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IX Congresso Internacional Artefatos da Cultura Negra Universidade Regional do Cariri ISBN: 978-85-65425-48-3 18 a 22 de setembro de 2018 382 DESCOBERTAS E TRILHAS DE UMA TRAJETÓRIA AFROINDÍGENA DESCOLONIZADA: VIVIÊNCIAS DA CIRANDA AO TORÉ. Maria Eliene Magalhães da Silva 147 José Ernesto Rodrigues Sales 148 RESUMO O artigo trata de abordagens da experiência com a nossas ancestralidades em quilombos de Caucaia com foco na Pretagogia trabalhada em quilombos de Caucaia na pesquisa do mestrado entre 2013-2015 e hoje contextualizados com uma nova experiência em aldeias indígenas. Sabemos da relevância a cerca desse assunto e com isso existem uma construção na afirmação de reflexões racistas através das religiosidades indígenas e africanas e isso favorece as ideias colonizadoras, que contribui e dificulta para negação das relações étnica. O objetivo será conectar as experiências desde a Aldeia Anacé de Japuará, em Caucaia, a aula de campo na Aldeia Pitaguary de Monguba de minha bisavó, além de referenciar trabalho com alunas Tapebas e Anacés do curso de Pedagogia da Faculdade Kirius. Com isso, vimos a necessidade de trabalhar e potencializar para isso à Educação diferenciada Indígena e Quilombola. Fundamentamos em SILVA (2012), (2015), (2016); PETIT (2015); BÂ (1982), CUNHA (2013), ADAD, PETIT & GAUTHIER dentre outros. A partir das rezadeiras, negros e índios e olharmos com profundidade às nossas origens ancestrais de base africana e indígena, como medicina tradicional. Palavras chaves: Afroindígena, Descolonizada, Ciranda, Ciranda, Toré. INTRODUÇÃO Este trabalho faz parte de trilhas e descobertas de experiências e ensaios com ênfase vividas pelos autores em aldeias e escolas. Com isso as abordagens têm características descolonizadoras, sensíveis e inventivas. Também compõem experiências que cruzam e conecta profundas relações de aprendizados voltados à educação e artes que tem como intuito de trabalhar o empoderamento e saberes ancestral através das artes. Em todos os experimentos o corpo foi o demarcador do fazer, do ser, sentir, da saúde e educação como multiface descolonizador e do desse corpo pensante, reflexivo e político. O jeito nesse momento difícil da conjuntura política em que aflora fascismo, racismo, machismo e tantos ismos que nos devaneia ao mundo poético. Na aldeia respiramos ancestralidades, visto que houve por crivo do colonialismo criminoso a assimilação e relação de vida e aprendizados cruzando não só laços afetivos mais culturais. Foram passagens breves, mas ressignificavas no nosso caminhar que frutificaram em nós e nas pessoas novos modos de pensar e ser tivemos encantado e encantado com os encantados e isso por si só foi majestoso. 147 Professora da Educação Básica da Prefeitura de Caucaia.Mestra em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC) [email protected] 148 Especialista em Gestão de Saúde Pública; Conhecido como Sal, é artista plástico de resistência, trabalha com as questões indígenas e negras. [email protected]

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DESCOBERTAS E TRILHAS DE UMA TRAJETÓRIA AFROINDÍGENA

DESCOLONIZADA: VIVIÊNCIAS DA CIRANDA AO TORÉ.

Maria Eliene Magalhães da Silva147

José Ernesto Rodrigues Sales148

RESUMO

O artigo trata de abordagens da experiência com a nossas ancestralidades em quilombos de

Caucaia com foco na Pretagogia trabalhada em quilombos de Caucaia na pesquisa do mestrado

entre 2013-2015 e hoje contextualizados com uma nova experiência em aldeias indígenas.

Sabemos da relevância a cerca desse assunto e com isso existem uma construção na afirmação

de reflexões racistas através das religiosidades indígenas e africanas e isso favorece as ideias

colonizadoras, que contribui e dificulta para negação das relações étnica. O objetivo será

conectar as experiências desde a Aldeia Anacé de Japuará, em Caucaia, a aula de campo na

Aldeia Pitaguary de Monguba de minha bisavó, além de referenciar trabalho com alunas

Tapebas e Anacés do curso de Pedagogia da Faculdade Kirius. Com isso, vimos a necessidade

de trabalhar e potencializar para isso à Educação diferenciada Indígena e Quilombola.

Fundamentamos em SILVA (2012), (2015), (2016); PETIT (2015); BÂ (1982), CUNHA

(2013), ADAD, PETIT & GAUTHIER dentre outros. A partir das rezadeiras, negros e índios e

olharmos com profundidade às nossas origens ancestrais de base africana e indígena, como

medicina tradicional.

Palavras chaves: Afroindígena, Descolonizada, Ciranda, Ciranda, Toré.

INTRODUÇÃO

Este trabalho faz parte de trilhas e descobertas de experiências e ensaios com ênfase

vividas pelos autores em aldeias e escolas. Com isso as abordagens têm características

descolonizadoras, sensíveis e inventivas. Também compõem experiências que cruzam e conecta

profundas relações de aprendizados voltados à educação e artes que tem como intuito de

trabalhar o empoderamento e saberes ancestral através das artes. Em todos os experimentos o

corpo foi o demarcador do fazer, do ser, sentir, da saúde e educação como multiface

descolonizador e do desse corpo pensante, reflexivo e político. O jeito nesse momento difícil da

conjuntura política em que aflora fascismo, racismo, machismo e tantos ismos que nos devaneia

ao mundo poético. Na aldeia respiramos ancestralidades, visto que houve por crivo do

colonialismo criminoso a assimilação e relação de vida e aprendizados cruzando não só laços

afetivos mais culturais. Foram passagens breves, mas ressignificavas no nosso caminhar que

frutificaram em nós e nas pessoas novos modos de pensar e ser tivemos encantado e encantado

com os encantados e isso por si só foi majestoso.

147Professora da Educação Básica da Prefeitura de Caucaia.Mestra em Educação Brasileira pela Universidade

Federal do Ceará (UFC) [email protected] 148Especialista em Gestão de Saúde Pública; Conhecido como Sal, é artista plástico de resistência, trabalha com as

questões indígenas e negras. [email protected]

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Trilhas afroindígena e aprendizados

Foi num quilombo, o lugar encantador, cheio de saberes e cheiros ancestrais,

Comunidade Remanescente da Serra do Juá, que foi palco de um trabalho do florescer em nós

nossas africanidades, saiu de lá vários artigos e a pesquisa do mestrado. e que muito contribuiu

para o nascimento da teoria metodológica da Pretagogia.

Pretagogia, referencial teórico-metodológico em construção há alguns anos, pretende

se construir numa abordagem afrocentrada para formação de professores/as e

educadores/as de modo geral. Parte da cosmovisão africana, porque considera que as

particularidades das expressões afrodescendentes devem ser tratadas com bases

conceituais e filosóficas de origem materna, ou seja, da Mãe África. (PETIT, 2015, p.

119-120)

Neste contexto, a Pretagogia tem laços com a Sociopoética com a Pretagogia trilharam

caminhos semelhantes, que muito nos ajudou. A Pretagogia dialoga entre cultura, para que

venhamos perceber nossa relação com a Mãe África como forma de combater o racismo e nos

sentir pertencentes. Assim, PETIT (2010) disse que a Pretagogia é a Pedagogia para negros,

indígenas e brancos.

[...] fonte fundamental de dados ecoa diretamente com uma exigência nossa de dar

vez e voz aos oprimidos e marginalizados, não somente como produtores de dados

cuja a experiência de vida e prática social merecem nosso cuidado, e sim como ‘atores

e atrizes na aventura cientifica’ (GAUTHIER, 2012, p. 76)

Esses objetos desencadeadores e demarcadores de reflexões sensíveis de partilha

influenciaram o grupo que era uma turma de EJA da Escola quilombola Maria Iracema, na Serra

do Juá, os pesquisadores e demais participantes presentes, em Caucaia, ano de 2014.

Nessa técnica vários sentidos foram acessados pelos sujeitos. Primeiro pelo

estranhamento; depois pela relação tátil: tocar, manipular o objeto gerador,

transgredindo a relação que dicotomiza mente e corpo. Aqui, o corpo se move e move

os conceitos/objetos. [...] Algumas conexões eram tão íntimas aos sujeitos, de

maneira tão arraigada, que se tornou difícil externar o conhecimento abafado da

relação entre os objetos, práticas e usos pelas rezadeiras. (SILVA, SILVA, ALVES &

PETIT, 2014, p. 110)

Ao ser visitada por uma rezadeira umbandista na aldeia anacé da Japuara, dona Lúcia e

visitar uma outra rezadeira, Tremembé, na Aldeia de Buriti, na Barra do Mundaú, situada em

Itapipoca, a curandeira Maria que reza com folhas e espíritos dos encantados e orixás, senti a

presença de minas ancestrais me puxando para esse meu pertencimento que a família muito

esconde.

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Curandeira Maria tremembé

Fonte: o autor.

Em tempos difíceis lugar de resistência: Aldeia e encantamentos

No decorrer de nossas existências a vida nos oferece trilhas de conhecimentos e

sabedorias e nisso experimentamos com nossos laços universais ancestrais profundos que

desconhecemos as razões e os porquês. Muitas vezes nossos corpos sofrem sem sabermos, pois

pra além da ancestralidade, negamos e sofremos com isso, o pertencimento de duas árvores

ancestrais que não podemos ser negadas e que habita em nós, quando viemos de uma linhagem.

Ninguém chega a parte alguma só[...] Nem mesmo os que chegam desacompanhados

de sua família, de sua mulher, seus filhos, seus pais, de seus irmãos. Ninguém deixa

seu mundo, adentrado por suas raízes, com o corpo vazio ou seco. Carregamos

conosco a memória de muitos traumas, o corpo molhado da nossa história, de nossa

cultura; a memória, às vezes difusa, [...] (FREIRE, 2011, P. 45)

O encontro na forma ancestral é reencontro que precisa firmar um objetivo maior, a

boniteza de ser e estar para o outro, de viver bem com amor e sem ódio. Dessa forma o devir

neste trabalho aborda a existência de estarmos conectados com um mundo igual e que nos

sugere a liberdade de sermos quem somos desde nossas raízes ancestrais. Hoje numa

conjuntura política atual tão cheia de falta de amor, de ódio e rancores, que subtrai os pobres,

trabalhadores/as, negros/as, mulheres e índios à exclusão. Vivemos em tempos fascistas e com

as artes e literatura podemos reinventar, refazer e resignificar nossas trilhas. A arte é libertadora,

é terapia e nos tira da opressão, da tristeza, do desamor, do luto. A arte nos revoluciona:

A revolução se gera nela como ser social e, por isto, na medida em que é ação cultural,

não pode deixar de corresponder às potencialidades do ser social em que se gera.

É que todo ser se desenvolve (ou se transforma) dentro de si mesmo, no jogo de suas

contradições. (FREIRE, 2013, P. 183)

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Ernesto Sales (Sal)

Sou conhecido como Sal, que vem de Sales, de meu pai que foi o último preso político

a ser solto pela anistia da ditadura militar de 64, discípulo de Mariguella, preso político e

torturado na ditadura de 64, vive em mim, ele, pegou em armas (...) por vidas, pela causa, eu

pego em artes, em tintas, em natureza, por pessoas, por meu dom criador artístico que habita

em mim, vindo de meu pai. Meu pai vindo do Amazonas, minha mãe de origem de Pedra

Branca-Senador Pompeu, mulher feminista, de luta, eram funcionários públicos da saúde,

ambos de esquerda e que vivem em mim, embora falecidos, aprendi com ele artes para encantar

e esquecer o que minha família sofreu. As artes transformam e nos faz refletir, nos elevando ao

empoderamento crítico ao sistema atual.

Em meus trabalhos uso materiais da mãe natureza, uso tinta com argila e colchinilha

carmim, que vem da mãe natureza e livre de processos químicos, um compromisso com o meio

ambiente, uma influência da obra de Artur Bispo do Rosário, nas técnicas da arte povera e

assemblegens. Procuro viver a existência sendo positivo e apoiando lutas sociais pela mãe

natureza e a saúde mental, na luta, onde ela necessitar.

Eliene Magalhães

Nas passagens tanto de aldeias, quanto dos quilombos como pesquisadora vir e refletir

o ser negro e indígena em mim, que habita, me chama e me encanta, pra começar tenho

ancestrais paternos negros vindos de Quixadá e maternos indígenas vindas de aldeia Pitaguary,

Pacatuba-Ce, sou de linhagem de rezadeiras de lá, da serra da Aratanha-Pacatuba. .

Minha bisavó, senhora Maria Alves Laranjeira da Costa, era chamada de ‘Maroca’,

ao modo africano, Maria carinhosamente. Nascida na localidade de Munguba, no

município Pacatuba, estado do Ceará, no século XIX, mãe de minha avó materna,

dona Otília Alves Magalhães, ela nascida também, na mesma localidade. (SILVA,

2015, P. 24)

Como isso é forte, mas me deixa às vezes enriquecida pois são duas valorosas

especificidades, nos sonhos, nas aspirações, nas poesias que saem de mim e na sensibilidade.

Há também nos traços de minha família, uns com cabelos crespos, no nariz, nas maneiras de

ser e estar, outros com cabelos lisos, encaracolados e negros feito os meus, sinto também na

linhagem ‘rezadeiras’ nas premonições dos acontecimentos e caminhada, meu corpo é um

santuário em mim.

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A trilha continua em diversos caminhos, porque esperançar é preciso

O amadurecer, envelhecer na vida corresponde em estarmos interligados, conectados

com o cosmo e nossas ancestralidades, com os nossos ancestrais que habita em nós. Não

sabemos ao certo, na trajetória de nossas existências, o que nos faz seguir caminhos diversos,

mas entendemos que isso vem dos que mesmo mortos, habitam em nós, de nossas linhagens.

Na aldeia Tremembés da Barra de Mundaú foram trabalhados o ferro Tremembé no

corpo pelos indígenas e nas paredes com Sal e os Tremembés, foi maravilhosos ver o

empoderamento do povo nativo e guerreiro.

Salientamos que nas experiências de Exu-

Pernambuco, Monguba, aldeia Pitaguarys,

Aldeia de Buriti-Itapipoca dos Tremembés e

Japuara dos Anacés foi usado pelo artista

plástico Sal uma tecnologia social

denominada ‘Reboco de papel’, a partir de

cola produzida com palma, mandacaru,

cardeiro, e ou fécula de mandioca e cola

branca.

Vale salientar que a experiência do artista com arte do povo Tremembé não se iniciou

nessa experiência citada, pois vem de outras jornadas no decorrer do trabalho artístico com

ferro Tremembé dado do povo para o artista a autorização de sua pintura, por isso ele afirma

carinhosamente que é metade Tremembé.

A trilha no Pitaguarys, passagem que celebramos a vida e muitos aprendizados desde o

dormir na Monguba, sentir a brisa da serra, os pássaros, as pessoas e o encontro dos alunos

com a aldeia.

Figura 02- oca de reuniões na Aldeia de Monguba-Pacatuba-Ce. Figura 03- Aula de campo na oca de

reuniões na Aldeia de Monguba-Pacatuba-Ce

Fingura: Aldeia tremembé

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Na aldeia a professora Eliene trabalhou na aula de campo da Faculdade Católica o

sentido da ancestralidade e seus marcadores, houve curiosidades respondidas pelo Pajé barbosa.

Já nas proximidades Sal pintou o ferro Pitaguary em uma casa, fato que nos deixou altamente

emocionados.

Figura 04- pintura do ferro Pitaguary por Sal

O ferro Pitaguary foi um repasse do Benício Pitaguary, artista de pinturas corporais, um

parente maravilhoso e encantador que leva a sua arte como empoderamento de identidade e

ancestralidade do povo Pitaguary. Depois de aprender tanto com o movimento indígena e nos

deliciarmos com nossas relações ancestrais, momento de sociopoetizar que faz nascer em si a

poesia dentre experimentos que com as vivências nos empoderar e amadureceram em novos

caminhos e pensar.

Figura 05- pintura com imagens indígena na aldeia Anacé

Oficina ministrada por Sal com uso de papel reciclado e carvão, pinturas de imagens

indígenas na aldeia Japuara, assim potencializou-se dificuldades que era visível nesses jovens.

A arte que encanta e assume papel de libertação frente a tantos domínios que vivemos.

Ainda na mesma época com a professora Eliene. Com isso teve no Quilombo de

Porteiras uma aula de campo que foi trabalhado nossas relações ancestrais e seus marcadores

como empoderamento e fortalecimento das identidades indígenas e quilombolas, no quilombo

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houve até toré que as quilombolas participaram com muita energia, foi muito prazerosa e as

amizades se fortificaram. Aconteceram com isso, muitos testemunhos de afirmação de

pertencimento até entre os não índios e não quilombolas.

Foto 06- Turma de Pedagogia do Ceprone-Capuan

Hoje entendemos que não podemos mais distanciar-me dessas heranças, pois sofremos

espiritualmente. E para que o corpo fique bem, a alma deve ser acariciada, amada, efetivamente

reconhecida, com isso a Sociopoética tem esse alcance.

CONCLUSÃO

Trilhamos passagens em várias aldeias, de muitos aprendizados e modos diferentes de

se trabalhar. Usando a sensibilidades e que nos amadureceu não só para a vida, mas para nossas

ancestralidades, temos as duas, negra e indígena em nós, pelo crivo do colonialismo que nos

separou da origem. Descolonizar foi preciso e continuaremos lutando e resistindo

REFERENCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Oprimido /Rio de Janeiro: Paz e Terra, ed 54, 2013. 253p.

_______, Pedagogia da Esperança: Um Encontro com a Pedagogia do Oprimido/ São

Paulo: Paz e Terra, ed. 17, 2011. 333p.

PETIT, S. H. Pretagogia: Pertencimento, Corpo-Dança Afroancestral e Tradição Oral

Africana na Formação de Professoras e Professores. 1. ed. Fortaleza: EdUECE, 2015. v. 1.

261p.

SILVA, Samia Paula dos Santos; SANTOS, Marlene Pereira dos; CUNHA JUNIOR, Henrique;

BIÉ, Estanislau Ferreira; SILVA; Maria Saraiva da (Orgs) Afroceará Quilombola. PortoAlegre,

RS. Editora Fi, 2018.

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SILVA, Geranilde. Pretagogia: construindo um referencial teóricometodológico, de base

africana, para a formação de professores/as. Tese (Doutorado em Educação Brasileira) -

Faculdade de Educação Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2013.

________, Maria Eliene Magalhães. Marcadores das Africanidades no Ofício das

Rezadeiras Em Quilombos de Caucaia-CE: Uma Abordagem Pretagógica. 2015. 207

f. Dissertação. (Mestrado em Educação Brasileira) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,

2015.

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MARIA DE ARAÚJO UM MARCO APAGADO NO TEMPO

Tayronne de Almeida Rodrigues149

João Leandro Neto150

RESUMO

Este trabalho é uma pesquisa sobre Maria Magdalena do Espirito Santo de Araújo, conhecida

como a Beata Maria de Araújo, um ícone feminino de referência na vida de Padre Cicero Romão

Batista como também na luta da mulher negra pela conquista de seu espaço em uma sociedade

marcada pelo domínio masculino. Dentro deste trabalho se faz um apanhado da trajetória dessa

mulher simples e de fibra que quando passa a ser figura de santidade assim eleita pelos

primeiros romeiros de Juazeiro do Norte, incomoda a aristocracia, a igreja católica, pois para a

época não se concebia que uma mulher negra pudesse ter uma alta relação com o divino. É fato

que por pertencer a uma classe menos abastada não lhe dava tal direito. Em 01 de março de

1889, quando a hóstia dada por Padre Cícero “virou” sangue na boca da beata, pode se dizer

que é um marco de transformação nas estruturas culturais, religiosas e sociais, um convite a

sociedade para uma mudança que até então não havia iniciado.

Palavras-Chave: Maria de Araújo. Mulher. Religiosidade. Romarias. Juazeiro do Norte.

INTRODUÇÃO

No dia primeiro de Março de 1889, aconteceu, na pequena Capela, um fenômeno

extraordinário que abalou a Diocese. Antes de lembrar o milagre, precisamos apresentar-lhes,

rapidamente, a Beata Maria de Araújo. Ela nasceu em Juazeiro no dia 26/05/1863 (antes da

Chegada do padre Cícero neste povoado) e faleceu no dia 17/01/1914.

Em geral é descrita como uma pessoa franzina, de estatura média, mestiça com

predominância do negro, cabeça pequena e arredondada, cabelos quase "carapinhos", olhos

pequenos, lábios grossos, etc. Feia e vulgar. Vinha de uma família pobre, humilde e seu ofício

era o de costureira. Com 22 anos, tornou-se Beata, sendo Padre Cícero seu confessor e diretor

espiritual.

Este trabalho tem como objetivo mostrar quem foi a Beata Maria de Araújo, elencar

acontecimentos importantes que revolucionaram aquela época e até hoje fazem de Juazeiro do

Norte um cenário sagrado. Também queremos afirmar que esse marco que é Maria de Araújo

está apagado, o papel de mulher que ela desempenhou ficou esquecido, é necessário estudar e

resgatar essa figura tão essencial.

O PAPEL POLÍTICO DESEMPENHADO PELA BEATA MARIA DE ARAÚJO

149 Estudante de Graduação, Faculdade de Juazeiro do Norte, [email protected], Crato, Ceará Brasil. 150 Filósofo, Especialista em docência do ensino superior, [email protected]. Crato, Ceará, Brasil.

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Miriam Moreira Leite nos ensina que a mulher “raramente é registrada na

documentação oficial, a não ser quando perturba a ordem estabelecida, quando desempenhou

papéis que a sociedade não lhe atribuiu, ou se exacerbou no cumprimento do papel feminino.”

Maria de Araújo foi registrada na documentação oficial porque perturbou a ordem

estabelecida. Pelos inquéritos levados a efeito pela Igreja do Ceará em 1891, dois anos após o

início dos episódios de sangramento da hóstia consagrada por ocasião das comunhões da Beata,

Dom Joaquim José Vieira, então bispo do Ceará, enviou para Juazeiro do Norte, dois dos

melhores teólogos da Diocese – Pe. Costa Lobo e Pe. Antero – para que verificassem o que se

passava na capelinha de Nossa Senhora Das Dores que estava revolucionando o nordeste. Este

documento, único na história da Igreja no Brasil com esse objetivo, ou seja, de constatar e

analisar um fenômeno extraordinário, sobrenatural, com aparência de milagre, registrou os

acontecimentos e os testemunhos de todos os principais envolvidos com os fenômenos e

também de pessoas confiáveis (essa era a exigência do bispo) homens e mulheres, testemunhas

oculares do fato, além de atestados das análises feitas por médicos e também longos

depoimentos de Maria de Araújo.

Antes de mais, é bom dizer que quem nunca teve medo dela foi Padre Cícero. Ao

contrário, considerava-a a sua espada forte e não teve dúvidas em defendê-la em diversas

ocasiões perante o bispo do Ceará e perante o Santo Ofício, em Roma. Cita Edianne Santos:

É possivel que mulheres como Maria de Araújo nunca foram tomadas

como objeto da historia a não ser, como coadjuvantes num cenário onde

a figura principal é masculina. Faz-se necessário a desconstrução desses

papéis femininos e masculinos e a compreensão que essas relações entre

homens e mulheres só podem ser percebidas a partir de uma relação

entre ambos. Queremos vizualizar o rosto dessas mulheres beatas

construindos suas identidades, desconbrindo-as e localinzando-as

enquanto agentes históricos, entendendo a partir de seu cotidiano, suas

ideias, ações sociais e politicas. É nossa intenção refletir sobre o papel

desempenhado pelas beatas no fomento e efervecência religiosa que se

desencadeará principalmente a partir de 1889, ano atribuido ao milagre

da hóstia transformada em sangue na boca da beata Maria de Araújo.

Mas, afinal, o que fez Maria de Araújo de tão grave? Por que ela representava um

perigo? Por que, hoje, resgatar sua memória pode representar um perigo?

Todos sabemos que vivemos numa sociedade em que o poder, seja ele civil ou

eclesiástico, desde sempre, esteve na mão do homem. Uma sociedade machista. Hoje, na

sociedade civil, menos, mas ainda. Em fins do século XIX, inícios do XX, o tratamento que se

deu às mulheres, ainda mais às negras, pobres e analfabetas era altamente discriminatório. Não

tinham voz, nem vez, a não ser no que os acadêmicos chamam de esfera do cotidiano e do

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privado em contraposição à esfera do político e do público, lugar próprio para os homens

atuarem e único lugar onde, supostamente, se faz história e se constrói o saber. E na Igreja,

conforme Nunes a constituição do saber, como espaço masculino por excelência, articula-se

pela exclusão feminina do poder na sociedade e nas Igrejas. Mas, veremos, não foi o caso de

Maria de Araújo. Ao menos enquanto a Igreja não se exacerbou no exercício do poder.

Michelle Perrot nos ajuda também a entender o lugar da mulher no século XIX, na

Europa em que a cultura da elite acentua a racionalidade harmoniosa da divisão sexual. Cada

sexo tem sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seu lugar quase pré-determinado,

até em seus detalhes. Ao homem a madeira e os metais. À mulher a família e os tecidos. Não é

muito diferente no Brasil, no Ceará mais ainda em fins do século XIX.

À Maria de Araújo estava, portanto, reservado um lugar na família, na cozinha, nas

costuras e, se fosse para a Igreja, na limpeza do templo e, durante as funções religiosas, no

banco.

Mas Maria de Araújo não ficou aí. Nesse sentido é que atuou politicamente, pois, ao

assumir o seu papel de instrumento de Deus para fazer de Juazeiro um lugar de conversão e

salvação para as almas subverteu a ordem vigente. Ela explorou a inconsistência e a incoerência

do sistema religioso, social e político e, encontrando aí uma brecha, pode se expressar. Como

santa, como mística, como beata, como representante da religiosidade do povo, com fé, com

coragem, com firmeza superou a divisão sexual do feminino e do masculino. Nesse sentido

politizou o privado, dando a si mesma e ao povo a autoridade de instrumento da fala de Deus.

Ao manifestar, pelo sangramento da hóstia, o poder de Deus, apropriou-se dos bens simbólicos

da salvação, até então apenas nas mãos do clero, privatizou-os, colocando-os ao alcance das

mãos dos devotos. Deslocou o lugar do poder, trazendo-o para o cotidiano.

Este o papel político desempenhado por essa mulher que redesenhou a geografia, a

economia e a sociedade do sertão cearense, fixando, para sempre, no mapa do Brasil, o lugar

sagrado que é Juazeiro do Norte. Portanto, fazer a memória da Maria de Araújo é perigoso: pelo

questionamento e deslocamento do lugar do poder. Eclesial e político. Do clero para o povo.

Dos que acreditam que detem de forma absoluta o poder, para o cotidiano, para a rua.

Na verdade, é o que continua acontecendo em Juazeiro. A despeito de longos anos de

repressão, de proibição, de desqualificações, hoje, a Igreja assume o seu lugar de evangelização

no meio dos romeiros e romeiras porque eles – os romeiros e romeiras – permaneceram fiéis,

resistentes, firmes, teimosos, acreditando e mostrando o lugar do sagrado.

Ao longo da história, provavelmente por um mecanismo também de resistência dos

romeiros, fruto de uma herança arquetípica que exclui a mulher, como dizíamos acima, citando

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Nunes, do lugar do poder dentro das Igrejas, especialmente quando há conflitos, toda devoção

passou ao Pe. Cícero: padre, homem, membro do clero mas, também ele excluído pela

hierarquia eclesiástica.

A IDENTIDADE DA BEATA MARIA DE ARAÚJO

Maria de Araújo sempre demonstrou um desejo muito grande de servir a Deus. Ela

própria, em seu depoimento, conta que depois de ter recebido a primeira eucaristia, celebrou

um consórcio espiritual com Jesus Cristo que exigia que ela se consagrasse a Ele de um modo

ainda mais íntimo e lhe anunciava que dai em diante teria mais que sofrer por Seu amor. Pe.

Cícero também nos ajuda a perceber esse traço da personalidade da beata. Na “Exposição

circunstanciada”151 diz:

Conheço Excellentíssimo Senhor á Maria de Araújo, desde menina, isto

é, desde a idade de oito a dez annos, quando a confessei para fazer ella

a sua primeira communhão. Notando eu então as melhores dispozições

daquella menina para a vida interior, aconselhei-a a se consagrar a

Nosso Senhor, o que ella executou do modo o mais íntimo e perfeito,

considerando-se desde aquella data como uma verdadeira espoza de

Jesus Christo.

Maria de Araújo contava que, desde criança, brincava com o Menino Deus e que as

visões e comunicações que tinha com Nossa Senhora e com Jesus Cristo, que lhe davam

direções espirituais, melhoravam sua inteligência, permitiam-lhe maior conhecimento dos

mistérios divinos e maior disposição para amar a Deus e servi-Lo. Além disso, essas

comunicações a tornavam mais inteligente e visavam a prepará-la para as revelações como a de

que Jesus pretendia fazer do Juazeiro uma porta do céu e um lugar de salvação para as almas,

que deviam aproveitar dessas graças, enquanto é tempo de misericórdia.

Foi por causa dos sangramentos da hóstia que ela foi submetida aos mais diversos

exames e restrições pelos médicos, pelos padres da comissão de inquérito a fim de se verificar

a autenticidade do fenômeno.

Pode-se entender que Maria de Araújo era sim uma pessoa dócil, colaboradora, que se

submetia às exigências, mas também altiva, corajosa, perspicaz, inteligente e íntegra, que não

se deixava corromper, como se constata por este diálogo, transcrito pelo Padre Manoel Candido,

vigário na cidade de Barbalha, vizinha a Juazeiro, para onde a beata foi levada depois da decisão

do Santo Ofício que condenava como fenômenos vãos e supersticiosos, os sangramentos da

151 Documento escrito por Padre Cícero em 17 de julho de 1891, no Palácio Episcopal, em Fortaleza, a pedido de

Dom Joaquim José Vieira e que faz parte do volume dos Inquéritos.

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hóstia. Maria de Araújo estava então sob a guarda do Padre Manoel Candido.

MEMÓRIA DE UMA MÍSTICA

A mística diz-se da profunda, familiar e íntima relação com Deus. Uma experiência

que transforma a vida de quem responde a ele. Como transformou a vida da beata Maria de

Araújo, do Padre Cícero e de tantos outros que fizeram essa experiência íntima com o Sagrado.

A natureza por vezes dúbia do fenômeno místico, o mau uso que dele foi feito por uns

quantos e também o caráter de autonomia que alguns místicos se auto-impuseram, originou esse

comportamento arredio por parte da Igreja e, no nosso caso, a respeito de Maria de Araújo, foi

um dos argumentos para desqualificá-la atribuindo a sua afirmação de união íntima com Deus

e com Nossa Senhora como loucura, como farsa, e como pretensão vaidosa, portanto

individualista, da beata.

Seibold alerta para o perigo dos “proselitismos cultuais, cujo único interesse está

centrado no individuo e em sua exaltação subjetiva, não propriamente mística, mas

mistificadora,”152 o que não se encontra, como tentamos demonstrar na beata Maria de Araújo.

E se poderia acrescentar, nem no Padre Cícero, a despeito da propaganda enganosa que durante

quase um século se desenvolveu em torno dele. Nele, como na beata, se percebe o dom gratuito

feito a todos, uma mística social e solidária inspirada, não há dúvidas, nas Bem-aventuranças

do Reino.

Por essa união íntima, pela contemplação, pelo dom de oração, pelos muitos serviços

prestados, pelo compromisso com os irmãos, nos atrevemos a afirmar que a memória da mística

Maria de Araújo é manifestação da memória de Deus, porque é a manifestação do desejo de

Deus.

A capacidade de síntese vital: uma síntese que está profundamente ligada à vida. Uma

análise do sangramento da hóstia como linguagem simbólica que, a rigor, é aquela que

comunica algo a alguém e é plenamente entendida. Por isso linguagem. E simbólica porque,

para além dos muitos conceitos que teríamos que nos deter aqui para analisar o símbolo, este

nos diz da união de duas realidades aparentemente antagónicas. Faz a síntese vital: une o

catolicismo oficial e o catolicismo popular. Une a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que

sangra, ponta de lança do catolicismo da época, às devoções populares, luso-brasileiras, mais

antigas, da qual Maria de Araújo era, legítima representante.

152Seibold, J. La Mística Popular, Buena Prensa, México, 2006. p. 133

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Infelizmente a mística ainda é um fenômeno não devidamente apreciado por alguns

membros eclesiásticos e nisso, a Igreja de Juazeiro tem muito a ensinar – além de aprender – às

outras Igrejas do Brasil e também é pouco apreciado pelos fiéis que vivem estes carismas sem

tomar plena consciência de todas as dimensões da sua própria espiritualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com um outro código de linguagem, como os pintores que podiam dominar um novo

material alfabético, Maria de Araújo também conseguiu escrever um texto da realidade com

outro código linguistico. Da mesma forma que "pintar para os mestres flamengos, não era nem

a reprodução, nem a produção de um universo, mas a sua metamorfose", Maria de Araújo com

esse novo código transformou a realidade daquele lugar. Redesenhou a geografia, a economia,

a política. Não reproduziu nem produziu um novo mundo, mas provocou uma transformação

profunda, uma metamorfose naquele universo e trouxe, como os pintores, a revelação de um

mundo mais real do que a realidade ordinária. Para além da realidade ordinária, o mundo

revelado pelo sangramento da hóstia é aquele de um profundo conflito entre as duas Igrejas,

instituído pela transição entre essas duas formas de viver a religião, essas duas formas da

realidade ordinária.

Portanto, esse fenômeno não é apenas uma palavra, um fato polissêmico, ambíguo, ou

pobre e unívoco. É rico em significados. Poderíamos dizer que é um símbolo? Paul Ricoeur diz

que:

há mais no símbolo do que em qualquer de seus equivalentes

conceituais: um traço que é avidamente compreendido pelos opositores

do pensamento conceitual. Para eles há que escolher entre o símbolo e

o conceito (...) Não é necessário negar o conceito para admitir que os

símbolos suscitam uma exegese infindável. Se nenhum conceito pode

esgotar a exigência de ulterior pensamento produzido pelos símbolos,

esta idéia significa apenas que nenhuma categorização dada pode

abarcar todas as possibilidades semânticas de um símbolo. Mas só o

trabalho do conceito é que pode testemunhar este excesso de sentido.

E para entender o símbolo, Paul Ricoeur propõe que se comece pela metáfora que "a

metáfora é o reagente apropriado para trazer à luz o aspecto dos símbolos que tem uma afinidade

com a linguagem."

Iniciamos falando de perigos. Insistimos neles. Revelamos os que nos pareceu serem

os que qualificaram Maria de Araújo como aquela que precisava ser apagada da História,

inclusive destruindo seu túmulo, sua última morada e fazendo com que seus restos mortais

desaparecessem para que nada, absolutamente nada mais dela permanecesse. Por quê? A

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pergunta ainda continua, mesmo que eu tenha apresentado algumas respostas: ela questionou o

poder do clero, o poder político, a divisão sexual do saber, do fazer, do acontecer.

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SECA E DEVOÇÃO: A CONSTRUÇÃO DO CRUZEIRO DE SÃO BOM JESUS

EM CARIUTABA NO MUNICÍPIO DE FARIAS BRITO - CE

Emanuel Mateus da Silva153

RESUMO

Seca fenômeno natural que assola a vida do agricultor e do povo sertanejo; devoção,

comportamento de fé em algo que condiz a esperança por dias melhores. É sobre essa junção

entre Seca, Fé e Devoção que o estudo trata, sobretudo da construção do Cruzeiro de São Bom

Jesus. O campo de estudo foi o Distrito de Cariutaba localizado na zona rural a 18 km da sede

do município de Farias Brito – CE. Para realização da pesquisa utilizamos como instrumento

metodológico a aplicação de entrevistas, visitação ao lócus em destaque buscando delinear de

fato o como, quando e por que da construção desse espaço de cultuação de fé cristã. A discussão

inicialmente procura apresentar a relação entre o fenômeno natural e a religiosidade do povo

sertanejo. Em seguida apresentaremos o contexto histórico, político e geográfico do Distrito de

Cariutaba e especificamente a do Cruzeiro. A partir do embasamento teórico e da oralidade das

pessoas mais velhas da comunidade que o corpus foi escrito. Vale salientar que a pesquisa

histórica é inconclusa tendo em vista que ela é construída a partir do viés de cada cidadão,

entretanto, esse trabalho nos permitiu compreender que o sagrado entra em simbiose com as

questões da seca e religiosidade popular.

Palavras-chave: Seca. Devoção. Memória.

INTRODUÇÃO

Este trabalho trata da construção do Cruzeiro de São Bom Jesus no Distrito de

Cariutaba, município de Farias Brito – CE e como esse monumento de fé cristã passou a ser

ponto de cultuação religiosa e ecoturismo local para os moradores dessa localidade e dos sítios

circunvizinhos. Destarte, torna-se necessária a valoração dessa história por está presente na vida

de todos os sujeitos, mesmos os que não sejam católicos.

O presente artigo foi desenvolvido a partir das análises literárias da geração de 30 e

pós-moderna da literatura brasileira, especificamente das obras dos autores nortistas que na

maioria das vezes trazia como pano de fundo a Seca, a Fé, a Devoção presente nos enredos de

seus romances e escritas. Tais autores destaco: Graciliano Ramos com “Vidas Secas”, Rachel

de Queiroz com “O Quinze”, João Cabral de Melo Neto com “Morte e Vida Severina”, e o poeta

regional Patativa do Assaré que muito escreveu sobre a saga do sertanejo. Vale salientar que

não foram somente estes que trataram sobre a temática em questão.

Foi a partir dessas análises que busquei compreender o por quê da construção de um

153Professor das Redes Municipal e Estadual da Educação Básica, Especialista em Língua Portuguesa e Arte-

Educação, Universidade Regional do Cariri – URCA, [email protected], Farias Brito – Ceará –

Brasil.

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Cruzeiro em meio ao Serrote distante a 6 km do Distrito de Cariutaba. E ainda, o que fez desse

local um espaço de cultuação de fé em que corriqueiramente sobem pessoas para agradecer e

rezar por algo alcançado. Além disso, busquei compreender qual a relação existente entre o

fenômeno natural que é a Seca e a Fé cristã do povo sertanejo.

Para construção da pesquisa, optei pela leitura e análises de obras e estudos que trata

sobre a questão da relação entre Seca e Devoção. Além das análises textuais, fiz a opção pela

história de vida dos povos da localidade, como metodologia embasada numa abordagem

qualitativa de pesquisa.

Trabalhei com entrevistas em que as pessoas foram motivadas a discorrer oralmente

sobre a história local, a construção do cruzeiro e a relação entre os indivíduos da comunidade e

o espaço em estudo.

É importante dizer que o texto foi construído a partir das análises textuais e da

oralidade, está ainda fundamentado nos estudos de Paul Thompson quando diz que “Toda fonte

histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos

desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de memória, cavar fundo em suas sombras, na

expectativa de atingir a verdade oculta”. (THOMPSON, 1992, p. 197).

Portanto, segue abaixo algumas considerações acerca da pesquisa.

A RELAÇÃO ENTRE SECA E DEVOÇÃO: A ÍNTIMA RELAÇÃO RETRATADA

PELA CULTURA

Conforme o dicionário Saraiva Jovem (2010), “seca é uma estiagem muito longa”, e

“devoção é sentimento religioso de adoração”.

Característica peculiar que define a região Nordeste a Seca faz parte da vida do

sertanejo e é retratada nas mais variadas expressões culturais. Na música, a seca é cantada pelos

versos dos sertanejos, tendo como um dos maiores intérpretes o pernambucano Luiz Gonzaga;

na Literatura Brasileira, ela serve de pano de fundo para as obras desde o pré-modernismo, “Os

Sertões” de Euclides da Cunha, como também, das obras da escola Modernista de 30 na sua

fase regional de autores como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos dentre outros que

utilizaram desse fenômeno natural como mecanismo para construções de seus romances.

A cultuação a divindade faz parte da cultura popular brasileira. É perceptível no dia a

dia e em muitas localidades a vocação por milagres e a crença popular nas atitudes feitas cada

vez que seus pedidos são atendidos por meio da fé. Quanto a sua relação com a Seca percebemos

a pregação e a crença de que sempre no mês de março será chuvoso no Estado do Ceará por se

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mês de São José. De acordo com Matheus Ribeiro (2016), o santo, padroeiro do Ceará, é

reconhecido pela sua tradição de chuvas. Para os religiosos, caso neste dia chova, é sinal de

que o ano será de muita chuva, garantindo a safra e a mesa farta.

No livro “O Quinze” de Rachel de Queiroz, percebemos nitidamente as falas das

personagens rogando por chuvas aos santos. Nas músicas interpretadas por Luiz Gonzaga é

perceptível a saga do povo nordestino por chuva, onde é demonstrado o fato da migração

existente por conta do fenômeno natural. Nos escritos de João Cabral de Melo Neto,

especificamente na obra “Morte e Vida Severina” ele demonstra os costumes de um retirante

nordestino que foge da fome e da seca e a sua relação íntima com o Rio Capiberibe.

Na música Seca do Nordeste interpretada por artistas como Clara Nunes (1972),

Fagner (1995), notamos a relação da seca com a devoção nos seguintes trechos da canção:

“(...) Dias e dias, meses e meses sem chover

E o pobre lavrador com a ferramenta rude

Bate forte no solo duro

(...)

Não adianta o meu lamento meu senhor

Ó ó ó ô e a chuva não vem

Chão continua seco e poeirento

No auge do desespero uns se revoltam contra Deus

Outros rezam com fervor (...)

A partir do exposto acima, fica claro que existe uma relação entre o fenômeno natural

e a crença, seja essa relação internalizada ou externalizada por meio da cultura de um povo.

DELINEANDO O CENÁRIO DA PESQUISA E A CONSTRUÇÃO DO CRUZEIRO DE

SÃO BOM JESUS

O Distrito de Cariutaba localiza-se na Zona Rural do município de Farias Brito, Região

Cariri Sul do Estado do Ceará. Com uma paisagem natural do semi-árido nordestino, com flora

e fauna específica da região, é cortado pelo Rio Cariús com característica intermitente é um dos

maiores distritos em termos populacionais após a Sede. Faz fronteira limítrofe com os

municípios de Cariús e Várzea Alegre.

Sua região e população é formada pelos sítios circunvizinhos (Cajueiro, Caiçara

Cachoeira, Carnaúbas, Juá e Pedra Preta). Cada uma dessas localidades apresenta realidades

específicas, como população, costumes etc. Quase toda população sobrevive da agricultura de

subsistência e trabalham na lavoura como rendeiros e/ou posseiros. Os não agricultores se

sustentam de aposentadoria, emprego no serviço público e informal. O comércio tem

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características simples, sendo a maioria para venda de produtos alimentícios.

Os entrevistados que desvelaram os fios condutores dessa pesquisa são moradores

mais antigos do Distrito e os familiares do fundador do Cruzeiro. Aqui utilizaremos somente as

iniciais buscando preservar a identidade dos investigados.

OS PERCAMINHOS PARA CONSTRUÇÃO DO CRUZEIRO DE SÃO BOM JESUS

Em busca de informações sai atrás de coletas de informações na casa de alguns

moradores do Distrito, que conheciam a história da localidade e tinha uma relação com a

agricultura e com a crença religiosa.

Dentre as pessoas uma das entrevistas foi uma professora de aposentada da Rede

Estadual de Ensino, formada em História e que por muitos anos tem uma relação com a cultura

religiosa local. Conversei ainda com dois agricultores aposentados; uma representante da

militância política do Distrito e os familiares do Senhor Pedro Correia. Como dito anteriormente

iremos utilizar as iniciais dos nomes dos entrevistados para preservá-los.

Quando conversamos perguntei se poderiam me contar um pouco sobre a história do

Cruzeiro.

O cruzeiro surgiu por uma atitude de Pedro Correia. Foi o primeiro a chegar

lá e com isso se tornou fundador. É uma história muito restrita porque não há

documentos de origem. (M.L.O, 2018)

Foi um tempo que não tinha legumes, e as pessoas comiam casca de banana e

também quando tinham mungunzá. Pedro Correia, por ser dono de muitas

terras fez uma promessa se caso chovesse colocaria uma cruz em cima do

serrote, parte de suas terras. (J.S.P, 2018)

Lembro demais, 1930. Seca grande e quase todo gado morrendo. Pouca chuva,

pouco legume, muita fome. Sobre o Cruzeiro, nasceu dessa seca por conta da

promessa de Pedro Correia, se chovesse ele colocava uma cruz. Choveu, mas

num foi muito. E ele colocou a cruz. (A.P.A, 2018)

Tempo em que as condições financeiras eram ruins. A ajuda política era

somente emergencial. A crença religiosa fez nascer aquele local em meio a

seca que devastava a população. (O.D.O, 2018)

Meu avô, desmatou o local e pôs uma Cruz para agradecer as chuvas que ele

pedira. Sempre ia visitar o local quando mais novo, suas visitas fizeram dessa

parte de sua terra um santuário, onde as pessoas iam agradecer a São Bom

Jesus por alguma graça alcançada. (L.U.P, 2018)

É notável nas palavras acima, que mesmo sem uma documentação formal a história da

construção do Cruzeiro está interligada com a devoção de um cristão chamado Pedro Correia e

a sua relação com a seca. Nota-se que esse monumento foi construído a partir de uma promessa

por dias melhores.

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Logo em seguida os indaguei se existia alguma relação interpessoal com o Cruzeiro.

Quando jovem gostava muito de ir lá, rezar terços e olhar a paisagem. Ele faz

parte de minha história. Tenho história de vida sobre aquele local. (M.L.O,

2018)

Eu acho muito bom lá. É a melhor viagem que faço. Lembro da infância, dos

meus familiares. Lembro de várias bagunças de criança. Faz 45 anos que visito

aquele local, e todos os anos não fico sem ir. (J.S.P, 2018)

Faz parte da vida de meu pai. Faz parte de minha vida. Sou devoto de São

Bom Jesus. Fico aqui de casa imaginando como deve estar. Já que não posso

mais ir. Mas o tenho na minha memória e isso não apaga. (A.P.A, 2018)

É cultura. É vida. É a história de meu povo. Da localidade que me recebeu de

braços abertos há anos. Quando podia sempre visitei. Hoje mando e indico as

pessoas a visitarem. (O.D.O, 2018)

É uma ligação familiar. Lá está traços de meu avô. Parte da história da minha

família. (L.U.P, 2018)

As passagens acima, revela a cumplicidade que as pessoas tem para com o local em

destaque. O cruzeiro de São Bom Jesus, faz parte do nascimento e da vida de muitos dos

moradores. Já sabemos que ele foi construído a partir de uma graça alcançada pelo seu fundador.

Nesse momento, perguntamos aos entrevistados de algum testemunho de graça alcançada que

não fosse somente a do Senhor Pedro Correia.

Tenho um testemunho meu. Fui pagar uma promessa lá porque comecei a

faculdade e aí me apeguei muito a Bom Jesus da Lapa para que conseguisse

alcançar minhas metas. Foi muito sacrifício, mas consegui. Assim que me

formei, fui junto com a comunidade e levei uma imagem de Bom Jesus para

lá, soltei fogos de artifício e festejei muito [risos e lágrimas]. (M.L.O, 2018)

Meu filho tinha quebrado a perna e não tinha dinheiro para levar pro doutor.

Passei 3 dias com ele em casa e a perna estava ficando preta. Depois fui a

cidade e meu filho foi encaminhado pra Crato. Uns dizia que a perna ia ser

cortada e outros dizia que ele ia morrer. Como não sabia ler, fiquei sem saber

o que fazer. Minha mulher, fez uma promessa pra São Bom Jesus que se a

perna de meu filho ficasse boa, nós ia levar uma de madeira pra lá. Num foi

preciso cortar e nós fomos deixar a perna de madeira. (J.S.P, 2018)

Sentia forte dores de cabeça. Fiz uma promessa que se deixasse de sentir. Ia

deixar uma cabeça de madeira na cruz de São Bom Jesus. Tomei remédios por

anos, fiquei bom através da minha fé, pois o remédio num servia muito.

(A.P.A, 2018)

Sempre acreditei nos santos e no povo. Como política, sempre fazia promessas

pra ganhar uma eleição. Sempre fui atendida e ia pagar as promessas. (O.D.O,

2018)

Já paguei algumas promessas na antiguidade. Hoje tenho outras crenças. Não

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IX Congresso Internacional Artefatos da Cultura Negra Universidade Regional do Cariri

ISBN: 978-85-65425-48-3 18 a 22 de setembro de 2018

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creio em milagre por meio de santos. Mas muita gente sim. [risos] (L.U.P,

2018)

Por fim, perguntamos se hoje as visitas ao local ainda tem o mesmo propósito de

antigamente ou outros motivos.

Ainda hoje é considerado um ponto turístico religioso de nossa comunidade.

Mas também muitos vão para pratica de esporte em meio a natureza, trilhas.

(M.L.O, 2018)

Eu vou para agradecer alguma graça. Mas meus filhos e netos vão somente

para andar, ver o lugarejo de cima. (J.S.P, 2018)

Sempre vão por conta de algumas graça alcançada por um amigo ou parente.

Tem alguns que vão somente para andar outros para rezar. (A.P.A, 2018)

Muitos vão por questões religiosas, outros somente para andar. O governo

municipal tem investido no local, fazendo escadas para o povo subir. (O.D.O,

2018)

Eu quando vou é somente para ver o distrito do alto da serra. Muitos ainda vão

para agradecer algo alcançado. (L.U.J, 2018)

Mesmo com o passar dos anos, a visitação ao Cruzeiro ainda continua sendo por conta

das graças alcançadas e que a crença popular ainda é viva na cultura do povo. É preciso destacar

ainda, que o ambiente tornou-se um ponto turístico religioso da comunidade local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa realizada me permitiu a ter uma maior compreensão sobre a inter-relação

existente entre o Cruzeiro de São Bom Jesus e os moradores do Distrito de Cariutaba localizado

no município de Farias Brito – Ce. A partir da oralidade, percebemos o passado de um povo

vindo ao encontro com os costumes da atualidade, além do mais, notamos à similaridade das

informações e emoções contidas em cada palavra ditas pelos sujeitos da pesquisa.

Com o estudo ficou evidente de que existe uma relação entre Seca, Fé e Devoção.

Fenômeno cultural, sentimento humano que foi retratado nas mais variedades correntes

artísticas por aqueles que fazem parte da cultura sertaneja, por aqueles que um dia estudaram

ou conheceram o Nordeste.

O Cruzeiro de São Bom Jesus foi construído a partir deste tripé, onde por conta da

Seca e Devoção um agricultor, donos de algumas terrar finca um Cruzeiro no alto da serra que

é avistado por todos aqueles que adentra as terras do distrito.

É preciso dizer que mesmo sem um registro documental dos fatos históricos, podemos

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verificar a partir da oralidade que há uma verossimilhança na história de fundação do Cruzeiro.

REFERÊNCIAS

MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e Memória a cultura popular revisitada.

Editora Contexto, 2000.

OLIVEIRA, Rogério Carlos Gastaldo; SARAIVA, Kandy S. de Almeida. Saraiva Jovem:

dicionário da Língua Portuguesa Iustrado. Editora Saraiva: 2010.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.