Depois Do Gelo Vol. 02 - Steven Mithen

download Depois Do Gelo Vol. 02 - Steven Mithen

of 110

Transcript of Depois Do Gelo Vol. 02 - Steven Mithen

Volume 02 Europa

13 Pioneiros nas Terras do Norte A recolonizao do noroeste da Europa, 20.000 12.700 a.C.

A chacina de corpos humanos. Uma lmina de slex corta fatias da carne e tendes, primeiro removendo o maxilar inferior e depois a lngua de um rapaz. Outro foi escalpelado. Um terceiro corpo jaz nu, de bruos, numa poa de sangue, as costas abertas ao meio e rasgadas por instrumentos de pedra. O luar brilha na caverna, iluminando os caadores vestidos de peles e manchados de sangue que brandem os instrumentos. Acocorado dentro de um escuro recesso, John Lubbock tem tanto medo de estar ali quanto de sair. a Caverna Gough, no sul da Inglaterra, numa noite de outono em 12.700 a.C. Do lado de fora, os penhascos de calcrio do futuro Desfiladeiro de Cheddar, e alm, uma paisagem varrida pelo vento, com btulas cintilando no gelado ar da noite. Os homens so caadores da era glacial pioneiros nas terras do norte da Europa, depois que o grande congelamento da era do gelo chegou ao fim. Lubbock rasteja despercebido pelos caadores, cujos rostos curtidos pelo tempo se escondem atrs de cabelos compridos e

barbas emaranhadas. Ao avanar pelo desfiladeiro, ele arrepia-se no enregelante ar noturno; o mato range, surge uma nuvem a cada respirao. O silncio profundo, o ar perfumado de pinho. Agora ele precisa retomar suas viagens, pois mais uma fatia da histria o aguarda, um perodo de importante mudana, quando a Europa se transforma num continente de florestas e agricultores. Aps minha ltima visita Caverna Gough, na primavera de 2.000 a.C., tomei uma trilha de concreto sob quentes lmpadas eltricas at uma loja de suvenires que vendia mamutes e dinossauros de plstico. Do lado de fora, outros visitantes pagavam e entravam na caverna, passando por uma catraca. Estavam vidos por ver estalactites e rios subterrneos; alguns esperavam ver os morcegos residentes. Poucos sabiam da carnificina humana que um dia ocorrera dentro da caverna. Para mim, a Caverna Gough fora um lugar de interesse ao mesmo tempo histrico e arqueolgico uma das primeiras localidades onde arquelogos do sculo XIX encontraram traos de um passado da era glacial. Pelos padres de hoje, as primeiras escavaes foram inteiramente estarrecedoras, e na certa destruram mais provas do que recuperaram. No deixaram mais que pequenas migalhas de sedimentos para os arquelogos atuais, que hoje complementam suas ps e enxadas com uma bateria de tcnicas cientficas. Em 1986, Roger Jacobi, especialista em ocupao da era glacial na Gr-Bretanha, escavou uma dessas migalhas. Num pequeno depsito perto da entrada da caverna, encontrou instrumentos, restos de animais esquartejados e 120 pedaos de ossos humanos. Jill Cook, do Museu Britnico, examinou os ossos e descobriu que tinham fortes incises. Sob um microscpio de alta potncia, constatou que esses sulcos continham reveladores arranhes paralelos prova conclusiva de que tinham sido feitos por instrumentos de pedra. A posio e sentido de cada corte indicavam quais msculos tinham sido cortados e exatamente como os corpos de quatro adultos e um adolescente separados. Canibalismo parece a explicao mais provvel. Alguns dos ossos com marcas de cortes estavam queimados, sugerindo que a carne humana fora assada e comida. Tinham sido jogados fora nos entulhos da ocupao, entre ossos de animais e instrumentos quebrados. Podemos apenas especular se as vtimas foram deliberadamente mortas ou morreram de causas naturais. Os ossos de animais da Caverna Gough nos dizem que tambm ocorreu outra atividade: a remoo de tendes dos ossos de cavalos, provavelmente para serem usados como cordas e fios na costura de sapatos e roupas. E assim encontramos um quadro de domesticidade mundana lado a lado com carnificina humana. A Caverna Gough apenas um dos vrios stios arqueolgicos na Europa que oferecem provas da recolonizao de paisagens do norte ao chegar ao fim a era glacial. Essas paisagens tornaram-se desertos polares quando a era glacial atingiu o auge no LGM, abandonadas no apenas por pessoas, mas pelos mais resistentes animais e plantas. com a recolonizao dessas terras que a histria da Europa deve comear, uma histria de 15 mil anos, que dura at a chegada de uma segunda leva de migrantes os primeiros agricultores. Mas esses agricultores continuam muito distantes no tempo, pois comeamos no LGM, quando a agricultura continuava quase desconhecida em todo o mundo e o norte da Europa era uma terra de geleiras, deserto polar e tundra. A histria de como isso foi devolvido ao domnio da experincia humana comea no sul, onde os povos sobreviveram aos extremos da era glacial. Eles tinham-se assentado nos vales do sul da Frana e da Espanha, vivendo da caa de rena, cavalo e biso. Seus invernos eram rigorosos, com temperaturas caindo a menos de 20C. Embora se tivesse

criado uma arte admirvel, como as pinturas no interior de Pech Merle, as pessoas ficavam muitas vezes desesperadas por comida e tinham de quebrar at os mnimos ossos da rena para retirar as migalhas internas de tutano. O John Lubbock vitoriano visitara vrias cavernas no sul da Frana e escrevera sobre elas em Tempos pr-histricos. Viajara com seus dois amigos e colegas, o grande arquelogo francs Edouard Lartet e o banqueiro ingls Henry Christy, que financiou o trabalho de Lartet. Em 1865, muitos ainda questionavam a antigidade humana e recusavam-se a acreditar que os europeus tinham vivido como "selvagens". O Lubbock vitoriano reconheceu que os ossos de rena encontrados por Lartet forneciam provas cruciais. No apenas se misturavam com alguns artefatos, mas muitos ainda conservavam marcas de corte de facas de slex. O Lubbock vitoriano entusiasmou-se com a beleza da paisagem francesa, em especial o vale Vzre, onde se descobriram vrias cavernas. Os habitantes da tundra da era glacial tambm deviam encontrar generosa compensao para as adversidades hibernais na beleza de seu mundo, com os rebanhos de biso, cavalo e gamo, o errante mamute e o rinoceronte peludo, com vislumbres de ursos e lees, revoadas de gansos e cisnes. Franois Bordes, outra figura fundamental na arqueologia francesa, que nas dcadas de 1950 e 1960 retomou a obra pioneira de Lartet, descreveu com muito acerto a tundra como uma Serengeti da era glacial. Aps as demandas do inverno, vinha o espetculo anual da primavera. Os primeiros sinais do degelo anual teriam sido observados com entusiasmo por eles e comemorados em sua arte. Num dia, por volta de 15.000 a.C., um annimo gravou inmeras imagens na superfcie de um osso um salmo desovando, duas focas, enguias despertando da hibernao, botes de flores: uma invocao da primavera, depois perdida ou jogada fora no stio de Montgaudier, na Frana. Embora nenhuma das pinturas da era glacial tivesse sido descoberta em 1865, o John Lubbock vitoriano conseguiu descrever algumas gravaes rupestres nas pginas de Tempos pr-histricos. A arte do perodo glacial representou um desafio para os que acreditavam que os homens pr-histricos eram selvagens com mentes infantis. O Lubbock vitoriano foi mais generoso que a maioria; escreveu que "natural sentir uma certa surpresa ao descobrir essas obras de artes", e afirma em seguida, com relutncia, que "devemos dar-lhes crdito total por seu amor pela arte, a que tinha". Mas logo se seguiam declaraes de que os homens das cavernas eram apesar disso muito ignorantes de agricultura, animais domsticos e metalurgia. O paradoxo com o qual ele lutava, o selvagem de refinado talento artstico, atingiria um ponto de ruptura em poucos anos: em 1879, uma menina correu gritando ao pai sobre touros era a descoberta de pinturas na Gruta de Altamira. O mundo de artistas da era glacial passou a mudar logo depois de 18.000 a.C. As temperaturas globais comearam a subir e as camadas de gelo do norte a derreter. Em 14.000 a.C., as geleiras tinham desaparecido do norte da Alemanha e retiravam-se na Escandinvia e Gr-Bretanha. Os artistas e caadores no sul sentiram e viram em primeira mo os efeitos do aquecimento global, sem saber que as mudanas por eles observadas luxuriante brotar da mata, tempos prematuros de nidificao dos pssaros, nevadas reduzidas eram os arautos de uma nova era na histria climtica e, na verdade, humana. Revemos no passado esses povos da era glacial com o conhecimento do que guardava seu futuro 10 mil anos de drstica mudana climtica. Embora a tendncia fosse de condies mais quentes, foi um passeio de montanha-russa, com imensos altos e baixos na temperatura. Mas claro que esses excessivos vaivns, picos e quedas de temperatura que vemos registrados nos ncleos glaciais extrados da Groenlndia e Antrtida pouco nos dizem de como as paisagens evoluram, e menos ainda da natureza da experincia humana. Para isso, precisamos recorrer a testemunhos da prpria Europa,

sobretudo dos sedimentos recolhidos dentro de suas cavernas e depositados em seus antigos lagos. Vimos o valor dos gros de plen quando acompanhamos a histria da mudana de paisagens no oeste da sia, registrada por indcios no ncleo da bacia do Hula. Na Europa, os minsculos gros de plen registram a migrao vegetal e o surgimento de florestas ao longo do que fora outrora a rida tundra prxima das prprias geleiras. uma histria criada pelas sementes e esporos de plantas transportados para o norte no vento, em penas e plos, patas e fezes de aves e animais. Algumas dessas plantas as mais tolerantes a condies que continuaram frias e secas descobriram que podiam sobreviver, e at prosperar, onde no muito tempo antes jazeriam congeladas e inteis no solo. medida que essas pioneiras vegetais foram-se estabelecendo, encorajaram outros pssaros e animais a aventurar-se ao norte. Tambm ajudaram a desenvolver novo solo, que foi avidamente usado por um novo grupo de plantas, capaz de colonizar devido ao aumento de calor e chuva. Esses recm-chegados competiam ferozmente pela luz do sol e nutrientes, empurrando aos poucos os colonos originais para o norte, para outras terras recm-libertadas do jugo da glaciao da era do gelo. Por volta de 15.000 a.C., matos e arbustos tinham-se apoderado das colinas ondulantes do centro da Europa, com destaque para as espcies do gnero artemsia (arbusto espinhoso altura dos joelhos). Uma acelerao em sua disseminao assinala o incio da primeira fase quente importante na histria do aquecimento global, o Bolling. o drstico pico visto no registro do ncleo glacial em 12.500 a.C., e assinala a data na qual os coletores-caadores do Natufiano Inicial no mundo mais quente e exuberante do oeste da sia se assentaram num estilo de vida sedentrio. Na Europa, o Bolling resultou na disperso de btulas pelo norte da tundra e no desenvolvimento de bosques de pinheiros e btulas mais ao sul e nos vales abrigados. Os gros de plen mostram que se seguiu um hiato, e em algumas reas o contrrio, na disseminao de florestas. Em 11.500 a.C., porm, completas florestas de btula, choupo e pinheiro tinham penetrado no norte da Alemanha, Gr-Bretanha e sul da Escandinvia. Em algumas regies, isso identificado com uma segunda fase particularmente quente chamada Allerod, o pico final de mudana climtica antes do comeo do Jovem Dryas em 10.800 a.C. Os gros de plen registram um arrefecimento de mil anos nas condies rticas por uma nova predominncia de gramneas, arbustos e apenas as rvores mais resistentes as paisagens do norte mais uma vez se tinham tornado tundra descampada, com bosques de btula e pinheiro lutando pela sobrevivncia contra todas as probabilidades. Os pastos teriam sido pontilhados com delicadas florzinhas brancas, ninfas do bosque, avenas das montanhas, conhecidas pelos botnicos como Dryas octopetala de onde vem o nome Jovem Dryas. E ento, muito de repente em 9.600 a.C., o plen de rvore ressurge mais uma vez; logo se torna abundante, ao mesmo tempo que o norte da Europa coberto por densa terra florestal, quando o drstico aquecimento global encerra a era de gelo. * Os gros de plen muito nos podem dizer: como as paisagens mudaram, quais plantas, rvores as pessoas viam c queimavam em suas fogueiras enquanto se aventuravam ao norte. Mas para uma verdadeira apreciao de como talvez fossem esses caadores e coletores da era glacial, os arquelogos precisam voltar-se para outro tipo de pioneiro: os besouros. A maioria dos besouros parou de evoluir h mais de um milho de anos. Em conseqncia, podemos ter certeza de que as espcies identificadas segundo as

particularidades das patas, asas e antenas em depsitos antigos so exatamente as mesmas que vivem hoje. Isto importante, porque muitas espcies so bastante sensveis temperatura do ar e vivem em tipos de clima muito especficos. Vejam, por exemplo, o besouro conhecido como Boreaphilus henningianus. Hoje esto limitados ao norte da Noruega e Finlndia, pois sobrevivem apenas no extremo frio. Mas encontram-se seus restos em depsitos por toda a Gr-Bretanha, indicando temperaturas to frias quanto as do rtico atual. Os restos de besouro da Gr-Bretanha so os mais bem estudados de qualquer lugar no mundo. Conhecem-se mais de 350 espcies, das quais foram recolhidas precisas estimativas de temperaturas passadas. Os besouros nos dizem, por exemplo, que as temperaturas de inverno do LGM no sul da Gr-Bretanha atingiam rotineiramente menos 16C e subiam at 10C no vero. Quando a fase quente do Bolling chegou a 12.500 a.C., os besouros na Gr-Bretanha eram muito semelhantes ao que so hoje, indicando que as temperaturas de inverno e vero tambm eram muito semelhantes, 0-1C e 17C respectivamente. Mas depois as espcies do frio passaram a predominar, indicando uma substancial queda de temperaturas invernais para menos 0-5C em 12.000 a.C. e menos 17C em 10.500 a.C., a ltima correspondendo nitidamente ao perodo do Jovem Dryas, como se v nos ncleos glaciais da Antrtida e Groenlndia. Os besouros podem ser muito preciosos, mas dificilmente nos permitem visualizar as paisagens pr-histricas da Europa da era glacial. Para isto, os ossos de animais so muito mais teis pois, assim que se recorre aos mamutes, renas e javalis, essas paisagens tornam-se vivas. Os ossos de animais so encontrados sobretudo em depsitos de cavernas, como os de hipoptamos da Gruta Aetokremnos, em Chipre. Alguns so de animais que viveram e morreram dentro das cavernas, como hienas e ursos. Outros so presa de carnvoros comida levada para alimentar os filhotes ou ser ingerida em segurana enquanto os ossos de pequenos mamferos chegaram via fezes em ninhos de corujas, Assim que os seres humanos apareceram, usaram as cavernas para abrigo e jogaram fora dentro delas os ossos de animais que matavam ou dos quais haviam comido a carnia nas carcaas. Os ossos de animais qualquer que seja sua origem revelam-nos muito sobre a mudana nos ambientes da Europa. Como acontece com os besouros, os mamferos so conhecidos por preferirem diferentes tipos de habitats a rena gosta de tundra fria, o veado-vermelho prefere florestas mais temperadas. E assim, distribuindo as colees de ossos numa seqncia ordenada atravs do tempo, podemos reconstituir as comunidades animais em mutao, e portanto os meios ambientes, da Europa. Muito poucas cavernas, porm, tm longas seqncias de depsitos. Por isso, precisamos reunir colees de ossos de diferentes cavernas se quisermos reconstituir vrios milhares de anos de mudana climtica. Jean-Marie Cordy, da Universidade de Lige, realizou um estudo desses. Examinou os ossos de animais recuperados durante mais de 100 anos de escavao em grutas na regio calcria da bacia do Meuse, na Blgica. Cordy construiu uma seqncia vaivm de depsitos de 15.000 a 9.000 a.C., Constatando que nos datados de antes de 14.500 a.C. os ossos de rena e boi almiscarado eram dominantes animais da tundra. De 14.500 a.C. em diante, juntaram-se a eles os restos de espcies de florestas e pastos, como cavalo, veado-vermelho e javali. Estes passaram a dominar as colees de ossos a partir de 12.500 a.C., o que coincide com a fase Bolling poca em que a rena foi obrigada a viajar para o norte, a fim de encontrar seus apreciados lquen e tundra coberta de musgo. No conjunto seguinte de colees de ossos das cavernas belgas, a rena mais uma vez torna-se abundante, refletindo uma queda de temperatura e o ressurgimento da tundra. Esse vaivm entre animais amantes do calor e do frio continuou enquanto o clima global

ia mudando no Allerod, Jovem Dryas, e por fim no aquecimento global, que acabou com a era glacial h 9.600 anos. Usar os ossos de grandes mamferos para mapear a mudana de ambientes da Europa s vezes problemtico. Encontrados muitas vezes em pequenos nmeros, algumas espcies, como o veado-vermelho, so muito adaptveis sentem-se vontade tanto em pastagens abertas quanto em matas densas. Alm disso, alguns desses ossos talvez tenham percorrido considerveis distncias antes de tornarem-se detritos dentro de uma caverna: animais carnvoros e seres humanos podem ter grandes territrios de caa e levar para casa animais muito diferentes dos da vizinhana imediata de seu covil ou lugar de acampamento. Em conseqncia, os ossos dos pequenos mamferos encontrados dentro de sedimentos de caverna oferecem um ndice melhor de mudana climtica pois so em geral mais numerosos, as espcies mais sensveis s condies ambientais, e poucos percorrem grandes distncias em suas curtas vidas. Um dos mais teis o lmingue-do-rtico os picos e quedas na quantidade de seus ossos so quase to bons quanto a prpria medio da temperatura. Vejam por exemplo a gruta de Chaleux, no vale do Meuse, na Blgica. Antes de 13.000 a.C., quase todos os ossos de pequenos mamferos nos depsitos so de lmingues-do-rtico, o que significa uma paisagem de tundra muito fria. Eles so substitudos por outras espcies roedoras pre do norte, arganaz e at o hamster que exigem condies muito mais quentes e midas, e em geral habitam florestas. Sua abundncia nos sedimentos de Chaleux assinala o incio do Bolling. Durante os mil anos seguintes, os lmingues e os roedores amantes do calor ficam mudando de lugares como a maioria das espcies abundantes um reflexo direto das flutuaes climticas pouco antes do desastre ambiental do Jovem Dryas, assinalado pelo desaparecimento de todos os roedores florestais.

Gros de plen, patas de besouro, ossos de animais a partir do seu estudo que se reconstituem os ambientes das terras do norte. Cientistas que trabalham em laboratrios estreis, redigindo relatrios tcnicos sobre aspectos especficos do passado, fazem esse trabalho. O desafio que enfrentamos ao escrever histria, porm, no apenas combinar essas fontes de indcios para podermos imaginar comunidades de plantas, animais e insetos concretos, mas tambm obter uma compreenso da experincia daqueles que primeiro entraram e depois se tornaram parte dessas comunidades. As relaes de plantas e animais so um pobre substituto para o cheiro de agulhas de pinheiro e o gosto de carne de gamo assada sob as estrelas; um relatrio sobre restos de insetos no pode evocar o zumbido e a picada de uma mutuca; estimativas de temperaturas invernais no transmitem a dor entorpecente de ps congelados cobertos de pele animal que caminharam pela neve e atravessaram rios gelados. Felizmente essas sensaes esto ao nosso alcance: para ser um bom pr-historiador, necessrio no apenas ler os relatrios tcnicos que emanam da cincia arqueolgica, mas seguir caminhando c imergir no mundo natural, avanando aos poucos para mais perto da experincia do caador-coletor. exatamente isso que John Lubbock vem fazendo desde que saiu da Caverna Gough. Rumou para o norte, percorrendo 150 quilmetros de colinas ondulantes e plancies; as rvores foram tornando-se esparsas e o vento persistente quando se aproximou da grande camada de gelo. Viu poucas pessoas enquanto atravessava a tundra um grupo de caadores de rena ao longe, desaparecendo na neblina, algumas famlias que se dirigiam para o sul, talvez para a prpria caverna Gough. Quando descansa, ou obrigado a abrigar-se, Lubbock l Tempos pr-histricos, para descobrir o que seu xar de 1865 sabia sobre o uso de ossos de animais e plantas para reconstituir ambientes passados. evidente que o vitoriano Lubbock sabia que alguns

animais forneciam clara indicao de clima frio, c chegou at a apontar o lmingue como uma espcie particularmente reveladora, quando o encontrou em depsitos de cavernas ou fluviais. No fez meno alguma a gros de plen, mas disse que os pntanos de turfa na Dinamarca muitas vezes tm camadas de pinheiro perto da base, seguidas por carvalho e salgueiro rvores que julgou terem crescido em volta da margem e tombado, "Para uma espcie de rvore assim deslocar outra", escreveu, "e por sua vez ser suplantada por uma terceira, seria necessrio um grande perodo de tempo, mas, por enquanto, no temos meios de calcular." Em outras partes, o vitoriano John Lubbock fora igualmente cauteloso em relao a estimativas de temperaturas passadas. Ao comentar a proposta de um certo Sr. Prestwich, de que as temperaturas haviam outrora chegado a mais de 29C abaixo de zero, escreveu: "Dificilmente estamos em condies de avaliar com qualquer grau de probabilidade a verdadeira extenso da mudana ocorrida." Como a datao por radiocarbono, to til para estabelecer o lapso de tempo entre um e outro tipo de vegetao, a paleontomologia estudo de besouros e outros insetos de depsitos antigos ainda no fora criada. Quando no l, o moderno John Lubbock fica alerta s pessoas, e por sua vez vigiado por animais na tundra. Ao atravessar o terreno congelado, v uma coruja branca real empoleirada numa moita virar a cabea para fix-lo em seu olhar. Uma lebre-do-rtico ergue-se ento e faz o mesmo. Mais um momento, e a tenso se quebra a coruja silenciosamente deixa seu poleiro e mergulha baixo sobre o mato, a lebre afunda de novo e some de vista. Lubbock segue andando. A no mais que um dia de caminhada das geleiras, chega a outro desfiladeiro calcrio, hoje conhecido como Creswell Crags. o amanhecer de um dia de Inverno em 12.700 a.C., e ele est de p na borda do penhasco sul, olhando embaixo os pinheiros e salgueiros que encontraram abrigo na garganta. Os lados so salpicados de fissuras e cavernas. Fiapos de fumaa serpeiam por entre as rvores; remontando sua origem, Lubbock localiza uma fogueira que fumega na boca de uma caverna. Um grito atrai seu olhar para um homem e um garoto que entram na garganta. Vestidos de peles, cada um traz duas lebres brancas como a neve jogadas nos ombros; o vigor nos passos sugere que esto satisfeitos com a caada. Lubbock os v subir a encosta coberta de seixos em direo caverna e jogar suas presas perto da fogueira. Mulheres e crianas surgem excitadas de dentro da caverna; admiram as lebres, acariciando o plo e beliscando as coxas dos animaizinhos para sentir a carne. Depois que desceu o penhasco pouco profundo, Lubbock transps o desfiladeiro e juntou-se a eles perto da fogueira, uma lmina de pedra j removera as patas frontais e fendera a barriga da lebre maior. As patas frontais so removidas e a pele arrancada para trs, para ser retirada pela cabea do animal. Alguns minutos depois, a carcaa est num espeto sobre o fogo, a pele pendurada com as outras lebres dentro da caverna. Uma vez assada, a lebre cortada em postas que sero divididas entre todos os presentes exceto, claro, John Lubbock. Contudo, ele consegue comer uns restinhos, que proporcionam um desjejum profundamente satisfatrio. Depois que todos os ossos foram mastigados e esto bem limpos, so reunidos e enterrados num poo raso na entrada da caverna; se deixados expostos, iriam atrair hienas e raposas que se alimentam de carnia e restos de animais. Lubbock permanece com essas pessoas durante os dias seguintes, na expectativa de uma oportunidade de caa grada uma das renas, cavalos e at mamutes que ele viu enquanto viajava para o norte. Mas no ocorrem essas caas, pois as lebres so a nica presa que os homens trazem. E assim, em vez de aprender como matar feras poderosas, Lubbock adquire algumas prticas de sobrevivncia menos msculas, porm muito mais importantes: como extrair msculos de uma lebre para us-los como fio de costura, transformar os ossos das patas em sovelas e agulhas, fazer meias, luvas, regalos e

revestimento de casaco com a pele. Uma noite ele segue um homem e um jovem at um denso bosque de salgueiros enfezados onde se sabe que as lebres se alimentam. O homem inspeciona as folhas mastigadas e os talos de mato quebrados pelas lebres deitadas. Parte um galho, desfolhao e enterra-o no cho. Amarra ento nele um lao que posto no lugar exato onde desconfia que vai ocorrer o prximo perodo de alimentao. Ao amanhecer, a dupla retorna e encontra uma lustrosa lebre branca capturada no lao corredio, estendida exausta de sua luta, mas ainda viva. O homem suspende-a delicadamente, acaricia seu plo e sussurra-lhe palavras amveis no ouvido. Depois quebra-lhe o pescoo. Lubbock deixa o que vir a ser conhecido como a Caverna de Robin Hood em Creswell Crags. Ruma para leste; aguarda-o uma jornada por baixadas cobertas de tundra, que o levar pelas colinas suavemente onduladas e os vales de uma terra que no mais existe Doggerland, hoje submersa pelas guas do mar do Norte. Alm dela, chegar no norte da Alemanha, e ali se realizar seu desejo de ver em ao caadores da era do gelo com caas maiores. Creswell Crags encontra-se hoje no meio de uma decadente conurbao industrial, paisagem que no podia deixar de ser mais diferente da beleza da tundra glacial. A garganta no tem mais de 100 metros de comprimento e 20 de largura; suas cavernas ostentam nomes maravilhosos: Caverna de Robin Hood, Salo de Me Grundy, Caverna do Buraco de Alfinete. Outrora eram cheias de sedimentos contendo os restos de animais que viveram e morreram na tundra. Lobos, hienas, raposas e ursos usavam-nas como covis, arrastando para casa os restos de suas presas: rena, cavalo, veado-vermelho, lmingues e uma ampla srie de pssaros. Mamferos menores, morcegos e corujas tambm tinham vivido e morrido dentro dessas fragas, tornando-as um precioso tesouro para os que desejam reconstituir comunidades animais do mundo antigo. Na Caverna Gough, as primeiras escavaes em Creswell ocorreram em fins do sculo XIX, sob o comando do Reverendo J. Magens Mello, e depois continuaram periodicamente at hoje. Em 1977, John Campbell sintetizou todas as datas que se tinham acumulado e atribuiu a presena de ossos de animais a atividades humanas, sobretudo das pessoas que chegaram aos rochedos nos ltimos anos da era glacial. Segundo ele, esses pioneiros do norte no apenas caavam rena e cavalo, mas tambm matavam mamute e rinoceronte. Estudos recentes e meticulosos, porm, identificaram quais ossos trazem as marcas de corte reveladoras de instrumentos de pedra e quais de roedura de dentes carnvoros. Esse trabalho reduziu a atividade humana tarefa mais modesta de pegar lebres-dortico com armadilhas. Todos os ossos com marca de cortes foram datados de um estreito perodo de tempo em torno de 12.700 a.C. com datas de radiocarbono to semelhantes s da Caverna de Gough que podemos estar tratando com o mesmo perodo. Todos os ossos com marcas de corte podem nos dizer mais que apenas o que outrora comiam as pessoas e quais animais viviam antes na Europa da era do gelo: podem nos dizer ainda exatamente quando as pessoas comearam a espalhar-se pelo norte, vindas de seus refgios no sul. Os instrumentos em si so pouco teis feitos de pedra, faltalhes o essencial carbono a partir do qual se obter uma data exata. Em conseqncia, os arquelogos dependem do estabelecimento da idade dos ossos de animais encontrados juntos com os artefatos, e depois supor que cada um seja contemporneo do outro. Lamentavelmente, muitas vezes no o que ocorre. Como aconteceu em Creswell Crags, s vezes os ossos animais so engastados nos sedimentos de cavernas provenientes de vrias fontes e depois misturados ainda mais. Os instrumentos de pedra podem ficar embaralhados com esses ossos. Portanto, quando se obtm uma data de radiocarbono, digamos, do osso da pata de uma rena encontrado

junto a uma ponta-de-lana, essa data no necessariamente nos diz quando se perdeu ou jogou fora a ponta-de-lana na caverna. Poderia nos dizer apenas que uma hiena usou a caverna como seu covil vrios sculos ou at milnios antes ou aps a presena humana. O vitoriano John Lubbock, escrevendo na dcada de 1860, estava bem a par desse problema. Na verdade, em Tempos pr-histricos, usou marcas de corte para contestar afirmaes de um certo Monsieur Desnoyers, de que os ossos de animais extintos tinham jazido em cavernas por milhares de anos antes do surgimento do homem, os restos sendo simplesmente misturados. A associao entre artefatos de pedra e ossos de mamute, urso e rinoceronte peludo das cavernas foi crucial para os que defendiam uma idade da antigidade humana maior que os poucos mil anos abarcados pela Bblia. O vitoriano John Lubbock fez exatamente o que faria qualquer arquelogo moderno: procurou marcas de corte nos ossos e forneceu exemplos de leo, rinocerontes peludos e renas das cavernas. Na verdade, antecipou-se a quase todas as tcnicas empregadas pelos arquelogos atuais. Discutiu o impacto da roedura e do consumo de carnia e restos por cachorros nas colees de ossos que os arquelogos tem de estudar, utilizou diferentes graus de fragmentao de esqueleto para avaliar as datas de enterro, e avaliou as estaes nas quais a caa ocorrera pelos animais presentes e o conhecimento do comportamento de suas modernas contrapartes. Hoje, quando no se questiona mais a idade da antigidade humana, os ossos marcados de cortes continuam sendo igualmente essenciais para o estudo arqueolgico. Proporcionam espcimes ideais para a datao por radiocarbono, pois os ossos com marcas de cortes so, por definio, contemporneos da presena humana. A possibilidade de datar o que so muitas vezes fragmentos s surgiu com o advento de uma nova tcnica de datao por radiocarbono, chamada "acelerador de espectrometria de massa", ou EMA na sigla inglesa. Pode datar amostras de no mais que 1/1000mo do tamanho requerido pela tcnica mais antiga "convencional", como hoje a descrevem. Em 1997, Rupert Housley e seus colegas publicaram, os resultados de mais de uma centena de novas datas de radiocarbono EMA, obtidas de 45 stios distribudos ao longo do norte da Europa, desde o leste da Alemanha s Ilhas Britnicas. Housley um dos principais especialistas em datao por radiocarbono e selecionou minuciosamente espcimes que forneceram provas inequvocas da presena humana. Pela primeira vez, os arquelogos tiveram a oportunidade de formar uma compreenso exata de quando e como os povos se expandiram de seu refgio na era glacial no sudoeste europeu para o norte. Os limites norte daquele refgio eram os vales que atuam como tributrios do Loire. S depois de 15.000 a.C. o povoamento avanou mais para o norte, a princpio para o Alto Reno, e depois, por volta de 14.500 a.C., para o Mdio Reno, a Blgica e o sul da Alemanha. Isso ocorreu aps a migrao de matos e arbustos para o norte, seguidos de perto por rebanhos de rena e cavalos vidos por expandirem seu raio. Sabemos que os pioneiros da era do gelo se deslocaram velocidade mdia de 1 quilmetro por ano, e em mais 400 anos j haviam criado assentamentos no norte da Frana, norte da Alemanha e Dinamarca. Cerca de 12.700 a.C., os primeiros povos retornaram Gr-Bretanha aps uma ausncia de quase 10 mil anos. No surpreende que esse grande movimento final para o norte coincida com o perodo quente do Bolling. Nessa poca, a Gr-Bretanha era simplesmente o canto mais noroeste da Europa mais vrios milhares de anos teriam de passar-se para que se tornasse uma ilha. A recolonizao de qualquer regio especfica foi um processo em dois estgios, Primeiro chegaram os pioneiros. Nesta fase, os stios arqueolgicos so pequenos, em geral no mais que um pequeno conjunto de artefatos de pedra. Esses stios eram muito provavelmente acampamentos de pernoite de grupos de caa que exploravam terras

desprovidas de qualquer assentamento humano durante o perodo de glaciao. possvel que os pioneiros tenham viajado para o norte no vero, retornando aos acampamentos-base no sul para contar o que tinham visto. O conhecimento da topografia, a distribuio de animais e plantas e as fontes de matrias-primas tiveram de ser adquiridas aos poucos por esses pioneiros, para poderem criar mapas mentais do novo territrio. Este deve ter sido o desafio. Como o tempo e o clima continuavam muito variveis, corpos de conhecimento estabelecidos numa gerao de exploradores talvez tivessem sido de pouco valor para a seguinte. A fase de pioneirismo durou cerca de 500 anos, ou vinte geraes. S aps a realizao disso, ocorreu de fato uma mudana no assentamento humano inaugurando o que Housley e seus colegas chamam de a fase residencial. Nesse estgio, famlias e outros grupos mudaram-se de seus acampamentos-base para morar permanentemente no norte, explorando os rebanhos de rena e cavalos que se tinham tornado estveis nas tundras. Por que essas pessoas foram explorar as terras do norte e depois instalaram residncia l? Os esporos e sementes de plantas foram transportados pelo vento; os Insetos e animais que seguiram em sua esteira no tiveram condies de resistir ao imperativo ecolgico de reproduzir-se e explorar novos nichos assim que tais oportunidades se apresentaram. Seriam os caadores da era do gelo to indefesamente impelidos quanto os besouros, roedores e gamos? Quando chegou o degelo, teriam as populaes humanas simplesmente inchado como os rios at serem obrigadas a encontrar novas fontes de comida? No h a menor dvida de que as populaes humanas de fato se expandiram. O brilhantismo das pinturas das cavernas da era glacial esconde a amarga verdade de que a vida no LGM fora assustadoramente difcil. O inverno teria sido fatal para muitos dos bebs, crianas e enfermos, pois o terreno congelado e as tempestades de neve destruam o suprimento de comida e a sade humana. Exatamente o que acontecia aos corpos, no sabemos, pois no havia cemitrios, e os tmulos individuais so poucos e muito distantes entre si. Mesmo com um ligeiro aumento das temperaturas mdias, as populaes teriam crescido, talvez rpido: bebs sobrevivendo at a infncia em vez de morrer de frio e fome; mulheres dando luz um terceiro e quarto filhos; os idosos sobrevivendo ao inverno e contando histrias nova gerao de caadores da era do gelo. Mas outros fatores alm do aumento em nmero talvez tenham impelido as pessoas para as terras do norte. possvel que ambiciosos rapazes e moas partissem em busca de novos recursos, aqueles que proporcionavam prestgio e artigos de troca, alm de comida e bebida. Da em diante, com a retirada das camadas de gelo, aventureiros talvez os tivessem seguido, em busca do marfim dos mamutes, peles luxuosas, conchas e pedras exticas. Tenses sociais podem ter sido o incentivo a que outros rumassem para o norte. Quando novas terras se tornaram acessveis, surgiu a oportunidade de rapazes e moas estabelecerem comunidades s deles, em vez de continuar sob a autoridade dos mais velhos e de tradies que no mais lhes agradavam. Duvido que qualquer uma ou todas essas explicaes sejam razoavelmente suficientes para explicar a grande jornada para o norte aps o desaparecimento do gelo. Precisa-se invocar outra fora motivadora, uma fora que vamos encontrar por trs da disseminao humana em todo o mundo quando as viagens de Lubbock o levam a atravessar as Amricas, Austrlia, sia e frica. a curiosidade do esprito humano: o instinto de explorar novas terras simplesmente pela prpria explorao.

14 Com Caadores de Renas Economia, tecnologia e sociedade, 12.700 9.600 a.C.

Silncio a no ser pela ritmada e profunda respirao de caadores ansiosos e as retumbantes batidas de seus coraes cheios de adrenalina. Alguns deles acocoram-se atrs de pedras; outros escondem-se entre moitas de ramas com a aproximao da manada. John Lubbock deita-se colado no cho, disposto a observar a matana anual de renas no vale Ahrensburg, de Schleswig-Holstein. Por entre os talos das plantas, v uma trilha serpeando no meio de dois laguinhos no fundo do vale. As renas usam essa rota todo outono, ao fazerem sua migrao anual em busca de novo pasto no norte. Um vento gelado leva o cheiro dos caadores, quando a terra se pe a vibrar sob o tropel de uma multido de cascos. A emboscada est montada. O grupo da frente das renas passa pelas pedras e afunila-se ao longo da estreita trilha. O sinal dado e as lanas atiradas, atingindo os animais por trs. Outras lanas chegam do outro lado do vale as condutoras so encurraladas. Aterrorizadas, fogem para o lago e nadam pela vida. Aps poucos segundos, oito ou nove animais jazem no cho; alguns estremecem antes do golpe final na cabea. Umas poucas carcaas flutuam no lago; so deixadas para afundar, pois as da terra fornecero mais que suficiente comida, couro e chifres. As lanas so cuidadosamente recolhidas no tanto pelas pontas quanto pelos cabos de madeira, preciosos na paisagem quase sem rvores do norte da Europa. Alfred Rust escavou o stio Meiendorf, no vale Ahrensburg, na dcada de 1930. Nos lamacentos sedimentos do fundo do vale, encontrou milhares de ossos de rena e um grande nmero de pontas de pedra outrora presas nas lanas. Tinham sido letais armas de caa, mais provavelmente impelidas com a ajuda de um atlatl vara que formava um gancho em volta da ponta da lana para imprimir fora extra. Essas armas datam de 12.600 a.C., correspondendo quase ao fim do perodo que Edouard Lartet batizou como "Lge du renne". O arquelogo francs Lartet, to admirado pelo vitoriano John Lubbock, ficara impressionado com as enormes quantidades de ossos de renas nas grutas do sul da Frana. Sabemos hoje que esses ossos vinham sendo acumulados pelo menos desde 30.000 a.C. Mas o arquelogo no tinha qualquer idia da idade disso e concebeu "Lge du renne" como a idade seguinte a "Lge du grand ours des cavernes" (urso das cavernas) e "L'ge de llphant et du rhinocros", mas anterior a "Lge de laurochs" (gado selvagem). Dividir o que o vitoriano John Lubbock chamou de Paleoltico em quatro fases desse tipo era uma idia inovadora em 1865, mas sujeita a algumas crticas em Tempos prhistricos, devido a sobreposies das espcies denominadas. Das quatro fases, Lge du renne persistiu no pensamento arqueolgico por muito mais tempo que as outras, porque muitas comunidades da era do gelo dependiam de fato da rena para seu modo de vida. Depois que o gelo se dissolveu, a rena logo passou a usar o vale Ahrensburg como uma importante rota de travessia em suas migraes anuais da tundra desarborizada para os pastos invernais no sul da Sucia. A paisagem da tundra era muito mais amena que a que hoje conhecemos: as temperaturas de vero alcanavam 13C e caam a apenas menos 5C no inverno. Quando os pioneiros chegaram pela primeira vez regio, devem ter visto com assombro os rebanhos de renas passarem pelo estreito vale era uma oportunidade de caa de primeira. Alguns dos stios que Rust encontrou, como Meindorf, datavam do Bolling, e outros eram 2 mil anos mais novos, encaixando-se no perodo do Jovem Dryas. A essa altura, as

temperaturas subrticas haviam retornado ao norte da Alemanha, embora a tundra agora sustentasse bosques dispersos de pinheiro e btula. O mais famoso stio do Jovem Dryas descoberto por Rust o Stellmoor, localizado na borda leste do vale. Ali se recuperaram mais de 18 mil ossos e chifres de rena, junto com um grande nmero de instrumentos de slex e mais de uma centena de hastes de flecha de pinheiro, preservadas nos sedimentos inundados. Fora, evidentemente, um stio de matana em massa, com grande probabilidade de tornar o lago vermelho de sangue. O arquelogo alemo Bodil Bratlund reconstituiu a cena com um meticuloso estudo dos ossos de rena das colees de Rust, concentrando-se naqueles em que pontas de flecha de slex continuavam encravadas. Identificou quais partes do corpo tinham sido atingidas e a direo de onde tinham vindo as flechas. Os caadores atiraram as primeiras flechas horizontalmente nas condutoras dos rebanhos, mirando o corao para matar logo. As condutoras fugiam para o lago, aterrorizadas e nadando para salvar a vida assim como suas ancestrais haviam feito quando os homens armados de lana de Meiendorf atacavam. Outras flechas se seguiam, pelas costas e por cima encontraram-se pontas de flecha de slex enterradas em omoplatas e na nuca mas muitas erravam visivelmente o alvo e afundavam na lama. Depois de as carcaas serem arrastadas para a margem e esquartejadas, provvel que tivesse banquete entre os grupos que se tinham reunido para a matana anual. Os caadores de Stellmoor mataram gamos em escala muito maior que os de Meiendorf. Sua tecnologia era mais eficaz: as lanas haviam sido substitudas por arcos e flechas com as tpicas pontas triangulares de encaixe. Na verdade, os arquelogos hoje as chamam de pontas "ahrensburgianas", e as encontram em todo o norte da Europa durante o Jovem Dryas. Com toda probabilidade, foram uma resposta criativa severidade do clima e constituram um salto frente em tecnologia. At agora no se encontraram os stios de acampamento onde os caadores de Meiendorf e Stellmoor faziam seus atatls, flechas de pinheiro e planejavam as emboscadas. Cerca de mil quilmetros ao sul, porm, na bacia de Paris a rea cercada pelas montanhas das Ardenas no noroeste e as Vosges no leste, o Morvan no sudoeste e o Macio Central no sul d-se o contrrio. Mais de cinqenta stios foram encontrados, a maioria consistindo apenas de fragmentos de artefatos de slex tendo-se quaisquer materiais como ossos animais e hastes de flechas de madeira decomposto h muito tempo. Trs se acham particularmente preservados, Pincevent, Verberie e Etiolles, cada um ocupado durante o Bolling e seu imediato depois. Foram localizados to perto de rios, tributrios do Sena, que ficavam cobertos de aluvio toda vez que tinha uma enchente na certa toda primavera. Em conseqncia, os artefatos de pedra, ossos de animais e lareiras foram lacrados e assim preservados exatamente como tinham sido abandonados. Aps meticulosa escavao e rigorosos estudos, realizados sobretudo pelas arquelogas francesas Franoise Audouze e Nicole Pigeot, oferecem vvidos instantneos da vida dos pioneiros e colonizadores no noroeste da Europa. John Lubbock avana por um desses instantneos, aps sair de Meiendorf e chegar ao que se tornar o stio de Verberie, no vale do Oise, na bacia de Paris. Hoje esse stio se localiza em meio a uma luxuriante paisagem agrcola, mas a visita de Lubbock exigiu uma viagem pela tundra e por entre pinheiros e btulas em fundos de vale, rvores que ofereciam bem-vindo alvio do vento cortante. uma tarde de outono e a luz j comea a desfazerse. Ele pra na borda do stio de acampamento e v pessoas amontoadas em volta de uma fogueira. Elas no moram em Verberie; usam o stio apenas por um ou dois dias para esquartejar renas emboscadas e mortas quando tentam transpor a vau do rio prximo. As carcaas j haviam sido trazidas e largadas ali no cho, separadas alguns metros umas das outras. Os caadores juntaram-se aos amigos em volta da fogueira um breve

descanso antes de comear o trabalho. Lubbock tambm se senta, ocupando uma boa posio panormica, para no perder essa vital e nova lio da vida na era do gelo: como transformar carcaas em postas de rena. Trs ou quatro das pessoas homens e mulheres comeam a cortar rpida e habilmente com seus instrumentos de pedra, interrompendo-se muitas vezes para pegar uma faca de pedra melhor ou um novo cutelo numa pilha de lascas de slex preparadas quando a caa se achava em andamento. Lubbock concentra-se no grupo mais prximo, vido por aprender o ofcio de caador. Primeiro retira-se a cabea do animal e depois todo o corpo esfolado. Fazem-se cortes em volta de cada casco e ao longo de cada perna. O couro ento quase descolado embora com muitos puxes e corte de tendes e estendido com a superfcie externa para baixo. A barriga aberta com uma inciso que vai do esterno at as virilhas; uma massa de vsceras derrama-se pelo cho e empurrada para um lado. A carcaa dividida: pernas, plvis e fatias grossas de costela, junto com o fgado e os rins, so retirados e empilhados sobre o couro. Arrancam-se o corao, pulmes e vlvulas bronquiais como uma unidade individual e depois separam-nos o corao acrescentado pilha de carne, o resto posto com as tripas. Como penltimo ato, a face da cabea decepada talhada e aberta para expor a base da lngua. Corta-se ento esta, arrancada depois com um puxo forte. Por fim, retiram-se os chifres, que logo encimam a pilha de carne e rgos. Cada grupo trabalha em volta de sua carcaa, virando-a para fazer o corte atravs do couro ou separar um membro. Duas juntas maiores so transportadas a uns 100 metros de distncia e entregues a duas mulheres que tiram fatias de carne. Enquanto trabalham, os aougueiros de vez em quando atiram para trs os ossos com pouca carne ou tutano, juncando o cho com curtos pedaos de vrtebras, ossos das pernas e palas inferiores, fragmentos da caixa torcica. Findo o trabalho, faz-se outro intervalo, durante o qual as fatias, junto com rins e fgados, so assadas na fogueira e comidas. Trens so ento carregados com a carne de rena restante, chuta-se terra sobre as cinzas, e os caadores partem, levando cordas de couro torcido ao cair da tarde. Lubbock continua sentado. Aps alguns minutos, chegam lobos para alimentar-se da carnia. Tm um banquete, roendo ossos, lambendo o sangue e devorando avidamente as tripas. Tambm eles seguem em frente e deixam o stio de esquartejamento de forma muito semelhante que os arquelogos vo encontrar um dia. V-se uma rea de cinzas onde antes ardera a fogueira; um punhado de lascas de slex e ndulos quebrados onde se prepararam os instrumentos; um conjunto superficial de fragmentos de ossos rodos e instrumentos abandonados. Trs reas circulares vazias demarcam o lugar onde as carcaas foram jogadas e em volta das quais trabalharam os geis aougueiros. As migalhas restantes de carne, couro, tendes e tutano nos ossos descartados logo desaparecem, consumidos por pssaros, besouros e larvas. Na primavera, o rio vai transbordar suas margens e depositar finos sedimentos no stio, deixando imperturbadas apenas as mais minsculas lascas de slex e fragmentos de ossos. Lubbock visita outro assentamento, que se tornar Pincevent. Fica exatamente 125 quilmetros ao sul, mas ele toma um caminho sinuoso ao longo dos vales do Oise e do Sena at a sua confluncia com o Yonne. Na chegada, v um grupo de tendas, feitas de armaes de macieira cobertas com couro de rena, em volta das quais pessoas cuidam de fogueiras e limpam peles. Estas so bem esticadas e raspadas para retirar gordura e tendes. Erguendo uma aba, ele olha dentro de uma tenda: uma pequena fogueira arde perto de um beb deitado num bero em forma de canoa, feito de couros de animais. Outra criana, um menino de uns 4 ou 5 anos, brinca no cho, vestido apenas com um par de perneiras.

Do lado de fora, vrios dos homens e mulheres mais velhos sentam-se num pequeno grupo, discutindo se j hora de deixarem Pincevent e voltarem para seus acampamentos de inverno no sul. O outono chega ao fim e quase todas as renas j se foram restam apenas umas desgarradas dos imensos rebanhos que h mui t o passaram em sua jornada para o norte. Cinco famlias, cada uma com sua prpria lareira construda numa cavidade no terreno, usam o stio em Pincevent. Chegam alguns homens puxando um tren cheio de postas de carne de rena e pilhas de chifres muito parecidos com os que Lubbock vira partir de Verberie. Todos se renem em crculo; as postas so divididas e a carne partilhada. Realiza-se um banquete noturno o ltimo antes de o acampamento ser abandonado por mais um ano. Quando o grande arquelogo francs Andr Leroi-Gourhan escavou Pincevent na dcada de 1960, encontraram-se muitos ossos fragmentados de rena amontoados em volta das lareiras rebaixadas, onde a carne era assada e comida. Duas dcadas depois, o arquelogo americano James Enloe descobriu que dois fragmentos de diferentes lareiras se encaixavam, mostrando que uma nica posta fora dividida. Carcaas inteiras haviam sido divididas dessa maneira a perna dianteira esquerda de um animal foi encontrada ao lado de uma fogueira, a direita em outra. A partilha de comida ocupava o centro da vida social para os que acampavam em Pincevent como na verdade ocorreu com todos os caadores-coletores por toda a histria humana. Voltando 40 quilmetros rumo ao norte, ao longo do vale do Sena, Lubbock chega a um assentamento que se tornar conhecido como Etiolles. Ali, tinha lugar uma atividade muito diferente: a manufatura de artefatos. As previsveis migraes dos rebanhos de rena eram apenas uma das atraes dos vales do norte da Frana para os caadores da era glacial. Outra era a existncia dos ndulos enormes e de excelente qualidade de slex, expostos nos afloramentos de greda e calcrio das encostas do vale. O slex era a mais valiosa matria-prima em toda a Idade da Pedra, porque podia ser trabalhados e transformados em lascas e lminas alongadas e afiadas como as de barbear, a golpes de martelos de pedra. Das lminas podia-se fazer uma grande variedade de ferramentas com delicados desbastes: pontas-de-lanas, raspadeiras para limpar peles, cinzis ("buris") para gravuras em osso e marfim, sovelas para furar couros. Os pioneiros que se disseminaram pelas terras do norte teriam ficado atentos a fontes de slex a Loja de ferragens da era glacial. provvel que as descobertas nos vales do norte da Frana fossem as melhores que encontraram. Lubbock v grandes ndulos de slex chegarem ao stio em sacos de couro de gamo, aps terem sido escavados de sedimentos calcrios apenas a 100 metros dali. Alguns so realmente grandes, de 50 quilos e mais de 80 centmetros de comprimento, fazendo parecer de tamanho bastante diminuto os que ele vira trabalhados em Azraq, no Oeste da sia. Muitos desses enormes ndulos tambm so imaculados por dentro, no contendo nada dos fsseis e cristais ocultos, nem fissuras internas causadas pela geada, que corrompe pedras de qualidade inferior. O trabalho parece descontrado, misturado a conversa e comida, mas extremamente srio: cada golpe planejado com todo cuidado. Esses excelentes ndulos proporcionam a artesos experientes uma oportunidade para exibir seus talentos, e a abundncia de slex permite aos novatos trabalharem com pedra nova em vez das descartadas pelos especialistas. Os ndulos ou ncleos, como os chamam os arquelogos so presos entre os joelhos e golpeados com martelos feitos de pedra e chifre. Separam-se finas lascas sistematicamente; a maioria deixada no cho onde cai, mas algumas so selecionadas e postas de lado. Vo ser transformadas em instrumentos por delicado desbaste da borda, para criar uma forma ou ngulo especficos, ou mais provavelmente usadas como esto nada pode ser mais afiado. Aps pegar ele prprio um ndulo e um

martelo de pedra, machucar o polegar e no conseguir separar uma nica lasca, Lubbock aprecia mais uma vez o conhecimento e habilidade, exibidos sem esforo. Pelo menos evita ter um dedo sangrando, e portanto algum progresso parece ter sido feito desde seus dias em Azraq. A forma e o tamanho de cada lasca separada dependem exatamente do tipo de martelo usado, de onde o ndulo golpeado, da rapidez e do ngulo do golpe. Lascas minsculas so muitas vezes retiradas cinzelando-se ou esmerilhando-se a ponta, antes de o ndulo ser martelado para que a fora do golpe no seja desviado. Os quebradores visam a produzir longas e finas "lminas" de slex. A produo de lminas talvez parea um exerccio um tanto leve, mecnico e na verdade assim que os arquelogos muitas vezes descrevem o trabalho. Mas pela observao da ao em si, a impresso de Lubbock bem diferente. Os ncleos so apalpados por dedos que apreciam a textura da pedra; o estalo de cada golpe e o tinido das lascas sobre lascas a cair no cho so ouvidos com ateno; o ncleo o tempo todo virado, inspecionado e examinado, como se fosse uma nova paisagem de caa. Chamar esse trabalho de "quebrar lascas" ou "produo de instrumentos" parece escrnio. Claro que a quebra nem sempre sai como planejada. Alguns ndulos que parecem perfeitos vistos de fora tm falhas internas e so descartados assim que golpeados produzem um baque surdo em vez do sonoro "tinido" que sai da pedra perfeita. Mais problemticos so os golpes errados e as decises enganadas sobre quais lascas retirar a fim de modelar o ncleo. Vendo os quebradores em ao, Lubbock ouve uma ou outra praga quando um ncleo se parte em dois, ou quando uma lasca s parcialmente separada, deixando um "degrau" no ndulo. s vezes o ncleo jogado fora, simplesmente largado na pilha de lascas que se acumularam no cho. Vinte e cinco pilhas desse refugo so escavadas em Etiolles, Do mesmo modo que James Enloe reuniu ossos de animais quebrados em Pincevent, a arqueloga francesa Nicole Pigeot reagrupou as lascas e ndulos de cada pilha. Reconstituiu as decises e aes, segundo aps segundo, dos quebradores de lascas da era do gelo que trabalharam em Etiolle cerca de 12.500 a.C. Nicole descobriu que os quebradores que se sentavam junto fogueira eram os mais habilidosos, pois seus ndulos reconstitudos mostravam menos erros. Progressivamente, os menos habilidosos iam trabalhando a distncias cada vez maiores da lareira, com os mais distantes fazendo tentativas experimentais e canhestras de retirar as lminas. Em outras partes da Europa como nos vales dos rios Meuse e Lesse, do sul da Blgica o slex era um bem muito mais precioso e no podia ser desperdiado pelos mais inexperientes. Esses vales foram provavelmente visitados primeiro pelos caadores da bacia de Paris, fazendo viagens exploratrias pela Ardenas, por volta de 16.000 a.C. Eles encontraram numerosas cavernas que eram usadas como locais de acampamento; suas fogueiras queimaram a madeira de bosquetes cerrados de amieiros, aveleiras e nogueiras. Assim como na Frana e na Alemanha, as renas eram s vezes mortas por emboscadas em "armadilhas" naturais quando transpunham rios ou atravessavam uma garganta estreita. Outras vezes, os caadores eram mais oportunistas, espreitando e matando uma ampla variedade de animais, como cavalos selvagens, cabritos monteses, camuras c veados-vermelhos. Os vales dos Meuse e Lesse devem ter sido paisagens produtivas, pois logo aps 13.000 a.C. os caadores-coletores comearam a permanecer ali o ano inteiro. Sabemos disso pelo exame microscpico de linhas de crescimento sazonais nos dentes dos animais que eles matavam. Como fizera Lieberman ao estudar a gazela do stio Natufiano Inicial em Hayonim, os arquelogos identificaram se o ltimo perodo de crescimento dentrio das renas mortas na Blgica da era glacial ocorria no vero ou inverno. Como as propores eram iguais, tornou-se evidente que os caadores no sul da

Blgica matavam animais durante o ano todo. Moviam-se entre os vales e talvez tambm tinham caado nos plats intermedirios cobertos de tundra. Mas no tinham slex nas proximidades imediatas; era preciso retir-lo de fontes 35 quilmetros ao norte ou 65 quilmetros a oeste uma caminhada de no mnimo alguns dias. Um dos locais de acampamento da era do gelo chama-se hoje Bois Laiterie. uma pequena caverna situada acima de uma ngreme garganta, e segundo todos os relatos ventosa, fria e escura. Foi usada como acampamento de vero pelos caadores da poca glacial, na certa ocupada por no mais de alguns dias enquanto eles caavam e pescavam salmo e lcio nas vizinhanas. Carcaas parcialmente esquartejadas tinham sido levadas para l; tocara-se uma flauta de osso de pssaro depois perdida ou jogada fora; agulhas de osso indicam que se costuraram roupas. Raposas tomaram-na como residncia quando os caadores partiram, talvez atradas a princpio pelos detritos deixados para trs. Outros stios de cavernas, como Chaleux, localizado perto da confluncia dos Meuse e Lesse, so muito maiores, voltados para o sul e contendo substanciais lareiras revestidas com lajes de pedra. Parecem ter sido os principais acampamentos base dos quais pequenos grupos tinham partido em diferentes ocupaes caar, coletar slex, juntar lenha e pescar. Embora nenhum stio fosse ocupado o ano todo, os vales dos Meuse e Lesse ofereciam um territrio anual para grupos de caadores-coletores que no mais viajavam de volta para as terras natais de geraes passadas no sul. Exatamente quantas pessoas viveram nesses vales, quase impossvel dizer, mas se toma em geral um total de 500 pessoas como sendo o mnimo para garantir que uma populao permanea vivel. Esse nmero, extrado de modelos matemticos de grupos dispersos de caadores-coletores que periodicamente se encontravam para trocar membros, corresponde a caadores-coletores historicamente documentados da Amrica do Norte e Canad. Essas reunies talvez se realizassem apenas uma ou duas vezes por ano; durante quase todo o tempo restante, provvel que os caadores-coletores dos vales dos Meuse e Lesse vivessem em grupos de entre vinte e cinco e cinqenta indivduos, divididos em quatro ou cinco famlias. Embora toda a Europa alm do extremo norte fosse habitvel em 12.500 a.C., h possibilidade de grande parte dela ter permanecido inteiramente vazia de pessoas. As condies da era do gelo ainda teriam inibido a taxa de crescimento populacional e causado srias dificuldades durante as estaes invernais. Alm disso, a dependncia das pessoas da rena para comer talvez tambm tivesse criado problemas, pois pelo que sabemos dos tempos modernos, as populaes de rena podem atravessar perodos de aumento e diminuio de crescimento. Isso teria deixado muitos caadores da era do gelo desesperados por comida e anulado qualquer crescimento populacional alcanado. Nessas condies, era essencial que grupos de pessoas permanecessem em contato uns com os outros no apenas os da mesma regio, mas os que talvez vivessem a centenas, at milhares, de quilmetros de distncia. A chave para a sobrevivncia era a informao informao sobre reservas de alimentos, condies ambientais, possveis parceiros matrimoniais e novas invenes, como os arcos e flechas usados em Stellmoor. Podemos imaginar que as pessoas deviam viajar muitas milhas para visitar amigos e parentes, levando notcias e mexericos, discutindo seus planos futuros, quais animais e plantas tinham visto, quando as aves migratrias tinham alado vo e o que fora informado por outros grupos. Os arquelogos encontraram traos dessas jornadas na esteira de artigos que eram levados e s vezes perdidos ao longo de grandes extenses da Europa. Um primeiro exemplo disso so as conchas fossilizadas levadas para as cavernas, e posteriormente nelas encontradas, do Sul da Blgica objetos sem qualquer valor utilitrio, mas que poderiam ter sido utilizados para enfeitar roupas ou usados como adornos. A origem dessas conchas foi reconstituda de dois estratos geolgicos, um perto de Paris e o outro no vale do Loire, distncias de 150 e 350 quilmetros.

Viagens semelhantes vinham sendo feitas pelos caadores-coletores no centro-oeste europeu entre o Elba e o Reno no norte, e os Alpes e o Danbio no sul. Slex, quartzo, mbar e azeviche, alm de conchas fossilizadas, foram descobertos em stios a mais de 100 quilmetros de suas fontes. Essa regio da Alemanha da poca moderna proporciona uma das melhores percepes sobre as comunidades que tomaram residncia permanente em terras que tinham sido deserto polar durante o mximo glacial. A maioria dos Stios da era do gelo encontrados nas colinas ondulantes e vales fluviais data mais uma vez do perodo Bolling, poca em que suas paisagens continuavam inteiramente descampadas e nas quais cavalos e renas eram a presa existente. Na rea do Mdio Reno, vrios grupos de caadores parecem ter combinado seus esforos todo outono e inverno para caar os grandes nmeros de cavalos que se amontoavam nos vales; durante o vero, dispersavam-se para caar renas nas regies montanhosas vizinhas. O mais impressionante indcio de caadas comunitrias durante o outono e o inverno so os stios de Gnnersdorf e Andernach, descobertos diretamente em lados opostos do Mdio Reno, datando os dois de entre de 13.000 e 11.000 a.C. ao primeiro que chega agora Lubbock aps aprimorar suas aptides em caa e esquartejamento de rena e quebra de slex, enquanto atravessava a Europa vindo de Etiolles. Ele encontra o povoamento localizado num terrao acima do fundo do vale. Instalou-se o inverno; o cu est escuro e a neve cobre o cho. A, Lubbock no encontra uma caverna soturna e mida como Bois Laiterie, nem um stio de grutas frgeis como em Pincevent. Em vez disso, h vrias habitaes circulares de considervel tamanho, de 6 a 8 metros de dimetro, construdas com slidas toras de madeira e cobertas com torres de turla e grossos couros de animais. Um vento gelado sopra pela tundra e a fumaa sobe de cada telhado. De uma casa distante, ouve-se o fraco som de uma msica; de uma prxima, conversa humana. Lubbock abaixa-se, afasta os couros pendurados sobre a porta e entra. Dez ou doze pessoas sentam-se em densas peles estendidas num piso de ardsia. Est quente l dentro, e os ocupantes, homens e mulheres, tm o peito nu; o ar cheio de fumaa inebriante, pois ervas aromticas ardem no fogo. As pessoas circundam uma lareira central, sobre a qual se assam nacos de carne de cavalo, sobre uma grelha de ossos de mamute. Um punhado de conchas passa de mo em mo em volta do crculo. So pequenas conchas tubulares, ocas, branco-creme, de poucos centmetros de comprimento. Algumas tm a superfcie lisa, e as outras profundas estrias. Os aldees no as viram antes; tratase de dentlios, originrios do litoral mediterrneo e trazidos ao assentamento por um visitante de inverno. Lubbock, claro, viu essas conchas nos pescoos de pessoas em Ain Mallaha aldeia que prospera nas florestas de carvalho do Crescente Frtil nesse mesmo momento. A noite cai, a carne comida e velas so acesas. Um dos homens parece mais velho que os demais e usa no pescoo um colar de dentes de raposa perfurados. A noite toda estivera baixando a cabea perto das ervas fumegantes e inalando profundamente. Agora pega uma pequena placa de ardsia lisa e desenha na superfcie, cortando-a com uma ponta de slex. Enquanto faz isso, as outras pessoas cantam baixinho. Minutos depois, o velho acabou, e a ardsia gravada passa em volta do crculo. Ele desenhou um cavalo; representado-o cuidadosamente e com propores muito corretas. A ardsia posta de lado. O velho um xam recomea: uma profunda inalada da fumaa embriagante, alguns minutos de intensa concentrao em meio a mais cantoria, outra placa de ardsia para passar em volta do crculo. Tambm esta tem a figura de um cavalo. E assim continua por vrias horas o velho acaba desabando no cho.

Desde 1954, as escavaes realizadas por Gerhard Bosinski em Gnnersdorf tm produzido a maior e mais perfeita coleo de objetos de arte da Europa Central. Encontraram-se mais de 150 placas com gravuras de animais e mulheres. Os cavalos so os representados com mais freqncia, muitas vezes com um naturalismo muito semelhante ao encontrado nas pinturas rupestres nas cavernas de Dordogne. O interesse pelo cavalo talvez no surpreenda, pois era o suprimento alimentar-chave dos habitantes; mas tais argumentos econmicos no explicam por que o mamute tambm era to freqentemente representado com igual nvel de naturalismo. Os desenhos demonstram considervel conhecimento anatmico na detalhada descrio dos olhos, troncos e caudas, embora os mamutes fossem raros ou at totalmente ausentes do Mdio Reno nessa poca. Retratavam-se ainda pssaros, focas, rinocerontes peludos e lees. Lubbock fica alguns dias em Gnnersdorf. Em cada um deles, grupos de caa masculinos saem em busca de cavalos pelo vale. Enquanto o fazem, ele passa a apreciar outro fator-chave da sociedade da era do gelo, um dos que foram lamentavelmente negligenciados pelos arquelogos durante todo o ltimo sculo. Trata-se do fundamental papel das mulheres. Com to grande nfase na caa e matana tarefas cujo empreendimento se supe seja dos homens, e que criam a maioria dos restos arqueolgicos ignorou-se o trabalho essencial delas. Em Gnnersdorf, Lubbock v como elas juntam lenha, constroem e mantm as casas, cuidam das lareiras, preparam as roupas, fazem instrumentos de pedra, madeira e chifre, cozinham a comida e tomam conta das crianas, velhos e enfermos, noite, so as mulheres que cantam e danam em volta das fogueiras comunais. So elas que criam e amamentam os recm nascidos. E tambm vo caa. Uma noite, Lubbock folheia as pginas de Tempos pr-histricos para descobrir o que seu xar vitoriano escreveu sobre o papel das mulheres na "sociedade selvagem", Muito pouco; elas mal chegam a ser mencionadas. Numa pgina, ele observa que "a castidade das mulheres no , como regra geral, muito valorizada entre os selvagens", embora continue afirmando que "no devemos conden-los com excessiva severidade por isso"; em outras partes, comenta em termos casuais que os canibais preferem a carne de mulheres de homens, e que se prefere como comida as mulheres aos cachorros em tempos de escassez. Portanto, o nico papel apreciado pelo vitoriano Lubbock era o de satisfazer a fome, gastronmica e de outro tipo, de seus homens. O John Lubbock moderno constatara ser isso um grande engano; o papel-chave delas em todos os aspectos da sociedade da era glacial talvez fosse o motivo de as mulheres serem os principais temas descritos pelos artistas de Gnnersdorf. Embora jamais exibindo o naturalismo dos animais, essas imagens valiam de representaes quase completas, em que se desenham cabeas, corpos, braos e seios, a uma virtual abstrao em que uma nica linha traa a das costas e das ndegas. s vezes mostram-se mulheres individuais, outras em grupos de trs ou quatro, e em alguns casos em filas de dez ou mais, com os corpos parecendo balanar de uma forma que sugere dana. Numa imagem, uma srie de mulheres que parecem caminhar juntas; uma carrega um beb nas costas, os seios visivelmente tmidos de leite. A mesma forma feminina estilizada bastante encontrada em stios por todo o centro-oeste da Europa, s vezes gravada em ardsias e s vezes talhadas em galhadas, mas nunca em tanta profuso quanto em Gnnersdorf. Os arquelogos tipicamente homens tm interpretado por tradio qualquer imagem feminina da era do gelo como um smbolo de fertilidade, descrevendo vrias como "estatuetas de Vnus". Mas no h nada manifestamente sexual nas imagens de Gnnersdorf; na verdade, parecem com maior probabilidade celebrar o papel das mulheres mais como mes, zeladoras, provedoras e trabalhadoras na sociedade da era glacial que apenas geradoras de filhos, e muito menos como objetos de desejo sexual. Durante todo o inverno, as pessoas permanecem em Gnnersdorf; novas chegadas aumentam seu nmero para mais de uma centena. Passam muito tempo contando

histrias e discutindo planos para a primavera onde cada grupo ir para caar, quais se algum ficaro na aldeia. O mesmo ocorre em stios de acampamento de inverno por todo o centro e o norte da Europa. Mas Isso no durar. Lubbock senta-se no aconchego de uma casa, como antes fizera na estepe perto de Abu Hureyra. Assim como naquela ocasio, seus companheiros no tm o menor conhecimento de que o Jovem Dryas vai chegar da a pouco. Isso baixar a cortina sobre todo canto e dana no vale do Reno por no mnimo um milnio. Por volta de 10.800 a.C., o clima da Europa deu de fato um brusco mergulho de volta s mais rigorosas condies da era do gelo. Isso dizimou as manadas de cavalo que hibernavam nos vales do centro da Europa e sustentavam grandes grupos de caadorescoletores. Em vez de ser apenas temporariamente desertada na estao do vero, Gnnersdorf foi abandonada para sempre. Por toda a Europa, a vegetao e as comunidades animais transformaram-se: reas florestais voltaram a ser tundra estril. Assim como o povo do Natufiano Inicial no oeste da sia, os caadores da era glacial do norte da Europa tiveram de adaptar-se s novas condies e suas populaes foram levadas beira da extino. No tinham quaisquer cereais para cultivar, mas exploravam a continuao das migraes anuais de rena em todo o vale de Ahrensbur agora usando arcos e flechas. Com a privilegiada viso em retrospecto da histria, sabemos que tempos melhores iriam mais uma vez chegar. Em 9.600 a.C., o drstico aquecimento global eliminou os invernos frios de rachar c proporcionou o mais denso revestimento de florestas que a Europa conheceu por mais de 100 mil anos. E para essas terras que agora precisamos viajar, saltando o Jovem Dryas. Vamos deixar Lubbock fazer uma jornada para o sul da Europa e retornar ao que hoje so as ilhas Britnicas no noroeste.

15 Em Star Carr Adaptaes s primeiras florestas do Holoceno no norte da Europa 9.600 8.500 a.C.

Visitar Star Carr, em Yorkshire, visitar um dos stios arqueolgicos-chave na Europa. Foi comparado com preciso em importncia caverna pintada de Lascaux e ao tmulo de Tutancmon. Mas quando chegamos, no h nibus de turistas poluindo o ar nem guias vidos por dinheiro. E tampouco centros de patrimnio, lojas de suvenires, postes de sinalizao, monumentos ou placas; apenas um quase perfeito recanto do campo ingls. Minha ltima visita foi numa tranqila tarde de vero em 1998. Eu encontrara o caminho ao percorrer uma senda no sinalizada e um terreno de fazenda, parando para ver as acrobacias de andorinhas e martins-pescadores. Um atalho levou-me por campos com vacas a pastar o mato no ceifado, e ao longo de uma fileira de sebes onde minhas nicas companhias eram borboletas e pintassilgos a esvoaar entre os cardos roxos. Quando esse atalho se encontrou com o Hertford, um riacho de suave corrente, com cisnes e filhotes a nadar, percebi pelas palavras trocadas com o campons que havia chegado. O stio ficava esquerda, mas no se via qualquer arqueologia, nem muros tombados ou calombos cobertos de mato a indicar uma era passada. Diante de mim abria-se um campo de pasto como qualquer outro; atrs, uma margem de rio onde abelhas trabalhavam em amoras, botes-de-ouro e rosas-de-co. Olhando-se para leste e oeste, o pasto plano do Vale Pickering estendia-se at onde a vista alcanava, interrompido apenas por ocasionais fossos e pequenas plantaes. Ao norte, a terra comeava a subir em direo aos pntanos de Yorkshire, e ao sul para as ondulantes colinas descampadas. O ar desprendia um perfume de ulmria; senti-me primeiro tentado a nadar e depois tirar uma soneca. Como podia aquele no assinalado canto de Yorkshire ser sensatamente comparado a Lascaux e Tutancmon? Sem a menor dvida, era uma comparao absurda. Mas foi feita por ningum menos que o falecido Sir Grahame Clark, Professor da cadeira Disney de Arqueologia da Universidade de Cambridge, Mestre de Peterhouse, Membro da Academia Britnica. Certamente no era um homem precipitado; mas tampouco modesto; e Star Carr era sua preciosa escavao. Assim como o tmulo de Tutancmon e as pinturas de Lascaux so simblicos de mundos antigos e desaparecidos, tambm o o stio de Star Carr o mundo perdido dos caadores-coletores habitantes de florestas da Europa que viveram no perodo que os arquelogos chamam Mesoltico. Esse foi o novo mundo da cultura europia. Um mundo criado pelos descendentes dos caadores de rena de Stellmoor e das danarinas de Gnnersdorf, depois que o Jovem Dryas terminou to de repente quanto comeara e as camadas de gelo da Europa acabaram afinal de derreter-se. H muitas centenas, provavelmente milhares, de stios mesolticos na Europa um registro arqueolgico inteiramente diferente daqueles efmeros traos de povos da era do gelo que tinham chegado antes. Alguns tm tmulos exticos; outros, impressionantes. Mas Star Carr no tem nenhuma das duas coisas. Ento por que um stio to especial? A resposta simples, Star Carr fica onde o Mesoltico de fato comeou. Comeou ali, no sentido literal um dos mais antigos assentamentos mesolticos conhecidos em toda a Europa. Comeou ali para mim pessoalmente Star Carr foi o primeiro stio mesoltico de que tomei conhecimento, e revelou-se fundamental para a minha deciso de tornar-me arquelogo. E comeou ali num sentido histrico: antes de Grahame Clark fazer suas

escavaes de 1941-1951, o perodo Mesoltico era quase ignorado em comparao com o Paleoltico, que veio antes, e o Neoltico, que a ele se seguiu. Foi o primeiro stio na Europa, de qualquer perodo, a ser datado por radiocarbono. Em 1865, o John Lubbock vitoriano no tinha a mnima idia dessa crucial fase da PrHistria. Escreveu em Tempos pr-histricos: "A partir do cuidadoso estudo dos vestgios que chegaram at ns, parece que a Arqueologia pr-histrica pode ser dividida em quatro grandes pocas." Descrevia em seguida o perodo Paleoltico "quando o homem partilhava a posse da Europa com o mamute, o urso das cavernas, o rinoceronte peludo e outros animais extintos"; o perodo Neoltico "caracterizado por belas armas e instrumentos feitos de slex e outros tipos de pedra"; a Idade do Bronze e a Idade do Ferro. Nenhuma meno ao Mesoltico; simplesmente no existia em 1865. Mais adiante no livro, o vitoriano Lubbock diz que o arquelogo dinamarqus professor Worsaae queria dividir a idade paleoltica em duas fases. A primeira envolvia implementos de pedra associados a animais extintos, e a segunda referia-se a descobertas feitas no litoral dinamarqus, sobretudo grandes montes de conchas que tambm continham espinhas de peixe, ossos e artefatos de animais, chamados Kjkkenmddings (monturos de cozinha, ou depsitos de lixo). Outro arquelogo dinamarqus, professor Steenstrup, acreditava que os monturos faziam parte da Nova Idade da Pedra, do Neoltico de Lubbock. Aps pesar os escassos vestgios dos dois lados, o John Lubbock vitoriano tomou o partido de Steenstrup: embora achasse que os Kjkkenmddings representavam um perodo definido da histria dinamarquesa, na certa ficava dentro do prprio Neolco. Sabemos hoje que Worsaae estava certo e Steenstrup inteiramente errado; o Mesoltico muito distinto dos perodos Paleoltico e o Neoltico da pr-histria europia. Trata-se dos caadores-coletores do perodo holocnico na Europa, os que viviam em densas florestas antes da chegada dos primeiros agricultores. Grahame Clark foi pioneiro em estudos mesolticos na Gr-Bretanha na dcada de 1930, compilando um catlogo e classificao dos artefatos de pedra do perodo. Mas s com a escavao de Star Carr seus interesses se voltaram para o estilo de vida e meio ambiente do Mesoltico. Ao fazer isso, apenas alcanava a arqueologia dinamarquesa, que j vinha atacando esses problemas desde que os Kjkkenmddings foram escavados pela primeira vez na dcada de 1850 embora Worsaae e Steenstrup discordassem sobre a idade deles. Naquela pacfica tarde de vero, imaginei a atividade do jovem professor de Cambridge e sua equipe chegando a Star Carr, montando acampamento e comeando o trabalho de escavao. Clark escolhera Star Carr depois que se descobriram artefatos de pedra num fosso de drenagem. Acabou sendo uma escolha perspicaz, Na turfa saturada de gua daquele campo em Yorkshire, ele encontrou os restos de um acampamento de caadorescoletores com um grau de preservao sem precedente, no apenas de ossos de animais, mas de instrumentos de chifre e madeira. Nem de perto algum stio mesoltico da GrBretanha, encontrado antes ou desde ento, se aproximou de seu nvel de preservao. Os habitantes do Mesoltico se teriam sentado exatamente onde eu me sentei naquela deliciosa tarde. Mas nas colinas ao norte e ao sul de ento faltavam os muros e as casas de fazenda construdas com pedras do campo de Yorkshire; eles viam nesse lado encostas cobertas de floresta de btula e um espesso matagal de fetos. E sua frente estendia-se no um pasto, mas um enorme lago, a margem demarcada hoje pelo declive pouco fundo no qual eu cochilara. O lugar de acampamento deles foi uma base de caa nas florestas de btula e ao longo da beira do lago. O veado-vermelho era sua presa preferida, mas tambm caavam javali, cabrito montes, alce e auroque. Coletavam plantas, capturavam patos e mergulhes, e com toda probabilidade pescavam em canoas. Chegavam a Star Carr todo vero, e uma de suas tarefas essenciais era queimar as densas fileiras de juncos que margeavam o lago.

No acampamento, conjuntos de instrumentos eram feitos e consertados novas pontas e farpas encaixadas nas flechas, peles de animais limpas e depois costuradas para roupas, e arpes de Calhadas manufaturados. As galhadas teriam sido reunidas no outono e inverno, escondidas no stio pronto para essa visita. Talhar os arpes era um ofcio ao mesmo tempo de habilidade e laborioso. A galhada era trabalhada com instrumentos de pedra em forma de cinzis. Cortavam-se sulcos paralelos ao longo da pea, e depois soltava se um segmento plano; este era cortado, modelado e alisado. Alguns preferiam fazer pontas de galhada com vrias farpas finas, outros talhavam apenas umas poucas, de forma grosseira; talvez fossem desenhos para capturar diferentes tipos de caa ou apenas experincias, pois ningum sabia qual desenho era o mais eficaz para caar. Assim, sentado naquele campo de Yorkshire, tive de imaginar a cena mesoltica: as chamas crepitando pelos juncos secos, olhos marejados pela fumaa, crianas excitadas correndo atrs de aves selvagens, lebres e camundongos. Os juncos que tinham queimado bem, as chamas alcanando os galhos pendentes para que os amentilhos florescessem em vivido laranja, eram levados na brisa e por um momento flutuavam no lago, antes de afundar. Os juncos eram queimados para proporcionar uma vista do outro lado do lago e melhorar o acesso s canoas. A prtica tambm estimulava o crescimento de novos brotos, que permitiriam contar com gamos pastando quando as pessoas retornassem mais uma vez para caar nas margens. Em diferentes partes do mundo prhistrico, nessa data de 9.000 a.C., outros tambm fomentavam novos brotos de trigo e cevada, nos campos de Jeric. Naquela noite, as pessoas talvez tivessem danado c cantado, cheias de carne de gamo e embriagadas com drogas herbais. Eu imaginava algumas vestidas com couros e mscaras de galhada, movendo o corpo sensualmente, como coras, msica de cantos, tambores e flautas de junco. Os danarinos de repente paravam, farejavam o ar e corriam em pnico; iam ser mortos pelas flechas dos caadores, que lhes agradeciam e celebravam por renunciar s suas vidas. Imaginei as pessoas partindo no dia seguinte, aps dormirem sob as estrelas algumas encaminhando-se para as colinas, outras viajando de canoa rumo costa leste. As mscaras de cora foram jogadas fora com os ossos dos animais, o lixo da feitura dos arpes c artefatos de pedra. E ali iam permanecer, logo esquecidas enterradas sob os juncos mortos que se transformariam em turfa, at sua descoberta mudar nossa compreenso do passado. As escavaes de Clark produziram grande parte dos indcios sobre os quais trabalhara minha imaginao. Ele encontrou mscaras de gamo mas elas tambm podem ter sido usadas como disfarce de caa em vez de fantasias de dana. Encontrou igualmente vrias formas e tamanhos diferentes de pontas de galhada farpadas e restos de plantas comestveis, embora nenhuma que se soubesse ter propriedades embriagantes. Havia um remo de madeira, mas sem canoa alguma. Clark concluiu as escavaes em 1951. Isso, porm, era apenas o incio de uma constante reanlise e reavaliao dos indcios de Star Carr que continuam at hoje. Clark julgou que o assentamento fosse um acampamento-base de inverno, devido grande quantidade de galhadas coisa presente apenas em animais caados durante a ltima parte do ano. Mas quando, em 1985, os arqueozologos Peter Rowley-Conwy e Tony Legge reanalisaram os ossos de animais, no encontraram nada que sugerisse ocupao de inverno. Em contraste, havia mais indicaes de incio do vero, dos quais os dentes de gamo eram os mais reveladores. Examinando que dentes se tinham deteriorado e comparando-os com padres conhecidos de desenvolvimento dental em gamo moderno, Legge e Rowley-Conwy tiveram certeza de que a maioria dos animais fora morta entre maio e junho.

A queimada de juncos s foi identificada em meados da dcada de 1990. Obra de Petra Dark, arqueloga especializada em reconstituio ambiental que minha colega na Universidade de Reading. Ela tomou novas amostras da turfa da margem e do centro do antigo lago e fez um estudo microscpico admiravelmente detalhado dos gros de plen, partculas de carvo e fragmentos vegetais numa sucesso de fatias da espessura de uma lmina. A primeira destas vinha de uma poca anterior quela em que as pessoas tinham chegado ao Vale Pickering c mostrava que a vegetao fora muito caracterstica das paisagens da era do gelo ervas, capins, salgueiros-do-rio, pinheiro e btula. Aps 9.600 a.C., os gros de plen j haviam mudado e incluam os de alamos e zimbros, e depois seriam dominados pela btula. Logo aps 9.600 a.C., surgiram partculas de carvo na turfa, espalhadas das primeiras fogueiras de acampamento feitas prximo ao lago. Um repentino aumento na quantidade de carvo, junto com fragmentos de junco e amentilhos queimados, indica o incio de intensa atividade; uma clareira anual por queimada na vegetao ao lado do lago continuou durante 80 anos. As pessoas ento ignoraram o lago por uma ou duas geraes, para retornarem cerca de 8.750 a.C. e continuarem as mesmas atividades de antes durante pelo menos mais outro sculo. A essa altura, o salgueiro e o choupo invadiam o lago, transformando grande parte dele em "carr" densas fileiras de rvore em poas d'gua. Em 8.500 a.C., a aveleira se apoderara da paisagem, e aps um episdio de queimada, as pessoas abandonaram Star Carr e foram caar e coletar em outro lugar. O lago praticamente desaparecera. rvores como aveleira, btula, pinheiro e choupo ressurgiram de seus esconderijos da era do gelo logo aps o fim do Jovem Dryas, expandindo-se rapidamente em extensas reas florestais e retomando sua marcha para o norte. Uma vez estabelecidas, as novas matas tiveram pouca paz. Pois logo atrs das espcies pioneiras e resistentes vinham as rvores que preferiam condies mais quentes e midas, cujas necessidades eram satisfeitas pelo avano do aquecimento global. Entre elas o carvalho, o olmo, o limoeiro e o amieiro, que sobreviveram nos vales do sul da Europa e cuja disseminao para o norte fora interrompida pelo Jovem Dryas. medida que essas espcies viajavam de seus abrigos da era glacial, deixavam atrs uma esteira de gros de plen como um registro da viagem. Carvalhos, por exemplo, j eram encontrados por todo Portugal, Espanha, Itlia e Grcia quando o Jovem Dryas chegou ao seu repentino fim. Em 8.000 a.C., tinham bordejado a costa oeste da Frana e alcanado o extremo sudoeste da Gr-Bretanha; cm 6.000 a.C., percorriam todo o continente europeu e as partes mais ao sul da Escandinvia. Em 4.000 a.C., tinham chegado ponta norte da Esccia e costa oeste da Noruega. Por essa poca, porm, os carvalhos mais ao sul vinham sendo derrubados por camponeses que abriam clareiras para o cultivo de lavouras. O limo fez uma viagem diferente, comeando no sudeste, aps sobreviver ao grande congelamento no norte da Itlia e nos Blcs. Foi margeando seu caminho para o leste e centro da Europa, e s chegou ao sudeste da Inglaterra por volta de 6.000 a.C. A aveleira, o olmo e o zimbro fizeram trilhas semelhantes pelo continente. A floresta resultante foi uma rica mistura de espcies, no apenas de rvores, mas de uma variada gama de arbustos e plantas de subsolo, fungos, musgos e liquens. Engoliu toda a Europa. Tambm os animais tiveram de adaptar-se ou migrar para sobreviver. Alguns no conseguiram. Os mamutes, rinocerontes peludos e gamos gigantes se extinguiram, talvez tocados para o abismo por lanas de ponta de pedra. Outros, como as renas e os alces, sobreviveram mudando-se para o extremo norte ou para as altas montanhas, onde as densas florestas no tinham condies de predominar. Os grandes beneficirios do aquecimento global foram o veado-vermelho e o javali, que logo se tornaram a presa preferida dos caadores mesolticos. Enquanto os veados-vermelhos viviam em grandes rebanhos nas tundras e em terras de vegetao sobretudo rasteira do sul da Europa, o

cabrito montes e o javali tinham sobrevivido ao LGM e ao Jovem Dryas nos vales abrigados, em meio a mirrados carvalhos e olmos. medida que iam evoluindo a paisagem e as comunidades animais, tambm o faziam as vidas das pessoas. Para os caadores, as mudanas no comportamento animal eram to importantes quanto as das prprias espcies. Os que tinham acampado em Etiolles e caado em Meiendorf dependiam dos rebanhos migratrios de renas. Tinham esperado e espreitado o percurso dos animais por trilhas bem batidas, e depois chacinado grandes nmeros em emboscadas, nos vales estreitos ou confluncias de rios. Mas nas novas florestas, o gamo vivia em rebanhos pequenos e dispersos, em grupos familiares e s vezes apenas aos dois ou trs. Portanto, a sangrenta matana pela fora bruta teve de ser substituda pela astcia emboscar animais solitrios, atirar flechas atravs de densa vegetao rasteira, seguir por mais tempo a trilha quando a presa fugia deixando um rastro de sangue. No surpreende que essas mudanas no ambiente e nas prticas de caa viessem acompanhadas do desenvolvimento de nova tecnologia. As pontas-de-lana e de flechas parrudas foram substitudas por microlitos: pequenas lminas lascadas de pedra, em geral slex, que logo se tornaram o mais importante elemento da tecnologia de instrumentos de pedra em toda a Europa. Nesse sentido, o povo europeu chegou mesma deciso tomada pelo povo kebarano do oeste da sia no mnimo 10 mil anos antes de que fazer pequenas lminas e lasclas numa srie de formas distintas era o uso mais eficaz de seus recursos de pedra. O que as armas resultantes perdiam em termos de fora bruta e capacidade de penetrao era muitssimo compensado por sua diversidade e flexibilidade. Os microlitos eram empregados no apenas como pontas e farpas de flechas, mais tambm como pontas de brocas e sovelas utilizadas na perfurao de couro, casca de rvore e madeira. Alm de dar eficazes lminas de faca, podiam ser usadas em arpes de trs ou mais dentes para fisgar peixe, e introduzidas em placas de madeira para raspar legumes. Proporcionavam uma tecnologia de encaixe e desencaixe o equivalente da Idade da Pedra ao mais moderno processador de alimentos hoje, com suas peas e empregos aparentemente infindveis. Nada podia estar mais de acordo com as necessidades do povo mesoltico: assim, surgiram vrias oportunidades diferentes para seu uso em qualquer estao, dia ou mesmo viagem de caa localizaes de presa inesperada, encontros casuais de nozes amadurecidas antes do tempo, abrigo para um acampamento de pernoite, uma oportunidade de pesca. Encontram-se em geral os microlitos espalhados no lixo domstico dos assentamentos. Muito ocasionalmente tm sido achados ainda fixados num cabo de flecha, presos com resina de pinheiro. E mais raro ainda, enterrados nos animais que mataram. Nos carrs dinamarqueses de Vig e Prejlerup, os dois mais ou menos contemporneos de Star Carr, escavaram-se esqueletos de auroque quase completos. Haviam sido atacados mas fugido da captura. O espcime de Vig tinha duas pontas de flecha enterradas nas costelas e duas outras leses nos ossos. Uma delas sarara o osso comeara a crescer em volta do ferimento, mostrando que no era a primeira vez que o biso-europeu fora atingido e conseguira escapar. A segunda, que no sarara, fora, claro, um dos disparos fatais que inalaram o animal. O biso de Prejlerup era idntico; embora se tivessem encontrado pontas de flecha em seu traseiro, necessrio supor que tambm fora atingido em tecido mole e sangrado at a morte. As duas descobertas criam imagens de caadores rastejando pelo mato baixo, atacando os machos e depois perseguindo os animais feridos nos dois casos sem sucesso. Os microlitos talvez tenham sido envolvidos em algumas aes notveis, mas em si

mesmos so dos menos impressionantes e complexos instrumentos pr-histricos, Para encontrar a ltima palavra em tecnologia do perodo Mesoltico, precisamos nos voltar no para a pedra, mas para os instrumentos feitos de madeira e fibras vegetais. Pela primeira vez na histria europia, elas so razoavelmente abundantes no registro arqueolgico; parecem testemunhar uma revoluo tecnolgica. A presena desses novos artefatos talvez reflita apenas as oportunidades mais amplas disposio de artesos e mulheres na exuberante floresta do Mesoltico, ou talvez se deva ao lato de essas pessoas muitas vezes acamparem junto a lagos, deixando seu lixo nas superfcies rasas lamacentas. medida que a vegetao invasora transformava esses lagos em pntanos de turfa, o lixo ali permanecia, inteiramente saturado de gua e portanto resistente decomposio. Mas embora oportunidade e preservao sejam sem dvida importantes, desconfio que h outro fator crucial: uma nova canalizao de energias criativas para as artes de desbastar, atar, torcer, esculpir e dar ns, do mesmo modo como foram outrora canalizadas para a pintura e escultura. A delcia desses artefatos que parecem vazar da prpria natureza; falam de uma intimidade com o mundo natural hoje perdida, e so o trabalho manual de gente que amava seu ofcio. Os arquelogos encontraram, por exemplo, restos de gaiolas de vime utilizadas para capturar enguias. Algumas eram feitas de galhos de cerejeira e amieiro, entrelaados com razes de pinheiro uma obra de arte, cincia natural e necessidade prtica torcidas e tranadas numa coisa s. Cascas de salgueiro eram tranadas e atadas para fazer redes de pesca, usadas com flutuadores de casca de pinheiro e pesos de pedra. Essas redes eram lanadas de canoas escavadas de troncos de limoeiro e movidas com remos em forma de corao talhados em freixo. Utilizavam-se varas de aveleira para fazer cercasse desviar peixes para armadilhas, e cascas de btula eram dobradas e costuradas, formando sacolas para carregar lminas de slex. Nem toda a manufatura de instrumentos era bem-sucedida. Muitos excelentes artesos em todo o perodo Mesoltico sabiam fazer arcos, mas essa arte teve de ser aprendida. Num dos casos, abateu-se um olmo e transformou-se o tronco mais ou menos num arco. Deixou-se a madeira secar e depois completou-se a forma. Mas talvez por inexperincia, ou ns na madeira, o arco se partiu durante o uso e foi quebrado ao m