(Des) centralização dos cuidados de saúde primários?

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r e v p o r t s a ú d e p ú b l i c a . 2 0 1 2; 3 0(1) :1–2 www.elsevier.pt/rpsp Editorial (Des) centralizac ¸ão dos cuidados de saúde primários? Primary health care (de)centralization? O debate em torno da descentralizac ¸ão gestionária dos cuida- dos de saúde primários não é recente. Em 1999, o Professor Sampaio Faria escreveu, neste mesmo espac ¸ o, um comentá- rio dedicado ao tema, onde sublinhava a incompatibilidade entre os propósitos da saúde pública e a centralizac ¸ão gestio- nária dos servic ¸os e dos programas de prevenc ¸ão da doenc ¸a e promoc ¸ão da saúde. Ao longo dos anos, vários autores têm sugerido que o desenvolvimento dos cuidados de saúde primários (CSP) e das práticas efetivas de saúde pública dependem da pos- sibilidade e capacidade de muitas das decisões poderem ser tomadas próximas dos cidadãos e das comunidades e não em sede de poder, isto é, tomadas (ou influen- ciadas) por órgãos mais recuados e distantes e com menor conhecimento dos problemas e necessidades em causa. No caso concreto dos cuidados primários, o processo de descentralizac ¸ ão, naquilo que respeita [diz respeito a]aos conceitos de desconcentrac ¸ão e delegac ¸ ão, deveria ter sido consolidado com a criac ¸ão dos ACeS - Agrupamentos de Centros de Saúde, uma vez que seriam extintas as sub- regiões de saúde, sendo que as ARS [Administrac ¸ões Regionais de Saúde] lhes sucederiam nas atribuic ¸ ões, sem prejuízo das que fossem atribuídas aos ACes. Estes beneficiariam de autonomia administrativa para proceder à decisão e implementac ¸ão de soluc ¸ões adaptadas aos recursos dispo- níveis e às necessidades específicas das populac ¸ões que servem. A finalidade dos ACeS é a de garantir a prestac ¸ão de CSP à populac ¸ão de uma área geográfica definida, procu- rando manter os princípios de equidade e solidariedade, de modo a que todos os grupos populacionais parti- lhem igualmente dos avanc ¸os científicos e tecnológicos, postos ao servic ¸o da saúde e do bem-estar da comuni- dade. Todavia, a ausência de autonomia de gestão, pela não realizac ¸ão da descentralizac ¸ão para o nível local, é a princi- pal transformac ¸ão estruturante da reforma dos CSP que falta implementar. E não obstante, esta é fundamental para dar estabilidade à organizac ¸ão da prestac ¸ão de cuidados de saúde, permitindo uma gestão rigorosa e equilibrada dos recursos existentes, o que se torna imperativo no atual contexto de austeridade. A descentralizac ¸ão para os ACeS foi um das medidas preconizadas nas “Linhas de Ac ¸ão Prioritária para o Desen- volvimento dos Cuidados de Saúde Primários”, de 2006, que consistia na atribuic ¸ão de autonomia aos AceS. Este processo deveria ser gradual e estar concluído num prazo máximo de 3 anos. No entanto, no segundo trimestre de 2012, a autonomia parece não ter sido ainda efetivamente consoli- dada. Existem exemplos de experiências internacionais e fundamentos legais para a descentralizac ¸ão da ges- tão. Estão previstos e disponíveis os instrumentos de monitorizac ¸ão e avaliac ¸ão de resultados. A evidência inter- nacional parece demonstrar que os modelos de gestão dos CSP estão diretamente relacionados com o cumpri- mento dos objetivos da prestac ¸ão de cuidados de saúde de qualidade. Os ACeS completam agora três anos de existência. Qual foi o balanc ¸o desta experiência? Porque não foi pos- sível realizar a decentralizac ¸ão anunciada? Que alternativas realistas existem no atual contexto português para a evoluc ¸ão dos ACeS? Para quando esta análise e o debate que segura- mente merecerá? Estas questões são particularmente relevantes, tendo em conta o trajeto histórico da reforma e a sua natureza, essenci- almente no que diz respeito a dois aspetos. O primeiro tem a ver com o facto de a principal forc ¸a pro- pulsora desta reforma terem sido as lideranc ¸as profissionais no terreno (esta é talvez a sua principal originalidade) afas- tar as decisões sobre a gestão das organizac ¸ões dos CSP dessas lideranc ¸as não será certamente uma das melhores formas de dar continuidade a esta reforma. O segundo aspeto a considerar é o que se relaciona com a importância de um consenso alargado na sociedade

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Des) centralizacão dos cuidados de saúde primários?

rimary health care (de)centralization?

debate em torno da descentralizacão gestionária dos cuida-os de saúde primários não é recente. Em 1999, o Professorampaio Faria escreveu, neste mesmo espaco, um comentá-io dedicado ao tema, onde sublinhava a incompatibilidadentre os propósitos da saúde pública e a centralizacão gestio-ária dos servicos e dos programas de prevencão da doenca eromocão da saúde.

Ao longo dos anos, vários autores têm sugerido que oesenvolvimento dos cuidados de saúde primários (CSP) eas práticas efetivas de saúde pública dependem da pos-ibilidade e capacidade de muitas das decisões poderemer tomadas próximas dos cidadãos e das comunidades

não em sede de poder, isto é, tomadas (ou influen-iadas) por órgãos mais recuados e distantes e comenor conhecimento dos problemas e necessidades em

ausa.No caso concreto dos cuidados primários, o processo de

escentralizacão, naquilo que respeita [diz respeito a]aosonceitos de desconcentracão e delegacão, deveria ter sidoonsolidado com a criacão dos ACeS - Agrupamentos deentros de Saúde, uma vez que seriam extintas as sub-egiões de saúde, sendo que as ARS [Administracões Regionaise Saúde] lhes sucederiam nas atribuicões, sem prejuízoas que fossem atribuídas aos ACes. Estes beneficiariame autonomia administrativa para proceder à decisão e

mplementacão de solucões adaptadas aos recursos dispo-íveis e às necessidades específicas das populacões queervem.

A finalidade dos ACeS é a de garantir a prestacão deSP à populacão de uma área geográfica definida, procu-ando manter os princípios de equidade e solidariedade,e modo a que todos os grupos populacionais parti-

hem igualmente dos avancos científicos e tecnológicos,ostos ao servico da saúde e do bem-estar da comuni-ade.

Todavia, a ausência de autonomia de gestão, pela nãoealizacão da descentralizacão para o nível local, é a princi-al transformacão estruturante da reforma dos CSP que falta

implementar. E não obstante, esta é fundamental para darestabilidade à organizacão da prestacão de cuidados de saúde,permitindo uma gestão rigorosa e equilibrada dos recursosexistentes, o que se torna imperativo no atual contexto deausteridade.

A descentralizacão para os ACeS foi um das medidaspreconizadas nas “Linhas de Acão Prioritária para o Desen-volvimento dos Cuidados de Saúde Primários”, de 2006, queconsistia na atribuicão de autonomia aos AceS. Este processodeveria ser gradual e estar concluído num prazo máximode 3 anos. No entanto, no segundo trimestre de 2012, aautonomia parece não ter sido ainda efetivamente consoli-dada.

Existem exemplos de experiências internacionais efundamentos legais para a descentralizacão da ges-tão. Estão previstos e disponíveis os instrumentos demonitorizacão e avaliacão de resultados. A evidência inter-nacional parece demonstrar que os modelos de gestãodos CSP estão diretamente relacionados com o cumpri-mento dos objetivos da prestacão de cuidados de saúde dequalidade.

Os ACeS completam agora três anos de existência.Qual foi o balanco desta experiência? Porque não foi pos-

sível realizar a decentralizacão anunciada? Que alternativasrealistas existem no atual contexto português para a evolucãodos ACeS? Para quando esta análise e o debate que segura-mente merecerá?

Estas questões são particularmente relevantes, tendo emconta o trajeto histórico da reforma e a sua natureza, essenci-almente no que diz respeito a dois aspetos.

O primeiro tem a ver com o facto de a principal forca pro-pulsora desta reforma terem sido as liderancas profissionaisno terreno (esta é talvez a sua principal originalidade) – afas-tar as decisões sobre a gestão das organizacões dos CSP dessasliderancas não será certamente uma das melhores formas de

dar continuidade a esta reforma.

O segundo aspeto a considerar é o que se relacionacom a importância de um consenso alargado na sociedade

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portuguesa sobre a evolucão da reforma dos CSP – foi possi-velmente a existência dessa base social de apoio que permitiuter-se chegado até aqui.

Qualquer alteracão organizacional a implementar nãopoderá verificar-se se não existir consenso e se não seconcretizar em melhorias relativamente à situacão que lhedeu origem e sempre sem colocar em causa aqueles que foramos objetivos da reforma iniciada em 2005 e que se baseiam,

essencialmente, na (i) necessidade da existência de cuidadosde saúde de qualidade para todos os cidadãos, na (ii) recom-pensa pelas boas práticas profissionais e na (iii) eficiência esustentabilidade do sistema de saúde.

c a . 2 0 1 2;3 0(1):1–2

Patrícia BarbosaEscola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa,

Lisboa, Portugal

Correio eletrónico: [email protected]

14 de maio de 2012

14 de maio de 2012

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Elsevier España, S.L. Todos os direitos reservados.http://dx.doi.org/10.1016/j.rpsp.2012.05.001