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DESAFIOS DA CAMINHADA NA SAÚDE INDÍGENA E O ENCONTRO COM UM PRÍNCIPE KAIOWÁ Josiane Emilia do Nascimento Wolfart 1 Cátia Paranhos Martins 2 RESUMO: Este trabalho apresenta-se como Relato de Experiência das vivências ao longo de minha formação no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS), com ênfase em Saúde Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). No decorrer do texto serão apresentadas vivências, discussões e problematizações enriquecidas com literatura do campo da Saúde Coletiva, que permite ampliar o olhar sobre os sujeitos na saúde e no SUS, Política Nacional de Humanização, Política Nacional de atenção aos povos Indígenas, Educação Permanente em Saúde além de contribuições de leituras da Antropologia. Os relatos foram construídos através dos registros colhidos em diário de campo. Sobre a formação na área da Saúde Indígena trago algumas experiência vivenciadas no Hospital e Maternidade Indígena Porta da Esperança. Dentre elas destaco o trabalho realizado com minha equipe de residentes no Centro de Reabilitação Nutricional, conhecido também como centrinho , junto a um usurário indígena da etnia Kaiowá, internado para tratamento da desnutrição. Nas considerações finais apresento reflexões acerca destas vivências que fazem questionar o papel do trabalhador de saúde e a sua formação para o trabalho com a comunidade indígena. Palavras-chave: Residência Multiprofissional em Saúde; Educação Permanente; Política de Humanização; Saúde Indígena. 1 INTRODUÇÃO Este texto é um recorte do meu Trabalho de Conclusão de Residência apresentado ao Programa de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS), com ênfase em Saúde Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e apresenta uma parte das vivências ao longo de minha formação como profissional de saúde para e no Sistema Único de Saúde (SUS). Os Programas de Residência Multiprofissionais de Saúde são orientados pelos princípios e diretrizes do SUS, ligado à Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS), coordenado pelos Ministérios da Saúde e da Educação. 1 Psicóloga Especialista em Saúde Indígena pelo Programa de Residência Multiprofissional da UFGD. 2 Docente do Curso de Psicologia e da Residência Multiprofissional em Saúde da UFGD. Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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DESAFIOS DA CAMINHADA NA SAÚDE INDÍGENA E O ENCONTRO COM UM

PRÍNCIPE KAIOWÁ

Josiane Emilia do Nascimento Wolfart1

Cátia Paranhos Martins2

RESUMO:

Este trabalho apresenta-se como Relato de Experiência das vivências ao longo de minha

formação no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS), com ênfase em

Saúde Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). No decorrer do texto

serão apresentadas vivências, discussões e problematizações enriquecidas com literatura do

campo da Saúde Coletiva, que permite ampliar o olhar sobre os sujeitos na saúde e no SUS,

Política Nacional de Humanização, Política Nacional de atenção aos povos Indígenas,

Educação Permanente em Saúde além de contribuições de leituras da Antropologia. Os relatos

foram construídos através dos registros colhidos em diário de campo. Sobre a formação na

área da Saúde Indígena trago algumas experiência vivenciadas no Hospital e Maternidade

Indígena Porta da Esperança. Dentre elas destaco o trabalho realizado com minha equipe de

residentes no Centro de Reabilitação Nutricional, conhecido também como centrinho ,

junto a um usurário indígena da etnia Kaiowá, internado para tratamento da desnutrição. Nas

considerações finais apresento reflexões acerca destas vivências que fazem questionar o papel

do trabalhador de saúde e a sua formação para o trabalho com a comunidade indígena.

Palavras-chave: Residência Multiprofissional em Saúde; Educação Permanente; Política de

Humanização; Saúde Indígena.

1 INTRODUÇÃO

Este texto é um recorte do meu Trabalho de Conclusão de Residência apresentado ao

Programa de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS), com ênfase em Saúde Indígena

da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e apresenta uma parte das vivências ao

longo de minha formação como profissional de saúde para e no Sistema Único de Saúde

(SUS). Os Programas de Residência Multiprofissionais de Saúde são orientados pelos

princípios e diretrizes do SUS, ligado à Comissão Nacional de Residência Multiprofissional

em Saúde (CNRMS), coordenado pelos Ministérios da Saúde e da Educação.

1 Psicóloga Especialista em Saúde Indígena pelo Programa de Residência Multiprofissional da UFGD.

2 Docente do Curso de Psicologia e da Residência Multiprofissional em Saúde da UFGD.

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O campo de práticas dos residentes contempla o Hospital Universitário (HU) e a

Atenção Básica, como por exemplo, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou em UBS do

Subsistema de Saúde Indígena da Reserva Indígena Jaguapiru e Bororó e o Núcleo de Apoio a

Saúde da Família (NASF). Considerando a importância da integração entre os serviços da

rede SUS, o Programa tem convênios que possibilitam o processo de aprendizagem em outras

unidades de saúde, sendo eles a Secretaria Especial de Saúde Indígena3 (SESAI), Hospital e

Maternidade Indígena Porta da Esperança e Hospital Evangélico Dr. e Sra. Goldsby King.

Além disso, o residente é convidado a participar de Congressos, Fóruns, Seminários,

Audiências Públicas, e demais ações políticas e de Controle Social, que vêm para somar

conhecimento à formação profissional e fortalecer o compromisso com a cidadania.

A construção deste trabalho como Relato de Experiência foi escolhido pela

possibilidade reflexiva sobre a formação no e para o SUS. Além de fornecer “subsídios para

avaliação dos estudantes como recurso à reformulação da prática e, sobretudo, propicia o

desenvolvimento dos princípios éticos e da relação com os indivíduos da comunidade”.

(OLIVEIRA et al, 2012, s.p.) Os relatos foram construídos através dos registros colhidos em

meu diário de campo. Para Morschel e Barros de Barros (2014) tudo que é observado e

considerado relevante é aquilo que, de uma forma ou de outra, venha afetar a saúde das

pessoas. Por isso, é importante durante a permanência em campo de formação ser um agente

transformador capaz de pensar e problematizar as ações tendo como produto final destas

relações a produção de vida e autonomia entre os atores envolvidos neste cenário.

As discussões apresentadas neste trabalho foram enriquecidas com literatura do

campo da Saúde Coletiva, que permite ampliar o olhar sobre os sujeitos na saúde e no SUS. A

Política Nacional de Humanização (PNH) que defende o SUS e a valorização da vida e a

Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas4 (PNASPI) que garante “aos

povos indígenas o acesso integral à saúde, de acordo com os princípios e diretrizes do SUS,

contemplando a diversidade social, cultura, geográfica e política [...] reconhece a eficácia de

sua medicina e o direito desses povos à sua cultura”. (MS, 2002, p.13) Utilizou-se também

3 A Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (SESAI) surgiu através do Decreto Presidencial nº 7.336 de

outubro de 2010, que define a secretária como órgão responsável por gerir o subsistema de Saúde Indígena. O

Subsistema de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas foi criado através da Lei 9.836 de 1999. Tem por objetivo

garantir o direito a saúde e organizar os serviços de Saúde Indígena através de seus Distritos Sanitários Especiais

Indígenas. 4 A Política Nacional de Atenção aos Povos Indígenas foi criada pela Portaria nº254 de 31 de janeiro de 2002 e

regulamentada pelo Decreto nº 3.156.

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produções de pesquisadores da Antropologia como Pereira (1999, 2006), Vietta (2003),

Urquiza e Cols (2013), Platero (2010, 2015), Siqueira e Brand (2004), dentre outros. As

leituras auxiliaram nas reflexões das problemáticas vivenciadas principalmente no que diz

respeito ao trabalho da saúde com os povos originários do município de Dourados. Para

ilustrar um pouco como foi minha formação na área da Saúde Indígena trago algumas

vivências no Hospital e Maternidade Indígena Porta da Esperança onde passei um período de

quatro meses.

2 HOSPITAL E MATERNIDADE INDÍGENA PORTA DA ESPERANÇA (HOSPITAL

DA MISSÃO)

O Hospital e Maternidade Indígena Porta da Esperança (HIPE), conhecido também

como Hospital da Missão5, foi fundado no ano de 1963. Possuía 38 leitos e atendia exclusiva

a população indígena, obreiros e funcionários da Missão Evangélica. Hoje atende também a

população não indígena, funcionando como porta aberta. Possui 52 leitos subdivididos em

Maternidade, Pediatria, Centro de Reabilitação Nutricional (CRN), Clínica Médica e

Ambulatório. Trabalham na unidade aproximadamente cem profissionais, dentre eles, muitos

ou a maioria é de missionários contratados pela Missão Evangélicos Caiuá6.

A assistência à saúde é prestada através de princípios religiosos, como amor ao

próximo, além dos princípios e diretrizes do SUS. Alguns dos trabalhadores, como os

médicos, enfermeiros, funcionários da administração e os capelães residem em casas cedidas

pela Missão, localizadas próximo ao hospital, objetivando assistência imediata comunidade. O

Hospital da Missão é um hospital de pequeno porte e baixa complexidade. É contratualizado

com o Município assim como o Hospital da Vida e Hospital Universitário, para onde são

encaminhados usuários com quadro clínico mais grave.

5 Neste trecho trago apenas a descrição dos serviços ofertados pelo Hospital e Maternidade Indígena Porta da

Esperança (HIPE). Não foi intensão problematizar cada lugar aqui apresentado. Contudo, ressalto que, durante

minha passagem pela Missão percebi que a questão religiosa e histórica assola este lugar. Interfere diretamente

na oferta dos serviços prestados à comunidade indígena. Neste sentido admito que seja necessário a produção de

trabalhos que possam explorar estas questões, como é o caso de se compreender mais profundamente a

existência do Centro de Reabilitação Nutricional (CRN), a Maternidade, bem como a casa de fogo. Parece-me

que a crença indígena é subjugada a religião do branco. 6Hospital da Missão é uma unidade de saúde criada no ano de 1963 pela Missão Evangélica Caiuá, agência

missionária que trabalha com populações indígenas fundada no ano de 1928, pelo pastor presbiteriano Albert

Maxwell.

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Uma parcela considerável da comunidade indígena atendida no Hospital da Missão é

proveniente da Reserva Indígena Jaguapiru e Bororó, além de outras regiões do estado como

Caarapó e Amambai. São encaminhamentos referenciados pelas Unidades Básicas de Saúde

administrada pela SESAI. A visita aos usuários internados é aberta, ou seja, em qualquer

momento do dia seus familiares podem acompanhá-los. A equipe multiprofissional é

composta por dois médicos, seis Enfermeiros, um Nutricionista, um Assistente Social e um

Fisioterapeuta. Os técnicos de enfermagem em sua grande maioria falam a língua guarani ou

kaiowá, alguns são da etnia Terena.

As principais patologias atendidas são doenças respiratórias, tuberculose,

gastroenterite, pneumonia, doenças do aparelho vascular, HIV, doenças de pele e desnutrição.

Embora não seja possível problematizar, chamou a minha atenção, que existe ainda um

espaço nomeado como casa de fogo que é frequentada pelos usuários indígenas e suas

famílias que utilizam o espaço para fazer suas rezas em volta do fogo. Ali também tomam seu

chimarrão e se aquecerem durante o inverno. Em contra partida, existe o serviço de capelania,

ofertado de maneira integral. Cada capelão fica responsável por fazer orações na recepção do

hospital e nos leitos de internação. Pregando a palavra para todos os usuários e seus

acompanhantes.

2.1 O RETORNO PARA CASA: A HISTÓRIA DO PRÍNCIPE KAIOWÁ

“chuva e sol, poeira e carvão, longe de casa sigo o roteiro mais uma estação, e a

saudade no coração (...).” (Luiz Gonzaga)

Neste trecho do trabalho apresento parte da vivência no Centro de Reabilitação

Nutricional7 (conhecido também como centrinho) com minha equipe de residentes que na

ocasião era formada por duas Enfermeiras, uma Psicóloga (eu) e uma Nutricionista. A história

que conto trata do trabalho desenvolvido junto a um usurário8 indígena da etnia Kaiowá

internado para tratamento da desnutrição, processo que levou a sua permanência no hospital

7 Nesta parte do texto vou utilizar o nome centrinho que é usado com maior frequência pelos funcionários do

Hospital da Missão. 8 Escolhi substituir o termo usuário pelo apelido “príncipe”, dado por uma funcionária do local que prestava

cuidado a criança. Devido ao longo tempo de internação a mesma apegou-se profundamente a criança passando a

chamá-la de “meu príncipe”. O que explica também a referência do título deste artigo.

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durante o período de um ano. Uma situação que o manteve afastado de sua família que não

podia acompanhá-lo na época da internação.

Escolhi apresentar esta experiência pelo fato de ter provocado em mim sentimentos

de inquietação, indignação e angustia enquanto profissional de saúde implicada em meu

compromisso ético e cidadão com este usuário e sua família. Posso afirmar que este foi o

trabalho mais intenso que vivi em minha formação como profissional da saúde na Residência

Multiprofissional de Saúde devido sua complexidade que apresento nos parágrafos que

seguem.

Meu primeiro contato direto com o príncipe aconteceu quando eu estava no segundo

mês de prática no Hospital da Missão. Recebi a solicitação da chefia de enfermagem para

acompanhá-lo em uma consulta a Fonoaudióloga, contudo compareci a consulta sem

informações sobre o quadro clínico da criança o que me deixou constrangida diante da

profissional que fez-me algumas perguntas a respeito das condições atuais de saúde. Em vista

disso a profissional ficou impossibilitada de fazer orientações sendo obrigada a manter as

últimas realizadas em último atendimento. Ela sugeriu que o serviço de Psicologia

acompanhasse o caso tendo em vista que a criança estava sem o acompanhamento da família e

que se tratava de longa internação. Quando retornei ao hospital conversei com a pessoa que

havia solicitado o acompanhamento e expliquei que a falta de informação sobre o caso

impossibilitou-me no diálogo com a profissional de saúde.

Aproveitei o momento e falei sobre importância do trabalho em rede e do diálogo em

equipe. Nós, residentes, aprendemos que o trabalho com a rede fortalece e garante a

continuidade do cuidado. Por isso, é importante aproximar nosso diálogo enquanto equipe

multiprofissional com os demais pontos da rede SUS, além de colocar em evidência o

compromisso ético com nossos usuários. Se eu tivesse recebido as informações necessárias

naquele momento, o diálogo entre eu e a Fonoaudióloga teria mais efetivo. Quando se fala em

continuidade do cuidado, a comunicação é essencial. A partir daquele dia eu e minha equipe

de residentes passamos a acompanhar o caso.

Com a chegada dos residentes no Hospital da Missão a equipe multiprofissional

passou da unidade passou a realizar reuniões quinzenais para discussão de caso clínico com

objetivo de realizar encaminhamentos para àqueles casos de internações de longa data e

internações sociais. Durante uma dessas reuniões coloquei em pauta a situação do príncipe.

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Falamos sobre o tempo de internação, que já alcança oito meses e da ausência dos pais. Em

resposta a equipe do hospital explicou que o usuário apresentava dificuldades em ganhar o

peso ideal, por isso precisava continuar internado. Os dados da Nutricionista sugeriam a

necessidade de ganhar dois quilos para atingir o peso ideal.

Pensando nisso propusemos à equipe do hospital trabalhar a programação de alta9,

pois o peso que faltava não colocaria em risco sua vida, tendo em vista que seu estado de

saúde era bom. Nossa preocupação era o afastamento da criança de sua família e a quebra de

vínculo que isso poderia provocar, principalmente no que diz respeito ao seu modo de ser

kaiowá. Entendemos naquele momento que o retorno para casa era o objetivo vital a ser

alcançado. O tratamento poderia ser feito em sua cidade junto de sua família em parceria com

a SESAI. E foi nesta missão que nós residentes trabalhamos.

A equipe do hospital acreditava que era arriscado investir em tal decisão. Explicamos

a eles que talvez o príncipe nunca atingisse o tal peso ideal. Nossa Nutricionista apresentou

uma nova avaliação da criança, onde comprovava que o peso que ele tinha era compatível

com a estimativa para crianças prematuras (idade e altura). Enquanto Psicóloga, expliquei

sobre a importância do resgate do vínculo com família em seu território indígena (seu tekoha,

o qual expressa um modo de vida) um espaço vital onde este sujeito iria se constituir enquanto

ser Kaiowá.

Os autores Siqueira (2007), Jesus & Wenceslau (s.d.), Pereira (2014) apontam que o

tekoha, para os Guarani e Kaiowá significa muito mais que um pedaço de terra, é o lugar onde

se vive segundo seus costumes. Representa o passado e o futuro e seu modo de viver.

Abrange aspectos políticos, econômico, religiosos, culturais, cosmológicos onde tudo

acontece: reza, cantos, casamentos, morte, tudo está interligado. Segundo Siqueira, o conceito

de território para esta comunidade é:

[...] percebido de forma diferente dos não índios. Enquanto que para os não-índios a

terra representa um valor de produção capitalista, um espaço onde se pode produzir

e gerar renda, a terra para as populações indígenas é o meio fundamental e essencial

para sua vida cultural. Ela representa sua identidade, pois é ali que estão enterrados

seus antepassados, e o lugar onde são realizados os rituais, os casamentos, ocorre

9 Consiste em ações que visam uma alta segura objetivando o retorno do usuário para casa. Fortalecimento de

vínculo com a família e treinamento desta para enfrentamento da nova realidade diante das necessidades do

usuário. Além disso, é necessário o trabalho com a rede SUS através da continuidade do tratamento por outros

profissionais da Atenção Básica no território da família.

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nascimentos e a educação dos filhos, ou seja, a terra carrega em si todas a história de

sua vida. (SIQUEIRA, 2007, p.23)

Por isso a preocupação em devolver aquela criança para seu território. Ela

necessitava ser criada e educada ao modo Kaiowá, junto aos seus pais, para que assim pudesse

conquistar a autonomia e a independência dignas de um Kaiowá. Egon Schaden (1974) ao

referir-se sobre a criança Guarani, afirma: “A criança Guarani se caracteriza por notável

espirito de independência. Na medida em que lho permitem o desenvolvimento físico e a

experiência mental, participa da vida, das atividades e dos problemas dos adultos”. (p. 59) E

ainda complementa explicando que para os Kaiowá o pai é a figura de referência da própria

criança, ou seja, quando se pergunta ao infante quem ele é, fará referência ao pai.

Sobre a importância do caminhar na infância juntos aos pais, Platero (2010, p. 219)

afirma que “durante os primeiros anos de vida da criança, a estabilidade corporal do ayvu10

(sua alma espiritual) depende dos níveis de cuidado e manifestações afetivas de seus

familiares”. E reafirma:

[...] a estabilidade espiritual no seio da família extensa é a garantia da estabilidade de

todos os membros dessa unidade sociológica. A permanência da alma espiritual no

corpo depende da forma como as crianças são tratadas, dependendo dos cuidados e

carinhos dentro da família extensa e do tratamento na escola. (PLATERO, 2010, p.

220)

Neste sentido, o retorno para casa representa acima de tudo o resgate de sua

identidade Kaiowá e de sua história. Mostra a necessidade de nós profissionais da saúde

compreender e respeitar a subjetividade deste povo. São estas particularidades da cultura que

devem ser consideradas em nossas ações. A criança necessitava ser nutrida pelo afeto da

família tradicional.

Apresentadas os argumentos para a programação de alta, conseguimos aprovação da

equipe do hospital. Assim, cada trabalhador ficou responsável por uma tarefa: eu e a

Nutricionista residente ficamos responsáveis por colher dados do prontuário do usuário, tais

como, história de vida, histórico do tratamento, onde nasceu, origem da família e etc. O

Assistente Social ficou responsável pelo contato com a equipe da SESAI do município da

10

De acordo com Schaden (1974) a alma Ayvu ou ñee (fala, linguagem) tem como função principal dar a pessoa

o dom da linguagem, “comunicação inter-humana, um animal social, como fragmento do grupo, ganha valor

quando é parte da sociedade e se comunica com os companheiros.” (p.112) É conferida no nascimento da

criança, dada pelo ñanderu (representante religioso).

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família, solicitando aos pais uma visita ao filho. Destaco que os dados colhidos do prontuário

eram vagos, o que deixava a história de internação com lacunas as quais procurei preencher

realizando perguntas aos trabalhadores da instituição que acompanharam a internação do

usuário.

De acordo com os dados coletados, a criança foi internada no mês de Junho de 2015

com queixa de desnutrição. Tinha três anos e pesava 8.500 gramas. A mãe teve complicações

no parto necessitando ser encaminhada para o Hospital Universitário (HU) de Dourados. O

parto foi prematuro e a criança nasceu com baixo peso11

. Durante o tempo em que ficou

internado no centrinho, alimentava-se apenas por mamadeira, com dieta líquida enriquecida

com amido de milho, suplemento hipercalórico de vitaminas e minerais, seis vezes ao dia.

Segundo a equipe o príncipe se recusava a outras preparações sólidas e salgadas, dificultando

o processo de ganho de peso. A criança passou por avaliação fonoaudiológica onde foi

constatado atraso neurológico, dificuldade de deglutição, tonicidade adequada de orofaringe,

com indicativa para continuidade de acompanhamento com profissional Fonoaudióloga e

Fisioterapeuta.

As orientações feitas pela profissional consistiam na inserção progressiva de dietas

sólidas para ajudar no desenvolvimento de seu aparelho fonador, auxiliando principalmente

no desenvolvimento dos dentes, na deglutição e na fala. Mesmo com estas indicações, a

equipe referia resistência da criança em aceitar outras dietas, prejudicando o ganho de peso.

Houve também acompanhamento odontológico com seis restaurações e dois canais. Procurei

o dentista da unidade para compreender o porquê destes procedimentos. Minha curiosidade

era saber se estavam correlacionados ao quadro clínico do usuário ou se ele havia

desenvolvido problemas de saúde bucal durante o período da internação. O profissional não

soube dar esta informação. Fato que incomodou-me muito, pois, apesar do cuidado

dispensado pela equipe a criança, que demostrava um carinho especial com ela, não conseguia

obter informações precisas. E ficou em mim a pergunta: como é possível uma criança de três

anos passar por dois canais nestes oito meses de internação?

Eu e minha equipe encontramos algumas prescrições da Fisioterapeuta do hospital

onde constatavam a realização de sessões de estimulação motora, no entanto, os dados eram

11

Considerado muito baixo para idade, segundo classificação da OMS (2006). No prontuário não consta dados do

desenvolvimento da criança e também não apresenta informações da família, algo que poderiam ajudar a

entender o quadro de desnutrição bem como a condição social da família.

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antigos, não havia prescrições recentes indicando a continuidade do tratamento. Fato que

constamos, pois durante nosso acompanhamento a criança, percebemos que ela não recebia as

sessões de fisioterapia. No prontuário não havia informações sobre a família, algo que

tivemos que buscar junto à equipe no hospital.

Diante de todas estas informações, ou mesmo, a falta delas, aumentava minha

angustia em devolver o príncipe para sua família. A impressão que ficava era que aquela

internação não estava sendo efetiva para sua melhora. Dessa forma procure agilizar o contato

a equipe da SESAI do município da família. Contei com a ajuda de uma ex-residente do

Programa de Residência Multiprofissional da UFGD, também da Saúde Indígena. Expliquei a

ela sobre a situação do príncipe. Ela já conhecia a história, pois quando passou pelo Hospital

da Missão (na época em que fora residente) ele já estava internado no centrinho.

Através de sua ajuda, conseguimos firmar com a equipe de saúde os contatos

necessários (Psicóloga, Nutricionista, Enfermeira e Dentista) para continuidade do tratamento

da criança em seu território junto a sua família. Após este primeiro contato com a equipe da

SESAI, recebemos no centrinho a visita dos pais. Eu e a Nutricionista residente fomos

conversar com eles. Foi um diálogo delicado. Os pais falavam em kaiowá, tinham dificuldade

de se expressar em português. Apesar da nossa dificuldade em compreender outra língua,

acolhemos os pais em suas angústias relacionadas à internação do filho. Ao mesmo tempo nos

sentimos acolhidas, pois sua presença imprescindível. Tê-los ali, junto a nós, era uma

esperança de resolução do caso. Procuramos usar uma linguagem simples (sem uso de termos

técnicos), para que pudéssemos nos comunicar e nos aproximar. Mesmo com pouco tempo de

conversa conseguimos bons resultados.

Enquanto explicávamos sobre as condições de saúde da criança, o pai nos

interrompeu perguntando quanto peso faltava para seu filho ir para casa. Naquele momento

percebi o quanto este assunto pesava sobre todos nós. Explicamos que faltavam

aproximadamente dois quilos e que por isso a equipe do hospital não poderia dar alta. O pai

disse que não aguentava mais de saudade do filho. Neste momento a mãe começou a chorar.

Eles disseram que não tinham condições financeiras para fazer visitas frequentes e que muitas

vezes dependiam do transporte da SESAI. Além disso, eles tinham outros filhos e não podiam

deixá-los sozinhos.

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Percebi, durante nossa conversa, que eles não eram distantes (como a equipe havia

nos informado), mas que por dificuldades financeiras não conseguiam realizar visitas com

frequência. Conversamos sobre a possibilidade de a mãe ficar e nos ajudar nos cuidados do

filho, com o compromisso de informá-lo, sempre que possível, sobre o andamento da

situação. O casal decidiu pela permanência da mãe. Assim, eu e as residentes iniciamos nossa

jornada junto a ela. Nos primeiros dias a equipe do hospital reagiu de forma hostil a presença

da mãe. O fato de a criança passar mais tempo com ela do que com eles causou uma reação

negativa representada na seguinte fala: “o que que essa mulher veio fazer aqui? Nunca deu

atenção pro filho, agora tá ai, ela nem liga pra ele. Não sei não, tem que ficar de olho, ela

não vai aguentar, vai abandonar ele de novo, ela nem sabe cuidar dele, eu que tive que dar

banho e mamadeira pra ele” (informação verbal12

).

Para mim estas falas representavam a natureza do vínculo patológico que estes

haviam desenvolvido com a criança, proporcionado pelo longo tempo de internação. A

respeito deste posicionamento expliquei à equipe que a mãe tinha o direito de estar ali

cuidando do seu filho. E se ele correspondia ao seu cuidado era porque ainda se lembrava

dela. Lembrava-se do colo de mãe. Disse também que em nenhum momento ela havia

abandonado o filho, mas que passara por dificuldades financeiras e por isso visita-lo com

frequência era quase impossível. Nosso papel enquanto trabalhador de saúde era acolhê-la e

ajuda-la a recuperar o vínculo com o filho.

Diante da minha fala vieram outras negativas: “É, mais a gente não sabe como que é

essa mulher, deve ser uma cachaceira e só veio aqui pra comer, quero ver quanto tempo ela

vai aguentar” (informação verbal). Em resposta eu disse que compreendia as experiências

negativas que a equipe vivenciou no passado, com outras histórias. Pedi para confiassem nela

e a apoiassem neste processo de reaproximação com o filho.

Um dia, durante conversa sobre a história do centrinho, um dos trabalhadores vira

para mim e diz o seguinte: “as crianças do centrinho são a moeda de ouro do hospital da

Missão” (informação verbal). Ainda penso sobre este comentário. O que significa? Será que

isto esta correlacionado ao tempo de internação em que as crianças são submetidas naquele

lugar? Este é um assunto que necessitária ser aprofundado em outro espaço que possa

explorar com mais clareza o que venha a ser ou o que se tornou o Centro de Reabilitação

12

Fala de um trabalhador da unidade que anotei em meu diário de campo. Esta e as demais estão entre aspas e

em itálico.

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Nutricional nos dias de hoje. Para mim é um campo nebuloso e complexo pelo qual se faz

necessário, um dia, caminhar. Por, hora, continuo com a história do príncipe.

As primeiras reações negativas da equipe com a mãe fizeram-me perceber que o

príncipe havia se tornado parte daquela instituição, sobretudo uma figura de afeto dos

trabalhadores, que dispensavam um cuidado excepcional a ele. Tanto tempo juntos serviu para

estreitar de maneira significativa seus vínculos. Algo que prejudicou, de certa forma, meu

trabalho com essa tríade usuário-família-equipe de saúde. Em meio a este cenário precisei

resistir e suportar a fase de adaptação. Neste período eu e minha equipe passamos a

acompanhar as refeições junto à mãe e a criança, objetivando fortalecer nosso vínculo a eles.

Dentre os vários desafios que vivenciamos nesta história um deles foi conseguir fazer

com que o príncipe aceitasse outros alimentos como: arroz, feijão, carne e frutas,

abandonando a dieta líquida, que estava em uso a mais de oito meses. Junto à Nutricionista

residente, acompanhamos a mãe nas refeições à criança, no entanto erámos interrompidas pela

equipe do centrinho que oferecia a mamadeira sempre que a criança não aceitava.

Conversamos com a equipe para que aquele tipo de atitude não voltasse a se repetir, pois,

estava prejudicando nossas tentativas. Se fosse preciso oferecer a mamadeira a própria mãe

poderia fazê-lo.

Nossa preocupação estava muito acima do ganho de peso. Queríamos oferecer um

espaço onde à relação entre mãe e filho pudesse ser fortalecida. Naquele momento

percebemos o quanto o vínculo patológico que a equipe do centrinho tinha desenvolvido com

o príncipe era um obstáculo em nosso trabalho com a mãe. Este processo exigiu paciência e

resistência. Durante algumas semanas nos frustramos ao ver que a “mamadeira” estava

ganhando a batalha. Mas erámos fortalecidos pelo posicionamento da mãe, com seu jeito

kaiowá de ser, mantinha-se calma e serena frente a todas as dificuldades.

Um dia conversando com uma médica do ambulatório ela contou-me sobre sua

experiência como missionária. Entramos no assunto da desnutrição que atingia as crianças da

Reserva Indígena. Ela falou sobre sua preocupação com o tempo de internação dos usuários

do certinho e como muitos ficavam afastados de sua família, quando estas não podiam

acompanhá-los. Quando retornam para suas casas deparavam-se novamente com a situação de

fome e pobreza, caindo novamente no adoecimento e retornando ao centrinho. Segundo ela a

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situação se repetia não só pela escassez de alimento13

na reserva, mas também pelo fato de

algumas mulheres não terem conhecimento do preparo de alguns alimentos ofertados na cesta

básica.

Na tentativa de sanar este problema contou que algum tempo atrás desenvolveu um

trabalho junto a mulheres da comunidade indígena oferecendo de oficinas de culinária onde

ensinava fazer pães, bolos e comidas salgadas. Recordando esta história ela sugeriu ao nosso

grupo de residentes promover uma ação parecida, trabalhando com as mães do centrinho

14. Ensinando-as como produzir alimentos a partir de sua realidade (reaproveitando os

alimentos da terra), utilizando também o que era ofertado na cesta básica. Conversei com

minha equipe de residentes sobre a proposta e foi assim que surgiu a ideia de montar uma

“Oficina de Bolos”. Ensinaríamos o preparo dos alimentos e ao mesmo tempo fortaleceríamos

nosso vínculo a elas.

Apresentamos a proposta à equipe multiprofissional do hospital e eles nos apoiaram.

Na mesma semana a cozinha do Centrinho foi reativada. Ganhamos um forno elétrico para

fazer as receitas e assim iniciamos nosso trabalho com as mães. O primeiro dia não foi fácil,

escutamos falas depreciativas dizendo que as mães eram preguiçosas e que não daria certo

nossa oficina. Novamente resistimos e seguimos em frente em nossa caminhada com as mães.

Começamos com uma receita de bolo de fubá e depois fizemos outros preparos a

pedido das mães, como pão caseiro, bolo de chocolate e bolacha. As oficinas aconteciam uma

vez na semana. O grupo de residentes ficava responsável por trazer os ingredientes das

receitas. Para nossa alegria as oficinas foram um sucesso. Todas as mães participaram

ativamente da tarefa. O cheiro que vinha da cozinha contagiou aquele lugar. Aos poucos a

equipe do centrinho foi se aproximando do nosso grupo. Vinham até a cozinha para ver o que

estava acontecendo. Sempre tinha alguém querendo copiar a receita do dia. Receita de vida

que fortaleceu essa caminhada.

13

A fome e a pobreza na Reserva de Dourados envolvem um processo histórico de exploração fundiária e

agrária, que teve início após a Guerra da Tríplice Aliança (ou, Guerra do Paraguai) e a Marcha para o Oeste. O

resultado foi desastroso para a comunidade indígena (principalmente os Guarani e Kaiowá) que foi obrigada a

deslocar-se de seu território (tekoha, espaço vital onde é possível manter as relações sociais e simbólicas) para

espaços reservados pelo Estado. Este confinamento trouxe não só a pobreza, como também conflitos entre

famílias, uma vez que não houve preocupação do Estado em respeitar relações sociais das comunidades. Para

compreender melhor este processo de colonização e exploração, consultar os trabalhos de Vietta (2003), Pereira

(1999), Pereira (2006), Pereira (2013), Siqueira e Brand (2004), Siqueira (2007), Jesus e Wenceslau (s.d.),

Urquiza (2013). 14

Na época em que estive com minha equipe de residentes no Hospital da Missão, o centrinho abrigava três

mães que acompanhavam seus filhos durante a internação.

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Ao final dos preparos fazíamos uma roda com as mães e suas crianças para apreciar o

resultado do trabalho coletivo. Todos interagiam. Para nossa surpresa e para a surpresa da

equipe do Centrinho o príncipe começou a comer. Observando as outras crianças, ele se

aproximava de sua mãe e pedia o alimento. Sentado em seu colo, comia tudo que era

oferecido. Admiramos a cena, pois era uma conquista para nós.

A partir deste dia, foram inúmeros os avanços. Recordo de outra situação marcante.

Um dia, durante o almoço, o príncipe, depois de terminada sua refeição sentou-se no colo de

sua mãe, ajudou-a abrir sua marmita e começou a comer junto com ela. Uma cena que afirma

o afeto e vínculo reconstruído entre os dois. Meu sentimento era de missão cumprida.

Fortalecidos os laços entre mãe e filho e com a rede SUS, os dois voltaram para seu território.

Eu e meu grupo de residentes enviamos um relatório para equipe da SESAI da cidade

da família do príncipe. No documento constava o histórico de internação da criança, o

trabalho desenvolvido pela equipe de residentes junto à mãe e filho e as orientações quanto à

continuidade do tratamento pelo qual ele ainda iria passar, como, por exemplo, o

acompanhamento coma Nutricionista e Psicóloga e retorno ao Dentista. Com muito diálogo e

resistência foi assim que esta história terminou.

Estar no Hospital da Missão foi um desafio. Para mim ficaram muitas perguntas

sobre aquele lugar. Muita coisa ainda é obscura e sem resposta. Acompanhar a história do

príncipe trouxe-me vários questionamentos: Onde fica o compromisso ético/político e social

dos profissionais da saúde com os usuários indígenas, família e território? Em que momentos

estas ações são pensadas a partir da diversidade cultural presente no território da saúde? Por

que manter uma internação de tão longa data? Por que as crianças ali confinadas são a moeda

de ouro? O que significa este comentário?

Esta experiência em campo de formação revelou que as ações ofertadas por algumas

unidades de saúde (como esta), aos usuários indígenas são contrárias à proposta da Politica

Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI):

O princípio que permeia todas as diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde

dos Povos Indígenas é o respeito às concepções, valores e práticas relativos ao

processo saúde-doença próprios a cada sociedade indígena e a seus diversos

especialistas. A articulação com esses saberes e práticas deve ser estimulada para

obtenção da melhoria do estado de saúde dos povos indígenas. (BRASIL, 2002,

p.18)

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Pensando nisso, manter aquele sujeito longe de seu território provocou uma

interferência, não só no vínculo com a família tradicional, mas um rompimento temporário

com seus saberes tradicionais (crenças, linguagem, rezas e costumes). O mesmo assimilou um

modelo de vida que se distancia do modo de ser kaiowá. Outra problemática que fez-me

refletir sobre as ações de saúde ofertadas à comunidade indígena diz respeito ao atendimento

convencional conduzido no modelo ocidental de saúde que não considera a organização

social, a cultura e cosmologia dos povos originários. Uma realidade esbarra nos objetivos

propostos pela PNASPI sobre a preparação dos recursos humanos na saúde indígena:

A capacitação dos recursos humanos para a saúde indígena deverá ser priorizada

como instrumento fundamental de adequação das ações dos profissionais e serviços

de saúde do SUS às especificidades da atenção à saúde dos povos indígenas e às

novas realidades técnicas, legais, políticas e de organização dos serviços. Deverão

ser promovidos cursos de atualização/aperfeiçoamento/especialização para os

gestores, profissionais de saúde e assessores técnicos (indígenas e não indígenas) das

várias instituições que atuem no sistema. (BRASIL, 2002, p.16)

Onde fica tudo isso na prática? Esta situação fez-me pensar em minha formação para

a Saúde Indígena e como construir ações capazes de atender as necessidades da comunidade

que dialoguem com seu modo tradicional de ser? Foram estas respostas que busquei em

minha prática no campo da Saúde Indígena quando me coloquei a estudar sua história,

compreender seu modo de vida e organização social. Abandonei alguns conhecimentos

acadêmicos e adquiri outros quanto decidi caminhar com a comunidade. Respeitando seus

valores e costumes.

Ainda fica a inquietação de compreender qual é a verdadeira função deste hospital

junto à comunidade indígena. É preciso refletir que ações de saúde pautadas em um modelo

exclusivamente hegemônico ocidental podem gerar iatrogênia e dependência, sobretudo

interferem diretamente em seu modo tradicional de viver. Penso que estas são questões

profundas e complexas que estão diretamente vinculadas ao processo histórico de colonização

dos povos originários, do qual as missões religiosas15

tiveram significativa participação.

Sobre este ponto necessitaria de um espaço maior para aprofundar estas questões. Uma

proposta que pretendo desenvolver em outro trabalho. Por hora fico apenas com as

inquietações.

15

Informações sobre os impactos do processo de evangelização e escolarização das comunidades Guarani e

Kaiowá pelas missões religiosas consultar os trabalhos de Platero (2010 e 2015) e Vietta (2003).

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo de ensino que vivenciei na RMS ainda é fortemente influenciado pelas

questões biomédicas. O hospital é umas das principais unidades que reproduz uma forma de

cuidado que não prioriza o coletivo (trabalhadores, gestores e usuários). Em minha formação

vivi momentos de crise e angústias, pois, de um lado eu via o compromisso social com o

usuário e trabalhadores, e de outro a realidade vivida na prática se resumia a uma visita de

leito, sem a participação do usuário. Este fato revela uma problemática no processo de ensino

da residência, que ainda se estrutura no modelo biomédico. Para transformar esta realidade é

necessário ter sensibilidade com o trabalho em rede. Pensar outros modelos de produção de

saúde capazes de romper com o modelo vigente. Por isso a importância de incluir em nossa

prática políticas como a de humanização, que nos permite ampliar nosso olhar sobre os

sujeitos da saúde, promovendo o dialogo entre usuários, trabalhadores e gestores neste

processo de pensar e fazer saúde. Reinventando nossas ações, proporcionando o ganho da

autonomia e corresponsabilidade entre todos.

Escolher a especialização em Saúde Indígena laçou-me a pensar a saúde a partir da

realidade dos povos originários. Convidou-me ao desafio de conhecê-los, construindo novos

conceitos sobre a compreensão de saúde para estas comunidades. O diálogo, a persistência, a

vontade de fazer Saúde Indígena foram instrumentos que fortaleceram minha caminhada e

que ajudou meu grupo a vencer esta batalha. O trabalho com a rede SUS, o contato com a ex-

residente da Saúde Indígena também facilitou o caminhar. Uma característica importante em

meu trabalho foi o compromisso ético, social e político com o usuário, família e equipe de

saúde. Encontrei também na Política Nacional de Humanização os princípios e as diretrizes

que foram os pilares para construir minhas ações, através do diálogo, da escuta qualificada, do

trabalho em rede, do compromisso social e do respeito às diferenças. Encontrei também nos

textos de antropologia sobre os povos originários, subsídios suficientes para explicar a

necessidade de retorno desta criança para seu território, como também, a compreensão sobre

sua organização social e cosmologia, necessárias para fortalecer e legitimar meu trabalho com

a comunidade indígena.

Ser e estar residente, circulando por diversos territórios me faz lembrar o mesmo

movimento que estas comunidades fizeram na tentativa de resistência/existência de seu povo.

Talvez ser residente em formação para o SUS, seja permitir que mudanças aconteçam a partir

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do encontro com o outro. Respeitando seu modo de ser, sua história, suas crenças e costumes.

Fazer saúde implica, neste sentindo, abrir-se para o mundo do diálogo, do diferente unindo os

campos de saberes para promover uma saúde para todos.

4 REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 9.836, de 23 de setembro de 1999. Acrescenta dispositivos à Lei nº 8.080, de

19 de setembro de 1990, que “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e

recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes”,

instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Diário Oficial da União, 24 set, 1999.

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Humanização. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo

norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS / Ministério da

Saúde, Secretaria- Executiva, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. –

Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

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Nacional de Humanização. Humaniza SUS: Documento base para gestores e trabalhadores

dos SUS / -4. ed. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008.

BRASIL. Ministério da Saúde. 2016. Esta obra é disponibilizada nos termos da Licença

CreativeCommons – Atribuição – Não Comercial – Compartilhamento pela mesma licença

4.0 Internacional. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a

fonte. A coleção institucional do Ministério da Saúde pode ser acessada, na íntegra, na

Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde: <www.saude.gov.br/bvs>.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de

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Ministério da Saúde, 2009.

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