Desafios Da Escrita Da História

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DESAFIOS DA ESCRITA DA HISTÓRIA:CONSIDERAÇÕES SOBRE O ANACRONISMO

Sarah Luna de Oliveira1

Do ponto de vista historiográfico, cometer um anacronismo é levar aopassado um valor, idéia, pensamento que lhe é hostil. Dentre as filosofias emetodologias da história, o anacronismo é ressaltado com destaque entre osprocedimentos mais pecaminosos que o historiador pode adotar na realizaçãode seu trabalho. E o é, na medida em que cancela a função da história decompreender o passado, de apreender as especificidades de um tempo quese passou. Neste sentido, o anacronismo é ahistórico, ao negar astransformações (sociais, ideológicas, paradigmáticas, econômicas, políticas,tecnológicas, científicas, filosóficas, etc.) decorrentes do dinamismo do processohistórico, nega o movimento da própria história em nome de um mundoestático, onde o modelo do presente se faz eterno e imperativo ao estudo dopassado. Nietzsche complementa este raciocínio quando levanta a seguinteindagação, “Ou não é abnegação quando o homem histórico se deixa reduzira um espelho objetivo?” (Nietzsche, 1979: 68).

Como se pode cobrar a existência da religião cristã bem como de sua morale liturgia antes do nascimento de Jesus Cristo? Como falar em uma “nação”francesa antes da Revolução ocorrida ao final do século XVIII? Como discutiro conceito clássico de democracia empregado por Clístenes, na Grécia Antiga,sem pensar no atual sistema democrático? Estas são algumas reflexões queremontam à prática do anacronismo que segundo Lucien Febvre, revela o“pior erro do historiador”.

Partindo-se desta definição, pode-se compreender o anacronismo comouma ameaça, ou como sugere o título deste trabalho, um desafio para a escritada história. Eis a pedra de toque desta pesquisa: fazer algumas consideraçõessobre o anacronismo, acima de qualquer julgamento. Nem ignorar nemextremar sua gravidade, mas, em vez disso tentar atribuir mais de um sentidopara esta armadilha que se manifesta constantemente no ofício de historiar.Neste empreendimento, o anacronismo será objeto de reflexão ao lado dediferentes pontos de vista historiográficos, a saber: Iluminismo, Romantismo,Historicismo, “Presentismo” histórico2 e por fim, será discutida uma possível

1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.Bolsista CAPES. E-Mail: <[email protected]>.

2 Este é o termo que Adam Schaff empregou para referir-se ao pensamento histórico de Croce.Sobre o assunto, consultar a obra História e Verdade, de Adam Schaff, especialmente ocapítulo 1 da segunda parte: “Duas concepções da ciência da história: o positivismo e opresentismo”.

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positividade do anacronismo.

A crença em um homem que guarda uma essência em si, inalterável, ouimune às vicissitudes do fluxo da história trouxe para a cultura historiográficado Iluminismo o princípio da universalidade. Não é a toa que alguns valoresconsiderados universais pelo movimento iluminista, a exemplo da moral e darazão foram parte integrante dos fundamentos teóricos na elaboração de leisdo desenvolvimento histórico. Deste modo, a história e a cultura de diferentespovos eram pensadas a partir da Europa do século XVIII, sob a tentativa deconstruir-se uma história “universal”.

Partindo de seus pressupostos teóricos, o pensamento histórico sob oIluminismo classificava diversas sociedades em estágios diferentes de evoluçãocultural e histórica (o parâmetro era necessariamente o grau dedesenvolvimento da razão), privilegiando determinados períodos históricosem detrimento de outros. Um exemplo seria a Idade Média referida por “Idadedas Trevas” em contraponto à “Idade das Luzes”, tempo do próprio Iluminismo.

Este exemplo traz à tona a concepção de temporalidade histórica típica doIluminismo: a distinção entre passado/ reação e presente/ progresso. O tempodo Iluminismo é o tempo do progresso científico, filosófico, político, cultural,histórico, enfim, é o tempo do progresso de uma humanidade que épersonificada pela intelectualidade européia do século XVIII. Todos osperíodos históricos precedentes ao Iluminismo já foram superados, o quesugere a idéia de um tempo “continuum”.

Todavia, não é adequado que esta comparação entre povos distintos apartir de uma transposição de valores como a moral e a razão sejam aquitaxadas por anacronismo. Este seria um julgamento errôneo e genuinamenteanacrônico. Primeiramente porque para se operar tal juízo é necessário ignorarque a terminologia e o conceito de “anacronismo” ainda não eram existentesnaquela realidade. Em segundo plano, o Iluminismo tem sua próprialegitimidade de pensar a história através de uma hierarquia de valoresconsiderados universais, o que justifica a comparação entre sociedades e,mesmo a transposição de valores entre estas.

Talvez o debate historiográfico acerca do anacronismo não apresenteprecedentes fora do Romantismo, uma vez que este movimento impulsionouo questionamento acerca de métodos próprios da história e preocupou-se emconsiderar as divergências entre passado e presente.

Na esteira do pensamento histórico sob a perspectiva romântica, o princípiode universalidade consagrado pelo paradigma iluminista é questionado erefutado a partir da idéia de uma história total, constituída de individualidadeshistóricas e culturais. Em outras palavras, cada povo tem uma especificidadecultural e histórica contribuinte para um campo plural de fenômenos históricosque configuram uma estrutura maior sustentada por histórias cognoscíveis.

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O estudo do passado foi retomado em uma nova perspectiva: a busca dasorigens. Daí nasceu o gosto pelo estudo das tradições, da linguagem dosantigos (que se por um lado era alvo de crítica dos racionalistas por não conterou não expressar a razão e a moral oitocentista, por outro agradava osromânticos críticos da racionalidade e admiradores da poesia e da“espontaneidade” da linguagem), da história das instituições e da histórianacional.

O passado outrora era visto pelos racionalistas como insígnia do retrocesso,era agora romantizado e compreendido como o ponto de partida de todas ascoisas, onde todas estas coisas guardam sua verdadeira essência. GiambattistaVico em sua obra-prima, Princípios de uma Ciência Nova: acerca da naturezacomum entre as nações parece estar afinado com as linhas mestras dopensamento romântico. No axioma seguinte, o filósofo napolitano lança suacrítica à associação entre passado e obscurantismo:

“A inexausta fonte de todos os erros sustentados por naçõesinteiras e por todos os doutos a respeito dos princípios dahumanidade. Isso porque, com base nos seus tempos iluminados,cultos e magníficos, época em que as nações começaram a seperceber delas, e os doutos a se entreter racionalmente com asmesmas, passaram a avaliar as origens da humanidade. Que porsua própria natureza, deverão ter sido pequenas, rudes,obscuríssimas.” (Vico, 1979: 31-32)

O pensamento romântico esforçou-se no sentido de atribuir ao passadoum sentido próprio que não é necessariamente prisioneiro do presente. Nesteaspecto, o aparato teórico-metodológico da historiografia romântica pareceindicar mecanismos para evitara a prática do anacronismo. No entanto, oanacronismo conseguiu infiltrar-se em algumas tendências históricas, aexemplo da história nacional.

A escrita de uma história particular de um povo que ocupou e transformouum mesmo território ao longo do tempo é uma invenção romântica. Todavia,este tipo de narração histórica parece privilegiar a história de uma unidadeterritorial antes da história do povo que a efetivou. Neste sentido, toda histórianacional concorre ao anacronismo se considerarmos o exemplo de que, ahistória dos Estados Unidos não começou antes de sua independência, umavez que, as colônias inglesas ainda não sabiam que se tornariam independentese chamar-se-iam Estados Unidos da América. Desconheciam o sentimentonacionalista e tampouco sabiam que o território gradativamente seria ampliadoao preço de batalhas, negociações, etc., e sofreria alterações contínuas atéadquirir seu formato atual.

Refletindo sobre este problema que ainda hoje acompanha a historiografianacional, o historiador Fernando Novais (inscrito nesta área) alertou que,

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“quando se recorta o território da nação e entende como história da naçãotudo que se sabe que aconteceu dentro daquele território, o anacronismo éinevitável” (Leite & Galvão, 2000: 04).

Ele ainda completa, “a questão do anacronismo em história nacional éuma desgraça; quando a nação foi colônia é uma desgraça ainda maior, eentre as nações que foram colônia nenhuma é tão complicada quanto o Brasil”(Leite & Galvão, 2000: 04).

Em entrevista concedida à revista Teoria e Debate, o historiógrafo denunciouquestões referentes ao anacronismo em história nacional. Segundo Novais,esta ainda não era uma nação pronta quando os primeiros portugueses aquifirmaram terra. Em contrapartida, a terminologia “história do Brasil” sugereuma narração de trás pra frente como se a colônia estivesse predestinada atornar-se uma nação desde a chegada de Cabral e mesmo antes disso sepensarmos em uma “pré-história do Brasil colonial”.

Este legado da historiografia romântica (o estudo das origens) que MarcBloch chamou de “obsessão pelas origens”, ainda preserva o mesmo aspectoanacrônico, sobretudo nas versões oficiais da história e nas memóriasformuladas pelo Estado. Talvez isso ocorra porque em vez de um recortetemporal, faz-se um recorte geográfico dos limites territoriais de um dado país(estado, cidade, etc.) que serve de parâmetro para a narração histórica doespaço geográfico selecionado.

Mesmo que haja um consenso em torno deste problema concernente àhistoriografia nacional (ou local) como um todo, as instituições acadêmicas(bem como o conhecimento produzido neste meio), a mídia e a literaturacontinuam a empregar termos como “história do Brasil”, “história da França,da Inglaterra, da Alemanha”, etc. O que não significa taxar todas as obrashistóricas inscritas nas áreas de história nacional de anacrônicas,absolutamente. A adoção destes termos (acredito) reflete apenas uma questãode cunho educacional e político (institucional). Estes termos são designaçõesou denominações que foram convencionadas e não necessariamentecomprometem a produção histórica em questão. Este pode ser um exemploilustrativo em que o anacronismo desde que seja percebido e assumido nãotenha a função única de deturpar ou distorcer a escrita da história.

Além do problema da história nacional, o Romantismo enfrenta outroembate com o anacronismo: a “romantização” do passado, dimensão temporalportadora das origens de todas as coisas.

Marc Bloch denominou de “obsessão pelas origens” a empreitada românticade buscar as raízes dos acontecimentos e das práticas humanas em um passadoremoto para elucidar um problema atual ou de um passado recente. Estafatídica manobra retrospectiva pode trazer uma visão artificial do passado parajustificar uma ação do presente e, por isso, não está privada do juízo e das

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“paixões” (como disse Vico) daquele que a opera.

Bloch denunciou então que:

“Ao escrutar as ‘origens’ da França de sua época, o quepropunha Taine senão denunciar o erro de uma política oriunda,a seu ver, de uma filosofia do homem? Quer se trate das invasõesgermânicas ou da conquista normanda [da Inglaterra], o passadosó foi empregado tão ativamente para explicar o presente nodesígnio de melhor justificar ou condenar.” (Bloch, 2001: 58)

Um problema atual não pode ser identificado com o seu embrião atravésde uma prospecção no tempo histórico, não pode haver equivalência entreestes, posto o dinamismo que sofreram e que consequentemente ostransformou. Do alto de sua erudição, Marc Bloch empregou a seguintemetáfora, “o carvalho nasce da glande. Mas carvalho só se torna e permaneceapenas ao encontrar condições de ambiente favoráveis, as quais não resultamda embriologia” (Bloch, 2001: 58).

Michel Foucault também é contestador da pesquisa da “origem”. Emcontraponto a esta, ele propõe o método genealógico empregado porNietzsche, assinalando sua minudência e eficácia em apreender as alteridadesque se camuflam de permanência na narrativa causal da ordem dosacontecimentos históricos. O modelo nietzscheano proposto por Foucault estádisposto a perscrutar as singularidades dos acontecimentos, as rupturas quesucumbem no interior das linearidades históricas.

A história narrada a partir da idéia socrática de ordem, ou de harmoniaque interliga os fenômenos históricos, assim como a idéia de um sujeito históricoconstituído desta ordem, considerado o mesmo em qualquer lugar e tempo, éna concepção de Foucault (enquanto tributário de Nietzsche) uma idéiaequivocada de se fazer e pensar a história.

Ora, esta natureza transcendental ou quase transcendental de um sujeitohistórico é ahistórica. Para Foucault o sujeito histórico é uma individualidadeque se altera ao longo da história, é camaleônico e não pode ser compreendidocomo o mesmo estando exposto ao devir.

Foucault afirma que:

“Fazer a genealogia dos valores, da moral, do asceticismo, doconhecimento não será, portanto, partir em busca de sua “origem”,negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história;será, ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasosdos começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisóriamaldade; esperar vê-los surgir, nas máscaras enfim retiradas, como rosto do outro; não ter pudor de ir procurá-las lá onde elasestão, escavando os “basfond” deixar-lhes o tempo de elevar-se

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do labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob suaguarda.” (Foucault, 2004: 19)

Ao chamar atenção para a idéia de caos (acaso) como uma reflexão denatureza histórica, Nietzsche pretende refutar a idéia de ordem, contrapondo-se à metafísica socrática e racionalista. Foucault, seu discípulo utilizou o métodogenealógico para descrever as práticas humanas, bem como para fazer ahistória do que era considerado sem história: o amor, a sexualidade, os instintos,a loucura, a consciência, etc.3.

Por se ater às particularidades e singularidades históricas em contraponto àcrença da modernidade em um sujeito histórico portador de uma naturezaeterna e inalterável (ahistórica), Foucault consegue marginalizar o anacronismoda reflexão e da escrita da história, levando em conta que a sua busca é pelooutro e não pelo mesmo. Sob a perspectiva das premissas do métodogenealógico, o anacronismo pode ser compreendido por uma confusão entreos tempos históricos, como uma negação das alteridades da história. O métodogenealógico tem efeito de resposta ao estatuto teórico-epistemológico dahistoriografia iluminista e romântica, enfim, a sistematização do pensamentohistórico hegemônico durante a modernidade.

Retomando o caso isolado do Romantismo, é relevante assinalar queembora a cultura historiográfica correspondente a este movimento suscitedebates em torno de práticas anacrônicas (no caso da pesquisa das origensou da história nacional), o pressuposto teórico do pluralismo histórico e culturaltende a afastá-las. Além disso, a premissa de uma multiplicidade cultural ehistórica é uma marca romântica de arbitrariedade face ao universalismoabstrato do Iluminismo.

Neste contexto, é imprescindível se falar em Johann Gottfried Herder:

“Herder mantinha que qualquer atividade, situação, períodohistórico ou civilização estava dotado de um caráterexclusivamente próprio, de forma que a tentativa de reduzir estesfenômenos a combinações de elementos uniformes, e descrevê-los ou analisá-los em termos de regras universais tendia,precisamente a obliterar as diferenças cruciais que constituíam aqualidade específica da matéria em estudo, tanto no âmbito danatureza quanto no da história.” (Berlin, 1982: 133)

Herder é um grande expoente do romantismo alemão, autor da obra Maisuma filosofia da História (1744), considerada a primeira a sistematizar reflexõesde natureza histórica pelo viés do romantismo. Nela, Herder refuta o excesso

3 É preciso ressalvar que antes mesmo de Foucault, Nietzsche havia realizado a genealogia damoral, que serviu de inspiração para Foucault lançar-se e debruçar-se em novos temas queendossassem o método genealógico.

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de racionalidade do pensamento iluminista atacando suas tendências emgeneralizar, conceituar e abstrair com a finalidade de uniformizar as diferenças.Um outro aspecto de suma importância contido nesta obra está na crítica aomodo que o paradigma iluminista se relaciona com o passado/ reação emcontraste com o presente, tempo do progresso contínuo.

Novamente, a obra de Herder remonta a uma preocupação em ambientaro passado, libertando-o do juízo do presente, em contextualizar o ocorrido,embora, ironicamente, o autor seja relembrado correntemente como o pai donacionalismo europeu (e aí perpassa novamente toda aquela discussão sobrea historiografia dita nacional relacionada ao problema do anacronismo).

Travados os debates concernentes à historiografia iluminista e românticavinculados à problemática do anacronismo, é lícito afirmar que, sobretudo nocaso da escola romântica, a história obteve função primordial na realizaçãode estudos humanísticos. Sob a luz desta escola, a natureza humana éconcebida em sua dinâmica, portanto, só pode ser apreendida através de seupercurso no devir histórico. Esta valorização da história viria culminar com aemergência da corrente filosófica do Historicismo.

O Historicismo consiste na idéia de imanência da história, da história-em-si, ou seja, a história guarda uma essência e um sentido próprios queindependem da orientação da disciplina ou da ciência histórica, enfim dahistória enquanto conhecimento. Do ponto de vista do historicismo, pensou-se a “historicidade” como uma categoria do real em que todas as coisas podemser historicizadas.

Em consonância com o Romantismo, o Historicismo tratou daindividualidade dos objetos do conhecimento histórico, partindo do mesmoprincípio que cada povo a ser estudado, ou mesmo cada período temporal éúnico e representativo para a História, em contraponto à universalidade dopensamento histórico iluminista. Neste ponto, o Historicismo (marcado porinfluências românticas) também é hostil ao julgamento de períodos históricosefetivados a partir uma do presente.

Outra interseção entre o Historicismo e o Romantismo, implica em umconsenso da idéia do passado como um todo constituído por partes (queseriam as individualidades históricas e culturais). De outro modo, (em umexemplo relativamente grosseiro), assim como um jogo de quebra-cabeça, opassado pode ser constituído e compreendido em sua integridade.

Mas o Historicismo apresenta uma série de rupturas com a tradição românticae mesmo moderna, ao colocar em sua pauta de proposições o problema datomada de consciência histórica. Para esta corrente do pensamento histórico,a tomada de consciência histórica é o fundamento principal das ciênciashumanas, é o triunfo do homem sobre a natureza dentro do paradigmacientífico da modernidade. Sobre o problema da consciência histórica, Hans-

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Georg Gadamer alega que:

“A consciência histórica que hoje temos de história diferefundamentalmente do modo pelo qual anteriormente o passadose apresentava a um povo ou a uma época. Entendemos porconsciência histórica o privilégio do homem moderno de ter plenaconsciência da historicidade de todo presente e da relatividadede toda opinião.” (Gadamer, 2003: 17)

Na visão de Gadamer, o passado serve como lente para enxergar questõesconcretas da realidade presente, embora o autor não deixe de ressalvar que a“tradição” hegemônica deste presente vai determinar (ou de modo mais tênue,condicionar) a leitura do passado. Logo, o passado não pode ser resgatado“em si”, desvinculado do presente.

Não obstante, a possibilidade de historicizar o presente substituiu o binômio-objeto de estudo/ sujeito do conhecimento- prevalecente na ciência históricamarcada pela influência cartesiana por uma integração destas partes. A históriapode ser percebida a partir de então como um exercício de auto-conhecimento,pois o sujeito que conhece é ao mesmo tempo objeto de estudo.

No tocante a questão da “relatividade de toda opinião” a que se referiuGadamer, a lógica de uma história enviesada por um discurso único,supostamente verdadeiro e irrefutável é solapada pela possibilidade demúltiplas interpretações em torno de um mesmo tema. A narrativa históricado acontecido é um problema de ordem hermenêutica, ou de interpretação.

No âmbito desta discussão a problematização acerca de uma subjetividadehistórica ganha terreno na voz do próprio Gadamer, assim como de outrosautores: Benedetto Croce, Reinhart Koselleck, Dilthey, Paul Ricoeur, AdamShaff, etc.4. Quando este tema da subjetividade em história é levantado apolêmica do anacronismo é acionada. Ora, a idéia de um método interpretativosubentende que uma história pode ser escrita e reescrita levando emconsideração a subjetividade, o tempo e a visão de mundo de seu interlocutor.

O historicismo hermenêutico (ou interpretativo) considera o presente queenvolve o historiador, sem perder de vista a expectativa que este detém nopapel de narrador do acontecido. Neste sentido, Reinhart Koselleck afirmouque:

“O presente contém toda a história: interpreta o passado a partirde um horizonte de expectativa, de construção de um futurodesejado. E porque o presente envolvente contém toda a história,enquanto ponto culminante do suceder, ele, carregado de

4 Todos estes autores apresentaram unanimidade na utilização do subjetivismo como preceitode interpretação e de análise histórica e fazem parte da corrente do historicismo interpretativo.

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temporalidades diferenciadas, é a chave para a compreensãohistórica.” (Koselleck, 2002: 03)

Segundo Jurandir Malerba5, este presente figurado como zênite do suceder,compreendido por Koselleck como ápice do(s) processo(s) histórico(s)comporta a “simultaneidade do anacrônico”. Koselleck reconhece no presente,a concentração de uma carga de temporalidades que por sua vez, configurama chave da compreensão histórica. Todavia, o manejo destas temporalidadesé viabilizado pela orientação do método hermenêutico, a partir do qual ohistoriador busca uma transposição para compreender o outro em um outromomento. Contudo, este contato entre diferentes momentos históricos nãoestá isento da experiência particular ou das próprias paixões do historiador.

Fundamentando esta discussão, Malerba resgatou Dilthey:

“Pois para Dilthey a busca do passado não constitui um fim emsi mesmo. Os homens buscam as marcas de outros homens paraconhecerem a si próprios. Justamente porque possuímos uma“experiência” comum de “humanidade”, o historiador de hojepoderia (segundo Dilthey), transportar-se (o substantivo érigorosamente, a transposição) para o tempo de outrem, fazer dopresente do passado (Koselleck) o seu próprio presente, enxergaro mundo histórico como o “outro” o concebeu. Segundo Dilthey,o homem não conhece apenas com sua razão, mas com todo seuser.” (Malerba, 2002: 07)

Na lógica do método hermenêutico, o anacronismo (no sentido da“acronia” –no dizer de Jacques Rancière - entre os tempos) encontra a nobrefunção de compreender um dado processo histórico através de umatransposição entre o novo e o antigo e vice-versa. Desta relação entre os tempostanto similitudes quanto diferenças entre um momento e outro almejam serreveladas. Este pode ser mais um caso em que o anacronismo pode adquirirum outro sentido, uma outra função que dista de seu aspecto ahistórico.

Com vistas à preservação da individualidade dos objetos, as teorias emetodologias propostas ao conhecimento histórico demandam certo grau deimparcialidade ou de neutralidade ao historiador no intuito de que este possaafastar-se de sua realidade própria e aproximar-se de seu objetotemporalmente remoto. Mas, constituí-se aí um problema: como distanciar-sede seu tempo quando os questionamentos geradores da pesquisa históricasão contemporâneos do próprio indagador? Certamente este foi umquestionamento que figuras como Dilthey e Croce tentaram responder.

5 Jurandir Malerba cita Koselleck em seu texto “História e Hermenêutica: Interpretação eCompreensão da Experiência Histórica” (2002, mimeo.).

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Segundo Croce, “toda história é história contemporânea”. Partindo destaafirmação, é possível compreender a história como um conhecimento queparte do presente para relacionar-se com o passado, mas não com qualquerpassado e sim com aquele que interessa à curiosidade do próprio historiador.Ainda sobre a atualidade do conhecimento histórico, Croce acrescenta que“por mais afastados no tempo que pareçam os acontecimentos de que trata,na realidade, a história liga-se às necessidades e às situações presentes nasquais esses acontecimentos têm ressonância” (Croce, 1938: 05).

Alheio aos requisitos de neutralidade e imparcialidade histórica, Croceliderou um movimento de oposição ao positivismo, reivindicando para osubjetivismo histórico lugar de destaque no processo de confecção da obrahistórica.

De acordo com os cânones subjetivistas do presentismo histórico não seriaadequado falar em uma “história”, mas em “histórias” que são contadas pordiferentes locutores e podem ter diferentes recepções de seus respectivosespectadores. Esta corrente não comunga da concepção de universalidade(Iluminismo) ou de totalidade da história (Romantismo). Em vez disso, apontapara uma noção esmiuçada da realidade histórica, onde cada indivíduo temsua própria percepção dos acontecimentos e monta sua narração de acordocom suas próprias opiniões. Neste caso particular a história retrata um tipo deconhecimento que primordialmente serve às vontades dos historiadores e aotempo em que estão inseridos, de modo que o passado parece estar fatalmenteagrilhoado à forma que o presente lhe impõe.

No entendimento de Croce, a história não pode ser considerada uma ciênciarestrita ao estudo do passado, uma vez que este é passível de reconstruçõesque atendem aos interesses e curiosidades que partem do presente. Nestesentido, a crítica “croceana” ao positivismo também se constitui na direção dacrença em um passado estático que espera observação e catalogação paralogo ser resolvido como algo pronto e encerrado, que não mais precisa serrevisitado. Na contramão desta crença positivista, Croce reivindica para oestudo da história a concepção de um passado inacabado em permanentereconstrução. Sobre as idéias de Croce, Adam Schaff esclarece que:

“É esta visão radicalmente subjetivista da história que opresentismo subentende. Porque se tudo o que existe é um produtodo espírito, os fatos históricos são-no igualmente. Não há passadoobjetivamente dado, há apenas fatos criados pelo espírito numpresente extremamente variável. Toda história deve pois ser atual,visto que é o produto de um espírito cuja atividade se situa sempreno presente, e que cria a sua imagem histórica (fora da qual nãoexiste história) sob a influência de interesses e de motivos atuais.”(Schaff, 1978: 111)

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Contudo, esta construção contínua do passado sempre se dá em um tempopresente aos historiadores, é condicionada por este assim como aoconhecimento que a gerou. Trata-se do que Adam Schaff preferiu chamar de“condicionamento social do conhecimento histórico”.

Se a escrita e reescrita da história é arranjada pelo paradigmacontemporâneo e pelas características sociais, ideológicas, políticas eintelectuais que envolvem o historiador, naturalmente toda história parte deum anacronismo. Mais uma vez, a acronia dos tempos manifesta-se no ato dedar vida ao ocorrido. Neste aspecto, o anacronismo mostra-se imanente e vaialém de uma suposta “ameaça” perseguidora da atividade histórica.

Levando em conta a concepção da história como uma ciência do eternopresente e considerando as inferências do historiador sobre a montagem danarrativa histórica, é possível indagar: até que ponto o anacronismo pode serevitado no ofício do historiador? É possível revertê-o a favor da produção doconhecimento histórico, atribuí-lo uma nova função e um outro sentido?

Por representar o “pesadelo” para o historiador, bem como ocomprometimento de seu trabalho o anacronismo é cantado em verso e prosacomo alvo de repulsa do método histórico. Como ressalvou a historiadorafrancesa Nicole Loraux6,

“O anacronismo é o pesadelo do historiador, o pecado capitalcontra o método, do qual basta apenas o nome para construiruma acusação infamante, a acusação -em suma- de não serhistoriador, já que se maneja os tempos de maneira errônea.”(Loraux, 1992: 57)

O expurgo metodológico do anacronismo busca preservar “verdades”, asparticularidades, por fim, a individualidade do acontecimento. Com efeito, anecessidade de uma metodologia que contextualize devidamente osacontecimentos faz-se indispensável embora, quando extremada, estapreocupação com a singularidade do passado possa limitar e mesmoempobrecer por vezes a interpretação histórica.

Por outro lado, o bom emprego do anacronismo, desde que realizado demodo consciente não necessariamente representa a tragicidade no destinoda história. Como já vimos, o exemplo dos termos empregados pelahistoriografia nacional indica o caso específico de um anacronismo conscientee mesmo institucionalizado pela mesma comunidade que o condena.

6 Nicole Loraux foi diretora da Escola de Autos Estudos em Ciências Sociais (Paris). Publicouentre outros, os seguintes trabalhos: Lês esperiences de Tirésias (l’e feminin et l’hommegrec), Gallimard; Façon tragiques de tuer une femme, Hachette – tradução brasileira pelaJorge Zahar Editor; Lês mères em deuil, Éditions du Seuil.

Sarah Luna de Oliveira

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Eis que então a questão se impõe: como poderia o anacronismo servir àpesquisa histórica? Nesta direção, Nicole Loraux destaca a utilidade doanacronismo para se estudar a Antiguidade:

“Ora, seria possível que o historiador da Antiguidade não esteja,na circunstância, sujeito aos mesmos constrangimentos que oshistoriadores de outros períodos, o que estes, aliás, sabemeventualmente faze-lo sentir -; seria possível ser necessariamentelevado, por bem ou por mal, a passar pelo ‘anacronismo’ quando,desejando dar vida e conteúdo a fatos que, a tal distância, corremo risco de se reduzir a uma pura forma, recorre, na construção deseu raciocínio, a algum ‘analagon’.” (Loraux, 1992: 58)

Diante de um objeto que remonta a um tempo tão distante é inevitávelpensar em alguma “coincidência”, em algo comum, ou como bem disseLoraux, em algum ‘analagon’ entre o atual e o antigo no esforço de melhorcompreendê-lo. Se a Antiguidade já é demasiadamente afastada do tempodo historiador será que este ainda precisa afastar-se mais ainda de seu objetopara apreendê-lo? Será isto realmente viável? Loraux, respondeu, “pois oanacronismo se impõe a partir do momento que, para um historiador daAntiguidade, o presente é o mais eficaz dos motores do impulso decompreender” (Loraux, 1992: 58).

Na concepção de Loraux, o problema não está nas analogias traçadas entreexperiências temporalmente afastadas, mas na maneira como estas sãorealizadas pelo historiador. A autora francesa defende esta forma particular deanacronismo que é a “atenção ao repetitivo”. Ao mesmo tempo, a autoraressalva que este repetitivo não deve servir como norte para as ações dopresente:

“Por que fazer o elogio do anacronismo quando se é historiador,senão para sugerir que, no tempo cronológico da história, conviriaprestar atenção ou, pelo menos, conceder um lugar a todos osfenômenos de repetição, sem garantia de nenhuma lição ou denenhuma experiência?” (Loraux, 1992: 67)

Esta “modalidade” de anacronismo indica mais uma minudência ou umexcesso de cautela a que se candidatam os historiadores mais audaciosos doque meramente uma falta metodológica.

Há um ponto limítrofe sinalizando as fronteiras entre parcialidade eimparcialidade a serem empregadas na produção da obra histórica? Gadamerparece elucidar este problema ao afirmar que:

“Toda experiência é confronto, já que ela opõe o novo ao antigo,e, em princípio, nunca se sabe se o novo prevalecerá, quer dizer,tornar-se-à verdadeiramente uma experiência, ou se o antigo,

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costumeiro e previsível reconquistará finalmente a suaconsistência.” (Gadamer, 2003: 14)

Em meio a esta reflexão talvez não fosse necessário condenar o anacronismode modo tão intransigente levando em conta que este se faz presente no ofíciode historiar, sobretudo nos momentos de dúvida e de crise que fomentam apesquisa, como foi colocado por Nicole Loraux no caso do estudo daAntiguidade.

Não só no caso específico da Antiguidade, mas em todo olhar direcionadoao passado o anacronismo pode estar presente. Retomemos Adam Schaff e oque ele denominou de “condicionamento social do conhecimento histórico”.Considerando que as questões lançadas ao passado nascem no tempo presenteem que este é estudado, o anacronismo parece ser irredutível.

Ainda há um outro agravante: as “paixões” do historiador podem fugirabsolutamente ao questionamento que é gerado em seu próprio pensamento?E será que as questões parcialmente permeadas pela carga passional dohistoriador obrigatoriamente deturpam e comprometem seu trabalho inteiro?

À frente desta problematização, é relevante desmistificar que o conhecimentodo historiador seja puro de suas próprias “paixões” pois, sua pessoalidade etoda sua “alma” também estão vinculadas à sua razão histórica comodefenderia Dilthey e Croce. O imensurável ou desmedido quinhão deneutralidade cobrado do historiador não resolve o problema da compreensãodas verdades históricas e tampouco é eficaz na missão de filtrar a escrita dahistória de possíveis anacronismos.

Em suma, as reflexões deste trabalho assumem a dificuldade em redirecionartantas forças concentradas a fim de dirimir o anacronismo do método históricopara uma nova perspectiva: atribuir alguma positividade a acronia. Oanacronismo consciente ou adequadamente cometido (salvo o peso dapalavra) pode ser mais útil ao ofício dos historiadores do que o anacronismocristalizado pelo tabu metodológico. O asco em torno da acronia consagrousua pior função como única: a de comprometer a trama histórica. Umareavaliação desta posição supostamente consagrada pode ser uma tarefa árdua,porém não deixa de ser um prazeroso desafio.

Referências

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BERLIN, Isaiah. Vico e Herder. Brasília: Editora da UnB, 1979.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 19.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Tradução de Paulo CésarDuque Estrada. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

Sarah Luna de Oliveira

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LEITE, José Corrêa & GALVÃO, Walnice Nogueira. A invenção do Brasil: entrevista comFernando Novais. Teoria e Debate, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, n. 44, abr./ mai./jun. 2000. Disponível em: <http://www.fpa.org.br/td/td44/td44_entrevista.htm>. Acesso em:16 jul. 2004.

LORAUX, Nicole. Elogio do anacronismo. In: Tempo e História. São Paulo: Companhia dasLetras/ Secretaria Municipal da Cultura, 1992.

MALERBA, Jurandir. História e Hermenêutica: interpretação e compreensão da experiênciahistórica. 2002. Trabalho não publicado

NIETZSCHE, Friederich Wilhelm. Obras incompletas. Seleção textos de Gerard Lebrun;tradução e notas de Rubens Rodrigues torres Filho; posfácio de Antônio Cândido de Mello eSouza. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Col. “Os pensadores”).

SCHAFF, Adam. História e verdade. Tradução de Maria Paula Duarte. São Paulo: MartinsFontes, 1978.

VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova: acerca da natureza comum entre asnações. Seleção, tradução e notas de Antonio Lazaro de Almeida Prado. 2. ed. São Paulo:Abril Cultural, 1979.

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