DESAFIOS DA FILOSOFIA MORAL CONTEMPORÂNEA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA CURSO DE MESTRADO

DESAFIOS DA FILOSOFIA MORAL CONTEMPORNEA: A QUESTO DO VALOR NO DESENVOLVIMENTO DE UMA TEORIA TICA AMBIENTAL

FLORIANPOLIS 2009

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ROSANE MARIA MOTA

DESAFIOS DA FILOSOFIA MORAL CONTEMPORNEA: A QUESTO DO VALOR NO DESENVOLVIMENTO DE UMA TEORIA TICA AMBIENTAL

Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Filosofia, Programa de PsGraduao em Filosofia, Curso de Mestrado, Centro de Filosofia e Cincias Humanas. Orientadora: Prof. Dra. Snia T. Felipe

FLORIANPOLIS 2009

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Dedico esta dissertao a todos que se entregam de corpo e razo luta pela preservao do meio ambiente e abolio do uso e abuso de animais de toda espcie.

4 AGRADECIMENTOS

Aos professores do Departamento de Filosofia, em especial, Alessandro Pinzani, Celso Reni Braida, Luiz Henrique de Arajo Dutra, Luis Felipe Belintani e Dcio Krause. A professora Snia Terezinha Felipe por sua orientao e respeito na recepo e troca de ideias. Ao servidor do Departamento de Filosofia, Manoel (Maneca) sempre muito atencioso. Aos colegas da graduao e ps-graduao em Filosofia, especialmente, Tnia A.Kuhnen, Neide Khler Schulte, Kleberson Jasper, Alberto Paulo Neto, Carmelita Schulze e Rafael Mendona pelas preciosas contribuies sobre a teoria de Paul Taylor, durante a disciplina optativa tica Prtica 2007-2. Todas as discusses foram importantssimas para a construo deste texto. Aos meus pais Alcides e Maria que sempre me apoiaram em tudo que busquei realizar, s minhas irms Cristiane e Luciane, e minha querida sobrinha Tassa. Aos amigos Caroline Ferri, Fernando Coelho, Sandro Roberto Oliveira, Marisa Baldo, Valdirene e Kassiano a quem tenho eterna admirao e carinho. Finalmente, a Thiagus pelo amor, carinho e pacincia durante esse percurso.

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Quando o homem aprende a respeitar at o menor ser da criao, seja animal ou vegetal, ningum precisa ensin-lo a amar seu semelhante. Albert Schweitzer (Nobel da Paz 1952)

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SUMRIORESUMO..........................................................................................................................8 ABSTRACT.....................................................................................................................9 INTRODUO.............................................................................................................10 I. A PERSPECTIVA DE VALOR DA NATUREZA NAS CONCEPES TICAS SENCIOCNTRICAS..................................................................................................14 1.1 SERES MORALMENTE CONSIDERVEIS E VALIOSOS POR SI MESMOS NA CONCEPO UTILITARISTA PREFERENCIAL..................................................................................................................18 1.1.1 Afastar a dor, buscar o prazer: um interesse universalizvel........................19 1.1.2 O malefcio da dor..........................................................................................21 1.1.3 O valor da vida consciente.............................................................................24 1.1.4 O valor instrumental da natureza..................................................................26 1.2 CONCEPO DE DIREITOS E VALOR PARA SUJEITOS-DE-UMA-VIDA.......................................33 1.2.1 Mais que meramente vivo...............................................................................33 1.2.2 O valor como fim............................................................................................35 1.2.3 Consideraes sobre a natureza de uma tica ambiental..............................38 1.3 VALORES NA NATUREZA..............................................................................................47 1.3.1 O valor antecede o interesse..........................................................................48 1.3.2 A sencincia como critrio ltimo de valor prprio......................................50 II. PERSPECTIVA BIOCNTRICA DE VALOR E CONSIDERAO MORAL DA NATUREZA NA CONSTITUIO DE UMA TICA AMBIENTAL............54 2.1 ESTRUTURA PARALELA DAS TICAS HUMANA E AMBIENTAL................................................56 2.1.1 A simultaneidade da condio agente-paciente moral..................................56 2.1.2 Condies para a validade dos princpios ticos ..........................................59 2.1.2.1 Condies formais...................................................................................59 2.1.2.2 Condies materiais.................................................................................60 2.2 A PERSPECTIVA BIOCNTRICA.......................................................................................62 2.2.1 Seres humanos como membros da Comunidade de Vida da Terra................62 2.2.2 O mundo natural: um sistema de interdependncia.......................................65 2.2.3 Centros teleolgicos de vida..........................................................................65 2.2.4 O mito da superioridade humana...................................................................66 2.3 A ATITUDE DE RESPEITO PELA NATUREZA.......................................................................74 2.3.1 O conceito de bem-prprio............................................................................74 2.3.2 O conceito de bem inerente............................................................................76 2.4 REGRAS DE CONDUTA, CARTER E VIRTUDES DO SISTEMA TICO-AMBIENTAL........................79 2.5 DILEMAS MORAIS E PRINCPIOS PRIORITRIOS..................................................................82 III. CRTICAS, OBJEES E OUTRAS PERSPECTIVAS PARA A TICA DO RESPEITO PELA NATUREZA..................................................................................89 3.1 INDIVIDUALISMO ALTERNATIVO ....................................................................................90 3.1.1 Interesse considervel moralmente................................................................91 3.1.2 Preservao e respeito pelas espcies...........................................................93 3.1.3 O bem da espcie: um conceito estatstico.....................................................94 3.2 O PROBLEMA DA JUSTIFICAO NA TICA DO RESPEITO PELA NATUREZA..............................96 3.2.1 Perspectiva antropocntrico-biocntrica.......................................................98 3.2.2 A rede de interdependncia..........................................................................100 3.2.3 Organismos buscam seu prprio bem..........................................................101

7 3.2.4 A difcil aceitao da igualdade biocntrica...............................................103 3.3 A RESISTNCIA ANTROPOCNTRICA EM FAVOR DA SUPERIORIDADE HUMANA .......................106 3.3.1 O valor da vida no- humana......................................................................107 3.3.2 Tipos de vida................................................................................................110 3.3.3 Respeito versus direito.................................................................................112 3.3.4 A insustentvel ideia de superioridade humana..........................................115 CONSIDERAES FINAIS......................................................................................121 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................124

MOTA, Rosane Maria. Desafios da filosofia moral contempornea: a questo do valor no desenvolvimento de uma teoria tica ambiental. 2009. Dissertao (Mestrado em Filosofia na rea de tica e Filosofia Poltica) Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis. Orientadora: Prof. Snia T. Felipe, Dra.

Resumo

Este trabalho apresenta uma discusso das principais questes e polmicas contemporneas que envolvem o desenvolvimento de uma tica ambiental a partir das perspectivas de alguns importantes filsofos: o abolicionista-animalista Peter Singer, que somente acredita no desenvolvimento de uma tica ambiental baseada no interesse dos seres sencientes; Tom Regan, outro abolicionista que compartilha em parte a crena de Singer, considera insustentvel a defesa de uma tica ambiental baseada exclusivamente num carter instrumental para a satisfao de interesses senciocntricos; Holmes Rolston III com a perspectiva de valores na natureza questiona, principalmente, a concepo de tica ambiental proposta por Singer; numa perspectiva no antropocntrica, Paul Taylor, filsofo biocentrista, prope uma tica ambiental de respeito pela natureza baseada nos conceitos de bem-prprio e bem inerente das coisas vivas silvestres. Contudo, as velhas concepes so sempre muito resistentes ao que novo. Da mesma forma que atrai simpatizantes, a teoria de Taylor no permanece isenta s crticas. Entre seus simpatizantes, Nicholas Agar prope que o individualismo seja substitudo pela considerao do interesse das espcies em se preservar. Entre seus crticos, Gene Spitler contribui positivamente com observaes contundentes sobre um dos principais elementos constitutivos de sua tica: a interdependncia das coisas vivas no ecossistema planetrio. J Louis G. Lombardi usa os conceitos de bem inerente e bem prprio para reescrever a ideia de superioridade humana. Todas as questes refletem a polmica na proposio de um critrio vlido capaz de justificar o reconhecimento do valor da vida no-humana em si mesma e o desenvolvimento de uma concepo aceitvel de tica ambiental. Palavras-chave: tica ambiental, bem prprio, bem inerente, vida humana, vida nohumana, superioridade humana.

MOTA, Rosane Maria. Challenges of Contemporary Mral Philosophy: The Question of Value in Developing a Theory of Environmental Ethics. 2009. Dissertation (Masters Degree in Philosophy Ethics and Moral Philosophy) Federal University of Santa Catarina, Florianpolis. Professor: Snia T. Felipe, PhD.

Abstract

This paper presents a discussion of the main contemporary issues and controversies about the development of environmental ethics from the perspective of some major philosophers: the abolitionist-animal Peter Singer, who defends the developing of an environmental ethics based only on the interests of sentient beings; Tom Regan, another abolitionist who shares some of Singers point of view, considers unsustainable the defense of an environmental ethics based solely on a character instrumental to the satisfaction of interests sentiocentrics; Holmes Rolston III criticizes the concept of environmental ethics proposed by Singer, mainly, because he has a view of nature values from a non-anthropocentric perspective; the biocentrist philosopher Paul Taylor proposes an environmental ethics of respect for nature based on the concepts of good of its own and the inherent worth of wild living things. However, the old conceptions are always very resistant to what is new. The Taylors theory has both sympathizers as well critics. Among his sympathizers, Nicholas Agar proposes that individualism is replaced by the self-preservation interest of the species. Among its critics, Gene Spitler contributes positively with remarkable observations on one of the main components of his ethics: the interdependence of living things in the planetary ecosystem. For other hand, Louis G. Lombardi employs the concepts of inherent worth and good of its own to review the idea of human superiority. All questions reflect the controversy in the proposal of a valid criterion that can be able to justify the recognition of the value of non-human life in itself and the development of an acceptable conception to environmental ethics. Keywords: environmental ethics, good of its own, inherent worth, human life, nonhuman life, human superiority.

Introduo

A tica ambiental um campo de investigao recente do pensamento tico contemporneo e um dos mais polmicos. O ser humano, apenas tardiamente, comeou a prestar ateno s questes que envolvem suas aes destrutivas para com o meio ambiente. Inicialmente, muitos filsofos tm dedicado especial ateno ao que acontece com os animais, sejam aqueles que se tornaram produtos da biocultura ou que direta ou indiretamente sofrem com a interferncia humana. Seu objetivo principal limitar o avano humano naqueles escassos ambientes em que a vida silvestre de animais e plantas ainda pode desenvolver-se a seu prprio modo. O ser humano precisa rever e transformar sua perspectiva de mundo e o seu lugar nele. Alm da resistncia dos pensadores da tradio antropocntrica que no consideram possvel, tampouco necessrio, o desenvolvimento de uma tica para o meio ambiente, aqueles que se dedicam a discuti-la divergem em muitos pontos quanto aos critrios capazes incluir a vida silvestre na considerao e respeito moral. As questes ambientais envolvem essencialmente refletir sobre os danos causados ao longo dos anos pelos seres humanos e sua cultura natureza e s outras formas de vida. So muitos os desdobramentos dessa histria de uso e abuso de animais, dos recursos indispensveis a manuteno da vida, do desmatamento de florestas inteiras que implicam nos distrbios do clima, no ciclo das estaes do ano, consequentemente na produo de alimentos (gros) entre outras consequncias decorrentes dessas aes. No primeiro captulo, aspectos do pensamento tico abolicionista-animalista so tratados com ateno especial para as concepes de Peter Singer e Tom Regan. Os elementos principais dessas concepes, com respeito questo do valor e do status dos animais sencientes no mbito das consideraes morais e seu alcance na considerao de limites das aes humanas para com os animais e a natureza. A proposio do princpio de igual considerao de interesses semelhantes de Singer, fundamentada na capacidade de sofrer com a dor, busca justificar a incluso no mbito das consideraes morais de todos os seres dotados de sencincia. Apesar da amplitude desse critrio, o princpio da igual considerao de interesses de seres sencientes acaba excluindo da considerao moral parte significativa de seres vivos. Com relao s questes ambientais, so apresentadas as dvidas de Singer quanto possibilidade de se transpor barreira da sencincia quando est em questo

atribuir valor no-instrumental a natureza. Singer admite atribuir somente esse valor as coisas que no satisfazem o critrio da sencincia. O valor intrnseco aplicvel apenas queles seres capazes de sofrer com a degradao do ambiente onde vivem e dos recursos necessrios a sua sobrevivncia. A preservao da natureza, na concepo de Singer, tambm deve contemplar a considerao do interesse das geraes que habitaro a Terra no futuro em encontrar um ambiente saudvel e adequado para o seu pleno desenvolvimento. A posio de Singer em relao ao desenvolvimento de uma tica ambiental lhe rende muitas crticas. Entre elas, a de Holmes Rolston III rejeita a ideia de atribuir a natureza apenas um valor instrumental, em virtude de ser necessria ao interesse de sobrevivncia dos seres sencientes, sem, no entanto, ter valor por ela mesma. Tom Regan e sua perspectiva tica de direitos morais para os animais compartilha com Singer da dvida sobre possibilidade de se transpor o limite da sencincia, quando o assunto envolve consideraes sobre valor. O conceito de sujeitos-de-umavida, objeto da considerao moral e de valor inerente em sua teoria, denota subjacente recurso do autor a ideia de singularidade da vida consciente ou autoconsciente. Mas, os critrios apresentados por Regan para definir sujeito-de-uma-vida parecem no oferecer maior amplitude ao mbito da considerao moral. Em comparao ao critrio apresentado por Singer, o de Regan parece restringir ainda mais a incurso de seres nohumanos na comunidade moral. Na discusso das questes ambientais so apresentadas as consideraes de Regan quanto ao que julga ser necessrio para o desenvolvimento de uma tica ambiental genuna: conceder valor diretamente natureza. O autor um crtico da tentativa dos tericos tradicionais antropocntricos de desqualificar o desenvolvimento de uma tica ambiental desvinculada do aspecto instrumental. Os antropocentristas consideram impossvel e, mesmo, desnecessrio esse esforo, uma vez que as questes ambientais podem ser suficientemente tratadas, a partir da ideia de interesse, sejam esses dos seres sencientes ou, especialmente, dos humanos. Os principais argumentos dessa tradio, contrria fundamentao de uma tica ambiental que atribua valor diretamente natureza, so examinados por Regan e considerados insuficientes para desqualificar o esforo de pensar uma tica ambiental, cujo valor no se vincula a interesses. O autor considera importante numa tica ambiental buscar um critrio capaz de justificar o valor da natureza em si mesma.

No segundo captulo a teoria tica ambiental biocntrica de Paul Taylor apresentada como uma proposta que busca justificar o valor prprio da natureza. Em sintonia com a idia de Regan e inspirado pelo seu conceito de valor inerente (inherent value), Taylor apresenta sua verso de bem inerente (inherent worth). Diferentemente de Regan, o autor considera dignos desse valor somente quelas coisas vivas que possuem um bem prprio, cuja realizao prpria do seu modo singular de vida, delimitando um novo mbito para a considerao e respeito moral. Taylor desenvolve a tica do respeito pela natureza em torno de quatro pontos que considera centrais em sua teoria: 1) a perspectiva biocntrica de natureza; 2) a ideia de interdependncia entre as formas de vida nos ecossistemas; 3) seres humanos e nohumanos na situao de membros da comunidade de vida da Terra; e 4) a negao da superioridade humana. Alm disso, o autor dedica-se a enumerar alguns princpios que considera prioritrios na tentativa de resolver conflito de interesses, decorrentes da relao entre seres humanos e as outras formas de vida. Esses princpios so associados a uma srie de virtudes as quais Taylor julga capazes de dotar os seres humanos com a boa vontade para adotar a atitude de respeito pela natureza. No terceiro captulo, so apresentadas as crticas de trs autores a teoria de Taylor: Nicholas Agar, Gene Spitler e Louis G. Lombardi. Cada um deles apresenta objees e contribuies que proporcionam reflexes importantes para o entendimento da teoria de Taylor. Agar, mais simpatizante que crtico da igualdade biocntrica, prope uma alternativa ao individualismo de Taylor quanto considerao do bem prprio, singular aos modos de vida das coisas vivas silvestres. Filiado perspectiva de preservao de espcies, Agar apresenta em substituio ao conceito de bem prprio, o de meta-representacional, que julga capaz de fundamentar a considerao moral de espcies, ao invs de indivduos exclusivamente. Para o autor, indivduos expressam interesses caractersticos da espcie a qual pertencem. Spitler, por sua vez, aponta inconsistncias nos argumentos apresentados por Taylor, em cada um dos pontos centrais que constituem sua proposta de tica ambiental. Spitler aponta problemas principalmente quanto (1) a possibilidade de abandonar a perspectiva antropocntrica como viso humana de mundo, (2) no reconhecimento da interdependncia entre as formas de vida, ao mesmo tempo em que humanos so considerados dispensveis dessa relao sem qualquer prejuzo para o desenvolvimento

da vida dos outros organismos constituintes do ecossistema planetrio, e (3) na possibilidade de se negar superioridade humana. O autor bastante consistente em suas observaes fazendo Taylor repensar algumas consideraes com respeito participao humana na relao de interdependncia entre as espcies no ecossistema planetrio. Por fim, Lombardi apresenta uma releitura da superioridade humana com base no conceito de bem inerente proposto por Taylor. Os argumentos de Lombardi fundamentam-se principalmente na ideia de variedade de capacidades dos diferentes tipos de vida, no processo de busca e realizao de seu bem prprio. O fato de seres humanos possurem uma variedade maior de capacidades, algumas dessas distinguindoos significativamente das outras formas de vida, justificariam a considerao do bem inerente dentro de uma escala, cujo bem seria maior ou menor, conforme a variedade de capacidades com as quais cada tipo de vida realiza seu bem prprio. Taylor oferece respostas bastante consistentes s objees de seus colegas. As consideraes de Agar no diferem muito do que o autor j prope em sua tica. Consideraes sobre o bem de espcies acabam esbarrando no bem do indivduo em primeiro lugar. Quanto s objees de Spitler, especialmente as observaes sobre a ideia de interdependncia, Taylor reconhece que comete alguns exageros em sua afirmao sobre a desnecessria presena e, mesmo, benfica ausncia dos humanos no ecossistema planetrio. J em relao s crticas e intenes de Lombardi, Taylor apresenta razes para negar qualquer possibilidade de reeditar a superioridade humana, a partir do conceito de gradao do bem inerente. Escala cujos nveis so estabelecidos de acordo com a variedade ou complexidade de capacidades apresentadas pelos diferentes tipos de vida. Taylor no admite que o bem inerente da coisa viva que busca seu bem, de acordo com seu modo de vida, seja graduado, pois esse bem prprio da vida singular que ele ou ela . Todas essas discusses proporcionam uma ampla reflexo filosfica sobre crenas arraigadas, costumes, interesses antropocntricos subjacentes e possibilidades de mudana da viso de mundo, bem como das relaes humanas com todas as outras formas de vida que ainda se encontram fora do mbito das consideraes morais, de valor e respeito.

I. A perspectiva de valor da natureza nas concepes ticas senciocntricas inegvel que a tica deixou de ser exclusivamente um campo de investigao das relaes entre humanos. As transformaes que os seres humanos provocaram no panorama da Terra ao longo de sua histria motivaram preocupaes quanto ao futuro do planeta e dos seres que nele vivem. Os reflexos do desenvolvimento da cultura industrial so percebidos na extino de animais, poluio dos recursos no renovveis, aquecimento global, no clima e na produo de alimentos, nas catstrofes naturais, entre outras ainda em estudo. Todas essas questes, at bem pouco tempo, no constavam na pauta de prioridades das grandes economias mundiais. O relatrio divulgado pelo IPCC/ONU1 (Painel Intergovernamental sobre Mudanas Climticas da Organizao das Naes Unidas) mudou esse panorama. As naes economicamente mais ricas foram alertadas a repensar seus modelos econmicos na tentativa de reverter, ou ao menos refrear, o quadro atual das transformaes no planeta. Toda essa preocupao repentina dos rgos governamentais, contudo, nos faz suspeitar que a dimenso do problema seja muito maior. fato que as transformaes provocadas no planeta acarretam problemas atuais urgentes. Contudo, o debate em torno dos problemas do clima e dos desafios da preservao da natureza, a discusso de fundamentos slidos, capazes de promover mudanas na atitude humana explorativa, no acontecem com a mesma urgncia. Uma transformao na perspectiva das relaes humanas com a natureza envolve refletir e discutir eticamente uma nova postura, com a substituio dos velhos paradigmas da moral tradicional antropocntrica que tm mantido fora das consideraes morais todas as outras formas de vida e um nmero significativo de seres humanos, por outros que sejam capazes de incluir o maior nmero de seres, ou mesmo toda a comunidade de vida da Terra. Diante do novo cenrio no qual o planeta atualmente se encontra, no mais admissvel para os humanos orientarem-se por uma tica que limita a considerao1

Divulgado em 02/02/2007, na cidade de Paris (Frana), o Relatrio do IPCC/ONU Novos Cenrios Climticos alerta para as transformaes drsticas que o planeta vem sofrendo ao longo dos anos que influenciaro diretamente nas condies climticas futuras, ocasionadas, principalmente, pelas emisses de gases poluentes na atmosfera, resultado do consumo de combustveis fsseis pelos humanos. Disponvel em: www.ecolatina.com.br. Acessado em: 19/05/2008.

moral e de valor somente a sua forma de vida, enquanto atribui s outras, apenas valor instrumental, consideradas unicamente como meios para satisfao de suas necessidades e interesses. As discusses sobre a tica devem ser capazes de incluir as formas de vida constituintes do ecossistema global. Alguns adeptos das concepes de ecologia profunda e respeito pela vida, afirmam que todas as formas de vida vivem na Terra uma relao de interdependncia. O que afeta um grupo para o bem ou para o mal, pode igualmente trazer consequncias boas ou ms para outros.2 Essas novas perspectivas ticas no admitem nem reconhecem justificativas que excluam do mbito moral as discusses em torno das relaes humanas com o meio ambiente natural e o seu dever de preserv-lo. No se pode admitir que a tica ignore as atuais consequncias das aes e relaes humanas para com o meio ambiente e continue ainda a guiar-se por velhos paradigmas como racionalidade e linguagem para reconhecer que algum seja digno de considerao moral. A humanidade vive novos tempos e necessita buscar novos critrios, capazes de fundamentar solidamente uma mudana de perspectiva na interrelao com o meio ambiente, que permita o desenvolvimento de uma tica global, valorizando a natureza no como instrumento de satisfao das vontades e desejos humanos, mas, por ela mesma. inadmissvel ignorar que os humanos compartilham com todos os outros seres vivos as mesmas condies e exigncias de sobrevivncia. Os ticos defensores dos animais so precursores no esforo para ampliar o mbito da moralidade3. As questes ambientais so desdobramentos dessa busca, pois objetivam encontrar um critrio capaz de incluir nas consideraes morais, tanto os animais, quanto outras formas de vida que compem o ecossistema da Terra. Contudo, questes envolvendo o meio ambiente natural e as formas de vida que o constituem no so discutidas dentro de uma mesma perspectiva por ticos

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Kenneth Goodpaster, Aldo Leopoldo, Freya Mathews, Holmes Rolston III, Paul Taylor, Albert Schweitzer, George Session, Arne Naess, Val Plumwood, Richard Sylvan, Bill Duvall, Lawrence Johnson, James Lovelock defendem a ideia de interdependncia nas relaes entre os seres vivos no ecossistema planetrio. Peter Singer faz referncia s concepes defendidas por eles em tica Prtica, So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 280-304 (no captulo dedicado ao meio ambiente) 3 Humphry Primatt em The Duty of Mercy, j no sculo XVIII chamava a ateno para o sofrimento dos animais. Apud FELIPE, Snia T. Fundamentao tica dos direitos animais: O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal 1. Salvador 2006a: Instituto de Abolicionismo Animal. Da mesma forma, Jeremy Bentham em, Introduction to the Principles of Morals and Legislation, chama a ateno sobre ser a capacidade de sofrer dos animais mais relevante moralmente que o fato de no poderem raciocinar ou falar. Apud SINGER. tica Prtica. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 667.

ambientalistas e por defensores dos animais4. H divergncias em seus argumentos, quanto aos critrios capazes de fundamentar uma concepo de valor que possibilite o desenvolvimento de uma tica ambiental genuna.5 De um lado, os defensores dos animais consideram duvidosa a possibilidade de se transpor barreira da sensibilidade e conscincia para afirmar que algo tem valor por si mesmo e merece considerao moral. Por outro lado, os ambientalistas insistem que limitar o valor aos critrios da conscincia e sensibilidade restringe a considerao moral aos seres humanos que satisfazem essas condies e a uns poucos animais, deixando de fora todas as outras formas de vida. Nesse captulo, o principal objetivo ser apresentar algumas concepes de valor e a plausibilidade de sua adoo para a ampliao da fronteira da moralidade, frente concepo moral tradicional. Em especial as contribuies de Peter Singer e Tom Regan para uma teoria tica abolicionista dos maus-tratos e uso de animais para fins humanos, bem como suas consideraes sobre a possibilidade de desenvolvimento de uma tica ambiental capaz de orientar as relaes humanas com as outras formas de vida que igualmente constituem o ecossistema da Terra. Entre os animalistas, Peter Singer defende uma postura mais conservadora com respeito s questes ambientais. Sua concepo de tica ambiental se limita ao interesse dos seres sencientes. Tom Regan, por outro lado, apresenta fortes argumentos para desqualificar a tentativa dos antropocentristas e senciocentristas de justificar a impossibilidade e desnecessidade de se desenvolver uma tica que postule valor por si mesmo, nos objetos naturais e na vida destituda de conscincia. Esses defendem que a prpria tradio moral capaz de dar conta dessas questes no interesse da vida humana. Tambm sero tratados, em linhas gerais, os limites da sensibilidade e conscincia como critrios que permitam avanar as discusses ticas para as relaes com o meio ambiente natural.4

Alguns dos principais argumentos e a ideia central de concepes ticas ambientais como a liberal de Avner De-Shalit, Paul Hawken, Terry L. Anderson e Donald R. Leal, a libertria ecotage Christopher Manes e o biorregionalismo de Gary Snyder, e ainda o ambientalismo socialista de James OConnor e John Clark podem ser conhecidos nos ensaios de Slvio Negro para o Curso de Extenso em tica e Justia Ambiental, realizado na UFSC, no primeiro semestre de 2006. NEGRO, Slvio. Estratgias de argumentao da filosofia ambientalista liberal, libertria e socialista e Biorregionalismo, tica e justia ambiental. Ethic@ 5, Florianpolis, 2006a, p. 83-93 e 185-93 respectivamente. 5 Peter Singer em tica Prtica defende uma tica ambiental baseada no valor instrumental da natureza para a satisfao dos interesses dos seres dotados de sensibilidade e conscincia. Tom Regan em The Nature and Possibility of an Environmental Ethics, ao contrrio, admite a necessidade de considerar valor inerente aos objetos naturais.

Os ambientalistas, em geral, criticam as concepes antropocntricas e senciocntricas de tica. Holmes Rolston III, entre eles, um dos principais crticos da proposta de Singer em limitar a considerao moral e de valor capacidade da sencincia. Rolston III no considera a sencincia um critrio suficientemente forte para estabelecer uma linha divisria entre os considerveis e os no-considerveis moralmente, nem que isso seja necessrio. Em contrapartida, defende que o valor da natureza encontra-se nela mesma, e, embora, conte com o interesse dos humanos, seu valor independente desse interesse. Importante destacar que Singer, Regan, Rolston III no apresentam claramente suas concepes de natureza. Todos parecem entender natureza como fonte de sustentao da vida e bem-estar de todos os seres, humanos ou no. Relacionada a tudo que no seja produto da manipulao humana, a natureza vista como uma espcie de continuidade da vida desde seu surgimento no planeta, cuja interveno humana pode provocar a perda dessa ligao com o passado. Em Singer essa ideia parece bem clara quando o autor escreve: Uma floresta virgem o produto de todos os milhares de anos que se passaram desde o incio da vida em nosso planeta. Se ela for derrubada, outra floresta pode crescer em seu lugar, mas a continuidade ter sido rompida. [...] uma vez a floresta derrubada ou inundada, a sua ligao com o passado estar perdida para sempre.6 Por outro lado, Singer compartilha com Bill McKibben da ideia de um mundo ps-natural. Nesse, a interveno humana, principalmente a destruio da camada de oznio e seus desdobramentos no clima, colocaram um divisor de guas na histria do planeta em que natureza no sentido de continuidade no existe mais.7 A crtica de Rolston III proposta de Singer, e as consideraes de Regan sobre a insuficincia dos argumentos dos antropocentristas e dos senciocentristas para desqualificar a tentativa dos tericos ticos ambientalistas, instigam a reflexo e a busca de critrios que no estejam conectados a caractersticas factuais fsicas ou psicolgicas de certos indivduos, limitando a considerao moral e de valor a uns poucos.

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SINGER, 1998, p. 284-85. McKIBBEN, Bill. The End of Nature. Nova York: 1989, p. 58 e 60. Apud. Idem, p. 288-89.

1.1 Seres moralmente considerveis e valiosos por si mesmos na concepo utilitarista preferencial Na tradio filosfica, os critrios para um indivduo pertencer ao mbito da moralidade so bem claros: linguagem e racionalidade. Segundo Snia T. Felipe, na tradio, somente aqueles seres capazes de express-los so dignos de valor e considerao moral. Para a autora, no entanto, esses padres tradicionais fracassaram na fundamentao de propostas ticas, sempre que se buscou neles uma orientao para guiar decises e aes que pudessem afetar interesses de seres vivos no-humanos.8 Do ponto de vista da moral tradicional antropocntrica, todas as formas de vida existem para servir espcie humana. Essa tese, segundo Felipe, concorre para o fracasso dessa concepo porque no impe qualquer restrio s aes dos humanos, privilegiados com a permisso de apropriar-se das demais espcies vivas. Nas trs dcadas mais recentes da histria humana, o erro da filosofia moral tradicional tem se mostrado mais evidente. Felipe defende, por conta dessa tradio influente nas culturas ao redor do planeta, que a espcie humana enfrenta um dilema moral9: se h valor na vida de um determinado ser, ento provavelmente esse valor tambm est presente na vida de outros, sejam eles animais ou vegetais, no apenas nos seres pertencentes espcie humana. Se o valor da vida, ento a configurao biolgica ou de aparncia no deve contar moralmente. O corpo no a causa da vida, mas uma configurao especfica na qual a vida se expressa. Se o valor moral um valor invarivel, e a vida o que determina esse valor, para Felipe, seja na configurao humana, animal ou vegetal, essa vida tem valor moral. Partindo da ideia de que a tica deve servir para preservar o que tem valor, nos seres que podem ser afetados por nossas aes, continua a autora, ento no h como defender critrios discriminadores para preservar o mesmo valor, somente porque a aparncia ou forma de expresso na qual a vida se manifesta no padronizada por nenhum dos critrios que elegemos tradicionalmente.10 Segundo Felipe, o que parece simples na fala, acaba por detonar a concepo do valor da vida na perspectiva hierrquico-antropocntrica, defendida pela filosofia moral tradicional. Na contracorrente da moral vigente, h que investigar os limites da8

FELIPE, Snia T. Da Considerabilidade Moral dos Seres Vivos: a biotica ambiental de Kenneth E. Goodpaster. Ethic@ 5, Florianpolis, 2006b, p. 105. 9 Idem, p. 106. 10 Idem, p. 106.

argumentao tradicional e buscar redefinir a tica, caso se tenha o intuito de tornar coerente com um mesmo princpio moral a interao dos seres humanos uns com os outros, e desses com as demais espcies vivas.11 1.1.1 Afastar a dor, buscar o prazer: um interesse universalizvel A incluso dos animais nas discusses morais um problema que tangencia o pensamento filosfico h muito tempo. Um dos pioneiros no discurso de defesa dos animais Humphry Primatt, telogo ingls, que em 1776 escreveu The Duty of Mercy, e influenciou todo o pensamento sobre a abolio dos maus-tratos aos animais. Felipe trouxe para o conhecimento dos filsofos brasileiros as ideias influentes desse autor que defende o dever moral de compaixo humana pela dor e sofrimento dos animais brutos, vinculando o refinamento do homem ao seu dever de no tripudiar sobre as diferenas e singularidades dos vulnerveis e indefesos.12 Para Primatt, a razo pode tornar-se pervertida no apenas no trato com outros humanos, em condies vulnerveis, mas, especialmente, no trato com os outros animais,13 o sujeito moral precisa escolher entre ser coerente ou perverso, no havendo inocncia moral quando algum, ciente de seu desvio, no segue o que sua razo indica como correto. A dor , na concepo de Primatt, uma experincia intrinsecamente m, seu malefcio independente de quaisquer peculiaridades sociais, intelectuais ou de aparncia, sequer depende do pensamento, razo ou linguagem, pois as diferenas entre os seres capazes de sentir, sejam elas quais forem, no aumentam nem diminuem a sensibilidade dor.14 A tese de Primatt sobre ser a dor uma experincia intrinsecamente m a base do princpio da igual considerao de interesses semelhantes na teoria tica de Peter Singer. Atualmente, um dos mais importantes tericos sobre a abolio dos maus-tratos e uso de animais para fins humanos. Para Singer, a existncia de diferenas bvias e significativas entre os humanos e os outros animais no constituem obstculos proposio de um princpio bsico de

11 12

FELIPE, 2006b, p. 106. Apud. FELIPE, O legado de Humphry Primatt, 2006a, p. 211-13. 13 Idem, p. 215. 14 Idem, p. 217.

igualdade, que exija apenas considerao igual ao interesse dos animais em afastar de si a dor que os impossibilita de buscarem sua sobrevivncia.15 Buscar a ampliao do mbito da moralidade o principal objetivo do autor. Ser consciente da experincia de dor o primeiro critrio defensvel para a considerao moral e de valor em si mesmo. Singer prope analisar que tipo de interesse pode ser universalizvel e, conseqentemente, considerado valioso por si mesmo, uma vez que tomar uma deciso implica pesar igualmente os interesses semelhantes daqueles que sero afetados. Para o autor uma concepo de tica deve buscar a universalidade de seus juzos. Sobre isso, Singer escreve: A tica se fundamenta num ponto de vista universal, o que no significa que um juzo tico particular deva ser universalmente aplicvel. [...] as circunstncias alteram as causas. [...] ao emitirmos juzos ticos, extrapolamos as nossas preferncias e averses. De um ponto de vista tico, irrelevante o fato de que sou eu o beneficirio de, digamos, uma distribuio mais eqitativa da renda, e voc o que perde com ela. A tica exige que extrapolemos o eu e o voc e cheguemos lei universal, ao juzo universalizvel, do ponto de vista do espectador imparcial, ao observador ideal, ou qualquer outro nome que lhe dermos.16 O critrio utilitarista clssico, baseado no resultado das melhores consequncias, medido pelo saldo positivo do prazer em relao dor, substitudo por Singer pelo exame de todas as alternativas que iro nortear a escolha da melhor deciso. O objetivo de Singer favorecer interesses e preferncias daqueles que sero afetados por essas decises.17 Para se tomar uma deciso, primeiro necessrio definir quais interesses so semelhantes aos interesses de quem age, a ponto de serem considerados de modo igual. Para resolver essa questo, Singer apresenta uma noo de interesse que considera fundamental para tratar das questes ticas na vida prtica.

15

SINGER, Peter. The Significance of Animal Suffering In: BAIRD, Robert M; ROSENBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. NY: Amherst 1991, p. 57-66; Animal Liberation. NY: HarperCollins Publishers, 2002, p. 1-23. 16 SINGER, 1998, p. 19-20. 17 Idem, p. 22.

Em primeiro lugar, uma noo de interesse universalizvel precisa, segundo Singer, satisfazer uma condio prvia que Jeremy Bentham apresenta em sua crtica base tradicional da igualdade, marginalizadora dos animais: a questo no saber se so capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se so passveis de sofrimento.18 Singer considera imprescindvel antes de se adotar qualquer curso de ao ou considerar qualquer outro interesse, prestar ateno em um interesse fundamental: minimizar ou eliminar a dor e o sofrimento que certos seres preferem afastar de si, a fim de buscarem o bem-estar e o prazer. 19 Para que nossas decises sejam universalizveis, Singer defende primeiramente respeitar nos seres afetados a capacidade de sentir dor ou prazer, pois a capacidade de sofrer e de desfrutar as coisas condio para se ter quaisquer outros interesses, antes de se poder falar de interesses de um modo significativo.20 Se todos os seres dotados de sensibilidade e conscincia tm preferncias, ento possvel adotar a posio tica utilitarista preferencial como uma posio mnima, segundo a qual podemos tomar decises com base em nosso prprio interesse e preferncia pelo bem-estar e o prazer, ao invs da dor. Partindo desse ponto, Singer prope a reviso de alguns pressupostos ticos tradicionais, entre eles, aqueles que dizem respeito s consideraes sobre a igualdade, no caso dos prprios seres humanos, dos animais e do meio ambiente natural. 1.1.2 O malefcio da dor

Singer reconhece que o tradicional princpio, todos os seres humanos so iguais, contribuiu significativamente para inaugurar uma nova postura diante das velhas questes humanas tais quais as das diferenas raciais e sexuais. Mas, o autor defende que um outro princpio, mnimo, que leve em conta o interesse dos seres em manter afastada de si as experincias dolorosas e desagradveis pode ser mais abrangente. Da perspectiva dos seres conscientes, deve-se considerar para o agir um princpio que leve em conta o interesse semelhante nos seres em afastar de si a dor. Um princpio bsico o princpio da igual considerao de interesses semelhantes.18

BENTHAM, Jeremy. Introduction to the Principles of Morals and Legislation, Cap. 18, seo 1, nota de rodap. Apud. SINGER, 1998, p. 66-7. 19 A ideia central do utilitarismo clssico maximizar (aumentar) o prazer e minimizar (diminuir) a dor. No clculo das consequncias decorrentes de nossas aes o saldo entre dor ou sofrimento e prazer deve ser favorvel ao prazer. 20 SINGER, 1998, p. 67.

Qualquer outro argumento que tente defender maior relevncia para os interesses humanos arbitrrio, fundamentado unicamente num preconceito especista21 humano com relao s outras espcies. Para Singer: A essncia do princpio de igual considerao significa que, em nossas deliberaes morais, atribumos o mesmo peso aos interesses semelhantes de todos os que so atingidos por nossos atos. Isso significa que, se apenas X e Y viessem a ser atingidos por um possvel ato, e que, se X estiver mais sujeito a perdas e Y mais sujeito a vantagens, melhor ser deixar de praticar o ato. Se aceitarmos o princpio da igual considerao de interesses, no poderemos dizer que melhor praticar o ato, a despeito dos fatos descritos, porque estamos mais preocupados com Y do que com X. Eis a que o princpio realmente equivale: um interesse um interesse, seja l de quem for esse interesse.22 Admitindo a igual considerao de interesse como princpio bsico para a igualdade, Singer no admite mant-lo restrito ao mbito das relaes humanas. O autor defende a necessidade de ampliar as consideraes morais a outros seres. Assim como Primatt, o autor entende que os animais, analogamente aos humanos, possuem sensaes de dor e so conscientes delas. At onde se pode fazer comparaes entre o comportamento humano e o dos animais, nas situaes que provocam dor e sofrimento, eles tambm preferem o bem-estar e buscam afastar de si qualquer coisa que lhes cause desconforto. O princpio de igual considerao de interesses oferece uma base slida para orientar as relaes entre os seres humanos; aceit-lo implica igualmente no dever de aplic-lo s relaes com os seres que no pertencem espcie humana, mas tambm so capazes de sofrer. Singer entende que essa viso estabelece uma nova linha divisria para o mbito das consideraes morais.21

Por especistas Singer entende todos aqueles que atribuem maior peso aos interesses de membros de sua prpria espcie quando h um choque entre os seus interesses e os interesses dos que pertencem a outras espcies. Os especistas humanos no admitem que a dor to m quando sentida por porcos ou ratos como quando so os seres humanos que a sentem. SINGER, 1998, p. 68. O termo especismo uma contribuio de Richard Ryder para definir o preconceito sofrido pelos animais. Para o autor no justificvel o tipo de tratamento discriminador dispensado aos animais, simplesmente por pertencerem a outras espcies. Ryder dedica toda uma seo para tratar desse tipo de preconceito em Victims of Science. the use of animals in reserch [1975]. Revised edition 1983. London: Centaur Press; National AntiVivisection Society Limited, 1983, p. 1-14. Texto traduzido para o portugus por Snia T. Felipe. In: Pensata Animal n 16 - ano II. Outubro de 2008. Disponvel em: Sentiens Defesa Animal: www.sentiens.net. Acessado em: 10/11/2008. 22 SINGER, 1998, p. 30.

Para aqueles que ainda tm alguma dvida quanto a essa possibilidade, os estudos da biologia e psicologia demonstraram ao longo da histria que diferenas entre seres humanos e outras espcies no so to profundas quanto se fazia crer. Singer enfatiza que as novas descobertas da cincia sobre a estrutura gentica dos seres vivos ajudaram a sepultar velhos paradigmas da humanidade. Atualmente, nada justifica infringir dor a um ser no-humano, cujo comportamento, semelhante ao dos humanos, demonstra que ele busca desesperadamente evit-la. Para Singer, o princpio da igual considerao equivale ideia de que um interesse um interesse, no importa de quem seja.23 Considerando um interesse mais especfico, o alvio da dor, por exemplo, ento: uma dor uma dor no importa quem a sofre. Sobre isso Singer escreve: [...] a razo moral fundamental para o alvio da dor simplesmente a indesejabilidade da dor enquanto tal, e no a indesejabilidade da dor de X, que pode ser diferente da indesejabilidade da dor de Y. [...] (M) esmo onde as dores so iguais, outros fatores podem ser relevantes, sobretudo se outros forem afetados. Se houvesse um terremoto, talvez concedssemos prioridade ao alvio da dor de um mdico, de modo que ele pudesse cuidar das outras vtimas. Mas, em si, a dor do mdico s conta uma vez, sem ter um peso maior. O princpio da igual considerao de interesse atua como uma balana, pesando imparcialmente os interesses.24 Dessa perspectiva, as questes relativas raa, sexo e espcie qual certo indivduo pertence, sua configurao biolgica, e outras formas de distino arbitrrias tornam-se irrelevantes para a considerao de interesses. Para Singer, o que conta so os interesses, em si mesmos, pelo alvio da dor e do desconforto que possibilita a busca por experincias prazerosas.

23 24

SINGER, 1998, p. 30. Idem, p. 30-1

1.1.3 O valor da vida consciente

A razo mais bvia, segundo Singer, para valorizar a vida de um ser capaz de sentir prazer, ou dor, o prazer que pode experimentar. Se valorizamos nossos prprios prazeres, ento o aspecto universal dos juzos ticos exige que a avaliao positiva dessas experincias tambm seja ampliada para as experincias semelhantes de todos aqueles que so capazes de experiment-las25. Para o autor a morte o fim de todas as experincias agradveis que um ser poderia ter. Consequentemente, o prazer que poderia experimentar no futuro caracteriza-se como forte razo para defender o erro de matar tais seres.26 Uma questo importante surge dessa discusso: saber se a vida de um ser consciente tem menos valor que a vida de um ser autoconsciente. Para Singer a questo principal saber se podemos aceitar uma hierarquizao do valor de vidas diferentes. Numa perspectiva menos antropocentrista e especista de alguns crticos, a questo admitir que o valor de cada vida tem igual peso, a partir do ponto de vista dos prprios seres.27 Singer discorda dessa perspectiva, somente admite defender tal raciocnio com base em um fundamento neutro, a partir de um ponto de vista imparcial.28 Apesar da dificuldade prtica de se encontrar um fundamento neutro, Singer no considera que esse seja um problema insolvel. Seria suficiente, caso fssemos capazes de viver cada tipo de vida e fazer a comparao entre o valor de uma e outra. Na verdade, Singer considera que essa possibilidade providencia um sentido para a ideia de que a vida de certo tipo de animal tem mais valor do que a vida de outro. O autor no considera possvel defender que a vida de qualquer ser seja importantssima para ele, visto que numa situao de comparao pode-se assumir uma postura mais objetiva, ou intersubjetiva. Mas a capacidade de viver cada tipo de vida e depois poder escolher entre uma e outra no corresponde a uma posio neutra. Isso fragiliza a tese de que todos os seres vivos tm valor igual.

25 26

SINGER, 1998, p. 111. Ibidem 27 A teoria do valor igual de cada coisa viva a partir de sua prpria perspectiva defendida por Paul Taylor em, Respect for Nature, teoria central desse trabalho para a discusso de uma proposta tica que amplie as consideraes morais e de valor para uma gama significativa de seres vivos. 28 Idem, p. 115.

Singer discorda das crticas sobre ser especista a ideia de classificar o valor de vidas diferentes, conforme alguma ordenao hierrquica.29 Contudo, admite no ter ideia de como resolver essa questo, reconhecendo que algumas comparaes so muito difceis de realizar. No fazemos ideia, por exemplo, se a existncia de um peixe seria melhor que a de uma cobra. Pois, dificilmente, reconhece Singer, nos deparamos com a situao de sermos forados a escolher entre matar uma cobra, ou um peixe.30 Singer, entretanto, insiste que, quanto mais intenso o grau de autoconscincia e de racionalidade, e mais ampla a gama de experincias possveis, maior parece ser a preferncia por esse tipo de vida. O autor, entretanto, constata que talvez no seja possvel para o utilitarismo defender tal tese, mesmo diante da tentativa de John Stuart Mill: Poucas criaturas humanas consentiriam em ser transformadas em qualquer um dos animais inferiores, caso lhes fosse feita promessa de viverem plenamente todos os prazeres de um animal; nenhum ser humano inteligente consentiria em tornarse um idiota, nenhuma pessoa instruda aceitaria ser transformada num ignorante, nenhuma pessoa sensvel e consciente gostaria de tornar-se egosta e vil, ainda que se conseguisse convenc-las de que o idiota, o ignorante ou o tratante vivem mais satisfeitos com a sua sorte do que elas com as suas... melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito; melhor ser Scrates insatisfeito do que um idiota satisfeito. E, se o idiota ou o porco tm uma opinio diferente, porque s conhecem o seu lado da questo. A outra parte da comparao conhece os dois lados.31 Alm de reconhecer que o argumento de Mill fraco, visto que preferir a vida de um ser humano vida de um animal corresponde justamente a preferir a vida de um ser humano inteligente vida de um idiota, Singer tambm considera difcil conciliar esse argumento com o utilitarismo clssico, pois no lhe parece verdadeiro que ser inteligente implica em maior capacidade de ser feliz.3229

Louis G. Lombardi em, Inherent Worth, Respect, and Rights,defende uma proposta de hierarquizao do valor da vida. Ao mesmo tempo em que critica alguns pontos da teoria de Paul Taylor, Lombardi se apropria de algumas ideias de seu colega para fundamentar uma gradao de valor conforme o tipo de vida. A proposta desse autor ser apresentada no captulo final desse trabalho. 30 SINGER, 1998, p. 117. 31 MILL, John Stuart. Utilitarianism. Londres: M. Dent [1863] 1960, p. 8-9. Apud.Ibidem 32 Idem, p. 118.

Da perspectiva do utilitarismo preferencial, defender o argumento de Mill dependeria do modo como comparamos as diferentes preferncias de acordo com diferentes graus de conscincia e autoconscincia. Para o autor, no parece difcil encontrar maneiras de classificar preferncias distintas, mas reconhece que a questo permanece em aberto.33 1.1.4 O valor instrumental da natureza

Singer acredita que as discusses em torno de uma concepo de tica para o meio ambiente no conseguem avanar para alm dos limites tradicionais, sobretudo quando esto em questo os critrios apresentados para fundamentar uma concepo de valor. O autor ctico acerca de incluir na comunidade moral, seres no sencientes, de quem no se pode afirmar terem interesses que possam ser considerados e valorizados por si mesmos, de um modo significativo. Para defender sua posio sobre a possibilidade de desenvolver uma tica ambiental, Singer analisa algumas das principais correntes ambientalistas e enumera o que considera serem as principais falhas dessas concepes quanto aos critrios adotados para conceber valor na natureza de uma forma direta, sem que essa avaliao dependa do interesse ou necessidade de algum.34 O discurso em defesa de seres que no satisfazem certos pr-requisitos para serem includos na comunidade moral enfrenta muitas dificuldades. Encontrar um critrio que possibilite ampliar o mbito da comunidade moral, incluindo os animais no-humanos, revela-se ainda difcil e problemtico. A dificuldade ainda maior quando o objetivo encontrar um critrio que inclua nessa comunidade objetos naturais, ou a natureza como um todo. A proliferao dos seres humanos, aliada aos subprodutos do crescimento econmico a nova ameaa de sobrevivncia que Singer considera capaz de varrer do planeta todas as formas de vida.35 Mas nenhuma tica capaz de enfrentar iminente ameaa foi ainda desenvolvida, lamenta o autor. Partindo desse ponto de vista, Singer considera fcil estabelecer os contornos de uma tica verdadeiramente ambiental. Essa tica consideraria duvidosa e errada toda33 34

SINGER, 1998, p. 118. Idem, p. 279-304. 35 Idem, p. 300.

ao desnecessariamente prejudicial ao meio-ambiente. Em linhas gerais o autor descreve assim os contornos de sua proposta: Em seu nvel mais fundamental, essa tica incentiva a considerao dos interesses de todas as criaturas sencientes, inclusive das geraes que habitaro o planeta num futuro remoto. Acompanha-a uma esttica da apreciao dos lugares naturais no devastados pelo homem. Num nvel mais pormenorizado, aplicvel s vidas dos que vivem nas grandes e pequenas cidades, essa tica desestimula a existncia de grandes famlias. [...] Uma tica ambiental rejeita os ideais de uma sociedade materialista na qual o sucesso medido pelo nmero de bens de consumo que algum capaz de acumular. Em vez disso, ele avalia o sucesso em termos do desenvolvimento das aptides individuais e da verdadeira conquista da satisfao e da realizao. Incentiva a frugalidade, na medida em que esta se faz necessria para a diminuio da poluio e para a certeza de que todas as coisas passveis de reutilizao sero reutilizadas. Jogar fora, negligentemente, os materiais que podem ser reciclados no passa de uma forma de vandalismo, ou de roubo de nossa propriedade comum em termos dos recursos mundiais.36 O povo ocidental herdeiro de uma tradio antropocntrica, originria de gregos e hebreus. Segundo essa tradio, lembra Singer, o ser humano o centro do universo moral e o nico a possuir as caractersticas para ocupar esse espao.37 No desenvolvimento de uma tica ambiental, a tradio contribui com fortes argumentos contra quaisquer aes que possam oferecer prejuzos vida humana. Contrariamente ao que defendeu na questo dos animais, com respeito s discusses que envolvem a preservao da natureza, os efeitos de aes prejudiciais e suas consequncias para as futuras geraes, a importncia de considerar o tipo de valor

36 37

SINGER, 1998, p. 301-02. O autor faz referncia aos hebreus que nos legaram atravs da Bblia o relato de que o homem detm o domnio sobre a Terra e todas as suas criaturas, uma espcie de licena para fazer o que quiser com os outros seres que nela vivem. Esses relatos no consideram errado provocar medo, terror e morte s criaturas da Terra, j que o prprio Deus disps desses recursos para demonstrar seu poder aos humanos e mant-los sob seu controle. Desse modo, como humanos que somos, feitos, imagem e semelhana de Deus, agimos de acordo com o que Ele determina, segundo Seu prprio exemplo. Durante o imprio romano, o cristianismo incorporou e propagou elementos da cultura grega. Um exemplo a viso de natureza hierrquica, segundo a qual seres que possuem menos capacidades, existem como bens para aqueles que so mais capazes racionalmente. Propagada por Aristteles, tal ideia foi revisitada e reforada por Toms de Aquino durante a Idade Mdia. Idem, p. 280-82.

que se deve atribuir ao meio ambiente, para o autor, so bastante significativas se analisadas do ponto de vista da tradio. Contudo, no mbito das consideraes sobre a preservao da natureza, no s os interesses humanos devem ser considerados. Tambm os interesses semelhantes de todos os seres sencientes, de suas geraes presentes e futuras. Singer entende que uma concepo tica que estabelea como linha divisria distino moral entre seres sencientes e no sencientes mais slida do que uma estabelecendo a distino entre coisas vivas e coisas inanimadas. Mas as semelhanas entre o pensamento de Singer e a tradio moral se resumem considerao de interesses. preciso ter em mente que o centro de seu universo moral, at ento ocupado exclusivamente pelos seres humanos, substitudo pelos seres sencientes, proporcionando a incluso, no s de todos os seres humanos antes selecionados pelos critrios da racionalidade e linguagem, como tambm um nmero significativo de animais no-humanos no mbito das consideraes morais. Em conformidade com o princpio de igual considerao, Singer afirma que os contornos para uma tica verdadeiramente ambiental podem ser traados com base na considerao e valorizao dos interesses dos seres sencientes, incluindo suas geraes futuras. Na avaliao de nossas aes com relao ao ambiente natural, alguns pontos so considerados importantes pelo autor: 1) a preservao de lugares ainda no tocados pela mo humana, para a apreciao dos que vivem nas cidades; 2) controle da natalidade pelas prprias famlias, estimulando que permaneam pequenas, evitando a superpopulao, uma das principais causas da degradao da natureza decorrente da produo desenfreada de bens de consumo; 3) desenvolvimento das aptides, ao invs da busca pelo sucesso atravs do acmulo de bens, algo no sentido da valorizao do ser ao invs do ter; 4) mudana de postura quanto s extravagncias, que levam a prticas pouco aceitveis do ponto de vista preservacionista.38 A concepo de tica ambiental defendida por Singer tem como base a ideia de uma vida frugal, sem extravagncias, na qual no tem valor o prazer que provm da prtica de esportes que poluem ou agridem a natureza, a falta de cuidado com o lixo38

Central nessa proposta o reexame da concepo de extravagncia. Vivemos em um mundo sob presso e, portanto, esta concepo no pode estar atrelada simplesmente ideia de limusines ou champanhes carssimos. O autor salienta que as coisas as quais consideraramos banais, poucos anos atrs, podem ser vistas como extravagantes nos dias de hoje, tais como o uso de madeira proveniente de florestas tropicais, produtos de papel descartvel, passeios desnecessrios de automveis que contribuem para o efeito estufa com a queima do combustvel fssil. SINGER, 1998, p. 302.

produzido e, principalmente, o consumo predatrio. Essa frugalidade um dos principais critrios que Singer considera importante levar em conta para resolver, em parte, o problema da degradao do meio ambiente natural. Aes eficazes de preservao da natureza devem estar centradas no valor do ser humano como sujeito moral, principal interessado em no ser ele prprio prejudicado, atribuindo natureza outro tipo de valor. Para Singer, a igual considerao de interesses um princpio capaz de oferecer uma soluo eficaz para as questes que envolvem o desenvolvimento de uma tica ambiental, levando-se em conta no apenas os interesses humanos, mas de modo igual os interesses semelhantes de todos os seres sencientes que habitam a Terra. Nessa conta esto includas as consideraes em relao s geraes futuras e a responsabilidade que cabe aos humanos, agentes morais, de preservar a natureza. Singer classifica em diretos e indiretos os deveres com respeito natureza: 1) Direto, entende-se o dever com respeito aos seres nos quais possvel observar alguma capacidade de sentir dor e prazer, repelir o que doloroso, buscar o que prazeroso; a quem se agrega um valor por si mesmo, intrnseco; 2) Indireto, o dever com respeito aos recursos naturais, necessrios satisfao de interesses fundamentais dos seres sencientes, frente a quem temos um dever direto, e dos quais depende totalmente sua sobrevivncia, atribuindo-se a esses um valor instrumental. Muitas so as dificuldades de se reconhecer que h em plantas e pedras algum tipo de interesse. Em comparao a um animal capaz de ter certas experincias, Singer considera que a ausncia dessas caractersticas torna difcil atribuir a plantas e pedras qualquer valor diretamente: Uma pedra no tem interesses, pois no capaz de sofrer. Nada que venhamos a fazer-lhe poder significar uma diferena para o seu bem-estar. Por outro lado, um rato tem, inegavelmente, um interesse em no ser atormentado, pois os ratos sofrero se receberem esse tratamento.39 O interesse em preservar o meio ambiente agrega o que Singer chama de valor instrumental, vinculado ideia de natureza como meio para se obter os necessrios recursos no interesse fundamental da sobrevivncia. As concepes de tica ambiental39

SINGER, 1998, p. 67.

que insistem em atribuir valor intrnseco natureza so criticadas por Singer que considera essencial, antes de qualquer coisa, estabelecer claramente a distino entre dois tipos de valores:40 1) valor intrnseco: quando algo bom ou desejvel por si mesmo; 2) valor instrumental: quando algo valioso como meio para a obteno de algum fim. Quando o assunto envolve a considerao de valor intrnseco, Singer duvida da possibilidade de se transpor fronteira da sencincia.41 Alguns autores defendem a vida como valiosa em si mesma. Entre eles, Albert Schweitzer e a concepo de reverncia vida, em que o autor defende que a vida tem um desejo de viver, existindo em meio vida que quer viver. Concepo seguida em parte por Paul Taylor, para quem toda coisa viva busca o seu prprio bem. Para Singer, ambos os autores defendem algo como o anseio e a vontade de viver contra o terror diante do aniquilamento.42 Algumas explicaes apresentadas pela fsica para processos vitais que regem certos tipos de vida podem oferecer argumentos significativos contra as ideias defendidas pelos tericos da reverncia vida, segundo Singer: [...] no caso das plantas, dos rios e dos msseis teleguiados possvel oferecer uma explicao exclusivamente fsica daquilo que acontece; e na ausncia de conscincia, no existe um bom motivo pelo qual devamos ter maior respeito pelos processos fsicos que regem o crescimento e a decadncia das coisas vivas do que temos pelos que regem as coisas inanimadas. [...] no mnimo no bvio por que devemos ter mais respeito por uma rvore do que por uma estalactite, por um organismo unicelular do que por uma montanha.43 Desse ponto de vista problemtico defender a vida como valiosa. Singer considera que a ausncia de um critrio objetivo ao se falar de vida, quando os processos que a regem assemelham-se aos de objetos sem vida, torna essa concepo de respeito carente de argumentos suficientemente slidos para justificar consideraes morais em relao natureza.40 41

SINGER, 1998, p. 290-91. Idem, p. 289-92 42 Idem, p. 293-94. 43 Idem, p. 295.

Da mesma forma, vises como a de ecologia profunda que defende a ideia de um todo interligado, no qual todos os organismos e entidades da ecoesfera tm igual valor intrnseco, so problemticas no entender de Singer. Nessa proposta de igualdade biocntrica o autor questiona particularmente a possibilidade de se determinar o valor intrnseco de cada uma de suas partes.44 Uma alternativa seria determinar qual papel cada coisa viva desempenha junto ao seu ecossistema, que possa implicitamente sugerir a ideia de necessidade. Mas Singer identifica outro problema: at que ponto um organismo intrinsecamente necessrio para a sobrevivncia de um ecossistema? Mesmo reconhecendo que todos os organismos pertencem a um todo inter-relacionado, no h nada sugerindo que: 1) todas as partes possuem valor intrnseco; ou, 2) que esse valor seja igual para todos. Para a ecologia profunda implica estar atribuindo valor intrnseco s partes enquanto necessrias sustentabilidade do sistema, levando a crer que perderiam esse valor caso no fossem mais necessrias.45A tentativa de transpor a fronteira da considerao de interesses das criaturas humanas e no-humanas nas concepes de respeito pela vida e de ecologia profunda apresentam, no entender de Singer, problemas de justificativa. No que se refere proposta de respeito pela vida, o problema da teoria surge ao se tentar determinar um interesse moralmente significativo quando se pergunta o que representa para uma entidade afetada no ter seu interesse satisfeito. Na concepo de ecologia profunda, a ideia de auto-realizao se depara com o problema de perguntar o que significa para um dado sistema permanecer no realizado. Em ambas as concepes, sentido.46 O esforo de Singer para defender a sencincia como um novo critrio delimitador da considerao moral e sua forma polmica de apresentar os fatos promoveu grandes transformaes no pensamento tico. Seus mritos so inegveis, mas sua proposta de substituio dos critrios de racionalidade e linguagem, que mantinham o ser humano no centro do universo moral, pela sencincia, ampliou muito pouco o mbito dos seres moralmente considerveis. Seus argumentos, apesar de plausveis, no suportam uma anlise mais profunda. Singer considera que tais perguntas estariam satisfatria e significativamente respondidas, se feitas para seres sencientes; do contrrio, ficam sem

44 45

SINGER, 1998, p. 295-98. Ibidem 46 Idem, p. 299.

primeira vista, recorrer sensibilidade dor, apelando para nossa empatia com respeito queles seres que percebemos a semelhana entre a nossa sensao de desconforto e a deles, parece plausvel. Mas, consideraes sobre a dor e o valor vinculado ao interesse pelas experincias prazerosas, no so critrios suficientemente fortes para justificar a ampliao da comunidade moral. Na era dos analgsicos e anestsicos, a tese de Singer torna-se frgil. Tais recursos da cincia mdica possibilitam causar grande dano a um ser, sem que ele sofra qualquer experincia dolorosa ou de desconforto. As cobaias utilizadas nas pesquisas que lanam mo da analgesia so exemplos reais dos danos que se pode causar vida de um ser, sem submet-lo a nenhuma dor. Para se atribuir valor e admitir considerao moral aos animais, e do mesmo modo a outras formas de vida, a capacidade de sentir dor e ser consciente do que sente, no parecem ser critrios suficientemente slidos e significativos para ampliar a fronteira da moralidade. Apesar de romper com os velhos paradigmas restritos a espcie humana, Singer continua limitando a esfera moral a uns poucos seres. Da mesma forma, associar a necessidade de preservao da natureza aos interesses dos seres sencientes, com nfase nos interesses humanos parece, primeira vista, ser o caminho mais rpido e razovel para minimizar sua degradao. Visto que compete exclusivamente aos seres humanos, principais agentes causadores dos danos ao meio ambiente, o dever de reparar e promover transformaes na maneira como interagem com o meio em que vivem, agindo em conformidade com o princpio de igual considerao de interesses das geraes de seres sencientes, presente e futura. Uma tica ambiental, baseada nos interesses humanos, no valor de sua preferncia em manter o ambiente natural preservado e saudvel a sua sobrevivncia, pode parecer bastante razovel. Para Singer, essa perspectiva tica promoveria transformaes significativas na relao dos humanos com a natureza. Mas, dispensar natureza um valor apenas como meio para satisfao de interesses, mesmo que sejam os mais bsicos, no parece ser um critrio suficientemente forte para limitar as aes danosas dos seres humanos frente ao ambiente natural. A natureza muito mais que um mero recurso. a prpria espontaneidade de tudo que existe. Apesar de detentores do conceito de valor, os seres humanos so apenas uma pea de sua trama intrincada, e no podem pretender deter para si toda a importncia no processo de desenvolvimento da vida.

A natureza a prpria vida. Partindo dessa perspectiva, ambientalistas defendem que a natureza possui um tipo de valor, que no pode nem deve ser vinculado a interesses de qualquer tipo. preciso reconhecer que, apesar de ser um conceito humano, o valor ultrapassa a prpria existncia humana. Mesmo que dependa da concepo humana no se limita a sua forma de expresso. No intuito de defender o valor prprio da natureza, muitos tericos da tica tm apresentado distintas e divergentes concepes de valor, com o objetivo de fundamentar uma tica genuna para as relaes humanas com a natureza. 1.2 Concepo de direitos e valor para sujeitos-de-uma-vida Diferentemente de Singer, Tom Regan apresenta uma proposta de tica para o fim dos maus-tratos e uso de animais pelos humanos, pela via dos direitos, teoria fundamentada numa concepo de valor que o distancia das correntes utilitarista e contratualista da tica, incluindo o utilitarismo preferencial inaugurado por Singer. Regan defende a ideia de direitos para os animais com base na assertiva de que se humanos tm algum direito, tambm os tm os animais.47 O autor apresenta o conceito de valor inerente como uma concepo independente de qualquer avaliao, clculo ou utilidade que o objeto do valor possa ter para os humanos (ou qualquer outro ser) 48. So dignos desse valor os seres sujeitos-de-uma-vida, capazes de conscincia, de desfrutar um bem-estar prprio importante para eles. 1.2.1 Mais que meramente vivo A reverncia vida, tese defendida por Albert Schweitzer e criticada por Singer, retomada por Regan quando trata de uma importante questo: estar vivo uma condio suficiente para que um indivduo tenha valor inerente? Existem srias dificuldades em aceitar que temos certas obrigaes morais com respeito vida das clulas cancergenas, por exemplo.

47

REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M; ROSENBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst: NY, 1991, p. 77-88. Artigo traduzido para o portugus por Snia T. Felipe. In: Pensata Animal n 15 - ano II. Setembro de 2008. Disponvel em: Sentiens Defesa Animal: www.sentiens.net. Acessado em: 10/11/2008. 48 REGAN, 1991, p. 84

No lugar de estar-vivo simplesmente, Regan prope um critrio alternativo. O critrio de ser sujeito-de-uma-vida pode tornar mais clara e aceitvel atribuir valor inerente aos indivduos: Ser sujeito-de-uma-vida, no sentido em que essa expresso ser usada, envolve mais que estar meramente vivo e ser consciente. [...] Indivduos so sujeitos-deuma-vida se eles tm crenas e desejos, percepo, memria, e um sentido de futuro, incluindo seu prprio futuro, uma vida emocional junto com sentimentos de prazer e dor; preferncias e interesse no bem-estar, a habilidade de iniciar aes em busca de seus desejos e metas; uma identidade psicofsica sobre o tempo; e um bem-estar individual no sentido de que sua experincia de vida melhor ou pior para ele, logicamente independente de sua utilidade para outros e logicamente independente de ser objeto do interesse de mais algum.49 Para Regan, aqueles que satisfazem o critrio de ser sujeito-de-uma-vida possuem um tipo de valor distinto, no podem ser vistos ou tratados como meros receptculos de prazeres ou dores.50 A base do autor para a defesa dos animais na concepo de direitos morais est concentrada no conceito de valor inerente, cujo requisito estar vivo de um modo significativo, consciente de suas experincias no mundo. Felipe lembra que no o fato de estar vivo que leva os filsofos a questionarem, com respeito a um indivduo, a expanso do respeito ao mesmo princpio tico empregado no tratamento humano. Para a autora, a vida condio natural de todo ser dotado de um organismo, seja qual for a espcie, no podendo haver distines. Para a questo tica, continua Felipe, a distino aparece quando o ser vivo possui uma percepo de si como algo contnuo, uma memria em presena de um ambiente natural e social que o ampara e desafia na sua forma especfica de viver, memria de experincias passadas, reteno do aprendizado, desejo de manter-se vivo. O valor inerente somente se atribui a um indivduo que se caracteriza por essas capacidades, no sendo possvel atribu-lo a seres que no se constituem como indivduos.51

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REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. University of California Press: Berkeley and Los Angeles, 2004, p. 243. 50 Ibidem 51 FELIPE, Snia T. Valor inerente e vulnerabilidade. Ethic@ 5, Florianpolis: 2006c, p. 133.

1.2.2 O valor como fim Na teoria de Regan, o valor inerente a condio necessria e suficiente para que seja possvel afirmar direitos morais bsicos a um sujeito. Ao vincular a concepo de valor inerente ao conceito de sujeito-de-uma-vida, Regan procura um fundamento para os dois princpios que regem as propostas ticas em defesa dos animais concorrentes com a sua: o princpio utilitarista-hedonista da sensibilidade e o princpio da preferncia, do utilitarismo preferencial, corrente inaugurada por Singer. conclusivo para o autor que uma teoria, pretensamente coerente, precisa ao mesmo tempo, fundamentar racionalmente direitos para os seres humanos noparadigmticos, e defender direitos para os animais sujeitos-de-uma-vida. Sobre isso, Regan escreve: ... temos fortes razes empricas para crer que membros de muitas outras espcies no so apenas vivos, eles tm vida; que eles no so meras coisas (objetos), mas, sujeitos de uma vida, e de uma vida que pior ou melhor para eles, independentemente do valor que lhes atribudo por qualquer outro ser (por exemplo, pelo ser humano); assim como ns, eles so valiosos, independentemente do quanto valham; assim como ns, eles tm valor inerente, no apenas instrumental; assim como ns, ento, eles tm o direito moral de serem tratados de modo consistente com esse tipo de valor, um direito que violado no seu caso, como no nosso, caso sejam tratados meramente como meios. 52 Para afirmar de um indivduo que ele no est apenas vivo, mas capaz de conduzir e ser sujeito de sua vida, distinguindo as coisas boas das coisas ms, as experincias que fomentam ou dificultam seu desenvolvimento, necessrio reconhecer que o sujeito-de-uma-vida um ser capaz de sensibilidade e conscincia, sem as quais no poderia fazer tais distines. Felipe sustenta que, para Regan, o valor inerente torna-se condio necessria e suficiente para afirmar direitos morais bsicos de um sujeito. Alm disso, se o bem-estar do sujeito-de-uma-vida s possvel se sua vida for vivida sem dor, privao, dano ou

52

REGAN, Tom. All that Dwell Therein: Essays on animal Rights and Environmental Ethics. Berkeley: University of California Press, 1982, P. 72. Apud. FELIPE, 2006c, p. 132.

sofrimento, razovel afirmar que esse indivduo possui interesses que devem ser respeitados.53 Contudo, diferente e no redutvel concepo de valor intrnseco, o valor inerente no pode ser determinado pela totalidade das experincias prazerosas dos indivduos. Tampouco aqueles que tm uma vida mais feliz ou prazerosa tm maior valor inerente que aqueles cujas vidas so menos prazerosas e felizes. Regan defende essa distino com o exemplo da xcara: Suponhamos pensar os agentes e pacientes morais como xcaras dentro das quais escorrssemos lquidos doces (prazeres) ou infuses amargas (dores). Em algum tempo, cada xcara ter certo sabor hedonista: o lquido que ela contm ser mais ou menos doce ou amargo. Agora, o que devemos ter por objetivo promover, de acordo com o utilitarismo hedonista, no o melhor sabor do lquido para esse ou aquele indivduo em particular; antes, devemos ter por objetivo realizar o melhor equilbrio agregado de doce e amargo entre todos aqueles afetados pelo que fazemos; o melhor equilbrio total do doce sobre o amargo que temos por objetivo realizar.54 Nesse exemplo Regan demonstra que para a viso utilitarista de receptculo o valor atribudo ao que est dentro da xcara (prazeres, satisfao de preferncias...); a xcara (indivduo) em si mesma no tem qualquer valor. H uma mudana de foco na concepo de valor inerente. Regan reconhece que na xcara (o indivduo) so depositados lquidos (prazeres, preferncias...) valiosos, mas o valor da xcara no se reduz ao seu contedo. O postulado do valor inerente assegura para os indivduos morais agentes, em si mesmos, um tipo de valor distinto da concepo utilitarista de meros receptculos. Para Regan, a xcara que tem valor, no o que est dentro dela.55 Em detrimento das doutrinas perfeccionistas de justia cujo valor pode variar em graus, a igualdade do valor inerente prefervel. A gradao do valor, teoricamente, reivindica uma referncia de medida, promovendo o retorno de exigncias quanto a pertencer determinada raa ou sexo, conclui Regan.5653 54

FELIPE, 2006c, p. 133. REGAN, 2004, p. 205-06. 55 Idem, p. 236. 56 Idem, p. 237.

Se for possvel afirmar que agentes morais tm valor inerente, considerado igual para todos, o que se aplica a um corresponde a todos os outros, independentemente de o agente pertencer a certa raa, sexo, fazer uso da fala, ou possuir outra caracterstica factual qualquer. Assim, escreve Regan: A moralidade no ir tolerar o uso de dois padres quando os casos so relevantemente similares.57 Da mesma forma, para Regan, se postulamos valor inerente no caso dos agentes morais e devemos reconhecer que o possuem de modo igual, somos racionalmente obrigados a reconhecer a mesma situao para o caso dos pacientes morais: todos que tm valor inerente, possuem-no igualmente, sejam agentes ou pacientes morais.58 Regan classifica o valor inerente como um conceito categrico, uma vez que no admite meio-termo ou qualquer tipo de gradao. Seja na condio de agente ou paciente moral, um tipo de valor que se tem, ou no se tem. Ao contrrio do que defende Albert Schweitzer, por exemplo, com a concepo de reverncia vida, e os partidrios da ecologia profunda, nem todas as coisas vivas tm valor inerente, uma vez que nem todos so sujeitos-de-uma-vida, visto que estar-vivo, na situao de clulas, por exemplo, no uma condio necessria para que algo tenha valor inerente, escreve Regan.59 Assim como Singer, Regan concebe a capacidade para a sensibilidade e conscincia como o limite defensvel para a atribuio de valor e considerao moral de um ser vivo. Diferentemente do que defendem os ambientalista da corrente de reverncia vida, o autor considera que no basta estar meramente vivo para que se possa reconhecer nesses seres valor inerente. preciso que satisfaa o critrio de ser sujeito-de-uma-vida. Mas, comparando as exigncias de Regan e as de Singer para incluir animais nohumanos na comunidade moral, a posio defendida por Singer, cuja exigncia para a considerao moral e de valor o reconhecimento, por parte dos agentes morais, do sofrimento provocado pela dor nos seres capazes de sencincia e seu interesse em afast-la de si, parece satisfazer mais significativamente o objetivo de ampliar a fronteira da moralidade, incluindo os animais no-humanos. A dor uma experincia intrinsecamente m que impede o ser senciente de buscar as experincias prazerosas e a satisfao dos interesses bsicos de sobrevivncia.

57 58

REGAN, 2004, p. 240. Ibidem 59 Idem, p. 242.

Regan, na sua tentativa de no limitar a considerao moral e de valor as experincias de dor, no muito feliz com o critrio que prope em substituio. O critrio de sujeito-de-uma-vida tem uma definio que restringe significativamente o tipo de ser considervel do ponto de vista moral. O autor acaba acarretando o mesmo efeito que os critrios de racionalidade e linguagem provocaram na filosofia moral tradicional. Habilidades como crenas e desejos, percepo, memria, senso de futuro, entre outras que o autor enumera, ao invs de incluir, excluem novamente muitos humanos que carecem dessas habilidades e praticamente todos os animais no-humanos. As pesquisas cientficas que buscam descobrir semelhanas entre os humanos e os outros animais contribuem significativamente para o entendimento dessa proximidade biolgica entre as formas de vida. Mas importante reconhecer que cada forma de vida tem habilidades e caractersticas prprias. A busca por semelhanas, comparando habilidades entre as formas de vida, pode no ser uma boa estratgia para encontrar um critrio capaz de fundamentar um conceito de valor para a tica ambiental. Um critrio que seja fundamentado na singularidade e no nas semelhanas de cada forma de vida, apresenta-se mais defensvel para o desenvolvimento de uma tica ambiental genuna. 1.2.3 Consideraes sobre a natureza de uma tica ambiental Ambientalistas e pensadores da tica ambiental no so os nicos a apresentar objees a concepes como a de Singer para o desenvolvimento de uma tica ambiental. Seu colega, Tom Regan, apesar de no ser propriamente um crtico, tambm no concorda com a ideia de restringir aos interesses de terceiros, consideraes morais com relao ao ambiente natural, sejam quais forem esses interesses. Para Regan, a tica ambiental uma rea ainda em expanso e no h um entendimento de qual a sua natureza e de como ela deve ser.60 Por esse motivo, o autor defende a necessidade de discutir, mesmo que superficialmente, uma concepo particular de tica que satisfaa duas condies principais: 1) reconhecer a existncia de seres no-humanos com estatuto moral; 2) assegurar que a classe de seres com60

REGAN, Tom. The Nature and Possibility of an Environmental Ethics. Environmental Ethics 3 (1981), p. 19. Jlia Aschermann Mendes de Almeida em, A tica ambiental de Tom Regan: crtica, conceitos, argumentos e propostas, reconstitui os principais argumentos, conceitos, propostas e crticas apresentadas pelo autor nesse artigo. Snia T. Felipe apresenta os conceitos de valor inerente e vulnerabilidade como critrios tambm vlidos para uma tica ambiental em, Valor inerente e vulnerabilidade: critrios ticos no-especistas na perspectiva de Tom Regan. Ethic@ 5, Florianpolis: 2006, p.147-151 e 125-146, respectivamente.

estatuto moral mais ampla que a classe dos seres sencientes.61 Uma tica ambiental para ser verdadeira ou razovel deve satisfazer, segundo Regan, pelo menos a segunda condio. Quanto primeira, Regan reconhece no ser essa uma condio eficiente quando se faz necessria distino entre uma tica para o uso do meio ambiente e uma tica para a preservao e defesa do meio ambiente. Uma tica para o uso consideraria importante somente o interesse dos seres humanos, possibilitando o desenvolvimento de uma tica antropocntrica que beneficiaria somente a qualidade da vida humana e de suas futuras geraes. Essa concepo poderia restringir o valor somente a vida e interesses dos seres humanos, enquanto uma tica para o ambiente exigiria o reconhecimento de estatuto moral aos seres no-humanos.62 De acordo com essas duas concepes, Regan considera possvel distinguir claramente dois tipos de teoria: 1) a do gerenciamento da natureza que defende preservar a vida silvestre, se ela for do interesse dessa e das futuras geraes de humanos, na qual os animais silvestres por si mesmos no tm nenhum interesse ou valor que possa ser considerado; 2) a do parentesco, na qual os animais silvestres figuram na aritmtica moral por seu prprio direito. Essa teoria tem origem na ideia de que seres semelhantes aos humanos, fundamentalmente no modo de ser consciente, possuem estatuto moral.63 No objetivo de Regan minimizar as dificuldades que acompanham o desenvolvimento de uma tica ambiental. Ele pretende apenas esclarecer se h razes suficientemente plausveis que possam limitar o estatuto moral a seres sencientes, e, conseqentemente, impor restries possibilidade ou necessidade de uma tica ambiental. Regan enumera trs argumentos abordados com freqncia para justificar a impossibilidade de se estabelecer uma tica ambiental: 1) do interesse; 2) da sencincia; 3) da bondade.64 No argumento do interesse, enumera Regan, (1) os nicos seres dignos do estatuto moral so aqueles que podem ter interesse; (2) os nicos seres que podem ter algum interesse so aqueles capazes de conscincia; portanto, (3) os nicos seres com estatuto moral so aqueles que tm a capacidade de conscincia. Enquanto, no argumento da sencincia, (1) os nicos seres que podem ter estatuto moral so os sencientes; (2) os

61 62

REGAN, 1981, p. 19-20. Idem, p. 20. 63 Ibidem 64 Idem, p. 21.

nicos seres sencientes so aqueles capazes de conscincia, e (3) somente podem ter estatuto moral os seres que tm a capacidade para a conscincia. Os defensores de ambos os argumentos enumeram trs razes que os tornam defensveis, segundo Regan: 1) somente seres sencientes tm interesses; 2) no faz sentido pensar que seres destitudos da capacidade de conscincia possam ter estatuto moral; 3) somente tm estatuto moral aqueles seres que tm valor por seu prprio direito, sendo que somente faz sentido afirmar esse tipo de valor para seres sencientes.65 Regan considera frgeis e contestveis ambas as razes para defender os argumentos. No argumento do interesse a aparente plausibilidade, apia-se na explorao da ambigidade do conceito sobre alguma coisa ter um interesse. Diz o autor: Falar do interesse de A em x, pode significar tanto que (a) A est interessado (quer, deseja, espera por...) em x, quanto (b) x est entre os interesses de A, ou seja, que x, de algum modo, contribui para o bem ou bem-estar de A, obviamente, se afirmarmos que somente seres que podem ter estatuto moral so aqueles que podem ter interesses em coisas, ento somente seres conscientes podem ter estatuto moral.66 Do ponto de vista literal, Regan concorda que parece ininteligvel a ideia de que seres no-conscientes possam expressar desejos ou interesses. Por outro lado, considera possvel promover benefcios ou acarretar prejuzos a esses seres. O autor ainda duvida da possibilidade de a classe de seres com estatuto moral ser co-extensiva com a classe de seres capazes de conscincia. Seres incapazes de conscincia podem ter um bem ou valor que pode ser promovido ou impedido, dependendo do que feito a eles. Nesse caso, o argumento do interesse no apresenta qualquer soluo para o problema, tampouco razes para sustentar a impossibilidade de se desenvolver uma tica ambiental.67 Uma terceira razo para defender o argumento da sencincia tem como base as premissas do argumento da bondade: (1) somente podem ter estatuto moral aqueles seres que tm um bem prprio; (2) podem ter um bem prprio somente os seres capazes de conscincia; assim, (3) somente podem ter estatuto moral, seres capazes de65 66

REGAN, 1981, p. 21-2. Idem, p. 22. 67 Ibidem

conscincia. Para Regan, somente a primeira premissa verdadeira, mas admite no haver nada de auto-evidente em ambas, permanecendo a necessidade de uma defesa racional, que o argumento da sencincia no providencia.68 Em que fundamentos possvel sustentar a obrigao de preservar a existncia de algum x? Essa uma pressuposio imprescindvel para o desenvolvimento de uma tica ambiental que Regan identifica no argumento da bondade. Duas respostas so possveis: 1) preservar x necessrio para ocasionar o bem ou evitar o futuro mal para os seres, exceto x, sendo que sua existncia nessa conta tem valor instrumental; 2) a obrigao para com x seria, em si mesma, independente de seu valor instrumental, pois x tem um valor prprio, por seu direito.69 Para Regan, entretanto, ficando claras as condies para uma tica ambiental, nem tudo reconhecidamente valioso na natureza no-consciente pode ter apenas valor instrumental. A primeira premissa do argumento da bondade oferece uma pressuposio necessria para uma tica ambiental, mas Regan considera difcil atribuir, de modo inteligvel, bem inerente ou valor a seres no-conscientes.70 Na segunda premissa, o argumento se baseia na tese da conscincia como condio logicamente necessria para que algum tenha certo tipo de bem prprio: a felicidade. Regan no considera problemtico eleger a felicidade como um critrio de bem, prprio dos seres sencientes. Mas pode ser questionvel supor que seja esse tipo de bem, ou valor, o nico a que certo x pode ter direito. Para Regan, condicionar o bem inerente felicidade torna o argumento da bondade to insuficiente quanto os outros para restringir estatuto moral aos seres capazes de conscincia.71 Quatro verdades resultam da tentativa de demonstrar a impossibilidade de uma tica ambiental, segundo Regan:72 1) Uma tica ambiental deve reconhecer que a classe dos seres que possuem estatuto moral mais ampla que a classe dos seres sencientes; 2) Uma tica ambiental deve apoiar-se na ideia de que seres no-conscientes podem ter um bem, ou valor por seu prprio direito; 3) O bem, ou valor no est restrito ao sentimento de felicidade;68 69

REGAN, 1981, p. 23. Ibidem 70 Ibidem 71 Idem, p. 24. 72 Ibidem

4) Os argumentos falham em demonstrar que seres no-conscientes no podem ter estatuto moral. Para Regan conclusivo que as objees apresentadas para a formulao de uma tica ambiental no foram capazes de demonstrar essa impossibilidade. Mas h quem resista s objees e, apesar de reconhecer a existncia de um valor ou bem prprio nos seres no-conscientes, negue a existncia de boas razes para a formulao de uma tica ambiental. Aqueles que se opem acreditam, segundo Regan, oferecer formas alternativas, dentro de uma perspectiva antropocentrista, para explicar a dimenso moral de nossas relaes com o meio ambiente, sem a necessidade de postular nele valor inerente. Regan trata de quatro argumentos principais: 1) da corrupo do carter; 2) da ofensa contra um ideal de humanidade; 3) utilitria; 4) da representao dos valores culturais.73 No argumento da corrupo do carter certos modos de tratar a natureza noconsciente so vistos como errados. Segundo Regan, inspirados na ideia de Kant sobre o perigo da crueldade humana para com os animais tornar-se um hbito e voltar-se contra os prprios humanos, seus defensores argumentam que aes destrutivas contra o meio ambiente analogamente podero desenvolver hbitos destrutivos nos seres humanos. 74 Regan no acredita na existncia de razes suficientemente fortes para dar suporte a essa hiptese. A tentativa de apoiar-se na comparao dos percentuais de crimes cometidos por profissionais como contadores e mineiros no parece ser um bom exemplo para dar credibilid