumentos legais internacionais, bem como inseriu em suas

recomendações conceitos que têm servido de modelo para a regulamentação dos direitos da

criança e do adolescente em todo o mundo.

Vale ressaltar que a legislação brasileira, somente após a proclamação da

Independência, é que começou a mostrar interesse jurídico pelas crianças e adolescentes,

ainda que inicialmente, isto tenha ocorrido de uma maneira muito paulatina.

Assevera Rangel (2001) que desta forma, os direitos da criança foram erigidos à

norma constitucional no Brasil. A partir daí, com a elaboração do Estatuto da Criança e do

Adolescente – Lei 8069/90, a criança foi elevada a um patamar de importância até então

nunca visto.

Constata a autora que dentro desta nova ótica, toda e qualquer criança é digna e

merecedora de cuidados e proteção integral, com prioridade absoluta, da família, do Estado

e da sociedade, sendo possível a intervenção em seu favor em qualquer âmbito, para a

garantia de seu direito de se ver a salvo de “qualquer forma de negligência, discriminação,

exploração, violência, crueldade e opressão” (conforme expressamente previsto no Art. 5º

da Lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente).

No que se refere especificamente ao depoimento infantil, informa Fayet Jr. (2005)

que historicamente o Código de Manu, o Direito Romano, bem como o Direito Bárbaro,

preconizavam a incapacidade absoluta das crianças e adolescentes em prestar testemunho,

salvo em raríssimas exceções, como por exemplo, o fato a ser testemunhado tivesse

ocorrido em local ermo; nesse caso, o testemunho era igualado ao do portador de doença

mental.

Prossegue o autor dizendo que o Direito Brasileiro também encontra essa

incapacidade nas Ordenações Filipinas (Brasil Colônia), na qual os menores de quatorze

anos não poderiam ser testemunhas de nenhum processo, somente em casos muito graves e

na falta de outros tipos de prova.

Tendo esta retrospectiva histórica como pano de fundo, fica patente que é a visão

que se tem da criança que determina como esta será tratada e considerada. Pôde-se notar

Page 6: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

6

que cada época tinha seu posicionamento e seu modo de tratar a criança: enquanto

percebida como ser frágil e de curta existência, não era considerada, nem sequer “contava”

como membro da família.

A partir do momento em que esta ganhou importância no seio familiar e também na

sociedade, passou a haver uma maior preocupação com seu desenvolvimento moral e

intelectual, motivando os operadores do direito a buscarem alternativas para o depoimento

formal da criança em juízo, tendo desenvolvido-se, assim, no bojo desta preocupação, o

Projeto “Depoimento sem Dano”.

ESCUTA DE CRIANÇAS NO JUDICIÁRIO: REVITIMIZAÇÃO?

Conforme dito anteriormente, a importância dada à criança e conseqüentemente à sua

palavra, no caso desta ser vítima ou testemunha de algum crime (especialmente de natureza

sexual), foi modificando-se com o passar do tempo, sendo que atualmente seu depoimento,

ainda que visto com reservas por alguns operadores do direito, constitui muitas vezes a

única fonte de prova existente. O sistema processual penal brasileiro não faz nenhuma

restrição ao depoimento infantil, contudo não estabelece nenhuma forma específica de

realizá-lo. Isso pode ser observado através da leitura dos seguintes artigos do Código de

Processo Penal: Art. 201 – Sempre que possível o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações. Art. 202 – Toda pessoa poderá ser testemunha.

Além disso, em vista do chamado devido processo legal, considerado um dos

princípios basilares da Constituição Federal, faz-se necessária a produção de provas, feita

através da inquirição da vítima, o que representa para aquele que é acusado (o réu), o

contraditório, seu direito de rebater as acusações que lhes são imputadas.

A esse respeito, alerta Bitencourt (2007) que apesar de toda especificidade e

complexidade que envolve o abuso sexual infantil, não existe previsão legal exclusiva para

a oitiva das crianças e adolescentes vítimas de crimes sexuais, restando aos inquiridores a

utilização do mesmo procedimento de tomada de depoimentos de adultos. Assim, por não

considerar a condição peculiar de desenvolvimento da vítima, além do risco de lhe

provocar dano psicológico, incorre-se, ainda, no perigo de prejudicar a confiabilidade da

prova produzida com base no relato do infante.

Page 7: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

7

Existem ainda, autores que ‘desconfiam’ do relato infantil, podendo-se citar o

posicionamento de Aranha (1987), o qual assevera e adverte que o testemunho infantil

merece ressalvas, pois é deficiente e perigoso. Posto que para ele, se a criança, por sua

natureza, é imatura psicologicamente, dotada de forte imaginação e grande

sugestionabilidade, além de mentir por imaturidade moral, não se pode confiar plenamente

em suas narrativas.

No mesmo sentido, Prado (1984), se posiciona reforçando suspeita quanto ao

depoimento infantil, acreditando que este é perigoso e difícil por fatores morais e

psicológicos. Acrescenta que a mentalidade da criança, incapaz de compreender os fatos

humanos, imaginativa e criadora, vive num mundo ideal antes de chegar à realidade.

Deve-se ressaltar que os autores mencionados acima são doutrinadores do Direito,

sendo tal visão rechaçada por Furniss (2002), o qual preceitua que a ausência de crença na

criança estende-se da sua própria família e sociedade até o sistema legal.

Segundo o autor, códigos legais inteiros são construídos sobre a noção, até agora não

comprovada, de que as crianças mentem e os adultos falam a verdade, ou de que as

comunicações das crianças são menos válidas ou menos confiáveis do que as declarações

dos adultos.

Para ele, como um resultado das ameaças de violência e ameaças de desastre na

família, as crianças mentem mais freqüentemente quando negam ter ocorrido abuso sexual

do que quando acusam falsamente um membro da família de abuso sexual.

O sistema de oitiva tradicionalmente utilizado pelo Judiciário brasileiro é

considerado revitimizante uma vez que requer que a criança/adolescente que tenha sido

vítima de um crime de natureza sexual, tenha que relatar perante o magistrado, promotor e

advogado a agressão que vivenciou, o que provocaria um trauma suplementar à violência

sofrida.

Além disso, o constrangimento desta situação, muitas vezes, faz com que a vítima

sinta-se extremamente amedrontada, não sentindo segurança para relatar o evento, o que

para o Judiciário, implica em uma prova inconsistente.

Deve-se ressaltar, ainda, a questão da credibilidade dada à palavra da criança, pois

apesar do contexto atual valorizar a sua escuta, segundo Volnovich (2005), não há como

negar que no âmbito judicial ou fora dele, é predominante a idéia de que falta credibilidade

ao relato deste tipo de vítima.

Prossegue o autor afirmando que esta crença decorre de preconceitos

‘adultomórficos’ que apenas aceitam como prova o chamado ‘discurso lógico’ do adulto e

Page 8: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

8

que partem da idéia de que existe uma simetria entre o adulto testemunha e a criança

testemunha.

Sanderson (2005) ressalta que as imprecisões infantis, devido à sua falta de

habilidade cognitiva para o pensamento abstrato são freqüentemente tomadas como

mentiras pelo Judiciário, o que desqualifica o testemunho infantil. O mesmo autor coloca

que é chocante que o sistema de justiça mine a credibilidade da criança como testemunha

por meio de sua flagrante falta de entendimento de suas capacidades cognitivas.

Para Dobke (2001), a verdadeira justificativa para a não-validação da versão

apresentada pela criança é o próprio sentimento dos adultos que não suportam admitir que

seus semelhantes possam praticar tamanha violência contra seres indefesos. Acrescenta

que trata-se de uma negação, de uma primitiva defesa psicológica dos adultos, que

procuram, assim, minimizar sua própria vergonha, bem como a problemática a ser

enfrentada.

Cezar (2007) critica a normativa processual vigente, criminal e civil, que trata apenas

de uma forma geral a produção da prova realizada em Juízo, não criando, em nenhum

momento, modelos diversos para inquirir crianças, adolescentes e adultos, circunstância

esta que desconsidera por completo o comando presente nos arts. 227 da Constituição

Federal e os arts. 4º, 5º e 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente, os quais determinam

a efetivação dos direitos referentes, entre outros, à dignidade e ao respeito, que restam

desatendidos quando a condição peculiar da pessoa em desenvolvimento não é observada

adequadamente, pois exige da criança um discurso lógico e um poderio de enfrentamento

da realidade de um adulto.

Prossegue o autor afirmando que embora, em atenção ao que dispõe a Constituição

Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, quando da ocorrência de abuso sexual, a

intervenção judicial devesse priorizar a proteção da criança, seja tomando medidas que

impeçam a continuação do abuso, seja para viabilizar uma intervenção técnica adequada

que a ajude a enfrentar mais tranqüilamente o problema, a verdade é que a justiça penal

permanece – e aqui a fase policial é integrante – quase que em sua integralidade, agindo

unicamente na investigação dos fatos e na busca da responsabilização do abusador.

Esta circunstância retira qualidade e efetividade do sistema de justiça, mormente

porque em razão de um operar inadequado, ora tratando-se a criança com insensibilidade,

ora desconsiderando-se sua condição de pessoa em desenvolvimento, que está atormentada

e confusa, se permite a sua revitimização.

Page 9: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

9

ABUSO SEXUAL INFANTIL – CONCEITOS E IMPLICAÇÕES NA ESTRUTURA FAMILIAR SEGUNDO A VISÃO SISTÊMICA

Para Azevedo & Guerra (2002, p. 28), o abuso sexual infantil se configura como todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou adolescente ou utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa.

Apontam as autoras para o fato de que o abuso sexual doméstico ou intrafamiliar

envolve um perpetrador da família nuclear da criança, alguém que geralmente vive na

mesma casa em que a vítima, e com o qual existe uma relação de submissão e obediência.

Prosseguem afirmando que as situações de abuso sexual doméstico (ocorrido no

ambiente familiar) são extremamente marcantes para a criança vítima, causando um

desgaste emocional bastante severo. Já como abuso sexual extrafamiliar, as autoras

classificam todas as situações que envolvem pessoas fora da família, como professores,

amigos, conhecidos, estranhos etc.

Conforme afirma Braun (2002), enquanto a grande maioria dos abusos

extrafamiliares ocorre só uma vez, os abusos intrafamiliares geralmente acontecem

diversas vezes. Isto porque o abusador intrafamiliar usa seu poder frente à vítima,

instruindo-a para não contar a ninguém, usando ameaças e chantagem para conseguir isso,

fazendo-a ficar em silêncio. Sendo assim, a própria família reluta em denunciar pela

proximidade entre abusador (o qual muitas vezes é o próprio pai) e a vítima, temendo

expor a situação e desta forma, desintegrar-se. Tal situação caracteriza um tabu social

sobre o qual paira uma barreira de silêncio ainda maior: o incesto.

Acredita Cohen (1993) que para a compreensão do incesto, faz-se necessário

entender o que é família, tendo em vista que o incesto é, literalmente, um assunto de

família. Consoante o autor, a família é um tipo de agrupamento social, cujos membros

estão vinculados por laços de parentesco, estando determinada por normas culturais.

Acrescenta que a palavra “incesto” deriva do latim incestus, que significa impuro,

manchado, não casto. Como conseqüência, conclui que a família incestuosa é uma família

que “perdeu a castidade”, a pureza. Define o incesto como o abuso sexual intrafamiliar, com ou sem violência explícita, caracterizado pela estimulação sexual intencional por parte de um dos membros do grupo e que possui um vínculo parental pelo qual lhe é proibido o matrimônio. (COHEN, 1993, p. 132).

Page 10: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

10

No abuso sexual incestuoso, existe a chamada “síndrome do segredo” (Furniss,

2002), com a qual é garantida a inviolabilidade da família, sua pseudo integridade, busca

assegurar a manutenção de seu status quo na sociedade.

Enquanto isso, a vítima do incesto sente medo de ser surrada, de ser expulsa de casa,

de ser desacreditada, não contando o fato a ninguém. A vergonha faz com que permaneça

em silêncio, algumas vezes por muito tempo. O abuso sexual intrafamiliar pode então, ser

definido como uma síndrome de adição e segredo, pois a família organiza-se no sentido de

manter-se naquele estado, através da adição daquele que abusa e do segredo que permeia

todas as relações ali existentes.

Segundo Imber-Black (1994) os segredos são fenômenos sistêmicos, estando ligados

ao relacionamento, moldando as díades, formando triângulos, alianças encobertas,

divisões, rompimentos, definindo limites de quem está dentro e de quem está fora,

calibrando ainda, a intimidade e o distanciamento nos relacionamentos. O segredo impede

que os membros da família transitem livremente entre os diversos temas que compõe a

rede de relacionamentos da mesma.

A lealdade familiar aparece como mantenedora deste segredo, a fim de fortalecer um

sentimento de pertencimento àquela família e evitar que ocorra uma crise da família se este

for revelado. Ao nível do funcionamento familiar, o segredo influencia as relações

intrafamiliares e o funcionamento dos sistemas e subsistemas. O sistema familiar abusivo

interage com rigidez de fronteiras e faz com que a família não tenha flexibilidade

suficiente para mudar e proteger o membro que está sendo violentado.

Segundo Araújo (2002), nas famílias incestuosas a manutenção deste segredo

familiar é mais importante que a lei moral e social, pois a criança não quer correr o risco de

romper com a estrutura familiar já configurada pela situação abusiva, daí a dificuldade de

intervenção psicológica nestes casos. As relações interpessoais familiares caracterizam-se

como sendo assimétricas e rigidamente hierárquicas, evidenciando desigualdades e

subordinação excessiva

Para Cohen (1993), o abuso sexual intrafamiliar implica em uma quebra de confiança

com as figuras parentais, que deveriam ter o papel de proteger a criança e dela cuidar. Para

o autor, em uma visão sistêmica, o abuso também pode ser reconhecido como um sintoma

da crise familiar, que reflete uma incoerência em sua estrutura e um rompimento na

integridade das relações familiares.

Vale ressaltar que as famílias violentas apresentam fronteiras nebulosas, com funções

que não são protetivas ou organizadoras, colocando todos em situação de risco. Sua

Page 11: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

11

dinâmica afetiva e psicológica é marcada por sentimentos ambivalentes e dificuldades de

percepção de si e do outro, além de forte tensão, fragilidade e agressividade. Neste sentido,

pode-se inferir que a problemática do abuso sexual é algo familiar e não individual.

Bucher (1992) afirma que quando há na família uma ruptura com a lei, faz-se

necessário o conhecimento de sua história transgeracional, pois muitas vezes um ato que

pode ser considerado transgressor tem outro sentido dentro da estrutura e cultura familiar.

A perspectiva transgeracional traz à tona o fato de que pais abusadores ou negligentes

desenvolveram essas formas de relacionamento intrafamiliar em suas próprias experiências

infantis.

Esses comportamentos foram registrados em suas memórias e serviram de modelo

para a atuação nos papéis de pai e de mãe. Ressalta a autora que é importante conhecer o

motivo pelo quais alguns comportamentos são percebidos como normais em certos

contextos sócio-econômicos ou em determinadas estruturas de família.

Pela visão sistêmica, não há que se falar em um responsável único pelo fenômeno da

violência sexual intrafamiliar. Devem ser analisados os padrões de interação, as formas de

comunicação ali presentes, muitas vezes marcadas por um não dito que permeia as relações

de todos os envolvidos e garante a perpetuação daquela dinâmica familiar estruturada

através da violência.

Neste sentido, o abuso comunica a falha daquela família em estabelecer papéis,

fronteiras e meios de comunicar-se entre si e com os outros do meio externo. Este sistema

familiar fragilizado em que os membros têm a ilusão de unidade fica extremamente

instável após a revelação do abuso, não sabendo mais que papéis desempenhar e que

atitudes tomar a respeito.

Novos limites precisam ser estabelecidos e novas relações construídas, necessitando

a família de apoio terapêutico neste sentido, daí a preocupação existente com a questão do

depoimento da criança a respeito do fato, quando o mesmo atinge a esfera jurídica.

A PROPOSTA: DEPOIMENTO SEM DANO E O PROJETO DE LEI

O Projeto “Depoimento sem Dano” idealizado pelo Juiz José Antônio Daltoé Cezar,

foi inicialmente desenvolvido no ano de 2003, no Juizado da Infância e Juventude de Porto

Alegre - RS, sendo destinado à oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de

abuso sexual ou maus-tratos.

Page 12: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

12

São objetivos do Projeto, como informa seu precursor: reduzir o dano provocado à

criança/adolescente; garantir seus direitos, relativamente a sua condição peculiar de

desenvolvimento, valorizando, assim, sua palavra e melhorar a qualidade da prova

produzida, muitas vezes a única do processo. Divide-se em 3 (três) etapas:

- Acolhimento inicial – cuidados para que a criança/adolescente não se depare com o

agressor ao acessar o prédio (como marcar sua chegada com antecedência de 30 minutos) e

prestar esclarecimentos sobre a dinâmica do depoimento, informando que será filmado,

além de visualizado por pessoas presentes em uma sala ao lado, e que farão perguntas.

- Depoimento – as perguntas serão feitas à criança/adolescente, por intermédio do

entrevistador, que poderá se utilizar de perguntas abertas, fechadas e hipotéticas, conforme

entender mais conveniente e menos danoso ao menor. Sendo todo procedimento gravado

em vídeo, que, após o término do depoimento, seguirá para transcrição e posterior juntada

aos autos.

- Acolhimento final – após o término da audiência, com o sistema de vídeo desligado,

serão colhidas as assinaturas no termo de audiência e realizada intervenção no sentido de

indicar serviços de atendimento junto à rede de proteção, se necessário, além de poder

conversar acerca de alguns conteúdos, como medo, culpa, raiva, vergonha ou até mesmo

sobre a forma como a família tem gerenciado a situação (CEZAR, 2007).

Com base em tal trabalho, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Exploração

Sexual deu início ao Projeto de Lei Complementar nº 35/2007, que se encontra em análise

no Senado Federal, de autoria da deputada Maria do Rosário, preconizando a utilização do

“Depoimento sem Dano” de forma compulsória, com a modificação do Código de

Processo Penal no que concerne à coleta da prova testemunhal infantil e acrescenta uma

seção ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), definindo regras para os

procedimentos especiais do exame pericial de menores de 18 anos em caso de violência

sexual.

Tais modificações seriam as seguintes: acréscimo da Seção VIII ao Capítulo III - Dos

Procedimentos - do Título VI - Do Acesso à Justiça - da Parte Especial da Lei nº 8.069, de

13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, dispondo sobre a forma de

inquirição de testemunhas e produção antecipada de prova quando se tratar de delitos

tipificados no Capítulo I do Título VI do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 -

Page 13: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

13

Código Penal, com vítima ou testemunha criança ou adolescente e acrescenta o art. 469-A

ao Decreto-Lei nº 3.689 de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal.

A partir do momento em que este projeto se tornar lei, a implantação do novo

processo será uma responsabilidade das varas judiciais ligadas à criança e ao adolescente.

Se a cidade não possuir instância especializada em proteção à infância e adolescência, esse

papel recairá sobre as varas cíveis ou de família. Entre as justificativas mencionadas para a

aprovação do citado projeto, cita-se com freqüência, o art. 12 da Convenção Internacional

dos Direitos da Criança, o qual destaca o direito desta ser ouvida - quer diretamente, quer

por intermédio de um representante ou órgão apropriado – em todo processo judicial que a

afete. Os parágrafos 1º e 2° do referido artigo, aludem ao seguinte: §1º. Os Estados Membros assegurarão à criança, que for capaz de formar seus próprios pontos de vista, o direito de exprimir suas opiniões livremente sobre todas as matérias atinentes à criança, levando-se devidamente em conta essa opiniões em função da idade e maturidade da criança. §2°. Para esse fim, à criança será, em particular, dada a oportunidade de ser ouvida em qualquer procedimento judicial ou administrativo que lhe diga respeito, diretamente ou através de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais do direito nacional.

Sendo assim, o “Depoimento sem Dano” viria em substituição à oitiva tradicional

realizada pelo Judiciário com crianças e adolescentes, em que estes são questionados em

uma sala de audiências comum, da mesma forma que seria ouvido um adulto. O referido

depoimento é tomado por psicólogos ou assistentes sociais em um local conectado por

vídeo e áudio à sala de audiência, sendo que o psicólogo ou o assistente social que irá

colher o depoimento deve informar a criança ou o adolescente sobre a existência de

câmeras.

O juiz e os demais presentes à audiência (dentre estes o Promotor, Advogado de

defesa e outros serventuários do judiciário) vêem e ouvem, através de um aparelho de

televisão, o depoimento da criança ou adolescente. O juiz pode, por comunicação em

tempo real com o psicólogo ou assistente social, através de um ponto de ouvido, fazer

perguntas e solicitar esclarecimentos. Tal procedimento é também gravado e passa a

constituir prova nos autos, além de muitas vezes substituir a avaliação psicológica

(CEZAR, 2007).

O questionamento direcionado às crianças/adolescentes segue o referencial teórico de

Furniss (2002), o qual preconiza que a entrevista legal com a criança, com o fito de que

esta revele e descreva como se passou o abuso sexual, deve acontecer no contexto do

domínio legal e é parte do processo de uma entrevista de revelação completa.

Page 14: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

14

Segundo o autor, a entrevista de revelação, desenvolvida para que a criança relate o

abuso, deve ser realizada por pessoa capacitada (com formação adequada para tal –

vinculadas ou não aos órgãos judiciários) sendo adequada à idade e ao estágio de

desenvolvimento da criança. Deve ser utilizado vocabulário compatível bem como outras

formas de expressão, como desenhos e brincadeiras.

Durante a entrevista, podem ser utilizados os chamados “bonecos anatomicamente

perfeitos”2, para que desta forma, a criança demonstre e descreva os abusos através da

manipulação dos referidos bonecos. Inicialmente deve ser estabelecido vínculo com a

criança, deixando que se familiarize com o ambiente (normalmente uma sala de

brinquedos). Os períodos de brinquedo livre são importantes no desenvolvimento de um

relacionamento pessoal com o entrevistador (FURNISS, 2002).

Após a ambientação, a entrevista deve ser conduzida de forma a viabilizar um relato

espontâneo e fidedigno, mediante a elaboração de questões objetivas e não indutivas. Tais

perguntas devem ser feitas no seguinte sentido: “alguém tocou em seu corpo?”, “onde foi

tocada?”, “quem tocou?”, “como tocou?”, “onde ocorreu?”, a fim de que a criança relate,

com suas próprias palavras e espontaneamente o que aconteceu (FURNISS, 2002).

Vale ressaltar que no caso em tela, o psicólogo atua como um mediador entre o

Juiz e a criança/adolescente, funcionando como um “tradutor”, no sentido em que realiza

uma adequação entre os questionamentos formulados e o desenvolvimento cognitivo da

vítima/testemunha, para que esta os compreenda e possa de forma mais espontânea e

objetiva descrever o que se passou e então, constituir elementos probantes contra o suposto

autor, possibilitando, assim, a produção antecipada dessa prova no processo penal, antes

mesmo do ajuizamento da ação.

Corroborando este posicionamento, coloca Dobke (2001) que a tarefa do profissional

é semelhante à de um intérprete, pois o psicólogo conhece as peculiaridades da linguagem

das pequenas vítimas e pode auxiliar o Juiz na obtenção de respostas por parte das

crianças.

O objetivo é que a criança seja ouvida apenas uma vez, para que não ocorra o

processo de revitimização, que acontece quando a vítima é chamada a contar, diversas

vezes e em várias instituições (delegacia, Conselho Tutelar, Vara da Infância, Vara

Criminal etc) a situação abusiva e sofre em decorrência disto, um dano psíquico adicional.

2 Brinquedos especialmente criados para utilização em entrevistas de revelação. São feitos de pano, maleáveis, possuindo genitália e língua retrátil. São confeccionados em diversos modelos: brancos, negros e asiáticos (adultos e crianças de ambos os sexos).

Page 15: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

15

REPERCUSSÕES DO PROJETO NO ÂMBITO DE ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO

O Conselho Federal de Psicologia e sua Comissão Nacional de Direitos Humanos,

através de manifesto redigido por Humberto Verona (Presidente do CFP) e Ana Luiza de

Souza Castro (Coordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP)

sugerem a não aprovação do Projeto de Lei referente ao “Depoimento sem Dano”, apesar

de reconhecerem como legítimas e pertinentes as preocupações que nortearam o referido

projeto. Contudo, pontuam que não há que se comparar uma audiência jurídica com uma

entrevista, consulta ou atendimento psicológico, visto que a escuta psicológica pauta-se

pelas demandas e desejos da criança e não pelo andamento processual.

Alertam para o fato de que para o psicólogo, tudo na fala da criança é importante,

inclusive as “fantasias, erros, lapsos, esquecimentos, sonhos, pausas, silêncios e

contradições...” (Conselho Federal de Psicologia, 2008, s/p), não tendo o profissional por

objetivo “desvendar” um crime e sim ajudar a criança a elaborar a situação abusiva.

O projeto alega que na maioria dos casos, a palavra da criança é a única prova

constituída contra o suposto autor, daí a necessidade de que esta seja colhida o mais cedo

possível, antes de possíveis influências ulteriores e de maneira que não “traumatize” a

criança.

Questiona o Conselho e a Comissão que tal supervalorização do depoimento da

vítima poderia, muitas vezes, ser prejudicial para crianças e adolescentes que sofreram

violência sexual, geralmente cometida por parte de pessoas com quem também possuem

vínculos afetivos estabelecidos, bem como uma relação de submissão e obediência,

provocando-lhes sentimentos ambíguos com os quais não sabe lidar e até o rompimento

com sua família nuclear, além do esfacelamento desta ante a revelação.

Aliado a isso está presente a responsabilidade da criança pela possível condenação

do agressor, o qual na maioria das ocasiões é uma figura paterna, e sua conseqüente

responsabilização por tal resultado, seja por si própria, seja por seus familiares.

Além disso, a possibilidade da criança querer silenciar a respeito do abuso não é

respeitada, pois muitas vezes esta ainda não é capaz de elaborar e falar sobre a violência

sofrida. O silêncio é um recurso infantil de proteção e não se deve forçar a criança a

abordar um assunto que lhe é traumático.

Deve-se considerar que o tempo do processo não é o tempo da criança e entende o

CFP e a CNDH que é sempre danoso obrigá-la a falar sobre o que ainda não tem condições

de compreender, uma vez que tal não pôde ainda ser simbolizado, acrescentando que “o

Page 16: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

16

silêncio, muitas vezes, antecede o encontro com modos diversos e singulares de

elaboração da violência perpetrada” (Conselho Federal de Psicologia, 2008, s/p).

Para o CFP, devem ser envidados esforços no sentido de auxiliar a criança a ampliar

seus recursos para a elaboração do traumatismo e mesmo a partir desta elaboração, garantir

seu direito de decidir se quer ou não falar sobre o fato a quem quer que seja.

Existe uma grande diferença entre o falar para elaborar uma situação traumática e o

falar para depor à Justiça, não devendo confundir-se o que é do plano terapêutico e o que é

do plano jurídico. Entretanto, se a criança apresentar as condições psíquicas de falar sobre

a experiência traumática, em uma situação de abuso sexual, é importante perguntar-lhe se

ela deseja falar, se deseja dar o seu depoimento sobre o fato perante o juiz, respeitando-se a

sua condição de sujeito de direitos, conforme garantido explicitamente pela Constituição

Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

A decisão da criança ou adolescente deve ser respeitada e se assim o quiser poderá

falar diretamente ao juiz, devendo, porém, estar ciente das conseqüências advindas desta

decisão, as quais podem incluir modificações em sua relação com a família.

Considera o CFP que uma vez que o Judiciário necessita de todo um aparato

tecnológico para ‘extrair’ a verdade da criança, isso é evidência mais que suficiente que

esta ainda não possui os recursos simbólicos para expor verbalmente o fato. Tal tecnologia

seria tão somente uma maneira de fazer a criança a falar, violando assim, os seus direitos.

O CFP questiona ainda se o projeto abarcaria todos os segmentos da sociedade, em

todas as classes sociais e se não seria um retrocesso em um sistema que se diz democrático

a isolada criminalização de conflitos familiares, exacerbados por um contexto de pobreza,

desigualdade e exclusão social.

Sugere que outra metodologia seja adotada pelo Judiciário na execução de um

processo penal, pois a proposta não resguarda a criança e não garante a proteção de seus

direitos. Alega que o psicólogo, no âmbito deste projeto, está fora de seu verdadeiro papel,

além de isentar o Juiz da responsabilidade de colher a prova oral, quando for o caso.

No projeto “Depoimento sem Dano” o psicólogo não atua de maneira terapêutica, e

ao fazer com que a criança “tenha” que falar sobre o assunto sem estar preparada, infiltra-

se de forma insidiosa como mais um perpetrador de violência, pois desconsidera o direito

infantil de calar sobre fato que lhe é não só doloroso como conflituoso, pois a criança, além

de sofrer a violência sexual e física, também sofre com a culpa, acreditando-se responsável

pelos abusos, convencida que é, pelo agressor, que foi participante e colaboradora da

situação abusiva.

Page 17: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

17

Enquanto a criança não elaborar esta ‘culpa’ e tudo que dela advém, bem como as

conseqüências da revelação, não será capaz de abordar o assunto sem que sofra seqüelas,

que muitas vezes se traduzem em uma culpa adicional: a de haver ‘destruído’ a família.

Seria uma intervenção descontextualizada e sem continuidade, em que não se

estabelece nenhum vínculo terapêutico entre o profissional e a criança, havendo aí, uma

relação de poder, estando a vítima em situação de total vulnerabilidade, na qual o

psicólogo estaria atuando de forma a ser um instrumento de controle social em oposição ao

respeito à cidadania e aos direitos humanos.

Segundo Pereira (2003), esta situação coloca a Psicologia como reforçadora do poder

do Direito: o poder de sanção, de julgar o que é certo ou errado, regulando as relações do

homem na sociedade. Tem como função desvendar ‘fatos ocultos, o segredo familiar

incestuoso’ para o intermediário, que no caso é o psicólogo, determinando assim, de forma

maniqueísta, os culpados e os inocentes, eximindo o magistrado da responsabilidade de

pensar o problema, que vem ‘solucionado’ às suas mãos.

Postula Arantes (2008, p. 14-15) que no caso do “Depoimento sem Dano”, o

profissional de Psicologia “não é chamado a desenvolver uma prática psi propriamente

falando, mas a ter uma função de ‘duplo’, de ‘instrumento’ ou ‘boca’ humanizada do

juiz”.

Para Brito (2008) esta não é tarefa para os psicólogos, uma vez que a Psicologia crê

que a revitimização das crianças não está tão somente em múltiplas entrevistas, mas

também na realização inadequada destas, independentemente da quantidade de vezes que

ocorrem. Considera a autora que o referido projeto pode ser bastante prejudicial às crianças

e adolescentes por terem transformado seu direito de expressão em obrigação de

testemunhar.

De acordo com Brito, Ayres & Amendola (2006) a palavra da criança parece ser

valorizada apenas quando está em jogo a avaliação do comportamento de seus pais,

atribuindo a esta palavra um grau de responsabilidade jurídica com o qual não consegue

arcar. Ao fazer com que a criança desqualifique seu (s) genitor (es), esta se vê

completamente desprotegida e sozinha e o que o pior, o psicólogo que a está ouvindo nada

faz para minimizar este desconforto, uma vez que o objetivo das questões formuladas é

apenas formar a convicção do magistrado.

Entra em foco a pergunta: para quem trabalha o Psicólogo, quem é o seu cliente?

Responde a isso Miranda Júnior (1998, p. 36), afirmando que “sem desconsiderar a

importância que ocupa a instituição em nosso trabalho, nosso cliente é o sujeito que

Page 18: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

18

atendemos”, não devendo o profissional atuar apenas como um mero ‘tradutor’ (como

preceitua o “Depoimento sem Dano”), sem considerar que há ali, um indivíduo fragilizado

e que ainda não desenvolveu por completo habilidades cognitivas e emocionais para lidar

com o abuso sexual, que dirá falar sobre ele.

A criança deve ser acolhida em um espaço de cunho terapêutico e não ver-se

constrangida em um espaço de inquirição, por mais ‘disfarçado’ que este seja. Apesar da

necessidade de se atender às demandas institucionais, deve-se também buscar a promoção

de uma atuação cidadã, que vise o entendimento do indivíduo em um contexto sócio-

cultural específico e com peculiaridades próprias, especialmente em se tratando de crianças

e adolescentes.

Reforça este questionamento Jacó-Vilela (1999) quando afirma que a maneira pela

qual o psicólogo agirá frente ao encargo de atuar junto à família, infância e adolescência

podem ser de duas maneiras: a do estrito avaliador da intimidade, que aperfeiçoa seus

métodos de exame ou a de lembrar-se que a criança, este sujeito singular também é um

sujeito cidadão, cujos direitos e deveres se constituem no espaço público, território onde

perpassam outros discursos e práticas que não o exclusivamente psicológico.

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, posiciona-se Cesca (2004) no sentido de

que o psicólogo, enquanto facilitador da promoção da saúde deve procurar resguardar os

direitos fundamentais dos indivíduos, visando a manutenção de sua saúde mental e a busca

da cidadania, caso contrário, seria somente mais um agente de repressão a serviço do

Estado.

A respeito da chamada ‘não revitimização’ da criança nos casos de investigação e

processo de casos de abuso sexual, Brito (2008) questiona se esta seria apenas o fato da

criança ou adolescente não depor na frente do acusado e não ter que repetir seu depoimento

para diversas pessoas em distintas ocasiões.

Pergunta ainda se a referência que vem sendo feita é em relação à escuta ou a uma

inquirição e se estaria havendo a desconsideração da menoridade jurídica de crianças e de

adolescentes equiparando-se o direito de ser ouvido à obrigação de testemunhar.

Questiona a autora sobre qual seria o status atribuído à criança ou adolescente no

processo judicial: se enquanto testemunha, assumiria o compromisso de dizer somente a

verdade? E mais: Seria esta uma forma de proteção à criança e ao adolescente, de garantia

de seus direitos? Os pais podem se opor e não permitir que seus filhos testemunhem? Ao se

afirmar que a criança e o adolescente possuem direito de ser ouvidos, se estaria

considerando seu direito de não ser ouvidos, ou esse direito seria, agora, uma obrigação?

Page 19: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

19

Estes questionamentos levantados por Brito devem ser levados em conta ao analisar-

se a metodologia do “Depoimento sem Dano” enquanto método preconizado para proteger

as crianças, alegando-se, inclusive que este poderia ser um novo espaço de atuação para

psicólogos e que, na técnica em questão, não se estaria realizando avaliação psicológica e

sim uma entrevista investigativa.

No entanto, para a autora, despontam também as perguntas: psicólogos colhem

depoimentos, fazem inquirição, conduzem oitivas? Com esta técnica se estaria ferindo a

ética profissional ao se desconsiderar o dever de respeitar o sigilo nos atendimentos?

Brito (2008) prossegue afirmando que o fato de técnica semelhante existir em outros

países não significa que tenha havido consenso para sua implantação. Na Argentina, por

exemplo, a alteração do Código de Processo Penal para que os depoimentos de crianças e

de adolescentes fossem possíveis, suscitou árdua polêmica entre os profissionais,

argumentando-se, dentre outros aspectos, sobre a fugacidade com que se pretende

solucionar assunto tão complexo. A urgência para a tomada de decisões mostra-se clara ao

se determinar que, em um único encontro, a questão deve ser elucidada, confundindo-se

atendimento psicológico com a obtenção de depoimentos.

A autora menciona ainda que a psicóloga francesa Marlene Iucksch, em palestra

proferida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2007, explicou que técnica

semelhante ao Depoimento sem Dano é realizada na França por policiais treinados que

auxiliam na instrução do processo. Marlene mostrou-se surpresa ao ser informada de que

no Brasil existe um projeto de Lei em tramitação que busca que psicólogos realizem esta

tarefa. Além de compreender que esta não estaria de acordo com um trabalho psicológico,

a profissional enfatizou que “reconhecer a palavra da criança e do adolescente, ou o

direito de se expressarem, é diferente de sacralizar a palavra destes” (p.122).

Brito (2008) afirma que sem desconsiderar a difícil situação de crianças e de

adolescentes que passam por reiterados exames ao longo do processo, entende-se – a partir

da concepção que se tem da Psicologia – que, além de o “Depoimento sem Dano” não ser

tarefa de psicólogos, a revitimização da criança pode ocorrer quando há ausência ou

recorrência de intervenção, bem como intervenções inadequadas. Acredita-se, portanto, na

necessidade de serem melhor avaliadas inúmeras questões implicadas no “Depoimento sem

Dano”, a fim de que não se prejudique ainda mais a criança e o adolescente.

Alves & Saraiva (2007) ressaltam o que chamam de ‘pontos problemáticos’ no

tocante à aplicação da metodologia do “Depoimento sem Dano”, em especial sua

fundamentação e execução. Criticam a expressão ‘sem dano’, pois consideram que quando

Page 20: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

20

a psicologia adentra o judiciário no intuito de humanizá-lo e simplesmente realiza a

inquirição da criança/adolescente, visando tão somente uma produção antecipada de

provas, atua o psicólogo como uma espécie de ‘repetidor’ dos questionamentos formulados

pelo juiz. Reiteram que não é papel do psicólogo a realização de inquirições e que a

atividade deste profissional não deve limitar-se à simplesmente descobrir elementos para a

autoridade judiciária punir os agressores.

Outro ponto salientado é o fato da criança/adolescente ser transformada na única

testemunha e agente direta de uma possível condenação, devendo-se levar em conta, que

na maioria das vezes o suposto autor é alguém próximo da criança, com quem mantém

laços afetivos e que saber-se responsável pela condenação de tal pessoa é uma grande

carga a ser enfrentada. Preconizam que a Psicologia deveria manter sua especificidade, que

é a de trabalhar com a singularidade, que é a experiência vivida de um sujeito, a qual não

pode ser reduzida a nenhuma fórmula geral.

Em parecer técnico realizado pelo Conselho Federal de Serviço Social por Eunice

Fávero (2007) é enfatizada a necessidade de serem discutidas as questões problemáticas

envolvidas na metodologia do “Depoimento sem Dano”, especialmente no que concerne

aos aspectos éticos e técnicos do trabalho do assistente social e também possível violação

aos preceitos de proteção da criança e do adolescente prevista no ECA. Enfatiza a autora

em seu parecer a carência de debates a respeito do tema, em especial dos profissionais da

área de serviço social, parecendo a ela que o “Depoimento sem Dano” passa a configurar

uma ‘fórmula mágica’ a fim de evitar a tão falada revitimização.

Já Aleixo (2008) pontua que o emprego desta técnica não implica na garantia do

direito de opinião e de expressão da criança e do adolescente, uma vez que a inquirição

parte de uma concepção utilitária da obtenção da informação voltada para a produção de

prova em processo judicial. Ao submeter-se a criança/adolescente a uma teatrologia que

subverte o próprio papel do psicólogo, do assistente social e de suas intervenções, o

emprego de tecnologias dessa natureza perpassa pela supressão dos princípios da dignidade

e do respeito aos envolvidos.

Acrescenta que a filmagem do seu depoimento, além de não evitar a revitimização

decorrente de sucessivas inquirições sobre o mesmo fato, eterniza a sua própria condição

de vítima cujas imagens e histórias são gravadas. Conclui que a prova produzida pela

técnica do “Depoimento sem Dano” implica na abordagem da criança e do adolescente

como objeto de direito e não sujeito.

Page 21: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

21

Percebe-se assim, que no âmbito de atuação do profissional de Psicologia no que

concerne ao “Depoimento sem Dano” existe uma grande rejeição a tal prática, pontuando-

se sempre a questão ética como principal obstáculo.

CONCLUSÃO

A perspectiva da Psicologia acerca do “Depoimento sem Dano”, ao analisarem-se os

diversos posicionamentos a respeito, em especial o do Conselho Federal de Psicologia,

deixa claro que embora sejam pessoas com seus próprios direitos, as crianças não podem

exercê-los por si mesmas, precisando de proteção e cuidado dos adultos, configurando-se

como seres estruturalmente dependentes. Desta forma, acredita-se que somente a partir de

um trabalho terapêutico bem estruturado, a criança/adolescente poderá tomar uma decisão

qualificada no que diz respeito a verbalizar sobre o abuso, bem como estar preparada para

o que ocorrerá diante de tal verbalização.

Os profissionais da área Psi, pontuam que muitas vezes a criança é tão pequena que

sequer é capaz de vislumbrar qualquer tipo de conseqüência advinda de seu relato, sendo

que posteriormente, ao tornar-se mais madura, pode considerar que não deveria ter falado

sobre o fato. Sendo assim, consideram que a questão etária também é de crucial

importância, pois o simbolismo é decorrência do processo de desenvolvimento e não deve

ser atropelado.

Acrescentam que há uma grande pressão sobre a criança para que esta seja um objeto

do sistema penal, como parte da engrenagem jurídica, utilizada simplesmente para

condenar o agressor, sem qualquer preocupação com o dano psíquico que porventura

venha a sofrer neste processo. Questionam onde fica o direito da criança ter preservada sua

integridade emocional diante do chamado jus puniendi (direito de punir) estatal.

Enfatizam que a criança não pode ser colocada na posição de ser a única

possibilidade de condenação, pois este é um fardo muito pesado e a criança deixa de ser

vista como um sujeito para ser vista, simplesmente como um ‘meio de prova’. Neste

diapasão, o direito da criança passa a ficar em segundo plano, sendo sobrepujado pela

necessidade de uma constante criminalização/culpabilização, muito mais freqüente nas

camadas mais desfavorecidas da população.

Ressaltam diversas vezes que o profissional de Psicologia não é chamado a

desenvolver uma intervenção terapêutica, mas sim a atuar como um agente de controle

social e impor a vontade estatal sobre um indivíduo em desenvolvimento que não tem

Page 22: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

22

condições de discernimento e ainda não é capaz de elaborar o que vivenciou. Alegam que

nesta cobrança do Judiciário por uma suposta objetividade e busca da ‘verdade real’,

descaracteriza-se a especificidade da intervenção Psi e esquece-se que o psicólogo lida

com o subjetivo, com o não dito e trazer à tona algo que ainda não foi elaborado é

estritamente contrário aos cânones éticos que sempre pautaram a atuação do profissional da

Psicologia.

Por outro lado, os operadores do Direito vêem-se confrontados com a constante

necessidade de buscar, junto à criança, uma prova de suma importância: a prova

testemunhal no caso do crime de abuso sexual. Pontuam que este tipo de crime ocorre às

ocultas, na maioria das vezes em âmbito estritamente familiar, não contando com outros

tipos de elementos probantes. Para isso, buscaram junto à Psicologia e também ao Serviço

Social, um apoio no sentido de mediar uma interação com a criança.

Acredito ser válido que o Direito entenda não possuir uma linguagem adequada para

lidar com crianças/adolescentes, especialmente quando estes são vítimas de crimes de

natureza sexual intrafamiliar. Ao admitirem essa limitação, colocam-se em uma posição de

pedir ajuda, saindo de sua onipotência e acreditando na necessidade da preservação da

criança/adolescente no processo de coleta de provas (instrução do processo ou produção

antecipada de provas).

Desta maneira, quando a Psicologia veta de maneira categórica sua atuação neste

projeto, não apresentando nenhuma alternativa, torna difícil o diálogo entre as duas áreas,

fazendo com que o abismo que as separa, torne-se cada vez maior. Faz-se necessário a

troca de idéias, a mudança de paradigmas tanto dentro do Judiciário, quanto na área Psi,

visando-se sempre o bem estar da criança/adolescente.

O Direito sempre mostrou-se extremamente avesso à mudanças e a considerar a

perspectiva de outras áreas do saber, por isso, penso ser muito positivo que neste momento

se esteja discutindo a entrada de outros profissionais no outrora “inalcançável” meio

jurídico, que na maioria das vezes acredita ser auto suficiente.

Os operadores do Direito, especialmente no tocante ao “Depoimento sem Dano”,

mostram-se dispostos a adaptarem técnicas jurídicas cristalizadas, como na tomada do

depoimento da criança, percebendo que o conhecimento não é exclusivo de uma única área

do saber, mas sim faz parte de diversos setores e atividades, com diferentes entendimentos

e visões que muito podem contribuir um com o outro.

Entendo que a partir do momento em que o crime de abuso sexual atinge a esfera do

Judiciário, é porque a criança já relatou o fato a alguém, ou seja, a vítima quer, de alguma

Page 23: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

23

forma, ser ouvida e que se interrompa o ciclo da violência. Sendo assim, penso que a

Psicologia e o Direito poderiam tornar-se complementares, no sentido de efetuar um

trabalho que alie tanto o cuidado com o aspecto emocional da criança/adolescente quanto

um trabalho que atue no sentido de viabilizar a responsabilização daquele que praticou o

delito.

Não se pode, sob o argumento de que a criança restará ‘traumatizada’ ao falar sobre

o abuso, ignorar a questão da resiliência que muitas vítimas podem apresentar e que várias

podem entender o depoimento como uma oportunidade de reestruturação psíquica e

reelaboração da agressão sofrida e vivenciada.

Para tanto faz-se primordial o diálogo entre as duas esferas, uma interrelação entre

ambas, para que os pontos controversos sejam discutidos, as questões levantadas sejam, na

medida do possível sanadas, e que se possa chegar a um consenso sobre como efetivar-se a

tomada do depoimento da criança no Judiciário de uma forma que não seja tão danosa e

que não fira os ditames éticos da Psicologia. A área da Psicologia Jurídica, emergente que

é, poderia tornar-se o elo de ligação entre as áreas do Direito e da Psicologia e configurar-

se como um saber que engloba tanto os aspectos concernentes ao campo normativo como

àqueles que dizem respeito ao indivíduo e sua psique.

A Psicologia pode fazer com que o Direito compreenda a dinâmica do abuso sexual

intrafamiliar, de que forma a criança fica presa ao segredo e de que forma tal dinâmica

contribui para a manutenção do abuso, o qual atua como mantenedor da homeostase do

sistema. Assim, a esfera jurídica pode entender as falhas e lapsos no discurso da criança,

suas negativas, suas resistências e também sua vontade de falar.

Quando a criança quer e necessita falar, o Direito tem que estar preparado e disposto

a ouvir, porém, levando-se em consideração as características inerentes a cada faixa etária

e nível de desenvolvimento. A maneira com que o agressor é encarado, focando-se tão

somente na questão da punição também deve ser revista, e mais uma vez a Psicologia pode

lançar uma luz sobre a questão e contribuir muito sob este aspecto. Poder-se-ia pensar em

um ‘direito reparador’ do sujeito em oposição a um direito exclusivamente repressor e

punitivo.

Conclui-se, assim, que somente através de um trabalho interdisciplinar torna-se

possível a proteção dos direitos da criança, bem como a preservação de sua integridade

psíquica diante da experiência do abuso sexual.

Page 24: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

24

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEIXO, K. C. A extração da verdade e as técnicas inquisitórias voltadas para a criança e o adolescente. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, vol. 20, n. 2, p. 103-111, 2008. ALVES, E. O. & SARAIVA, J. E. M. Depoimento “sem dano”? - Texto produzido a partir de um evento organizado pelos Conselhos Regional de Psicologia e do Serviço Social do Estado do Rio de Janeiro, em abril de 2007, sobre o projeto “Depoimento sem Dano” implantado no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Disponível em < http://www.antigone-formation.com/racine/img/pdf/depoimento_sem_dano.pdf> Acesso em 13 abr. 2010. ARANHA, A. J. Q. T. C. Da prova no processo penal. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1987. ARANTES, E. M. M. Mediante quais práticas a psicologia e o direito pretendem discutir a relação? Anotações sobre o mal-estar. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em http://www.crprj.org.br/documentos/2007artigo-esther-arantes.pdf>. Acesso 23 mai. 2010. ARAÚJO, M. F. Violência e abuso sexual na família. Psicologia em Estudo, Maringá, (7): 2, 3-11, jul/dez, 2002. ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1973. AZEVEDO, M.A. & GUERRA, V.N.A. Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu, 1989. BITENCOURT, L. P. Vítima sexual infanto-juvenil: sujeito ou objeto do processo judicial. Revista da AJURIS/ Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. v. 34, n. 105. pp. 265 – 285. Porto Alegre: AJURIS, 2007. BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.htm> Acesso em: 16 fev. 2010. BRASIL. Presidência da República. Constituição Federativa da República do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm> Acesso em: 07 mar. 2010. BRASIL. Presidência da República. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm> Acesso em: 16 fev. 2010. BRASIL. Presidência da República. Senado Federal. Projeto de Lei Complementar n. 35, de 2007: (n. 4.126/2004). Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/infancia/projetosdelei/id2877.htm> . Acesso em: 08 mai. 2010. BRAUN, S. A violência sexual infantil na família: do silêncio à revelação do segredo. Porto Alegre: AGE, 2002.

Page 25: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

25

BRITO, L. M. T. Diga-me agora... O Depoimento sem Dano em análise. Psicologia Clínica, 20 (2): 113-125, 2008. BRITO L.; AYRES L.; AMENDOLA M. A escuta de crianças no sistema de Justiça. Psicologia & Sociedade, 18 (3): 68-73, 2006. BUCHER, J. F. Lei, transgressões, famílias e instituições: elementos para uma reflexão sistêmica. Psicologia: Teoria e Pesquisa. 8 (Suplemento): 475-483, 1992. CESCA, T. B. O papel do psicólogo jurídico na violência intrafamiliar: possíveis articulações. Psicologia & Sociedade, 16 (3): 41-46; set/dez, 2004. CEZAR, J. A. D. Depoimento sem Dano: uma alternativa para inquirir crianças e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007. COHEN, C. O incesto – um desejo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Conheça a manifestação do Conselho sobre o PL que trata do Depoimento sem Dano, 2008. Disponível em<http://www.pol.org.br/pol.cms/pol/noticias/noticia_080409_932.htm>. Acesso em 23/05/2010. DEL PRIORE, M. História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991. DOBKE, V. Abuso Sexual: A inquirição das crianças, uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Ricardo Lenz Editor, 2001. FÁVERO, E. T. Parecer técnico sobre a metodologia “Depoimento sem Dano” ou “Depoimento com Redução de Danos”. Conselho Regional do Serviço Social de São Paulo, 2007. Disponível em http://www.cress-sp.org.br/index-asp?fuseaction═manif&id═162> Acesso em 09 abr. 2010. FAYET JR., N. Prova Criminal: O Testemunho Infantil, 2005. Disponível em <http://www.femargs.com.br/revista.02.fayet.html>. Acesso em 04 jun. 2010. FURNISS, T. Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed, 2002. IMBER-BLACK, E. Os segredos na família e na terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. JACÓ-VILELA, A. M. Os primórdios da Psicologia Jurídica. In: L. M. Brito (Org.), Temas de Psicologia Jurídica (pp. 11-18). Rio de Janeiro: Belume-Dumará, 1999. MIRANDA JR., H. C. Psicologia e Justiça: a Psicologia e as Práticas Judiciárias na construção do ideal de Justiça. Psicologia, Ciência e Profissão, 18 (1), 28-37, 1998. ONU. Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Disponível em <http://www.onu.brasil.org.br/doc_crianca.php> Acesso em 25 mai. 2010.

Page 26: depoimento sem dano ucbcorrigido2 - Alagoas

26

PEREIRA R. C. A primeira lei é uma lei de direito de família: a lei do pai e os fundamentos da lei. In: G. C. Groeninga & R. C. Pereira (Org.), Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia (pp. 55-88). Rio de Janeiro: Imago, 2003. PRADO, L. R. Falso testemunho e falsa perícia. São Paulo: Saraiva, 1984. RANGEL, P. C. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Paraná: Juruá Editora, 2001. SANDERSON, C. Abuso Sexual em Crianças. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda, 2005. VOLNOVICH, J.R. (Org.). Abuso sexual na Infância. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2005.