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Natalia Brizuela 

Depois da fotografia 

Uma literatura fora de si

Tradução de

Carlos Nougué

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Copyright  do texto © 2014 Natalia Brizuela

Coordenação Coleção Entrecríticas © Paloma Vidal

Direitos desta edição reservados àEDITORA ROCCO LTDA.Av. Presidente Wilson, 231 – 8º andar20030-021 – Rio de Janeiro – RJTel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) 3525-2001

[email protected]

 Printed in Brazil/Impresso no Brasil

preparação de originais JULIA WÄHMANN

CIP-Brasil. Catalogação na fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

B879d Brizuela, NataliaDepois da fotografia: uma literatura fora de si/

Natalia Brizuela; tradução de Carlos Nougué. –1ª ed. – Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

(Entrecríticas)

Tradução de: Una literatura fuera de sí.ISBN 978-85-325-2940-4

1. Literatura brasileira – História e crítica.I. Título. II. Série.

CDD–80914-13877 CDU–82.09

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Sumário

 Agradecimentos .................................................................................................................................................. 7

1. A escrita assume a categoria de prática artística .................................. 11

2. A fotografia da história ................................................................................................................. 105

3. Os limites do livro ................................................................................................................................ 141

4. Escrever sem escrever = Fotografar sem fotografar ......................... 171

5. Mutações. Analogias. Fotografias ................................................................................ 195

Notas ..................................................................................................................................................................................... 233

Bibliografia ................................................................................................................................................................. 245

Sobre a autora ........................................................................................................................................................ 255

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 Agradecimentos 7

 Agradecimentos

A Paloma Vidal, por ter me convidado a escrever este en-

saio, obrigando-me assim a ordenar coisas sobre as quais

vinha pensando, ensinando e escrevendo já fazia um bom

tempo. A Paloma Checa-Gismero, por ter me escutado em

meus primeiros balbucios sobre fotografia e literatura e ter

compartilhado comigo seus conhecimentos e trabalhos so-bre o tema, em especial sua brilhante recuperação do livro

 I See/You Mean, de Lucy Lippard. A Vilma Areas, por ter me

alentado enquanto lhe contava possíveis ideias que ainda

não chegavam a sê-lo quando apenas começava a escrever.

A Laura Garcia Moreno, por ter lido tudo cuidadosamente

e ter me oferecido todo tipo de conselhos. A Flora Süssekind,

por ter me convidado a participar com ela de um painel em

2012 no qual, ainda que eu tenha terminado sem falar, como

havíamos combinado, das “expansões” da literatura para

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outros meios e outras artes, pude porém escutar suas pro-

postas e análises sobre o que aqui chamo “a literatura fora

de si”, sem as quais me teria sido impossível escrever este en-

saio. Foi ali também que, através da intervenção de Flora,

me dei conta de que devia ler Josette Féral. A Andrea Giunta

e a Nuno Ramos, que responderam, em diferentes momen-tos, a vários e-mails meus pedindo ajuda, quando estava

desesperada, pensando que me faltavam os dados que ou

desarmariam ou sustentariam o ensaio. Aos alunos de meu

curso “Literature and Photography’s Expanded Fields”, mi-

nistrado na Universidade da Califórnia, Berkeley, no outo-

no de 2012, por terem explorado comigo muitos dos textos

e das ideias aqui expostos. Aos alunos de meu seminário“Critical Temporalities”, ministrado na mesma universi-

dade, na primavera de 2013, junto com os quais explorei a

leitura de Rulfo e a imagem diáletica, por todos os seus valio-

síssimos comentários e críticas. Aos membros do seminário

“Visual Culture and Regimes of Visibility in Latino Ame-

rica”, na American Comparative Literature Association

(ACLA), Toronto, em abril de 2013 – Mary Coffey, Claire Fox,

Esther Gabara, Adriana Johnson, China Medel, Adele Nel-

son, Fernando Rosenberg, Roberto Tejada, Camilo Trumper

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 Agradecimentos 9

e Alejandra Uslenghi –, que leram, discutiram e criticaram

a primeira parte deste ensaio, e que me ajudaram a pensar

o projeto em geral. A Alexandra Saum-Pascual e Catarina

Gama, por terem lido e comentado a versão final do texto.

A Blanca Missé, por ter escutado tudo, discutido tudo e lido

tudo inumeráveis vezes com tanta sagacidade e inteligência,paciência e carinho.

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1. A escrita assume a categoria 

de prática artística 

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 A escrita assume a categoria de prática artística 13

Os livros do futuro

Na Escola Dinâmica de escritores que Mario Bellatin fun-

dou na Cidade do México no ano de 2000, “só existe uma

proibição”, como ele próprio esclarece, “a de escrever” (2006,

p. 9). Na antologia publicada em torno do fazer e do méto-

do da escola, Bellatin explica que a ideia principal da escola

é que ali “se examinam assuntos relacionados não somentecom a literatura, mas, especialmente, com as maneiras de

que se servem as demais artes para estruturar suas narrati-

vas” (ibidem, p. 9). Por isso o projeto da literatura vindou-

ra, do que chamamos literatura contemporânea, se situa,

nas palavras de Bellatin, “nas fronteiras” entre a literatura

e as outras artes, fazendo com que a escrita “assuma a cate-

goria de prática artística”. Nessa zona porosa do limite, da

fronteira, espaço e momento sempre de contágio, de conta-

minação e de metamorfose, tanto a literatura se transforma

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em outras artes como as demais artes são potencialmente

transformadas em literatura: na Escola de Bellatin as fron-

teiras estão abolidas.

A proposta da Escola Dinâmica de Escritores torna re-

gra e projeto as transformações no campo da arte, especifi-

camente o apagamento das fronteiras que separam as artesentre si. Ainda que essas transformações e esses apagamen-

tos já se venham manifestando há vários séculos, é a partir

das vanguardas históricas, e de modo ainda mais contun-

dente na segunda metade do século XX, que se tornam visí-

veis de maneira generalizada, e não somente na produção

de artistas considerados radicais. A arte não deixou de re-

definir-se nos últimos séculos – aqueles que costumamosagrupar sob a rubrica fácil mas impossível de definir de “mo-

dernidade” – precisamente com relação às e como conse-

quência das intrusões que cada arte sofreu tanto de outras

práticas como do mundo, modificando, a cada momento,

seus próprios paradigmas. Num mundo onde já não há con-

tinuidade entre as coisas, e muito menos entre as coisas e

as palavras que as designam, entre o mundo e sua prosa ha-

veria – desde fins do século XVIII e começos do século XIX

– a constante ameaça do limbo do naufrágio depois da

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ruptura dessa relação harmoniosa que Foucault denomi-

nou “a prosa do mundo”.1  Ou seja, a Escola de Bellatin

torna objeto de estudo – com o perigo da sistematização,

poderíamos dizer – as maneiras como as artes se nutrem

umas das outras, e deste modo organiza o que se chamou,

desde fins do século XVIII, “estética”: esse campo do sensí-vel em que já não há artes diferenciadas claramente, mas

tão somente arte. Que as transformações apareçam agora,

via-o Bellatin, como meta, como princípio, parece assina-

lar que aqueles cruzamentos, passagens e intermediações

que levaram as artes para as desestruturações de si mesmas,

e que vêm ocorrendo, como dissemos, no campo do sensí-

vel de modo mais ou menos orgânico há mais ou menos

dois séculos, se transformam em sistema, em plano, em es-

trutura. O ditame de Bellatin funciona, então, como sinal

de que talvez estejamos, outra vez, num ponto de inflexão

desses cruzamentos, agora já tornados dictum.

O que me interessa explorar aqui são as lógicas e meca-

nismos dessas transformações, desses cruzamentos, e assi-

nalar em particular alguns deslocamentos e metamorfoses

nessa atividade da arte que chamamos literatura.

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Na busca de características narrativas das outras artes,

Bellatin levou sua produção literária para essa fronteira ou

limite onde as distinções entre meios e artes se apagam: o

cinema, a música, a performance, a fotografia, e também,

sempre, “a prosa da vida”. De todos eles, a fotografia ocupa

um lugar central, diríamos até chave, já que parece ser omeio privilegiado para a passagem ao que não é. Agente ou

intermediário, na obra de Bellatin a fotografia é o veículo

do deslocamento, é o que permite a produção de uma lite-

ratura marcada pela transferência e pela indiferenciação, é

o meio que leva a literatura para fora de si, para fora de seu

próprio meio. Isto é evidente no mais visível: a inclusão de

fotografias em muitos de seus livros, como, por exemplo,em Perros héroes , Los fantasmas del masajista , Shiki Nagaoka:

una nariz de ficción e Demerol. Mas também é inquestioná-

vel em algo menos evidente, algo que o narrador de um de

seus livros deixa muito claro: a obra de Bellatin pode ser

lida como a busca, através da fotografia, e também de ou-

tros meios, de outro modo de escrita. O narrador de Shiki

Nagaoka: una nariz de ficción diz, relatando as opiniões do

personagem principal, que no porvir o escritor fará (não es-

creverá, mas fará) fotografias narrativas: “A fotografia nar-

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rativa tenta realmente estabelecer um novo tipo de meio,

alternativo à palavra escrita, e que talvez aquela seja a for-

ma como serão concebidos os livros no futuro.” (BELLA-

TIN, 2001, pp. 31-32) Um modo alternativo à palavra escri-

ta: uma fotografia escrita.

 A fotografia narrativa 

Shiki Nagaoka é um personagem de ficção em torno do

qual se organiza o livro que leva seu nome no título. Se es-

clareço que o personagem principal de um livro é “ficcio-

nal”, é porque o “nascimento” de Shiki Nagaoka ocorreu

fora da ficção, numa conferência dada por Mario Bellatinsobre “Meu escritor preferido” no Círculo de Bellas Artes,

no México, em 1998. Ali falou sobre Shiki Nagaoka. A par-

tir dessa conferência e do interesse que gerou, ele escreveu

o livro Shiki Nagaoka: una nariz de ficción, para inventar,

para seu escritor favorito, uma biografia, uma vida. Como

veremos mais adiante, o interessante, para além do gesto

performático de Bellatin, é pensar como ele construiu um

personagem cujas teorias sobre a literatura são, com efeito,

as que constituem os textos do próprio Bellatin.

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O livro, pseudobiográfico, inclui um dossiê fotográfico

com imagens de objetos que supostamente oferecem uma

janela para o mundo de Shiki Nagaoka e dois retratos onde

não se vê claramente o escritor japonês. O corpo que se vê

nas fotografias poderia ser o de qualquer pessoa. Na obra

de Bellatin, o dossiê fotográfico como parte da biografia deum personagem de ficção funciona como desestabilizador,

e não como prova ou documentação de uma verdade exte-

rior à arte. As fotografias operam ali como desafio à singu-

laridade, como visualização da fratura de qualquer projeto

de identidade, impulsionando uma decomposição de uni-

dade. Não representa nada, mas estabelece um regime em

que o livro – com seu dossiê fotográfico – é arte. É arte pelaconvivência de elementos opostos: é arte porque é algo se-

parado, autônomo da realidade e do mundo; e ao mesmo

tempo é arte precisamente porque contém marcas, mais ou

menos visíveis, de que em seu interior há elementos exte-

riores a essa autonomia, elementos que consideraríamos,

precisamente, como pertencentes ao mundo. Aquilo que se

vê na imagem existe (desse exato modo) tão só na imagem.

De todos os meios através dos quais a arte adquire presen-

ça, a fotografia é o que contém essa heterogeneidade, essa

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convivência de polos opostos. A fotografia é sempre arte

e não é arte ao mesmo tempo. O dispositivo fotográfico per-

mite algo contraditório ou em tensão: aproximar-se e afas-

tar-se da realidade. É um espelho que reflete algo que não

existe fora do espelho, algo assim como um espelho autor-

referencial, autorreflexivo. É mimético. Mas o é falsamen-te, ou mentirosamente. Porque toda fotografia é também,

antes de tudo, uma operação de montagem – corte, dissec-

ção, reorganização para decompor a realidade – e por isso

a produção de uma heterogeneidade que só pode ser en-

tendida como estética e não mimética.

O livro de Bellatin joga com uma “vida real” de ficção,

que nasceu fora da arte, na realidade – durante a conferên-cia que Bellatin deu em 1998 – que é documentada graças

ao dossiê fotográfico, mas que não é realidade, documento

nem verdade, mas arte. Esta convivência dentro da mesma

obra de pulsões opostas – a separação, a autonomia e a in-

trusão da vida prosaica – é o que o campo filosófico contem-

porâneo, do ângulo de posicionamentos diversos, chamou

estética.

Se o dossiê fotográfico em Shiki Nagaoka fosse prova de

algo, seria uma dupla prova: prova do poder da ficção de in-

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ventar até seus próprios referentes no mundo real; prova

de que é arte precisamente porque conseguiu acolher den-

tro de si aquilo que havia estado mais afastado da arte até

esse momento – o índice do mundo que toda fotografia

constitui. Um detalhe importante: a obra-chave de Shiki

Nagaoka foi traduzida para o espanhol, diz-nos o livro, noano de 1960. Ano, acrescentemos, do nascimento de Bel-

latin.

Segundo o livro de Bellatin, Shiki Nagaoka era um “es-

critor sério obcecado com as relações entre linguagem, foto-

grafia e literatura” e “considerava um privilégio contar com

imagens visuais inteiras, que de algum modo reproduziam

imediatamente o que as palavras e os ideogramas tardavamtanto a representar” (2001, p. 15). A questão é a velocidade,

a rapidez, o narrador sublinha o tempo da imagem. Isso é

o que interessava a Shiki Nagaoka: a agilidade e ligeireza ofe-

recidas pela imagem. Há uma ambiguidade: aquilo por re-

presentar-se poderia ser realidade ou ficção. Esta capacidade

da fotografia se resume, em outro fragmento do romance,

como a “potencialidade narrativa” desse meio. As imagens

visuais permitem uma velocidade que a palavra escrita não

tem: são, literalmente, instantâneas. É interessante que

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a capacidade de reproduzir com maior velocidade o que se

queria representar deixa fora de jogo o mimetismo suposta-

mente natural do meio fotográfico – ainda que claramente

jogue com essa semelhança da imagem. Apesar de seu “rea-

lismo inato”, a Shiki Nagaoka não interessa a verossimilhan-

ça da imagem, sua capacidade representativa e mimética.A relação de Shiki Nagaoka com a fotografia se desenvol-

veu, segundo a “biografia” de Bellatin, quando ele já era

adulto. Depois de viver como monge durante treze anos, Na-

gaoka Shiki saiu do mosteiro e, ao ingressar na vida “laica”,

abriu uma loja de venda e revelação de fotos. Era o começo

dos anos 30, uma época em que a fotografia se havia popu-

larizado e começado a meter-se em todos os interstíciosdas vidas privada e pública. Pelo final da Primeira Guerra

Mundial, antes de Shiki Nagaoka ingressar no mosteiro, a

fotografia havia sido de uso exclusivo dos fotógrafos pro-

fissionais em seus estúdios, ainda que já nessa época ela

começasse a ser a atividade de todos e elemento ubíquo da

vida urbana moderna. Na loja de revelação passam pelas

mãos de Shiki Nagaoka milhares e milhares de imagens

fotográficas, e é depois de um tempo que ele se dá conta de

que o que o estudo minucioso de cada imagem lhe propor-

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ciona é “uma natureza que antes teria passado pelo olhar

de um fotógrafo” (idem, ibidem, p. 25). A fotografia não

“redime” a realidade, mas inventa realidade. Essa natureza

não é a realidade, mas a desnaturalização do natural, a des-

familiarização da realidade, a “manipulação da realidade”.

Como? A operação fotográfica reside em dissecar um frag-mento do real, isolá-lo, e apresentá-lo, sempre, fora de con-

texto, em outros tempos e outros lugares. Isso sucede na

fotografia, e, diferentemente de outros meios, a partir de

sua característica indicial – o ser, literalmente, um vestígio.

A operação estrutural da fotografia é a descontinuidade – a

imagem está, sempre, fora de lugar, extraída do continuum

de onde foi tirada. Mas, além disso, a fotografia “não pro-fissional”, ou seja, a fotografia já onipresente e acessível a

todos na “desordem” da redistribuição da esfera da arte e

do sensível, o que Rancière chamou “o regime estético da

arte”, é uma das atividades-chave através da qual o homem

comum “faz” ou “pratica” arte. Todos esses negativos que

Shiki Nagaoka revela em sua loja são a prova de que a arte

pertence a todos – é a vida e produção artística do anônimo.

Foi essa experiência cotidiana com a fotografia em sua

loja e o forçado desfecho da Segunda Guerra que o levaram

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a viver em refúgios, isolado de um mundo de que só resta-

riam, eventualmente, ruínas (período durante o qual sua lo-

ja foi destruída), o que levou Shiki Nagaoka a escrever seu

grande livro, Foto e palavra. O livro, diz-nos o narrador, é

escrito como “pequenas semelhanças cotidianas, que dão

a impressão de descrever de forma inocente uma série defotos” e de forma fragmentária “consegue mostrar quase

de uma forma global sua sociedade” (idem, ibidem, p. 29).

Aparentemente,  Foto e palavra  marcou profundamen-

te gerações de artistas, que viram na proposta de Shiki Na-

gaoka um novo método narrativo. Entre os seguidores do

método Nagaoka estava Kenzou Ozu, que se baseou no li-

vro quando se preparava para filmar Tarde de outono. Fotoe palavra deu a volta ao mundo e ofereceu a muitos “uma

nova maneira de entender a realidade”. Este novo modo

de entender a realidade se dava através da escrita de “foto-

grafias narrativas”.

Como se escreve fotograficamente? O que está suge-

rindo o narrador do livro de Bellatin? A fotografia é uma

operação sobre os materiais da vida – é isso o que habita as

fotografias pessoais, essas que passariam por uma oficina

qualquer de revelação, sem pretensões artísticas – porque

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provém da “prosa do mundo” e ao mesmo tempo é o meio

para recusar-se ao mundo, escrever sempre sobre uma já en-

quadrada e visível realidade que só guarda com o mundo

empírico uma relação de fantasmagoria.

Seria então possível pensar que a “fotografia narrativa”

proposta pelo personagem de ficção de Bellatin é uma des-sas passagens da literatura que a Escola Dinâmica de Escri-

tores buscava impulsionar. Shiki Nagaoka: una nariz de ficción

foi publicado no ano de 2001, o mesmo ano em que Bellatin

funda a Escola Dinâmica de Escritores. É a partir desse ano

que começam a aparecer em seus livros, de modo sis-

temático, fotografias e também experiências que levam a

fazer fotografias com palavras. Numa entrevista de 2006,Bellatin diz a seu entrevistador que “a câmera fotográfica é

fundamental para mim”, dado que lhe permite criar “estra-

nhamento” (BELLATIN, 2006b, p. 68). Por que estranhamen-

to? Que a fotografia “estranhe” claramente contradiz o que

poderíamos chamar os mitos populares sobre a fotografia

já massificada do século XX: a fotografia, ao documentar

a realidade, com os corpos, objetos e eventos que sucedem

no mundo, são provas de que esse mundo, essa realidade

existe, e de que esses corpos e situações são verídicos, pos-

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tulando assim a fotografia como uma espécie de “polícia”

da homogeneidade do mundo. Mas, como deixaram claro

os surrealistas, que tanto usaram a fotografia e que cons-

tituíram Eugène Atget como um de seus precursores, este

meio era também um instrumento para a exploração do in-

consciente, para a “escrita automática” buscada por Breton,para a apresentação (mas não para a representação nem para

a reprodução) do mundo desnaturalizado , estranhado, para a

desfamiliarização que Chklovsky e os formalistas russos de-

finiram como a função da arte.2

 A fotografia como índice de opacidade“A literatura é uma afirmação de verdade”, assinala Bernar-

do Carvalho numa entrevista de 2007. Não porque a litera-

tura seja uma glosa ou um comentário, nem, muito menos,

uma representação de uma realidade prévia à que se confi-

gura a partir das páginas do livro, mas porque a literatura

cria, aciona e desse modo consolida e afirma um mundo.

Um mundo que somente existe entre as páginas do livro.

Sob essa convicção sobre a literatura, Carvalho publica Nove

noites em 2002, o romance que o consolidou como o gran-

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de escritor de sua geração, num movimento já típico de sua

obra, desde As iniciais até o mais recente O filho da mãe.

Nos agradecimentos que aparecem ao final de Nove noi-

tes, lemos “Este é um livro de ficção, embora esteja basea-

do em fatos, experiências e pessoas reais”, assim como nas

declarações que aparecem nos créditos ao final dos filmesmais mainstream, ainda que no romance de Carvalho o que

se anuncie seja exatamente o contrário dessas negações nos

créditos fílmicos. A semelhança com a vida está ali em Nove

noites, e o livro quer que o leitor perceba essa semelhan-

ça sem nenhuma ambiguidade. E, apesar disso, a obra de

Carvalho não é uma tentativa de representar a realidade

através da e na literatura, nem de fazer a literatura entrarem colapso dentro da crônica (um gênero que Carvalho

praticou durante muitos anos para a  Folha de S.Paulo). Na

mesma entrevista, Carvalho declara que os documentos in-

dexicais que aparecem em seus romances “representam uma

realidade que não pode ser conhecida (...) são documentos

reais (...) cuja opacidade é, ao mesmo tempo, a mais abso-

luta” (2007). Os índices não revelam, eles escondem, opa-

cam. Em face deles, não se pode saber nada, a não ser através

da ficção. Só a ficção tem a força de saber algo, com certeza.

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 A escrita assume a categoria de prática artística 27

A certeza não é a certeza propiciada por uma iluminação,

por uma explicação detalhada. É a certeza que sabe que

não se pode saber. Em Nove noites há três fotografias. Os cré-

ditos ao final do romance dão sua procedência – arquivos

do Museu Nacional e de uma Casa de Cultura. Carvalho en-

controu as fotografias quando começava a preparar o ro-mance, e elas lhe chamaram a atenção por tudo o que não

podiam revelar nem esclarecer acerca do verdadeiro jovem

Buell Quain, apesar de serem “vestígios”, “traços” indexi-

cais. Estão ali não como ilustração do relato, nem como a

“face” real do personagem do romance. Estão ali como sig-

no da ficção. Carvalho desarma a concepção tradicional des-

ses dois meios: a ficção não emerge da imaginação, mas darealidade; e a fotografia não é documento, mas ficção. Ape-

sar dessa inversão, o que eu gostaria de destacar, tanto na

obra de Carvalho como na de Bellatin, é que suas estéticas

estão repensando as categorias dos meios, as distinções e di-

ferenciações entre as artes. Não deveria surpreender que am-

bos recorram à fotografia – não exclusivamente, mas sim

crucialmente – para assegurar e proteger a opacidade da arte

em face da avalanche de realidade que povoa nosso cotidia-

no nas últimas décadas e que inevitavelmente marcou mui-

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28 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

tos projetos artísticos contemporâneos. Como resultado da

contradição interna que constitui toda fotografia – perten-

ce ao mundo, mas não é o mundo; é familiar, mas também

estranha –, o meio é marcado pelo inquietante, pelo sinis-

tro – pelo unheimlich. Todos os grandes críticos modernos

da fotografia sublinharam esta característica inerente aomeio: de Walter Benjamin a George Baker, passando por

Eduardo Cadava, Roland Barthes e Carol Armstrong. Essa

estranheza, essa leve inquietude ou perturbação que senti-

mos diante de toda fotografia é o que lhe permite ser hoje

o veículo perfeito para insistir na opacidade da ficção, é cla-

ro, mas também na opacidade da realidade.

Em um dos ensaios mais lúcidos que há sobre a obra de

Carvalho, Susana Scramin observa que em toda a narrativa

do autor há um procedimento de dobra e desdobramento

entre as duas partes em que são construídos seus relatos. Não

há divisão entre as duas partes, esclarece Scramin, mas dupli-

cação: “A segunda história desconstrói a primeira, e a pri-

meira a segunda, sem que reste nenhum sentido que possa

ser reconstruído depois de seu desdobramento.” (SCRAMIN,

2009, p. 171)

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 A escrita assume a categoria de prática artística 29

Esse procedimento que Scramin detecta e descreve na

obra de Carvalho tem como meta manter sob custódia uma

opacidade. É uma aposta numa escrita que não se constrói

a partir de certezas, mas como um jogo de sombras de que

o leitor nunca conhecerá os corpos que lhes deram forma.

Nesse jogo de sombras, dobradas e desdobradas umas so-bre outras, a fotografia aparece como signo do desconheci-

do. Não há uma certeza ou algo por conhecer, só uma ficção

por percorrer. O que vemos quando olhamos essas fotos que

segundo um arquivo são retratos de Buell Quain, ou a foto-

grafia em que ele está sentado junto a outras figuras, num

jardim? Vemos o que a ficção nos abre. Não vemos uma rea-

lidade anterior, ainda que queiramos crer que ali está o tra-ço de uma realidade prévia que nos ancoraria numa certeza.

O relato duplicado é a ontologia da fotografia, de toda

e qualquer fotografia. Aparentemente atada a uma realida-

de prévia, toda fotografia é uma duplicação que naufragou

– no sentido de estar descontextualizada, de já não fazer

parte de um continuum, de ser uma citação, de ser um cor-

te. É o naufrágio da realidade o que constitui o terreno da

ficção.

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30 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

Fotografia e literatura 

O caso de Bellatin e o de Carvalho talvez sejam dos mais

emblemáticos na literatura latino-americana contemporâ-

nea, e em suas produções a fotografia é veículo privilegia-

do para a passagem para outras zonas, para uma zona “forade si”. A literatura contemporânea é uma literatura que em

parte propõe que os livros “do futuro” – os livros de hoje –

sejam livros concebidos como objetos fronteiriços, limi-

nares, contaminados, que os livros de hoje sejam – valha a

redundância – de um regime artístico das artes distinto do

de um século atrás. Mas esses não são, é claro, os únicos.

Nem os primeiros. Desde meados dos anos 50, a produçãoliterária, dentro e fora de América Latina, tangenciou (ou até

se lançou a) muitas zonas, meios, materiais e suportes para

além da escrita, heterogêneos ao da palavra. Desde mais ou

menos essa mesma época, a arte não literária também co-

meçaria a nutrir-se de meios alternativos aos seus mesmos

meios, entre os quais a escrita – ainda que alguns críticos

dissessem que isso vem de antes, contundentemente des-

de fins do século XIX e durante o período das vanguardas

históricas.

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 A escrita assume a categoria de prática artística 31

Entre essas muitas expansões da literatura, está sua pas-

sagem para o campo fotográfico. Esta contaminação par-

ticular – foto e palavra, citando Shiki Nagaoka – produziu

diferentes resultados: deu-se às vezes através da inclusão

de imagens fotográficas em obras literárias, e outras vezes

como paradigma de uma nova sintaxe e de uma nova lite-ratura utilizando certas características do dispositivo foto-

gráfico – como a indexicalidade, o corte, o ponto de vista,

o pôr em cena, a dupla temporalidade (passado-presente/o

que foi-o agora), o caráter documental, sua função mnemô-

nica, o ser uma mensagem sem código.

O que acontece quando a literatura toca a fotografia?

A literatura move-se para uma prática conceitual, abre-separa o mundo, para aquilo que não era antes parte dos ma-

teriais, do meio literário. Como? De várias maneiras. Podem

traçar-se, segundo os tipos de expansões que mencionei, e

a traços largos, duas séries: os livros com fotografias e os

livros onde a fotografia, apesar de não estar presente, é per-

cebida através de alterações na sintaxe. Em cada série esse

movimento é diferente, nunca uniforme nem homogêneo.

Na série dos “livros com fotos”, pensando na produção que

vai de meados do século XX até hoje, entrariam livros como

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32 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

Shiki Nagaoka e  Perros Heroes, de Mario Bellatin;  El infarto

del alma e  Lumpérica, de Diamela Eltit; La nueva novela, de

 Juan Luis Martinez; La noche de Tlatelolco, de Elena Ponia-

towska; Versos de salón, de Nicanor Parra; Álbum de la sagrada

família  puertorriqueña, de Edgardo Rodriguez Juliá; donde,

de Eduardo Lalo;  Farabeuf , de Salvador Elizondo, Capão pecado, de Ferrez; O mês da  gripe e  Minha mãe morrendo, de

Valêncio Xavier; Nove noites, de Bernardo Carvalho; Junco

e “Minha fantasma”, de Nuno Ramos;  La foto del inverna-

dero, de Reina María Rodríguez; Paranoia, de Roberto Piva;

 Asfalto-infierno, de Daniel González e Adriano González

León; ou Exposition Park, de Roberto Tejada. Na série de li-

vros “sem fotos”, mas com uma sintaxe que toma do obje-to e ato fotográfico sua gramática, estariam, entre outros,

 Pedro Páramo, de Juan Rulfo; Vista del amanecer en el trópico,

de Guillermo Cabrera Infante; Ninguém nada nunca  e “La

mayor”, de Juan José Saer;  El aire, de Sergio Chejfec; Um

sueño realizado, de César Aira; certa obra poética de Ana Cris-

tina César; Catatau, de Paulo Leminski. A leitura de David

Oubiña sobre o procedimento fotográfico, e cinematográ-

fico na escrita de Juan José Saer, e as de Luz Horne (2012)

sobre a fotografia como modelo para uma escrita que quer

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 A escrita assume a categoria de prática artística 33

ser puro presente e pura realidade na obra de Sergio Chejfec,

César Aira, Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll são

exemplares. Eu diria, até, iluminadoras. Neste ensaio me

concentrarei nas práticas literárias mais experimentais, que

produziram livros mais marcadamente híbridos, que in-

cluem, na maioria dos casos, fotografias: Eltit, Bellatin, Ra-mos. Mas começarei analisando com atenção Pedro Páramo,

obra cuja sintaxe e cuja forma se estruturam pela fotogra-

fia, ainda que não contenha nenhuma reprodução foto-

gráfica.3

Esclareçamos outra vez, voltando ao ditame de Bellatin:

no campo literário, a interferência com outros meios não

se deu somente entre fotografia e literatura, mas tambémentre muitas outras práticas – literatura e performance (dos

Nuyorican poets a Arnaldo Antunes), literatura e artes plás-

ticas (de Severo Sarduy a Nuno Ramos e Laura Erber), li-

teratura e vida (de Rodolfo Walsh a César Aira, passando por

 José Maria Arguedas, Héctor Libertella, Julio Cortázar, Waly

Salomão e Ana Cristina César), literatura e novos meios (dos

poetas concretos a Heriberto Yépez), para mencionar só al-

gumas. Ainda que aqui eu vá indagar sobre o cruzamento

entre fotografia e literatura, para rastrear e analisar através

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34 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

deste a transformação e mutação do campo literário, dos

materiais literários, das linguagens e meios que agora recon-

figuram a literatura e o livro, poderia talvez ter-me centrado

em outros cruzamentos, outras contaminações, como o ci-

nema ou o teatro, ou não ter privilegiado nenhum meio es-

pecífico e ter explorado os devires dessas heterogeneidadesque Jacques Rancière chamou “o regime estético da arte”.

Neste momento “estético” da arte – que antes passou por

seus momentos ético e depois mimético/representativo –

a escolha de observar um cruzamento específico, neste caso

entre literatura e fotografia, poderia parecer uma proposta

equívoca, contraditória com o “presente” porque o campo

da estética – a arte do e no presente – não afetaria em parti-cular nenhum meio ou arte acima de outros. Mas, como su-

gerirei ao longo deste ensaio, esse cruzamento em particular

é fundamental para entender a arte em nossa contempo-

raneidade. Por quê? A emergência da literatura como algo

diferente do campo das belles-lettres, entre início do sécu-

lo XIX (na Europa) e fim do mesmo (nas Américas), foi um

catalizador para a emergência do que Rancière chamou “o

regime estético da arte”, e que foi lentamente deixando para

trás o anterior , no qual as artes se produziam e eram visíveis

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 A escrita assume a categoria de prática artística 35

dentro de rígidas estruturas e paradigmas que organizavam

as regras de cada arte e as mantinham em seu lugar, clara-

mente delimitadas e dentro de estritas hierarquias de impor-

tância e poder. Quando no século XIX emerge a literatura,

ela se caracteriza, segundo Rancière, por sua livre circula-

ção fora de todo sistema de legitimação. Ao sair para o mun-do, com todo o seu caos, e decompor o sistema de unidade

que caracterizava o regime representativo, a literatura pode

ser qualquer coisa, não tem já características específicas que

a distingam de outras práticas. Não tem legitimidade, nem

tampouco, por isso mesmo, se sabe já bem o que é.4 A foto-

grafia emerge nessa mesma época.

 A fotografia entre documento e conceito

Em seu escrito sobre o Salão de 1859, Baudelaire descreveu

a fotografia por sua capacidade de magnificar e precisar o

que já se via, dando o parecer, em tom ferozmente crítico,

de que o novo meio tinha como selo característico sua pre-

cisão e exatidão materiais (BAUDELAIRE, 1999, pp. 229-233).

Essa observação do poeta francês resume a postura mais co-

mum de sua época face ao novo meio de reprodução mecâ-

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36 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

nico: a fotografia não era arte, mas uma ciência que podia

e devia ser posta a serviço de variadas disciplinas e institui-

ções – como a astronomia, a medicina, a criminologia, a

lei – porque era um instrumento ideal para a “documenta-

ção”, dada a capacidade de sua fidelidade absoluta na re-

produção de tudo o que fosse exposto ao olho observadorde sua máquina. O afã arquivista, colecionador e organiza-

dor do século XIX encontrou no talento pela documenta-

ção mecânica que a fotografia oferecia, supostamente livre

de toda intervenção subjetiva, um de seus instrumentos

mais contundentes e aparentemente fiéis. As resenhas e re-

portagens que foram aparecendo nos jornais da Europa e das

Américas entre meados de 1839 e fins de 1840 anunciandoo aparecimento desse novo mecanismo assinalavam que a

“invenção” não precisava da intervenção humana, cons-

truindo assim a imagem de um meio que era objetivo, pre-

ciso, verídico, automático. Como veremos mais adiante,

houve também os que perceberam, desde sua emergência,

que a fotografia era contraditória, que, sim, era “positivista”,

mas também tinha um lado obscuro, misterioso, inquietan-

te. Ou seja, o realismo e a exatidão que Baudelaire viu foram,

nessa mesma época, desmascarados por outros críticos.

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 A escrita assume a categoria de prática artística 37

A exatidão fotográfica assinalada por Baudelaire em 1859

adquire, em fins do século XIX, outro conceito: a indexica-

lidade da imagem fotográfica. A partir de fins do século XIX,

a credibilidade da fotografia – até a chegada da era digital

nas últimas décadas do século XX  – estaria ancorada em

seu caráter de índice, ou seja, um traço do real. Durante asegunda metade do século XIX, o semiótico norte-america-

no Charles Sanders Peirce elaboraria uma taxonomia dos

signos – ícones, índices e símbolos –, cujo elemento mais

difícil de compreender foi o do índice. Os exemplos de Peir-

ce de signos que eram índices são uma pegada, um relâmpa-

go, a palavra “este”, uma fotografia, pronomes como “eu”:

signos que são traços e signos que são dícticos. Com tantosexemplos tão díspares, passou a ser o signo mais escorrega-

dio, mais opaco, e daí a dificuldade para delimitá-los. O que

aqui nos interessa sublinhar é que a fotografia passou a ser

considerada índice, tornando ainda mais agudo o caráter

documental e verídico do meio: “O índice não afirma nada;

apenas diz ‘Ali!’” (PEIRCE, 1982, p. 5-163).5

Traço preciso, traço exato, traço indexical: a fotografia

como testemunho. “A fotografia”, escreveu Lady Elizabeth

Eastlake em 1857, “é a testemunha ajuramentada de tudo

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38 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

o que é apresentado à sua visão... seus estudos são fatos

que não são do âmbito da arte nem do da descrição, mas do

âmbito dessa nova forma de comunicação” (1980, p. 93).6

A fotografia, então, ao longo do século XIX, não cria, senão

que testemunha. Já se assinalou o uso feito por Lady East-

lake de uma linguagem jurídica para a descrição da foto-grafia: é uma “testemunha ajuramentada”, antecipando o

uso que as ciências positivistas fariam do meio (PRICE, 1997,

pp. 22-24). A testemunha é perfeita, mas tem um proble-

ma: não consegue discernir entre uma coisa e outra, não

tem poder de seleção, é “a testemunha ajuramentada de

tudo”. Se a fotografia revela e comunica tudo, então a foto-

grafia é a documentação da contingência, algo assim comouma testemunha total. Ou dito de outro modo: a fotogra-

fia não julga.

Essa concepção da fotografia entra em crise, no final do

século XIX, de modo contundente em lugares como Ingla-

terra, Estados Unidos e França. Surgem nesses países fotógra-

fos que tentarão levar a fotografia para uma zona subjetiva

que a libertasse da prisão documental em que se encontrava

desde o seu aparecimento e a fizesse afirmar-se como arte,

imaginação e criação. Se pensarmos em algumas das foto-

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 A escrita assume a categoria de prática artística 39

grafias de Hugo Brehme, Marc Ferrez, Julia Margaret Came-

ron, Alfred Stieglitz, Clarence White, Edward Steichen, An-

tonio Cánovas ou Constant Puyo, recordaremos que nelas

havia um esforço por suavizar a imagem, tornar difusos os

contornos para borrar a precisão. Estas foram as práticas

que segundo Benjamin levaram à decadência do meio, e quea afastaram daquilo que, como assinalamos, a definia: seu

caráter amateur . Aquelas eram fotografias que buscavam ser

consideradas “artísticas”, “criativas” – e não meras repre-

sentações fidedignas do mundo – que utilizaram ferramen-

tas que pertenciam ao campo da pintura para constituir

seu estatuto como arte. O claro-escuro foi a principal gramá-

tica dessa virada artística do fim de século, porque permitiaaos fotógrafos criar mistério, gerar “ambiente” – no dizer

de Stieglitz (1892). Essa virada pictórica da fotografia foi me-

nos evidente na América Latina, onde o que se massificou

nesse momento foi o fotojornalismo e o trabalho comemo-

rativo dos centenários que produziu, pelas mãos da fotogra-

fia, uma imensa quantidade de álbuns fotográficos. Ou seja,

o caráter documental da fotografia teve menos quebras e

crises na América Latina que nos Estados Unidos ou na Euro-

pa. Até o período das vanguardas históricas, as principais

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40 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

produções fotográficas seguiam propondo imagens anco-

radas na certeza da possibilidade de representação verídica

do meio. Tanto Tina Modotti como Horacio Coppola, Grete

Stern e Marcel Gautherot – para nomear apenas alguns fotó-

grafos – jogariam com o enquadramento e fragmentariam

os corpos e objetos fotografados, desnaturalizando-os, massuas fotografias continuam ancoradas em sua referencia-

lidade.

A fotografia como testemunha: é curioso que precisa-

mente o campo da História tivesse problemas com isso no

século XIX, apesar do método positivista que reinava. Ao

mesmo tempo, também é curioso como na virada de século,

ou mais especificamente no começo do século XX, tenhamcomeçado a aparecer ensaios fotográficos que se apresenta-

vam como testemunhas – sempre de uma realidade material

que a “modernidade” em sua forma desenfreada do sécu-

lo XIX levou ao limite e, ao mesmo tempo, trabalhou duro

para negar. Talvez os múltiplos volumes de London Labour 

and London Poor , de Henry Mayhew – publicados entre 1861

e 1866, com litografias a partir de fotografias – tenham sido

dos primeiros trabalhos a usar a imagem fotográfica como

linguagem para contar uma história nunca antes contada.

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 A escrita assume a categoria de prática artística 41

Os livros de Jacob Riis são os mais conhecidos, em especial

 How the other half lives: studies among the Tenements of New 

York, de 1890. Também trabalhando em Nova York – “as en-

tranhas do monstro”, como José Martí descreveu a cidade

na mesma época (1993, p. 133) –, os livros de Lewis Hine –

Child labor: girls in a factory , de1908

, ou Breaker boys, de1910

– são parte desse uso da fotografia como testemunha muda

de um mundo cruel.

Crer que a fotografia pode ser uma testemunha, uma

evidência inegável de uma realidade, supõe, é claro, uma con-

cepção do mundo onde há “uma realidade”, visível em maior

ou menor grau. Essa noção, que permeia o pensamento

imperante em torno da História no século XIX, alimentou,sem sombra de dúvida, o modo como se falava sobre a fo-

tografia em seu começo. Poderíamos aprofundar a relação en-

tre o realismo literário e a fotografia com essa concepção da

História. Mas a única coisa que eu gostaria de sublinhar aqui

é que dessa concepção que poderíamos chamar realista da

fotografia emerge, então, a fotografia como documento, re-

portagem, evidência e, em última instância, verdade. Essa

é a leitura que fazem da fotografia críticos como André Bazin

em seu ensaio dos anos 50, e Susan Sontag, duas décadas

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42 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

depois.7  A âncora do argumento que sublinha o realismo

da fotografia é aquilo a que a fotografia remete, ou seja, seu

referente. É na relação indexical com o referente – com o

passado da imagem – que radica seu realismo. Esse realismo

supostamente inegável da fotografia entra em crise se enten-

demos a fotografia não com relação a seu passado, mas antescom relação a seu presente. Se entendemos que a fotogra-

fia muda, que é outra em cada instância em que é olhada,

então não há uma realidade a que esta remeta. Cada foto-

grafia se torna uma evidência material de algo inegável, e

passa a ser o lugar de uma relação dialética entre passado

e presente.

Precisamente nessa tensão entre remeter a algo real e aomesmo tempo não sê-lo, no ser e não ser realidade, reside

seu potencial artístico, que Rancière chamaria “estético”.

A fotografia é “exemplarmente uma arte de ideias estéticas

porque é exemplarmente uma arte capaz de habilitar a não

arte a realizar arte pelo ato de privar dela” (RANCIÈRE, 2011b,

p. 42). A fotografia é sempre, por natureza, indeterminada;

pensemo-la em sua natureza de modo ontológico, fenome-

nológico ou epistemológico. Isso a torna característica do re-

gime estético. Ou mais ainda: a fotografia permite pensar

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 A escrita assume a categoria de prática artística 43

o regime estético. Quando se observa ou se reflete sobre

a fotografia, ela sempre apresenta vazios, aberturas, inter-

rupções: é arte e não é arte. Essa indeterminação é o estético.

Então, refletir sobre os encontros, cruzamentos e contami-

nações entre literatura e fotografia significa pensar o meio

em que se manifestou pela primeira vez, de modo contun-dente, a emergência de um novo regime de distribuição do

sensível, junto ao meio que melhor resumiu as característi-

cas dessa nova distribuição, as características da estética.

Há algo de específico da fotografia que a tornou, no pe-

ríodo que começa nos anos 1950, o locus privilegiado da per-

da de especificidade dos meios, no signo do  post-medium

condition  [condição pós-meios] em que vivemos, segundoRosalind Krauss, como se, no fundo, a fotografia, a partir

de meados do século XX, tivesse deixado de ser, ou talvez

sempre tivesse sido, inespecífica. A fotografia deixa de re-

presentar o mundo e passa a apresentar mundos de ficção,

a ser uso de experiências “conceituais”, a deixar para trás

sua epistemologia “documental”, sem nunca poder deixar

esse poder representativo completamente para trás. Funcio-

na então, de modo deliberado na prática da arte da segun-

da metade do século XX, como um veículo privilegiado da

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44 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

passagem para outros meios, para outras artes. Exacerbar

sua indeterminação – isso que a fez “exemplarmente” esté-

tica desde a sua emergência – para que pudesse melhor ser-

vir como zona de transferência entre os meios é o que co-

meça a acontecer a partir de meados do século XX.

Interessa-me então tentar uma série de aproximaçõesa esse cruzamento, em particular através de uma leitura mi-

nuciosa de várias obras e autores-chave latino-americanos

da segunda metade do século XX. Cabe agora outro escla-

recimento: esta contaminação, esta expansão não sucedeu,

nem sucede, exclusivamente no campo latino-americano.

Se há algo que este e os demais cruzamentos supõem, é a

dissolução das supostas especificidades nacionais, territo-riais, identitárias. Não é simplesmente uma coincidência

que essa “literatura fora de si” surja precisamente no mo-

mento em que, como veremos mais adiante em detalhe, os

Estados-nação perdem sua hegemonia como aglutinadores

de subjetividades, de projetos, de fantasias. Alguns dos

exemplos mais radicais da contaminação do literário pelo

fotográfico são, a meu ver, I See/You Mean, da teórica con-

ceitual e feminista norte-americana Lucy Lippard, os livros

do alemão Dieter Roth dos anos 1970, e Nox (2009), da poeta

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canadense Anne Carson. O ensaio só me permite uma série

de leituras limitadas, e por isso me centro em textos latino-

americanos, para situar as mudanças e modificações den-

tro de um campo cujas experiências históricas e estéticas

compartilham certos traços. Mas não estou, de maneira al-

guma, sugerindo que estas práticas, que esta expansão daliteratura seja uma questão nacional, ou que esteja circuns-

crita a uma estética ancorada geopoliticamente. Muito pelo

contrário.

Deveríamos também assinalar que a porosidade das

fronteiras entre as artes, as práticas e os meios é provavel-

mente mais evidente hoje nos espaços de exibição de arte.

Refiro-me à reestruturação radical sofrida por todo e qual-quer museu, galeria ou feira de arte que se apresente como

espaço de arte moderna e contemporânea nas últimas qua-

tro décadas. Desde a Fundação Proa em Buenos Aires, on-

de um dos espaços mais importantes é a sala de projeção de

cinema, passando pela Bienal de São Paulo, que na edição

de 2008 incluiu no espaço do pavilhão uma quantidade im-

portante de performances e peças de dança ao vivo, recitais

de rock, e na edição de 2010 teve sua abertura com a proje-

ção de um filme, e pela dOCUMENTA 13 (embora até antes),

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onde mais da metade das obras não trabalhava com ne-

nhuma plataforma convencional – pintura, desenho, escul-

tura, fotografia –, até o novo MoMA de Nova York, que em

sua inauguração em 2010 estabeleceu o adro como o novo

espaço para performance e dança, contratando uma no-

va curadora dedicada exclusivamente à performance; é in-dubitável que a fronteira entre as artes se mostra porosa,

e os novos espaços se nutrem fundamentalmente do limi-

nar. Tudo agora entra nos espaços “da arte” porque tudo

é já, simplesmente, “arte”.

A literatura também.

Os primeiros anos

Comecei dizendo que aqui me interessa o que ocorre dos

anos 50 em diante, mas esta redefinição do campo literário

em relação à fotografia já havia começado antes, durante a

primeira metade do século XX. Nesse período o cruzamen-

to que se manifesta no caso da inclusão de fotografias no

livro havia sucedido de modo esporádico, em parte prova-

velmente pelo alto custo de impressão, mas também porque

a literatura vivia ainda suas primeiras décadas de autono-

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mia com relação às esferas políticas e sociais. Por outro lado,

entre o final do século XIX e os primeiros trinta ou quaren-

ta anos do século XX  se produziram numerosos “álbuns

fotográficos” – de cidades; de comemoração pelo primei-

ro século de independência das nações latino-americanas.

A fotografia havia entrado no universo do livro, mas comoparadigma de um desejo de visualização de nações, espa-

ços urbanos, comunidades, com o objetivo de documentar

e de configurar um patrimônio visível. Sua relação com a

ficção, seu estatuto como ficção e como conceito estavam

ainda muito distantes. Nestes últimos casos, o encontro en-

tre literatura e fotografia era uma tentativa de continuar an-

corando a ambos os meios – a escrita e a fotografia – dentrode um regime representativo.

Quais foram os casos esporádicos de livros que incluí-

ram fotografias no começo do século XX? Pensemos em três

casos: a primeira edição de Os sertões, de Euclides da Cunha,

em 1902, de La Vorágine, de José Eustasio Rivera, de 1924, e

de Evaristo Carriego, de Jorge Luis Borges, em 1930. Os três li-

vros incluíam fotografias: três imagens de esquinas de Paler-

mo no livro de Borges; um retrato do personagem principal

e imagens da selva em  La Vorágine; imagens dos últimos

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“sobreviventes” da Guerra de Canudos, do cadáver do líder

messiânico Antônio Conselheiro e do palco da guerra no li-

vro de Euclides. Algo curioso e revelador: nos três casos

as fotografias foram suprimidas nas edições posteriores, o

que é já um sinal de algum fracasso nesses primeiros en-

contros entre literatura e fotografia durante a primeira me-tade do século XX. As fotografias não são comentadas em

nenhum dos livros. Não sabemos por que foram suprimi-

das as imagens, mas tampouco por que ingressaram nos

livros em primeiro lugar. Era, pelo menos no livro de Rivera

e no de Euclides, como se as imagens estivessem ali como

ilustração do que o texto relata, como afirmação, como ges-

to de veracidade. Em particular no ensaio de Euclides, diría-mos que estão ali como prova documental de que o horror

que ali se narra tinha sido verdadeiro. Mas não é só isso. São

imagens entre um uso positivista (ideologia para a qual a

fotografia foi fundamental, como documento e prova, ao

longo do século XIX), o sensacionalismo da seção policial

de qualquer jornal, e a produção de um souvenir. Nos li-

vros de Borges e de Rivera, que jogam conscientemente com

a relação entre ficção e realidade – recordemos o enqua-

dramento do romance de Rivera como o manuscrito de um

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verdadeiro Arturo Cova, o telegrama avisando que Cova

e seu grupo haviam sido devorados pela selva, a crítica à

economia da borracha; e a suposta biografia de um verdadei-

ro poeta, Evaristo Carriego, que Borges confessa, no prólo-

go, ser “menos documental que imaginativa” (BORGES, 1995,

p.3) –, a fotografia parece uma incitação a mais confusão.Cova é então um personagem de ficção ou uma pessoa que

realmente viveu pelo que o livro conta? É Cova aquele cor-

po que vemos numa fotografia em La Vorágine cuja legenda

diz que é? A fotografia, saberemos por estudos posteriores,

é de Rivera na selva, mas a imagem é apresentada como do-

cumento da veracidade do relato. As esquinas do bairro de

Palermo que aparecem na edição de  Evaristo Carriego  sãoimportantes? Algo sucedeu nelas? Por que estão ali, se pare-

cem tão insignificantes? Tanto em Rivera como em Borges

o gesto é claramente característico da vanguarda – a mon-

tagem de choque eisensteniano como produtora de novos

significados; a mutação da ficção para o documento, para

o que não é ficção, para a vida e para o real, para “a prosa

do mundo”.

Um detalhe importante: as fotografias nos livros de Ri-

vera e Borges não se apresentam como “artísticas”, nem

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como profissionais (apesar de as fotografias de  Evaristo

Carriego  terem sido tiradas pelo jovem Horacio Coppola,

que seria, menos de uma década depois de ter fotografa-

do as imagens para Borges, o grande fotógrafo moderno ar-

gentino), mas como amateurs; são fotografias como as que

poderia ter se deparado Shiki Nagaoka em sua oficina derevelação nos anos 30.

Essas tentativas não prosperaram nem foram maciças,

mas isoladas e, como vemos pelo menos nesses três exem-

plos, fracassadas. É importante que os três livros sejam hí-

bridos, monstruosos, difíceis de categorizar. O cruzamento

de fronteiras, a contaminação, nestes três livros é uma carac-

terística que ainda precisaria de um século ou pouco menosde um século para chegar a “ser escola”, como o foi no pro-

grama do início da Escola Dinâmica de Escritores dirigida

por Bellatin.

Outro exemplo notável, desta vez de um livro com foto-

grafias que, sim, funcionou nessa primeira metade do sécu-

lo XX. Entre 1934 e 1936, Pablo Neruda foi cônsul chileno

em Madri, no calor da hora do começo da Guerra Civil Es-

panhola, experiência que o radicalizaria politicamente, e

que teria enorme impacto em sua poética. Um ano depois

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de seu regresso a Santiago, ele publica na capital chilena

o poemário Espanha no coração. Hinos às glórias de um povo

em guerra. Houve duas edições simultâneas do livro: uma de

tiragem muito pequena, sem fotografias, e outra com foto-

montagens feitas por Pedro Olmos, um jovem pintor chile-

no. A edição com as fotomontagens foi um sucesso e poucosmeses depois já havia saído uma segunda edição. Por que

“funcionaram” no livro de Neruda, e não nos de Euclides,

Rivera e Borges?

As fotomontagens, de estilo dadaísta, eram feitas à base

de recortes de imagens fotográficas anônimas provenientes

de jornais e revistas. Usando como método crítico a monta-

gem russa – o rosto sorridente de Franco recortado e inseridono meio de cabeças “decapitadas” (pela colagem) de crian-

ças mortas, forçando o leitor a um choque que o obrigaria

a uma única leitura possível de Franco como figura emble-

mática do horror –, as imagens, apesar de não serem rea-

listas, trabalham a partir da materialidade do mundo. São

imagens cuja primeira circulação em meios de comuni-

cação de massa as havia significado como documentos de

veracidade. Elas aparecem, nas fotomontagens de Olmos,

ressignificadas. A colagem fotográfica havia sido uma prá-

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tica muito comum durante as ainda vigentes vanguardas

históricas, o que lhes dava uma legibilidade pelo menos

dentro da “cidade letrada”. Mas que efeito produziam com

os poemas de Neruda? Junto aos versos, as fotomontagens

ancoram a fuga poética, concretizam. É interessante por-

que não são ilustrações dos poemas, mas dirigem a leituradeles, contendo-os, ancorando-os. Nesse sentido, não abrem

o livro para um espaço de ambiguidade, como havia certa-

mente ocorrido com os projetos de Rivera e Borges, muito

pelo contrário.

Neruda incluiu fotografias em muitos de seus livros de

poemas. Algumas vezes na primeira edição, como escolha

original para a vida do livro (como em Espanha no coração),e outras vezes, como em Alturas de Macchu Picchu, somente

nas reedições se acrescentaram fotografias (notadamente na

edição de 1954 pela Editorial Nascimento, que tinha doze

fotografias do peruano Martín Chambí). No caso da obra de

Neruda, a fotografia usada nas edições de seus livros mui-

tas vezes funciona como marca referencial, e é talvez por

essa facilidade de leitura que ofereciam, independentemen-

te do texto literário mas também por sua força como ân-

cora do verso, que seu uso foi sempre “bem-sucedido”. Em

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 Espanha no coração, a relação entre escrita e imagem é mais

tensa, principalmente pelo choque da fotomontagem em si.

Em vários comentários feitos por escritoras e escritores

sobre a função da literatura no final do século XIX, no mo-

mento de transição para uma literatura autônoma, ainda

próxima do regime representativo mas já a caminho do es-

tético, encontramos a menção à fotografia como metáfora

do que fazia a literatura. No Prêmio a Aves sin nido, a perua-

na Clorinda Matto de Turner escreveu que

Se a história é o espelho onde as gerações vindouras hão

de contemplar a imagem das gerações que foram, o roman-

ce tem de ser a fotografia que estereotipe os vícios e as vir-

tudes de um povo, com a conseguinte moral corretiva para

aqueles e a homenagem de admiração para estas. (1994,

p. 3)

A ideia da fotografia como forma do romance havia

sido proposta pelos escritores naturalistas franceses, como

Zola. O que Lukács havia chamado o impulso “descritivo”

de Zola (1966) e dos naturalistas, em oposição ao desejo de

“narração” de escritores realistas, como Balzac, tomou, na

mão de muitos escritores do fim de século latino-americano,

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uma analogia fotográfica. A literatura era uma radiografia

da sociedade. Leopoldo Lugones afirmaria que “as produ-

ções naturalistas são uma fotografia e deverão retratar o mau

e o bom, o sujo e o limpo, o atraente e o repugnante” (apud

GNUTZMANN, 1998, p. 62), e Eugenio Cambaceres, para dar

outro exemplo, descreveu na mesma época seu trabalholiterário dizendo que “segui o procedimento dos industriais

em daguerreótipo [sic] e fotografia; copiei do natural, usan-

do de meu perfeito direito” (1927, p. 7). A capacidade des-

critiva da fotografia complementava o impulso descritivo

da literatura do momento. Descrever era copiar. A fotografia

“estereotipava”, quer dizer, ajudava na produção de tipos.

Era uma taxonomia, e assim o haviam aprendido os pensa-dores positivistas que tanto usariam a fotografia – desde

Lombroso, que agregou o Atlas fotográfico à quinta reedi-

ção de seu Tratado del hombre criminal, em 1897  (original-

mente publicado em 1876), aos três volumes de fotografias

de histéricas no hospital da Sâlpetrière que Charcot enco-

mendara aos fotógrafos Bourneville e Régnard entre 1876

e 1880 – para o desenvolvimento de seus projetos.

A fotografia também aparecia frequentemente na litera-

tura da primeira metade do século XX, nem alterando a gra-

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mática ou sintaxe do texto, nem como elemento impresso

dentro do livro, mas mencionada como elemento presente

no mundo narrado pelo texto literário. Ou seja, de repen-

te, entre fins do século XIX e inícios do XX se torna quase

lugar-comum encontrar contos e romances – mas princi-

palmente contos – onde se fala sobre fotografias dentro danarração. Poderíamos dizer então que o modo do encon-

tro entre fotografia e literatura que se instalou como para-

digma comum dentro da produção literária na primeira

metade do século XX (começando em realidade em fins do

século XIX) foi seu aparecimento no plano textual como

um novo elemento crucial da decoração e da diegese nar-

rativa. Nesses casos a fotografia não é simplesmente maisum elemento do mundo narrativo, mas um objeto privile-

giado para o desenvolvimento deste, catalizador do relato.

Entre fins do século XIX e as primeiras décadas do sécu-

lo XX, a menção à fotografia parece permitir a presença tex-

tual do sobrenatural, como veículo para o desconhecido,

para a perturbação de uma literatura entre um projeto realis-

ta e um naturalista, e que mostrava já os primeiros signos

do fantástico. De Eduardo Holmberg a Silvina Ocampo, pas-

sando por Rubén Darío, Horacio Quiroga, Leopoldo Lugo-

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nes e Eugenio Cambaceres, a fotografia aparece como mo-

do de passagem para zonas inexplicáveis pela ciência, de

abertura para o sobrenatural, para o terror e para as forças

estranhas.8 A partir do último quartel do século XIX, mas

sobretudo nos primeiros vinte ou vinte e cinco anos do sé-

culoXX

, o positivismo ocupou um lugar central no desen-volvimento do pensamento científico em toda a América

Latina e também nas políticas culturais e sociais do con-

tinente.9 O aparecimento de uma literatura que revelava,

dentro de mundos narrados a partir de uma ótica realista-

naturalista, zonas secretas e obscuras que o olhar minucio-

samente analítico e descritivo não conseguia penetrar está

em relação direta com os paradigmas positivistas tão emvoga. Os mundos inexplicáveis abriam linhas de fuga, fu-

gidas para zonas que essa ciência não podia controlar. Num

estudo sobre os contos de Lugones, Noé Jitrik diz que

se como sistema de pensamento o positivismo quis su-

perar os estágios primitivos, a metafísica e a religião, teve

de admitir que certos fenômenos, sobretudo de ordem es-piritual, eram inexplicáveis, e para haver-se com eles os

reduziu a matéria mediante um curioso sistema que se de-

nominou “espiritismo”. A invenção teve grande aceita-

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 A escrita assume a categoria de prática artística 57

ção e imediatamente proliferaram as teosofias, as meta-

psíquicas, o ocultismo, tudo o que encontrou adeptos tam-

bém entre escritores e poetas. (2009, p. 31)

O ocultismo, o espiritismo e o inexplicável encontra-

ram na fotografia um objeto que manifestava suas buscas

e ansiedades, e é por isso que a fotografia aparecerá tão con-sistentemente em relatos desse tipo.

A fotografia, imagem e traço do mundo, cópia tosca

e jamais artística segundo Baudelaire, como vimos, foi tam-

bém sempre percebida, apesar de sua indexicalidade, como

um objeto fantasmal: traço e fantasmagoria ao mesmo tem-

po. Em 1840, Edgar Allan Poe observou, num dos primeiros

textos jornalísticos que falaram do novo invento, que a fo-tografia era “a verdade mais absoluta” e ao mesmo tempo

“a beleza mais milagrosa” (1980, pp. 37-38).10  A fotografia re-

velava, segundo Poe, o potencial mágico da época, marca-

da pelo avanço da máquina, da tecnologia, da velocidade

e da suposta democracia. Por trás das máquinas, das ciên-

cias, do dinheiro e dos Estados, prosseguia latente a magia

que havia organizado o mundo em épocas anteriores. Ape-

sar da feroz crítica que Baudelaire fez ao novo invento, in-

sistindo em sua grosseira representatividade, o fato é que

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desde os primeiros comentários feitos sobre a fotografia,

depois de sua apresentação ao público em 1839 e de 1840

em diante, a nova invenção passou a ser objeto de fascina-

ção de escritores, intelectuais, políticos e estadistas – e do

público em geral – precisamente por sua capacidade de ser

ao mesmo tempo ciência e arte, objetividade e subjetivida-

de, matéria e fantasmagoria, positivista e espiritista.11

Nesse contexto histórico e com essa dualidade pode-

mos entender como ela foi usada por escritores e intelec-

tuais com fins radicalmente opostos. Foi utilizada por José

Ingenieros em seu desenvolvimento das ciências crimino-

lógicas, seguindo o modelo proposto por Cesare Lombroso

em L’uomo delincuente, mas também por Horacio Quirogaem suas fracassadas experiências levadas a efeito durante

seus anos na selva de Missiones, e mencionado frequente-

mente por Rubén Darío para explorar experiências do “para

além” e questionar a força avassaladora da ideologia po-

sitivista sobre a produção cultural da época. A fotografia

servia tanto às ciências objetivas como às práticas das ciên-

cias ocultas. A indexicalidade da fotografia servia a ambos

os campos, porque as fotografias de espíritos, fantasmas e

mortos os apresentam como reais, como uma matéria exis-

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tente, que podia deixar sua marca, apesar de ser invisível.

Os fantasmas não eram ficção, mas realidade.

No conto de Darío “La extraña muerte de Fray Pedro”,

de 1913, pode-se entender claramente o que a presença da

fotografia permitia à literatura em termos de questiona-

mento das epistemologias científicas do positivismo. FrayPedro, o personagem do conto, “era um espírito perturba-

do” pela curiosidade que a ciência despertava nele. Tal era

a força do saber científico sobre ele, que conseguia des-

viá-lo “da contemplação e do espírito” (DARÍO, 1997, p. 309).

Interessado em toda e qualquer nova tecnologia, ele de-

senvolve em certo momento um fascínio pela radiografia.

Esta curiosidade pela mais recente tecnologia fotográfica le-va-o, eventualmente, à morte, quando com uma máquina

radiográfica tenta, e consegue, fotografar o corpo de Cristo

– a fotografia que ele tira da “sagrada forma” deixa registra-

da na placa sensível não a hóstia, mas a imagem de Jesus

Cristo, “com os braços descravados e com um doce olhar

nos divinos olhos” (idem, ibidem, p. 313). No conto, a fo-

tografia revela que o símbolo não é símbolo, mas realidade

– ela mostra algo que é invisível aos olhos humanos, aqui-

lo que estrutura a fé. Fray Pedro estava tão cego pela pai-

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xão científica que não se dera conta de que havia sido o dia-

bo quem um dia, disfarçado de frade, o presentea-ra com

a máquina radiográfica.

Além de um exemplo do modo como a fotografia era

entendida – como um objeto dotado de qualidades má-

gicas, apesar de ser resultado de um avanço científico –, éimportante que Fray Pedro seja encontrado morto após ter

obtido a imagem do corpo de Cristo, já que um dos tropos

recorrentes nos textos em que, como neste de Darío, apa-

rece a fotografia como um simples objeto decorativo é o da

morte.

Anos depois, num conto intitulado “Las fotografías”,

Silvina Ocampo retomaria o tropo da fotografia e da mor-te. Nesse conto, a menina doente Adriana volta para casa

depois de uma estada no hospital, e, ao modo de dupla co-

memoração de seu retorno do umbral da morte e de seu ani-

versário, a família lhe organiza uma festa. Todos estão tão

preocupados com a pose correta para cada foto, que nin-

guém se dá conta de que, no meio de algum dos acionamen-

tos da câmera, Adriana morre. A fascinação pelo souvenir

apaga até quase ao ponto do invisível aquilo a que remete

– neste caso, a Adriana de carne e osso.

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O auge da fotografia espírita na década de 60 do sécu-

lo XIX e a fotografia de defuntos em voga de fins do XIX a

inícios do XX são duas das instâncias mais representativas

da relação fotográfica entre a nova técnica e a morte.12 Este

tropo que conjuga fotografia e morte foi particularmente

emblemático no conto, que continuou a ser um dos gêne-ros privilegiados para a presença da fotografia, ainda de-

pois de haver passado o momento crítico do positivismo

no fim de século. Dois exemplos-chave: alguns contos de

 Juan Carlos Onetti e outros vários de Julio Cortázar. Tanto

em “El infierno tan temido” de Onetti, de 1957, como em

“As babas do diabo”, de Cortázar, de 1959, a presença de

fotografias na trama desempenha uma função central, que,em ambos os casos, leva ou anuncia a morte. Mas, diferen-

temente dos contos de Quiroga, Darío, Lugones e Ocam-

po, onde a fotografia aparecia associada à morte porque a

morte fazia parte do “para além” do explicável pelas ciên-

cias positivas, em Cortázar e Onetti a fotografia é signo

e cifra de que a representação – nem sequer a menos sim-

bólica, como aparentaria ser a fotografia, signo indexical

por excelência13 – não é transparente, anunciando assim as

teorias estruturalistas e pós-estruturalistas dos anos 60 e 70.

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A morte é ali, com relação à fotografia, o secreto, o Real. A fo-

tografia aparecerá de modo central em Cortázar como sig-

no de opacidade, e já não como índice positivo.

Numa das teorizações latino-americanas mais conheci-

das do conto como gênero literário, Cortázar sublinhou,

numa conferência dada em Havana em1963

, uma relaçãofundamental entre o conto e a fotografia. Nesse texto, diri-

gido aos leitores cubanos, Cortázar diz que o conto é “uma

síntese viva e ao mesmo tempo uma vida sintetizada, algo

assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma

fugacidade numa permanência” (1993, grifos meus), aludin-

do assim à fotografia na particular temporalidade do conto

que seria, em especial no discurso em torno da fotografia naFrança nos anos 60 e 70, a captura de um instante (Cartier-

Bresson). À medida que avança a conferência, Cortázar men-

ciona diretamente a fotografia:

O conto parte da noção de limite, em primeira instância

de limite físico… uma fotografia conseguida pressupõe

uma estreita limitação prévia, imposta em parte pelo re-duzido campo que abarca a câmera e pela forma como o

fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação. Não sei se

vocês ouviram um fotógrafo profissional falar de sua arte;

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 A escrita assume a categoria de prática artística 63

a mim sempre me surpreendeu que ele se expresse tal como

poderia fazê-lo um contista em muitos aspectos. Fotógra-

fos da qualidade de um Cartier-Bresson ou de um Brassai

definem sua arte como um aparente paradoxo: o de recor-

tar um fragmento da realidade, deixando-lhe determina-

dos limites, mas de maneira tal que esse recorte atue como

uma explosão que abre de par em par uma realidade mui-to mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende

espiritualmente o campo abarcado pela câmera… o fo-

tógrafo ou o contista se veem necessitados de escolher e

limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam sig-

nificativos, que não somente valham por si mesmos, se-

não que sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor

como uma espécie de abertura, de fermento que projeta a

inteligência e a sensibilidade para algo que vai muito além

do caso visual ou do caso literário contidos na foto ou no

conto. (1993, pp. 303-324, grifos meus)

Segundo Cortázar, tanto o conto como a fotografia são

formas de representação que funcionam a partir do recorte

(em contraste com o romance e o cinema que, como dirá

em outro momento da conferência, funcionam a partir da

totalidade). Um recorte ou um limite que não encerra, não

limita, mas impulsiona o leitor ou o espectador a um fora

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de campo. O que importa é o que é impulsionado para esse

fora de campo, segundo Cortázar: a espiritualidade, a inte-

ligência, a sensibilidade. Não se trata de que o “caso visual

ou literário” leve o leitor ou espectador para a realidade que

o recorte deixou de fora, mas de que há uma viagem para

zonas não empíricas, para o que Walter Benjamin teria cha-mado em 1931 o “inconsciente óptico” de toda fotografia.14

Segundo Benjamin, a fotografia revela coisas que ao olho

são invisíveis, não tanto por sua exatidão indexical, mas

porque o espaço da fotografia se mantém unido pelo tra-

balho do inconsciente. Isto opera como força aglutinadora

da imagem. Ainda que Benjamin não mencione o conto

como forma literária em seu ensaio, é possível estabeleceruma analogia com a observação de Cortázar, e, assim, com

a forma breve.15

Muitos críticos já observaram a importância da fotogra-

fia na obra de Cortázar. Há muito mais que analogia entre

fotografia e literatura. Em O jogo da amarelinha há uma ce-

na crucial, na qual Oliveira se embebeda com vodca e jazz

enquanto seu amigo Wong lhe mostra fotografias de tor-

tura. No conto “Apocalipse em Solentiname”, o narrador

descobre as injustiças sociais da América Latina através de

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 A escrita assume a categoria de prática artística 65

uma projeção de slides de fotografias tiradas por um turis-

ta. Em “As babas do diabo”, o narrador morre por ter tira-

do uma fotografia, e passamos o conto observando, com

ele, a ampliação da imagem. Nesses casos, a fotografia é

um objeto importante do relato, mas não modifica o texto

literário. Não há uma mudança sintática ou gramatical daescrita, nem uma mudança visual no livro. Iso porém ocorre

em seus dois livros mais ambiciosos e experimentais: Úl-

timo round , de 1969, e A volta ao dia em oitenta mundos, de

1967. O próprio autor se referia a esses dois livros como al-

manaques. Nesses compêndios convivem imagens sem

qualquer pretensão artística com textos escritos por Cortázar

especialmente para o livro, com citações de outros livros,com anúncios publicitários e notícias. Em Último round  há

mais de duzentas imagens, e três quartos delas são fotogra-

fias: encontradas, tomadas de revistas, jornais e filmes, e

até feitas para o livro, às vezes pelo mesmo Cortázar e ou-

tras vezes por amigos. Último round  é um livro conceitual,

é um dos “livros do futuro” de que falou Shiki Nagaoka.

Esses projetos de Cortázar – e outros similares – seriam im-

pensáveis sem a participação do diagramador, que neste

caso foi Julio Silva. Para Cortázar, especialmente em Último

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grande medida, a cultura de massas da época. Por outro

lado, é também durante essa época que a fotografia ingres-

sou nos museus, precisamente como arte: a criação do pri-

meiro departamento de fotografia no MoMA em 1940 sob

a direção de Beamont Newhall; a contratação de Geraldo

de Barros e Thomas Farkas para que organizassem o labora-tório de fotografia do MASP.

A partir dos anos 50, a fotografia emerge como uma

linguagem privilegiada no campo da arte (onde claramen-

te incluo a literatura). É o momento em que se vão deixan-

do para trás as materialidades e plataformas convencionais

da arte, em que em todos os âmbitos e em todos os dispo-

sitivos a particularidade de cada meio começa a ser questio-nada e desse modo a desvanecer-se, a fraturar-se. A fuga da

materialidade específica de cada arte se ampara, não sem-

pre, mas sim em muitas ocasiões, na fotografia. No campo

das artes plásticas e visuais, no início dos anos 60, a crítica

de arte começa a falar de concept art 16 e surgem as primeiras

manifestações de happenings, de performance art  e de ações

de arte.17  A centralidade da fotografia nessas redefinições

da arte tem pelo menos três motivos. Em primeiro lugar,

em face de uma arte que muitas vezes já não tem objeto,

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68 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

que, no dizer de Oscar Masotta e Lucy Lippard, “se desma-

terializou”,18 a fotografia permite documentar as obras agora

passageiras e efêmeras. Por outro lado, a estranha e para-

doxal dualidade da fotografia como traço profundamente

referencial e ao mesmo tempo profundamente fantasma-

górico abre nela e com ela um campo de possibilidadespara o conceitual, para certas buscas formais sobre a arte.

E, em terceiro lugar, a massificação da fotografia a havia

transformado no ready-made  por excelência, oferecendo,

em cada esquina e a cada momento, uma imagem fotográ-

fica para ser apropriada.

De todos os meios artísticos, foi a fotografia o que pri-

meiro emergiu como um objeto teórico, e nesse movimen-to, segundo o argumento de Rosalind Krauss, a fotografia

destrói as condições do meio estético num processo trans-

formativo que afetaria todas as artes. É nos anos 60 e 70

que a fotografia se torna objeto de estudo – através dos

trabalhos de Pierre Bourdieu, Susan Sontag e Roland Bar-

thes – para a sociologia, a semiótica e a crítica literária. O sal-

to conceitual da fotografia, que a tirava de ser entendida

e olhada exclusivamente como um registro de algo que ha-

via passado, permitia a possibilidade de pensar com a foto-

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 A escrita assume a categoria de prática artística 69

grafia. O que permitiu pensar a fotografia? A fotografia ad-

mite a possibilidade de pensar o mundo de outra maneira,

de uma maneira não ontológica, ainda que, efetivamente,

como veremos mais adiante, tanto fenomenológica co-

mo metafísica. Talvez não só a possibilidade mas também a

necessidade de deixar de pensar em termos ontológicosa “origem” e o “original” da obra. A fotografia é sempre, e

exclusivamente, uma cópia. Mas, se esta característica da

fotografia a torna “this wrecker of unitary being” [essa des-

truidora do ser unitário] (KRAUSS, 1999, p. 290), por outro

lado – e aqui Krauss lê com Barthes –, ao mesmo tempo

a fotografia, em seu caráter de índice, traço, padrão e mol-

de, por pertencer ao mundo empírico e surgir dele, por ser“quase” real, surgindo do mundo natural, reinventa o mi-

to, já perdido no mundo contemporâneo, de uma unidade

chamada, precisamente, mundo. Este duplo movimento

da fotografia – sempre cópia e simulacro e sempre encanta-

mento – faz da fotografia ao mesmo tempo o encerramen-

to e a reinvenção da aura, a impulsiona como palco para a

teorização do lugar, valor e sentido da arte no mundo con-

temporâneo. A transformação de fotografia num objeto teó-

rico a leva a ser um objeto de revelação.

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70 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

Se olhamos a história do conceitualismo e suas vicissi-

tudes na América Latina, junto com Andrea Giunta, Mari

Carmen Ramírez e Luis Camnitzer, o que é sublinhado é o

caráter político (a crítica institucional do conceitual se es-

tendia a uma crítica da sociedade e sua política) e de traba-

lho com o objeto (a desmaterialização não foi tão radicalcomo o foi na América do Norte e na Europa). Na América

Latina, o momento conceitual na arte ocorre no contexto

de sociedades radicalmente politizadas por golpes de Esta-

do, ditaduras e revoluções. Sociedades em que a ação, ou

pelo menos a reflexão e o debate, do cidadão “comum” –

aquele que não militava num grupo específico, que não as-

sistia a comícios políticos, aquele em cuja vida cotidianainterferiam os acontecimentos políticos – havia passado a

ser da ordem do dia. Não é minha intenção reduzir as espe-

cificidades e diferenças do contexto de cada país, nem su-

gerir que todas as situações extremas da política – digamos

a Revolução Cubana e o golpe militar no Brasil de 1964 –

sejam equiparáveis. Só quero assinalar que esses múltiplos

e divergentes contextos políticos são o terreno no qual sur-

ge a arte conceitual na América Latina, e que talvez seja este

vetor diferencial o que fez com que fosse uma manifesta-

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 A escrita assume a categoria de prática artística 71

ção de índole mais política que meramente institucional

ou material, como o foi no caso norte-americano e europeu.

A arte conceitual permitiu que a arte fosse ao mesmo tem-

po veículo informativo e matéria de expressão artística.19

Pensemos no lugar da linguagem. Em sua versão mais

explicitamente política, podemos recordar os comunicadospúblicos dos Tupamaros, o grupo de guerrilha uruguaio, em

Montevidéu, ou a distribuição de panfletos ou a pichação

de paredes, para sublinhar a primazia da linguagem como

veículo de desarticulação da especificidade dos meios. Ou

o banheiro público construído por Roberto Plate para a mos-

tra Experiências 1968, onde em lugar de instalações sanitá-

rias as paredes do banheiro estavam cheias de pichaçõescontra o governo (a polícia fechou o banheiro por seu aten-

tado a vários artigos do código penal – a obscenidade e a

ofensa à dignidade ou decoro de um funcionário público).

Em casos em que a obra de arte brincava com e criticava

a explosão do consumo e a alienação da vida cotidiana,

podemos recordar o jogo com a linguagem da publicidade

– próximo em conceito do trabalho dos poetas concretos.

No caso do colombiano Antonio Caro, em seus cartazes

vermelhos da Colômbia à Coca-Cola; ou no dos jornais no

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72 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

trabalho O Jornal, de António Manuel, onde a obra era

a ocupação de um diário inteiro com o trabalho de Manuel

mesmo; ou no das intervenções em espaços reservados para

anúncios publicitários ou em outros lugares nos quais se

pousava sempre o olhar do público – como os relógios pú-

blicos –, na obra inicial do chileno Alfredo Jaar, Es usted fe-liz?; ou o do trabalho de Cildo Meireles com as garrafas de

Coca-Cola e os maços de notas em que escrevia. Ou, por ou-

tro lado, os objetos de Antonio Dias dos anos 60, a maioria

dos quais continham, quase ao modo de legendas, pala-

vras ou brevíssimas frases – “History”, “The Lin Piao’s Bio-

graphy”, “Arid”, “Cloud”, “To the Police” –; ou o extenso

trabalho do argentino León Ferrari com o grafismo come-çado nos anos 60; ou a “arte postal” em suas versões mais

políticas, em torno da repressão e do exílio no caso de Guil-

lermo Disler ou Clemente Padín.

Existem, é claro, casos em que esta série sobre arte con-

ceitual e linguagem se rompe e aparece também a fotogra-

fia, como no trabalho de Luis Camnitzer ou de Liliana Porter

na New York Graphic Worshop que eles fundaram e diri-

giram junto com José Guillermo Castillo entre 1964 e 1970.

É importante notar duas coisas no caso dessas exceções

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 A escrita assume a categoria de prática artística 73

à série linguística do conceitual latino-americano: no caso

do projeto de Camnitzer, Porter e Castillo, ele sucedeu em

Nova York, que já era um dos centros das experimentações

conceituais com a fotografia, a serialidade e o aspecto me-

cânico da arte. O uso da fotografia na arte conceitual la-

tino-americana é notável uma vez chegadas as décadasde 80 e 90, nas etapas já finais das sociedades radicalizadas

pela política, e no começo da era neoliberal. Pensemos no

trabalho do chileno Eugenio Dittborn com as fotografias

encontradas e suas pinturas aeropostais, ou no trabalho

do também chileno Alfredo Jaar em (Un)framed , de 1987, a

imensa fotografia de sete mineiros do Amazonas parados em

fila que se monta diretamente na parede com sete moldu-ras, metade de espelho metade de vidro, apoiados sobre a

fotografia. A imagem fotográfica é vista através do vidro das

molduras, enquanto o espectador se vê, refletido nas partes

espelhadas, consumindo a estetizada imagem do trabalho.

O caso do Brasil é excepcional com relação ao restante

da América Latina. Ali, nem a fotografia nem a linguagem

são os meios que levam a arte para uma conceitualização

de si mesma. Mencionei o trabalho de Cildo Meireles, de

Antonio Dias e de Antonio Manuel com relação à utiliza-

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ção da linguagem, mas dentro das obras de Meireles e Dias,

mesmo na época que abarca os anos 60 e 70, esse uso crítico

da palavra e da linguagem não era o vetor mais caracterís-

tico. A marca do concretismo e do tropicalismo no campo

artístico brasileiro foi muitíssimo contundente naquelas

décadas. Em ambos os casos, os trabalhos se nutriam de umencontro das artes, numa busca de levar a arte para fora

dos meios e suportes tradicionais. Caetano Veloso conta

em Verdade tropical (1997) que a Tropicália nasceu a partir

do trabalho cinematográfico de Glauber Rocha, e aquele

movimento se manifestou, como sabemos, em mais de um

meio. A austeridade radical do concretismo fez com que

suas explorações da abstração fossem explorações sobre asmatérias e o espaço, sem lugar para a fotografia nem para

a linguagem, ambas carregadas de demasiada significação.

Mas o Tropicalismo, sim, usou, e muito, a fotografia.

Pensemos, por exemplo, em algumas das capas-chave dos

álbuns: a colagem fotográfica ao modo de cabelo sobre Gal

Costa na capa de  Legal, de 1970; ou a psicodélica disposi-

ção e fotomontagem da capa de Doces Bárbaros, de 1976;

ou a capa do disco que lançou o movimento, Tropicália. Ou

 Panis et circencis, de 1968, onde não só estão no retrato os

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 A escrita assume a categoria de prática artística 75

membros dessa nova proposta, mas Caetano mostra uma

fotografia emoldurada de Nara Leão, e Gilberto Gil uma de

Capinam. Dentro da “Marginália”, ocupa um lugar central

o “poema bandeira” de Hélio Oiticica “Seja marginal, seja

herói”, com a serigrafia e massificação da figura de Cara de

Cavalo. Não havia, no caso brasileiro dos anos60

 e70

, umaurgente informação para transmitir, como foi o caso da arte

argentina ou uruguaia na mesma época. O assalto à figu-

ração no caso brasileiro foi contundente naquela época.

A busca de estabelecer relações entre vida e arte, movimento

tão generalizado em todos os terrenos latino-americanos,

europeus e norte-americanos, teve no Brasil uma modali-

dade que com poucas exceções construiu linguagens maisinternacionais, e muito menos nacionais, que o restante

da América Latina. Um fator importante nessa pulsão in-

ternacionalista foi, é claro, o circuito em que entrou a arte

brasileira a partir da Bienal de São Paulo de 1951.20 Não hou-

ve nada próximo à Bienal no restante da América Latina

naquela época.

Na década de 1970, apareceu uma série de livros foto-

gráficos, e nesse marco – o do livro – a fotografia era con-

ceitual. Fotografía: sn. Diego esq. Tarapacá vista: norte-sur 23

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de agosto 1977  12:30, do chileno Francisco Smythe (1977),

tinha fotografias que tinham sido tiradas por Pepe Moreno

na área comercial de Santiago do Chile, da Calle San Diego,

e que tinham depois sido coladas sobre desenhos de Smy-

the. O trabalho havia sido exposto na Galeria Cromo, e

simultaneamente se havia produzido um livro, artesanal,ao modo de pasta com argolas, ao estilo escolar. As fotogra-

fias eram rápidas, sem muita atenção dada ao enquadra-

mento, à luz ou à composição. Eram fotografias com nada

em particular para além da vida de um bairro comercial

numa hora específica da tarde numa cidade vivendo em

“estado de exceção”. O livro é um cruzamento entre o li-

vro de artista Twenty-six Gasoline Stations, de Ed Ruscha, de1963  – livro-chave para o conceitualismo fotográfico nor-

te-americano – e o livro de Horacio Coppola Buenos Aires, de

1936 – clássico exemplo de álbum de fotografias de cidades

produzido durante as primeiras décadas do século XX, como

 Berlin in Bildern, de Sasha Stone, de 1929;  Paris de nuit , de

Brassai, de 1933; ou Paris vu par André Kertesz, de 1934. O li-

vro fotográfico de Smythe, de 1977, tem uma característica

fundamental que o distingue desses tipos anteriores de li-

vros fotográficos: seu caráter artesanal (não é emoldurado,

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 A escrita assume a categoria de prática artística 77

a tipografia é a de uma máquina de escrever), quase domés-

tico, eliminando toda possibilidade de ser tomado como

“obra de arte”, e querendo aproximar-se de um jornal de

imagens.

Em 1976, Ivald Granato fez uma performance na Fun-

dação de Artes de São Caetano do Sul: ali, o artista, vestin-do jeans e sem camisa, gesticulou, gritou, comeu e vomitou;

a performance foi, segundo os críticos, uma “performance

linguística”. Granato repetiu a performance para que fosse

registrada por Julio Abe Wakahara. O ensaio fotográfico

terminou nas mãos de Ulises Carrión – o escritor mexica-

no radicado em Amsterdã e que ali dirigia a Other Books

and So, uma das primeiras livrarias dedicadas exclusiva-

mente a livros de artista – que diagramou um livro com as

imagens e um poema de um único verso, Ivaldo Granato is

the boa, que cobria todas as páginas pares do livro (as fo-

tografias estavam nas ímpares). Entre cada fotografia e o

poema havia uma folha de celofane que tinha uma bola co-

lorida cobrindo a boca do artista (sempre aberta: gesticu-

lando, gritando, comendo, vomitando) quando a folha se

posicionava sobre a imagem. Granato nunca repetiu a per-

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formance uma vez publicado o livro, O domador de boca, por-

que ali o projeto havia encontrado sua forma adequada.21

Nem Granato nem Smythe, nem nenhum outro “au-

tor” de livros fotográficos ou de livros que utilizaram foto-

grafias de modo conceitual, particularmente nos anos 70,

que foi quando mais se produziram, eram fotógrafos. Eramartistas que chamavam a outros para tirar fotografias para

serem usadas em seus projetos.

Foi realmente a partir da década de 1980 – com algumas

isoladas exceções nos anos 70, como o trabalho do argentino

Leonardo Katz – que emergiram artistas cujo meio privile-

giado foi (e continua a ser) a fotografia. Gabriel Orozco,

Óscar Muñoz, Rosângela Rennó experimentaram, desde

meados dos anos 80, com a fotografia conceitual. Detenha-

mo-nos, brevemente, na fotografia de Orozco e na de Mu-

ñoz. Para Orozco, desde  Perro durmiendo, de 1990, Turista

maluco e Mis manos son mi corazón, ambas de 1991, a foto-

grafia é inseparável da escultura. Ou porque, como em Mis

manos son mi corazón, as duas fotografias cibachrome são

resultado de uma escultura feita de barro em forma de co-

ração – e que na imagem aparece segurada pelas mãos do

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 A escrita assume a categoria de prática artística 79

próprio Orozco contra seu tronco nu –, ou porque, como

em Turista maluco e Perro durmiendo, o espectador não tem

a impressão de estar vendo algo que existisse previamen-

te à fotografia, mas uma fotografia de uma escultura. O cão

está tão cuidadosamente posicionado sobre as rochas, pro-

duz tal efeito de irrealidade, que só poderia ser um corpotransformado em matéria escultórica. No final dos anos

70, o artista colombiano Óscar Muñoz comprou a quilo

um arquivo de imagens tiradas por fotógrafos de rua em

Cáli. Fotografias tiradas com a intenção de depois serem

vendidas fazem parte da massificação do meio, de sua co-

mercialização, de seu cruzamento com a cultura de massas

e a publicidade. Naquele momento, e dali em diante, Muñoznão produziu uma obra cujo resultado final fosse estrita-

mente fotográfico, mas sempre parte da fotografia, tira dali

sua matéria. “O trabalho de Óscar”, comentou José Roca, o

crítico e curador que mais estudou a obra de Muñoz, “foi

uma tentativa constante por desfixar [a] imagem” (2012, p.

23): se a fotografia fixa, o trabalho conceitual de Muñoz

trabalha sobre o movimento e o perecedouro da imagem.

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 A literatura na época contemporânea:

uma literatura fora de si

Apesar de podermos, como vimos, traçar vários apareci-

mentos da fotografia no campo literário desde pelo menos

fins do séculoXIX

, interessa-me ver o que acontece espe-cificamente da segunda metade do século XX  em diante,

porque por um lado é nesse momento que a fotografia se

afirma como algo natural na vida cotidiana, tanto privada

como pública, e por outro lado porque é aí que a fotogra-

fia ingressa nos espaços da arte, tanto nas práticas artísti-

cas como na literatura, não como representação, nem como

ilustração, nem como “arte”, mas antes como conceito.É com relação a esses novos usos da fotografia que,

como veremos, as artes começaram a expandir-se, a deslo-

car-se, a transitar por zonas e materialidades que não eram

as que, até aquele momento, haviam definido cada uma.

E é nessa encruzilhada que quero ler a literatura contem-

porânea que venho chamando “conceitual”, o que Bellatin

chamou “os livros do futuro”. Ou seja, é com relação a es-

sas mutações nas diferentes artes, ao modo como essas trans-

formações tiveram sempre a fotografia como um de seus

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 A escrita assume a categoria de prática artística 81

operadores ou veículos principais, que quero ler as mudan-

ças no campo literário que ocorreram na mesma época. Se,

como diz Mario Bellatin com relação ao projeto da Escola

Dinâmica de Escritores, “a literatura assume a categoria de

prática artística”, quero então ver quais foram e como se

sucederam, a partir dos anos50

, as mudanças que nos leva-ram até nosso momento atual de “condição pós-meios” no

terreno das artes, seguindo em particular os aparecimentos

e modificações que a fotografia foi operando.

Na segunda metade do século XX, a fotografia deixa de

ser entendida somente como um documento, como espe-

lho do mundo, como representação hiper-realista, e se tor-

na uma tela – uma tela na qual pode projetar-se qualquerideia, conceito, realidade ou fantasia – o que Barthes cha-

mou “o terceiro sentido” da fotografia, essa capacidade de

gerar outra coisa que não é a que se vê nessa superfície

plana, lisa, sem rugosidade, sem relevo, sem dimensão, sem

vida. Por isso se transforma, a partir dos anos 60, em plata-

forma de preferência usada tanto por artistas como por teó-

ricos.

À literatura, por outro lado, custou mais que à fotogra-

fia a passagem para o conceitual, porque até as práticas

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82 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

literárias mais experimentais estão presas à linguagem, que

sempre, inevitavelmente, se refere a algo. Essa caracterís-

tica profundamente simbólica da palavra é talvez a razão

pela qual ela teve de pedir a outras artes suas formas narrati-

vas para poder sair de sua própria forma de representação.

Interessa-me então ver o que acontece à literatura quandose encontra com uma fotografia que é entendida como con-

ceitual – essa tela vazia – e perguntar-me por que a literatu-

ra contemporânea recorreu tão frequentemente a ela.

O propósito deste livro é duplo. Por um lado, explorar

como se produz a fissura que deixará a fotografia infiltrar-

se no campo literário e a literatura no campo fotográfico

na segunda metade do século XX. Também me pergunto, apartir de tal aproximação, sobre os possíveis motivos para

que se desse uma convivência da autonomia literária com

materiais que venho chamando “a prosa do mundo”, ex-

ternos e antitéticos a tal autonomia, e consequentemente

sobre a especificidade da noção mesma de meio. A pergun-

ta é tanto geral (do modo como assinalou Bellatin – o en-

contro de todas as artes com a literatura) como particular

(do modo como o pratica Bellatin – o encontro da literatu-

ra com a fotografia). Perguntar-se sobre esses procedimen-

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tos é também um modo de perguntar-se como se dá a pro-

dução de alteridade dentro do próprio campo que permite

a passagem dele a e para a diferença. Como ler essas obras?

Como ler essa mudança na literatura, agora contaminada,

fissurada, “ela mesma”? Os clássicos paradigmas da crítica

e da teoria literária, ancorados ainda hoje na representa-ção, não conseguem dar conta dos novos modelos literários.

Essas obras às vezes híbridas em que fotografias e textos

compartilham um espaço comum – o livro – e outras vezes

tão radicais em suas formas, que não precisam incluir ima-

gens fotográficas para tornar presente o fotográfico no texto,

levam a crítica a ter de pensar em novos termos. Um possí-

vel termo é, como vimos, o de uma obra conceitual. Outro

possível seria o de uma obra aberta. Ambas, como veremos,

poderiam ser entendidas dentro do marco de uma mutação

no campo das artes que as levou para a estética.

As vanguardas históricas, em sua busca de uma ação di-

reta (e muitas vezes revolucionária) sobre o mundo, propu-

seram uma síntese das artes – pensemos nas colaborações

entre, por exemplo, Xul Solar, Jorge Luis Borges e Horacio

Coppola, ou na integração de etnografia, musicologia, artes

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plásticas e literatura na obra de Mário de Andrade, ou nos

projetos compartilhados entre José Vansconcelos e Diego

Rivera, no Construtivismo Russo e na Bauhaus – um mo-

delo de integração das diferentes disciplinas, todas em busca

de uma cooperação que levasse a arte para o mundo, para

a experiência e para a vida. A ideia por trás desses cruza-mentos da primeira metade do século XX surge como varia-

ções da ideia da “obra de arte total” – a Gesamtkunstwerk de

Wagner, retomada por Gropius como ideia fundamental

por trás da Bauhaus.22 Creio que essas obras, as produzidas

a partir da década de 1950, não buscam uma síntese, mas

uma abertura, também, como grande parte da produção

literária das vanguardas, para tentar sair do encerramentoda obra para o mundo.23

Ao que estou me referindo? Como ler obras literárias

como Pedro Páramo, de Juan Rulfo, ou Farabeuf, o la crónica

de un instante e Camara lucida, de Salvador Elizondo, ou Cá-

mara secreta e Álbum de la sagrada familia puertorriqueña, de

Edgardo Rodríguez Juliá, ou La noche de Tlatelolco, Tinísima

e Siete cabritas, de Elena Poniatowska, ou O mês da gripe,

 Minha mãe morrendo e Crimes à moda antiga, de Valêncio

Xavier, ou Vudu urbano, de Edgardo Cozarinsky, ou La nueva

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novela, de Juan Luis Martínez, ou  Lumpérica,  El infarto del

alma e El padre mío, de Diamela Eltit, ou “La mayor”, Nadie

nada nunca e Glosa, de Juan José Saer, ou Shiki Nagaoka:

una nariz de ficción,  Perroes héroes, Los fantasmas del masa-

 jista, todos de Mario Bellatin, ou El aire e Los planetas, de

Sergio Chejfec, ou Nove Noites,  Mongólia e O sol se põe emSão Paulo, de Bernardo Carvalho, ou  Junco e “Minha fan-

tasma” de Nuno Ramos, que não se ajustam, em suas formas

e em seus desejos, às formas e tipos de relatos que configu-

ravam o literário, apesar de que, como críticos, ante a au-

sência de especificidade que apresentam, continuemos a

atribuir-lhes um gênero ou outro, uma tipologia ou outra,

um lugar dentro de uma taxonomia preexistente, num afãde orientar a produção, de enquadrá-la dentro de parâme-

tros seguros, e evitar assim o naufrágio? Que significaria

ler essas obras como obras abertas?

Uma literatura fora de si. Com essa frase quero trazer

para o campo da literatura o trabalho sobre a arte contem-

porânea do crítico paraguaio Ticio Escobar – El arte fuera de

si  (2004). A noção de uma ida para um fora encontra eco

numa série de formulações sobre limites, fronteiras, extre-

mos, beiras, meios e passagens que se vêm fazendo desde

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o final dos anos 60 até hoje numa diversidade de discipli-

nas: da teoria estética de Theodor Adorno ao recente traba-

lho sobre o regime estético da arte, o futuro da imagem e o

espectador emancipado de Jacques Rancière no campo da

filosofia estética; do pioneiro ensaio de Rosalind Krauss so-

bre a escultura no campo expandido a seu mais recentetrabalho sobre a reinvenção dos meios, ao trabalho de Nelly

Richard sobre as margens e a arte chilena da ditadura e ao

de Kaja Silverman sobre a fotografia por outros meios no

campo da história da arte (2009); do trabalho sobre a socie-

dade sem relato e as culturas contemporâneas da iminência

de Néstor García Canclini no campo da antropologia (2010);

das expansões que vem assinalando Flora Süssekind na poe-sia e na ficção contemporânea à queda da cidade letrada

de Jean Franco, ao trabalho sobre os modos dos extremos

na literatura e no cinema de David Oubiña, às estéticas da

emergência de Reinaldo Laddaga (2006), à noção de pós-

autonomia de Josefina Ludmer (2007), às literaturas reais

de Luz Horne, à obra de Valeria de los Ríos sobre o impacto

da fotografia e do cinema na escrita latino-americana – to-

dos esses no campo da crítica literária. Cada um desses tra-

balhos investiga as estratégias de ruptura e destruição da

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sintaxe das diferentes artes – a literatura, o cinema, a escul-

tura, a fotografia, a pintura, o teatro –, os modos e motivos

que fazem com que a especificidade dos meios, a partir de

meados do século XX, mute, entre em crise, se desarme.

Adorno será, desses críticos, o único, junto com David

Oubiña, que argumentará que essas mudanças são, desdesempre, constitutivas da arte, que fazem parte da estrutura

interna e da relação – tensa – entre arte e realidade, entre

obra e mundo, e que não são, em princípio, específicos de

uma época: as transformações de que vim falando são es-

sas mudanças que sucedem quando a arte vai até seu limi-

te, são aquilo que ele denominará negatividade. Na leitura

da Teoria estética que guia o trabalho de Oubiña sobre osextremos da literatura e do cinema na Argentina dos anos

60 e 70, que por sua vez guiou, fortemente, minhas leituras

e observações neste ensaio, o crítico argentino escreve que

para Adorno:

A arte só existe em relação ao que não é arte, e, portanto,

sua lei de desenvolvimento é sua própria lei de formação.Uma vez apresentados seus pressupostos, já não pode

radicalizá-los, empurrá-los para o extremo, ao encontro

desse horizonte alheio onde se porá em questão a si mes-

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mo: onde conseguirá renovar-se, ou acabará por extraviar-

se. (OUBIÑA, 2010, p. 29)

O que a arte “não é” é, para Adorno, o que está sempre

perto, espreitando, ao lado, poderíamos dizer, da beira ou

limite que quer conter a especificidade da arte – sua lingua-

gem, sua materialidade, sua sintaxe, suas regras. A arte sem-pre contém aquilo que “não é”, e é essa negatividade que

acarreta como componente integral de si mesma, em po-

tência, o que fica exposto quando ela é levada ao limite,

em especial naquilo que chamamos “arte experimental”:

A arte, ao ir-se transformando, empurra seu próprio con-

ceito para conteúdos que ela não tinha… Só se pode inter-pretar a arte por sua lei de desenvolvimento, não por suas

invariantes. Ela se determina por sua relação com aquilo

que não é arte. O que nela há de especificamente artístico

procede de algo diverso: deste algo há que inferir seu con-

teúdo; e só esse pressuposto satisfaria as exigências de uma

estética dialético-materialista. Sua especificidade lhe vem

precisamente de distanciar-se daquilo pelo qual veio a ser,

sua lei de desenvolvimento é sua própria lei de formação.Ela só existe em relação com o que não é ela, é o processo

para isso. (ADORNO, 2004, pp. 21-22)

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Adorno dirá que, nesse sentido, toda arte é experimen-

tal, mas que nem toda arte vai para o limite em que aquilo

que “não é” “faz soar a língua” da arte.24  O que define a ar-

te, para Adorno, é precisamente esse impulso interno, ne-

gativo e renovador ao mesmo tempo. A obra de arte, para

Adorno, é aquela que, por conter sua própria negatividade,contém também seu próprio mecanismo de destruição, sua

própria capacidade de deixar de ser e poder passar a ser

nada. Ou a ser outra coisa.

É interessante recordar que, dentro desse problema so-

bre o próprio e o impróprio, sobre o dentro e o fora, sobre

as contaminações e fraturas dentro de cada campo, sobre as

mutações e as idas para fora de si, a noção de “expansão”foi provavelmente a primeira proposta a caracterizar esse

impulso das vanguardas contemporâneas de que Adorno

falava, no plano conceitual. Quase todos os críticos atri-

buem ao ensaio de Rosalind Krauss de 1970 – “Sculpture in

the Expanded Field” – sua primeira apresentação, mas cabe

recordar que, na verdade, havia sido usada pela primeira

vez com relação ao surgimento do vídeo, no simpósio de

1966 intitulado “Expanded Cinema”. No final dos anos 70,

Krauss, a jovem crítica de arte, pergunta-se, ao tentar dar

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conta de certas mudanças da escultura contemporânea (está

pensando na obra de Richard Serra e Robert Smithson, en-

tre outros) que a levaram a parecer-se muito com a arquite-

tura, se as categorias de arte – fotografia, escultura, cinema

– são, ou não, historicamente específicas. Krauss assinala

que, como qualquer outra convenção, essas categorias têmsuas próprias regras. Por que, pergunta Krauss, seguimos

“pulling and stretching categories” [puxando e alargando

categorias] (1979, p. 30), exercício que inevitavelmente re-

vela uma dificuldade por parte da crítica para abordar a

novidade, o radical, as emancipações das categorias em seus

saltos para novas formas. Ante o gesto crítico prevalecen-

te naqueles anos 70 que “diminishes and mitigates diffe-rences” [diminui e mitiga diferenças] (idem, ibidem, p. 36),

Krauss propõe que se pense na noção de expansão para dar

conta dessa primeira onda de mutações das artes. Clara-

mente leitora também de Adorno, Krauss assinalava que,

quando “one crosses the threshold of the logic” [alguém

cruza o umbral da lógica] de um meio ou categoria, e entra

em “the space of what could be called its negative condi-

tion as though the category have entered the full condition

of its logic and have become pure negativity” [o espaço da-

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quilo que pode ser chamado a sua condição negativa, em-

bora a categoria tenha entrado na plena condição de sua

lógica e se tenha tornado pura negatividade], a crítica de-

via então encontrar um novo termo para falar do novo

domínio das artes. Em 1970, Krauss propõe que se entenda

essa negatividade e impulso transformador da arte comouma ruptura histórica, que é também uma ruptura da lógi-

ca de um meio. Essa ruptura histórica, essa transformação

do campo cultural, poderia denominar-se pós-modernismo.

O campo expandido é, para Krauss, em 1979, o pós-moder-

nismo, e ocorre num momento específico da história da

arte em inícios dos anos 70. Em seus textos dos anos 90,

o campo expandido é o “post-medium condition”.O influente ensaio de Krauss não responde, ainda que,

sim, se pergunte, quais são os motivos para tal ruptura

que leva a arte para o campo expandido. Para Adorno, essa

expansão não é algo característico do pós-modernismo nem

é historicamente específica, mas é para onde vai a arte, sem-

pre. Há algo perigosamente ahistórico em sua teoria estética,

uma busca de uma metafísica da arte que não consegue se

pensar com a história. Adorno não fala de expansões, quer

dizer, do que ocorreu especificamente na arte contempo-

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arte como uma “forma de experiência específica” só existe

há dois séculos, é porque antes havia “artes”. Rancière cha-

ma o regime anterior ao estético, ao regime em que havia

“artes” mas não arte, de regime poético-representativo. Na-

quela organização de visibilidade da experiência sensível,

cada arte era governada por regras, gêneros, profissões e

hierarquias. O regime poético-representativo desenvolveu

formas de normatividade (ainda que originalmente não se-

jam um motor ou um regime normativo) que permitiram

reconhecer e distribuir as produções adequadamente como

pertencentes a uma arte ou outra até a chegada do regime

estético:

(...) divisões entre o representável e o não representável; a

distinção entre gêneros de acordo com o que é represen-

tado; princípios para adaptar formas de expressão a gêne-

ros e assim ao assunto representado; a distribuição das

semelhanças de acordo com os princípios de verossimi-

lhança, adequação, ou similaridade; critérios para distin-

guir entre e comparar as artes. (RANCIÈRE, 2013, p. 22)

A identificação da arte, em verdade das artes, como tais,

ocorria através de divisões entre os modos de fazer arte. No

regime estético da arte, há modos sensíveis específicos dos

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produtos artísticos que nada têm a ver com profissões, hie-

rarquias, gêneros. O regime estético é aquele em que a arte

é uma forma estranha a si mesma, uma forma de pen-

samento que não se reconhece como tal, é uma forma ha-

bitada por uma força heterogênea. Daí que para Rancière

a arte – que aparece sob o regime estético – exista ou emerjaquando a forma de vida hierarquizada e ordenada, sob o

regime estético, entra em crise. Mas a crise não é a busca de

uma ruptura artística em si. O regime estético “comenzó

con decisiones de reinterpretación de lo que hace o de quién

hace el arte” [começou por decisões para reinterpretar o que

faz a arte ou o que a arte faz] (RANCIÈRE, 2009, p. 2). O pro-

grama da Escola Dinâmica de Escritores propõe, precisa-mente, uma redefinição do que constitui o literário e do que

o literário faz, e isso ocorre, precisamente, através do reco-

nhecimento de que as barreiras entre as artes foram aboli-

das. Rancière, consciente de que sua proposta sobre o regime

estético poderia ser entendida como uma redefinição das

noções de modernidade, pós-modernidade e vanguarda, es-

clarece que esses são termos fáceis que trabalham a partir

de uma homogeneização do tempo, ocultando as singula-

ridades das transformações da arte.

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O que aqui proponho é que se leia o cruzamento de

literatura e fotografia na época contemporânea junto às

propostas de Adorno, Krauss e Rancière, apesar de elas pa-

recerem, em muitos sentidos, contraditórias. Adorno me

permite pensar na potencialidade de uma sintaxe náufraga

no centro de toda obra de arte. Krauss me obriga a pensarhistoricamente, a perguntar-me por que nesse e não em

outro momento histórico a literatura saiu de si, para um

fora onde, em lugar de naufragar, buscou o suporte de ou-

tros meios, e se reinventou. Rancière propõe um marco his-

tórico, ainda que muito lasso, já que Balzac e Agee podem

ser lidos juntos sem contextualizações específicas, talvez

de modo problematicamente útil para entender a arte (ondeentra a literatura) contemporânea. Pensar a partir do regi-

me estético é útil, mas seria preciso considerar as mudanças

e as modulações internas, como propõe Krauss, que perce-

be acertadamente o que ocorre com o meio da arte e com

os campos. Adorno, Krauss e Rancière operam, leem e afir-

mam a partir de um pensamento “universal”, pensam um

mundo em que todas as práticas da arte contemporânea,

e a teoria estética que surge com elas, se dão igualmente em

todos os contextos. Esse apagamento da especificidade

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social, econômica e política, como já sabemos muito bem

por todo o trabalho proposto por críticos pós-coloniais, pro-

duz leituras inevitavelmente equívocas. Apesar de eu acre-

ditar que essa expansão da literatura e das artes em geral

sucedeu em múltiplas geografias, e que o “nacional” já tem

pouco lugar na esfera social dentro da qual se produz, seé diferente. A mudança e passagem para o regime estético

das artes se deu de modo desigual entre América Latina

e Europa, e até de modos diversos na própria América La-

tina. Por último, o regime estético de Rancière pode ser

utópico, já que para o filósofo francês o regime estético das

artes com seu campo de ação e produção aberto para qual-

quer sujeito é claro sinal de algo como um “comunismo es-tético”. É como se houvesse uma confusão entre aquilo

a que se aspira e o que é realmente. No regime estético de

Rancière, as transformações do campo literário para outras

artes fazem parte de mutações, transformações e desunifi-

cações que sucedem livremente e espontaneamente, não

há naufrágio (como haveria para Adorno). Constituem o

que se chama Arte. Interessa-me pensar, junto com Ador-

no, Krauss e Rancière, indo das formulações mais gerais às

historicamente específicas, essa macromudança em microes-

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cala: os encontros da literatura e da fotografia na América

Latina na segunda metade do século XX e em inícios do XXI.

A expansão da literatura latino-americana surge, num

primeiro momento da época contemporânea, nos anos 50,

em parte, para que a literatura não naufrague. O naufrágio,

em fins dos anos50

 e até os70

, para alguns desses livros pro-duzidos sob a contaminação de outros meios, seria a crise

do Estado e com ela a da Nação, com todas as suas cate-

gorias: crise política que porá em crise a autonomia literá-

ria. Em 1970, Hélio Oiticica declarava no MoMA de Nova

York, na exposição Information, que “I am not here repre-

senting Brazil; or representing anything else: the ideas of 

representing-representation etc. are over” [Eu não estouaqui representando o Brasil; nem representando coisa al-

guma: as ideias de representar-representação etc., estão aca-

badas] (OITICICA, 1970, p. 103). É nos anos 60  que surge

uma literatura que, por diferentes motivos e com mecanis-

mos e estratégias muito díspares, rompe, como descreve

 Jean Franco, “the walls of what Angel Rama termed ‘the

lettered city’” [os muros daquilo a que Angel Rama chamou

‘a cidade letrada’] (2002, p. 10). Franco se refere a uma rup-

tura que permite a entrada das culturas e línguas indígenas

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no espaço da cultura letrada, ou, dito de outro modo, o in-

gresso da “cultura popular” na esfera literária. Para Fran-

co, essa mudança surgiu como efeito da crise dos projetos

de modernização nas diferentes nações latino-americanas.

Aqueles agora falidos e obsoletos projetos haviam dado,

em seu início, no fim do séculoXIX

, uma autonomia à lite-ratura, e era precisamente a categoria de autonomia a que

ficava fissurada ante o final daqueles projetos. Para Franco,

a desilusão com os ideais republicanos, seculares, moder-

nizadores dos Estados-nação levou a literatura a ocupar-

se, uma vez mais, da realidade (para não dizer da política).

Nessa encruzilhada Franco situa o livro inacabado de Ar-

guedas, El zorro de arriba y el zorro de abajo (1971), em quecompartilham na mesma página o registro de ficção e o

diário pessoal do escritor, e O livro de Manuel, romance em

que Cortázar introduz material extraliterário ao incluir noti-

ciários e música (entre outros materiais da vida cotidiana).

O aparecimento de romances como os de Arguedas e Cor-

tázar mostra que “clearly the autonomy of the literary text

on which the modernist project has been based and within

which national projects have been contained was by now

irreparably damaged” [claramente a autonomia do texto

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literário na qual o projeto modernista se baseou e na qual

projetos nacionais se incluíram foi agora irreparavelmente

danificada] (idem, ibidem, pp. 10-11). O fim da autonomia

é o que, para Franco, leva a literatura para “fora de si”, e a

crise dos Estados-nação latino-americanos é o motivo pelo

qual sucedeu essa expansão. Uma autonomia avariada, da-nificada, irreparavelmente.

É curioso que Franco insista em chamar “romances”

a El zorro de arriba y el zorro de abajo e O livro de Manuel, já

que pouco se parecem com qualquer romance anterior.

É claro que o romance, desde a sua origem, havia posto em

cena a relação entre a realidade e a ficção – recordemos, ain-

da que corramos o risco de cair num lugar-comum, o ma-nuscrito encontrado que é D. Quixote –, mas o que ocorre

no trabalho de Arguedas e de Cortázar é de outra ordem,

porque não há brincadeira, nenhuma paródia, nem há um

desejo de assegurar a nova forma da ficção que se chama-

ria eventualmente “romance” por meio de presenças ex-

traliterárias, senão que antes a ficção se encontra minada,

danificada e avariada, recordemos a linguagem de Franco,

pelo assédio da realidade. Essa irrupção de “restos do real”

no campo literário ocorreu de maneira mais contundente

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e principalmente no romance, o gênero por excelência do

individualismo da sociedade burguesa, cifra do espaço pri-

vado e do consumo, forma em torno da qual girava a tensa

noção da autonomia. Por isso Franco sublinha, com razão,

o peso da política com relação às transformações que a li-

teratura sofria. Nesse caso, o romance como gênero bur-guês por um lado, mas também como gênero unificador,

totalizador e nacional, se havia esgotado e precisava se ex-

pandir, sair de si – deixar-se fissurar, deixar que se rompes-

sem suas bordas, seus limites, suas fronteiras.

Ao ler a produção literária contemporânea, Ludmer

retoma a já impossível autonomia do campo literário que

Franco havia observado durante a época da Guerra Fria.Mas, se para Franco nos anos 60 e 70 a literatura se havia

encontrado invadida pelo real, para Ludmer, no momento

presente, é a literatura que foi para suas fronteiras, que se

aproximou daquilo que ela não é. Segundo Ludmer, “as

literaturas pós-autônomas do presente sairiam da ‘literatu-

ra’, atravessariam a fronteira”. Ludmer não utilizará o con-

ceito de expansão, senão que chamará a essa nova escrita

“nomádica e diaspórica”. Ludmer acrescenta:

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102 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

Segundo essas propostas, a expansão da literatura ago-

ra estaria dada desde a concepção estética da literatura. Já

não seria um caso de crise política – os anos 60 e 70 que Fran-

co descreve em seu livro –, mas, como argumenta Ludmer,

um momento em que “todo o cultural (e literário) é eco-

nômico e todo o econômico é cultural (e literário)”. As cri-ses dos Estados-nação e a instalação definitiva do império

econômico de um capitalismo desenfreado teriam levado

a arte para o campo econômico, que agora seria a única

esfera possível.25

Uma literatura fora de si quer continuar pensando as pro-

postas de Franco e Ludmer à luz das observações sobre os

extremos, a experimentação e a historicidade das catego-

rias e meios oferecidos por Adorno, Krauss e Rancière. A crise

da cidade letrada e sua substituição por uma economia de

mercado que agora rege (segundo Ludmer) as regras do fa-

zer literário, cultural e artístico não chegam a oferecer uma

leitura histórica sobre o desmoronamento dos meios artís-

ticos e a reconfiguração da arte como “obra aberta” ou como

grande operação “conceitual”. Espero que Uma literatura

fora de si proponha ao leitor um guia para essa abertura, para

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 A escrita assume a categoria de prática artística 103

esse fora para onde foi a literatura verdadeiramente “expe-

rimental”.

No que se segue neste ensaio, eu gostaria de ler essas

expansões e desarticulações do literário em quatro escrito-

res que, cada um em seu momento, ofereceram uma reno-

vada virada vanguardista, não no sentido de um programaestético de vanguarda, mas no simples sentido de efetuar

uma abertura e renovação das formas literárias. A presen-

ça de imagens fotográficas em textos literários já não dá,

como nas obras de inícios do século XX  (Euclides, Rivera,

Borges), resultados falidos, mas obras que habitam, de modo

aparentemente muito mais cômodo, formas quase impos-

síveis de classificar quanto a gênero. Nas partes seguintes,leio a obra de Juan Rulfo, de Diamela Eltit, de Mario Bellatin

e de Nuno Ramos como paradigmáticas dessa presença, pro-

pondo que as fotografias materiais e imateriais aparecem

não por acaso em livros cujos temas são os das fronteiras,

dos limites, do material e dos corpos, e, quando não apare-

cem, o que há ali, para voltar a Bellatin, são “fotografias nar-

rativas”.

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2. A fotografia da história 

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106 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

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 A fotografia da história 107

O trabalho seminal de Shiki Nagaoka, Foto e palavra, teve,

segundo a biografia escrita por Bellatin, “muita importân-

cia no labor de um escritor, Juan Rulfo, que pôde encon-

trar nas fotos narrativas de Shiki Nagaoka a possibilidade

de continuar com o trabalho que havia iniciado em seus li-

vros” (2001, p. 30). O livro de Bellatin conta que, numa carta

datada de 1952, Rulfo havia escrito a seu amigo, o escritor

peruano Juan Maria Arguedas, que a obra de Shiki Nagaoka

era de suma importância em sua “busca artística” e que ele

previa “o pronto aparecimento de um romance extenso,

totalizador, que amarrará definitivamente seu pensamen-

to”. Para consegui-lo, como termina dizendo o narrador,

Rulfo explicava que “precisava da mediação da fotografia”

(idem, ibidem).

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108 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

Sabemos que a biografia é apócrifa, como também o é

o personagem de Shiki Nagaoka. O texto de Bellatin é uma

ficção, é arte, não um documento. Mas Rulfo existiu, e Ar-

guedas existiu, e sabemos, além disso, que a afinidade lite-

rária entre esses escritores existiu – não é só um jogo que o

grande interlocutor do diário de Arguedas em El zorro de ar-riba y el zorro de abajo tenha sido Rulfo (que junto com Gui-

marães Rosa ocupa um claro segundo lugar). Nessa tensão

e contradição entre realidade e ficção, nesse coabitar do ar-

tifício e da verdade, Shiki Nagaoka: una nariz de ficción brin-

ca oferecendo leituras e propostas que desorientam. Há uma

radicalidade que o texto propõe, efetivamente abrindo no-

vas possibilidades para a literatura. O livro de Bellatin cru-za com a realidade, não porque seja “realista”, mas porque

em certos momentos contém aquilo que deveria ser exter-

no à ficção: a inclusão de fotografias e documentos sobre

Shiki Nagaoka, o encontro entre Rulfo e Arguedas, o fato

de que em 1952 Rulfo estivesse escrevendo um romance que

amarraria definitivamente seu pensamento, o lugar-chave

da fotografia na poética de Rulfo. Gostaria de tomar a sério

este comentário sobre Rulfo e a fotografia via a biografia de

um personagem de ficção. Rulfo escreverá, efetivamente,

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um grande romance, ainda que não tenha sido totalizador,

muito pelo contrário. Mas é, isto sim, como proporei aqui,

uma narrativa fotográfica. Não via Shiki Nagaoka e seu Foto

e palavra, mas via Walter Benjamin e sua imagem dialética.

O amateur  experimental

Sabemos, hoje, que Juan Rulfo tirou fotografias ao longo

de sua vida. Mas isso nem sempre se soube. Antes de tudo,

e por várias décadas, Rulfo foi escritor. Mas suas primeiras

publicações literárias coincidem com as primeiras fotogra-

fias que mostrou publicamente, ambas na revista América,

que ele editava com um grupo de amigos no México, nosanos 1940. Rosario Castellanos, Pita Amor, Margarita Mi-

chelena, Jesús Guerrero eram alguns dos amigos com que

começou a revista. Ali, na América, em 1949, ele publicou

uma série de onze fotografias, e alguns anos depois, em

1952, publicou outro conjunto de imagens, dezessete desta

vez, em outra revista, menor, chamada Mapa. Esses primei-

ros aparecimentos de suas fotografias passaram totalmente

inadvertidos, com quase o mesmo silêncio com que a críti-

ca literária havia recebido a publicação de Chão em chamas

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110 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

em 1953. Sublinhemos: quando apareceu aquele livro de

contos, não se mencionou que o escritor também era fotó-

grafo. Rulfo teve sua primeira exposição de fotografias em

1960, em Guadalajara, depois de a publicação de Pedro Pára-

mo em 1955 lhe ter valido uma consagração quase imediata

na vida literária e intelectual tanto mexicana como latino-americana. Apesar de ter tido aquela mostra, dessa primei-

ra exposição não resta registro. Ninguém a comentou nem

resenhou. Até 1980 Juan Rulfo foi conhecido exclusivamen-

te como escritor.

O reconhecimento e a visibilidade de seu trabalho fo-

tográfico chegaram no final de sua vida: no marco das ce-

lebrações que lhe fizeram como homenagem nacional em1980, houve uma importante mostra de cem fotografias no

Palacio Nacional de Bellas Artes. A seleção de imagens que

integraram essa mostra foi feita por Nacho López e Vicente

Rojo, ambos amigos de Rulfo, os quais além da exposição

também organizaram o livro que acompanhou o evento,

 Inframundo: el México de Juan Rulfo. Este foi o único livro de

fotografias publicado em vida. Toda a documentação que

existe acerca da mostra de 1980 e da produção de Inframun-

do concorda em assinalar que Rulfo não quis participar ati-

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vamente da encenação de si mesmo como fotógrafo, dei-

xando todas as tarefas nas mãos de outros, recusando-se,

de certo modo, a apresentar-se como fotógrafo. É claro que

tampouco se negou a que sucedesse a mostra, a que se vis-

sem suas fotografias, a que se publicasse Inframundo, a que

passasse a ser visto como fotógrafo, porque efetivamentefoi essa dupla apresentação de Rulfo em 1980, como escritor

e como fotógrafo, o que levou a que o começassem a con-

siderar não só o grande escritor mexicano do século XX,

mas também um dos grandes fotógrafos mexicanos do sé-

culo. Apesar dessa visibilidade, tardia, de sua obra fotográ-

fica em vida, foi de fato postumamente que se conheceu o

imenso arquivo fotográfico de Rulfo, principalmente atra-vés de publicações que começaram a proliferar depois de

1983 – México. Juan Rulfo fotógrafo, Juan Rulfo: letras e imáge-

nes, Noticias sobre Juan Rulfo, Juan Rulfo fotógrafo, Juan Rulfo:

Oaxaca, 100 fotografías de Juan Rulfo.1

Os títulos de vários desses livros revelam os dois mo-

dos como foram vistas as fotografias de Rulfo. Por um lado,

o título da primeira publicação,  Inframundo: el México de

 Juan Rulfo, anuncia-as como a representação de um Méxi-

co que é o “dos mortos e dos espíritos” e também o “das

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112 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

pessoas que vivem de forma miserável com respeito à so-

ciedade”, se seguimos as definições dadas pelo  Diccionario

de la Real Academia Española da palavra “inframundo”, que

seria o México de Juan Rulfo. Um México pessoal, subje-

tivo, produto do olhar singular de um artista. Influi, cla-

ramente, a coroação que em1980

 já havia recebido a obraliterária de Rulfo como “verdadeira” e “autêntica” do Méxi-

co rural. A obra profundamente antirrealista de Rulfo foi –

e ainda é – lida como representação fiel de um sentimento

mexicano, como mimética ou testemunhal, a partir de le-

mas de verossimilhança. Ali se inscreveu seu primeiro verda-

deiro aparecimento como fotógrafo: representativo de nada

menos que um Estado-nação. Não me interessa aqui entrarnuma discussão sobre as múltiplas definições do realismo,

nem indagar sobre a veracidade ou o artifício do mundo

rulfiano. Tampouco me interessa questionar se a religiosida-

de, o mito, o silêncio, a seca, a fome, a paisagem sombria,

a experiência histórica dos “vencidos”, a memória coletiva,

o abandono estatal das comunidades rurais, o caciquis-

mo, a injustiça ou a “irracionalidade” são ou não aspectos

da vida rural no México. Interessa-me tão só recordar que

depois da narrativa mexicana do século XIX, que havia des-

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 A fotografia da história 113

crito o campo mexicano como bondoso e virtuoso – em

obras como La Navidad en las montañas, de Ignacio Manuel

Altamirano, ou Astucia, de Luis Incán – e do chamado “ro-

mance da revolução mexicana”, que havia querido repre-

sentar fielmente a história e, segundo Carlos Monsiváis,

“libertar a narrativa de seus jugos feudais” – em Vámonoscon Pancho Villa, de Rafael Muñoz, ou Los de abajo, de Maria-

no Azuela –, a escrita de Rulfo oferecia outro México rural

(1980, p. 29). Um México “miserável”, de “mortos e espíri-

tos”, um México, efetivamente, de “inframundo”. O cam-

po rulfiano não tem nada de “apresentável”, ainda que se

tenha tornado a imagem por excelência do México.

Não encontramos em sua obra literária uma nova inten-ção de embelezar nem sublimar o espaço nem seus habitan-

tes (o que teria feito, apesar dela mesma, muita produção

literária sobre a revolução), nem como forma idealizada.

Muito pelo contrário: a desadjetivização radical que carac-

teriza a escrita de Rulfo oferece uma textualidade substan-

tiva, nominal, e, nesse sentido, concreta. Sua gramática é

constituída por palavras e coisas, sem adjetivos, sem giros

poéticos, sem aquilo que costumamos chamar “estilo”. Uma

linguagem seca, sem enfeite, material. O curioso é que, ape-

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114 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

sar de ser uma escrita material e concreta, não é uma escri-

ta que construa imagens, que ofereça “quadros”, que visua-

lize. O material e concreto da linguagem em Rulfo leva à

escrita para o sonoro, e não para o visual. Por isso as ima-

gens fotográficas foram apresentadas sob o manto do “in-

framundo”: nessas imagens, se poderia ver “o verdadeiroMéxico”, como Rulfo já o havia oferecido em seus textos.

Por outro lado, ainda que em relação direta com o modo

anterior, as fotografias de Rulfo foram vistas como ilustra-

ção de sua escrita, como a face visível do universo antes so-

noro que Rulfo havia oferecido em Pedro Páramo e Chão em

chamas. O arquivo fotográfico de Rulfo ficou assim inscri-

to dentro de um marco absolutamente realista, em algunsdos sentidos mais clássicos do termo: são retratos ou afrescos

do momento do autor, como Balzac quis oferecer em sua

Comédia Humana; são imagens verossímeis, miméticas. Ver

a imagem como ilustrativa de um texto revela uma leitura

que não consegue pensar ambos os meios horizontalmente,

num mundo onde as artes foram desierarquizadas. A prima-

zia da letra sobre a imagem, evidente onde a relação entre

letra e imagem está circunscrita a algum modo da ekphrasis

numa direção ou da ilustração na outra, funciona num regi-

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me em que a distribuição das artes estava claramente deli-

mitada como parte de sistemas de classificação e ordena-

mento que era produto de e ao mesmo tempo produzia uma

hierarquia. É nesse sentido também que a obra de Rulfo,

literária e fotográfica, foi lida por grande parte da crítica

como representativa: regras, hierarquias, gêneros que asse-guravam a capacidade representativa das artes, como arte.

O regime da representação não admite contaminações,

mutações, metamorfoses. E Pedro Páramo é uma obra mu-

tante, uma obra com intervenção, e transformada por um

outro meio. A obra de Rulfo é das primeiras obras literárias

realmente contaminadas que encontramos na América La-

tina, e nesse sentido palco de uma mudança nas artes paraa expansão, para o limite, para a estética.

Eu gostaria então aqui de ler Rulfo do ângulo da fotogra-

fia, mas de outro modo. Não me interessa neste momento

ler as fotografias de Rulfo, nem ver se são ou não uma boa

“versão” visual de sua escrita literária, principalmente por-

que creio que essa leitura ainda situaria Rulfo dentro de

um paradigma representativo – ou seja, num terreno em

que cada meio tem suas próprias medidas, e as interações

sucedem dentro de uma programada hierarquia e medida.

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116 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

Interessa-me aqui fazer uma observação sobre outro modo

como poderíamos pensar a fotografia em Rulfo ao refletir

sobre sua escrita a partir de certos procedimentos foto-

gráficos. Se falo de procedimento, falo então de uma com-

preensão “vanguardista” e moderna da fotografia, já não

entendida só como documento, mas também como expe-

riência, como arte.

Em várias entrevistas posteriores a seu sucesso como

escritor (das poucas que, parcamente, deu Rulfo), quando

se lhe preguntava sobre sua relação com a fotografia, ele

repetia que não era fotógrafo. Isso apesar de claramente o

mundo da imagem, especificamente fotográfica, ocupar um

lugar importante no universo rulfiano: o arquivo fotográfi-

co que deixou tem cerca de sete mil imagens; sua bibliote-

ca continha centenas de publicações de e sobre fotografia

– livros de arte com fotografias e também ensaios históri-

cos e teóricos sobre o meio. Deixou, além disso, pastas de

compilações de imagens que havia recortado de revistas e

jornais, álbuns que davam conta do lugar central da ima-

gem fotográfica no século XX.

Imagens descontextualizadas, fragmentos: Rulfo era um

colecionador de imagens, de modo similar aos cadernos de

notas, ou konvoluts, que deixou Walter Benjamin para Geor-

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 A fotografia da história 117

ges Bataille, cheios de citações que ele colecionava para seu

livro sobre as  Passagens, ou às imagens de obras de arte

colecionadas por Aby Warburg para seu atlas mnemosyne

como novo método para a história da arte. A diferença com

respeito aos projetos de Warburg e de Benjamin é que o que

Rulfo colecionava nessas pastas eram imagens dos meiosde massas, imagens cujos “autores” não importam, ima-

gens que só importavam enquanto imagem, e não enquanto

reflexo de tal ou qual subjetividade artística ou intelectual,

nem como reproduções de obras de arte (como no caso do

atlas de Warburg). Eram imagens coletivas, anônimas. Ali,

nessa coleção, nesse arquivo pessoal da imagem em sua

modalidade anônima e de circulação maciça, podemos veruma primeira instância de um Rulfo interessado não na

imagem como representação, mas na imagem por sua po-

tencialidade de ativação através do trabalho de montagem,

de combinação, de edição. Por isso é importante que Rulfo

não se considerasse fotógrafo. Essa negação não era uma

pose, nem um gesto de pudor. Era a afirmação de uma nova

organização da arte.

A imagem fotográfica foi, para muitos artistas e escrito-

res das vanguardas históricas, um dispositivo que não valia

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118 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

por sua qualidade documental, mas por seu inevitável po-

der de desnaturalização, de estranhamento – toda fotografia

é o descontextualizado aparecimento de algo. É um recor-

te, sempre à espera ou em processo de combinação. Poucos

artistas de vanguarda se pensavam a si mesmos como fo-

tógrafos, apesar de usarem a fotografia em suas obras. Van-

guarda, experimentação, fotografia e amateurismo: este é o

lugar da fotografia na obra de Rulfo. Não como objeto que

ilustre ou represente a realidade mexicana. Tampouco como

“arte”. É como dispositivo de uma operação radical.

É importante recordar que no final da década de 1940

e início da de 1950 já havia uma grande tradição de foto-

grafia moderna no México – Lola Álvarez Bravo, Manuel Ál-

varez Bravo, Tina Modotti, Kati Horna, Manuel Ramos, os

irmãos Agustín Victor e Manuel Casasola, nomes associa-

dos a uma busca de fazer “arte” com a imagem, levando-a

a romper sua intrínseca referencialidade, ou à emergência

do fotojornalismo mexicano. As possibilidades de atuação

dentro do campo fotográfico pareciam ser as do documen-

to, por um lado, ou as da arte “representativa”, por outro.

A escolha de Rulfo: amateur .

“Não sou fotógrafo”: a figura do fotógrafo amateur , nem

profissional nem artista do meio fotográfico, é o que para

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 A fotografia da história 119

Walter Benjamin definia o que ele considerava como a ver-

dadeira fotografia, que havia quase desaparecido em fins

do século XIX, mas que havia marcado o começo do meio,

em meados do século XIX. Para Benjamin, o retorno do

fotógrafo amateur  nos anos 20 e 30 do século XX era o retor-

no, renovado e mudado, daquela verdadeira fotografia, deinícios do século XIX. Uma fotografia não unificada clara-

mente dentro de gêneros. Aquela também havia sido prati-

cada, ainda que com exclusividade e elitismo, por amateurs.

Os primeiros praticantes da fotografia não eram, segundo

a “Breve história da fotografia” de Benjamin, profissionais

do meio, senão que aprendiam a técnica do novo meio fo-

tografando amigos e parentes, fotografando o mundo que osrodeava, sem intenção realmente de “documentar” nem de

ser artistas. Essa característica da fotografia do século XIX

havia sofrido uma alteração no século XX. Não quando a

fotografia se transformou em mercadoria – principalmen-

te, ainda que não exclusivamente, com o furor dos cartões

de visita e com a possibilidade de produção em série da

imagem – que levou à profissionalização do meio –, mas

quando, em fins do século XIX, emergiram diferentes bus-

cas de elevar a fotografia a arte – o pictorialismo e sua inten-

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120 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

ção de levar a imagem fotográfica para o terreno da pin-

tura seria um dos casos mais notórios. Desse desejo de ser

arte surge uma série de projetos fotográficos que tentarão

afastar a fotografia do que mais a define, sua reprodutibili-

dade mecânica, buscando, através de truques técnicos como

a esfumação ou o jogo com a focalização, imagens únicas.Segundo Benjamin, esse impasse é superado nos anos 20 –

no contexto europeu e soviético – pelo uso pelo cinema so-

viético da imagem fotográfica e pelas práticas de vanguarda

em geral, porque em ambos os casos a operação fotográfica

era a do anonimato. É também com o ingresso da fotogra-

fia na impressão, com o auge do fotógrafo amateur  a partir

da década de 1930 através da proliferação de clubes de fo-tografia e com a massificação da Kodak que para Benjamin

a figura do amateur  regressa. O amateur  é também o signo

de certa democratização do campo pictórico que a foto-

grafia inaugurou. É também, como sugere Rosalind Krauss,

o signo do primeiro uso “conceitual” do dispositivo fotográ-

fico (1999, pp. 289-305). Nesse sentido, então, a insistência

de Rulfo em não pensar-se como fotógrafo deve ser levada

a sério. Deve ser tomada como registro desse primeiro uso

conceitual do meio, como gesto de vanguarda.

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 A fotografia da história 121

Nos anos posteriores à sua fama literária, após a publi-

cação de Pedro Páramo, Rulfo continuaria explorando a po-

tencialidade das imagens fotográficas. Alguns exemplos.

Primeiro: entre 1955 e 1956, Rulfo trabalhou como chefe de

publicações da Comissão de Papaloapan sob a direção

de Raúl Sandoval Landázuri. O projeto da Comissão era con-trolar ou “fustigar” as águas do rio Papaloapan no estado

de Oaxaca para pôr a água a serviço das zonas mais afeta-

das pela constante seca, e assim melhorar a vida de milha-

res de camponeses. Entre as tarefas de Rulfo, estava a de

idealizar (e eventualmente editar) uma revista sobre e para

a situação social da zona, para a qual tirou uma centena de

fotografias. A revista nunca saiu, porque a Comissão intei-ra parou quando Sandoval morreu num acidente aéreo no

final de 1956. Não sabemos que imagens ele estava tiran-

do, nem o que teria sido a revista. Mas o tipo de publicação

faz pensar em registros documentais. É possível imaginar

que no seio desse projeto cujo escopo inicial teria sido mos-

trar uma verdade houvesse também um projeto de vanguar-

da, uma proposta em que os textos e as imagens fotográficas

fossem “menos documentais que imaginativas”. Penso no

projeto de Walker Evans e James Agee, que partiram para

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122 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

registrar o estado da vida camponesa no sul dos EUA de-

pois dos projetos de ajuda rural levados a efeito por Roose-

velt como método para sair da Grande Depressão, mas que,

em lugar de produzir um artigo documentalmente correto,

ilustrado, para a revista que os havia enviado, produziram

os materiais que depois se tornaram Let us now praise famousmen, um livro radical, inclassificável, heterogêneo, que co-

meça com os retratos tirados por Evans e prossegue com

um texto de Agee que pouco tem de documental. Nas pri-

meiras páginas, Agge diz que, se pudesse, escreveria um

livro só com imagens. O que Rulfo planejava para a publi-

cação da Comissão de Papaloapan era algo mais próximo

do trabalho de Agee e Evans que de um jornal informativo?Não o sabemos, mas os modos como Rulfo usou a imagem

fotográfica naquelas décadas permite imaginar que teria

sido possível um uso menos estritamente documental, re-

ferencial e mimético, e mais vanguardista e de ruptura com

relação à indexicalidade referencial do meio.

Segundo: alguns anos depois, em 1959, Rulfo começou

a trabalhar na televisão em Guadalajara. Ali inventou um

estranho projeto que nunca levou a efeito: produzir anuá-

rios de ilustrações históricas, para “abarcar a história de

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 A fotografia da história 123

 Jalisco desde as crônicas da conquista”, novas histórias da

zona contada em imagens (HARSS, 1973, pp. 310-311). O pro-

jeto rulfiano parece, como dito anteriormente, um cruza-

mento entre o projeto das passagens de Benjamin, o atlas

mnemosyne  de Aby Warburg e as  Histoire(s) du cinéma  de

Godard, instâncias em que um meio é entendido princi-palmente como veículo para apresentar a História de outro

modo. Todas elas são também instâncias de procedimen-

tos de montagem radical – soviética – cujo propósito é re-

ver, revisitar, reler o Arquivo de um modo em que todo

o material fique reativado para novas leituras. Era isso o

que Rulfo queria fazer com seu projeto para a televisão.

Um novo “conceito de história”. Infiltrando-se no lugar dostatus quo político e social – a televisão –, o plano era pre-

sentear os clientes com os anuários. Segundo plano, segun-

do fracasso.

Terceiro: a partir da publicação e sucesso de Pedro Pára-

mo, Rulfo e sua obra ingressam no cinema. O romancista,

fotógrafo, historiador escreve roteiros para Emilio Fernán-

dez, o grande cineasta mexicano. Vários de seus contos são

adaptados para o cinema, e em 1965 ele colabora no filme

experimental  La fórmula secreta, de Rubén Gamez, proje-

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to que Rulfo mesmo descreveu como “uma série de qua-

dros dramáticos acompanhados de música de Vivaldi”. Ou-

tra vez, a estratégia narrativa do filme é a da montagem

soviética.

Todas essas explorações mostram um uso da imagem

não como representação, não como portadora de uma ver-dade documental, mas como um dispositivo que aciona

uma desarticulação dos relatos e das formas realistas. Sua

intenção não é contar as coisas tal como sucederam, mas

mostrar as contradições e tensões da representação, dos re-

latos, da História.

Narrar fotograficamente

Que lugar tem a fotografia nos textos de Rulfo, especialmen-

te em Pedro Páramo? Se até aqui explorei a fotografia de Rulfo

como uma prática que não pode situar-se facilmente, como

quis a crítica, como representativa e referencial, como jane-

la para a realidade, cabe agora dobrar a aposta e propor que

a fotografia seja um modelo de escrita, um modelo de Histó-

ria, para Rulfo. Como? Pensemos, para começar, na organi-

zação do relato. Poderíamos pensar em um texto organizado

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em fragmentos – em lugar de capítulos – como possível for-

ma de citar ou incorporar a forma fotográfica. O capítulo

pretende uma unidade, um começo, meio e fim. O fragmen-

to é às vezes um pedaço de algo maior que se rompeu, que-

brou, do que ficou desarticulado. Outras vezes o fragmento

assinala algo não acabado, incompleto. Em ambos os ca-sos, como consequência de uma fratura ou como mostra

de algo cujo processo nunca chegou ao fim, o fragmento é,

claramente, o contrário da totalidade. Os fragmentos no

romance de Rulfo aparecem como frações inacabadas, in-

completas, pequenas partes, sim, de um livro (e aqui, é claro,

há uma unidade), mas de um livro que oferece uma nar-

ração descontínua em face da qual o leitor se sente perdi-do e com muitas dúvidas. Não há uma visão de conjunto,

abrangente, do universo de Comala que o romance nos es-

teja dando em partes desarticuladas, como seria o caso, por

exemplo, num quadro cubista das primeiras épocas. Ou seja,

se pensássemos cada fragmento como uma espécie de foto-

grafia. Outra vez, como em seu trabalho – fracassado – com

a fotografia, a operação em Pedro Páramo é a da montagem.

Quando a narração deixa para trás Juan Preciado como nar-

rador principal, o efeito montagem torna-se exacerbado.

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de delírio, de loucura, uma “alucinação temporal” (1989,

p. 26).

É claro que a questão não é encontrar técnicas ou ca-

racterísticas da fotografia e ver se estão ou não presentes

no texto de Rulfo. A questão é ver por que – para depois

chegar ao como – a fotografia poderia proporcionar a Rulfoum modelo para a escrita.

Tomemos o segundo fragmento de Pedro Páramo, quan-

do Juan Preciado está sendo guiado para Comala pelo arriei-

ro Abundio, e este lhe diz que seu pai, a quem está indo

buscar, conhecer, e reclamar o devido depois de anos de

abandono em que deixou a Juan e sua mãe, é “um rancor

vivo”. A expectativa com que Juan havia viajado para Co-mala – “comecei a encher-me de sonhos, a dar voo às ilu-

sões. E desse modo se me foi formando um mundo ao redor

da esperança que era aquele senhor chamado Pedro Pára-

mo, o marido de minha mãe. Por isso vim a Comala” (RUL-

FO, 1990, p. 65) – desmorona. Juan reconhece a infinita

distância entre o que lhe contou sua mãe e o que ele come-

ça a ver, a sentir e de modo devastador a ouvir assim que

entra no povoado. A mãe, morta, dera-lhe sua visão, “trago

os olhos com que ela olhou estas coisas, porque me deu seus

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olhos para ver”, mas a realidade com que depara – “o puro

calor sem ar”, como se se estivesse “na própria boca do

inferno”, no povoado de Comala, que é “como se estivesse

abandonado” – nem rastro tem das recordações que a mãe

transmitira ao filho. Esse primeiro desmoronamento é re-

sultado da dupla visão de Juan: as imagens do passado quea voz da mãe cuidadosamente construiu, constituindo um

olhar, uma visão, na qual Comala é uma “vista bela, de

uma planura verde, algo amarela pelo milho maduro”, diá-

fana, “branqueando a terra, iluminando-a durante a noite”,

e a do presente, povoado de seca, vazio e corvos. Passado e

presente.

É justo nesse momento, em que Juan Preciado, comoresultado dessa dupla visão, por estar ao mesmo tempo num

antes e num agora, por estar fraturado entre o que vê e o

que escuta em forma do rumor da recordação da voz da

mãe, que ele procura algo que o tranquilize, que aplaque a

crise, que lhe permita seguir para Comala apesar de aquilo

não estar sendo o que supostamente teria de ter sido. Que

procura ele? Uma fotografia de sua mãe que ele leva no bol-

so da camisa.

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 A fotografia da história 129

Senti o retrato de minha mãe guardado no bolso da cami-

sa, esquentando-me o coração, como se ela também suas-

se. Era um retrato velho, carcomido nas bordas; mas foi

o único que conheci dela. Encontrara-o no armário da co-

zinha, dentro de uma panela cheia de ervas: folhas de

melissa, flores de Castilla, ramos de arruda. Desde então o

guardei. Era o único. Minha mãe sempre foi inimiga deatrasar-se. Dizia que os retratos eram coisa de bruxaria.

E parecia ser; porque o seu estava cheiro de furos como

de agulha, e na direção do coração tinha um muito grande

onde bem podia caber o dedo do coração. (RULFO, 1990,

p. 69)

Esta é a única menção a uma fotografia que aparece no

romance. Esse detalhe talvez não merecesse nenhuma obser-vação se não fosse que, dado o universo da narração – um

povoado habitado por fantasmas e almas penadas, mar-

cado pela morte, pela ruína e pela destruição, cujo tecido

sonoro é polifonia palimpséstica de vozes – e a relação his-

tórica que teve a fotografia com esse universo desde as suas

origens, e a relação que, como já vimos, Rulfo tinha com a

fotografia, seria de esperar que houvesse muita menção a fo-

tografias no romance. O universo literário do sobrenatural

– em Poe, Quiroga, Lugones, Holmberg, Onetti e Cortázar,

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para recordar os casos mais evidentes – havia privilegia-

do a fotografia, como um objeto e um mecanismo que per-

mitia por um lado viajar no tempo e por outro apresentar

o paradoxo de situações ou eventos que eram ao mesmo

tempo verdade absoluta e mistério total. A fotografia é a

presença constante de algo que já sucedeu, e é também, es-pecialmente no caso dos retratos, como assinalou Barthes,

um certificado de morte. A imagem fotográfica é sempre

o fantasma não só daquilo que já não está diante de nós,

mas também daquilo que já não estará, em algum momen-

to, anunciado pela fotografia, entre nós. Em seu ensaio sobre

Baudelaire, também Benjamin se referiu à imagem assim:

“What we know that we will soon no longer have beforeus, this is what becomes an image.” [O que sabemos que

seremos já não o temos diante de nós, é isso o que se torna

numa imagem.] (1973, p. 87) Desse modo, a fotografia é an-

tes de tudo o anúncio de morte, de ausência. A ausência

é imagem. É sobre o que já passou e sobre o que virá – a

partida, o desaparecimento, a destruição. Daí que tantos

relatos a partir de meados do século XIX, que propunham

o encontro entre este e outros mundos, narrassem e men-

cionassem fotografias como elementos fundamentais do

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relato. Então, sim, chama a atenção que haja somente uma

menção a fotografia no texto de Rulfo. Nisso ele se afasta

de um dos principais usos que a literatura havia feito da fo-

tografia durante seu primeiro século de existência – a pos-

sibilidade de outro mundo, de uma ciência esotérica, de algo

sinistro, de um distúrbio. Nesse uso, como já assinalei, afotografia adquiria um lugar central no relato, motor nar-

rativo e condutor de significado – como a famosa fotogra-

fia em “As babas do diabo”, de Cortázar.

Em Pedro Páramo, a fotografia-amuleto ou a fotografia-

documento aparece brevemente. Sua menção no romance

de Rulfo assinala o que já classicamente a fotografia sem-

pre simbolizou – a presença da morte (aqui o retrato da mãemorta), o espectro (chegando a Comala, a voz e a figura da

mãe morta, que Juan leva como recordação, serão projetadas

para o exterior, adquirindo realidade a espectralidade que

o acompanha desde o começo de sua viagem). Mas é tam-

bém, como Juan mesmo o diz, sua carteira de identidade,

o documento de sua linhagem, de sua pertença, é o que lhe

permitirá receber o que lhe devem – “é o mesmo [retrato

de minha mãe] que trago aqui, pensando que poderia dar

bom resultado para que meu pai me reconhecesse” (RULFO,

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1990, p. 69). Deveria chamar a atenção, nesse sentido, que

a foto estivesse perfurada porque esses furos se tornam li-

nhas de fuga daquilo que a moldura, o enquadramento e a

lisa superfície sempre mimética de toda fotografia suposta-

mente apresentam. Para Barthes, a fotografia tem dois ros-

tos, duas portas de entrada: por um lado o studium, aquiloque pode ler-se, decifrar-se, decodificar-se, a lisa superfí-

cie que registra o visível, o contexto que o sujeito, com sua

“consciência soberana”, busca na imagem para arraigar

e construir, a partir desse olhar, sua soberania; por outro

o punctum, algo ilegível, muitas vezes invisível, que dispa-

ra como uma flecha da imagem para o sujeito, ferindo-o,

perfurando-o, penetrando-o, desorganizando sua sobera-nia (ocular), algo que chamou a Câmara clara num texto

anterior, ensaiando ainda sua aproximação à fotografia,

“o terceiro sentido”. O punctum fere, marca, sujeita, mas

ao mesmo tempo desarticula o sujeito. Juan Preciado não

olha o retrato de sua mãe no momento em que sua ilusão se

rompe. Toca o retrato, e essas perfurações que já conhecia

o perfuram. Essas perfurações e o punctum, essas perfurações

que são o punctum, a pontuação da imagem, assinalam a ca-

tástrofe que virá e que se anuncia nesta e em toda fotogra-

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 A fotografia da história 133

fia: toda fotografia é uma catástrofe, no dizer de Barthes

(1989), porque desordena as coordenadas da teleologia his-

tórica, é sempre a manifestação de uma disparatada tem-

poralidade.

A fotografia da mãe – que Juan nunca olha, que ele só

toca, e que nunca é descrita para o leitor – anuncia tam-bém o modelo que terá o texto vindouro.

 A imagem dialética 

No Konvolut N  de seu livro sobre as passagens, Walter Ben-

jamin retoma várias vezes possíveis definições da imagem

dialética. A imagem dialética não é um objeto, não é umaimagem – é uma operação crítica, é um método para o co-

nhecimento e a verdade, é uma crítica e resposta à estru-

tura hegeliana da história e do progresso que ainda reinava

na filosofia nos anos 20 e 30. Por isso o Konvolut  se intitula

“Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso”, porque

para Hegel o progresso era História, a única História, e o

ingresso na História assegurava o progresso. É em face dis-

so que Benjamin organiza seu último, inacabado, projeto.

Ele escreve e reescreve o conceito porque é algo novo, por-

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134 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

que é complexo, e porque ali está o núcleo de todo o seu

pensamento maduro, o desenvolvimento de um método

histórico, de um método cognitivo, de uma renovada filo-

sofia. Não é pouca coisa. A correspondência que manteve

principalmente com Theodor Adorno sobre a imagem dia-

lética também foi pontuando a conceitualização e recon-ceitualização, como resposta aos desacordos e debates que

mantinham nessas cartas, onde também viajavam, é claro,

fragmentos do trabalho. Se no  Konvolut N  ele explora de

maneira obsessiva os múltiplos aspectos da imagem dialé-

tica, ela aparece, de forma embrionária, em suas reflexões

sobre Leskov, Kafka, Proust e Baudelaire dos anos 30.2

Um dos fragmentos do  Konvolut   pode servir-nos para

começar:

Não é que o que é passado lance sua luz sobre o que é pre-

sente, ou que o que é presente lance sua luz sobre o que é

passado; mais ainda, imagem é aquilo em que o que foi

vem junto, num momento, com o agora para formar uma

constelação. Em outras palavras, imagem é dialética na ces-sação. Enquanto a relação do presente ao passado é con-

tínua e puramente temporal, a relação do que foi ao agora

é dialética: não é progressão, mas imagem, repentinamente

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 A fotografia da história 135

emergente. – Só imagens dialéticas são imagens genuínas

(ou seja, não arcaicas); e o lugar em que alguém as encon-

tra é linguagem. Despertar. (BENJAMIN, 1999, p. 462)

O despertar é o despertar de certo mecanismo do recor-

dar, que consegue fazer vigente algo que já passou, algo que,

se não fosse por esse despertar que, momentaneamente, ilu-mina e revela o que já foi no agora, seria tão somente ausên-

cia. Na quinta tese do ensaio sobre a filosofia da história,

Benjamin retoma essa concepção da imagem como a recu-

peração de algo que passou em seu momento de legibilida-

de, que é sempre um agora: “The true image of the past flits

by. The past can be seized only as an image which flashes

up at the moment of its recognizability and is never seenagain” [A verdadeira imagem do passado passa por. O pas-

sado pode ser medido apenas como uma imagem captada

no momento de seu reconhecimento e nunca se vê nova-

mente.] (BENJAMIN, 2003a, p. 390). O passado aparece como

uma imagem que desde o seu aparecimento já está desa-

parecendo, que só é legível – reconhecível, diz Benjamin

– naquele momento em que aparece. Não é uma imagem

que possamos guardar, preservar, arquivar, monumentali-

zar. É uma imagem sumamente frágil.

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136 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

De maneira análoga à forma e ao mecanismo de seu

livro sobre as passagens, a imagem dialética é, de certo

modo, resultado de uma montagem, é o encontro de “what-

has-been” [o que-tem-sido] com um “now” [agora]. “This

work”, escreveu no primeiro caderno dedicado ao  Konvo-

lut N , “has to develop to the highest degree the art of citingwithout quotation marks. Its theory is intimately related

to that of montage” [Este trabalho tem de desenvolver no

grau mais elevado a arte de citar sem aspas. Sua teoria se

relaciona intimamente à da montagem] (idem, ibidem,

p. 458). Como na montagem soviética, a imagem é então

o encontro de dois momentos distantes entre si, que se

encontram para revelar algo até esse momento invisível,esquecido, ilegível. Benjamin tem o cuidado de sublinhar

que a imagem não é temporal, mas dialética. Não faz parte

do “continuum histórico”, esse tempo vazio e homogêneo,

como ele descreve, famosamente, a teleologia histórica em

outra tese do ensaio sobre o conceito da história. Emerge

repentinamente e é, como ele diz, “uma dialética em sus-

penso”. Aqui o paradoxo: a dialética é sempre movimento,

mas para Benjamin é importante que a imagem seja enten-

dida como o movimento do pensamento que suspende seu

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 A fotografia da história 137

movimento no instante – e só por esse instante – em que

o antes e o agora geram um sentido. Esse momento, essa

suspensão do movimento dialético é o despertar.

Essa feroz crítica benjaminiana à temporalidade teleo-

lógica é, como dissemos, uma crítica ao progresso – “The

concept of progress must be grounded in the ideia of catas-trophe” [O conceito de progresso deve basear-se na ideia de

catástrofe] (BENJAMIN, 1999, p. 473). O progresso da histó-

ria é o avanço dos vencedores por sobre os sempre e mes-

mos vencidos:

Quem quer que tenha saído vitorioso participa, nesse dia,

da procissão triunfal em que os atuais líderes pisam aque-

les que permanecem prostrados. De acordo com a prática

tradicional, os despojos são carregados na procissão. São

chamados tesouros culturais... em todos os casos esses te-

souros possuem uma linhagem que ele não pode contem-

plar sem horror. Devem sua existência não apenas aos

esforços dos grandes gênios que os criaram, mas também

aos árduos trabalhos anônimos de outros que viveram no

mesmo período. Não há documento sobre a cultura quenão seja, ao mesmo tempo, um documento sobre a bar-

bárie. (BENJAMIN, 2003a, p. 392)

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A diferença para Benjamin estaria entre o documento

e a imagem. O documento está desde sempre inscrito numa

complexa rede de poder cujo fim é perpetuar sua própria

ordem. Por isso, o documento fecha, encerra, asseguran-

do uma nova instância na marcha infinita para o progres-

so e para a acumulação. A imagem liberta, abre, não podecapturar-se. Sua condição efêmera é sua promessa antia-

cumulativa. O conhecimento ocorre através de imagens,

o progresso através de documentos.

A imagem dialética não é, como dissemos, um objeto,

nem uma imagem material. Mas a segunda definição que

Benjamin dá, além das passagens que já citamos, definição

que aparece nas notas ao ensaio sobre o conceito da histó-ria, utiliza a fotografia como analogia da imagem dialética:

Se alguém olha para a história como para um texto, então

pode dizer a respeito disso o que um autor recente disse a

respeito de textos literários – a saber, que o passado deixa-

ra neles imagens comparáveis às registradas por um vidro

sensível à luz. “Só o futuro possui criadores suficientemen-

te fortes para revelar a imagem em todos os seus detalhes.

(BENJAMIN, 2003b, p. 405)

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 A fotografia da história 139

Essa citação de Mongold já havia aparecido no  Konvo-

lut N  (BENJAMIN, 1999, p. 482). A imagem dialética é uma

imagem fotográfica. Ou, pelo menos, pode ser uma ima-

gem fotográfica. Não literalmente. A história que Benja-

min propõe é uma história que, com o método dialético,

é uma história de imagens, de fotografias. A fotografia é ummodelo para a história, para o procedimento e para a escri-

ta da história. Em Benjamin todas seriam histórias meno-

res, no dizer de Deleuze.

A fotografia “cita” aquilo que mostra – repete, mas des-

contextualizando, e nesse sentido vemos o modo como a

fotografia serviu a Benjamin como modelo para o procedi-

mento materialista, para a “imagem em suspenso” que rom-pe e desarticula o movimento infinitamente homogêneo

da história; a fotografia é uma interrupção, um corte e uma

extração da “linha do progresso”; a fotografia é sempre dois

momentos – o momento do agora em que a imagem foto-

gráfica é olhada, e o momento que já sucedeu e que a ima-

gem cita, e nesse sentido é sempre uma viagem temporal;

a fotografia é fragmento e ruína.

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Rulfo com Benjamin

Disse antes que a escrita de Rulfo é uma escrita fotográfica.

Por quê? Benjamin buscava um novo modelo para a escrita

da história, modelo fotográfico que ele começou a ensaiar

já em seu texto autobiográfico sobre a infância em Berlim,

e que encontraria no livro das passagens a experimentaçãomais radical. Um método histórico que fosse revolucioná-

rio – que interrompesse e suspendesse o status quo, “that

things are ‘status quo’ is the catastrophe... hell is not some-

thing that awaits us, but this life here and now” [aquelas

coisas são ‘status quo’ é  a catástrofe... o inferno não é algo

que nos aguarda, mas esta vida aqui e agora] (BENJAMIN,

2003a, p. 473). De Rulfo podemos dizer algo similar. Naforma do romance encontramos a proposta radical de Rulfo

face à narrativa. Os principais romances mexicanos que

haviam tentado apresentar uma renovação da narrativa a

partir da revolução, nesse momento de renovação, de mu-

dança, de vanguarda social, política, e nessa virada tam-

bém cultural –  Los de abajo  (1915), de Mariano Azuela,  El

águila y la serpiente (1928), de Martín Luis Guzmán, ou Alfilo del agua, de Agustín Yáñez – não haviam conseguido en-

contrar uma forma não realista, não historicista para o re-

lato da nação. É isso o que Rulfo faz. Vanguarda.

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Os limites do livro 141

3. Os limites do livro

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Os limites do livro 143

Eu pensava que o livro não era suficiente 

No final dos anos 90, numa conversa com o crítico Leoni-

das Morales, a escritora chilena Diamela Eltit, refletindo

sobre sua participação em campos diversos do literário, disse

que anos antes, entre o final dos anos 70 e o início dos 80,

quando começava a escrever, “pensava que o livro não era

suficiente... que teria de haver uma extensão das possibili-dades. Nisso eu pensava muito... produzir, digamos, cor-

tes, interrupções... como assaltar espaços” (MORALES, 1998,

p. 168). A que se refere Eltit com a “extensão das possibili-

dades” da literatura, e o que significa que “o livro não era

suficiente”? Eltit se refere a essas mesmas expansões e mu-

tações que vimos observando, refere-se ao regime estético

das artes de Rancière, ao campo expandido de Krauss (que

escrevia seus primeiros ensaios e livro sobre o tema preci-

samente na mesma época a que se refere Eltit), à negativi-

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144 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

dade essencial da arte segundo Adorno, que decidiu mate-

rializar essa dialética interna. Nesse momento – os anos 70

– e nesse contexto – o Chile sob Pinochet, mas que tinha

ainda fresco na memória o governo de Allende e o golpe

de 1973 –, o livro como única modalidade de expressão pa-

recia estar esgotado.A saída do livro é também a resposta a uma crise mais

geral que se dera primeiro em dois dos vetores principais

da narrativa moderna – o sujeito e o narrador. Toda a produ-

ção literária de Eltit é um trabalho que parte por um lado

de uma noção de sujeito já fraturado, de um sujeito sem uni-

dade, que emerge no terreno da crise da unidade do sujeito,

e por outro lado é um trabalho de narração com um narra-dor fragilizado, que já não ocupa o lugar do qual o mundo

se torna inteligível, um narrador que já perdeu a capacida-

de de oferecer um mundo de que ele é o soberano. É nesse

contexto, literário neste caso, que “o livro não era suficien-

te”. O livro como unidade organizadora, como totalidade,

como objeto e representação de um mundo que entre a capa

e a contracapa tinha um sentido havia entrado em crise

antes da década de 1980, quando emerge Eltit, com propos-

tas no Chile como as de José Donoso e Juan Luis Martínez,

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Os limites do livro 145

que buscam formas de continuar narrando do ângulo des-

sa mesma crise.1  Sem um sujeito forte que pudesse viver

dentro do livro, e sem um narrador que pudesse dar conta

de todo o universo diegético, como escrever?

A que recorreu Eltit para produzir as interrupções que

permitiriam a “extensão” da literatura que buscava? Paraonde “estendeu” as possibilidades de seu fazer que queria

ser literário, mas que precisava também ser outra coisa, ser,

talvez, Arte, para então poder ser uma literatura fora de si?

A diferentes meios ou práticas ou processos como a tea-

tralidade, a performance, o vídeo, a fotografia. Mas princi-

palmente recorreu sempre, e recorre ainda, à teatralidade.

A extensão do livro, das artes, esse “assaltar espaços” pro-duzindo cortes e interrupções, sucedeu na obra de Eltit a

partir da teatralidade. Basta sublinhar alguns momentos-

chave de seu percurso e produção desde o final dos anos 70

até agora para que não haja dúvida: sua participação no

grupo C.A.D.A.  (Colectivo de Acciones de Arte), com suas

encenações de ações de arte na malha de uma cidade sob

ditadura; a primeira versão do que seria seu primeiro roman-

ce, Lumpérica, que se deu como uma leitura oral num espaço

público, apresentado assim como performance; a organiza-

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ção e estrutura desse mesmo romance como uma série de

encenações e ensaios teatrais de uma obra ambígua, confu-

sa e violenta que é a vida do lumpemproletariado da Amé-

rica num espaço público (a praça) organizado e ameaçado

pelo neoliberalismo; a centralidade do coro de índias coyas

(remetendo aos coros das tragédias gregas) que comentame explicam Por la patria, seu segundo romance (1995); seu

trabalho em vídeo, em colaboração com Lotty Rosenfeld,

sobre a obra teatral Kaspar , de Peter Handke; seu tratamen-

to do terreno baldio em que habitava o que seria o prota-

gonista de El padre mío, seu terceiro livro, como se fora um

palco a que ela e Lotty Rosenfeld iam anualmente para a

encenação de uma linguagem à deriva; o monólogo dra-mático de Molly Bloom claramente presente como o refe-

rente principal de Vaca sagrada, enquanto Los vigilantes se

aproxima muito do Molloy  de Beckett;;;;; sua descrição do jul-

gamento oral do caso Prats em Puño y letra: juicio oral (2005)

como uma encenação. Na já citada conversa com o crítico

Leónidas Morales, Eltit, falando dos referentes para seus

diferentes textos, diz claramente: “Meu referente real no

fundo é o teatro. Sempre volto à cena teatral, a cena por

excelência.” (MORALES, op. cit., p. 38)

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Em outra entrevista, dada em 2005 para o jornal El Mer-

curio em torno da publicação de seu livro Puño y letra. Jui-

cio oral, o jornalista pergunta a Eltit: “Onde está, então, a

ficção?” (ELTIT, 2008, p. 288). Em Puño y letra, Eltit transcre-

ve o julgamento oral que se deu na Argentina no ano 2000

contra o membro daDINA

  (Dirección de Inteligencia Na-cional – a polícia secreta do governo de Pinochet) acusado

de assassinar ao general Prats e sua mulher em 1974. À per-

gunta sobre o lugar da ficção, Eltit responde, algo furiosa,

que decidir se o livro “encerra ou não encerra ficção, se

existem mecanismos autorais ali, cabe ao leitor” e não a

ela como autora. E depois esclarece que este livro faz parte

de uma série dentro de sua escrita que “tem a ver com mate-riais sociais álgidos ou revoltos ou irregulares” (ELTIT, 2008,

p. 288). Na série estariam o recém-publicado livro sobre o

julgamento oral, o livro sobre o sufrágio feminino no Chi-

le, o da fala de um indigente recolhido em El padre mío, e o

livro com a fotógrafa Paz Errázuriz,  El infarto del alma, so-

bre o amor e a loucura no hospital psiquiátrico de Putaendo.

“Talvez estes livros”, continua Eltit, “representem para mim

o que de mais ‘experimental!’ realizei porque existe um ris-

co, um espaço impreciso, um vazio em sua possível catalo-

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gação. E, é claro, isso é estimulante” (idem, ibidem). Mate-

riais álgidos, revoltos, irregulares que resultam em obras expe-

rimentais, em livros que não podem ser catalogados, lidos

e enquadrados quanto às taxonomias convencionais de clas-

sificação. O experimental, o inclassificável, o ousado coin-

cide, na obra de Eltit, com seu trabalho com materiais quenão são arte mas vida, que não são inicialmente ficção mas

realidade. A lista de livros “imprecisos” em sua catalogação

são os livros em que Eltit ultrapassou o limite adorniano,

e fez arte da não arte. Como? Em todas essas situações, re-

corre à teatralidade como estratégia de desunificação, de

expansão, de possibilidade em face da impossibilidade.

Todos esses materiais e situações foram transformados porEltit em quase palcos teatrais. A partir, por um lado, do dis-

tanciamento que se cria ao ver o material/situação como

teatro, e, por outro, da inevitável contaminação entre vida

e arte que esse processo supõe, Eltit encontrou um modo

de extensão do livro e um método de trabalho. Eltit utilizou

a fotografia como meio e passagem, paralelo e inseparável

ao da teatralidade, com relação a muitos desses materiais.

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Os limites do livro 149

Fotografia e teatralidade

Mas o que é a teatralidade? Segundo Josette Féral, em pri-

meiro lugar a teatralidade não está necessariamente ligada

ao teatro, à atividade teatral, mas a precede, pode poten-

cialmente encontrar-se em qualquer situação cotidiana,apesar de o teatro ter sido a atividade que usou e apropriou

sempre essa teatralidade “transcendente” que organiza um

dos modos em que o sujeito habita o mundo. Ou seja, o

teatro existe porque existe a teatralidade, e o teatro recorre

a ela para configurar-se. A teatralidade então não é um obje-

to, não é uma série de características sobre um lugar chama-

do palco, um personagem chamado ator nem um dramachamado ficção. É um processo, uma dinâmica de percep-

ção que une, ou antes, estabelece um vínculo entre alguém

que olha e alguém ou algo que é olhado. A relação pode ser

configurada do lado do ator ou performer , que deixa de al-

gum modo saber que sua intenção é a de ocupar um espa-

ço para ser ali outro. Mas essa relação ou processo também

pode ser configurado pelo espectador, que transforma o

outro num objeto espetacular. O espectador cria assim ou-

tro espaço, delimitado mas cercado pelo que não pertence

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150 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

à teatralidade – o cotidiano, a vida, a realidade – em que

inscreve o que observa, mantendo-se, ao mesmo tempo,

dentro do espaço cotidiano e alheio a ele. A teatralidade

é então um processo de produção de alteridade.2

Essa produção de alteridade através da teatralidade nos

permite ler a presença e o valor da fotografia ou do foto-gráfico na obra de Eltit, porque ela funciona e opera de

modo análogo à teatralidade. Por que Eltit escolhe a foto-

grafia para dar um caráter teatral à sua obra literária? Por

que a teatralidade aparece reiteradas vezes em sua obra junto

com a fotografia? A fotografia está presente em muitos dos

livros ou atividades enumerados como casos que demons-

travam a centralidade da teatralidade na obra de Eltit: Lum- périca tem uma misteriosa (e borrada) fotografia em preto e

branco no centro; El padre mío é resultado da desgravação

de três encontros com um mesmo indigente ao longo de três

anos – esses encontros são descritos por Eltit como proces-

sos fotográficos; El infarto del alma é um livro onde convi-

vem fotografias de Paz Errázuriz com textos de Eltit; todos

os projetos do C.A.D.A. tiveram em seu centro o uso da fo-

tografia como um dos dispositivos organizadores. Esse apa-

recimento da fotografia em muitos dos momentos de uso

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Os limites do livro 151

da teatralidade na obra de Eltit faz parte da produção de

alteridade, que é o que lhe permite trabalhar com mate-

riais tão álgidos. Não é uma coincidência que Eltit trabalhe

ao mesmo tempo teatralidade e fotografia para produzir a

alteridade da obra literária, porque, de modo análogo à tea-

tralidade, a fotografia havia sido equiparada à produção dealteridade desde as suas origens.

A fotografia é a materialização da concepção moderna

do sujeito como resultado da relação de força entre uma

interioridade e uma exterioridade, entre um eu e outro. As

conhecidíssimas frases de Arthur Rimbaud – “Je est un au-

tre” – ou de Jacques Lacan – “The I is always in the field of 

the Other” [O Eu está sempre no campo do Outro] –, paramencionar tão só as que passaram a fazer parte da cultura

popular, remetem, naturalmente, ao ditame de Hegel de que

o Outro é constitutivo da autoconsciência do sujeito. Se

houvesse um objeto ou figura que primeiramente tivesse

formalizado essa possibilidade, seria a fotografia. Basta sim-

plesmente recordar a produção de retratos que, conquanto

não tenham sido as primeiras imagens produzidas nos pri-

meiros momentos de concepção do novo meio, foi, sim,

o uso principal que ele teve ao longo do século XIX. Todo

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152 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

retrato fotográfico é resultado de uma relação entre o su-

jeito que observa a fotografia (através de sua câmera) e o

que está sendo fotografado. O fotógrafo recorta e interrom-

pe o cotidiano para delimitar um espaço em que o sujeito

fotografado é outro para o fotógrafo e também para si mes-

mo. A fotografia é a evidência de que “eu é outro”. A foto-grafia é a produção de alteridade.

Essa busca de Eltit por uma saída do livro e a irrupção

do que poderíamos chamar a condição do teatro – ou a

teatralidade – como resposta a esse empequenecimento, se

dava nessa época não só no campo literário, mas no campo

das artes em geral. A emergência da perfomance e dos hap-

 penings, dos encontros em espaços alternativos às galerias eaos museus nos quais um espaço neutro se tornava o encon-

tro de múltiplas práticas (o loft  de Yoko Ono, para mencio-

nar o mais conhecido), de Nova York a Berlim, a Santiago

do Chile e a Buenos Aires, a partir dos anos 60, apontam,

outra vez, para a centralidade da teatralidade em todos os

meios artísticos. Já em 1967, no feroz ataque que Michael

Fried fez nas páginas de  Artforum a uma série de artistas

da época – entre os quais Donald Judd e Robert Morris –,

o jovem crítico de arte declarava que “art degenerates as it

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approaches the condition of theatre” [a arte degenera quan-

do se aproxima da condição de teatro] (1998, p. 141). A ar-

te que Fried considerava verdadeira – a arte modernista em

que cada materialidade, e cada meio, estava claramente de-

limitada e não havia mutações nem contaminações, em

que o sentido da obra estava contido sempre nela – estavaem perigo porque não conseguia fazer frente à teatralida-

de, que parecia ter tomado o campo de produção das artes.

Fried está pensando principalmente na pintura e na escul-

tura. No famosíssimo artigo, Fried dá conta – como o vi-

nham fazendo também Clement Greenberg e Susan Sontag

– da expansão da arte nos anos 60, do movimento da pin-

tura e da escultura para outras artes. Segundo Fried, essasmudanças partiam de uma exploração demasiado “literal”

da matéria, daí o avanço de um objetivismo. Fried viu, me-

lhor que ninguém em seu momento, uma mudança no locus

de sentido da arte que modificaria para sempre a estética

contemporânea. Se a arte “minimalista” ou “literalista”, co-

mo o chama ao longo do ensaio, não é pintura nem escul-

tura, e se, além disso, de certo modo essas novas produções

artísticas seriam a manifestação de uma luta precisamente

contra esses meios – os mais tradicionais da história da ar-

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te –, o que enfurece Fried é que não queiram destruir a pin-

tura e a escultura, mas criar uma nova arte que tenha um pé

em ambas. Como faz uma peça de Judd ou de Morris para

ser ao mesmo tempo escultura e pintura, mas sem ser ne-

nhuma das duas, e permanecer numa espécie de passagem?

Através da teatralidade. Como? Numa observação, muitoaguda, que o crítico faz com respeito a essas mudanças, po-

demos ver a que se refere. Segundo Fried, a passagem entre

as artes se dá através do teatro: “What lies between the arts

is theatre.” [O que se situa entre as artes é teatro.] (ibidem,

p. 142) Para ele, o aparecimento da teatralidade é o que

está pondo em perigo a arte. Judd havia descrito claramen-

te a situação: “A form can be used in only so many ways.The rectangular plane is given a life span.” [Uma forma

pode ser usada de muitos modos. O plano retangular é dado

como uma medida de vida.] (apud FRIED, ibidem, p. 118).

Sair para três dimensões foi uma das soluções do esgota-

mento do plano unidimensional da pintura. Como fazer

para que o trabalho nas três dimensões, tão tradicional-

mente ligado à escultura, não se transformasse simplesmen-

te em escultura? Deslocando o sentido da obra em si para a

experiência entre o espectador/observador e a obra, colo-

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cando a duração, o transcorrer do tempo como eixo cen-

tral de produção de sentido. Isso é o que havia caído, his-

toricamente, sob o campo do teatro. A busca era a de isolar

do teatro essa essência, a teatralidade, e levá-la para outros

campos, para outras artes, para que lhes permitisse criar

uma “outra” forma de pintura, uma “outra” forma de escul-tura, uma “outra” literatura. Produzir a alteridade do meio,

produzir o meio como outro.

Ronald Kay e Manuscritos :os limites da representação

Seria preciso recordar que a educação artística e crítica deEltit e também sua emergência no campo das artes se dera

em primeiro lugar através de sua ativa participação nos se-

minários de Ronald Kay no Centro de Estudos Humanísti-

cos da Universidad de Chile, em meados da década de 1970.

Ali, o grupo de alunos e jovens criadores e críticos explo-

raram a teorização sobre a imagem, a encenação e a ocupa-

ção do espaço, e organizavam com Kay os encontros, as

publicações, as filmagens e as montagens teatrais que pro-

duziam. Foi nessas primeiras experimentações de Eltit, pré-

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vias ao aparecimento de Lumpérica, que sua poética se con-

figurou como uma relação com o literário cruzada com a

teatralidade e a imagem fotográfica e de vídeo. Ali pôde es-

tender as possibilidades do livro através da incorporação

desses dois meios específicos.

Em meados dos anos70

, depois do golpe de Pinochet,Eltit participou de uma série de experiências na Universi-

dad de Chile com seus colegas Raúl Zurita, Eugenia Brito,

Gonzalo Muñoz. Essas experiências tinham a fotografia e a

teatralidade como eixos principais. Na mesma época dos

seminários com Ronald Kay, nos quais montavam obras de

Artaud, liam Lacan, Derrida, Benjamin e Marshall McLu-

han, aprendiam a usar o vídeo como novo meio, e saíam aexplorar a cidade de Santiago, Cristián Huneeus, Enrique

Lihn, Cedomil Goic, Nicanor Parra e o mesmo Kay publi-

caram em 1975, sob os auspícios do Departamento de Es-

tudos Humanísticos da Universidad de Chile, o primeiro e

único número de uma revista chamada Manuscritos. Gran-

de parte dos artigos do primeiro número trabalha sobre a

relação entre imagem e texto. A revista é repleta de foto-

grafias que constroem e apresentam a paisagem urbana de

Santiago como um palco. Ali, nesse palco construído a par-

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tir de colagens de imagens fotográficas, surgem perguntas

sobre o modo de relacionamento entre a cidade e seus ha-

bitantes, sobre os modos como a cidade opera como palco

de limitação e contenção do sujeito, como espaço-me-

canismo de subjetivização, no qual o habitante citadino

é algo como um autômato-ator. Ao trabalhar a relação en-tre imagem e texto, a revista propõe um novo olhar so-

bre o trabalho literário. Olhar que parecia sugerir a busca e

composição de cenas num sentido teatral do termo. A ta-

refa parecia ser desenhar, com a letra, encenações que per-

mitissem, dessa maneira e paradoxalmente, trabalhar os

limites da representação material e simbólica dessa mise-

en-scène. Os palcos que podem começar a vislumbrar-se apartir da proposta de Manuscritos são, em particular, peque-

nos mapas citadinos, porque serão a cidade, a rua, a praça

e os terrenos baldios alguns dos palcos dessa vanguarda li-

terária.3 O trabalho da revista – e que Kay estaria elaboran-

do, ao mesmo tempo, numa série de textos teóricos em

torno da obra do artista visual Eugenio Dittborn que se-

riam agrupados nos anos 80 num belo texto intitulado Del

espacio de acá (KAY, 1980) – parecia propor que, se por um

lado a representação, tanto visual como textual, está limi-

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tada por seu meio também, por outro lado e ao mesmo

tempo está limitada pelos tecidos do espaço citadino. Essa

dupla limitação – interna e externa – se tornará, alguns anos

depois, central no trabalho literário de Eltit. Como sair dessa

limitação? Através da teatralidade, da encenação, e do uso

da imagem, cujas especificidades como produtoras de al-teridade dinamitavam, necessariamente, as linguagens, os

meios e os espaços.

 Manuscritos, mas crucialmente a figura de Ronald Kay,

é que apresentará a crise do livro e oferecerá extensões ao

livro e à arte em geral, através da incorporação da teatrali-

dade e da imagem analógica. Central para Kay será também

preguntar-se sobre a potencialidade material do “despres-tigiado”, do refugado, dos restos, e esta será uma pergunta

que atravessará toda a obra de Eltit. A revista Manuscritos e

Ronald Kay desenharão uma verdadeira cartografia citadi-

na com que Diamela Eltit dialogará em seus primeiros tra-

balhos romanescos e naqueles livros mais experimentais,

como El padre mío e El infarto del alma, ao defrontar-se com

a cidade sitiada – cidade do período pós-golpe, cidade de

sonhos inconclusos de um devir proletário, cidade também

que, com o avanço do poderoso modelo neoliberal, se havia

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Os limites do livro 159

tornado, em fins dos anos 70, puro espetáculo de comer-

cialização, publicidade e mercado, cidade atravessada por

heroicas resistências e catastróficos desaparecimentos. Aque-

las cidades – sempre plurais, múltiplas, sempre muitas, por-

que a luta foi, nesse espaço invariavelmente fragmentado,

por espaços, locais e redutos em que ainda se pudesse ocuparesse lugar de exterioridade com respeito ao Estado – sofre-

ram a intervenção de e foram interrompidas por espetácu-

los, por encenações que insistiram ainda mais em romper

toda ilusão de um espaço único, firme e homogêneo sob

o comando do Estado.

diamela eltit

Cada aparecimento e uso da fotografia na obra de Eltit é di-

ferente. É impossível encontrar uma sistematização geral,

uma organização, uma classificação. O material é sempre

álgido e heterogêneo, quase impossível de apreender. Nada

é fácil. A malha do sensível muda de livro em livro, e às ve-

zes dentro de um mesmo título. Ali reside a radicalidade de

sua proposta. A única operação de leitura possível é a cui-

dadosa atenção aos detalhes em seus textos, dentro de uma

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160 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

moldura que pressupõe o da expansão das artes, o do regi-

me estético, com a especificidade de um contexto de um

Estado ditatorial. Eu gostaria de deter-me em Lumpérica para

explorar ali o uso da teatralidade e da fotografia como pas-

sagens para outra literatura.

O livro, dividido em dez partes, aborda diferentes as-

pectos da representação de uma obra que está sendo filma-

da. A obra tem como personagens L. Iluminada e um grupo

de lumpens indigentes que habitam, de noite, uma praça de

Santiago do Chile. A praça, escura, só é iluminada pelos

letreiros luminosos que também transformam o espaço pú-

blico num espaço sitiado, como um panóptico invertido.

Cada parte do livro oferece ensaios de diferentes cenas, in-

terrogatórios que talvez sejam ensaios para a memorização

da obra, mas que se aproximam, na intensidade que trans-

mitem, de interrogatórios inquisitoriais, de palcos de tortu-

ra. O texto gira em torno da encenação de uma obra, com

seu ensaio geral incluído. A escrita assume a forma de poe-

mas, de fragmentos de prosa, de roteiro, de escrita experi-

mental, muitas vezes tangenciando o ilegível. O livro con-

tém, também, uma fotografia em preto e branco. A décima

e última parte é a única que se pode ler de modo corrido.

Ali se leem uma série de ações silenciosas de uma mulher –

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Os limites do livro 161

sem nome – numa praça, desde o entardecer até o ama-

nhecer seguinte. Finalmente sem cortes, sem interrupções,

de modo fluido, o leitor é o espectador de pelo menos uma

cena da obra que se vinha ensaiando, já em sua versão fi-

nal. A parte mais próxima em sua forma do capítulo de um

romance do séculoXIX

 é a parte a que se chega tendo fei-to uma passagem pela teatralidade, pelas primeiras nove.

A aparente facilidade com que se lê a última parte, em ten-

são com a dificuldade e quase ilegibilidade que apresentam

as nove partes anteriores, gera a sensação no leitor de ter

chegado, finalmente, ao texto literário. O livro em si, trans-

formado, primeiro, em alteridade de si mesmo, contém

e confirma a literatura.É necessário esclarecer que em  Lumpérica – e podería-

mos arriscar que na obra de Eltit em geral – o termo repre-

sentação tem pelo menos dois significados que merecem

ser distinguidos antes de começar. Em primeiro lugar o de

mimese, o de ser uma cópia ou tradução – este é um senti-

do da representação que levaria a prática artística ao “regi-

me representativo, mimético-poético” das artes, que não

é aquele dentro do qual opera a produção de Eltit. Em se-

gundo lugar, representação significa atuação, encenação.

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A oitava parte de  Lumpérica, “Ensaio geral”, abre com

uma fotografia. É um retrato em preto e branco de uma

figura de gênero indeterminado, que aparece sentada, com

os braços sobre os joelhos. A impressão da imagem foto-

gráfica tem a má qualidade e a baixa resolução que encon-

traríamos num jornal popular. A única iluminação sobre afigura que ocupa a fotografia vem de fora de quadro, do lado

direito da imagem, iluminando assim um só lado do corpo,

gerando a impressão de um corpo sem contornos. É uma

iluminação dramática, teatral. A parte superior do rosto da

figura aparece cortada, o marco chega a incluir o que supo-

mos que sejam os olhos, ainda que pela iluminação apa-

reça um só, e é na realidade um buraco negro. Os braçosestendidos parecem ter algumas marcas, umas linhas, ho-

rizontais, tatuando a pele.

É a única fotografia que há no livro, e é ilegível. Mais

que mostrar, esconde. Mais que revelar, opaca. Mais que re-

presentar, abstrai. Para que está ali? Não tem legendas, e

nada no texto a assinala. A essa altura do livro, o leitor já

sabe que L. Iluminada, a personagem central, a mulher que

dá conta do mundo marginal ali apresentado, faz parte de

uma obra, talvez teatral, talvez cinematográfica, da qual

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Os limites do livro 163

o leitor leu tomadas de diferentes cenas e comentários sobre

as cenas. É inevitável perguntar, ao encontrar a fotografia,

se essa será L. Iluminada, já que é o único personagem com

nome, o único personagem isolável e separável, recortável,

da massa de corpos que transitam pelo transcurso de uma

única noite de ensaio. Se o livro fosse a “tradução” miméticade um ensaio ocorrido na realidade, de uma obra à Artaud,

transcorrida durante uma noite, a fotografia bem poderia

ser o registro dessa realidade. Mas não é assim.  Lumpérica

não é uma tradução, não é resultado de uma passagem de

outra coisa, pertencente à realidade, à literatura. Sabemos

que é uma fotografia que retrata a autora, tirada na noite

em que leu trechos do romance num prostíbulo em Santia-go do Chile. As marcas que tatuam a pele dos braços são

cortes que Eltit mesma se fez antes de ir à leitura. Antes de

ser livro, Lumpérica foi teatralidade. Desse fora do texto, que

não era um meio artístico mas um ato de ocupação de um

espaço real, de um espaço de trabalho, o que ingressou no

texto foi a teatralidade transformada em imagem fotográfi-

ca. A fotografia está ali como negativo da teatralidade. Está

ali como signo de uma série de passagens do livro à sua ex-

terioridade – ou à sua negatividade – e de retorno ao livro,

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ocorridas através de cortes, de ocupações, de interrupções.

É a marca de um assalto – um assalto à integridade do tex-

to, um assalto à vida por parte da arte, um assalto de um

meio a outro. Que relação tem a fotografia com o texto?

A fotografia é um registro e é um corte, não é ilustração,

é a passagem de Diamela Eltit a diamela eltit. Através doprocedimento da teatralidade, essa que está ali não é Dia-

mela Eltit, é outra. É marca da alteridade produzida pelo

trabalho da teatralidade.

 Lumpérica contém essa fotografia e também um pensa-

mento sobre a fotografia: teoria e práxis. Ali a fotografia se

pensa como um corte que abre a passagem para a alteri-

dade. A parte em que está incluída a fotografia é compostade dezesseis fragmentos ou subpartes. Alguns parecem poe-

mas em prosa,

Anal’isa a trama=dura da pele: a mão prende e a

fobia é[es]/garra.4 (ELTIT, 1991, p. 153)

Outros parecem indicações sobre o já lido, explicações e

indagações sobre a grande encenação que é o livro – “Das

cenas anteriores se depreende que: Definir isoladamente

os diversos cortes é um subterfúgio porquanto eles se ar-

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Os limites do livro 165

ticulam na medida em que cada um vai iluminando o per-

curso dos outros” (idem, ibidem, p. 164). A maioria dos

fragmentos gira em torno dos múltiplos “cortes” feitos num

braço – “mostra um campo de pele mais amplo à vista e o

corte mesmo se alarga deixando na escuridão o nascimen-

to ou fim de seu traçado” (p. 157); “o segundo corte do bra-

ço esquerdo” (p. 156); “seu sexto corte é a abulia dos outros,

a vertigem e o hábito” (p. 166) –, ou encenam, em sua gra-

mática, os cortes,

Mug[lh]e/r/apa e sua mão se nutre final-mente o verde

des-ata e maya se erige e v[b]ac/a-nal su forma.5 (idem,

ibidem, p. 152)

Um dos fragmentos aponta para uma relação, teórica,

entre fotografia e literatura. Nele, a fotografia não é repre-

sentação, mas corte. Cito o fragmento em sua totalidade:

(Com relação ao corte da fotografia)

Representa-se em si mesmo o corte como na própria foto-

grafia? Antes se fixa como tal. A representação se dá namedida em que se atue sobre ele.

Por exemplo, o traçado do corte é um sulco sobre o

que se opera evidenciando-o desse modo como um sinal.

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No entanto, por estar como um sulco, torna-se trinchei-

ra ou parapeito sob o qual se protege ou se esconde uma

atuação.

Como sulco, está afundado sob uma superfície que

foi penetrada. Se se devolve fotograficamente, aplana-se

no rigor de uma nova superfície que somente será rom-

pida pelo olho que corta ali seu olhar.

E o olho então?

O olho que o lê, errático, só constrangido por seu

próprio contorno, encarcera-se numa leitura linear.

O olho que percorre a fotografia se detém diante do

corte (seu corte) e reforma o olhar diante de uma incô-

moda, impensada interrupção.

Assim o corte?

Trompe l’oeil.6 (idem, ibidem, p. 169)

O fragmento parece fazer alusão aos cortes nos braços e à

fotografia que abre o “Ensaio Geral”. Não é uma observa-

ção fácil, nem clara: o fragmento se refere a essa fotografia

como também à fotografia em geral. O fragmento é organi-

zado em torno de três cortes, três talhos, três rupturas. Cada

corte é a operação sobre uma superfície, uma pele, diferente.

Em primeiro lugar o corte sobre a pele: ali, nesse gesto real,

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doloroso e sangrento, gera-se profundidade, “um sulco”,

altera-se algo, e há, de repente, uma prega, várias pregas.

Ali, nas fendas dessas pregas-trincheiras, “esconde-se uma

atuação”, ou seja, uma representação: a teatralidade. O corte

permitiu que emergisse, mas que também se escondesse

melhor, a possibilidade da representação. Em segundo lugar,temos a fotografia desse corte. A fotografia emerge como

consequência da representação – teatralidade. Ali todas as

pregas se aplanam, voltamos a uma superfície lisa – mais

lisa do que a pele, mas que é como uma segunda pele, uma

pele alternativa à que havia sido fendida pelo primeiro corte

– “que somente será rompia pelo olho que corta ali seu

olhar”. Essa nova superfície será cortada pelo olho que alerá. A leitura como corte, como forma de abrir uma passa-

gem por essa superfície plana para atravessá-la: leitura crí-

tica, leitura como violência, leitura como meio (passagem)

de uma matéria a outra. Em terceiro lugar, o olho é cortado

pelo ato de olhar. O olho é obrigado a reformar “o olhar

diante de uma incômoda, impensada interrupção” (a foto-

grafia) como resultado de uma relação dialética com aquilo

que olha (a fotografia). Esse olho, agora cortado – já não li-

teralmente como o braço, mas metaforicamente –, gerará

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outra passagem-abertura, como o fez o corte no braço,

e ela gerará a teatralidade que gerará a fotografia que... Trom-

 pe l’oeil.

O que é a representação? Como ocorre? Qual é a rela-

ção entre o corte, a atuação, a fotografia e a representação?

Se vemos uma fotografia de um braço com cortes, estamosvendo uma representação dos cortes? Não, porque a repre-

sentação é atuação, é a existência de múltiplas dimensões,

é a possibilidade de pregas e profundidades. O corte é o

que permite a ilusão das três dimensões, o trompe l’oeil, é

a abertura para a teatralidade. A fotografia, por outro lado,

é “plana”, e isso a proíbe de ser representação, que precisa

de corpo e matéria. A fotografia é um corte, é uma inter-rupção do mundo, um talho que separa e isola, que obriga

o olhar a reorganizar-se. A fotografia como corte “reforma o

olhar” (ELTIT, 1998, p.169). A fotografia secciona, amputa,

aplana, suspende, opaca, interrompe o olho. A fotografia

“fixa”, não “representa”, porque representar neste fragmen-

to, no capítulo e em todo o Lumpérica, é “atuar” sobre algo.

O livro, organizado como tomadas de cenas, ensaios de ce-

nas, encenações, atua sobre a literatura: “Abriu-se um novo

circuito na literatura.” (idem, ibidem, p.172)

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Os limites do livro 169

A quarta parte do livro se intitula “Para a formulação

de uma imagem na literatura”. Não uma imagem d a litera-

tura, que seria mimese representativa, mas na, interrompen-

do “a literatura”, como o fará, páginas adiante, a fotografia

anterior. Uma imagem na literatura: estamos no regime

estético das artes. A segunda subparte, “4.2 Para a formula-ção de uma imagem”, é uma descrição detalhada de uma

cena: L. Iluminada pensa como seria passar o restante de

seus dias numa sala de hospital adormecida e vegetalizada,

até a chegada de sua morte. L. Iluminada projeta como

seria estar ali imóvel, sem cuidar dos lumpens da praça,

como seria deixá-los órfãos, como seria estar “desprendida

de toda alma” (ELTIT, 1991, p. 85), já que a alma teria podi-do “desaparecer nesse estado” (p. 84). Os médicos também

a observariam. E ela, “voluntariamente nessa condição,

posa” (p. 85). Nela pensariam os lumpens esfarrapados que

a haviam tido como guia ou líder, agora sozinhos na praça,

eles também tornando-se, pouco a pouco, corpos em esta-

do vegetativo. Até que ela “um dia qualquer se recolha até

o outro mundo” (p. 85). Essa subparte, que, como lemos ao

final, “uma de suas imagens”, é o resumo do que ocorreu e

um possível devir do que poderia ocorrer ao personagem

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no transcurso do livro. Contém todo o percurso: “Obser-

varam-na de seus melhores ângulos infundindo-lhe letra a

letra, palavra a palavra, roteiros e representações, até que

com a língua rota e inchada pôde dizer os mais claros par-

lamentos reduzindo-os a memórias, sua mente como ar-

quivo” (idem, ibidem, p.85

). Mas é também um possívelfuturo. Para formular uma imagem, são necessárias múlti-

plas temporalidades, certezas e dúvidas, realidades e irrea-

lidades. O que essa parte apresenta e descreve não é um

trabalho do dispositivo retórico da ekphrasis. Não descreve

algo que existe, muito pelo contrário. A imagem é o pro-

cesso de transformação de um estado ou de uma materiali-

dade em outra, é a passagem da vida à morte, é então ocaminho de um meio a outro. A imagem é o processo de

produção de alteridade, inseparável nessa obra da teatra-

lidade – “ela posa”. Todo o livro poderia resumir-se na fra-

se “ela posa”. Como numa encenação, a imagem termina

com o escurecimento do palco (a sala de hospital): “Arras-

tem-se lençóis brancos sobre as letras hospitalares e as mãos

desses miseráveis interrompam o soro, desatem as ban-

dagens e deixem o compartimento às escuras.”7 (idem, ibi-

dem, p. 86)

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Escrever sem escrever = Fotografar sem fotografar 171

4. Escrever sem escrever =

Fotografar sem fotografar

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Escrever sem escrever = Fotografar sem fotografar 173

Os cem mil livros de Mario Bellatin,

ou escrever sem escrever

Primeira instância: na mais recente dOCUMENTA, Mario

Bellatin, membro honorário do comitê de assessores da feira

de Kassel, apresentou dois projetos: uma ópera filmada, feita

com a compositora Marcela Rodríguez em Ciudad Juárez,

intitulada  Bola negra, baseada num conto de Bellatin de

mesmo nome, e  Los cien mil libros de Mario Bellatin, umaobra que consiste na produção de mil exemplares de cem

livros de Bellatin, que se comercializam sem passar pelas

livrarias em intercâmbios diretos com os interessados que

nem sempre são monetários, e que podem assumir a forma

de escambo. Em meados de 2012, ele já havia publicado

seis dos cem livros, e acreditava que com o que já tinha

escrito podia publicar pelo menos cinquenta e dois. Como?

Apesar de ser prolífico, exageradamente prolífico podería-

mos dizer – de modo análogo à proliferação de livros de

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César Aira nos anos 90, provavelmente o primeiro caso desse

modelo de escritor contemporâneo –, Bellatin não publi-

cou cinquenta livros a essa altura, que possa republicar,

nem é factível pensar que pudesse escrever cinquenta li-

vros além dos quase vinte que já tem publicados em edito-

ras “convencionais”. Tais livros, em sua maioria, não serãoescritos “novos”, “originais”, senão que serão feitos a par-

tir de uma nova montagem de partes de livros ou contos

ou textos – todos seus – já existentes, transformando o an-

tigo processo de escrita numa oficina de combinações. Esse

gesto é por um lado claramente vanguardista – trabalhar a

colagem, a montagem, até o readymade –, mas é também

uma prática que não pertence ao campo da literatura. Oupelo menos da literatura tal qual havia sido configurada

desde o final do século XVIII por escritores, leitores, insti-

tuições e mercados. É, como veremos, uma prática, um sis-

tema, que remete a diferentes instâncias da história da arte

moderna e contemporânea. Cada livro é montado artesa-

nalmente, a partir de folhas, na própria casa de Bellatin na

Cidade do México, casa em que tem lugar a pós-produção

dos livros e onde eles são estocados até serem distribuídos

em sua totalidade. Cada livro – em sua tiragem total – ga-

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Escrever sem escrever = Fotografar sem fotografar 175

nha uma nova prateleira nas bibliotecas especialmente

construídas para esse projeto, “para ver como avança o pro-

jeto de maneira material”, explica numa entrevista. Cada

exemplar tem uma impressão digital de Bellatin estampa-

da na contracapa, fazendo de cada um dos cem mil (futu-

ros) livros um objeto único.Esse fazer ao modo de “corte e costura”, como descre-

veu um entrevistador a forma como Bellatin trabalharia

no projeto de Los cien mil libros, já se encontra em sua obra

anterior, caracterizada pela heterogeneidade dos fragmentos

e pelas sempre presentes partes que compõem seus livros.

 Lecciones para una liebre muerta é composto por duzentos e

setenta fragmentos, todos numerados – cada um dos quaisparece ser um microrrelato em si mesmo –, inicialmente

desconectados, mas que eventualmente tecem uma narra-

ção – sem relato claro, sem aparente construção ou desen-

volvimento narrativo. Alguns dos fragmentos são escritos

por um autor que se descreve a si mesmo e também a cena

de escrita. Com outros fragmentos, o leitor não pode assi-

nalar nem uma voz precisa nem uma autoria. Acumulam-

se os duzentos e setenta fragmentos, oferecendo a narração

de histórias ou situações que parecem funcionar como en-

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quadramentos. Cada fragmento, ainda que em algum mo-

mento entre em contato com outros fragmentos, aparece

como um quadro, fechado em si mesmo, dentro de cujas

molduras os leitores veem algo. Os leitores não assistem ao

desenvolvimento de um relato, porque nada se desen-

volve, não há duração. São instantes. Fulgurações, apareci-mentos, quadros, enquadramentos. Ou tomemos  Perros

héroes, livro composto de sessenta e dois parágrafos, cada

um impresso numa página diferente, com uma parte final

entitulada “Dossiê. Instalação”, onde estão impressas, em

tamanho de folha de contato, dezenove fotografias. À dife-

rença de Lecciones para una liebre muerta, os fragmentos em

 Perros héroes, apesar de sua organização espacial na páginasugerir menos continuidade, mais desconexão, lidos na or-

dem de impressão, oferecem uma história com certa con-

tinuidade. Ou seja, as continuidades formais em  Lecciones

– os fragmentos numerados de um a duzentos e setenta,

e em ordem; entre cada fragmento numerado há somente

uma pequena faixa em branco, contando cada página, mui-

tas vezes, com vários fragmentos; o livro é composto tão

só por esses fragmentos numerados, há personagens no-

meados que reaparecem em vários fragmentos – apresen-

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Escrever sem escrever = Fotografar sem fotografar 177

tam um livro totalmente disperso, verdadeira colagem de

brevíssimas histórias, enquanto a continuidade narrativa

de Perros héroes aparece, quanto à sua forma, de modo mui-

to descontínuo – cada parágrafo numa página diferente, sem

numeração, nunca mais de um fragmento/parágrafo por

página, a inclusão de outro meio (as fotografias) na partefinal do livro. Outro caso: Los fantasmas del masajista é um

livro que, como os anteriores, não é dividido nos tradicio-

nais capítulos, desta vez nem sequer em fragmentos, mas

a narração começa na primeira página e prossegue – aqui,

sim, há duração – por 60 páginas. É um único longo frag-

mento, ou um único extensíssimo parágrafo, sem nenhu-

ma divisão. Na página seguinte ao ponto final que encerrao parágrafo, sem anúncio, sem título, aparecem, em conti-

nuum, fotografias. Uma fotografia por página. Todas as fo-

tografias têm legendas, e as legendas remetem à história e

aos personagens do texto anterior, simulando ser talvez a

ilustração ou talvez a documentação do lido, levando o tex-

to para a zona do testemunho ou do documento. Apesar

de que tudo o que se leu fosse, claramente, ficção, sem ne-

nhum gesto para a realidade. Por outro lado, as fotografias,

que são, sim, documentos, são documentos da ficção, ou,

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se são ilustrações, funcionam então mais como imagens

pictóricas sem o registro indexical – e consequentemente

real – da imagem fotográfica, estão fora de foco, são pou-

co claras, parecem mais registros de fantasmas que de algo

existente. O livro, então, é composto de um parágrafo e de

uma série de fotografias que, apesar de aparentarem existirdentro do mesmo mundo, através das legendas das foto-

grafias, deslocam a ficção, ou os mundos que cada uma

oferece.

Até aqui, descrevi, principalmente, os livros que tam-

bém são projetos, como se estivesse falando de uma obra

de arte, de um objeto artístico, e não de um livro de contos,

de um romance, de um ensaio, de um livro de poesia, ondehaveria isolado um episódio ou cena do relato ou um verso

particularmente iluminador da leitura que estou propon-

do. Não ter feito isso, não ter oferecido o movimento tradi-

cional da crítica ou teoria literária, deve-se a que, em grande

medida, não se pode fazer isso em face da maioria dos li-

vros de Bellatin. Isso é sintomático. À exceção de somente

algumas obras, os modos de leitura que surgem da crítica

literária, em qualquer de suas modalidades, não conseguem

dar conta dos projetos “literários” de Bellatin, mais obras –

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Escrever sem escrever = Fotografar sem fotografar 179

no sentido de encenações ou de obras de arte – do que

livros. Provavelmente, a aproximação crítica mais relevan-

te de suas obras tenha sido sugerida pelo mesmo Bellatin

no prólogo do livro sobre a Escola Dinâmica de Escrito-

res: “Desvanece-se aquilo que conhecemos como literatura

e forma-se um corpo no qual o exercício da escrita assumea categoria de prática artística”, porque “o exercício da es-

crita é mais uma arte”. (BELLATIN, 2006, p. 9)

Escrever a partir de fragmentos, que se oferecem ao lei-

tor às vezes alinhavados, às vezes descosturados, é então

uma prática generalizada na trajetória de Bellatin, e não

nova no projeto de Los cien mil libros de Mario Bellatin. Em

sua virada para um método ao mesmo tempo técnico eartesanal, e no insistir no cruzamento entre várias discipli-

nas, o projeto parece retomar alguns dos principais mottos

estruturais da Bauhaus. A ideia em Weimar, em 1919, apli-

cada não só à escola que seria conhecida como a Bauhaus,

mas a toda uma série de novos “Institutos” ou “Academias”,

havia sido organizar um novo tipo de educação de arte,

que por um lado buscasse ensinar as belas-artes como se

fossem ofícios artesanais e por outro lado tentasse abarcar

em seus programas de estudo a maior quantidade de ati-

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vidades “artísticas” e de “ofícios” possíveis, proibindo a es-

pecialização do aluno. Daí os dois objetivos fundamen-

tais da escola que o Estado pediria ao jovem arquiteto Walter

Gropius que dirigisse em 1919: resgatar as artes do isolamen-

to em que se encontravam e combiná-las em projetos coo-

perativos; elevar o artesanato ao mesmo nível que as belas-

artes. Foi Gropius quem chamou a Academia que devia

dirigir de Bauhaus: na Idade Média, os bauhüttem eram

os grêmios de pedreiros, construtores e decoradores; bauen

significa também “cultivar uma colheita”, e bau  significa,

literalmente, “edifício” ou “construção”. Essa ênfase no ar-

tesanal como modo de redirecionar a arte, que perigava

na época, e no poder da máquina se pode ver também em

outras nomenclaturas usadas na Bauhaus: os professores

seriam “mestres”, os estudantes “aprendizes”, e as aulas “ofi-

cinas”. Recordemos o projeto da Escola Dinâmica de Escri-

tores, em que os participantes devem aprender os modos

narrativos de todas as artes.

Mas cem livros? Quem escreve cem livros? Se por um

lado a estratégia parece retomar algumas característicasdo projeto da Bauhaus, por outro lado é muito próxima do

modo de produção e circulação de muitas das outras artes

no momento contemporâneo.

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Escrever sem escrever = Fotografar sem fotografar 181

Fotografar sem fotografar

Segunda instância: em 2008  Bellatin publica em Buenos

Aires o livro Condición de las flores, que, como todos os ou-

tros já mencionados, tem uma forma fragmentária. É com-posto de três partes – “Condición de las flores”; “Textos de

la Underwood”; “Un certo  juchitán para graciela iturbide”

– que não parecem, em princípio, ter nenhuma conexão.

A primeira parte tem fragmentos breves que descrevem

o programa de escrita de um escritor que supomos seja Bel-

latin, ainda que em nenhum momento dos fragmentos

– intitulados tempos  ou estados  – o mencione especi-ficamente – “Tempo de bougainvíllea // Escrever para se-

guir escrevendo, pode ser um resumo de meu afã” (2008,

p. 22), ou “Tempo de orquídea // O que pareço buscar num

texto, como em qualquer manifestação artística que eu en-

frente, é a possibilidade de transitar por um espaço paralelo

à realidade, submetido a regras próprias” (idem, ibidem,

p. 9). A segunda parte do livro é uma recopilação de textos

supostamente escritos por Bellatin no início dos anos 90,

datilografados em sua Underwood de 1915, com os quais

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ele pagava suas sessões de psicanálise no Peru. Esses textos

foram levados do Peru para Buenos Aires, onde a crítica

Graciela Goldchluk os anotou e editou. Datados por Gold-

chluk, eles “podem ser considerados pré-texto de Efecto in-

vernadero” [Efeito estufa] , o romance de quarenta e quatro

páginas que ele publicou em 1993, mas cujos manuscritos

tinham mais de mil páginas. Buscando os manuscritos, para

tentar elaborar uma hipótese sobre o método de trabalho

de Bellatin, Goldchluk se deparou com os textos “da Under-

wood” que aparecem publicados em Condición de las flores.

Sabemos então que os textos “da Underwood” são anterio-

res a 1993, datados pela editora “conjecturalmente em iní-

cios de 1992” (idem, ibidem, p. 125). Não sabemos a data emque foram escritos os “tempos” e “estados”.

A última parte do livro é a que revela de modo mais

explícito a relação entre fotografia e literatura na obra de

Bellatin. “Um certo  juchitán  para graciela iturbide” é um

texto escrito no mesmo ano da publicação de Condición de

las flores, e cuja emergência Goldchluk descreve do seguin-

te modo:

Foi escrito por Mario Bellatin em 14 de maio de 2008, ime-

diatamente depois de ele ter recebido por correio eletrô-

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nico um arquivo com a cópia do datiloscrito que intitula-

mos “Sonhos”... A proximidade dos dois textos, separados

nesta edição por algumas páginas e na escrita por mais de

quinze anos, gera um espaço que permite ver, a modo

de laboratório, o fenômeno de transformação operado so-

bre os materiais mais diversos uma vez que entram no sis-

tema Bellatin. (2008, p. 125)

O sonho “I” da parte “Textos da Underwood” é sobre

um escritor que está corrigindo um texto já terminado com

a ajuda de umas jovens. A mãe das meninas passa a lim-

po as correções, e entre as páginas do novo manuscrito há

dois desenhos de Miguel de Cervantes. “São desenhos es-

colares. Um é escolar, mas o outro parece recortado de umalâmina que serve para ilustrar as tarefas” (idem, ibidem,

p. 36). O sonho continua por mais uma página, onde a mãe

das jovens “editoras”, que era cubana e gorda, se torna uma

bela mulher “oriental” (esse tipo de transformações ou mu-

tações são muito comuns na obra de Bellatin). O texto “para

graciela iturbide” retoma esse sonho. Em 2008, o escritor

é agora uma fotógrafa. Há muitas mutações interessantes –

para dar um exemplo: no primeiro sonho, tudo transcorre

numa casa rural num lugar indeterminado que poderia ser

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o Peru (país onde vivia Bellatin no início dos anos 90), e,

no texto que o reescreve, tudo sucede em lugar indetermi-

nado, também rural, que poderia ser o México (onde Bella-

tin vivia em 2008) –, mas o que permite pensar o lugar que

tem a fotografia na obra de Bellatin e entender o que é a

fotografia para ele é, evidentemente, a transformação doescritor em fotógrafa.

A fotógrafa “ensaia algumas tomadas – faz a simulação

de fotografar, mas não aciona em nenhum momento o ob-

turador”. Enquanto olha através do visor, sem apertar o

obturador, “realizando uma dessas simulações” descobre

uma “verdade oculta” que “não se mostra de maneira evi-

dente”. O segredo “só se revela se se olha através do visor,se se observa por ele, desde que não se tenha a menor in-

tenção de acionar o mecanismo” (BELLATIN, 2008, p.128).

O que se vê através da lente, a revelação neste enquadra-

mento fotográfico, “fica congelado na memória”. A fotó-

grafa tira fotografias imaginárias, até que, separada por um

momento de sua câmera, se dá conta de que pode fotogra-

far simplesmente fazendo um quadrado com os dedos de

ambas as mãos: enquadrando. Cada vez que muda a dimen-

são do enquadramento sobre um mesmo objeto, descobre

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características novas do objeto fotografado. Coisas que não

são da ordem do visível, os costumes de um tipo de ave,

por exemplo, ao enquadrar uma ave particular daquela raça.

Uma das fotografias imaginárias que tirou, da mãe das jo-

vens que a acompanham, precisa ser retocada, e a retrata-

da o faz usando uma “vetusta máquina de escrever”. A cópiaretocada revela, quando se olha em contraluz, debaixo da

figura da retratada, um daguerreótipo, feito nada mais nada

menos do que por um dos inventores da fotografia, “niep-

ce”. Essa fotografia é “um palimpsesto”, diz a restauradora

à fotógrafa. No final do texto, a fotografia – a primeira, a

que foi tirada antes de ser restaurada, a que ela tirou da se-

nhora que depois restaurará essa mesma imagem – “poucoa pouco se vai tornando real”.

O que está acontecendo? Como se pode fotografar sem

fotografar? Como se pode corrigir uma imagem, material-

mente inexistente, recordemos, com uma máquina de es-

crever?

Muitos críticos assinalaram que toda a obra de Bellatin

se constrói contra um inimigo, “a realidade”.1 Os textos de

Bellatin são textos que respondem a si mesmos, que se re-

fletem a si mesmos, que cortaram todo laço com o mundo

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exterior a eles. Há, na escrita de Bellatin, um abandono de

todas as zonas das quais e sobre as quais operou a literatura

– especialmente na América Latina – desde os inícios do

século XIX. A relação da literatura com o fazer político, com

as ciências naturais e as viagens científicas, com as ciências

positivas e a criminologia, com a emergência de diferentesdisciplinas como a etnografia e a etnografia é algo que foi

largamente analisado dentro do campo dos estudos literá-

rios latino-americanos.2  Nenhum desses modelos narrati-

vos funciona no caso contemporâneo, e o caso Bellatin não

é uma exceção, mas talvez o exemplo mais álgido do modo

como hoje a literatura “responde a si mesma antes que ao

restante” (BELLATIN, 2012, p.2).Essa separação radical do texto literário a ponto de não

ter nenhum contexto que não seja ele mesmo – em suas

múltiplas mutações, variações, aparecimentos e reapareci-

mentos, montagens, edições, cortes e armações –, que é o

projeto principal da escrita de Bellatin, seria impossível sem

a conceitualização que ele operou sobre o meio fotográfico.

Alan Pauls sugeriu, num comentário que não desenvolveu,

que talvez para Bellatin “escrever fosse somente a modesta

antessala de uma paixão pictórica”.3  A transformação do

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primeiro sonho no texto dedicado a graciela iturbide seria

uma primeira confirmação dessa hipótese – o escritor (apa-

rentemente aparecido como escritor num sonho) transfor-

ma-se em fotógrafa quinze anos depois, num texto que não

é apresentado como a narração de um sonho. Mas é uma

confirmação demasiado fácil.A proposta de uma fotografia sem fotografia liberta o

meio daquilo que o caracterizou, ontologicamente, desde

os seus múltiplos inícios no século XIX: a indexicalidade.

No objeto fotográfico, a indexicalidade como traço de algo

que sucedeu, e que aí esteve como prova e documento de

verdade, se tornou uma das características principais do

meio. É claro que não se falava de indexicalidade em mea-dos do século XIX, mas se falava, sim, da “verdade mais ab-

soluta” (POE, 1980, p.37), ou se usou como instrumento

legal e policial por seu inegável e inquestionável registro

de um evento, ou como marca, junto com a impressão di-

gital, da existência de uma pessoa como única e irreprodu-

zível. Quando Peirce montou seu sistema de signos, deu

como exemplo do signo índice uma fotografia, e foi ali, na

passagem para o século XX, que a indexicalidade ficou uni-

da à fotografia.

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Essa é uma das vertentes, ou modos, da indexicalidade.

Aquela que assegura que algo esteve ali em algum momen-

to – o haver-estado-ali de Barthes (op. cit.). A fotografia tem

também outro modo da indexicalidade, que faz dela não

uma prova de um passado, mas um gesto performativo. Já

Peirce em seu sistema sublinhava que o índice é principal-mente um signo de uma origem (traço de algo real), mas

que era também uma forma de apontar ou assinalar o even-

to que o inscreveu como índice. As fotografias seriam en-

tão índices não tanto por serem traços mas pelo simples

fato de terem sido tiradas. Numa vertente, o índice é um

traço do evento, na outra é a sinalização de um evento no

mundo. Foi a primeira das vertentes a que ficou amalga-mada ao dispositivo fotográfico durante mais de um sécu-

lo de sua existência, e talvez só no uso que a arte conceitual

fez da fotografia pela primeira vez se tenha privilegiado

sua indexicalidade enquanto gesto performativo.

“Um certo juchitán para graciela iturbide” é, como dis-

semos, sobre a arte de tirar fotografias sem fotografar. O que

importa nas fotografias (imaginárias) que a fotógrafa tira

não é o que elas registram, não é que sejam provas ou docu-

mentos de algo que passou, de alguém que esteve ali. Pelo

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contrário, as fotografias que a personagem tira são de situa-

ções imaginárias – a fotógrafa quer tirar uma fotografia da

mãe de suas jovens ajudantes enquanto está tomando ba-

nho, mas elas querem que “tire” a fotografia da mãe diante

da nova máquina de lavar roupa. Ambas são situações que

não sucederam efetivamente. Com isso a fotografia tiradanão poderia ser nunca um registro, prova, documento de

que tal sucedeu. O que faz a fotografia no texto de Bellatin

é inventar um mundo, uma situação, uma possibilidade,

um evento. A força da fotografia é seu poder de com um

gesto performativo inscrever um evento. Por isso, no final

do texto, a fotografia imaginária “pouco a pouco vai se tor-

nando real”. A fotografia que aparece, “pouco a pouco”,como se estivessem num quarto escuro e a imagem fosse

aparecendo graças aos produtos químicos, é a imagem que

a fotógrafa havia querido tirar, a fotografia que ela havia

imaginado. “Aparece o banheiro, o corpo nu da mulher sen-

tada e o instante preciso em que a água cai sem controle

aparente” (BELLATIN, 2008, p. 133). Aparece o instante em

que a água “cai”, não o instante em que a água “caiu”. A fo-

tografia em Bellatin é o horizonte de um contínuo presen-

te, não de um passado. E, para sê-lo, a fotografia teve de

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deixar de ser registro do que já foi para enfatizar seu cará-

ter de produtora performativa.

Em 1955 J. L. Austin deu uma série de conferências que

foram publicadas postumamente como  How to do things

with words (AUSTIN, 1962a) e que foram enormemente in-

fluentes no desenvolvimento da arte conceitual, desde Ro-bert Berry e seu trabalho de 1969 em  Inert Gas Series, que

consistia em fotografias de gases invisíveis que haviam sido

emitidos pelo fotógrafo em diferentes lugares de Los Angeles

(onde, obviamente, não havia nenhum gás para ver; o que

essas fotografias faziam era fazer o espectador crer), até o

Trouser-Word Piece  de Keith Arnatt, de 1972, que consiste

na transcrição de uma citação de Austin.4 Por que o traba-lho de Austin interessou aos artistas conceituais dos anos

60 e 70? Sua proposta era pensar que, num campo muito

delimitado, havia fenômenos linguísticos que não descre-

viam um evento ou situação, mas que, ao contrário, atua-

vam sobre o mundo, o mudavam e até produziam o/um

mundo liberto da linguagem de ter de só dizer; tratava-

se de passar a fazer. A linguagem se libertava da necessi-

dade de ter um significado e passava a fazer, a criar. “The

prison house of language” – jogando aqui com a frase de

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Frederic Jameson – ficava desarticulada. A relação entre lin-

guagem e verdade havia sido reconstruída por Austin. A arte

conceitual se concentrou em pensar a arte não como re-

presentação, mas como um “performative speech act” [ato

performático de fala]: ela nomeava a realidade em lugar de

representá-la. Em “Mensaje fantasma” (1967

), Oscar Masottamandou cobrir as paredes da cidade com um cartaz que

dizia “Este cartaz será projetado pelo Canal 11 de televisão

no dia 20 de julho”. Em 20 de julho o cartaz foi projetado.

Roberto Jacoby, Eduardo Costa e Raúl Escari produziram

outro “performative speech act” em 1966 com sua “Arte de

los medios de comunicación, Happening para un jabalí di-

funto”. Um jornal de Buenos Aires publicou uma nota querelatava um happening  que havia tido lugar na cidade; tam-

bém houve resenhas de arte sobre o evento. O evento nun-

ca ocorreu. Foi “feito com palavras”.5

Esses “performative speech acts”, do mesmo modo que

a indexicalidade performativa, não documentam, não re-

presentam, não descrevem – designam o real, e, ao fazê-lo,

configuram um mundo.

As fotografias que aparecem no final de  Los fantasmas

del masajista, e que cobrem a capa do livro, são imagens

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cujas legendas remetem a personagens, nomes ou lugares

que foram mencionados nas primeiras páginas. Mas o que

se lê nas primeiras páginas não é mais que puro artifício,

o texto nada tem de documental, de verídico, nem sequer

de realista. As fotografias então remetem ao artifício da fic-

ção. A parte de Shiki Nagaoka: una nariz de ficción intitulada“Documentos fotográficos de Shiki Nagaoka” opera do mes-

mo modo. O livro pretende ser documental: a bibliografia

de obras de Shiki Nagaoka, a bibliografia de livros sobre a

vida e obra de Shiki Nagaoka, o dossiê fotográfico. Ali as fo-

tografias posam desdobrando sua suposta indexicalidade

como traço, como evidência, como prova da vida e existên-

cia de Shiki Nagaoka. A maioria das fotografias não mostranada que para o leitor do texto funcione como evidência

da existência de Shiki Nagaoka. Há três que mostram Shiki

Nagaoka, mas em nenhuma delas se vê aquilo que define

aquele sujeito: seu enorme nariz. O nariz foi raspado, eli-

minando-se da imagem; ou em outra Shiki Nagaoka é ape-

nas um pequeno círculo num imenso grupo de cabeças que

não contém nada visível. A indexicalidade como traço é a

visibilidade da imagem fotográfica, e é precisamente o que

está ausente no dossiê. A imagem simplesmente mostra,

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“aqui” está “aquele”: este é Shiki Nagaoka. Um “performa-

tive speech act”. A mesma operação com relação ao mate-

rial fotográfico está presente em Las dos Fridas e em Demerol.

Sin fecha de caducidade [Sem data de validade].

As fotografias na obra de Bellatin recuperam essa outra

indexicalidade, a que o uso comum do meio massificou demodos muito diversos desde o século XIX. Toda fotografia

está sempre caindo para o lado do memento, do souvenir ,

como traço e prova de verdade, como metonímia e citação

de algo real. Nesse sentido, sua temporalidade é a do pas-

sado – o “este foi” de Barthes. Na obra de Bellatin, opera

fortemente a outra temporalidade do índice fotográfico, o

presente em que se declara que isso que se vê existe, em quese convoca a existência de um mundo que, se não fosse ali

convocado, não existiria. Tudo existe dentro do universo

fechado da ficção. Bellatin leva toda a sua prática ao limite

entre o traço e a dêixis, entre o documento e a performance.

A prática literária de Mario Bellatin é a da arte conceitual.

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5. Mutações. Analogias. Fotografias

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Mutações. Analogias. Fotografias 197

É difícil pensar numa obra que encene mais claramente

o regime estético das artes do que a de Nuno Ramos: tanto

pelo modo como seu trabalho não se situa dentro de ne-

nhum meio específico, mas no cruzamento e na contami-

nação de práticas, discursos e materiais sempre múltiplos

e heterogêneos; como pelo modo como pelo menos duas desuas obras mais emblemáticas, 111 e  Bandeira branca, são,

precisamente, sobre a reorganização sensível de corpos que

haviam sido organizados pelas estruturas políticas como

um corpo coletivo e que a obra estética de Ramos fratura,

desordena, desclassifica e transforma assim em corpos in-

certos, agora visíveis. As heterotopias da arte e da política,

que são, segundo Rancière, possíveis pela primeira vez sob

o regime estético, são difíceis de imaginar, até, infelizmen-

te, difíceis de crer, e muito mais ainda de visualizar, mas

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surpreendentemente adquirem forma na obra de Nuno

Ramos.

O trabalho de arte de Nuno é capaz de atravessar lin-

guagens diferentes unindo mundos, e a hibridez se torna

uma necessidade para poder produzir a passagem de uma

prática a outra, de uma linguagem a outra, de um tipo aoutro, de um corpo a outro. Na apresentação da heterogê-

nea coleção de textos que compõem  Ensaio geral, livro de

2007, Nuno descreve esse livro como uma “forma híbrida”,

escolhida para “procurar uma passagem capaz de fazer des-

ses textos parte de um desenho que vai se espalhando para

além deles: o meu trabalho de arte como um todo” (2007,

p. 11). A relação entre hibridez e passagem é fundamental:“Há talvez uma promessa aqui, surpreendida na passagem

entre dois rochedos, na junção entre duas datas, no laço

frágil entre duas temperaturas. Essa passagem é o que me

move.” (idem, ibidem, p. 12) Uma das operações básicas da

obra de Nuno é a de pôr em contato coisas aparentemente

dissímeis, fazê-las encontrar-se, conviver, e mutar a partir do

encontro, ser, de algum modo análogas porque fazem par-

te de “um todo”. Como assegurar que possa suceder aquilo

que tanto busca Nuno em sua obra, a passagem de uma coisa

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Mutações. Analogias. Fotografias 199

a outra, de uma matéria a outra, de um formato a outro, de

um meio a outro? Mantendo tudo num estado incerto,

inacabado, em que a forma não se tenha ainda “formado”

– “manter meu trabalho numa espécie de latência”, para

que o trabalho, ainda depois de vinte anos, “permaneça de-

cididamente ‘em formação’” (2007

, p.13

). Por isso, primamna obra de Nuno os materiais deslizantes, resvaladiços, que

correm, se esfumam, patinam – a vaselina nos  Manorá

preto, branco e vermelho; a terra, o sal e o breu em Monte;

a parafina e o breu em  Mácula; a fumaça nas esculturas

de vidro em 111; a vaselina nos jarros de cerâmica em Vaso

ruim; a vaselina líquida em Pedras Marcantônio; o vinagre, a

vaselina líquida, a Coca-cola, o petróleo, o formol e o sorofisiológico nos Fodasefoice; os tubos de refrigeração em Asa

 Branca – e a água em tantas outras, como matéria que faci-

lita a circulação, a passagem, a viagem, a chegada de uma

margem à outra. Por isso também há tantas esculturas de

vidro soprado em forma de gotas que caem, sempre cheias

de alguma substância líquida, vaporosa ou gelatinosa. Por

isso também seus textos literários se concentram em dois

grandes temas: por um lado, a passagem da palavra à maté-

ria, ou seja, a materialização e corporalização das palavras;

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por outro lado, a passagem do tempo sobre a matéria e os

corpos, o tempo que torna visível as mudanças e transfor-

mações inevitáveis, o aparecimento assim da duração, ten-

do a morte sempre perto. Nada é estático, nada é nem está

seco, nada está nunca terminado. Nuno Ramos é um alqui-

mista: sua arte encena repetidas vezes a transmutação damatéria, e a linguagem a leva a ser matéria para poder tra-

balhá-la como a todas as outras matérias e corpos dentro

de seu grande laboratório de experiências. A instabilidade

e o trabalhar a partir da analogia e da semelhança permi-

tem a passagem.

Para explorar as passagens e contaminações entre li-

teratura e outras artes na obra de Nuno Ramos, Cujo seriao texto-chave para ler. Por quê? Pelo modo como os frag-

mentos que compõem o primeiro livro do artista foram

aparecendo anos antes do livro, de modo parcial, em mos-

tras de obra plástica, escritos sobre diferentes superfícies

e com diferentes materiais, impressos como matéria antes

que como símbolos nas páginas de um livro. Cujo foi pri-

meiro plasticidade e matéria da arte, foi escrito ao mesmo

tempo que foi imagem, nunca somente escrita, foi corpo an-

tes que palavra, não somente metamorfoseando-se, mas

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Mutações. Analogias. Fotografias 201

também desajustando toda hierarquia entre as diferentes

práticas da arte. Antes de assentar-se, de secar-se, visibiliza-

das por uma prensa mecânica, fixadas assim sobre a página

do livro, as palavras circularam livremente em espaços aber-

tos, como formas matéricas. Cujo não pertence a nenhuma

arte em particular, mas é visível como arte de forma mutan-

te; ali está a “arte como um todo” a que se refere o próprio

Nuno, que não é outra coisa além de um grande laborató-

rio de destruição e criação, de mutações e passagens, desse

outro “todo” que é o mundo.

O livro em si abre com o que poderíamos classificar

como a descrição de uma oficina de arte em que um sujei-

to, que poderíamos chamar artista, experimenta com a al-quimia. O primeiro fragmento do livro o aclara:

Pus todos juntos: água, alga, lama, numa poça vertical

como uma escultura, costurada por seu próprio peso. Pe-

daços do mundo (palavras principalmente) refletiam-se

ali e a cor dourada desses reflexos dava uma impressão in-

tocada de realidade. O som horrível de uma serra saía de

dentro da poça e completava o ritual, como uma promessa(pela qual eu esperava, atento) que fosse conhecimento e

revelação. Foi então, como se suasse, que algumas gotas

apareceram em sua superfície e escorreram, primeiro len-

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tas e depois aos goles, numa asfixia movediça que trouxe

o interior à superfície e desfez em pedaços a suspensão e a

paralisia. E feita sujeira, aos meus pés, era um lamento do

que eu tinha visto e perdido. (RAMOS, 1993, p. 9)

Ele trabalha com tudo. Mesclando elementos: ou levan-

do cada elemento a confundir-se com outros, ou levando oelemento até o momento em que chega a um estado alter-

no. O sujeito mescla “pedaços do mundo”, ou seja, traba-

lha destruindo ou decompondo o que já está destruído, e a

partir de fragmentos do mundo cria depois outro mundo.

Depois de mesclar, o sujeito simplesmente observa, “espe-

rava, atento”: contempla as mudanças e as mutações que

levam à criação e à destruição, espera as mutações que tra-rão revelação. Esse primeiro fragmento do primeiro livro de

Nuno Ramos condensa nitidamente os eixos principais

de sua obra: uma investigação metafísica pela composição

e pelo sentido do mundo, através de processos de destrui-

ção e criação, através da transformação; o lamento pela ine-

vitável perda que é simplesmente ser e estar porque tudo

está sempre num movimento de mutação, sendo sempre

algo outro a si mesmo; a alteridade no próprio, a analogia

como força organizadora do universo.

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Mutações. Analogias. Fotografias 203

Fotografias

Se sua obra busca constantemente a mutação, a transfor-

mação, a alquimia, não é de estranhar que dos múltiplos

meios com que Nuno Ramos trabalha – escultura, pintura,desenho, vídeo, performance, escrita, música, som, arquite-

tura – o que menos apareceu em sua obra, desde que emer-

giu no campo das artes em 1983 até hoje, é o da fotografia.

A “operação mutação” é quase impossível de imaginar com

a fotografia. O meio fotográfico, com sua imagem fixa, seca

e estável, é o menos dado à mutação, à transformação, ao

trabalho do alquimista. Resiste a ser outra coisa que nãoela mesma. Apesar de ser ela mesma híbrida – documento

e ficção; realidade e fantasmagoria; verdade e milagre; pro-

duto da racionalidade e também da fé –, não alcança o es-

tado de incerteza com que geralmente trabalha Nuno: não

é vaselina líquida, não é breu, nem água, nem uma maté-

ria que consiga deslizar, jorrar, passar a outro estado e even-

tualmente ser outra coisa. A fotografia é fotografia quando

sobre um vidro ou sobre um papel (na maioria dos casos) a

matéria se torna visível, nítida, sólida e seca. Foram poucas

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204 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

as vezes em que ele apresentou fotografias em suas exposi-

ções, e isto é dizer muito para alguém cuja voracidade de

produção somente parece equivaler, pelo menos em termos

de escala, com a monumentalidade de muitas de suas obras.

E, em cada uma dessas instâncias, ele tentou mutar as foto-

grafias, fazê-las matéria, quebrar sua superfície, romper suapele suave e lisa, fazer com elas o que faz sempre com a ma-

téria: levá-la à indeterminação através da contaminação.

As palavras, também secas e sólidas, de modo estranha-

mente semelhante às fotografias, ainda sendo estas ícones

e aquelas símbolos, precisam ser tiradas de sua secura para

que entrem no sistema Nuno: “Palavras são feitas de maté-

ria escura, quase sólida. Secam rapidamente, depois de pen-sadas ou ditas. Mas secam também antes que saiam da boca,

quando deixamos de usá-las de maneira apropriada.” (2001,

p. 15) Segundo “Um comunicado sobre as palavras”, há duas

grandes famílias de palavras: as que são súbitas e as que rou-

bam tempo. As súbitas aparecem e desaparecem de súbito,

sempre nos surpreendendo como se fosse a primeira vez

que as encontramos. Não há tempo para que nos habitem

ou para que as habitemos. As que roubam tempo são o exato

contrário, aparecendo maciçamente e estando sempre dis-

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Mutações. Analogias. Fotografias 205

poníveis, até o ponto de nos manterem escravizados a elas,

reproduzindo-se constantemente ao nosso redor, cercando-

nos. Segundo o texto, a estas é preciso combatê-las, desau-

tomatizá-las, e uma das formas, a “mais estranha e menos

eficaz mas que diversas vezes apresentou resultados”, é ma-

terializá-las, “dar corpo às palavras, tornando-as pesadas,onduladas, viscosas ou sujas, escrevendo-as com barro, con-

creto ou metais fundidos” (idem, ibidem, p. 18). Ao ganha-

rem corpo, adquirem lentidão, carregadas de “matéria e de

peso”. Isso é exata e literalmente o que ele fez durante anos

com as palavras que depois ingressariam em Cujo.

Nas instâncias em que usou a fotografia como matéria

da obra, ele tentou, como veremos, buscar nela algo que afizesse mutar, como o fez com as palavras. Na primeira vez

em que usou fotografias, foram as enormes imagens de saté-

lite que fizeram parte da segunda e da terceira montagem

da mostra 111, em 1993. Esse réquiem pelos 111 presos mor-

tos no massacre da Casa de Detenção de São Paulo ocorri-

do em outubro de 1992  surgiu, segundo o próprio artista,

como resposta ao excesso de imagens fotográficas dos mor-

tos que infestaram os meios de comunicação de massa nos

dias imediatamente posteriores à tragédia: “Foram as fotos

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206 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

dos mortos expostas assim tranquilamente em qualquer

banca de jornal, em plena luz do dia, que de fato me im-

pressionaram. Havia uma espécie de mal naquelas imagens,

anônimas, algo coletivas” (RAMOS, 1996, p. 177). Ao literal

daquelas imagens do horror, ao desenfreio midiático por

mostrar tudo, ao apetite cidadão (cultivado e elaborado,claro está, pelas estruturas de poder) por consumir o im-

pensável, ao mal que jazia ali completamente visível, jo-

gando com uma transparência, Nuno respondeu com uma

encenação que não mostrava, em aparência, nada reconhe-

cível, e que antes nublava precisamente a visibilidade extre-

ma e realista, quase pornográfica, que tivera a catástrofe.

Um dos fragmentos de Cujo sublinha a necessidade de nu-

blar para poder ver, para poder identificar: “A identidade

de um objeto depende antes de mais nada de sua opaci-

dade.” (idem, ibidem, p. 48)

É revelador que a fotografia apareça pela primeira vez

na obra de Ramos precisamente nesse contexto: a fotografia

emerge para contra-arrestar a desmesurada visibilidade que

uma tragédia e catástrofe adquiriram como consequência

de um uso sensacionalista, hiper-realista e documental da

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Mutações. Analogias. Fotografias 207

fotografia. A fotografia aparece como parte de um projeto

de materializar, que é o oposto, na estética de Nuno, à trans-

parência da visibilidade. A proposta de Nuno na mostra

111 obscureceu a visibilidade, apagou o visível tornando-o

invisível. E também, ao mesmo tempo, 111 materializou

a catástrofe, deu corpo a essas imagens midiáticas, afastou-se da visibilidade para aproximar-se de algo ainda latente.

111 foi sobre os 111 corpos, sobre a particularidade de cada

um deles, sobre a singularidade e a soma deles. Por isso

havia que levá-los para a escuridão, porque, “quanto mais

impura e opaca a superfície, mais identidade ela própria

ganha” (1993, p. 49). Nessa obra, a pulsão era singularizar e

identificar cada um dos 111 mortos, tirá-los do reflexo lu-minoso da visibilidade midiática que os havia despersona-

lizado. Aqui, desta vez, cada um dos 111 devia ser singular,

não semelhante. Por isso, ele também regressou a esses cor-

pos na mutação que teve “111” em outubro de 2012 em 24

horas 111, quando durante 24 horas se leram seguidamente

os 111 nomes dos assassinados no Carandiru pela polícia

militar. Era preciso seguir singularizando-os.

Então, o que se via nas fotografias expostas nas duas

montagens de 1993? Viam-se abstrações, que somente apon-

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208 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

tavam para o evento, ou, na realidade, para algo específico,

porque havia indicações de que essas imagens haviam sido

tiradas durante a hora exata dos acontecimentos na prisão

do Carandiru. As imagens de satélite foram montadas no

que foi a segunda sala da segunda montagem, na Galeria

Gabinete de Arte, em São Paulo em 1993, seis meses depoisdo massacre. A segunda sala era “um complemento aéreo,

algo celeste” da primeira sala, onde havia 111 “tumbas” –

paralelepípedos – no chão, recobertas de breu, com o nome

de um dos mortos impresso sobre cada paralelepípedo, em

chumbo. Cada “tumba” também tinha pedaços de jornais

do dia do massacre cobrindo seu exterior que, com o breu

como suporte, eram praticamente ilegíveis. A essa primei-

ra sala, marcada por “certa mistura de ausência e sufoca-

mento” (TASSINARI, 1996, p. 192), e que exibia, além das 111

“tumbas”, uma “múmia” – uma escultura de barro cru –, se

seguia ou uma sala completamente separada (no caso da

montagem na Galeria) ou outra seção do mesmo espaço

cuja separação e diferenciação estava marcada por uma cor-

tina de tule com um texto impresso nela. Nesse segundo

espaço, o grotesco, baixo, terrenal e corpóreo da primeira

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Mutações. Analogias. Fotografias 209

sala tinha seu contraponto na presença de uma encenação

mais etérea e vaporosa. Ali, na sala branca, estavam nas

paredes as imagens de satélite, em preto e branco, compar-

tilhando o espaço com esculturas de vidro soprado, cheias

de fumaça branca, pendendo e postas a esmo pela sala – as-

sim como os paralelepípedos na sala prévia. As paredes naprimeira sala – que poderíamos pensar como o “inferno”

da mostra – estavam cobertas por fragmentos que aparece-

riam em 1993 em Cujo. O que num espaço eram palavras,

dificilmente legíveis, no outro eram fotografias, igualmen-

te ilegíveis. A ilegibilidade radicava, em ambos os casos, na

abstração. Nem as palavras impressas nas paredes nem as

fotografias penduradas remetiam a algo reconhecível nomundo. Que tipo de signos eram, então? Qual a sua funcio-

nalidade, o seu uso? Eram signos de opacidade, eram corpos,

em seu estado terrenal e em seu estado etéreo, eram cor-

pos transformados.

No ano seguinte, voltaram a aparecer fotografias na obra

de Nuno. Em Montes, as paredes de tijolo da sala do Sesc-

Pompeia tinham penduradas doze fotografias em preto e

branco. Mas, diferentemente daquelas imagens decidi-

damente abstratas, quase lunares em alguns casos, que pen-

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210 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

deram das paredes na segunda sala de 111, estas eram foto-

grafias em que se podiam observar montes ou outras for-

mas semelhantes (como um forno de barro), referentes e

realidades que eram reconhecíveis como elementos de nos-

so mundo. Todas as fotografias haviam sofrido interven-

ção: uma pincelada ou forma, em verniz ou tinta dourada,interrompia o que teria sido o registro documental das ima-

gens. Tendo sofrido intervenção, modificadas, já não eram

índices, mas analogias – semelhantes a um referente, mas

não idênticas. A enorme sala tinha três montes de um me-

tro e meio de altura e dois metros de diâmetro, um construí-

do de terra, outro de sal, e o terceiro de breu. No centro de

cada monte, invisível na inauguração da exposição, haviaum pequeno forno de tijolo que recebia fogo constante-

mente. À medida que transcorria a exposição, cada monte

passava por uma transformação evidente: o monte de terra

soltou vapor, o de sal explodiu e borbotou, e o de breu se

derreteu completamente, deixando à mostra o forno.

As fotografias continham algo do mundo exterior – ha-

viam sido tiradas no porto de Santos, no rio Tietê – e por

sua vez remetiam aos montes artificiais da mostra, revelan-

do até o que no começo da exposição ainda não se podia

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Mutações. Analogias. Fotografias 211

ver – o forno interior. A referencialidade fotográfica ficava

transformada, porque as fotografias funcionavam mais

como roteiro para o desenvolvimento da obra do que como

documentação.

Quase uma década depois, houve uma terceira obra com

fotografias. Refiro-me à terceira “homenagem” que prestaNuno a Oswaldo Goeldi, Mocambos (Para Goeldi 3 ), um con-

junto de sete quadros a partir de sete gravuras de Goeldi.

Nuno percorreu as cidades de São Paulo e Florianópolis em

busca de fachadas ou espaços exteriores que tivessem algu-

ma semelhança com os espaços desenhados pelas gravuras

de Goeldi. Os quadros são resultado da superposição da

gravura (e de um desenho em um dos sete casos) e da foto-

grafia análoga. Convivem em cada quadro duas imagens,

de diferentes materialidades, dissímeis, mas agora unidas.

O livro de mesmo nome que Nuno publicou em 2003 com

os sete quadros mostra também, lado a lado, cada gravura/

desenho e seu análogo fotográfico. A semelhança nunca é

evidente, em geral não há muito mais que um detalhe com-

partilhado: uma chaminé industrial em ambos; certa pers-

pectiva; a moldura no telhado de um edifício; a presença

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212 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

de umas galinhas. Tanto na homenagem a Goeldi como

em “Montes”, as fotografias não eram índice, mas analogia,

e essas analogias – parecidas mas diferentes, como o são

sempre as analogias – foram modificadas, por pinceladas

em Montes e pela interferência das gravuras de Goeldi em

 Mocambos (Para Goeldi 3 ).

Moldes, analogias, ou

o fotográfico sem fotografias

As fotografias não tornam a aparecer na obra de Nuno Ra-

mos, ainda que, como eu gostaria de propor, certas caracte-rísticas cruciais da materialidade e da ontologia fotográfica

comecem a organizar sua produção a partir de 1994. Ou seja,

precisamente depois do uso de imagens fotográficas em

111  e  Montes  e de seu posterior desaparecimento na obra

plástica do artista, com a exceção do projeto  Para Goeldi 3,

a fotografia entra, invisivelmente, como estrutura. Propon-

do-o assim, essas primeiras mostras usando fotografias se-

riam não o começo e fim de seu trabalho com o meio, mas

as primeiras aproximações, os inícios que deram lugar ao

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Mutações. Analogias. Fotografias 213

trabalho fotográfico sem fotografias, à ideia da fotografia

como um dos eixos invisivelmente estruturais do pensa-

mento de sua obra.

Em um ensaio de Alberto Tassinari que dá conta da

primeira década de trabalho plástico de Nuno, o crítico

encontra quatro “modos” com que ele enfrentou a neces-sidade de “salientar e problematizar a invenção na arte”,

através dos quais, “construiu… um invariante poético”. Es-

ses modos são, segundo Tassinari, “gestar, justapor, aludir,

duplicar” (op. cit., p. 29), e são os “moldes” as formas que

cristalizam a relação entre “modelos e cópias” (ibidem, p.

28), as figuras que atravessariam, como uma constante, uma

obra tão aparentemente díspar como a de Nuno e que dei-xariam em evidência que toda a sua obra é voltada para

a investigação do processo de criação. A busca do molde

seria, de diferentes modos, o “invariante poético” na pro-

dução de Nuno: o molde das torres de madeira que conti-

nham a cal prensada na mostra de 1987; os moldes de vidro

soprado, cheios às vezes de fumaça branca, outras de água

e cal, ou de vaselina, em 111 (1993) e em Milky Way  (1995);

as pranchas de granito e mármore encaixadas nas estreitís-

simas fendas do chão, como lápides, em Lajes, de 1995; o en-

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214 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

vio à Bienal de Veneza, em 1995, dos blocos de areia e sili-

cato com as marcas dos “fósseis” de pássaros incrustadas

neles e da imensa escultura “Craca” de alumínio fundido,

verdadeiro molde feito a partir de peixes, polvos, conchas,

flores, folhas, restos marinhos; os fornos e as duas casas de

vidro de1996

, construídas como bonecas russas; ou os dozefossos que copiavam o formato das pedras depositadas ne-

les em Matacão, de 1996; ou os vasos de cerâmica de Vaso

ruim, de 1998, cheios de vaselina e depois quebrados pelo

próprio artista, destruindo sua capacidade de modelagem;

ou as caixas de mármore com lâminas também de mármo-

re, nas múltiplas instâncias de Manorá, as quais, ao serem

encaixadas nas caixas, faziam transbordar a vaselina de queestavam cheias; ou os projetos  Para Goeldi, onde, com di-

ferentes métodos, a obra era criada usando uma ou várias

obras de Goeldi como molde, jogando com o trabalho do

serigrafista, que parte, sempre, de um molde.

Se é verdade que todas essas obras têm como matriz for-

mal o molde, creio que ao mesmo tempo poderíamos pen-

sar que todas são estruturadas a partir da fotografia. Não

da fotografia como objeto e matéria, mas da fotografia como

ideia, como conceito, como possibilidade ontológica e epis-

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Mutações. Analogias. Fotografias 215

temológica, da fotografia como operação analógica com

relação ao mundo. A que me refiro? Pensemos nas caixas de

areia que foram exibidas em Veneza: moldes de areia em

alto e baixo-relevo feitos a partir de aves, peixes, ossos, con-

chas, folhas e peles. Essas caixas são, com efeito, marcas

daqueles corpos e objetos. Parecem fósseis, restos petrifica-dos, achados de um arqueólogo. São, como a Craca, índi-

ces: signos que “furnish positive assurance of the reality”

[oferecem garantia positiva da realidade] (PEIRCE, op. cit.,

p. 25), que funcionam como garantias de que essa ave es-

pecífica, de que esse peixe único, de que essa concha e não

outra, todos existiram, foram reais e estiveram ali, onde in-

dica sua marca. O índice é, por isso, o signo mais distanteda abstração do símbolo, é sempre único e singular, nunca

geral: “The index is reduced to its own singularity; it ap-

pears as a brute and opaque fact, wedded to contingency –

pure indication, pure assurance of existence.” [O índice

é reduzido à sua própria singularidade; aparece como um

fato bruto e opaco, unido à contingência – pura indicação,

pura garantia de existência.] (DOANE, 2008, p. 5) Essas cai-

xas são também ícones, parecendo-se, em negativo, com os

corpos dos pássaros, e, por parecer-se, são também analo-

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216 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

gias, operando, como o faz sempre a analogia, fotografi-

camente. Essas caixas de areia funcionam como fotografias

em seu sentido mais indexical e icônico – registram a exis-

tência de uma coisa material, registram que essa coisa este-

ve nesse lugar e deixou sua marca, seu traço, se parecem

com essa coisa. Ainda que tanto a fotografia como esses qua-se fósseis ofereçam a segurança de que aquilo foi real, de

que aquilo existiu, ambos operam descontextualizados,

como suspensões de suas realidades e seus referentes, como

meras analogias. A fotografia, toda fotografia, está sempre

fora de lugar, recortada, nunca é a coisa em si, mas dela se

aproxima. As caixas de areia, expostas no chão de uma sala

de arte em Veneza, estão longe da praia, do mar, da areia edos bichos cujas marcas mostram. São moldes, são fotogra-

fias, são analogias.

Fantasmas. Juncos. Analogias.

Se nos guiamos pelo meticuloso site de Nuno Ramos, o

livro  Minha fantasma  nunca existiu. Na seção “Livros”

aparecem as capas e dados de edição de Cujo, O pão do cor-

vo,  Ensaio geral, Ó, O mau vidraceiro  e  Junco. Não aparece

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Mutações. Analogias. Fotografias 217

 Minha fantasma, ainda que, sim, tenha existido: é um pe-

queno livro de autor de 56 páginas, de tiragem de 105 exem-

plares, numerados e assinados pelo autor, como lemos

na última página do livro. Esse livro foi republicado como

o último texto em Ensaio geral: projetos, roteiros, ensaios, me-

mória, de2007

.O “livro fantasma” é um livro de formato quadrado,

de 19 x 19 centímetros, cuja capa e contracapa trazem cola-

das impressões coloridas de fotografias em papel mate. Na

capa vemos um quarto vazio, iluminado pela luz que entra

por uma janela no lado esquerdo da imagem. Na contra-

capa, outro quarto vazio, iluminado por uma luz interior,

uma janela de fundo através da qual não se vê nada alémdo reflexo interno do mesmo quarto. Em nenhuma das duas

fotografias se vê o espaço exterior, sublinhando assim um

desfecho. O livro é dividido em três partes: “Minha fantas-

ma”, “Meu cansaço” e “Meu mar”. Além dos três textos,

contém no total oito fotografias coloridas, seis no interior,

além das fotografias da capa e da contracapa. Das oito fo-

tografias, três são de quartos vazios, onde se podem obser-

var as paredes brancas, os pisos de madeira e uma janela

ou porta, sempre fechadas. Há outras duas fotografias onde

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218 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

não se vê um quarto inteiro, mas uma parte de uma parede,

sempre branca, vazia, à exceção dos dispositivos de ilumina-

ção. Nas outras três fotografias veem-se outra vez quartos

vazios – vazios do que geralmente poderia encher qualquer

quarto ou espaço de uma casa, como móveis, objetos, de-

corações ou livros. Na realidade, não estão vazios, apesarde a sensação que projetam ser essa, porque em cada uma

das imagens há um corpo masculino nu deitado sobre um

retângulo que foi pintado no chão do quarto – branco em

duas das fotografias, e preto em uma. O corpo nu também

está pintado, de branco quando jaz sobre o retângulo bran-

co, e de preto quando está sobre o retângulo preto, como se

esse corpo-cadáver/corpo-adormecido fosse parte do chão,uma imensa ruga, prega ou irregularidade do assoalho, uma

protuberância grotesca sobre a superfície lisa e limpa do

chão. O corpo nu rompe o vazio dos quartos dessas três fo-

tografias, mas ao mesmo tempo se mantém também, como

em todas as fotografias do livro, a ênfase no desabitado e

deserto de um vão, cavidade ou buraco. Esses quartos-vãos

sofrem interferência desses corpos que querem mimetizar-

se com suas superfícies, ocupados repentinamente por ma-

téria exterior, diferente da sua, mas passando a fazer parte

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Mutações. Analogias. Fotografias 219

de um mesmo espaço branco ou preto. Casas sem vida,

agora somente tumbas bem cavadas.

Apesar de os três textos não assinalarem nem deixarem

explícita nenhuma relação de filiação – poderiam ser três

contos, três ensaios, organizados como um conjunto hete-

rogêneo –, a recorrência de certas palavras nos três estabele-ce uma tênue mas certeira relação entre eles. Nos três textos

um eu sem nome, masculino, cuida dela em algum lugar

de São Paulo, enquanto “ela” sofre, doente de algum mal

obscuro, de um “humor negro” que a acomete. “Ela” ago-

niza – “Ela fenece, isso sim, lenta, não um bicho mas um

caule murcho, tombado, quase a terra onde o tronco vai

beber novamente”; “Ela está morrendo como um espelho,um azulejo”; “As suas lágrimas. São dias inteiros chorando”

(2000, pp. 11, 12, 24). Na segunda parte, “Meu cansaço”,

esse mesmo eu revela seu esgotamento físico, a extenua-

ção ante tanto cuidado dela, que o leva ao limite do fastio

e aborrecimento – “Agora eu peguei uma forma de desgos-

to, a palavra é essa. Meu cansaço” (idem, ibidem, p. 31).

A terceira e última parte, “Meu mar”, é, como diz o mesmo

eu, um “grito para ele”, uma busca desesperada do mar. Ne-

nhum mar específico, mas isso que é “continuidade”. O mar

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220 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

onde possa flutuar, deixar-se ir, dormir. O mar onde possa

afundar tudo o que aconteceu com “ela”. O mar que, como

diz, merece, depois de tudo por que passou. O mar com o

qual entra em comunhão, com o qual se comunica: “Pen-

so numa carta que gostaria de enviar a você. Não através

de você, tentando alcançar outra praia dentro de uma gar-rafa, mas a você mesmo, lançada em tuas ondas, em papel

comum que a tua espuma logo vai dissolver.” (2000, p. 51).

Que relação têm as fotografias com os três textos que

compõem o livro? Como compartilham as fotografias e o

texto as páginas de Minha fantasma? Em certo sentido, as

fotografias e os textos são independentes uns dos outros,

cada um operando por seu lado. Nenhuma das fotografiasilumina ou ilustra algum aspecto do texto, nem mostra algo

de alguma das três partes. Nenhuma das fotografias tem

legenda, não há nada que esclareça quem tirou a fotografia,

nem o que se vê nela. As oito fotografias configuram um

espaço e uma sorte de relato incerto, enigmático, de modo

semelhante ao que ocorre com os textos. As fotografias e

os textos literalmente compartilham o livro, como se  Mi-

nha fantasma  tivesse duas vias paralelas, autônomas uma

da outra. Apesar de independentes, o relato visual e o rela-

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Mutações. Analogias. Fotografias 221

to literário compartilham não somente sua moradia. Há

certa analogia entre as imagens e os textos: o corpo de um

homem fotografado como que sem vida, habitando sozi-

nho espaços domésticos, privados, que foram, como ele

mesmo, esvaziados de vida; o relato de um homem leva-

do ao esvaziamento de seu ser pelo esgotamento emocio-nal, psíquico e físico a que chegou. Em ambos os meios,

o sujeito masculino é mais um fantasma do que ele mes-

mo. Essa é a semelhança, a afinidade entre as fotografias

e os textos.

A crítica de arte Kaja Silverman sugere, como o ha-

via feito anos antes Michel Foucault, que a organização do

mundo a partir da individuação, da diferença, da identida-de e da unicidade é algo relativamente recente, produto de

uma organização do universo que começou com a filoso-

fia cartesiana e com a emergência do que Heidegger cha-

mou “representação” (SILVERMAN, 2009). Até o século XVI,

o mundo era entendido a partir da semelhança, da analo-

gia, do reflexo, da correspondência: “The Earth echoed the

sky, faces saw themselves reflected in the stars, and plants

held within their items the secrets that were of use to man.”

[A Terra ecoou o céu, os rostos se viram a si mesmos refle-

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tidos nas estrelas, e as plantas mantiveram entre seus itens

os segredos que eram de uso do homem.] (FOUCAULT, 1970,

p. 17) Cabe recordar as analogias cristãs entre esse mundo

e o reino dos céus, ou as analogias platônicas entre as có-

pias e as ideias, que Silverman rapida e corretamente as-

sinala que funcionavam a partir de hierarquias fixas e denoções de eternidade. Daquele período em que o principio

analógico claramente organizava o universo, a Silverman

interessa recuperar o livro das Metamorfoses, de Ovídio. Por

quê? Porque as analogias na obra de Ovídio, à diferença da

analogia cristã ou platônica, operam sem fortes hierarquias,

de modo mais igualitário, e além disso porque partem do

pressuposto da finitude: “Nature, ever renewing the world,creates new forms from old ones endlessly.” [A natureza,

renovando sempre o mundo, cria infinitamente novas for-

mas a partir de velhas.] (OVÍDIO, 2001, p. 258) A morte está

sempre presente. O livro de Ovídio, recordemos, oferece a

história de um mundo, contada dentro de uma cronologia

quebrada e de um gênero poético incerto, híbrido, cujo mo-

tor é ao largo dos quinze livros a transformação. “I intend

to speak of forms changed into new entities” [Pretendo fa-

lar de formas transformadas em novas entidades] (idem,

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Mutações. Analogias. Fotografias 223

ibidem, p. 1), lemos nas primeiras linhas do poema. Trans-

formação, mutação, hibridez, metamorfoses, todo corpo

surge do mesmo corpo, da mesma matéria: uma metafísica

da semelhança, da analogia. A história da modernidade, a

partir do século XVI e XVII, privilegiou a diferença e não

a semelhança, mas Silverman recupera a possibilidade depensar numa modernidade menor, numa organização do

universo a partir do século XVI que operou a partir da ana-

logia, resgatando para essa genealogia e essa modernida-

de menor uma série de artistas e pensadores – Swedenborg,

Emerson, Darwin, Fourier, Balzac, Baudelaire, Warburg,

Proust, Valéry, Benjamin, Sebald, Godard, Richter, Cole-

man, Malick. Essa modernidade menor em verdade se li-vraria do peso do progresso, da História e da teleologia,

e poderia deixar de ser modernidade.

Nessa linhagem que privilegia a semelhança e a analo-

gia, permitindo a metamorfose, estaria também Nuno Ra-

mos. Seu livro Cujo, uma sorte de mapa poético de sua “arte

como um todo”, assinala a centralidade da analogia repeti-

das vezes, de fragmento em fragmento: “Hoje vi um lagar-

to. Não um lagarto, uma folha que parecia um lagarto. Não

uma folha, uma pedra que parecia uma folha. Então é uma

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224 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

pedra, pensei desinteressado.”; “A diferença entre cada grão

de areia não importa. A diferença entre cada duna não im-

porta. A diferença entre cada camelo não importa. É tudo

um deserto… Entre cada morto não importa… Entre nós

dois não importa a diferença. A diferença não importa”;

“Devolver a cada pele as outras que perdeu, a fumaça àágua, à gasolina, ao vidro. A pele da zebra deve encrespar-

se, áspera como o couro do tatu ou frágil como uma folha

seca e quebradiça. A troca constante entre as qualidades

das peles devolveria ao mundo sua potencialidade original:

a de tudo tornar-se a aparência de tudo, sem privilegiar

nenhum momento específico… O mesmo com as cores, as

palavras, as notas musicais… Assim o todo se faria o tempotodo, numa monotonia variada, sem dar tempo ou nome

aos seus pedaços.” (1993, pp. 12, 21, 39, 67). Em Minha fan-

tasma, as analogias são várias: entre o ser e seu fantasma;

entre o que “ela” era e o que “ela” é; entre as fotografias e

os textos. O livro pode ser entendido como o relato de uma

metamorfose: é o relato visual e verbal de um homem que

dia a dia vai deixando de ser ele mesmo, que vai transmu-

tando e transformando-se em seu próprio fantasma, como

consequência do esgotamento físico e espiritual que lhe vai

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Mutações. Analogias. Fotografias 225

gerando a doença de uma (sua) mulher que por sua vez vai

perdendo, pela enfermidade, corpo, e vai transformando-

se em fantasma de si mesma.

Tiraram algumas nesgas do alto das pernas dela, um la-

nho ou um tufo de pelos. Magra, ela ainda está quente,

como um corpo vivo. Seu peso é mais um peso do quealguém, respira, e se os têm abertos – poros e olhos – al-

gumas concavidades, onde havia carne, foram cavadas pela

mão de quem – do senhor das amarguras, ou desencanto,

ou pelo desejo de encontrar uma planície branca, mesmo

que fosse a morte. (RAMOS, 2000, p. 11)

O horizonte, para ambos, é a morte. E o único lugar de re-

novação é o mar. A praia. O limite do incomensurável. Aliflutuará, “ela” convalescerá, e o mundo e ele se renovarão.

Apesar de não aparecer na seção “Livros” da página

web de Nuno Ramos,  Minha fantasma teve não uma edi-

ção, mas duas. Na realidade, é difícil dizer que sejam iguais,

que a edição fantasma de 2000 e a publicação de 2007 se-

jam o mesmo livro. São, em todo caso, duas montagens, di-

ferentes, de uma obra. São também analogias, como o são

o texto de  Monólogo para um cachorro morto  e o filme de

mesmo nome, ou a instalação Maré mobília e o filme feito

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226 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

com os elementos da instalação, ou o texto Minuano (diário

de um trabalho) e a obra permanente Minuano, ou 111 e 24

horas 111. No caso de  Minha fantasma, mudaram muitas

coisas entre 2000 e 2007.1 Até o nome mudou. Em 2007, ao

título de 2000 se agrega um parêntese: Minha fantasma (um

diário). O livro ainda é composto das mesmas três partes, enão há mudança no texto em si, e em 2007 segue havendo

fotografias, mas são nove, não oito, e somente seis delas

apareceram na primeira edição, de 2000. Ademais, em seu

aparecimento em Ensaio geral, as imagens já não são colo-

ridas, mas em preto e branco.

Como no caso de  Minha fantasma, as fotografias que

aparecem em Junco – o livro de poemas publicado em 2011

– são uma parte integral do projeto. Assim esclarece o pró-

prio autor na nota final, depois do último e longo poe-

ma 43:

Escrevi esses poemas ao longo de quase quatorze anos,

com grandes períodos de esquecimento, mas sem perdê-

los completamente de vista. Achei que devia assinalar asdatas. As fotografias foram feitas ao mesmo tempo que

eles. Sempre imaginei as duas coisas juntas. (2011, p. 118)

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Mutações. Analogias. Fotografias 227

Se fotografias e poemas, ao longo de seu período de

gestação, foram pensados juntos, e produzidos de modo

simultâneo, então não se podem ler os poemas sem as fo-

tografias, nem as fotografias sem os poemas.

 Junco é composto de 43 poemas e nove pares de foto-

grafias em preto e branco. Em todos estes pares de imagens,a fotografia impressa na folha esquerda é de um cachorro

morto, jogado em uma rua, autoestrada ou caminho, e a

da folha direita é de uma árvore, junco ou imenso galho,

jogado na areia. As fotografias operam entre si através de

duas forças contrárias: por um lado, a analogia – os cachor-

ros parecem juncos, organismos vegetais mortos, e os jun-

cos adquirem, expostos junto aos cachorros mortos, na

mesma disposição, vida animal; e por outro lado a diferen-

ça – “mesmo que as fotos se apresentem em disposição qua-

se idêntica, parecendo reforçar comparações, é impossível

não ver a matéria diversa de que são feitos animal e caule”

(SÜSSEKIND, 2011, s/n). A margem do mar, a praia – “praia,

praia, praia, praia” (RAMOS, 2011, p. 115), como lemos no

último verso do livro –, é o palco de todos os poemas, nos

quais um sujeito perambula por ali, falando ao mar – “mar

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228 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

dos afogados, mar também dos vivos / escuta teu murmú-

rio no que eu digo” (idem, ibidem, p. 11). Ali ele fala e ob-

serva, principalmente observa tudo o que o mar devolve, o

que o mar vomita, toda a vida morta que habita a margem,

corpos e matéria que perdem seu contorno e se parecem

sempre com outros corpos, com outras matérias: “Não seifazer do cão uma pedra / dura, dá alga um jacarandá / mas

sei que alguém / maré ou lua / faz isso por eles” (idem, ibi-

dem, p. 23), lemos nos primeiros versos do sétimo poe-

ma. Ali, na praia, há uma regra: “semelhança excessiva /

entre partes distintas”; “Aqui tudo começa / e fica parecido

com” (idem, ibidem, pp. 32, 55). Ali nada tem identidade

fixa: “Meu próprio pulmão vira alga” (idem, ibidem, p. 32).A praia – a margem – é o lugar privilegiado para a organiza-

ção do mundo em sua dimensão analógica, como milagre

e como horror. É ali que a poética de Nuno volta diversas

vezes. A poética de Nuno. A epígrafe de Junco já revela tudo:

“The sea has nothing to give / but a well excavated grave.”

[O mar não tem nada que oferecer / além de uma bem ca-

vada sepultura.]

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Mutações. Analogias. Fotografias 229

Limite. Margem.

Em  Minha fantasma, como na obra plástica de final dos

anos 90 em diante, o molde curiosamente já não funciona

como matriz formal que organiza os elementos hetero-

gêneos e a multiplicidade de propostas de Nuno Ramos.

Curiosamente porque Minha fantasma contém fotografias,que, como vimos ao longo deste livro, são uma modalida-

de de molde. A matriz passou a ser o limite. A terceira parte

do livro, “Meu mar”, pode servir-nos como primeira apro-

ximação ao limite. O fantasma das primeiras duas partes

do livro, esse sujeito de enunciação masculino que está can-

sado, esgotado, fragilizado, convivendo e cuidando dela,

pensando, buscando, o mar, o “vai e vem monocórdio onde

nada se repete”, “o mar abstrato onde possa dormir – onde

possa ser algo diverso do meu cansaço sem sono”. “Morrer

afogado seria morrer de alegria” (2000, pp. 47-48). É ali, onde

começa o mar, ali no limite entre a terra e o mar, que tudo

poderá ser sepultado e que algo novo poderá emergir:

Tudo o que vivi deve afundar ali – cada dia, cada data,

cada momento de amor verdadeiro. O medo de que ela

morresse (ainda tenho), o medo de que ela vivesse, o medo

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230 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

pelas crianças, o medo de não estar sentindo nada, tudo

deve afundar sem retorno dentro da espiral salgada, como

um casco de ferro partido. Logo novas formas de vida vão

aderir a estes escolhos, restos do que foi importante para

mim […]. Desejo isto, esta continuidade sem nome, como

uma morte boa… por isto procuro o mar. (2000, p. 48)

Não é uma questão de água, mas de mar, porque o mar,

à diferença do lago, cuja água é “doce e límpida”, é uma en-

tidade, uma matéria viva – “o mar vive, respira, encrespa,

espalha seus humores desde a borda do outro continente”

(idem, ibidem, p. 50). É a margem, o limite, o lugar onde os

materiais se mesclam, se contaminam. Esse limite, o do mar

– que aparecerá como matriz, insisto, na obra mais recentede Nuno –, é móvel: o vaivém que torna impossível uma

clara demarcação, que nunca permite fixar claramente a di-

ferenciação entre uma matéria (a água) e a outra (a areia, as

rochas, a terra). Esse limite não é somente o limite do mar,

o limite da indiferenciação de que fala Rancière. É tam-

bém, e talvez principalmente, o limite do mundo.

É por essa necessidade de passagens, de avenidas de saí-

da e entrada de uma coisa a outra, que a margem é um dos

lugares privilegiados a que volta a obra de Nuno. Os jun-

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Mutações. Analogias. Fotografias 231

cos nas fotografias publicadas em Junco estão todos à mar-

gem do mar, como corpos cuspidos pela imensidão aquá-

tica. Em  Maré mobília, a cama, a mesa e o armário foram

encaixados na areia justo na margem onde eventualmente

são desencaixados pela subida da maré. A mesma operação

sucede com o “caixão” em Maré caixão. No vídeo Casco, oscascos encaixados dentro de outros cascos, todos de em-

barcações antigas e descuidadas de madeira, à margem do

mar, são destruídos pelo avanço da água. A imensa Craca

enviada à Bienal de Veneza em 1995, escultura feita com

todos os bichos e algas marinhas que só podem haver sido

o depósito deixado numa margem depois de uma tempes-

tade. A margem dos caminhos em que sempre aparecemos cachorros mortos (e há muitos deles na obra de Nuno),

seja nas fotografias de Junco, seja em Monólogo para um ca-

chorro morto tanto em sua versão fílmica como na textual.

Se a margem é produtiva para a obra de Nuno – ali literal-

mente se “produz” uma quantidade importante de suas

obras, configurando assim uma das séries em que a organi-

zaríamos –, é porque a margem é o limite entre uma coisa

e outra, é a separação mas também o encontro entre essas

coisas, é a zona incerta que é mar e terra ao mesmo tempo.

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232 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

Dentro das muitas margens, há um privilégio para a mar-

gem do mar, limite do mundo, e limite da representação.

Essa margem movediça, incerta, instável é o limite do hu-

mano. É o incomensurável. Esse “todo” que seria a “arte

como um todo” é o contraponto – dialético – da terra e da

vida. Tumba.

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Notas 233

Notas

1. A escrita assume a categoriade prática artística

1 Ver em especial o capítulo “A prosa do mundo”. In: FOU-

CAULT, Michel.  As palavras e as coisas. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.

2 Ver CHKLOVSKI, Viktor. “Art as Technique”. In: Russian For-malist Criticism: Four Essays. Lincoln: University of Nebraska

Press, 1965.

3 Ver David Oubiña: “Cronofotografías literarias”. In: OUBIÑA,

D. El silencio y sus bordes. Buenos Aires: FCE, 2011; e HORNE,

Luz. Literaturas reales. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2012.

4 Toda a obra de Jacques Rancière da última década explora

esta proposta. Ver, entre outros, Le partage du sensible: Esthé-

tique et politique, Paris, La Fabrique, 2000; Le destin des images,

Paris, La Fabrique, 2003; Aisthesis. Scenes du régime esthétique

de l’art , Paris, Galilée, 2011.

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234 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

5 No original: “The index asserts nothing; it only says ‘There!’”

São da autora as traduções para o português dos textos cujas

referências bibliográficas estejam em outra língua.

6 Publicado originalmente em Quarterly Review  (1857).

7 Ver BAZIN, André. “La ontología de la imagen fotográfica”.

In: ¿Qué es el cine?. Madri: Rialp, 2001; e SONTAG, Susan. On

 Photography. Nova York: Farrar, Starus and Giroux, 1977.8 Valeria de los Ríos estudou este aparecimento da fotografia

na literatura de fim de século ( Espectros de luz. Tecnologías vi-

suales en la literatura latinoamericana. Santiago de Chile: Cuar-

to Propio, 2011).

9 Para um estudo do naturalismo na América Latina, ver o tra-

balho de Gabriela Nouzeilles:  Ficciones somáticas: naturalis-

mo, nacionalismo y retóricas médicas del cuerpo. Rosario: Beatriz

Viterbo Editora, 2000.

10 O texto de Poe foi publicado originalmente em 15 de janeiro

de 1840 no  Alexander’s Weekly Magazine.

11 Ver o trabalho de Geoffrey Batchen sobre a concepção da fo-

tografia para um excelente estudo sobre a recepção e as ideias

em torno da fotografia em suas origens. Ver o trabalho de Va-

leria de los Ríos para um estudo sobre a fotografia no campo

letrado latino-americano do século XIX. Burning With Desire.The Conception of Photography.  Cambridge, MA: MIT  Press,

2009.

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Notas 235

12 Para um estudo da fotografia espírita, ver os ensaios reunidos

em The Perfect Medium. Photography and the Occult. New Ha-

ven: Yale University Press, 2005  (org. CHÉROUX, Clément;

FISCHER, Andreas) Para um estudo sobre a fotografia de mor-

tos, ver o trabalho de Diego Fernando Guerra: “Con la muerte

en el álbum. La fotografía de difuntos em Buenos Aires du-

rante la segunda mitad del siglo XIX”. In: Trace, n. 58, Buenos

Aires, dezembro de 2010.

13 Para a diferença entre os três tipos de signos – ícone, índice,

símbolo – desenvolvida pelo semiótico norte-americano Peir-

ce, fundamental para os estudos sobre a fotografia, ver o vo-

lume 2 de Charles Peirce. The Writings of Charles S. Peirce:

a Chronological Edition. Bloomington: Indiana University

Press, 1982.

14 Em 1931, Walter Benjamin publica um ensaio em que se per-

gunta sobre o impacto que teve a fotografia sobre as sensi-

bilidades modernas. Ali ele escreve que “É uma natureza

diferente que fala à câmera e depois fala ao olho: tão diferen-

te, que em lugar de um espaço conscientemente entrelaçado,

unido por um homem no mesmo lugar, entra um espaço

mantido unido inconscientemente. Assim como é possível

dar uma razão de como as pessoas andam apenas do modo

mais impreciso, assim trambém não sabemos nada de defini-

do das posições envolvidas na fração de um segundo quandoo passo é dado. A fotografia, no entanto, com seus lapsos de

tempo, alargamentos etc., torna possível tal conhecimento.

Através desses métodos, uma pessoa aprende primeiro sobre

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236 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

essa óptica inconsciente, enquanto outra aprende sobre os

caminhos do inconsciente através da psicanálise”.  In: Alan

Trachtenberg (ed.), Classic Essays on Photograph. New Haven:

Leete’s Island Books, 1980, pp. 199-216.

15 Ver o exaustivo ensaio de Daniel Balderston sobre o conto

hispano-americano do século XX, onde analisa uma série de

contos – de Cortázar, Onetti, Ocampo, Poniatowska, Piñera

e Borges – a partir da ótica proposta por Cortázar. “The Twen-

tieth-Century Short Story in Spanish America”. In: The Cam-

bridge History of Latin American Literature. Roberto González

Echevarría & Enrique Pupo-Walker (eds.), Nova York: Cam-

bridge University Press, 1996, pp. 465-496.

16 A bibliografia sobre a arte conceitual é extensa. Para suas pri-

meiras manifestações, ver o artigo de Henry Flynt “Concept

Art”, que apareceu no que foi a primeira edição da revista

 Fluxus, em 1963, mas que em suas primeras edições se cha-

mou An Anthology . Ali começa a usar-se o termo “concept art”,

associado à arte experimental da cena nova-iorquina. Ver

também o ensaio em três partes de Joseph Kosuth para o tex-

to que sistematizou a discussão sobre a arte conceitual, e os

primeiros números da revista Art-Language. A Journal of Con-

ceptual Art  a partir de maio de 1969.

17 Para um estudo abrangente destas transformações no con-texto latino-americano, ver CULLEN, Deborah (ed.). Arte Vida.

 Actions by Artists of the Americas 1960-2000. Nova York: Mu-

seu do Bairro, 2008.

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Notas 237

18 Ver MASOTTA, Oscar. “Después del pop, nosotros desmate-

rializamos”.  In: Conciencia y estructura. Buenos Aires: Julián

Álvarez, 1968, que foi originalmente uma conferência dada

no Instituto di Tella em 1967; e Lucy Lippard, The Six Years:

 Dematerialization of the Art Object from 1966-1972. Nova York:

Praeger, 1973.

19 Para uma história da arte conceitual na América Latina, ver

CAMNITZER, Luis. Conceptualism in Latin American Art: Didac-

tis of Liberation. Austin: University of Texas Press, 2007; RAMÍ-

REZ, Mari Carmen. “Blueprint Circuits: Conceptual Art and

Politics in Latin America”. In:  Latin American Artists of the

Twentieth Century . Nova York: Museum of Modern Art, 1993,

e “Tactics for Thriving in Adversity: Conceptualism in Latin

America, 1960-1980”. In: Global Conceptualism: Points of Origin.

Nova York: Queens Museum, 1999; e GIUNTA, Andrea. Van-

 guardia, internacionalismo y política: Arte argentino en los añossesenta. Buenos Aires: Paidós, 2001.

20 A Bienal foi pensada como o modo de colocar a arte brasilei-

ra em contato e à altura do resto do mundo, de trazer a van-

guarda artística a São Paulo e transformar assim o país, e essa

cidade em especial, em parte do centro do mundo artístico.

A primeira Bienal, de 1951, mostrou obras de Picasso, de Gia-

cometti, de Magritte, que eram vistas pela primeira vez no

Brasil. Lembremos, como mero exemplo, que a primeiraviagem que o “Guernica” de Picasso fez foi ao Brasil para a

segunda Bienal, em 1953. Essa internacionalização, dessa mag-

nitude, era impensável no resto da América Latina. Por outro

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238 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

lado, devemos lembrar também o lugar fundamental que teve

o suíço Max Bill no desenvolvimento da arte concreta no

Brasil, essa arte que, em suas muitas mutações, se tornou uma

das linguagens brasileiras por excelência, e brasileiro por cos-

mopolita.

21 O recente livro – a partir de uma exposição de mesmo nome– The Latin American Photobook demonstra que os livros fo-

tográficos são um gênero que teve muita vida na AméricaLatina, com uma grande variedade. Ver FERNÁNDEZ, Horacio.The Latin American Photobook. Nova York: Aperture, 2011.

22 Ver o trabalho de Juliet Koss para uma análies da relação en-tre as vanguardas, o modernismo e Wagner: Modernism after 

Wagner . Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.

23 Esta é a ideia central da excelente tese (inédita) de Guilher-

me Wisnik sobre as relações e expansões entre arte e arquite-tura, especialmente o primeiro capítulo, para uma discussão,

em outra área, da diferença entre as vanguardas e a culturacontemporânea (Guilherme Wisnik, Dentro do noveiro: diálo-

 gos cruzados entre arte e arquitetura, Tese, Arquitetura e Urba-

nismo, FAUUSP, Universidade de São Paulo, 2010  [inédita]).

24 Tomo emprestada a frase “fazer soar a língua” de um extraor-

dinário ensaio de Alan Pauls sobre Osvaldo Lamborghini.Pauls, por sua vez, toma a frase do ensaio de Gilles Deleuze

sobre o balbuciar. Ver: PAULS, Alan. “Lengua, ¡sonaste!”. In: Babel, n. 9, 1989, pp. 5-7; DELEUZE, Gilles. “Bégaya-t-il”.In: Critique et Clinique. Paris: Minuit, 1993, pp. 135-143.

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Notas 239

25 Uso aqui a noção de esfera e de campo de Bourdieu. Ver Bour-

dieu. The Field of Cultural Production. Nova York: Columbia

University Press, 2003.

2. A fotografia da história

1 O trabalho de Andrew Dempsey sobre a fotografia de Rulfo

oferece os contextos mais extensos e detalhados do arquivoe da história de sua circulação. Ver: DEMPSEY, Andrew. “La

discreción de Juan Rulfo. Reflexiones sobre uma fotografía:

mujeres de Oaxaca recogiendo café”. In: RULFO, Juan, Oaxaca,

México DF: Editorial RM, 2009, pp. 34-48.

2 Agradeço a Marilia Martins por ter-me assinalado esses apa-

recimentos prévios nos textos de Benjamin sobre literatura.

3. Os limites do livro

1 No caso chileno em particular, podemos recordar o trabalho

sobre o sujeito na obra de José Donoso e na de Juan Luis

Martínez, radicalizadores do romance nos anos 60 e 70. Re-

cordemos, por exemplo, o modo como os protagonistas dos

romances de Donoso são sempre personagens cindidos,

travestidos, desdobrados, disfarçados: a Manuela em El lugar 

sin límites, travesti que dirige o prostíbulo no povoado doOlivo; ou as deconstruções e mutações de Humberto Peñaloza

em El obsceno pájaro de la noche. Na obra de Juan Luis Mar-

tínez, em especial em  La nueva novela, encontramos a pro-

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240 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

posta mais radical quanto à desarticulação do narrador e à

destruição – como seu título indica – do gênero romanesco.

O livro é um enorme mosaico de citações visuais e verbais,

de fragmentos, coleção de refugos do passado. Na capa, o no-

me do autor aparece duas vezes – “Juan Luis Martínez” pri-

mero, abaixo do título, e, numa terceira linha, “Juan de Dios

Martínez”. Ambos os nomes estão riscados, anunciando as-

sim, desde o começo, a ausência de visão única e monoló-gica do mundo do texto que haveria ocupado o narrador,

mas também o autor. “O livro não era suficiente”: este ditame

bem poderia resumir o impulso do livro, que nas palavras de

Laura García Moreno é exemplo de que “a produção literária

deve inventar novos alfabetos, traçar novas rotas”, porque

“sobreviver (como literatura) paradoxalmente implica renun-

ciar à ideia do livro em sua forma convencional, redefini-lo

como um arquivo heterogêneo e híbrido, um espaço ambí-guo, não privado, marcado por interseções, desvios e aciden-

tes entre diversas formas discursivas” (GARCÍA-MORENO,

2006, p. 440). Já em Donoso e Martínez então, para só men-

cionar dois casos-chave da narrativa chilena que precedeu à

emergência de Eltit no campo literário, encontramos a uni-

dade do sujeito fraturada, e o narrador destituído. Sem sujeito

unificado, centrado, sem narrador organizador, o livro busca

uma ruptura de seus próprios limites.

2 Ver o trabalho de Josette Féral sobre teatralidade, em especial

“Theatricality: The Specificity of Theatrical Language”. In: Sub-

Stance. Wisconsin, vol. 31 2/3, issue 98/99, 2002, pp. 94-108.

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Notas 241

3 O trabalho de Guy Debord e dos “situacionistas” franceses

ressoam com o projeto de Manuscritos. O trabalho do grupo

situacionista também foi claramente um referente para o que

proporão as ações de arte – o grupo C.A.D.A. e seus precurso-

res, as brigadas Ramona Parra. Ver o clássico texto de Debord:

The Society of the Spectacle. Detroit: Black & Red, 1970.

4 No original: “Anal’iza la trama=dura de la piel: la mano prende

y la / fobia es/garra.”

5 “Muge/r/apa y su mano se nutre final-mente el verde

des-ata y maya se erige y vac/a-nal su forma.”

6 “(En relación al corte de la fotografía)/ ¿Se representa en sí

mismo el corte como en la propia fotografía? Más bien se lo

fija como tal. La representación se da en la medida que se

actúe sobre él. / Por ejemplo, el trazado del corte es un surco

sobre el que se opera evidenciándolo de ese modo como unaseñal. Empero, al estar como un surco, se vuelve trinchera o

parapeto bajo el cual se protege o se esconde una actuación.

/ Como surco, está hundido bajo una superficie que ha sido

penetrada. Si se lo devuelve fotográficamente se lo aplana en

el rigor de una nueva superficie que solamente será rota por

el ojo que corta allí su mirada. /¿Y el ojo entonces? / El ojo

que lo lee, errático, sólo constreñido por su propio contor-

no, se encarcela en una lectura lineal. / El ojo que recorre lafotografía se detiene ante el corte (su corte) y reforma la mi-

rada ante una molesta, impensada interrupción. / ¿Así el cor-

te? / Trompe l’oeil.”

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7 “Repte sábanas blancas sobre las letras hospitalarias y las ma-

nos de esos miserables interrumpan el suero, desaten las ven-

das y dejen el compartimento a oscuras.”

4. Escrever sem escrever =Fotografar sem fotografar

1 Ver LINK, Daniel. “Post-Scríptum”. In: BELLATIN, Mario. Con-

dición de las flores. Buenos Aires: Entropía, 2008, pp. 135-136;

PAULS, Alan. “El problema Bellatin”. Disponível em www.

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de crítica literaria latino-americana, n. 68, 2008, pp. 201-210;MACAYA DONOSO, Ángeles. “’Yo soy Mario Bellatin y soy de

ficción’ o el paradójico borde del autobiográfico en el  gran

vidrio (2007)”. In: Chasqui, 40:1, 2011, pp. 96-110.

2 A bibliografia é extensa, mas poderia assinalar-se somente

alguns dos exemplos que mais repercussão tiveram na histo-

riografia literária da região: SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é 

longe daqui. O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989; LUDMER, Josefina. El género gauchesco: un trata-do sobre la pátria. Buenos Aires: Sudamericana, 1988, e El cuerpo

del delito: un manual. Buenos Aires: Perfil, 2009; GONZÁLEZ

ECHEVERRIA, Roberto.  Myth and Archive. A Theory of Latin

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Notas 243

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dernismo: by Exquisite Design. Nova York: Cambridge Univer-

sity Press, 1997; MAGUIRE, Emily. Racial Experiments in Cuban

 Literature and Ethnography. Gainesville: University Press of Flo-

rida, 2011.

3 PAULS, Alan. Op. cit.4 “Geralmente se pensa, e eu ousaria dizer geralmente se pensa

de modo correto, que isso a que se poderia chamar o uso

afirmativo de um termo é básico – que, para compreender

‘x’, precisamos saber o que é ser x, ou ser um x, e que o

conhecimento disso nos informa sobre o que é não ser x,

não ser um x. Mas com o “real”... é o negativo o que dá as

ordens. Ou seja, um sentido definido une-se à asserção de

que algo é real, um real tal e qual, apenas na consideração deum modo específico em que poderia ser, ou poderia ter sido,

NÃO real. ‘Um pato real’ difere do simples ‘um pato’ [a duck]

apenas porque é usado para excluir vários modos de não ser

um pato real – mas um estúpido, um brinquedo, uma ima-

gem, uma armadilha etc., e, ademais, não sei como enten-

der a asserção de que é um pato real a menos que eu saiba

exatamente o que, nessa ocasião particular, o falante tem em

mente para excluir. [...] a função do ‘real’ não é contribuirpositivamente para a caracterização de algo, mas excluir pos-

síveis modos de ser não real – e esses modos são, ao mesmo

tempo, numerosos para tipos particulares de coisas, e sujei-

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244 DEPOIS  DA   FOTOGRAFIA 

tos a ser muito diferentes para coisas de diferentes tipos. É a

identidade da função geral combinada com a imensa diversi-

dade em aplicações específicas o que fornece à palavra ‘real’,

à primeira vista, a característica desconcertante de não ter

sentido único, nem ainda ambiguidade, mas uma quantida-

de de sentidos diferentes.” (AUSTIN, 1962b, pp. 70-71)

5 Ver GIUNTA (2001) e CAMNITZER (2007) para uma discussão

mais detalhada destas e de outras obras da arte conceitual

latino-americanas que se poderiam pensar como “performa-

tive speech acts”.

5. Mutações. Analogias. Fotografias

1  Minha fantasma e Minha fantasma (um diário) são a obra mais

íntima de Nuno Ramos até esta data. Isso se torna evidente

com a nota prévia, na segunda montagem ou “projeto” (para

usar a linguagem de Nuno): “É o diário de minha convivência

com um quadro sério de depressão de minha mulher, Sandra

Antunes Ramos.” (2007, p. 366); e com o acréscimo parenté-

tico que ganha em seu segundo aparecimento. Se ali foi reve-

lado um enigma na revelação da relação da obra com uma

realidade externa a ela, e, ademais, com um nome próprio

exibido, exibindo a singularidade do particular, na primeira

montagem tudo isso era uma zona opaca. Os três textos são

narrados numa fortíssima primeira pessoa.

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Sobre a autora 

Natalia Brizuela é professora de literatura, cinema e artes

visuais na Universidade da Califórnia, Berkeley. Autora de

numerosos ensaios, publicou Fotografia e Império. Paisagens

 para um Brasil moderno (Companhia das Letras, 2012) e co-

editou Y todo el resto es literatura. Ensayos sobre Osvaldo Lam-

borghini (Interzona, 2008). Atualmente, prepara um volumeespecial do Journal of Latin American Cultural Studies, dedi-

cado aos fotógrafos argentinos Grete Stern e Horacio Coppo-

la, e um livro sobre políticas e poéticas do tempo na cultura

contemporânea.

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