DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA...

37
UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ DIONATAN GOMES DUARTE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE LIMITADA COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO CURITIBA 2014

Transcript of DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA...

UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

DIONATAN GOMES DUARTE

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE LIMITADA COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

CURITIBA 2014

DIONATAN GOMES DUARTE

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE LIMITADA COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para a obtenção do título de Bacharel no Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Tuiuti do Paraná. Professor: Dr. Jorge de Oliveira Vargas

CURITIBA 2014

TERMO DE APROVAÇÃO

DIONATAN GOMES DUARTE

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE LIMITADA COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Esta monografia foi julgada aprovada para obtenção do título de Bacharel no Curso de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná.

Curitiba, _____ de_____________de 2014.

_________________________________________ Bacharelado em Direito

Univsersidade Tuitui do Paraná

Orientador: Professor. Doutor Jorge de Oliveira Vargas Professor Doutor _____________________________________________ Professor Doutor______________________________________________

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus familiares, amigos e colegas que de alguma forma contribuíram para minha formação.

RESUMO A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade limitada, objeto do

presente estudo, tem sido aplicada em nosso ordenamento jurídico com a finalidade

específica de alcançar, em determinadas circunstâncias, a pessoa dos sócios ou

administradores da sociedade com fundamento no Código Civil, art. 50. A pessoa

jurídica é constituída para cumprir determinadas finalidades sociais, como a

produção de riqueza, geração de empregos e circulações de bens em massa,

qualquer abuso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica limitada deve ensejar a

aplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que é um

instrumento eficaz contra fraudes perpetradas no seio da pessoa jurídica. A presente

pesquisa analisa os fundamentos adotados pela doutrina e jurisprudência para

afirmar a teoria com base no Código Civil, art. 50, o que permitiu observar uma certa

distorção da teoria pura da desconsideração.

5

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 6 

2. EVOLUÇÃO DA PESSOA JURÍDICA NA FORMA DE SOCIEDADE LIMITADA .. 7 

3. COMEÇO DA EXISTÊNCIA DA PESSOA JURÍDICA .......................................... 11 

4. AUTONOMIA PATRIMONIAL DA PESSOA JURÍDICA NA MODALIDADE DE

SOCIEDADE LIMITADA ........................................................................................... 14 

5. EVOLUÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

JURÍDICA ................................................................................................ 18 

6. FUNDAMENTO E EFEITOS DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ...................................... 21 

7. PROCEDIMENTO PARA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO

DA PERSONALIDADE JURÍDICA ........................................................................... 28 

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 34 

REFERÊNCIAS ................................................................................................ 35

6

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por foco apresentar uma visão geral

sobre a pessoa jurídica constituída na forma de sociedade limitada, origem e

formação, de forma objetiva e resumida, abordando primeiramente a evolução

jurídica da pessoa jurídica constituída na modalidade de sociedade limitada, o

princípio da autonomia patrimonial nesse tipo societário e a responsabilidade dos

sócios e administradores, para no decorrer discorrermos sobre a evolução da teoria

da desconsideração da personalidade jurídica em face da sociedade limitada com

fundamento no Código Civil Brasileiro, art. 50 e os efeitos sobre o patrimônio dos

sócios e administradores da sociedade limitada por obrigações sociais.

A discussão do procedimento para aplicação da teoria também

será abordado de forma sucinta, com observância do princípio constitucional do

devido processo legal e entendimento jurisprudencial sobre os efeitos práticos da

teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

7

2. EVOLUÇÃO DA PESSOA JURÍDICA NA FORMA DE SOCIEDADE LIMITADA

Parte da doutrina defende que a associação humana teve início

desde os primórdios, esse o ensinamento de Adalberto Simão Filho (2012, p. 21), o

qual afirma que:

A associação dos homens para um fim comum pode ser observada desde os primórdios das civilizações, quando diversos esforços foram feitos na busca dos ideais e evolução do povo. Tanto nas civilizações que se aventuraram na exploração marítima, como os fenícios, os povos que se aprimoraram nas trocas mercantis, gregos e romanos, as associações de pessoas se faziam presentes como forma de viabilizar as atividades empreendidas.

O mesmo autor acima citado menciona que “há cerca de dois

mil anos antes da Era Cristã, na Babilônia e sobre o império do Rei Hamurabi, já

havia relato da previsão de regras relativas às sociedades no Código de Hamurabi.”

(2012, p. 21). Menciona também que:

Num mundo essencialmente agrário como era composto na Idade Antiga, rudimentos associativos começam a se organizar a partir de legislações elaboradas na Roma antiga. As terras eram exploradas por agricultores e comunheiros que geravam serviços a terceiros e colhiam seus frutos, contribuindo para o desenvolvimento econômico quando das interposições de trocas realizadas. O chefe da família (pater familias) agrupava parentes e amigos nestas atividades, gerando uma primeira ideia associativa que prosseguia na exploração de uma propriedade comum indivisa, após a sua morte. Com o advento da Lei das XII Tábuas, foi permitido ao herdeiro solicitar a partilha judicial da herança de forma que cada qual pudesse receber o seu quinhão. Todavia, mesmo após partilhados os bens, viram os herdeiros a necessidade econômica de se associarem de forma consensual e voluntária para melhor explorarem o objeto da herança e as propriedades de forma comum, maximizando os resultados, nascendo aí a sociedade (societas) como conhecemos, através de associações de todos os gêneros e com os mais diversos objetivos. Na Idade Média, apesar de ainda o direito comercial estar fragmentado em múltiplas legislações particulares e adstrito aos sistemas de direito civil, perdendo maleabilidade em razão de sua imprecisão e forma de interpretação, prosperava o tráfico mercantil, principalmente nas cidades costeiras do Mediterrâneo e de Flandres, o que acabou por contribuir para a formação de outro ramo do direito privado destinado a disciplinar as relações profissionais entre comerciantes, denominado direito comercial, com características próprias de profissionalismo, corporativismo, autonomia, consuetudinarismo e internacionalismo. As corporações de ofícios passaram a ter estatutos escritos que consagravam práticas mercantis tradicionais e possuíam o privilégio da

8

jurisdição própria, consules mercatorum, que julgava os litígios dos membros da corporação de acordo com o direito estatutário e os usos do comércio à luz da equidade. As sociedades marítimas também tiveram crescimento e eram voltadas para as mais diversas finalidades exploratórias de novos mercados ou de terras, além das usuais relacionadas às interposições de trocas entre regiões cobertas pelas linhas navegáveis. Desenvolvem-se as principais características da sociedade, como a distinção patrimonial e a criação de sociedades de capital, afastando-se da primazia do elemento intuitu personae para a pessoa dos sócios que até então era escolhido com base nas suas aptidões e características pessoais e/ou familiares e de amizade. As sociedades por ações surgiram por volta de 1409 em Genova com a Casa di San Giorgio, que deu origem ao Banco de São Jorge, o qual funcionou como sociedade por ações até 1826 quando se extinguiu. Do ano de 1553 há relatos sobre a criação de uma sociedade por ações de origem inglesa denominada Moscovy Companie. A Companhia Holandesa das Índias Orientais foi criada por volta de 1602 e a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, por volta de 1621, ambas a partir de seu capital dividido em ações e com objetivos exploratórios do Novo Mundo e mercantilistas. As Ordenações Filipinas de 1603 regulamentavam sociedades e tipos sociais. Este ambiente regulatório que contribuiu para o fomento da atividade comercial e sacramentação de seus elementos corporativistas acabou por sofrer impacto de condicionantes políticos decorrentes do fortalecimento do poder real e do princípio de soberania, com a centralização nos Estados, das fontes do direito. Assim é que surgem as ordonnances, ordenanças francesas na época de Luís XIV que compilavam os direitos: marítimo (ano de 1681), mercantil e terrestre (ano de 1673). Com a Revolução Francesa, foi proclamada a plena liberdade no exercício do comércio, com reflexos nas sociedades pela supressão do direito comercial como um direito de classe, transpondo-se a visão de direito de comerciante para uma doutrina calcada em atos de comércio objetivos em que a natureza da operação ou a matéria relacionada ao negócio jurídico é que dispõe se o regime jurídico aplicável será ou não comercial. Foi, aliás, o Código Comercial Francês (Código Napoleônico), do ano de 1807, dotado desta concepção objetivista de atos de comércio, o modelo adotado por vários países da Europa (Espanha, Portugal, Itália, Bélgica) ao codificar o direito mercantil. (FILHO, 2012, p. 21/22).

Segundo Filho (2012, p. 23), as sociedades de

responsabilidade limitada surgiram em contraposição ao princípio da

responsabilidade solidária e ilimitada de sócios frente as obrigações contraídas em

razão da atividade da sociedade, vejamos:

Como contraponto ao princípio da responsabilidade solidária e ilimitada de sócios em face das obrigações contraídas pela sociedade, como era comum nos tipos sociais até então existentes, a sociedade de responsabilidade limitada surgiu com dupla finalidade básica: a) fomentar a atividade mercantil por meio da atração dos interessados para que estes operassem suas atividades sob um novo tipo social mais adequado e menos complexo do que as sociedades por ações no tocante à sua estruturação orgânica e de gestão.

9

b) Limitar, indistintamente da integralização do capital social, a responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais contraídas.

Afirma também que:

Remontando às origens deste tipo social, não se pode deixar de apresentar, ainda que em breves notas, a contribuição do direito inglês para com o lineamento básico estrutural das sociedades por cotas de responsabilidade limitada nos moldes como adotado em vários países do mundo. A private company ou private partnership de origem inglesa teve grande influência na idealização da sociedade de responsabilidade limitada. (FILHO, 2012, p. 24 apud PEIXOTO, 1958)

Segundo Fabio Ulhoa Coelho (2012, p. 331/332), a sociedade

limitada tem uma história pequena e pobre:

A sociedade limitada — anteriormente chamada sociedade por quotas de responsabilidade limitada — tem uma história pequena e pobre. Sua criação é, em relação às demais sociedades, recente, e decorre da iniciativa de parlamentares, para atender ao interesse de pequenos e médios empreendedores, que queriam beneficiar-se, na exploração de atividade econômica, da limitação da responsabilidade típica das anônimas, mas sem atender às complexas formalidades destas, nem se sujeitar à prévia autorização governamental. Registra-se que as primeiras tentativas de albergar esse interesse traduziram-se em regras de simplificação das sociedades por ações. Na Inglaterra, a limited by shares, referida no Companies Act de 1862, e, em França, a société à responsabilité limitée, de 1863, mais que tipos novos de sociedade, são exemplos de um verdadeiro subtipo da anônima, ajustado a empreendimentos que não reclamam elevadas somas de recursos. No Brasil, o projeto do Ministro da Justiça Nabuco de Araújo, de 1865, tentou criar essa sociedade por ações simplificada, sob o nome de sociedade de responsabilidade limitada, mas a propositura não recebeu o apoio do Conselho de Estado, e foi rejeitada, em 1867, pelo Imperador D. Pedro II. A sociedade limitada, como um tipo próprio de organização societária, e não como uma sociedade anônima simplificada, surge na Alemanha, em 1892. Nascida de iniciativa parlamentar (ao contrário da generalidade dos demais tipos de sociedade, cuja organização de fato precede a disciplina normativa), a Gesellschaft mit beschränkter Haftung corresponde de tal forma aos anseios do médio empresariado que a iniciativa alemã se propaga, e inspira os direitos de vários outros países. Entre eles, o Brasil, que a adota, em 1919, por meio de decreto cujo texto era a condensação de um capítulo do projeto de Código Comercial de Inglês de Souza, de 1912 (cf., por todos, Martins, 1960:13/21 e 245/256).

Segundo Filho (2012, p. 56 apud LUCENA, 1996) o Brasil

legislou sobre a criação da sociedade limitada através do Decreto n. 3708 de

10/1/1919 e expõe que:

10

É oportuno apresentar o fato histórico de que no ano de 1865 houve uma primeira iniciativa de se inserir um tipo social de responsabilidade limitada no País por meio do projeto de lavra do Conselheiro José Thomaz Nabuco de Araújo, que acabou por ser rejeitado pelo Imperador por meio da Resolução de 24 de abril de 1867. Na realidade, este primeiro esforço histórico para a criação de um tipo social não deve ser confundido com o resultado obtido pelo Decreto n. 3.708/19. A rigor, a sociedade preconizada no projeto apresentado pelo Conselheiro Nabuco referia-se a uma sociedade anônima livre, enquanto que a sociedade estabelecida pelo decreto mencionado criava um tipo social autônomo e com características próprias (LUCENA, 1996). A sociedade de responsabilidade limitada, como modelo específico e próximo daquele estabelecido na Alemanha e em Portugal, somente foi apresentada no Brasil quando da elaboração do projeto de revisão do Código Comercial de 1912, formulado pelo Prof. Herculano Inglêz de Souza. Contudo, os dispositivos que tratavam deste novo tipo social neste projeto de Código Comercial que se demorava a tramitar, de nítida inspiração alemã e portuguesa como mencionado, serviram de inspiração para o projeto apresentado pelo Deputado Joaquim Luís Osório, em 20 de setembro de 1918, que objetivava inserir no ordenamento jurídico nacional o tipo social denominado sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Assim é que, após uma rápida tramitação no Congresso, foi o projeto aprovado e sancionado como Decreto n. 3.708 de 10 de janeiro de 1919. Cumpre notar que este decreto possuía tão só 18 (dezoito) artigos, muito embora claramente inspirado na lei alemã de 20 de abril de 1892, que possuía 82 (oitenta e dois) artigos, e na lei portuguesa de 11 de abril de 1901, que possuía 65 (sessenta e cinco) artigos. A escassez de previsão legislativa da lei brasileira não interferiu que a sociedade por quotas de responsabilidade limitada tivesse uma notável recepção por parte daqueles que resolveram operar por meio deste tipo social, representando na atualidade a quase totalidade das empresas registradas nos órgãos registrários do país.

Com esta breve exposição, é possível ter uma noção dos

motivos que levaram à criação da pessoa jurídica na modalidade de sociedade

limitada, dotada de direitos e obrigações, sendo antigo o reconhecimento desta

função devido aos interesses patrimoniais das pessoas naturais, que, em última

análise, motivaram a idealização da pessoa jurídica, firmando-se ao longo do tempo,

o princípio da autonomia ou separação de patrimônio exercido tanto pela pessoa

natural quanto pela sociedade limitada, que hoje é regulamentada nos art. 1052 a

1087 do Código Civil de 2002 (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002) que entrou em

vigor no dia 11 de janeiro de 2003.

11

3. COMEÇO DA EXISTÊNCIA DA PESSOA JURÍDICA Na forma do CC de 2002, art. 45:

Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

O CC de 2002, art. 985, dispõe que “a sociedade adquire

personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos

seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).”

Já o art. 1.150 do CC de 2002, assim disciplina:

O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária.

Segundo Adalberto Simão Filho (2012, p. 26), “a aquisição da

personalidade jurídica da sociedade decorre de lei que lhe confere capacitações e

atributos especiais de maneira tal que esta possa equiparar-se, para certos assuntos

e direitos, às pessoas naturais.” Dispõe ainda que:

A teoria da ficção que até então regia a ideia da assunção de direitos e obrigações da pessoa jurídica a partir de seu nascimento passa a ser vista de forma mais abrangente e realista, pois não se pode deixar de compreender que, se uma sociedade passa a agir e interagir com terceiros de forma real e eficaz de tal maneira que influi no próprio destino de uma nação, esta e suas condutas sejam apenas vistas como ficção jurídica. Trata-se assim de uma visão que pode levar a uma teoria/realidade, não mais ficcional, para a intelecção da personificação e de seus efeitos. A personificação decorre do registro dos atos constitutivos da sociedade nos órgãos registrários próprios a depender de seu gênero e natureza (art. 985). Basicamente, os efeitos decorrentes do registro do contrato social e da criação da personalidade jurídica podem ser sintetizados da seguinte forma: capacidade para a aquisição de direitos e obrigações; distinção patrimonial, não mais se confundindo o patrimônio social com o patrimônio dos sócios; distinção entre a existência da sociedade e a pessoa dos sócios, que não mais se confundem; direito de modificação de sua estrutura orgânica e societária por meio de alteração contratual, inclusive relativa ao tipo social, capital, objeto etc. (2012, p. 26/27).

12

O mesmo doutrinador defende que “no Brasil o sistema

legislativo prevê a existência de dois grandes grupos de sociedades compostos das

sociedades não personificadas e das sociedades personificadas.” (FILHO, 2012, p.

27).

Fabio Ulhoa Coelho (2012, p. 17) ensina que:

Há direitos, como o do Reino Unido (Farrar-Hannigan, 1985:79/81), que associam a personalização da sociedade à limitação da responsabilidade dos sócios. Para tais sistemas, as sociedades em que os sócios respondem integralmente pelas obrigações sociais são despersonalizadas. Em outras ordens jurídicas, inclusive a brasileira, não existe necessária correlação entre esses dois temas societários. A personalização da sociedade não está ligada sempre à limitação da responsabilidade dos seus integrantes. Quer dizer, há no Brasil sociedades personalizadas em que sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais (p. ex., a sociedade empresária em nome coletivo), assim como há uma hipótese de articulação de esforços despersonalizada, em que os participantes podem responder dentro de um limite (o sócio participante da conta de participação, se assim previsto em contrato). As sociedades empresárias são sempre personalizadas, ou seja, são pessoas distintas dos sócios, titularizam seus próprios direitos e obrigações (a conta de participação não é, a rigor, sociedade, mas um contrato de investimento comum que a lei preferiu chamar de sociedade: Cap. 33, item 4). O estudo das sociedades empresárias, por isso, convém seja iniciado pelo da teoria das pessoas jurídicas.

Sobre a natureza jurídica e o conceito da pessoa jurídica,

segundo o mesmo autor (2012, p. 19/20):

É comum, na doutrina comercialista, evitar a discussão acerca do conceito e da natureza da pessoa jurídica. Para alguns autores, o exame do complicado tema não é imprescindível à compreensão do direito positivo aplicável às sociedades (Requião, 1971, 1:278/279); para outros, tal exame pertence a capítulos distintos do conhecimento jurídico, como o direito civil ou a filosofia do direito (Borges, 1959:267). Não deixam de ter razão, em certo sentido. Observo, porém, que parte da crise em que se encontra o princípio da autonomia patrimonial, nos tempos que correm (item 2.5), talvez possa ser creditada à desqualificação doutrinária da discussão, à diluição da compreensão global do instituto, entre os tecnólogos do direito societário. Começo pela natureza: muitas foram as soluções tentadas pelos teóricos para organizar o argumento da questão ontológica da pessoa jurídica. Essas soluções dividem-se, fundamentalmente, em duas. De um lado, as teorias pré-normativistas, que consideram as pessoas jurídicas seres de existência anterior e independente da ordem jurídica. Para os seus adeptos, a disciplina legal da pessoa jurídica é mero reconhecimento de algo preexistente, que a ordem positiva não teria como ignorar. Segundo entendem, além do ser humano, também elas se apresentam ao direito como realidades incontestáveis, como os reais sujeitos das ações dotadas de significado jurídico. De outro lado, encontram-se as teorias normativistas sustentando o oposto, isto é, as pessoas jurídicas como criação do direito. Fora da previsão legal correspondente, não se as encontram em nenhum

13

lugar. No primeiro grupo, estão a teoria “orgânica” e a da “realidade objetiva”; no segundo, a da “ficção” e a da “realidade jurídica” (Ferrara, 1921:346/348 e 359; Beviláqua, 1908:258). A doutrina pré-normativista tende a considerar a natureza das pessoas jurídicas como semelhante à dos homens. Há, inclusive, discussão acerca do gênero da semelhança, se por analogia proporcional ou por atribuição (Oliveira, 1979:16/20). Ao seu turno, a normativista tende a contrapor a intangibilidade das pessoas jurídicas à realidade dos seres humanos. Nesse contexto, ressalta-se a importante e curiosa contribuição de Kelsen, que, sendo inegavelmente um normativista, não vislumbra diferença nenhuma entre as duas espécies de pessoas, a física e a jurídica. Para ele, são ambas conceitos auxiliares da ciência do direito; instrumentos para facilitar a descrição de complexas normas jurídicas. O homem, para a ordem positiva, não é necessariamente titular de direitos e obrigações, e a escravidão demonstra que a natureza humana não força determinada solução jurídica. Quer dizer, também a pessoa física é simples criação do direito (1960:242). Outro normativista, Tullio Ascarelli, considera a pessoa jurídica a síntese de um conjunto de disposições legais, o resumo de uma disciplina; seria uma noção destinada apenas a facilitar a referência a regras jurídicas complexas e esparsas (1959:235/270; Comparato, 1977:256/261). As concepções kelseniana e ascarelliana apontam o caminho para a solução da questão. Os interesses dos seres humanos — dos “nascidos do ventre de uma mulher”, como diz Ascarelli, para afastar a menor possibilidade de dúvida acerca do que se está falando —, na complexa sociedade dos nossos tempos, compõem-se a partir de regras positivadas, isto é, legitimadas pela forma de sua criação e aplicação. Ao se referirem às pessoas jurídicas, essas regras não se reportam a nenhuma realidade preexistente, mas apenas indicam como determinados conflitos de interesse devem ser superados. No final, o que está em jogo, nas questões relativas a pessoas jurídicas, é sempre a distribuição de bens entre indivíduos: quem usufrui o quê. A natureza das pessoas jurídicas, assim, é a de uma ideia, cujo sentido é partilhado pelos membros da comunidade jurídica, que a utilizam na composição de interesses (Coelho, 1989:72/74).

Com essa breve exposição doutrinária, é possível ter uma

noção sobre a personificação das pessoas jurídicas no direito brasileiro.

Na sequência passaremos ao ponto central da presente

pesquisa, iniciando-o com a análise do princípio da autonomia patrimonial e

responsabilidade dos sócios e administradores integrantes da sociedade limitada.

14

4. AUTONOMIA PATRIMONIAL DA PESSOA JURÍDICA NA MODALIDADE DE SOCIEDADE LIMITADA

Na forma do Código Civil de 2002, art. 1.052, “na sociedade

limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas

todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.”

Em regra, os sócios não devem responder, com seu patrimônio pessoal, pelas dívidas da sociedade. Esta, por ser pessoa jurídica a quem o ordenamento jurídico confere existência própria, possui, em consequência, responsabilidade patrimonial própria. Trata-se do chamado princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. (RAMOS, 2009, p. 358).

Conforme estabelece o Código Civil de 2002, art. 1.024, “os

bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade,

senão depois de executados os bens sociais.”.

Com efeito, o princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, consagrado no art. 1.024 do CC, constitui-se numa importantíssima ferramenta jurídica de incentivo ao empreendedorismo, na medida em que consagra a limitação de responsabilidade – a depender do tipo societário adotado – e, consequentemente, atua como importante redutor do risco empresarial. (RAMOS, 2009, p. 323).

A mais importante característica de uma sociedade é sem dúvida a autonomia patrimonial, isto, é a existência de um patrimônio próprio, o qual responde por suas obrigações, o que não significa um distanciamento completo da pessoa dos sócios, visto que a pessoa jurídica é expressão também do patrimônio dos sócios. Nos débitos trabalhistas, fiscais e para com o consumidor tem-se mitigado a autonomia patrimonial, atendendo a certos pressupostos erigidos pelo legislador como aptos a suspender a autonomia patrimonial. (TOMAZETTE, 2003, p. 62)

Nos termos do CC de 2002, art. 1.052 “na sociedade limitada, a

responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos

respondem solidariamente pela integralização do capital social.”

Segundo Coelho (2012, p. 365), “a personalização da

sociedade limitada implica a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus

membros. Sócio e sociedade são sujeitos distintos, com seus próprios direitos e

deveres.” Afirma ainda:

15

As obrigações de um, portanto, não se podem imputar ao outro. Desse modo, a regra é a da irresponsabilidade dos sócios da sociedade limitada pelas dívidas sociais. Isto é, os sócios respondem apenas pelo valor das quotas com que se comprometem, no contrato social (CC, art. 1.052). É esse o limite de sua responsabilidade.

Segundo Coelho (2012, p. 365/366), a justificativa para a

limitação da responsabilidade dos sócios, na sociedade limitada, corresponde a

regra jurídica de estímulo à exploração das atividades econômicas, vejamos:

À limitação da responsabilidade dos sócios, na limitada, corresponde a regra jurídica de estímulo à exploração das atividades econômicas. Seu beneficiário indireto e último é o próprio consumidor. De fato, poucas pessoas — ou nenhuma — dedicar-se-iam a organizar novas empresas se o insucesso da iniciativa pudesse redundar a perda de todo o patrimônio, amealhado ao longo de anos de trabalho e investimento, de uma ou mais gerações. A limitação da responsabilidade do empreendedor ao montante investido na empresa é condição jurídica indispensável, na ordem capitalista, à disciplina da atividade de produção e circulação de bens ou serviços. Sem essa proteção patrimonial, os empreendedores canalizariam seus esforços e capitais a empreendimentos já consolidados. Os novos produtos e serviços somente conseguiriam atrair o interesse dos capitalistas se acenassem com altíssima rentabilidade, compensatória do risco de perda de todos os bens. Isso significa, em outros termos, que o preço das inovações, para o consumidor, acabaria sendo muito maior do que costuma ser, sob a égide da regra da limitação da responsabilidade dos sócios, já que esses preços deveriam cobrir custos e gerar lucros extraordinários, capazes de remunerar o risco de perda total do patrimônio, a que se expôs o empreendedor. A limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais é, em suma, direito-custo (Cap. 2, itens 3 e 4). (...) Nesse sentido, quem negocia com uma sociedade limitada, concedendo-lhe crédito, deve calcular o seu risco — e as correspondentes taxas remuneratórias — levando em conta que a garantia de recuperação é representada, em princípio, apenas pelo patrimônio da sociedade. Se considerar muito elevado o risco, o concedente do crédito poderá condicioná-lo ao reforço das garantias — que se viabiliza, via de regra, pela coobrigação dos sócios, mediante fiança ou aval, dados em favor da sociedade. De qualquer forma, não existindo a coobrigação do sócio, o credor da sociedade limitada somente poderá satisfazer o seu crédito no patrimônio da pessoa jurídica. Nesse contexto, quando o banco abre crédito à sociedade limitada, pode cobrar juros mais elevados (remunerando seu capital de modo a absorver eventuais perdas), ou exigir garantia pessoal dos sócios. Optando pela primeira, a limitação da responsabilidade dos sócios não representa nenhuma lesão aos interesses do banco, que já recuperou indiretamente o crédito, por meio da taxa de risco. Nesse quadro, o sujeito que negocia com a sociedade limitada sabe — ou deve saber — que tem apenas o patrimônio social por garantia; se negocia mal, deixando de considerar, nos seus preços (se banco, nos seus juros), uma taxa de risco compatível com a limitação da responsabilidade dos sócios, então deve sofrer as consequências de sua imprevidência. A quebra da sociedade será perda do credor. Desse modo, socializa-se, por assim dizer, a sempre presente possibilidade de insucesso das atividades

16

econômicas. E, na medida em que podem, ao compor seus preços, embutir uma taxa de risco, os credores com plenas condições de negociar seus créditos (atacadista, fornecedor de insumos, banco etc.) não são lesados pela limitação da responsabilidade dos sócios. Diferente, por outro lado, é a situação dos credores não negociais, aqueles que não têm meios de formar seus preços, agregando-lhes qualquer taxa de risco. Falo do fisco, INSS, trabalhadores e titulares do direito de indenização (inclusive o consumidor). Para essa categoria de credores sociais, a limitação da responsabilidade dos sócios representa, normalmente, prejuízo, porque eles não dispõem dos mesmos instrumentos de negociação dos credores negociais para se preservarem da insolvência da sociedade empresária.

Em ilustrativo exemplo, Coelho explica que:

O limite da responsabilidade dos sócios pelas obrigações da limitada é o total do capital social subscrito e não integralizado (CC, art. 1.052). Se Antonio, Benedito e Carlos contratam uma sociedade limitada, com capital subscrito de R$ 100.000,00, arcando, respectivamente, com 50%, 30% e 20% desse valor, cada um deles é responsável pela soma das quantias não integralizadas. Se Antonio integraliza R$ 30.000,00 (de sua quota de R$ 50.000,00), Benedito, R$ 20.000,00 (da quota de R$ 30.000,00), e Carlos também R$ 20.000,00, então o total do devido à sociedade pelos sócios é R$ 30.000,00. Esse é o montante que os credores da sociedade podem cobrar, do sócio, para a satisfação de seus direitos creditícios. Se o executado é Antonio, ele paga R$ 30.000,00 e tem direito de regresso, contra Benedito, por R$ 10.000,00; se a execução é dirigida contra Benedito, ele responde por R$ 30.000,00, e, regressivamente, cobra R$ 20.000,00 de Antonio; se, por fim, executa-se Carlos, ele, embora tenha já integralizado totalmente a respectiva quota, será também responsabilizado por R$ 30.000,00, e poderá regressar contra Antonio, por R$ 20.000,00, e, contra Benedito, por R$ 10.000,00. (2012, p. 367).

Almeida (2012, p. 130 apud Rubens Requião) afirma que:

Na objetiva advertência de Rubens Requião: “A limitação da responsabilidade do sócio não equivale à declaração de sua irresponsabilidade em face dos negócios sociais e de terceiros. Deve ele ater-se, naturalmente, ao estado de direito que as normas legais traçam, na disciplina do determinado tipo de sociedade de que se trate. Ultrapassando os preceitos da legalidade, praticando atos como sócio, contrários à lei ou ao contrato, tornam-se pessoal e ilimitadamente responsáveis pelas consequências de tais atos”.

Portanto, de acordo com a citada doutrina, o princípio da

autonomia patrimonial da pessoa jurídica constituída na forma de sociedade limitada

tem expressa previsão e proteção legal, tudo em benefício de assegurar o

empreendedorismo e fomentar a atividade econômica em nosso país.

17

Contudo, como ficará demonstrado na sequência, algumas

pessoas naturais utilizam-se do princípio da autonomia patrimonial da sociedade

limitada para beneficiarem-se em prejuízo de terceiros, e visando coibir tal situação,

desenvolveu-se, no decorrer de séculos, a teoria da desconsideração da

personalidade jurídica.

18

5. EVOLUÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Em elucidativa introdução sobre a teoria da desconsideração

da personalidade jurídica, Coelho (2012, p. 44) afirma que:

Em razão do princípio da autonomia patrimonial, as sociedades empresárias podem ser utilizadas como instrumento para a realização de fraude contra os credores ou mesmo abuso de direito. Na medida em que é a sociedade o sujeito titular dos direitos e devedor das obrigações, e não os seus sócios, muitas vezes os interesses dos credores ou terceiros são indevidamente frustrados por manipulações na constituição de pessoas jurídicas, celebração dos mais variados contratos empresariais, ou mesmo realização de operações societárias, como as de incorporação, fusão, cisão. Nesses casos, alguns envolvendo elevado grau de sofisticação jurídica, a consideração da autonomia da pessoa jurídica importa a impossibilidade de correção da fraude ou do abuso. Quer dizer, em determinadas situações, ao se prestigiar o princípio da autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpetrado pelo sócio permanece oculto, resguardado pela licitude da conduta da sociedade empresária. Somente se revela a irregularidade se o juiz, nessas situações (quer dizer, especificamente no julgamento do caso), não respeitar esse princípio, desconsiderá-lo. Desse modo, como pressuposto da repressão a certos tipos de ilícitos, justifica-se episodicamente a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária.

Sobre a evolução da teoria da desconsideração, o mesmo

autor (2012, p. 47) expõe que:

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica é uma elaboração doutrinária recente. Pode-se considerar Rolf Serick o seu principal sistematizador, na tese de doutorado defendida perante a Universidade de Tubigen, em 1953. É certo que, antes dele, alguns outros autores já se haviam dedicado ao tema, como, por exemplo, Maurice Wormser, nos anos 1910 e 1920. Mas não se encontra claramente nos estudos precursores a motivação central de Serick de buscar definir, em especial a partir da jurisprudência norte-americana, os critérios gerais que autorizam o afastamento da autonomia das pessoas jurídicas (1955). O resultado da pesquisa conduziu-o à formulação de quatro princípios. O primeiro afirma que “o juiz, diante de abuso da forma da pessoa jurídica, pode, para impedir a realização do ilícito, desconsiderar o princípio da separação entre sócio e pessoa jurídica”. Entende Serick por abuso da forma qualquer ato que, por meio do instrumento da pessoa jurídica, vise frustrar a aplicação da lei ou o cumprimento de obrigação contratual, ou, ainda, prejudicar terceiros de modo fraudulento (1955:276). Ressalta, também, que não se admite a desconsideração sem a presença desse abuso, mesmo que para a proteção da boa-fé. O segundo princípio da teoria da desconsideração circunscreve, com mais precisão, as hipóteses em que a autonomia deve ser preservada. Afirma que “não é possível desconsiderar a autonomia subjetiva da pessoa jurídica apenas porque o objetivo de uma norma ou a causa de um negócio não foram atendidos”. Em outros termos, não basta a simples prova da insatisfação de direito de credor da sociedade para justificar a desconsideração. De acordo com o terceiro princípio,

19

“aplicam-se à pessoa jurídica as normas sobre capacidade ou valor humano, se não houver contradição entre os objetivos destas e a função daquela. Em tal hipótese, para atendimento dos pressupostos da norma, levam-se em conta as pessoas físicas que agiram pela pessoa jurídica”. É este o critério recomendado para resolver questões como a nacionalidade ou raça de sociedades empresárias. O derradeiro princípio sustenta que, “se as partes de um negócio jurídico não podem ser consideradas um único sujeito apenas em razão da forma da pessoa jurídica, cabe desconsiderá-la para aplicação de norma cujo pressuposto seja diferenciação real entre aquelas partes”. Quer dizer, se a lei prevê determinada disciplina para os negócios entre dois sujeitos distintos, cabe desconsiderar a autonomia da pessoa jurídica que o realiza com um de seus membros para afastar essa disciplina (1955:275/295)

De acordo com Ramos (2009, p. 324/325 apud Rubens

Requião, 1971):

A disregard doctrine é fruto de construção jurisprudencial, notadamente a jurisprudência inglesa e norte-americana. Com efeito, a doutrina comercialista aponta que o caso pioneiro acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ocorreu na Inglaterra, em 1897. Trata-se do caso Solomon versus Solomon & Co. Ltd., cuja transcrição mais detalhada, no Brasil, talvez esteja na obra de Rubens Requião. No caso em referência, a sentença de 1º grau entendeu pela possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da Salomon & Co. Ltd., após reconhecer que Mr. Salomon tinha, na verdade, o total controle societário sobre a sociedade, não se justificando a separação patrimonial entre ele e a pessoa jurídica. Essa decisão é considerada, pois, a grande precursora da desconsideração, não obstante tenha sido posteriormente reformada pela Casa dos Lords, a qual entendeu pela impossibilidade de desconsideração, fazendo prevalecer a separação entre os patrimônios de Mr. Salomon e de sua sociedade e, consequentemente, a sua irresponsabilidade pessoal pelas dívidas sociais. A Casa dos Lords reformou, unanimemente, esse entendimento [pela desconsideração], julgando que a company havia sido validamente constituída (...) Mas a tese das decisões reformadas das instâncias inferiores repercutiu, dando origem à doutrina do disregard of legal entily, sobretudo nos Estados Unidos, onde se formou larga jurisprudência, expandindo-se mais recentemente na Alemanha e em outros países europeus.

Coelho (2012, p. 48) afirma ainda:

A teoria da desconsideração da pessoa jurídica, é necessário deixar bem claro esse aspecto, não é uma teoria contra a separação subjetiva entre a sociedade empresária e seus sócios. Muito ao contrário, ela visa preservar o instituto, em seus contornos fundamentais, diante da possibilidade de o desvirtuamento vir a comprometê-lo. Isto é, a inexistência de um critério de orientação, a partir do qual os julgadores pudessem reprimir fraudes e abusos perpetrados através da autonomia patrimonial, poderia eventualmente redundar no questionamento do próprio instituto, e não do seu uso indevido. Esse critério é fornecido pela teoria da desconsideração, que, assim, contribui para o aprimoramento da disciplina da pessoa jurídica

20

Logo, de acordo com a doutrina, a teoria da desconsideração

da personalidade jurídica foi idealizada na Inglaterra, em 1987, no caso Solomon

versus Solomon & Co. Ltd.

Assim, vencida a parte introdutória sobre a origem da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica, na sequência farei uma breve exposição

sobre os dispositivos presentes no nosso ordenamento jurídica que, de alguma

forma, autorizam a desconsideração da personalidade jurídica. Após tratarei

objetivamente dos fundamentos estabelecidos no Código Civil, art. 50.

21

6. FUNDAMENTO E EFEITOS DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA A positivação da teoria da desconsideração no direito brasileiro

está esparsa em diversas normas, como por exemplo na Lei 8.078/1990 (Código de

Defesa do Consumidor), art. 28, § 5o; Lei 9605/1998, art. 4o., e Lei 12.529/2011, art.

34, § único; vejamos:

Lei nº. 8.078/1990 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Lei 9605/1998 Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. Lei 12.529/2011 Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Segundo Tomazette (2003, p. 84), se referindo aos dispositivos

anteriores a Lei 12.529/2011, “sem uma precisão desejável, tais dispositivos embora

desprovidos da melhor técnica, por confundirem institutos diversos, acolhem ainda

que de maneira confusa a desconsideração no direito brasileiro.”

Coelho (2012, p. 59), em severa crítica ao Código de Defesa do

Consumidor, art. 28, assim dispõe:

No direito brasileiro, o primeiro dispositivo legal a se referir à desconsideração da personalidade jurídica é o Código de Defesa do Consumidor, no art. 28. Contudo, tais são os desacertos do dispositivo em questão que pouca correspondência se pode identificar entre ele e a elaboração doutrinária da teoria. Com efeito, entre os fundamentos legais da desconsideração em benefício dos consumidores, encontram-se hipóteses caracterizadoras de responsabilização de administrador que não

22

pressupõem nenhum superamento da forma da pessoa jurídica. Por outro lado, omite-se a fraude, principal fundamento para a desconsideração. A dissonância entre o texto da lei e a doutrina nenhum proveito traz à tutela dos consumidores, ao contrário, é fonte de incertezas e equívocos.

Segundo o mesmo autor (2012, p.50), “pela teoria da

desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar as regras de separação patrimonial

entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso

concreto, porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à manipulação de

tais regras.” Expõe ainda que:

Não seria possível a coibição se respeitada a autonomia da sociedade. Note-se, a decisão judicial que desconsidera a personalidade jurídica da sociedade não desfaz o seu ato constitutivo, não o invalida, nem importa a sua dissolução. Trata, apenas e rigorosamente, de suspensão episódica da eficácia desse ato. Quer dizer, a constituição da pessoa jurídica não produz efeitos apenas no caso em julgamento, permanecendo válida e inteiramente eficaz para todos os outros fins. (COELHO, 2012, p. 50).

O mesmo autor afirma que:

A teoria da desconsideração elegeu como pressuposto para o afastamento da autonomia patrimonial da sociedade empresária o uso fraudulento ou abusivo do instituto. Cuida-se, desse modo, de uma formulação subjetiva, que dá destaque ao intuito do sócio ou administrador, voltado à frustração de legítimo interesse de credor. Não se pode, entretanto, deixar de reconhecer as dificuldades que essa formulação apresenta no campo das provas. Quando ao demandante se impõe o ônus de provar intenções subjetivas do demandado, isso muitas vezes importa a inacessibilidade ao próprio direito, em razão da complexidade de provas dessa natureza. Assim, para facilitar a tutela de alguns direitos, preocupa-se a ordem jurídica, ou mesmo a doutrina, em estabelecer presunções ou inversões do ônus probatório. No campo da teoria da desconsideração, essa preocupação revela-se na formulação objetiva proposta, por exemplo, por Fábio Konder Comparato (1977:283). Segundo a formulação objetiva, o pressuposto da desconsideração se encontra, fundamentalmente, na confusão patrimonial. Se, a partir da escrituração contábil, ou da movimentação de contas de depósito bancário, percebe-se que a sociedade paga dívidas do sócio, ou este recebe créditos dela, ou o inverso, então não há suficiente distinção, no plano patrimonial, entre as pessoas. Outro indicativo eloquente de confusão, a ensejar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, é a existência de bens de sócio registrados em nome da sociedade, e vice-versa. Ao eleger a confusão patrimonial como o pressuposto da desconsideração, a formulação objetiva visa realmente facilitar a tutela dos interesses de credores ou terceiros lesados pelo uso fraudulento do princípio da autonomia. Mas, ressalte-se, ela não exaure as hipóteses em que cabe a desconsideração, na medida em que nem todas as fraudes se traduzem em confusão patrimonial. Em suma, entendo que a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotada como o critério para circunscrever a

23

moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é a mais ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua vez, deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante. Quer dizer, deve-se presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de confusão patrimonial, se caracterizada, por outro modo, a fraude. (COELHO, 2012, p. 53).

Quanto as chamadas teoria menor e teoria maior da

desconsideração, que nos dias de hoje ainda é citada por alguns doutrinadores e

julgados, Coelho afirma que:

Em 1999, quando era significativa a quantidade de decisões judiciais desvirtuando a teoria da desconsideração, cheguei a chamar sua aplicação incorreta de “teoria menor”, reservando à correta a expressão “teoria maior”. Mas a evolução do tema na jurisprudência brasileira não permite mais falar-se em duas teorias distintas, razão pela qual esses conceitos de “maior” e “menor” mostram-se, agora, felizmente, ultrapassados. (COELHO, 2012, p. 55) [grifo meu]

Ao analisarmos a jurisprudência do Superior Tribunal de

Justiça, identificamos o seguinte julgado de lavra do Min. Luiz Felipe Salomão (2013,

Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº. 159889/SP), com base na

chamada teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, vejamos:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 50 DO CC/2002. TEORIA MAIOR. MUDANÇA DE ENDEREÇO DA EMPRESA. INSUFICIÊNCIA. AFERIÇÃO DA PRESENÇA DOS ELEMENTOS AUTORIZADORES DA TEORIA DA DISREGARD DOCTRINE. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. (...) No direito brasileiro, a chamada "teoria menor" da desconsideração da personalidade jurídica, segundo a qual bastaria a insuficiência de bens da sociedade para que os sócios fossem chamados a responder pessoalmente pelo passivo da pessoa jurídica, é adotada, excepcionalmente, por exemplo, no Direito Ambiental (Lei n. 9.605/1998, art. 4º) e no Direito do Consumidor (CDC, art. 28, § 5º). (...) [grifo meu].

Contudo, o objeto da presente pesquisa é a fundamentação da

desconsideração da personalidade jurídica pelo Código Civil Brasileiro, art. 50, que

assim dispõe:

24

Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. [Grifo meu]

Segundo Coelho (2012, p. 62/63):

O Código Civil não contempla nenhum dispositivo com específica referência à “desconsideração da personalidade jurídica”; contempla, porém, uma norma destinada a atender às mesmas preocupações que nortearam a elaboração da disregard doctrine. É o art. 50: (...). A pesquisa da origem desse dispositivo revela que a intenção dos elaboradores do Projeto de Código Civil era a de incorporar, no direito brasileiro, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Enquanto tramitou pela Câmara, o dispositivo teve mais de uma redação, todas elas alvo de críticas variadas. Na tramitação do projeto pelo Senado, aprimorou-se o texto, que passou a ostentar, graças à contribuição de Fábio Konder Comparato, a visão particular desse jurista sobre a matéria (item 2.4). A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica independe de previsão legal. Em qualquer hipótese, mesmo naquelas não abrangidas pelos dispositivos das leis que se reportam ao tema (Código Civil, Lei do Meio Ambiente, Lei Antitruste ou Código de Defesa do Consumidor), está o juiz autorizado a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que ela for fraudulentamente manipulada para frustrar interesse legítimo de credor. Por outro lado, nas situações abrangidas pelo art. 50 do CC e pelos dispositivos que fazem referência à desconsideração, não pode o juiz afastar-se da formulação doutrinária da teoria, isto é, não pode desprezar o instituto da pessoa jurídica apenas em função do desatendimento de um ou mais credores sociais. A melhor interpretação judicial dos artigos de lei sobre a desconsideração (isto é, os arts. 28 e § 5º do CDC, 18 da Lei Antitruste, 4º da Lei do Meio Ambiente e 50 do CC) é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessário à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa jurídica. [grifo meu]

Na opinião de Ramos (2009, p. 331/332):

Ocorre que com a edição do Código Civil de 2002 a teoria da desconsideração recebeu novo tratamento legislativo, e dessa vez o legislador editou dispositivo que reflete, com fidelidade, os ideais originais da disregard doctrine. Com efeito, o art. 50 do CC estabeleceu que (...). Segundo o dispositivo acima transcrito, vê-se que a aplicação da teoria só é permitida em caso de abuso de personalidade jurídica, o que demonstra o seu alinhamento aos ideais da teoria maior da desconsideração. Além disso, o CC previu que o abuso de personalidade pode ser caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, o que atesta a adoção da concepção objetivista da teoria. O art. 50 do CC é, atualmente, a regra matriz acerca da disregard doctrine no direito brasileiro, sendo de aplicação obrigatória, portanto, a todos os casos de desconsideração da personalidade jurídica, com exceção dos referentes às relações de consumo, aos crimes ambientais e às infrações à ordem econômica, os quais, como visto, possuem disciplina

25

normativa própria prevista em leis especiais. Nesse sentido, dispõe o enunciado nº 51 do CJF: “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema”.

Sobre os fundamentos dispostos no Código Civil, art. 50, o

Superior Tribunal de Justiça vem entendendo da seguinte forma:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA. ART. 50 DO NOVO CÓDIGO CIVIL. AFERIÇÃO DA PRESENÇA DOS ELEMENTOS AUTORIZADORES DA MEDIDA. REEXAME DE MATÉRIA DE FATO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. (...) Acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o art. 50 do Novo Código Civil somente autoriza essa medida excepcional quando ocorrerem abusos da sociedade, advindos do desvio de finalidade ou da demonstração de confusão patrimonial. Assim, somente será possível desconsiderar-se a personalidade da pessoa jurídica se presentes os mencionados requisitos. (...) (2013. STJ. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº. 441.231/RJ (2013/0395771-1) DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. 3. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INATIVIDADE. AUSÊNCIA DE BENS PENHORÁVEIS. VIABILIDADE. ARTIGOS ANALISADOS: 50 DO CC/02 E 592, II, DO CPC. (...) Cinge-se a controvérsia a definir se é legal a decretação da desconsideração da personalidade jurídica de empresa, motivada pela inatividade da sociedade empresária, somada à ausência de bens sujeitos à penhora. (...) 2. Da desconsideração da personalidade jurídica e da sua excepcionalidade. 05. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard douctrine) está prevista no art. 50 do CC/02, dispositivo legal que deixa claro, por si só, que a superação da autonomia patrimonial de uma empresa ocorre sempre excepcionalmente, e nunca de forma geral. 06. Nesta seara, observa-se que a desconsideração da personalidade jurídica exige a verificação do preenchimento de pressupostos legais que autorizem a sua aplicação – já que episódica –, quais sejam, o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio da finalidade da pessoa jurídica ou pela confusão patrimonial. 07. Nesse contexto, é necessário que se configure a fraude ou abuso de direito relacionado à autonomia patrimonial para que a mencionada teoria seja aplicada. 08. No âmbito deste Superior Tribunal de Justiça, a desconsideração da personalidade jurídica é admitida em situações excepcionais, pautando-se este Tribunal no entendimento de que, para haver essa desconsideração, as instâncias ordinárias devem concluir pela existência de vícios que configurem abuso de direito, desvio de finalidade ou confusão

26

patrimonial da sociedade com os sócios, requisitos sem os quais a medida torna-se incabível. Nesse sentido: AgRg no REsp 623.837/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS), DJe 17.02.2011; REsp 1.098.712/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe 04.08.2010; REsp 948.117/MS, 3ª Turma, de minha relatoria, DJe 03.08.2010; e REsp 846.331/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 23.03.2010. 09. O fundamento para a decretação da desconsideração da personalidade jurídica na hipótese sub judice é a dissolução irregular da empresa e a ausência de bens possíveis para garantir a execução. 10. O Código Civil no art. 1.130 fixa os procedimentos que devem ser cumpridos para a regular dissolução da sociedade, os quais não obedecidos permitem se reconhecer a irregularidade do ato de encerramento das atividades. 11. Por outro lado, a jurisprudência mais recente desta 3ª Turma caminha no sentido de considerar que o encerramento irregular da empresa constitui importante indício de abuso de personalidade, apto a embasar o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, para se buscar o patrimônio individual de seu sócio. Nesse sentido: REsp 1.259.066/SP, 3ª Turma, de minha relatoria, DJe de 28.06.2012. 12. No julgamento do REsp 1.259.066/SP, esta 3ª Turma entendeu pela possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, pois houve o encerramento da empresa, após sentença condenatória, deixando dívidas pendentes e um credor impedido de satisfazer o seu crédito, diante, também, da ausência de bens penhoráveis da recorrente ou qualquer numerário em seu nome. 13. Naquela oportunidade, ressaltei que se não houve a procura de eventuais credores, em busca da satisfação de seu crédito, anteriormente ao encerramento da pessoa jurídica junto à Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP), não se pode aceitar que houve boa-fé por parte de seu sócio, que pode, inclusive, ter-se valido deste patrimônio para satisfação própria, o que, com efeito, configuraria a confusão patrimonial, também prevista no art. 50 do CC/02. 14. Na hipótese vertente, o Tribunal de origem concluiu, partir da análise das provas constantes dos autos, que é possível vislumbrar a existência de abuso da personalidade jurídica pelos sócios, na medida em que se constatou a paralisação irregular das atividades da empresa e constatação da inexistência de bens passíveis de penhora. 15. A esse respeito, a 1ª Seção deste STJ editou súmula pacificando entendimento de que "presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente" (Súmula 435). 16. Assim, não obstante as insurgências da recorrente contra a desconsideração da sua personalidade jurídica, na hipótese dos autos o Tribunal de origem concluiu, fundamentadamente, pela existência de abuso da personalidade jurídica – mormente em razão do encerramento irregular, na medida em que a empresa paralisou suas atividades, deixando dívidas pendentes e um credor impedido de satisfazer o seu crédito, não havendo bens penhoráveis ou qualquer numerário em seu nome. 17. Conforme destacado no acórdão recorrido, em razão da existência de fortes indícios quanto à existência de abuso da personalidade jurídica, os sócios deverão ser "citados para pagamento da dívida no prazo de três dias, sob pena de penhora, da qual serão intimados, podendo oferecer impugnação" (e-STJ fl. 205). 18. Por esses fundamentos, o acórdão recorrido não merece reforma. Forte nessas razões, NEGO PROVIMENTO ao recurso especial.

27

Portanto, como é possível concluir, de acordo com a

jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e opinião doutrinária, a teoria da

desconsideração da personalidade jurídica foi integrada ao ordenamento jurídico,

também pelo Código Civil de 2002, art. 50. O fato que autoriza a aplicação da norma

é o abuso da personalidade jurídica, que é caracterizado pelo desvio de finalidade,

ou pela confusão patrimonial, o que deve ser analisado caso a caso, diante dos

inúmeros fatos que podem caracterizar o desvio de finalidade e confusão

patrimonial. Conclui-se também que os efeitos da aplicação da teoria é a

responsabilização, solidaria e ilimitada, dos sócios e administradores pelas

obrigações sociais.

Contudo, forte controvérsia existe quanto ao procedimento para

aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o que será tratado

na sequência, com a opinião de conceituados doutrinadores e a posição do Superior

Tribunal de Justiça a respeito do tema.

28

7. PROCEDIMENTO PARA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Na forma da Constituição Federal, art. 5º. Incisos LIV e LV:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Da análise das garantias constitucionais, sobre o procedimento

para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, segundo

Ramos (2009, p. 341):

O dispositivo normativo que contém a regra geral acerca da teoria da desconsideração em nosso ordenamento, como visto, é atualmente o art. 50 do CC. Nesse dispositivo se estabelecem, detalhadamente, as hipóteses em que o juiz pode decretar a desconsideração da personalidade jurídica, mas não é fixada, em contrapartida, a disciplina procedimental dessa decretação. Não há, portanto, nem no CC nem na legislação processual, qualquer dispositivo que determine o procedimento a ser observado para a aplicação da teoria da desconsideração. Não obstante tal fato, pelo menos um aspecto processual relevante pode ser percebido a partir de uma simples leitura do já referido art. 50 do CC. Em primeiro lugar, resta claro da leitura desse dispositivo que a aplicação da disregard doctrine depende de requerimento da parte ou do ministério público, razão pela qual não é permitida a desconsideração de ofício pelo juiz, devendo este ser provocado para tanto. Veja-se que mesmo em se tratando de relação de consumo, questão ambiental ou relativa à ordem econômica, não se deve permitir a decretação de desconsideração de ofício. Isso porque a norma do art. 50 do CC tem aplicação geral nesse aspecto. O que o CDC, a lei de crimes ambientais e a lei antitruste têm de específico é a previsão de hipóteses especiais de aplicação da teoria. No entanto, isso não impede que a norma do art. 50 do CC também se aplique nessas relações, ainda que subsidiariamente, quando à delimitação dos aspectos procedimentais da aplicação da disregard doctrine, como é o caso da estipulação acerca da imprescindibilidade de requerimento para que o juiz possa dela fazer uso. Outro aspecto processual relevante da aplicação da teoria da desconsideração não decorre da simples leitura do art. 50 do CC, mas do respeito aos postulados do devido processo legal, assegurado às partes pela Constituição da República em seu art. 5º, inciso LV. Sendo assim, em qualquer processo no qual for requerida a desconsideração da personalidade jurídica deve o juiz determinar a oitiva das partes interessadas, ou seja, daqueles cujos bens podem ser atingidos em decorrência da desconsideração.

29

Uma pergunta que causa polêmica é a seguinte: essa oitiva das partes interessadas deve ser realizada necessariamente antes da decisão que decreta a desconsideração? A oitiva tem que ser feita previamente e essa decisão? Parece-nos que nem sempre. Por exemplo: demonstrada a verossimilhança das alegações de que duas sociedades são, em verdade, faces da mesma moeda, segundo inequívocas provas de confusão patrimonial, e/ou constatado o desvio de finalidade, sendo clarividente o receio de dano irreparável ou de difícil reparação, é possível a aplicação da disregard doctrine em decisão liminar inaudita altera parte. O tema é controvertido, é verdade, mas já decidiu pela possibilidade, conforme defendemos, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO REVOCATÓRIA. Verificando-se que a ouvida da parte contrária com a sua citação antes do exame da liminar poderá tornar ineficaz a medida, ou quando a urgência indicar a necessidade de concessão imediata da tutela, o juiz poderá fazê-lo inaudita altera parte, pois preenchidos os requisitos do artigo 273 do CPC. Eefeitos da desconsideração da personalidade jurídica estendidos ao agravante. AGRAVO DESPROVIDO (TJRS – Agravo de Instrumento Nº 70007528458, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Candido de Andrade Xavier, Julgado em 07/04/2004)

Destaque-se ainda que o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que é desnecessária a propositura de ação autônoma para que seja decretada a desconsideração da personalidade jurídica.

Da análise dos julgados indicados pelo ilustre doutrinador

acima citado, colhe-se o seguinte:

Processual Civil. Recurso especial. Ação de embargos do devedor à execução. Acórdão. Revelia. Efeitos. Grupo de sociedades. Estrutura meramente formal. Administração sob unidade gerencial laboral e patrimonial. Gestão fraudulenta. Desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica devedora. Extensão dos efeitos ao sócio majoritário e às demais sociedades do grupo. Possibilidade. - A presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em face à revelia do réu é relativa, podendo ceder a outras circunstâncias constantes dos autos, de acordo com o princípio do livre convencimento do Juiz. Precedentes. - Havendo gestão fraudulenta e pertencendo a pessoa jurídica devedora a grupo de sociedades sob o mesmo controle e com estrutura meramente formal, o que ocorre quando as diversas pessoas jurídicas do grupo exercem suas atividades sob unidade gerencial, laboral e patrimonial é legitima a desconsideração da personalidade jurídica da devedora para que os efeitos da execução alcancem as demais sociedades do grupo e os bens do sócio majoritário. - Impedir a desconsideração da personalidade jurídica nesta hipótese implicaria prestigiar a fraude à lei ou contra credores. - A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o Juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletivo), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens particulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros.

30

(...) IX - Da necessidade de prévio processo de conhecimento para declarar terceiro como responsável solidário de dívida contraída por pessoa jurídica (violação aos arte. 47, 77, inc. III, 468, 471, 472 e 610 do CPC, 1796 do CC e divergência jurisprudencial) Ao contrário do que sustenta o recorrente, deve-se observar que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Este entendimento exsurge da própria lógica conceituai inerente à formulação da Doctrine of Disregard of Legal Entity. Verificados os pressupostos de sua incidência (uso abusivo da personificação societária para fraudar a lei ou prejudicar terceiros, como se depreende do Recurso Especial nº. 158.051 /RJ, Rel. Min. Barros Monteiro, Quarta Turma, unânime, DJ 12/04/1999), poderá o Juiz, incidentemente no próprio processo de execução (coletivo ou singular, como in casu), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens particulares de seus sócios. Cite-se, a respeito, trecho do v. acórdão e do voto do Ilustre Relator, Min. Eduardo Ribeiro, em precedente desta C. Terceira Turma (Recurso Especial n°. 211.619/SP, DJ 23/04/2001), o qual admitiu a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos autos de processo de execução coletiva, exemplificando, a respeito, com o que estatui o art. 28 do CDC:

(Acórdão): (...). FALÊNCIA. EXTENSÃO DOS EFEITOS. COMPROVAÇÃO DE FRAUDE. APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA. (... ) III - Provada a existência de fraude, é inteiramente aplicável a Teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica a fim de resguardar os interesses dos credores prejudicados. (Voto do Relator): "No caso em exame, a decisão de primeiro grau explicitou longamente a promiscuidade de negócios entre as empresas, as práticas maliciosas, tendentes a fraudar credores. A exposição é minuciosa, constando especialmente de fls. 98 e seguintes, e a ela me reporto. Dela se verifica que, constituindo as empresas um só grupo econômico, com a mesma direção, os negócios eram conduzidos tendo em vista os interesses desse e não os de cada uma das diversas sociedades. A separação era apenas formal. Considero, com base na moderna doutrina sobre a matéria, que a teoria da desconsideração da personalidade é de ser aplicada entre nós, embora regra expressa só exista para situações específicas, como se verifica no âmbito das relações trabalhistas (CLT, art. 2o., § 2a) e de consumo (CDC, art. 28). Esse último dispositivo, aliás, admite a desconsideração quando houver falência."

Forte em tais razões, NÃO CONHEÇO do recurso especial. É o voto. (2002, STJ, Recurso Especial nº. 327.763/SP (2001/0096894-8)

E ainda:

PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL EM AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - RETENÇÃO LEGAL - AFASTAMENTO - DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO E FALTA DE PREQUESTIONAMENTO SÚMULAS 284 E 356 DO STF - PROCESSO EXECUTIVO - PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

31

JURÍDICA DA EMPRESA-EXECUTADA - POSSIBILIDADE - DISPENSÁVEL O AJUIZAMENTO DE AÇÃO AUTÔNOMA. 1 - Caracterizada está a excepcionalidade da situação de molde a afastar o regime de retenção previsto no art. 542, § 3º, do CPC, haja vista tratar-se de recurso especial proveniente de decisão interlocutória proferida no curso de execução de título extrajudicial (REsp nº 521.049/SP, de minha relatoria, DJ de 3.10.2005; REsp nº 598.111/AM, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, DJ de 21.6.2004). 2 - Se a parte recorrente não explica de que forma o acórdão recorrido teria violado determinado dispositivo, deficiente está o recurso em sua fundamentação, neste aspecto (Súmula 284/STF). 3 - Não enseja interposição de recurso especial matérias não ventiladas no julgado impugnado (Súmula 356/STF). 4 - Esta Corte Superior tem decidido pela possibilidade da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos próprios autos da ação de execução, sendo desnecessária a propositura de ação autônoma (RMS nº 16.274/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI , DJ de 2.8.2004; AgRg no REsp nº 798.095/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER , DJ de 1.8.2006; REsp nº 767.021/RJ, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO , DJ de 12.9.2005). 5 - Recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, provido para determinar a análise do pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa-executada no curso do processo executivo. (...). (2006, STJ, Recurso Especial nº. 331.478/RJ (2001/0080829-0)).

Em entendimento oposto, Coelho (2012, p. 63/64) defende que

é imprescindível a ação autônoma para se aplicar a teoria da desconsideração da

personalidade jurídica, vejamos:

O pressuposto inafastável da desconsideração é o uso fraudulento ou abusivo da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, únicas situações em que a personalização das sociedades empresárias deve ser abstraída para fins de coibição dos ilícitos por ela ocultados. Ora, se assim é, o juiz não pode desconsiderar a separação entre a pessoa jurídica e seus integrantes senão por meio de ação judicial própria, de caráter cognitivo, movida pelo credor da sociedade contra os sócios ou seus controladores. Nessa ação, o credor deverá demonstrar a presença do pressuposto fraudulento. Em outros termos, quem pretende imputar a sócio ou sócios de uma sociedade empresária a responsabilidade por ato social, em virtude de fraude na manipulação da autonomia da pessoa jurídica, não deve demandar esta última, mas a pessoa ou as pessoas que quer ver responsabilizadas. Se a personalização da sociedade empresária será abstraída, desconsiderada, ignorada pelo juiz, então a sua participação na relação processual como demandada é uma impropriedade. Se a sociedade não é sujeito passivo do processo legitimado a outro título, se o autor não pretende a sua responsabilização, mas a de sócios ou administradores, então ela é parte ilegítima, devendo o processo ser extinto, sem julgamento de mérito, em relação à sua pessoa, caso indicada como ré. Note-se que descabe a desconsideração operada por simples despacho judicial no processo de execução de sentença. Quer dizer, se o credor obtém em juízo a condenação da sociedade (e só dela) e, ao promover a execução, constata o uso fraudulento da sua personalização, frustrando seu direito reconhecido em juízo, ele não possui ainda título executivo contra o responsável pela fraude. Deverá então acioná-lo para

32

conseguir o título. Não é correto o juiz, na execução, simplesmente determinar a penhora de bens do sócio ou administrador, transferindo para eventuais embargos de terceiro a discussão sobre a fraude, porque isso significa uma inversão do ônus probatório. (...) Desse modo, quando a fraude na manipulação da personalidade jurídica é anterior à propositura da ação pelo lesionado, a demanda deve ser ajuizada contra o agente que a perpetrou, sendo a sociedade a ser desconsiderada parte ilegítima. Por outro lado, se o autor teme eventual frustração ao direito que pleiteia contra uma sociedade empresária, em razão de manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial no transcorrer do processo, ele não pode deixar de incluir, desde o início, no polo passivo da relação processual, a pessoa ou as pessoas sobre cuja conduta incide o seu fundado temor. Nesse caso, o agente fraudador e a sociedade são litisconsortes. Para os juízes que aplicam a teoria da desconsideração incorretamente, como o desprezo da forma da pessoa jurídica depende, para eles, apenas da insolvabilidade desta, ou seja, da mera insatisfação de crédito perante ela titularizado, a discussão dos aspectos processuais é, por evidente, mais simplista. Por despacho no processo de execução, esses juízes determinam a penhora de bens de sócio ou administrador e consideram os eventuais embargos de terceiro o local apropriado para apreciar a defesa deste. Como não participaram da lide durante o processo de conhecimento e não podem rediscutir a matéria alcançada pela coisa julgada, acabam os embargantes sendo responsabilizados sem o devido processo legal, em claro desrespeito aos seus direitos subjetivos constitucionais. O Judiciário não pode simplesmente dispensar o prévio título executivo judicial, para fins de tornar efetivo qualquer tipo de responsabilização contra sócio ou administrador de sociedade empresária. Ainda que o pressuposto da teoria da desconsideração não fosse a fraude, mas a mera insatisfação de credor social, isso não alteraria em nada a discussão dos aspectos processuais da aplicação da teoria. Quer dizer, será sempre inafastável a exigência de processo de conhecimento de que participe, no polo passivo, aquele cuja responsabilização se pretende, seja para demonstrar sua conduta fraudulenta (se prestigiada a formulação doutrinária da teoria), seja para condená-lo, tendo em vista a insolvabilidade da pessoa jurídica (pressuposto dos que aplicam incorretamente a teoria). A Argentina, na reforma do Código de Comercio de 1983, introduziu em seu direito a teoria da desconsideração (Mascheroni-Muguillo, 1996:59/60), valendo-se de uma original e interessante formulação, segundo a qual a personalidade jurídica da sociedade é inoponível se demonstrado que a atuação dela, pessoa jurídica, encobriu a consecução de fins extrassocietários, constituiu mero recurso para violar a lei, a ordem pública ou a boa-fé ou ainda para frustrar direitos de terceiros. Formulada em termos de inoponibilidade da personalidade jurídica, restam devidamente elucidados os aspectos processuais relacionados à teoria da desconsideração: o credor demanda diretamente o sócio, alegando o uso indevido do instituto da autonomia patrimonial, e este não pode, em defesa, opor a existência da sociedade, caso reste provada a alegação. Trata-se, a meu ver, de uma contribuição preciosa do direito argentino, que o brasileiro deveria adota

33

Em que pese a crítica doutrinária, da análise do Projeto de Lei

do Senado Federal (PLS nº 166/2010), verifica-se que a legislação tende a

disciplinar o procedimento como um incidente processual, na mesma linha da

jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça, vejamos:

CAPÍTULO IV

DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. § 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei. § 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. § 1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas. § 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica. § 3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º. § 4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica. Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de quinze dias. Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória, contra a qual caberá agravo de instrumento. Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno. Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.

Portando, sobre o procedimento para aplicação da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica, é necessário aguardar a aprovação da

proposta do novo Código de Processo Civil, o que definirá o caminho a ser seguido.

Porém, desde logo pode ser adotado esse entendimento com base nos princípios

constitucionais do contraditório e ampla defesa.

34

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como disposto no decorrer da presente pesquisa, a pessoa

jurídica foi criada para facilitar a própria atividade mercantil em diversos países, com

a evolução criou-se o princípio da autonomia patrimonial entre a pessoa jurídica e

seus sócios e administradores, limitando a responsabilidade destes pelas obrigações

da sociedade.

Após, com os casos de fraudes envolvendo as pessoas

jurídicas e a autonomia patrimonial das mesmas, foi posto em xeque o princípio da

autonomia patrimonial, nascendo para o mundo a teoria da desconsideração da

personalidade jurídica (Inglaterra, 1897), que propôs o afastamento da autonomia

patrimonial em caso de manipulação fraudulenta da pessoa jurídica.

Com o decorrer de séculos e incontáveis casos de fraudes e

manipulações envolvendo as sociedades empresarias, vários sistemas legislativos

integralizaram a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, uma

importante e combatível teoria contra fraudes perpetradas no âmago das pessoas

jurídicas.

Com a evolução do instituto, como também dos sofisticados

métodos fraudatórios atualmente existentes, concluo com a presente pesquisa que a

teoria da desconsideração deve ser aplicada com rigor por nossos tribunais, pois

isso dificultará a manipulação fraudulenta das sociedades e fortalecerá ainda mais o

princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas na modalidade de

sociedade limitada.

Quanto ao procedimento para aplicação da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica, quando presentes os requisitos, os

sócios e/ou administradores devem ser citados para apresentarem defesa, em razão

dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa.

35

REFERÊNCIAS ALMEIDA, Amador Paes de. Manual das sociedades comerciais (direito de empresa), Ed.20. São Paulo: Saraiva, 2012. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em: 01/04/2014. BRASIL. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm> BRASIL. Lei nº. 8078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 13 de fevereiro de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm>. BRASIL. Lei nº. 9605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outros providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 12 de setembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm BRASIL. Lei nº. 12529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e a Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei no 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1 de novembro de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-014/2011/Lei/L12529.htm#art127> BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei 166/2010. Disponível <http://www.senado.leg.br/>. Acessado em 02/04/2014. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº. 159889/SP (2012/0059910-4), 4ª Turma. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. DJE 18/10/2013. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=201200599104&dt_publicacao=18/10/2013>. Acesso em: 01/04/2014.

36

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº. 441.231/RJ (2013/0395771-1). 2ª. Turma. Relator: Ministro Og Fernandes. DJE 18/10/2013. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=201303957711&dt_publicacao=20/02/2014>. Acesso em 01/04/2014. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 1.346.464/SP (2012/0030613-7). 3ª. Turma. Relatora: Ministra Nancy Andrigui. DJE 28/10/2013. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=201200306137&dt_publicacao=28/10/2013>. Acessado em 01/04/2014. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 327.763/SP (2001/0096894-8). Relatora: Ministra Nancy Andrighi. DJE 24/06/2002. Disponível em:<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=IMG&sequencial=7756&num_registro=200100968948&data=20020624&formato=PDF> . Acessado em: 01/04/2014. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 331.478/RJ (2001/0080829-0). Relator: Ministro Jorde Scartezzini. DJE 20/11/2006. Disponível em:<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=658158&num_registro=200100808290&data=20061120&formato=PDF> . Acessado em: 01/04/2014. COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial, volume 2: direito de empresa. Ed. 16ª. São Paulo, Saraiva, 2012. RAMOS, André Luiz Santa Cruz, Curso de Direito Empresarial, 3º Ed. Salvador: IusPODIVM, 2009. SIMÃO FILHO, Adalberto. Direito empresarial II (Coleção saberes do direito; Vol. 28). – São Paulo: Saraiva, 2012. TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003.