Des Colon Iza Cao Vitor Crespo

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1 / 42 Descolonização de Moçambique Vítor Crespo I. PRINCIPAIS ASPECTOS DA SITUAÇÃO EM MOÇAMBIQUE ANTES DO 25 DE ABRIL No contexto desta comunicação, devem ser enunciados por mais relevantes da situação de Moçambique antes do 25 de Abril os seguintes aspectos: 1. Situação de guerra com afirmação crescente da Frelimo em Cabo Delgado, Niassa, Tete, Manica e Sofala. 2. a) Alheamento dos colonos portugueses da situação de guerra em que se vivia. O pensamento dos grupos dominantes relativamente ao futuro era o do encontro de uma solução tipo Rodésia. b) Existência de um muito reduzido número de europeus residentes (democratas de Moçambique) que advogava uma negociação de independência com a Frelimo. 3. População moçambicana dando apoio militante à Frelimo nas zonas de implantação militar. a) Quadros da Frelimo em praticamente todo o território. b) Pequena actividade política da população Moçambicana fora das zonas de implantação militar à excepção da zona suburbana de Lourenço Marques e eixo Beira Vila Pery. c) Aldeamentos de populações moçambicanas auto-defendidas. 4. Existência de um brutal sistema de vigilância/repressão políti6o-ideológico cuja acção pode ser medida através dos milhares de moçambicanos presos. 5. Situação económica crescentemente afectada pela guerra. Situação financeira de virtual bancarrota. 6. a) Algumas demonstrações de cansaço por parte dos quadros das FA's por permanecerem numa guerra de 13 anos. b) Africanização crescente dos efectivos militares: 50 C 7c das tropas combatentes. c) Sinais claros de pouco empenhamento do pessoal de incorporação relativamente à acção militar e descrença na sua validade. Aparecimento frequente de milicianos negando a legitimidade da guerra e o valor dos seus objectivos. d) Consciência crescente por parte do MFA de que a guerra não tinha solução militar e que urgia encontrar-lhe uma saída política. Firme convicção de que o governo de Lisboa não encontraria essa saída política. e) Tendência para o equilíbrio do potencial de meios militares entre as duas forças em particular anti-aéreos.

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Descolonização de MoçambiqueVítor CrespoI. PRINCIPAIS ASPECTOS DA SITUAÇÃO EM MOÇAMBIQUE ANTES DO 25 DEABRILNo contexto desta comunicação, devem ser enunciados por mais relevantes da situação deMoçambique antes do 25 de Abril os seguintes aspectos:1. Situação de guerra com afirmação crescente da Frelimo em Cabo Delgado, Niassa, Tete,Manica e Sofala.2. a) Alheamento dos colonos portugueses da situação de guerra em que se vivia. Opensamento dos grupos dominantes relativamente ao futuro era o do encontro de umasolução tipo Rodésia.b) Existência de um muito reduzido número de europeus residentes (democratas deMoçambique) que advogava uma negociação de independência com a Frelimo.3. População moçambicana dando apoio militante à Frelimo nas zonas de implantaçãomilitar.a) Quadros da Frelimo em praticamente todo o território.b) Pequena actividade política da população Moçambicana fora das zonas de implantaçãomilitar à excepção da zona suburbana de Lourenço Marques e eixo Beira Vila Pery.c) Aldeamentos de populações moçambicanas auto-defendidas.4. Existência de um brutal sistema de vigilância/repressão políti6o-ideológico cuja acçãopode ser medida através dos milhares de moçambicanos presos.5. Situação económica crescentemente afectada pela guerra.Situação financeira de virtual bancarrota.6. a) Algumas demonstrações de cansaço por parte dos quadros das FA's por permaneceremnuma guerra de 13 anos.b) Africanização crescente dos efectivos militares: 50C7c das tropas combatentes.c) Sinais claros de pouco empenhamento do pessoal de incorporação relativamente àacção militar e descrença na sua validade. Aparecimento frequente de milicianosnegando a legitimidade da guerra e o valor dos seus objectivos.d) Consciência crescente por parte do MFA de que a guerra não tinha solução militar eque urgia encontrar-lhe uma saída política.Firme convicção de que o governo de Lisboa não encontraria essa saída política.e) Tendência para o equilíbrio do potencial de meios militares entre as duas forças emparticular anti-aéreos.2 / 42II . Caracterização da situação em Moçambique entre 25 de Abril e 7 de SetembroOs pontos que vão ser esquematicamente referidos não se observaram sempre nomesmo grau. Deve também considerar-se que as situações descritas se foramprogressivamente agravando até 7 de Setembro.1. Do ponto de vista militara) Os comandos superiores das forças portuguesas revelaram total incompreensãorelativamente às mudanças que a alteração política do 25 de Abril trazia. Sóexcepcionalmente foram adoptadas medidas diferentes daquelas que até aí vinham sendousadas.Assistiu-se a uma certa apatia e perplexidade por parte dos comandos quando nãoobstrução às iniciativas decorrentes da nova situação.b) Relativamente ao pessoal de incorporação, a clarificação do sentido da guerra e aevidência da inevitabilidade da solução política a curto prazo, desmobilizaram quasetotalmente a vontade de combater e relaxaram mesmo a vontade de resistir. Notaram-sefundamentalmente três tipos de atitudes:A das pessoas ligadas ao regime anterior que apenas se preocuparam em partir, não seimportando com o destino ulterior de Moçambique, pouco numerosas mas militantes; a dosmovimentos esquerdistas do tipo «nem mais um soldado para as colónias» que na prática seconjugaram com as primeiras, e, por fim, a dos que, reconhecendo a inevitabilidade doencontro de uma solução política, procuraram, mais ou menos empenhadamente, contribuirpara a sua concretização.c) Da parte dos militares do MFA são de salientar as seguintes acções:• Contactos com os comandos militares no sentido de os alertar para a necessidade deestabelecer uma linha de acção na orientação das operações que favorecesse oencontro de soluções negociadas.Estas diligências foram em geral mal aceites e delas resultou um agravamento dasjá deterioradas relações com os escalões mais elevados da hierarquia e uma

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    Descolonizao de Moambique Vtor Crespo

    I. PRINCIPAIS ASPECTOS DA SITUAO EM MOAMBIQUE ANTES DO 25 DE ABRIL

    No contexto desta comunicao, devem ser enunciados por mais relevantes da situao de Moambique antes do 25 de Abril os seguintes aspectos: 1. Situao de guerra com afirmao crescente da Frelimo em Cabo Delgado, Niassa, Tete,

    Manica e Sofala. 2. a) Alheamento dos colonos portugueses da situao de guerra em que se vivia. O

    pensamento dos grupos dominantes relativamente ao futuro era o do encontro de uma soluo tipo Rodsia.

    b) Existncia de um muito reduzido nmero de europeus residentes (democratas de Moambique) que advogava uma negociao de independncia com a Frelimo.

    3. Populao moambicana dando apoio militante Frelimo nas zonas de implantao

    militar. a) Quadros da Frelimo em praticamente todo o territrio. b) Pequena actividade poltica da populao Moambicana fora das zonas de implantao

    militar excepo da zona suburbana de Loureno Marques e eixo Beira Vila Pery. c) Aldeamentos de populaes moambicanas auto-defendidas.

    4. Existncia de um brutal sistema de vigilncia/represso polti6o-ideolgico cuja aco

    pode ser medida atravs dos milhares de moambicanos presos. 5. Situao econmica crescentemente afectada pela guerra.

    Situao financeira de virtual bancarrota.

    6. a) Algumas demonstraes de cansao por parte dos quadros das FA's por permanecerem numa guerra de 13 anos.

    b) Africanizao crescente dos efectivos militares: 50C7c das tropas combatentes. c) Sinais claros de pouco empenhamento do pessoal de incorporao relativamente

    aco militar e descrena na sua validade. Aparecimento frequente de milicianos negando a legitimidade da guerra e o valor dos seus objectivos.

    d) Conscincia crescente por parte do MFA de que a guerra no tinha soluo militar e que urgia encontrar-lhe uma sada poltica. Firme convico de que o governo de Lisboa no encontraria essa sada poltica.

    e) Tendncia para o equilbrio do potencial de meios militares entre as duas foras em particular anti-areos.

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    II . Caracterizao da situao em Moambique entre 25 de Abril e 7 de Setembro

    Os pontos que vo ser esquematicamente referidos no se observaram sempre no

    mesmo grau. Deve tambm considerar-se que as situaes descritas se foram

    progressivamente agravando at 7 de Setembro.

    1. Do ponto de vista militar

    a) Os comandos superiores das foras portuguesas revelaram total incompreenso

    relativamente s mudanas que a alterao poltica do 25 de Abril trazia. S

    excepcionalmente foram adoptadas medidas diferentes daquelas que at a vinham sendo

    usadas.

    Assistiu-se a uma certa apatia e perplexidade por parte dos comandos quando no

    obstruo s iniciativas decorrentes da nova situao.

    b) Relativamente ao pessoal de incorporao, a clarificao do sentido da guerra e a

    evidncia da inevitabilidade da soluo poltica a curto prazo, desmobilizaram quase

    totalmente a vontade de combater e relaxaram mesmo a vontade de resistir. Notaram-se

    fundamentalmente trs tipos de atitudes:

    A das pessoas ligadas ao regime anterior que apenas se preocuparam em partir, no se

    importando com o destino ulterior de Moambique, pouco numerosas mas militantes; a dos

    movimentos esquerdistas do tipo nem mais um soldado para as colnias que na prtica se

    conjugaram com as primeiras, e, por fim, a dos que, reconhecendo a inevitabilidade do

    encontro de uma soluo poltica, procuraram, mais ou menos empenhadamente, contribuir

    para a sua concretizao.

    c) Da parte dos militares do MFA so de salientar as seguintes aces:

    Contactos com os comandos militares no sentido de os alertar para a necessidade de

    estabelecer uma linha de aco na orientao das operaes que favorecesse o

    encontro de solues negociadas.

    Estas diligncias foram em geral mal aceites e delas resultou um agravamento das

    j deterioradas relaes com os escales mais elevados da hierarquia e uma

    animosidade crescente dos comandos contra o MFA.

    Esclarecimento das tropas relativamente nova situao poltica resultante das

    transformaes operadas em Portugal e preparao do pessoal para a inevitabilidade

    do encontro de uma soluo poltica para a guerra. A indicao da nova misso e

    sentido de aco militar exerceram um papel determinante no moral e coeso das

    nossas foras em Moambique e permitiu que fosse encontrado um sentido para a

    necessidade de resistir militarmente at ao encontro da soluo poltica.

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    Esclarecimento das solues civis, indicando com verdade a situao da guerra e

    preparando a opinio pblica para a inevitabilidade do encontro de uma soluo

    poltica.

    Definio clara, com posies pblicas no final do perodo em anlise, de que o

    reconhecimento do direito independncia de Moambique era a soluo que melhor

    serviria os interesses portugueses de ento e tambm o futuro das relaes de

    Portugal com Moambique.

    Chamadas de ateno e mesmo algumas presses junto das autoridades polticas e

    militares de Lisboa no sentido de serem tomadas as decises que preconizavam, ou

    seja, negociaes directas com a Frelimo para o estabelecimento de um quadro em

    que se efectivasse a independncia de Moambique com salvaguarda dos interesses

    portugueses.

    d) Uma parte assinalvel das foras portuguesas integravam soldados moambicanos do

    recrutamento local.

    Atravs das aces de informao e propaganda exercidas pelos meios de comunicao

    social e em razo da clareza crescente com que era observvel a inevitabilidade da

    independncia, deixou progressivamente de ser possvel contar com essas tropas para a

    defesa das posies portuguesas, constituindo mesmo em certos casos, factor de

    preocupao por poderem revoltar-se.

    2.Do ponto de vista da aco poltico-militar da Frelimo

    Na zona da Beira-Vila Pery registou-se o aumento da actividade militar que

    crescentemente se vinha verificando, tanto em intensidade como em extenso. Foram

    provocados importantes danos em objectivos econmicos com assinalveis efeitos

    psicolgicos entre os portugueses.

    Na zona de Tete que havia conhecido um decrscimo de actividade antes do 25 de Abril,

    notou-se uma maior disperso da actividade militar e uma minagem mais intensa dos

    itinerrios.

    Aumentam muito as actividades ligadas com a abertura da frente da Zambzia onde foi

    incrementada a preparao de estruturas militares e actividade de contacto com as

    populaes atravs de aces poltico-militares. Em Cabo Delgado, depois de um perodo

    que consistiu na consolidao do seu dispositivo a Norte do Rio Messalo, foram

    intensificados os ataques a aquartelamentos usando considerveis efectivos militares.

    Em resumo, do ponto de vista poltico-militar assistiu-se a um intensificar de aces

    procurando obter efeitos psicolgicos sobre as populaes e, em particular sobre os

    portugueses residentes.

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    3. Aco poltica e movimentao social da Frelimo

    Os quadros da Frelimo actuaram em todo o territrio de Moambique promovendo

    aces de esclarecimento e mobilizao de massas.

    Procuraram colocar-se em todos os organismos onde essa aco se tomasse mais

    eficiente.

    Durante o perodo e num movimento crescente, o partido foi grangeando militantes entre

    os quadros locais que vieram juntar-se aos que desde longa data nele militavam. Uns e

    outros mantiveram uma actividade meio aberta meio clandestina.

    de salientar neste caso a aco dos democratas de Moambique.

    A face no armada da Frelimo conseguiu uma notvel implantao na comunicao

    social e na direco das lutas laborais.

    4. Comunicao social

    O governo empossado aps o 25 de Abril e que esteve em funes at Agosto de 74 no

    mediu devidamente as consequncias que uma liberalizao incontrolada da comunicao

    social acarretava.

    Todos os sectores ideolgicos se empenharam na luta que se travava em Moambique.

    Alguns dos principais lugares foram mesmo ocupados por militantes da Frelimo. A aco

    destes, naturalmente, visava desencadear os processos mais convenientes ao campo dos

    seus interesses que no eram coincidentes com os portugueses.

    No valer a pena alongarmo-nos sobre o significado que tem no plano militar a

    existncia de uma comunicao social dominada pelos agentes do adversrio. Bastar

    recordar que, na noite em que caiu a companhia de OMAR, o Rdio Clube de Moambique

    noticiou vrias vezes que se tinha chegado a um cessar-fogo com as FPLM, facto que

    ajudar a compreender a forma como aquele incidente se deu.

    Hoje quase inconcebvel que se tivesse podido atribuir a elementos do adversrio a

    responsabilidade da divulgao, nos principais rgos de comunicao social de

    Moambique, das notcias sobre os acontecimentos mais relevantes, incluindo as da guerra e

    das negociaes entre Portugal e a Frelimo. Esta situao bem reveladora da m

    interpretao que foi dada justa vontade de negociar com a Frelimo.

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    5. Situao laboral e social

    A m interpretao do sentido em que deveria ter sido entendida a liberalizao da

    sociedade moambicana e as correspondentes medidas tomada na sua execuo aps o 25

    de Abril provocaram fenmenos reivindicativos e grandes movimentos de massas em todo ()

    tecido social.

    Assumiram particular importncia neste contexto as grandes e frequentes greves que se

    verificaram nos Caminhos de Ferro, os quais desempenhavam um papel muito importante no

    conjunto da economia, no s pelo seu peso intrnseco, como tambm pela dependncia que

    deles tinham os restantes sectores da economia.

    Esta luta laboral extravasou o seu campo especfico e foi-se transformando com o tempo

    em fenmenos de natureza insurreccional e em confrontos raciais. Em muitas empresas

    passaram a ser contestados os quadros brancos por cada vez mais aguerridos competidores

    negros que, na esmagadora maioria dos casos, no tinham na realidade qualificao

    profissional para assumir os cargos, sendo a nica razo da sua luta, a expectativa crescente

    de uma independncia a curto prazo e, com ela, a promoo dos nacionais aos postos

    cimeiros.

    A situao descrita provocou uma forte reduo da actividade econmica em quase todos

    os, sectores tendo mesmo parado alguns (muitas empresas pararam por terem sido

    saqueadas). Deve referir-se a este propsito que as condies de vida em Moambique e a

    distribuio e caractersticas da sua populao deixavam prever que uma derrocada

    prolongada na economia do pas teria efeitos muito graves no plano social e at poltico. De

    facto, havendo embora grandes assimetrias, tanto geogrficas como sociais, na fruio dos

    benefcios do desenvolvimento econmico, a realidade era a de que vastos sectores da

    populao moambicana tinham acesso a considerveis standards de vida em termos

    africanos.

    de notar ainda que as populaes que seriam mais afectadas pelas variaes nas

    condies de vida, seriam as que residiam nas zonas de concentrao urbana com

    actividade no sector secundrio e tercirio, sendo estas simultaneamente as que maior

    capacidade de interveno tm na vida social e poltica do pas.

    Entre Abril e Agosto de 1974 foi sensvel a variao das condies de vida de grandes

    massas das populaes africanas urbanas. Estas populaes no vendo satisfeitas as suas

    necessidades bsicas agiram muitas vezes por formas violentas, o que provocou pnico na

    populao de colonos.

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    6. Situao financeira

    Convm ainda referir que, no plano financeiro, a situao em 1974 era praticamente de

    bancarrota. Esta situao arrastava-se desde os finais dos anos 60 e a sua gravidade exigiu

    mesmo que Marcelo Caetano apoiasse Moambique com um emprstimo de trs milhes de

    contos dos quais foram concretizados apenas 500 mil.

    A dificuldade crescente na cobrana de impostos e os aumentos em flecha dos preos

    de bens e servios, tinham posto o Estado sem capacidade de proceder satisfao das

    suas necessidades. Tal s seria possvel se se procedesse a um substancial emprstimo,

    coberto apenas pelo BNU que para o efeito, seria autorizado a emitir moeda sem cobertura.

    Mas todas estas operaes requeriam tempo e a situao financeira interna, a curto prazo,

    era insustentvel. Apenas a ttulo de exemplo deve referir-se que em 13 de. Agosto de 1974

    a situao financeira do Estado revelava disponibilidades de 600 mil contos num oramento

    de milho e meio de contos.

    No plano dos pagamentos externos no era melhor a situao. A grave crise de

    cambiais que vinha j sendo acumulada por anos de condicionamentos econmicos de

    guerra, havia sido gravemente afectada pelas longas paralizaes nos portos e caminhos-

    de-ferro e pela restante crise econmica que generalizadamente aumentava em todo o

    territrio. De facto, as exportaes de Moambique estavam paradas h meses com todas

    as suas consequncias nas receitas cambiais. Embora as importaes tivessem sido

    restringidas aos bens de consumo essenciais e tivessem sido esgotadas todas as

    capacidades de crdito, o fundo cambial dispunha em 13 de Agosto de 1974 apenas das

    divisas correspondentes a uma semana de importaes de bens de primeira necessidade.

    de notar ainda que na altura se estava a operar a profunda transformao cambial que

    a exigncia da mudana de pagamentos atrasados para pagamentos adiantados implica, em

    especial num pas como Moambique, onde a durao do transporte dos bens importados

    muito longa.

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    7. Populao portuguesa residente

    Relativamente populao portuguesa residente, na sua maioria funcionrios e colonos

    com longa permanncia, so de notar os seguintes pontos:

    a) Tomada de conscincia da situao real da guerra, a qual antes desconheciam;

    b) A tomada de conscincia, atravs da discusso aberta das questes, da

    inevitabilidade de uma soluo poltica de autonomia ou independncia;

    c) Face conjuntura, e em particular face instabilidade social e racial, comea a

    verificar-se um clima de insegurana e a consequente procura de emprego fora de

    Moambique, iniciando-se o xodo pelos de maior capacidade econmica e

    formao. Este fenmeno j vinha adquirindo assinalvel proporo antes do 25 de

    Abril;

    d) Na populao portuguesa decidida a ficar nasceram agrupamentos polticos com

    pouca consistncia poltico-ideolgica, fraca organizao e reduzidos apoios internos

    e externos, mas que em certa fase mobilizaram a esperana de um nmero

    aprecivel da populao portuguesa. Chegaram a ser apoiados pelo Presidente

    Spnola e mantiveram contactos encorajadores com altos chefes militares locais.

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    III . Condicionantes do acordo de Lusaka

    As negociaes que precederam a assinatura do Acordo de Lusaka decorreram num

    contexto politicamente pouco claro e sofreram os efeitos da luta poltica que se desenrolava

    em Portugal.

    A instabilidade, a desorientao e a situao militar existentes em Moambique,

    consequncia em parte das diferentes vises que a descolonizao tinha para o poder de

    Lisboa, no permitiram a afirmao com a necessria firmeza de uma vontade nacional

    coerente ao longo de todo o processo negocial e conduziram necessidade de negociar as

    condies de independncia no mais curto prazo possvel.

    A parte moambicana no estava tambm em posio particularmente favorvel para

    estabelecer uma negociao muito elaborada tecnicamente, nem muito minuciosa nos seus

    detalhes sectoriais, j que tinha pressa em concluir um acordo que pusesse termo guerra e

    garantisse a independncia. De facto a situao poltica em Portugal evolua rapidamente e

    a instabilidade e diviso do poder ento existente dificultavam uma previso de como

    evoluiria a poltica de descolonizao em Portugal.

    Para dar melhor ideia da tenso em que foram assinados os acordos e at das

    preocupaes que dominavam os negociadores, vale a pena enunciar alguns aspectos que

    efectivamente se podem considerar como condicionantes do Acordo de Lusaka.

    1. Situao militar

    Os comandos militares de Moambique no entenderam ou no quiseram entender

    que o dispositivo e as aces militares que tinham sido usados at a para resistir

    luta de guerrilha movida pela Frelimo, no era o conveniente para obter um acordo de

    independncia numa posio de firmeza ou pelo menos de estabilidade militar.

    Da a inexistncia de um dispositivo adaptado s novas realidades que permitisse

    a mobilidade necessria concentrao que a defesa das nossas posies do Norte

    exigia e tambm o seu abastecimento.

    Do tipo de dispositivo existente, aliado ao estado psicolgico das nossas tropas e a

    outros factores de entre os quais se deve salientar o no controlo dos rgos de

    comunicao social, resultou a queda da Companhia de OMAR. Os 150 homens da

    companhia haviam sido feitos prisioneiros e retirados para posies da Tanznia.

    Nas tropas portuguesas havia graves problemas de organizao e disciplina.

    Desmotivadas para continuar a participar numa guerra que perdera o sentido, no

    estavam ainda consciencializados da necessidade de resistir at ser encontrada uma

    soluo negocial conveniente.

    A situao relativa ao dispositivo, conjugada com a desmotivao e

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    desorientao das nossas tropas fazia temer que os acontecimentos da Companhia

    de OMAR se pudessem generalizar a grande parte das II companhias

    independentes do Norte, dando incio a acontecimentos militares de consequncias

    imprevisveis.

    A par do reforo das aces militares do distrito de Cabo Delgado, as Foras

    Populares de Libertao de Moambique tinham intensificado a sua actividade

    operacional nos distritos da Zambzia, Niassa e Beira.

    2. Instabilidade social e xodo da populao

    Para caracterizar a situao moambicana que condicionava as conversaes de

    Lusaka necessrio chamar a ateno para o clima psicolgico em que vivia a populao

    residente em Moambique.

    Durante a guerra muitas dessas pessoas acreditavam que a situao militar, se no

    estava em vias de resoluo total, estava pelos menos estabilizada, o que, corno se sabe,

    no correspondia de nenhum modo realidade. Para ilustrar esta questo recordaremos

    apenas o clima de falsidade em que haviam decorrido as operaes militares mandadas

    efectuar por Kaulza de Arriaga.

    O choque sobre a verdade da situao militar, a viso sbita da inevitabilidade da

    independncia a curto prazo, em que a propaganda colonial jamais deixara acreditar e

    ainda a agitao social reinante, onde os aspectos raciais foram muitas vezes

    perturbadores, provocaram uma onda de verdadeiro pnico na maioria da populao

    portuguesa. Para agravar este clima, natural num perodo de to profunda mudana, a

    comunicao social no cumpriu o papel esclarecedor e orientador da populao

    portuguesa que lhe cabia com o rigor e a credibilidade requeridos.

    Nesta conjuntura geraram-se boatos, assanharam-se dios e organizaram-se grupos

    de opinio ou aco sem coerncia de orientao ideolgica nem objectivos realizveis.

    Mas, enquanto decorriam as conversaes para a consecuo do acordo que veio a ser

    assinado em Lusaka, esses grupos polticos agiam e influenciavam fortemente os

    acontecimentos e a opinio, no s em Moambique como tambm em Portugal.

    Iniciou-se ento, uma sada da populao portuguesa que tinha condies econmicas

    para o fazer a qual. no encontrando localmente condies de segurana, a procurou em

    Portugal ou na frica do Sul.

    O volume e a dinmica desta aco de abandono causou srias apreenses aos

    negociadores de Lusaka que pretendiam encontrar condies propcias, tanto do ponto de

    vista de segurana, como de condies de vida, fixao das populaes portuguesas

    radicadas em Moambique. Ora sabia-se que a sada de um nmero muito considervel de

    tcnicos, especialistas, funcionrios e outros quadros mdios e superiores poria em risco a

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    possibilidade de serem encontradas condies na sociedade moambicana depois da

    independncia para a realizao daquele objectivo primrio dos negociadores. Havia

    portanto que agir em tempo oportuno antes de se verificar uma situao de xodo

    irreversvel.

    3. A perda de confiana

    Nos primeiros contactos estabelecidos a nvel pessoal e mesmo durante as

    conversaes das primeiras delegaes oficiais com Moambique, os perodos de tempo

    que os nossos interlocutores entendiam como convenientes para a transio (no muito

    claramente definidos) eram de trs ou mesmo de cinco anos. Foi nessas conversaes

    tambm entendido como conveniente a formao de governos conjuntos e formas de

    soberania que assegurassem uma transio gradual ao longo daquele perodo.

    Este quadro s foi encarado, evidentemente, enquanto os interlocutores tiveram

    confiana nas intenes polticas e nos homens que ocupavam o poder em Lisboa.

    Enquanto lhes foi assegurado, inequivocamente, que Portugal no tentaria outras

    manobras que no as que conduzissem clara e insofismvel independncia dos pases

    com cujos representantes ento estabelecemos conversaes. E ainda que essas

    independncias s teriam lugar atravs de acordos que tivessem em conta apenas os

    respeitveis interesses desses pases e de Portugal.

    Mas em Portugal a situao no era clara relativamente ao caminho que devia seguir a

    descolonizao dos territrios sob a sua administrao e concretamente a descolonizao

    de Moambique. Por Julho e Agosto de 1974, comearam a tornar-se evidentes as tramas

    urdidas para alterao do caminho que depois do 25 de Abril a vida poltica tinha seguido

    com vista definio do quadro em que havia de consolidar-se a democracia e com ela a

    descolonizao.

    Para ilustrar melhor esta questo recordaremos o significado do encontro do Presidente

    Spnola com o Presidente dos Estados Unidos na Ilha Terceira, com Mobutu no Sal, e a

    intensa actividade diplomtica desenvolvida em Nova Iorque pelo embaixador Veiga Simo

    que claramente deixavam entender a pretenso de apelar para a interveno do bloco

    ocidental na descolonizao das colnias portuguesas. S se avaliar correctamente o

    significado que teria para a Frelimo a interveno ocidental na descolonizao de

    Moambique, tendo presente que este movimento nacionalista recebeu todo o apoio para a

    luta de libertao dos pases socialistas e no alinhados e que, merc de grande capacidade

    diplomtica, chegou ao fim da guerra com assinalvel grau de independncia.

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    Essas manobras tinham tambm os seus apoios nos grupos econmicos constitudos

    durante o regime deposto os quais comearam a encontrar no aparelho de Estado e nas

    Foras Armadas passados que foram os trs primeiros meses depois do 25 de Abril,

    Esta situao contribuiu para a deteriorao da confiana por parte dos nossos

    interlocutores. Quando houve sinais evidentes de que haviam mudado no s as pessoas

    mas tambm os princpios que tinham norteado os primeiros contactos, mudou tambm a

    disposio de acordo e cooperao com que os nossos interlocutores tinham iniciado as

    conversaes com vista paz e descolonizao.

    Nos primeiros contactos com Moambique havia sido reconhecido que o nico

    representante legtimo do povo de Moambique era a Frelimo, que alis havia colocado esta

    questo sine qua non.

    Um outro princpio assente, de importncia capital, dizia respeito s partes envolvidas

    nas negociaes.

    Havia ficado bem claramente estabelecido o princpio de que a independncia de

    Moambique seria negociada exclusivamente entre o Estado Portugus e a Frelimo, no

    entrando nessa negociao mais nenhuma representao, quer fosse de organizaes

    internacionais ou de Estados. Isto no significava que os princpios de descolonizao

    estabelecidos nas re601ues pertinentes das Naes Unidas no tivessem integral

    aplicao nas negociaes e bem assim que os princpios definidos pela OUA no fossem

    respeitados pela parte Moambicana e levados em considerao por Portugal.

    A importncia que a exclusividade da negociao bilateral tinha no futuro das relaes

    entre os dois pases deve ser hoje devidamente sublinhada. Lembramos ainda que as foras

    que em Portugal lutavam pela internacionalizao do problema o faziam em nome da defesa

    dos valores ocidentais de que o slogan entrega Rssia do Ultramar portugus bem

    expressivo. Mas ns entendemos sempre que a internacionalizao do problema colonial

    portugus e em particular do de Moambique, faria desviar a questo do plano dos

    interesses de cada um dos dois pases para o de terceiros, designadamente das duas

    grandes potncias. Tal soluo, a que nos opusemos sempre, prejudicaria no s

    Moambique, como tambm cortaria de vez a possibilidade de construir uma poltica

    portuguesa de relaes africanas independente.

    Mas para melhor ajuizar das razes que determinaram a curta durao do perodo de

    transio e o no aproveitamento integral das suas potencialidades, convm analisar ainda

    os riscos que, na altura, poderiam ter sido ponderados pela parte moambicana.

  • 12 / 42

    Pouco antes da independncia havia em Moambique cerca de 40 mil homens das

    Foras Armadas portuguesas. Os quadros da guerra, ainda no substitudos, com o posto de

    tenente-coronel ou superior, salvo raras excepes, no entendiam que Moambique

    pudesse deixar de ser portugus, ou mesmo que algo do stato quo pudesse ser alterado

    profundamente. Dividiam-se no modo de agir entre a apatia perplexa perante a realidade que

    ante eles dinamicamente se ia desenrolando e as tentativas da aco no sentido de

    contrariar os acontecimentos. No nmero importante de quadros mais novos das Foras

    Armadas que no alinhavam com os superiores hierrquicos, podemos distinguir dois tipos

    de posies. Uns achavam que a mudana poltica em Moambique era inevitvel e

    querendo acabar com a guerra, defendiam que toda a liberalizao anrquica que um pouco

    por toda a parte acontecia, incluindo as Foras Armadas, era uma forma positiva de obter

    condies de paz e de independncia. Os militares do MFA entendiam que a guerra tinha de

    acabar atravs dum pacto poltico com o adversrio, a Frelimo, e que este passaria

    necessariamente pela independncia do pas. Mas tinham tambm clara conscincia de que

    a defesa dos interesses portugueses que se traduziriam na consolidao das relaes com

    Moambique, s se poderia concretizar se se obtivesse uma boa coeso entre as FA's e

    tambm entre as foras civis portuguesas que permitisse negociar as condies de

    independncia numa situao favorvel.

    Havia ainda uns milhares de GE e GEP's, tropa moambicana com valor militar, OPVDC

    e outras organizaes colonialistas operacionalmente pouco relevantes. Vimos j a

    potencialidade latente de declaraes de independncia branca tentada a concretizar em

    Setembro e os riscos de apoio rodesiano e sul-africano que continham. Havia ainda os

    perigos de interveno da Rodsia e frica do Sul representados pelo ento nascente

    recrutamento e organizao de mercenrios portugueses nesses pases.

    Se em Portugal e entre os portugueses de Moambique se tivesse conseguido obter

    uma vontade poltica em apoio do acordo em negociao, ele poderia ter tido outro contedo

    e, sobretudo, o perodo de transio poderia ter tido outra extenso. Mas essa unidade no

    foi conseguida em Portugal, mesmo ao nvel do Estado, o mesmo acontecendo por

    consequncia entre os portugueses de Moambique.

    Em Portugal ainda se acarinhavam os FICAS e outros grupelhos neo-coloniais, sendo os

    seus representantes recebidos pelo Presidente da Repblica, entre as fases das

    conversaes com a Frelimo. Tudo isto, criava tais riscos ao perodo de transio que no

    podiam ser aceites pela parte moambicana.

  • 13 / 42

    Com a clivagem que j vimos evidenciar-se durante os meses de vero de 74

    relativamente poltica de descolonizao e ao curso da vida democrtica interna

    portuguesa, e dado o peso, pelo menos aparente, das personalidades e foras que

    emprestavam o seu apoio tentativa de mudana, foi fortemente abalada a confiana com

    que os nossos interlocutores havia encetado as negociaes. No caso de Moambique foi

    entendido mesmo que teria sido posto em causa o princpio da exclusividade da Frelimo

    como representante do podo de Moambique e da negociao bilateral.

    Em face desta evoluo na cena poltica portuguesa, os movimentos de libertao

    endureceram as suas posies tanto no campo negocial como no das presses internas nos

    respectivos territrios. Certas aces militares praticadas em Moambique e certos

    fenmenos sociais ento verificados, s podem ser entendidos luz desta realidade.

    No campo negocial notou-se neste perodo uma assinalvel tendncia de todos os

    movimentos de libertao para obter as independncias o mais rapidamente possvel

    (situao que particularmente notria no caso da Guin) e ainda para encurtar bastante o

    perodo de transio. Pretendiam assim os Movimentos de Libertao consumar factos que

    tornassem irreversveis as independncias aos olhos da opinio pblica internacional, antes

    que uma viragem poltica em Portugal tentasse organizar de novo a guerra ou apelasse para

    outras formas de domnio indirecto atravs da internacionalizao.

    Esta quebra de confiana obrigou ainda os representantes dos novos Estados a optar

    por sistemas de transio muito rpidos e com estruturas ligeiras. No lhes parecia garantido

    que estruturas mais complexas que incluiriam necessariamente foras armadas portuguesas,

    permanecendo por alguns anos nos seus pases, no pudessem pr em risco, no s o

    exerccio da soberania, como tambm a prpria independncia.

    Estas solues de transio rpida, com estruturas governativas ligeiras e destinadas

    apenas a garantir a transferncia de poderes, trouxe como consequncia a dificuldade de

    estabelecer um sistema tcnico e administrativo capaz de assegurar suficientemente as

    funes do Estado, desideratum que, em Moambique, s podia ser conseguido com um

    mnimo de eficincia atravs da participao portuguesa.

    Est hoje bem claro que grande parte das potencialidades de cooperao, de fixao de

    populaes e at da manuteno de outros interesses portugueses em frica 'depois das

    independncias, foram desfeitas atravs da quebra de confiana que representou a tentativa

    de alterao da poltica de descolonizao por parte das autoridades e foras portuguesas

    encabeadas pelo Presidente Spnola.

  • 14 / 42

    4. Urgncia de uma soluo

    No decurso das negociaes com a Frelimo, a partir de Julho/Agosto de 74, foi notria

    uma viragem no sentido de ser encontrada uma soluo que levasse rapidamente

    independncia mesmo em prejuzo de posies anteriormente afirmadas. Essa vontade no

    era apenas ditada pelo desejo legtimo de acabar com a guerra que durava h DEZ anos,

    mas era fundamentalmente destinada a subtrair a independncia, de Moambique aos

    fenmenos de indefinio e eventual retrocesso que se desenhavam em Portugal.

    Militavam ainda a favor de uma resoluo imediata do problema a situao interna de

    Moambique que no estava desligada da poltica interna portuguesa. De facto, tanto a parte

    portuguesa que entendia a descolonizao como fenmeno natural e inadivel, como a parte

    moambicana, no podiam sentir-se indiferentes situao catica para que o pas tendia

    tanto no plano econmico como sobretudo no social.

    Se a situao econmica e social se degradasse muito, haveria ainda a considerar o

    risco de serem criadas condies para a interveno dos vizinhos de Moambique, em

    particular da Rodsia, com o pretexto de apoio a grupos que tivessem declarado

    unilateralmente a independncia, emancipando-se da autoridade e controlo portugueses.

    Situao esta que viria a acontecer embora de forma mitigada e anrquica em 7 de

    Setembro. Por tudo isto, a parte moambicana tinha pressa em resolver a situao e, do lado

    portugus no ligado ao General Spnola, tambm se reconhecia a urgncia em encontrar

    uma soluo para o problema da independncia de Moambique.

    5. Os factores de aproximao com Portugal

    a) O valor dos quadros nacionais

    J vimos a situao extremamente difcil em que se encontrava a economia

    Moambicana por altura do vero de 74 e tambm a anarquia crescente que se instalava no

    todo econmico e social do pas. Convm porm notar que se tratava de situao conjuntural

    porque o pas rico em recursos naturais e dispunha de um mnimo de estruturas

    econmicas para permitir o arranque, se para tanto se construssem as condies.

    Por razo da natureza colonial do sistema, Moambique no dispunha de quadros

    nacionais que permitissem manter a funcionar grande parte da estrutura econmica do pas

    nem o aparelho do Estado.

    Muitas vezes se fala da especificidade da colonizao portuguesa enaltecendo-Ihe as

    virtudes. No pretendemos negar os mritos nacionais no que respeita maneira de estar no

    mundo e de conviver com os outros povos, que so reais.

  • 15 / 42

    No que respeita porm formao de quadros, haver no entanto que se reconhecer

    que no foram formados nacionais moambicanos nem em nmero nem em qualidade

    equivalente de outros pases que ascenderam independncia. Entre outras razes deve-

    se o fenmeno ao fraco ndice cultural da grande massa dos colonos, o que determinou que

    fossem por eles ocupados os lugares da hierarquia at aos mais baixos.

    O nmero considervel de quadros moambicanos que haviam estado empenhados na

    luta da libertao nacional e que agora regressariam s actividades normais do pas

    minoraria um pouco aquela situao. Deve notar-se no entanto que grande parte deles viria

    a ser utilizada nas funes superiores do Estado. Por tudo isto o pas carecia de cooperao

    de grande quantidade de tcnicos e quadros no nacionais sem o que no seria possvel

    assegurar o funcionamento dos principais servios do Estado, nem da maioria das estruturas

    econmicas.

    Na altura das negociaes do acordo havia a expectativa de que bastantes pessoas de

    origem portuguesa, radicados em Moambique h muitos anos, ou apenas identificados com

    o pas, a permanecessem como seus nacionais, o que minoraria um pouco a falta de

    quadros e de trabalhadores qualificados.

    A expectativa cooperao com pases com quem a Frelimo tinha slidas relaes do

    passado, nomeadamente os socialistas, permitiria a minorar aquela carncia. Mas tomava-

    se claro, que nem o seu volume, nem mesmo a sua utilidade a curto prazo, poderiam ser

    satisfatrias para colmatar as dificuldades referidas.

    Mesmo sem consideraes histricas, sociais ou lingusticas, parecia portanto razovel

    pensar-se que uma parte substancial dos portugueses que trabalhavam em Moambique

    continuassem a ser considerados teis ao pas e que encontrassem estmulo suficiente para

    a continuar a trabalhar.

    No se desconheciam as dificuldades que grande nmero de portugueses ex-colonos

    encontrariam na adaptao ao novo estilo de vida que iria ser introduzida em Moambique.

    O mesmo se passando relativamente viso que os novos cooperantes teriam da

    organizao econmica e social do pas necessariamente diferente daquela em que at a

    haviam vivido. As dificuldades de adaptao, contudo, no seriam certamente superiores s

    vantagens que teriam em permanecer.

    Sabia-se no entanto que a instaurao de um clima de estabilidade e segurana e o

    reconhecimento do valor nacional do trabalho dessas pessoas, poderiam ser factores

    bastantes para ultrapassar, tanto as dificuldades de adaptao, como a perturbao que

    pudessem causar.

  • 16 / 42

    b) A estrutura da actividade econmica

    A anlise que vimos fazendo dos factores que condicionaram o Acordo de Lusaka no

    ficaria completa sem notar algumas caractersticas estruturais da actividade econmica

    moambicana.

    Em primeiro lugar devem salientar-se os portos e caminhos de ferro que, como se sabe,

    constituam data da independncia uma parte importante da economia do pas e que

    dependiam na sua quase totalidade das ligaes com o exterior, frica do Sul e Rodsia.

    No que respeita ao comrcio, praticamente todas as empresas eram tituladas por

    portugueses e mantinham correntes comerciais intensas com frica do Sul e Rodsia e

    tambm com Portugal, dependendo bastante das estruturas econmicas destes trs pases.

    Os bancos comerciais existentes no territrio eram filiais de bancos portugueses

    (incluindo o prprio banco emissor), de Angola ou da frica do Sul. Recebiam, tal como as

    empresas industriais, das suas casas me, alm do apoio financeiro (reduzido ou nulo nos

    ltimos anos), o necessrio apoio tcnico e de quadros.

    As empresas industriais eram na sua grande parte detidas por capitais portugueses no

    residentes. Factor, porm, ainda mais importante do que aquele, era o facto de serem quase

    sempre filiais de empresas portuguesas ou ento sul-africanas, por quem eram apoiadas

    tecnicamente e de que obtinham os quadros, quantas vezes apenas para tarefas ou por

    pequenos perodos de tempo

    As empresas do sector primrio, as menos dependentes do exterior, requeriam para o

    seu funcionamento, tal como as industriais, apoio tcnico e administrativo. A manuteno

    dos circuitos em que se apoiavam, era muitas vezes assegurada fora do pas.

    Esta absoluta dependncia econmica do exterior, tanto em capitais como em apoio

    tcnico e em ligaes estruturais, bem caractersticas alis das economias coloniais,

    constituiu naturalmente tambm, uma condicionante presente em Lusaka.

    Para suprir tal fraqueza o lado portugus entendeu, por todos os motivos, no dever

    recusar apoio e cooperao.

  • 17 / 42

    c) A histria comum

    No referimos aqui, por desnecessrio, o significado que um centenrio entrecruzar de

    culturas representa como factor de aproximao entre dois povos quando a vontade de cada

    um deles soberana para o reconhecer. No poderemos, porm, deixar de o assinalar.

    Todas estas dificuldades, carncias e condicionantes eram reconhecidas, pelo menos

    em parte, pelos nossos interlocutores de Lusaka que sabiam tambm ser Portugal o parceiro

    melhor colocado para lhes dar satisfao a curto prazo e com menores custos.

    Importa ainda sublinhar, o significado que para ns tinha o facto dos nossos

    interlocutores serem os legtimos representantes da nao moambicana e de serem os

    lderes daqueles que, de armas na mo, haviam conduzido durante 10 anos a luta de

    libertao nacional de Moambique. Por outro lado, importa tambm referir o significado

    que para os nossos interlocutores moambicanos representaria a circunstncia de se

    sentarem perante eles pessoas como o Ministro de Estado Melo Antunes e o Conselheiro

    de Estado Victor Crespo, dirigentes do MFA que havia pouco meses derrubara o regime, e

    os ministros da Coordenao Interterritorial Almeida Santos e dos Negcios Estrangeiros,

    Mrio Soares, o primeiro conhecido pela sua oposio ao regime e ao sistema colonial e

    residente muitos anos em Moambique e o segundo lder do Partido Socialista e figura bem

    conhecida da oposio e resistncia ao fascismo e colonialismo em Portugal.

    Apesar das divergncias polticas existentes em Lisboa relativas poltica de

    descolonizao e valorao da cooperao com os novos pases, na delegao

    portuguesa foi possvel obter uma assinalvel coeso e sentido do interesse nacional.

  • 18 / 42

    IV. Os acordos de Lusaka

    1. Introduo

    A leitura do texto dos acordos de Lusaka impressiona pela extraordinria singeleza da

    sua forma e o nmero reduzido de assuntos que aborda.

    Um estudo que em Lisboa havia sido feito de acordos semelhantes, celebrados entre

    Estados Europeus e Africanos, em particular sobre os acordos de Evian, aconselhava a

    prever partida que as negociaes seriam longas e teriam, para alm dos aspectos

    polticos, um acentuado carcter tcnico. Embora no se quisesse proceder de forma

    igual acordada entre a Frana e a Arglia, visto a experincia desses pases e doutros,

    em condies semelhantes, ter demonstrado a pequena ou nula validade futura desse

    tipo de acordos, a parte portuguesa estava preparada para incluir no acordo, com o

    possvel detalhe, um conjunto substancial de matrias reguladoras dos interesses

    polticos, culturais, econmicos e humanos entre os dois pases.

    J vimos que os condicionalismos em que os acordos foram negociados no permitiram

    demorar uma negociao que a assumir carcter tcnico, seria necessariamente longa. Por

    isso a negociao desenrolou-se em torno de certos pontos essenciais sobre os quais se

    gerou consenso, relegando-se para o perodo de transio a negociao detalhada das

    matrias que inicialmente havia sido previsto incluir no acordo.

    Certos meios portugueses, ao procurar denegrir o mrito do acordo de Lusaka,

    indicaram este aspecto como denotando menos cuidado dos negociadores. Tendo em

    conta a difcil situao portuguesa e moambicana da altura, julga-se que quaisquer

    acordos que se tivessem tentado estabelecer sobre matrias econmicas, de cooperao,

    garantias de pessoas e bens, funcionrios, ensino e outras teriam sido negociadas em

    muito piores condies do que o vieram a ser posteriormente.

    E bom recordar que durante o perodo de transio foi possvel aplicar no estudo e

    negociao dos acordos algumas pessoas de mais qualidade tcnica e experincia

    existentes no nosso pas e dispor de um clima de franco entendimento poltico e da melhor

    expectativa relativamente ao futuro das relaes entre os dois pases.

  • 19 / 42

    Mas, no essencial, o que importava conseguir em Lusaka era um perodo de

    estabilidade e bom entendimento j que a alternativa era a continuao da guerra e o caos,

    dos quais se conheciam sobejamente os resultados. Sem esse entendimento e vontade

    poltica de cooperao, os acordos a assinar nesse momento, mesmo que formalmente

    muito favorveis resoluo dos problemas que nos preocupavam, no passariam de boas

    intenes e apenas serviriam para azedar as relaes do futuro entre os dois pases, como

    largamente aconteceu por exemplo, com as promessas cheias de rigor tcnico-jurdico de

    Evian.

    Como se ver ao estudar o acordo, o essencial dos objectivos da delegao que em

    Lusaka defendeu os pontos de vista portugueses foi realizado. A paz, nas condies de

    dignidade que o Portugal de Abril exigia, foi conseguida. Alm disso, foi estabelecido um

    conjunto de princpios que havia de garantir o relacionamento futuro entre os dois Estados.

    Em Lusaka no foram olvidadas as potencialidades que a secular convivncia entre o povo

    moambicano e o portugus propiciava, mas foi estabelecido que apenas a independente

    interpretao da vontade de cada povo legitima a definio de interesses comuns.

    A independncia de Moambique, pese embora aos saudosistas do passado, no

    estava de facto a ser negociada em Lusaka; fundamentalmente, o que estava a ser

    acordado era o futuro das relaes entre Portugal e Moambique que uma guerra de 10

    anos quase irremediavelmente destrura.

    Ainda, para alm das relaes com Moambique, o que estava pela primeira vez a ser

    negociado em Lusaka era uma nova maneira de Portugal estar no Mundo. Esta questo,

    lmpida para alguns negociadores, e que insistentemente a haviam defendido em Portugal

    em todas as instncias polticas onde haviam tido voz, s veio a ser entendida em toda a

    sua importncia pelos nossos opositores de ento (s-Io- ainda hoje?) cerca de 10 anos

    depois, quando os parceiros da Europa e da Amrica lhes fizeram ver que a grande fora

    de Portugal no plano internacional, e no europeu em particular, era esse precioso acervo de

    conhecimentos sobre frica e essa vivncia secular que lhe permitia ter relaes muito

    especiais com uma zona do mundo de valor estratgico e econmico incalculvel e que

    ento comeava a afirmar a sua vontade no mundo das relaes internacionais.

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    2. O contedo do acordo

    2.1. Reconhecimento da independncia

    o acordo comea no seu nmero um por citar o reconhecimento por parte de Portugal do

    direito do povo de Moambique independncia, reconhecimento que, alis, havia

    encontrado fundamento jurdico tempo antes, atravs da lei 7/74.

    Parece hoje inacreditvel que no Portugal depois de Abril se tivesse gerado tamanha

    polmica em torno de uma matria que a histria j se havia encarregado de demonstrar ser

    indiscutvel. Mesmo depois da lio que constituram as independncias de todas as colnias

    asiticas e africanas; depois da inequvoca afirmao da vontade dos seus povos atravs de

    todas as instncias internacionais onde tinham voz e do reconhecimento do direito desses

    povos independncia por parte de praticamente todas as naes do mundo; depois, enfim,

    da afirmao da vontade de independncia atravs de uma prolongada guerra - meio

    supremo de afirmao dessa vontade - em Portugal, ainda vivamente se discutia, entre as

    diversas correntes do poder, o direito independncia dos povos das colnias.

    O programa do MFA, elaborado de acordo com os compromissos que a aco

    clandestina e a vontade de encontrar meios para derrubar o regime impuseram, falava,

    timidamente, no princpio de que a resoluo das guerras no Ultramar poltica e no militar.

    Mas esse enunciado, embora de pequeno alcance jurdico, continha em si todo o

    fundamento poltico que havia de servir para respeitar a carta das Naes Unidas.

    A soluo poltica das guerras conduzi das pelos movimentos de libertao h treze anos

    contra a teimosia inconsequente do regime deposto, s poderiam ter como expresso o

    reconhecimento por Portugal do direito dos povos autodeterminao, com todas as suas

    consequncias, incluindo a que torna aquele direito pleno, a independncia.

    So conhecidas as lutas que em torno deste problema se geraram em Portugal e j

    foram analisadas as pesadas consequncias que esta luta trouxe para as possibilidades

    portuguesas de estabelecer, desde o incio, uma poltica africana de profundo sentido

    nacional.

    Quando hoje se procura encontrar uma explicao para o facto de ter permanecido com

    eficcia a definio de territrio nacional contida no art. 1. da Constituio de 33 at Julho

    de 1974, s a poderemos encontrar na permanncia obcessiva das teses coloniais do

    anterior regime em espritos daqueles mesmos que o ajudaram a derrubar e no entenderam

    o alcance profundo do seu acto.

  • 21 / 42

    2.2 Transferncia de poderes

    O acordo, no seu nmero um, depois da afirmao do direito independncia, fala na

    transferncia progressiva de poderes sobre o territrio at 25 de Junho de 1975, como

    fixado no seu nmero dois.

    Importa aqui reconhecer ter sido muito curto o perodo de transio acordado tendo em

    conta as potencialidades que encerrava. Tal facto foi mutuamente reconhecido durante as

    conversaes mas foram j referidas as razes que determinaram o seu encurtamento.

    Valer no entanto a pena debruarmo-nos um pouco sobre a questo para ajuizar

    melhor das potencialidades que este perodo encerrava e que no puderam ser totalmente

    realizadas devido brevidade do tempo disponvel.

    Analisaremos em primeiro lugar qual o interlocutor poltico que Portugal encontrava em

    Moambique para a realizao dessas potencialidades.

    No plano da organizao poltica, a Frelimo era, seguramente, a fora poltica nacional

    que maior base social de apoio e maior implantao estrutural tinha em todo o territrio. de

    referir tambm, questo que no podia ser ignorada como o pretendiam certos polticos

    portugueses de ento, que tinha sido a Frelimo a conduzir a guerra de libertao nacional e

    que, com ela, liderara inequivocamente a independncia de Moambique. Por todas estas

    razes, as populaes que at a, merc dos mecanismos de condicionamento colonial e da

    guerra, tinham estado apticas ou vivendo sombra do pseudo proteccionismo portugus,

    encontravam agora fundamento e estmulo para participar num grande movimento

    nacionalista, liderado pela fora poltica que havia conduzido o pas independncia. A

    Frelimo era, de facto, a expresso poltica da vontade moambicana.

    No quer isto dizer que no tivesse havido, como j tivemos ocasio de observar,

    expresso de uma vontade diferente atravs das aces polticas desencadeadas por

    personalidades dissidentes da Frelimo, como Joana Simeo, Uria Simango, Kavandame,

    etc., mas no havia organizao, nem implantao nacional nem apoio popular por trs

    dessas pessoas. A sua afirmao poltica era apenas feita pela oposio s pessoas e s

    teses donde haviam dissentido. A sua sobrevivncia devia-se apenas aos apoios que ainda

    encontravam na frica do Sul e em Portugal, como continuao das actividades que haviam

    desenvolvido com as autoridades do antigo regime. Deve notar-se ainda que as suas teses

    eram claramente neo-coloniais. Na altura, porm, eram ainda usados como plos de

    atraco para manobras que, de Lisboa ou de Pretria, atravs deles se quisessem fazer. Se

    lhes fossem cortadas essas ligaes no teriam nenhuma expresso em Moambique. No

    constituiriam, por isso, qualquer problema para o perodo de transio previsto.

  • 22 / 42

    As diversas formaes em que encontrou eco o desespero e desorientao de muitos

    portugueses residentes em Moambique, tais como a FICO, Movimento Federalista,

    Convergncia Democrtica e outras, requeriam ser encaradas com o pragmatismo que a

    sua realidade aconselhava. Essa realidade era que, afora os nomes e a aco de um ou

    outro dirigente, nada, ali, de concreto existia. Os programas e as intenes polticas que iam

    desde a formao de um exrcito com os residentes em Moambique para uma declarao

    unilateral de independncia, at constituio de uma federao com Portugal, passando

    por diversas formas de ligao com a frica do Sul e Rodsia, eram completamente

    incongruentes. Porm, o que mais importa salientar, que nenhum desses grupos possua

    qualquer organizao ou meios, nem sequer crdito externo, que lhes permitisse realizar o

    que quer que fosse. Porm, em certos momentos, obtiveram o apoio emotivo de muitos

    portugueses que, noutras circunstncias e com outro conhecimento da situao, jamais

    teriam participado em tais aventuras.

    Era aqui que, politicamente, a aco portuguesa no perodo de transio teria que ser

    exercida com mais tacto e determinao. O perodo de transio teria que ser o tempo,

    durante o qual, atravs do esclarecimento e do exemplo, se criasse o clima propcio s

    opes conscientes dos portugueses residentes em Moambique relativamente ao futuro

    das suas vidas. E porque no declar-lo abertamente, tambm para as decises das

    populaes de origem europeia que, dada a sua radicao profunda no territrio

    moambicano, sentiam vontade de optar pela nacionalidade daquele pas.

    O tratamento deste assunto exigia que fosse criado um perodo de tranquilidade em que

    os novos dirigentes moambicanos fossem revelando a sua vontade e interesse em utilizar a

    capacidade tcnica e de trabalho dos portugueses residentes. Ao mesmo tempo, estes iriam

    formando opinio sobre as condies em que iria desenrolar-se a sua vida na nova

    sociedade.

    Evidentemente que, alguns dos portugueses que viviam em Moambique, quer pelo seu

    comportamento anterior em aces polticas inaceitveis para o novo Estado, quer pela sua

    consciente ou inconsciente opo racista, ou ainda pelo seu reaccionarismo e intransigncia

    polticas, no poderiam ficar em Moambique. Estes teriam que refazer a sua vida em

    Portugal ou noutro ponto do mundo e para eles devia, como foi, ser usada benevolncia,

    dado que as suas qualidades polticas, como largamente tem sido demonstrado, no

    encontrariam eco nem apoio em nenhum stio.

  • 23 / 42

    A grande maioria dos residentes em Moambique no pertencia porm aquele nmero.

    Eram pessoas de valor, que tinham passado a vida a trabalhar como acontece maioria dos

    emigrantes, e que muito podiam ainda contribuir para o progresso do pas. A estes havia que

    criar condies de segurana, para que no fossem obrigados a partir, e expectativas de

    vida compensadoras que os decidissem a ficar. Era para satisfao deste objectivo que se

    teria requerido um perodo de transio muito maior do que o acordado, cujos escassos 10

    meses, ainda gravemente perturbados no incio, no permitiram, no grau desejvel, cumprir

    aquela aspirao.

    O tempo de transio tinha, alm disso, de servir para desfazer todas as estruturas

    coloniais que no importava ao novo Estado conservar e construir os organismos que as

    iriam substituir. S num perodo de transio se poderia proceder a tal transformao

    eficientemente, visto s nessas condies poder o Estado dispor de um governo que se

    orientasse pela nova poltica e de uma autoridade portuguesa, o Alto Comissrio, que tinha

    competncia para proceder gesto de todos os funcionrios pblicos, incluindo os tcnicos.

    D-se bastante nfase a este aspecto por se saber que em Moambique no havia quadros

    em nmero suficiente para manter em funcionamento, com um mnimo de eficincia, as

    funes do Estado e se pensar que a nica forma de o fazer era atravs da permanncia,

    durante um perodo relativamente longo, de quadros portugueses. Isto no significava que

    no fossem tambm teis ao pas quadros de outras nacionalidades, mas to s que, numa

    primeira fase, esses no poderiam substituir totalmente os portugueses sem perturbaes

    inaceitveis das funes do Estado. E, importa salientar aqui, que se entende que no valer

    a pena discutir os mritos de uma ou outra poltica, as capacidades de um ou outro alto

    dirigente, quando o Estado no dispuser de um mnimo de capacidade de lhe dar execuo,

    nem estiver em condies de gerar dados que permitam aos governantes tomar as

    adequadas decises. O tempo foi realmente escasso para realizar aquele objectivo e no

    permitiu, como se ver em tempo prprio, levar a cabo tudo o que durante a transio se

    considerou desejvel.

  • 24 / 42

    O perodo de governo de estruturas conjuntas portuguesas e moar1bicanas teria alm

    disso sido muito til para lanar as bases de reorganizao da estrutura econmica do pas.

    Haveria certamente empresas que, enformadas pela doutrina colonial, teriam de ser

    adaptadas ou extintas. Muitas outras, com dependncias externas em tcnica, capitais e

    quadros, ou ligadas a Portugal por relaes mltiplas teriam de ser reequacionadas. Haveria

    tcnicos que no podiam ou no queriam permanecer e que careciam de substituio; peas

    ou materiais que no podiam ser importados; enfim um sem nmero de questes que uma

    estrutura portuguesa com muita competncia local e com peso e influncia em Lisboa

    poderia ter resolvido e que um governo moambicano de transio, ainda sem as totais

    responsabilidades que advm da representao externa do Estado, teria podido orientar.

    Mas o aspecto onde se pensa que poderia ter sido mais til uma transio prolongada

    o que respeita ao lanamento de novos projectos de desenvolvimento econmico e o da

    reorganizao dos existentes. Dispunha, ou disporia o governo de transio de total

    autoridade neste domnio, j que tratava de investimentos que se prolongariam no futuro.

    As virtualidades do perodo de transio consistiam fundamentalmente em que, nessa

    altura, Moambique disporia, como largamente foi provado durante o perodo de transio, do

    apoio de toda a infra-estrutura do Estado portugus o que permitia apresentar um leque de

    opes tecnicamente trabalhadas deciso poltica do governo moambicano. Disporia alm

    disso da nossa capacidade diplomtica e da conjuntura favorvel em que Portugal se

    encontrava tanto poltica como financeiramente. Nesse perodo poderiam ter sido

    interessados capitais externos a investir directamente em Moambique, ou a conceder-lhe

    emprstimos em condies favorveis.

    Para quem conhece a poltica portuguesa que orientou o perodo de transio fcil

    avaliar que no se teriam corrido riscos neo-coloniais. Os objectivos que se pretenderam

    atingir no eram apenas os do interesse econmico, presentes naturalmente, mas a

    contribuio para o lanamento de uma poltica que permitisse a Portugal valorizar as suas

    reais capacidades de cooperar em frica, assegurando, assim, o promissor futuro das suas

    relaes com os pases deste continente. E, repare-se, j na altura se sabia que se estava no

    limiar da poca em que os projectos de desenvolvimento encontravam financiamento

    relativamente fcil e favorvel.

  • 25 / 42

    No iremos inventariar as aliciantes econmicas moambicanas ao investimento, mas

    no resistiremos a referir algumas cujos estudos de viabilidade, ento j prontos, do s por

    si, ideia dessas potencialidades. O plano do Zambeze tinha estudado as grandes

    capacidades da zona, das quais se referem apenas a construo da central norte de Cabora

    Bassa, a construo de uma fbrica de alumnio, passando pela explorao de 10 milhes de

    toneladas de carvo a transportar pelo rio, at capacidade agrcola do vale para produzir

    alimentao para toda a populao de Moambique e exportar. Estas potencialidades l

    esto, mas no se limitam ao vale do Zambeze, vo desde a produo de amnia com o gs

    de Pande, at construo de uma siderurgia e produo de papel em Manica e Sofala,

    passando pela explorao favorvel de vastas zonas de algodo e acar, pecuria, pescas

    e outras riquezas do sector primrio.

    Como se compreender, para que pudesse ser iniciado no perodo de transio o

    aproveitamento de algumas das potencialidades que Moambique continha, era necessrio

    dispor-se de muito mais tempo do que aquele que foi acordado. Alm disso, seria necessrio

    aprofundar, num clima de total confiana, uma vontade poltica que assegurasse no futuro

    uma estreita cooperao entre os dois pases soberanos.

    3. A estrutura governativa

    O nmero 3 do acordo define a estrutura governativa de Moambique para o perodo de

    transio. A estrutura acordada do tipo das que foram usadas praticamente em todas as

    descolonizaes dos territrios ingleses. Um Alto-Comissrio representaria a soberania

    portuguesa e asseguraria ali a chefia do Estado. Um Governo liderado e maioritariamente

    constitudo pelos representantes do povo do novo pas asseguraria a governao at

    independncia. Uma comisso militar garantiria a implementao dos acordos de paz e

    regularia as questes militares entre os dois exrcitos.

    curioso notar que os tribunais no entraram neste ttulo e a nica referncia que lhes

    feita est contida nas competncias do governo, na alnea g), a propsito da reestruturao

    da organizao judiciria do Estado.

    Vejamos um pouco mais detalhadamente as competncias de cada um dos rgos da

    estrutura do Estado. Ao Alto-Comissrio competia a representao do Presidente da

    Repblica e do Governo Portugus. Estas competncias no foram objecto de definio por

    diploma portugus. Tambm o no foram as competncias que tinham os Governadores-

    Gerais sobre as matrias de administrao local que no ficaram revogadas pelo acordo de

    Lusaka. Por isso, foi interpretada a indefinio no sentido de caberem ao Alto-Comissrio

    todas as aludidas competncias.

  • 26 / 42

    Outra competncia visava assegurar a integridade territorial de Moambique. A este

    propsito deve tambm referir-se a declarao do nmero 12 que estabelecia um

    compromisso de aco conjunta entre o Estado Portugus e a Frente de Libertao de

    Moambique na defesa do territrio contra qualquer agresso.

    Tendo em conta o estabelecido no nmero 10 relativamente s responsabilidades do

    Alto-Comissrio no comando e coordenao das Foras Armadas Portuguesas e das da

    Frelimo, que dependiam do Primeiro-Ministro; atendendo circunstncia das Foras da

    Polcia existentes dependerem do Alto Comissrio; e tendo ainda presente a ligao ntima

    que havia entre a poltica de transio e a retraco do dispositivo militar, tudo apontava para

    que o cargo de Comandante-Chefe das FA's fosse concentrado na pessoa do Alto

    Comissrio, o que porm no era estabelecido no acordo.

    A competncia para promulgar os decretos-lei aprovados pelo governo de transio e

    para ratificar os actos que envolviam responsabilidade directa para o Estado Portugus,

    estabelecido no ponto c) do nmero 4, no estava limitada por prazos. Embora o acordo no

    estabelecesse nenhuma competncia de veto poltico aos decretos-lei, ela podia ser usada

    em forma de veto de bolso. E foi-o, em dois ou trs casos.

    O ponto d) relativo responsabilidade de assegurar o cumprimento dos acordos

    celebrados entre o Estado Portugus e a Frente de Libertao de Moambique, para alm do

    seu contedo directo, dever ser entendido como uma norma de segurana que visava

    responsabilizar localmente o Alto Comissrio pelo cumprimento dos acordos, mesmo em

    caso de perturbao na orientao dos rgos do poder de Lisboa. Mais uma vez aqui se

    reflecte a desconfiana que alguns dirigentes de Lisboa mereciam aos nossos interlocutores.

    Para a parte portuguesa, porm, a norma no levantou problemas, pois correspondia ao

    interesse nacional que os negociadores tinham a certeza de bem interpretar.

    A obrigatoriedade do cumprimento da Declarao Universal dos Direitos do Homem

    proposta pela delegao portuguesa obteve eco na moambicana e assim completou a

    norma.

    A delegao portuguesa havia conduzido as negociaes no sentido de ser definido um

    perodo de transio que possibilitasse a superao das graves dificuldades com que o pas

    se debatia e permitisse estabelecer as bases de um relacionamento especial entre os dois

    pases e povos. Chegaram mesmo a abordar-se pontos concretos de cooperao nos

    domnios econmico, tcnico, cientfico, de educao, cultura e outros. No tendo sido

    possvel, pelas razes j apontadas, concretizar na letra do acordo esta vontade comum,

    ficou a substitu-Ia a expresso dessa confiana mtua e vontade de cooperar nas atribuies

    do Alto-Comissrio.

  • 27 / 42

    Havia ento razes para crer que viria a ser pessoa do sector que considerava o

    relacionamento com frica importante para o futuro do pas. A mesma vontade de

    cooperao e amizade encontrou expresso no nmero 13 e, pelas razes j apontadas, foi

    relegada para os acordos a negociar durante o perodo de transio. Tal seria feito atravs de

    comisses mistas como veio a acontecer.

    As competncias do Alto-Comissrio terminavam com uma norma genrica relativa

    dinamizao do processo de descolonizao. Para alm da responsabilidade global que

    encerra, a norma tambm visava atribuir a responsabilidade especfica de estabelecer as

    ligaes necessrias transformao e desarticulao das estruturas administrativas,

    tcnicas, financeiras, de ensino, sade, etc., do sistema colonial, as quais tinham ligaes e

    dependncias de muita natureza dos rgos centrais do antigo Ministrio do Ultramar em

    Lisboa e, mesmo atravs dele, com estruturas de outras colnias. A articulao desta

    competncia com a que atribua competncia ao governo de transio para reestruturar

    quadros e organismos, nem sempre foi fcil e exigiu grande esforo para conciliar interesses.

    Tal norma tinha ainda em vista o desmantelamento das organizaes eminentemente

    coloniais como a OPVDC e outras. Visava tambm atribuir responsabilidades na

    reestruturao de servios apenas portugueses, mas cuja cooperao interessava a

    Moambique, entre os quais se salientam algumas estruturas logsticas das Foras

    Armadas, os servios de hidrografia e o Gabinete do Plano do Zambeze. Por fim ainda de

    referir que a norma permitia orientar a remodelao de algumas estruturas no estatais de

    cariz colonial que havia interesse em modificar durante a permanncia da autoridade

    portuguesa no territrio. Era o caso dos bancos e companhias de seguros que ainda no

    haviam sido nacionalizadas.

    Nas competncias do Alto-Comissrio, o acordo no previa a declarao do estado de

    stio ou de emergncia.

    Tal deve atribuir-se ao facto do normativo sobre direitos e garantias ser extremamente

    reduzido e, por isso, em tais situaes, poderem regular-se por decreto os direitos que

    importasse restringir.

    No estava tambm prevista a dissoluo do governo, visto no ser da competncia do

    Alto Comissrio a nomeao do Primeiro-Ministro nem dos ministros moambicanos, tendo-

    se no entanto entendido que a exonerao dos ministros de nomeao portuguesa se

    exercida pelo Alto Comissrio e os de nomeao moambicana pelo Primeiro Ministro.

  • 28 / 42

    Por fim, convm notar que o acordo no regulava a matria de indultos e comutaes de

    penas nem se referia a amnistias. Acontece porm que de facto foram usados pelo Alto-

    Comissrio, com o acordo do Governo de Transio, amplos poderes nesta matria com

    vista a assegurar o regresso a Portugal de todos os presos de todos os tipos de delito que

    assim o desejaram.

    Relativamente ao Governo, o texto do acordo estabelece a sua presidncia e

    representao por um Primeiro-Ministro nomeado pela Frelimo. Estabelece ainda a sua

    constituio e articulao em nove ministrios, sendo as secretarias de Estado deixadas

    para criao ulterior. Dos ministrios, seis seriam de nomeao moambicana e trs de

    nomeao portuguesa.

    O acordo atribui ao Governo as funes legislativas e executivas e confere-lhe a

    competncia para criar quadros e reorganizar servios. Especifica algumas funes tais

    como a defesa e salvaguarda da ordem jurdica e da segurana das pessoas e bens, a da

    execuo dos acordos de cooperao, gesto econmica e financeira e reorganizao

    judiciria.

    Relativamente defesa da ordem pblica e salvaguarda de pessoas e bens deve

    notar-se que o acordo no especificava os agentes que a assegurariam. Como a polcia

    dependia do Alto Comissrio, dado ter-se criado o Corpo da Polcia referido no nmero 11

    quase no final do perodo de transio, teve que usar-se quase permanentemente a norma

    da parte final do mesmo nmero 11, o que obrigou a procurar consensos e entendimentos

    nem sempre muito simples e sempre trabalhosos. No estava previsto no acordo o uso das

    FPLM nesta aco, mas o acordo tambm o no negava. Este problema que foi objecto de

    numerosas conversaes, causou preocupaes graves, em particular nas zonas urbanas.

    Isto, porque no estando essas foras preparadas para o exerccio de funes policiais, da

    sua aco resultou um sentimento de insegurana em muitos portugueses residentes em

    Moambique hiper-sensibilizados pelos acontecimentos ocorridos anteriormente.

  • 29 / 42

    4. Normas programticas

    No que respeita a normas programticas havemos de reconhecer que o acordo foi

    generoso, deixando bastante liberdade aco dos rgos governativos da transio. No

    entanto tem em si alguns princpios programticos essenciais.

    Como princpio geral, referido logo na introduo ao nmero 5 das competncias dos

    diversos rgos, estabelece-lhes a funo de transferncia progressiva de poderes e a

    preparao da independncia. A execuo deste princpio orientador, no que respeita

    transferncia de poderes exigia a realizao de uma infinidade de tarefas de transformao

    de estruturas e transferncias de responsabilidades entre os rgos e pessoas que s por si

    requeriam o empenhamento integral nos 10 meses disponveis. De facto, como se referiu a

    propsito das funes do Alto-Comissrio, seria aqui que mais intensamente frutificaria uma

    estreita cooperao entre soberania portuguesa ainda residente e as novas estruturas

    governativas da futura soberania. Era neste ponto que o empenho mais devia aplicar-se.

    Suprir as carncias de tcnicos e quadros, na medida das necessidades de organizao do

    novo Estado, era tarefa fundamental para as duas partes.

    Para a parte portuguesa, nica que aqui naturalmente abordaremos. a realizao

    daquele objectivo era imperativo, no s por corresponder aos interesses nacionais, de

    relacionamento com frica, mas tambm pela assuno das responsabilidades da falta de

    quadros moambicanos, apenas atribuveis ao sistema colonial e aos seus corolrios de

    discriminao racial e social que haviam duramente incidido sobre as populaes locais.

    Tais medidas visavam ainda minorar os custos futuros que uma alterao traumtica na

    actividade econmica e na eficincia dos servios do Estado teriam em toda a vida do pas, e

    que, imputveis ou no responsabilidade portuguesa, nos seriam sempre atribudos.

    Assim, quanto mais fundas fossem as dificuldades internas, maiores seriam as dificuldades

    no relacionamento futuro entre os dois pases e mais graves tambm seriam as consequn-

    cias para os portugueses residentes. Pensamos ter sido compreendidos e mesmo

    acompanhados nesta preocupao pela parte moambicana, que sempre apreciou com

    interesse as propostas que a esse respeito foram formuladas, tomando mesmo iniciativas

    sobre a matria como teremos ocasio de ver quando analisarmos o perodo de transio.

  • 30 / 42

    No plano econmico, o acordo apenas aponta para a criao das estruturas e

    mecanismos que deviam contribuir para o desenvolvimento de uma economia independente.

    Preocupao bem compreensvel de quem tinha no territrio uma economia colonial cheia de

    dependncias, mas bem difcil de solucionar a curto prazo.

    Os nmeros 16 e 17 do acordo estabeleciam os mecanismos que haviam de contribuir

    para assegurar uma poltica financeira independente.

    O princpio programtico da no discriminao racial, tnica, religiosa e com base no

    sexo, cuja garantia era cometida ao governo, era tambm ao Alto-Comissrio atravs da

    Declarao Universal dos Direitos do Homem cujos preceitos devia assegurar. O princpio da

    no discriminao racial, ampliado agora pela afirmao da vontade de eliminar as sequelas

    do colonialismo, mais uma vez citado no nmero 15 a propsito de uma declarao

    clarificadora da cidadania moambicana e da vontade de estabelecer estatutos especiais

    para os cidados de um pas residentes no outro.

    Para terminar a anlise dos aspectos programticos da aco do governo, resta salientar

    que o acordo nada dizia relativamente a alteraes da titularidade da estrutura econmica do

    territrio e que o contedo da alnea e) do nmero 5 deve entender-se como a tentativa de

    tomar a economia do pas menos dependente do exterior, mas principalmente como a

    revelao de uma preocupao de controlo da fraude e evaso de toda a ordem, que uma

    situao de descolonizao necessariamente comporta. As reformas de fundo a serem

    feitas, s-lo-iam no futuro, na plena soberania moambicana.

  • 31 / 42

    5. Acordo de paz

    O fim da guerra em Moambique assumiu, naturalmente, importncia capital no Acordo

    de Lusaka. Guerra da libertao, para a parte moambicana, teve o carcter mais

    eminentemente nacional que qualquer guerra pode ter. Conduzida durante 11 anos com

    dificuldades humanas e materiais assinalveis, aceitou apenas os apoios compatveis com

    os objectivos de independncia nacional que prosseguia. Guerra assumida como imperativo

    de todo um povo, foi travada com o vigor que s o sentido da razo pode emprestar a uma

    luta. Guerra de independncia nacional, num mundo de independncias h muito

    consumadas, s poderia terminar com a realizao dos objectivos polticos que prosseguia.

    Para a parte portuguesa tratou-se de uma guerra colonial na mais ampla acepo da

    expresso. Determinada por uma poltica de dominao e defesa a qualquer preo dos

    interesses dos grupos dominantes, cedo conheceu um Ieit motiv que mobilizou a vontade

    nacional. Forneceram-lha os acontecimentos de 61 em Angola. Estes exigiram o

    empenhamento legtimo das Foras Armadas na defesa de cidados nacionais que a incria

    e irresponsabilidade do regime deixara sem segurana. A partir da, a guerra estabeleceu-se

    em nome da defesa dos cidados e dos interesses ditos nacionais, mas que, de facto, no

    passavam de interesses dos grupos econmicos que o regime servia, ou nem sequer

    desses. O pas viu empenhado nela o brio e o sentido de dever dos quadros das suas Foras

    Armadas e de toda uma gerao que durante 13 anos estoicamente a suportou. Moambique

    viu exaurir-se a sua economia no esforo de guerra e nas condies adversas que esta criou

    ao seu desenvolvimento. No servindo j os interesses econmicos, a guerra prosseguia em

    nome de uma coerncia, a manuteno a todo o custo do regime e dos seus privilgios. No

    se discutiam o futuro dos interesses nacionais nem dos seus cidados radicados nas

    colnias. A independncia das colnias significaria a queda do regime. E sem

    independncia, a guerra prosseguiria. O regime defendia-se assim com a guerra, num crculo

    vicioso.

    Os militares, confrontados finalmente com as realidades do regime, muitos deles apenas

    atravs das perspectivas de soluo da guerra em que estavam empenhados, mobilizaram-

    se para encontrar a soluo que o futuro deste povo exigia.

  • 32 / 42

    No faremos consideraes sobre as sombrias consequncias em que terminaria uma

    guerra no interrompida pela vontade libertadora do povo portugus. As humilhaes

    suportadas na ndia onde, repare-se, no tinha havido guerra, sero bastante para dar uma

    amostra do que teria ocorrido em frica e para fazer meditar nas consequncias que tal traria

    para os destinos da Ptria Portuguesa. Mas a histria no admite conjecturas. A guerra em

    Moambique foi interrompida pela vontade de um povo que se queria situar no mundo e na

    poca em que vivia e que, para isso, procurou, como alternativa guerra, as solues que a

    histria e o direito requeriam e que os interesses portugueses de h muito reclamavam.

    Tal como o exigia a filosofia poltica do Portugal de Abril, os Acordos de Lusaka no

    tratam a independncia de Moambique e a guerra em simultneo. Os nossos interlocutores

    reconheciam assim que haviam feito a guerra contra um regime que queria manter fora a

    situao colonial, ponto que expressamente consignado no nmero 19. O Portugal de Abril

    que reconhecia o direito do povo de Moambique independncia, no teria mais a guerra

    desse povo, mas sim a amizade como o proclamam os termos do acordo nos seus nmeros

    13 e 19.

    A paz estabelecida no texto do Acordo, no seu nmero 9, fixando apenas a data e hora

    (O horas do dia 8 de Setembro de 1974). O artigo remete para um protocolo as normas desse

    cessar-fogo. Documento secreto na altura, apenas pelas implicaes de segurana das

    foras dos dois pases, ainda no foi divulgado e no o ser neste momento, esperando-se

    que sejam os Estados a tomar tal iniciativa que se deseja breve. Pensamos poder, no

    entanto, comentar o seu contedo que no pode, no essencial, ser mantido classificado pelo

    prprio desenrolar dos acontecimentos.

    Depois de reafirmar a data e a hora do cessar-fogo, o documento passa a tratar da

    Comisso Militar Mista estabelecido no nmero 3 e com a composio e funes fixadas no

    nmero 8 do Acordo. No essencial, competiria Comisso, que tinha composio paritria

    entre o Estado Portugus e a Frente de Libertao de Moambique, velar pela execuo do

    acordo de cessar-fogo. Em especial cabia quela Comisso tratar das matrias relacionadas

    com a retraco do dispositivo militar portugus e da sua substituio por foras moambi-

    canas, por forma a que no se criassem situaes de vcuo no dispositivo militar de

    Moambique durante a transio. Tinha ainda por funo organizar a libertao dos

    prisioneiros de guerra de ambas as partes, situao de que trataremos quando abordarmos o

    perodo de transio, e supervisionar na desactivao das organizaes paramilitares

    existentes no territrio ao tempo colonial, tais como o OPVDC, milcias privadas de empresas,

    corpo de milcias, etc.

  • 33 / 42

    O protocolo estabelecia as normas dos acordos relativos retraco do dispositivo militar

    portugus e a sua evacuao at 25 de Junho e regulava ainda misses conjuntas para as

    Foras Portuguesas e para as FPLM afim de dar execuo aos preceitos contidos nos

    nmeros 10 e 12 do Acordo. Estabelecia um conjunto de misses de cooperao entre as

    duas foras com carcter logstico e administrativo. Estas normas do Acordo referiam-se

    ainda desmobilizao dos moambicanos que em Moambique ou noutros territrios

    serviam as Foras Armadas Portuguesas.

    O Acordo permitia assim:

    recuperar at 14 de Setembro de 1974 sem contrapartida, a totalidade dos prisioneiros

    portugueses;

    proceder retraco do dispositivo militar dando proteco s zonas de maior

    concentrao de populao portuguesa;

    efectuar uma evacuao ds foras por via area de forma contnua e gradual e uma

    evacuao do material por via martima;

    manter o dispositivo em condies de operacionalidade e o esprito de disciplina at

    sua evacuao;

    embarcar para Portugal todo o material militar pertencente s FA's que fosse considerado

    de utilidade;

    entregar s FPLM o material que, pelos servios competentes de Lisboa, fosse entendido

    no dever ser evacuado para Portugal.

    O Acordo de cessar-fogo constituiu assim um instrumento que regulou o fim d guerra em

    termos de grande dignidade e permitiu executar em segurana e com eficincia uma

    evacuao que a guerra, anos antes, de nenhuma forma deixava prever.

  • 34 / 42

    6. Segurana de pessoas e bens e condies de trabalho

    Na anlise que vimos fazendo do Acordo de Lusaka importa, por fim, observar os

    aspectos que mais directamente diziam respeito criao de condies para a permanncia

    dos portugueses em Moambique.

    Referiremos primeiro os aspectos respeitantes segurana das pessoas e dos seus

    bens.

    Esta matria era assegurada atravs do controlo que o Alto-Comissrio exercia sobre a

    polcia, em coordenao com o Governo de transio, como estabelecido no nmero 11 do

    Acordo. Ao Governo era cometida a responsabilidade especfica da defesa e salvaguarda da

    ordem pblica e da segurana das pessoas e bens atravs do preceito na alnea c) do

    nmero 5 do Acordo. Este previa ainda no seu nmero 10 que em caso de grave perturbao

    da ordem pblica, pertencia ao Alto-Comissrio o comando e coordenao das operaes as

    quais poderiam envolver aces conjuntas das foras portuguesas e moambicanas.

    Como garantia derradeira da segurana dos portugueses residentes, o Acordo permitia,

    que a retraco do dispositivo militar se fizesse concentrando sobre os principais centros

    populacionais ocupados por portugueses, garantindo assim a sua segurana at ao

    momento da independncia.

    Estava desta forma estabelecido no Acordo o essencial dos mecanismos necessrios a

    assegurar a ordem e a segurana das pessoas e bens durante o perodo de transio.

    Relativamente discriminao racial, so afirmados princpios que a negam na

    orientao do governo, alnea f) nmero 5 e no nmero 15, onde h uma declarao das

    duas partes no sentido de agirem concretamente na criao de uma verdadeira harmonia

    racial a par da eliminao das sequelas do colonialismo. No mesmo artigo ainda afirmado

    para o novo Estado uma poltica de no discriminao pela cor na fixao da cidadania

    moambicana.

    Resta, por fim, analisar os aspectos relativos s propriedades e bens dos portugueses

    residentes em Moambique. Este ponto constituiu, naturalmente, grande preocupao da

    delegao que em Lusaka negociou o Acordo no s pelo seu valor intrnseco, como

    tambm pelo seu significado na permanncia dos portugueses residentes em Moambique.

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    E no deixou nunca de ter-se presente que, dessa permanncia dependeria, em

    grande medida, o futuro da economia e dos servios do novo Estado e, atravs deles, o

    bom ou mau relacionamento com Portugal. Mas o Acordo no encerra nenhum preceito

    especfico sobre esta matria, o que foi regulado de forma indirecta.

    Vejamos ento como o assunto se encontra tratado. Como se viu, nenhum preceito do

    Acordo apontava ou estabelecia mecanismos especiais de expropriao nem nenhuma

    declarao programtica para eles apontava. Por outro lado, os actos legislativos do

    Governo de Transio estavam sujeitos a promulgao pela autoridade portuguesa que,

    naturalmente, teria este ponto em considerao, sem prejuzo das alteraes requeri das

    por algumas estruturas eminentemente coloniais.

    O futuro dos cidados portugueses residentes em Moambique no regulado no

    diploma em anlise, mas ele prprio prev no seu nmero 15, a celebrao de acordos com

    vista a regular o estatuto dos cidados de cada um dos pases residentes no outro.

    Assim, portanto, durante o perodo de transio estava assegurado o direito posse

    dos bens, propriedades e valores dos portugueses residentes em Moambique atravs do

    direito portugus que se aplicava no territrio, e que apenas podia ser alterado pela

    legislao produzida pelo Governo e promulgada pelo Alto Comissrio. Relativamente ao

    futuro, os seus termos foram os estabelecidos no acordo que veio a ser negociado sobre a

    matria durante o perodo de transio.

    Perodo de transio

    1. Poltica de defesa

    Nos termos do Acordo de Lusaka a integridade territorial de Moambique era cometida

    responsabilidade da soberania portuguesa, havendo um compromisso de aco conjunta

    das Foras portuguesas e da Frelimo na consecuo deste desiderato.

    O xodo, anterior independncia, de portugueses que haviam combatido em Angola e

    Moambique e a posterior desmobilizao dos grupos especiais moambicanos e

    angolanos que haviam combatido ao lado do exrcito portugus, deu lugar formao de

    grupos de interveno na Rodsia constitudos por esses mercenrios.

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    Os acontecimentos de 7 de Setembro, a agitao intensa a que deram origem e as

    sadas de portugueses para a Rodsia e RAS que aps eles tiveram lugar, contribuiriam

    para o incremento da organizao e treino de grupos mercenrios de interveno na

    Rodsia e para o aparecimento de organizaes para-militares de portugueses na RAS

    com algum apoio estatal. Simultaneamente apareceram sinais evidentes de uma incipiente

    estrutura actuando no interior de Moambique em ligao com as existentes na RAS e na

    Rodsia.

    Na RAS assistiu-se, durante os primeiros meses de 75, a uma ofensiva diplomtica no

    sentido de tentar criar uma situao que lhe permitisse encetar uma poltica de boa

    vizinhana com os novos Estados que chegavam independncia, Angola e Moambique.

    Deu no entanto apoio s organizaes dos ex-colonos moambicanos e aumentou a

    capacidade de interveno da sua polcia que chegou a ser aplicada contra os nacionalistas

    rodesianos no interior da Rodsia em apoio do Sr. Smith.

    O falhano da cimeira de Lusaka e a poltica de intransigncia e afirmao branca do

    Sr. Smith, bem como as medidas tomadas no campo militar, deixavam antever que os seus

    objectivos no seriam os de procurar no futuro uma boa vizinhana com Moambique, j

    que lhe no restavam dvidas de que esta jamais poderia ser obtida.

    Admitia-se por isso que pudessem ocorrer intervenes rodesianas em Moambique,

    quer como apoio a incidentes ocorridos com colonos portugueses, quer a propsito de

    motivos econmicos, quer ainda a propsito de alegados apoios ZANU.

    Dos restantes vizinhos de Moambique no havia receio de provocaes de fronteira.

    Estas preocupaes de defesa, conjuntamente com razes de estabilidade social,

    levaram a que se procedesse reorganizao do dispositivo, concentrando meios nas

    zonas de maior densidade urbana e actividade econmica.

    So de assinalar, especialmente, o reforo militar da zona de possvel penetrao

    rodesiana, eixo Vila Pery-Beira; tanto em pessoal, designadamente tropas especiais, como

    em meios de guerra, dos: quais devemos salientar os meios areos, Fiat G91, Helis, etc. A

    fora naval constituda por 3 corvetas e um navio logstico foi tambm reforada com uma

    fragata solicitada a Lisboa.

    Embora tivessem sido assinaladas algumas incurses armadas rodesianas no interior do

    territrio de Moambique, ditas em perseguio de guerrilheiros da ZANU, no chegou a

    haver nenhuma situao de confronto com tropas portuguesas.

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    Na realidade o perodo de transio decorreu sem que se tivesse realizado a velha

    aspirao do Sr. Smith de conquistar o acesso ao mar e, simultaneamente, obter posies

    favorveis para o combate ZANU. Julga-se que tal ter sido impedido pela existncia de um

    dispositivo dissuasor portugus relativamente forte, conjuntamente com reiteradas

    declaraes ao representante diplomtico da Rodsia de que qualquer interveno

    estrangeira em Moambique, durante o perodo de transio, seria combatida com toda a

    firmeza pelas foras portuguesas a estacionadas.

    2. Retraco do dispositivo militar

    A retraco dos dispositivo militar devia satisfazer os seguintes objectivos:

    a) Garantir a segurana das foras portuguesas durante o perodo de transio, mesmo

    aps a sua reduo por regresso a Portugal, constituindo o seu tipo de agrupamento e

    comando diversos contrapontos com as tropas da Frelimo; -

    b) Garantir a segurana dos portugueses residentes em Moambique at

    independncia;

    c) Constituir elemento dissuasor das invases por foras de pases vizinhos em especial

    da Rodsia, e suster essas invases no caso de se verificarem;

    d) Contribuir para garantir a ordem pblica e a criao de um clima de confiana,

    estabilidade rcica e social;

    e) Permitir a cooperao com tropas da Frelimo, estabelecendo as bases da futura

    cooperao militar entre os dois pases.

    Para conseguir aqueles objectivos foi desarticulado o pesado sistema de comando

    existente e criados