Desconstruindo o Mito Da Impunidade

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Desconstruindo o Mito da Impunidade Um Ensaio de Direito (Penal) Juvenil João Batista Costa Saraiva Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Universidade de Brasília, DF, Brasil) Saraiva, João Batista Costa V932 Desconstruindo o Mito da Impunidade Um Ensaio de Direito (Penal) Juvenil/João Batista Costa Saraiva. - Brasília: 2002. 131 p. : il. 1. Direito da criança e do adolescente. 2. Adolescentes infratores. 3. Delitos e delinqüência juvenil. I. Saraiva, João Batista Costa. II. Título CDU 343.915 (81) 342.7-053.2 301.162.2(81) Desconstruindo o Mito da Impunidade Um Ensaio de Direito (Penal) Juvenil João Batista Costa Saraiva Foto da Capa: Rodrigo Participante do Projeto Fotografia e Cidadania realizado com os internos da FEBEM de São Paulo, em 1999. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do autor. 2002 by Autor Direitos para esta edição Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - CEDEDICA Av. Venâncio Aires, 1705 Santo Ângelo - RS Tel: (55) 3313-3003 e-mail: [email protected] www.cededica.cjb.net Impresso no Brasil - maio de 2002 Dedicatória Dedico este trabalho à minha Lili e a meus queridos filhos, de sangue e de coração. Página 1 de 42 26/9/2010 http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/DOUTRINA/DESCONSTRUINDO+O+MITO+DA+IMP...

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Desconstruindo o

Mito da Impunidade

Um Ensaio de Direito (Penal) Juvenil

João Batista Costa Saraiva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Universidade de Brasília, DF, Brasil)

Saraiva, João Batista Costa

V932 Desconstruindo o Mito da Impunidade Um Ensaio de Direito (Penal) Juvenil/João Batista Costa Saraiva. - Brasília: 2002.

131 p. : il.

1. Direito da criança e do adolescente. 2. Adolescentes infratores. 3. Delitos e delinqüência juvenil. I. Saraiva, João Batista Costa. II. Título

CDU 343.915 (81) 342.7-053.2

301.162.2(81)

Desconstruindo o Mito da Impunidade Um Ensaio de Direito (Penal) Juvenil João Batista Costa Saraiva Foto da Capa: Rodrigo Participante do Projeto Fotografia e Cidadania realizado com os internos da FEBEM de São Paulo, em 1999. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do autor. 2002 by Autor Direitos para esta edição Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - CEDEDICA Av. Venâncio Aires, 1705 Santo Ângelo - RS Tel: (55) 3313-3003 e-mail: [email protected] www.cededica.cjb.net Impresso no Brasil - maio de 2002

Dedicatória Dedico este trabalho à minha Lili e a

meus queridos filhos, de sangue e de coração.

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Faço minha homenagem neste trabalho a Emílio Garcia Mendez, por sua monumental contribuição ao Direito da Criança e do Adolescente na América Latina.

Sumário

Palavras iniciais..................................................................... 13 Capítulo I - QUEM É O ADOLESCENTE?......................... 17 1. A adolescência............................................................... 17 1.1 Condição peculiar de pessoa em desenvolvimento: Parecem-se com adultos, mas comportam-se como crianças............................................................... 20 1.2 Condição peculiar de pessoa em desenvolvimento: sujeito de suas ações...................................................... 25 Capítulo II - O MITO DA IMPUNIDADE........................... 29 2. Com menor não dá nada.............................................. 29 2.1 O tríplice mito................................................................ 33 2.2 O mito da impunidade.................................................... 39 CAPÍTULO III - O DIREITO PENAL JUVENIL............... 43 3. O Direito Penal Juvenil: inimputabilidade penal e responsabilidade penal juvenil............................. 43 3.1 O Direito Penal Juvenil e o ECA: Nem Direito Penal Máximo, nem Abolicionismo Penal........................ 47 3.2 O tríplice sistema de garantias proposto pelo ECA.......... 50 3.3 A Medida Socioeducativa.............................................. 51 3.4 A proposta de uma Lei de Diretrizes Socioeducativas em complemento ao ECA..................... 55 3.5 A crise de interpretação.................................................. 57 3.6 Uma reflexão necessária................................................ 58 Capítulo IV - DESCONSTRUINDO O MITO DA IMPUNIDADE........................................................ 63 4. A natureza jurídica da Medida Socioeducativa................. 63 4.1 Os eufemistas e as crianças no Brasil............................... 69 4.2 O Sistema Terceário de Garantias: natureza sancionatória e conteúdo pedagógico............................... 75 4.3 Medidas Socioeducativas em Meio Aberto...................... 76 4.4 Medidas Privativas de Liberdade..................................... 79 Capítulo V - O PERFIL DO OPERADOR DO SISTEMA................................................................ 83 5. O perfil do Juiz e o Novo Direito da Infância e da Juventude................................................................ 83 5.1 Uma certa maneira de definir este perfil............................ 85 5.2 De menor a cidadão........................................................ 88 5.3 Um novo Direito. Um novo Juiz?..................................... 91 5.4 Um Juiz capaz de agir e interagir com a sociedade............ 94 Anexos Entrevista............................................................................... 97 Quadro 1: Comparação européia da idade da responsabilidade penal juvenil, maioridade da

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idade penal e maioridade da idade civil................................. 120 Quadro 2: Comparativo entre as diferentes medidas ou sanções contidas nas legislações da América Latina em face a Adolescentes em conflito com a Lei...................... 121 Bibliografia.......................................................................... 127

Prólogo

A leitura completa de Desconstruindo o Mito da Impunidade permite confirmar uma verdade nem sempre suficientemente relembrada: que o compromisso com a justiça e os direitos humanos se transforma em acionismo inútil sem o rigor científico, e que o rigor científico sem compromisso se converte em um diletantismo intranscendente.

A justa e equilibrada dose de exatidão (veracidade) e compromisso, fazem do livro de João Batista Costa Saraiva, que tenho o privilégio de prologar, um material de trabalho imprescindível para todos os operadores do sistema de administração de justiça da infância hoje no Brasil e, oxalá num futuro não muito distante, no resto dos países da América Latina.

Desde uma posição que reúne tanto uma prática profissional conseqüente/resultante (o mesmo é o juiz que prospecta) quanto um arsenal teórico de irrefutável riqueza, Saraiva firma as bases de uma tarefa urgente e necessária no Brasil. Refiro-me à desconstrução de mitos, conservadores e progressistas, relativos aos vínculos dos adolescentes com a questão penal. Se Saraiva é capaz de levar ao bom término os objetivos político-pedagógicos que se propõe, isto é devido ao feito de assentar-se em uma posição que, desde o começo, rejeita de plano e sem vacilos a falsa e demagógica autonomia do velho direito de menores. Posição que inclusive baixou uma suposta perspectiva progressista e tem sido amiúde contrabandeada no novo direito da infância. Do único que o direito de menores era autônomo, era o Direito Constitucional. Do que menos o novo direito da infância deve ser autônomo, é o Direito Constitucional.

Pelo contrário, Saraiva aceita desde o começo o certo: de confrontar-se sem ambigüidades com o melhor direito penal e, somente desde aí, planejar a especificidade da questão penal tal como aparece contida e desenvolvida no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Desconstruindo o Mito da Impunidade constitui a primeira reflexão jurídico-cultural significativa sobre o Direito Penal Juvenil no Brasil. Além disto, este livro não poderia ter surgido em um momento mais oportuno. Apesar da crise de implementação e interpretação, o ECA começa a entrar decididamente em uma etapa de maturidade e consolidação, não isenta de riscos e perigos.

Muitos são os desafios e ameaças que ainda deverá enfrentar o ECA. Não obstante, animo-me a afirmar que os riscos maiores não são nem serão externos, mas continuarão provindo da persistência de concepções e atitudes, produto de uma cultura corporativa, que somente textos como este conseguirão neutralizar e reverter. Não esqueçamos que o corporativismo tende a produzir mesclas explosivas de ignorância e má fé.

Neste contexto, o livro de Saraiva cumpre uma função básica e preciosa de esclarecimento, ordenando as linhas centrais de um debate que, sem a existência de contribuições como esta, colocaria em risco não só o ECA, mas também aspectos fundamentais da vida democrática.

Por último, o livro de Saraiva constitui também – e quiçá sobretudo – uma clara convocação a iniciar um debate sério e profundo com todo o mundo do direito. Oxalá penalistas e constitucionalistas, para começar, também o entendam deste modo.

Emilio Garcia Mendez

Aguas Dulces, Argentina, Janeiro de 2002.

Palavras iniciais

O que se busca neste trabalho é desmistificar a idéia de impunidade no que respeita a problemática do adolescente em conflito com a lei, informação (ou desinformação) muito presente na mídia.

Desconstruir o mito da impunidade passa necessariamente pelo apreender de um Novo Direito, tendo presente que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, Lei 8.069/90, na esteira da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e da própria Ordem Constitucional, estabeleceu no País um sistema que se pode denominar de Direito Penal Juvenil, ou, se preferirem os eufemistas, um Direito Socioeducativo, fundado em premissas e preceitos extraídos do Direito Penal.

Nesses anos de vigência do ECA é possível avaliar seus resultados. Sem fazer concessões a seus adversários, nem aos

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alarmistas nem aos poetas, nem aos defensores do retribucionismo hipócrita nem aos defensores do paternalismo ingênuo, no permanente confronto entre o Direito Penal Máximo e o Abolicionismo Penal, cumpre afirmar a Doutrina do ECA à luz de preceitos do Direito Penal Mínimo, incorporados ao sistema.

Assim, sempre será possível aperfeiçoar o ECA, incluir a presença do Defensor na audiência de apresentação ao Ministério Público e, quem sabe, se assim for entendido oportuno, imaginando que em certas circunstâncias o Estado necessita de mais tempo para desenvolver sua ação socioeducativa em face o adolescente privado de liberdade ampliar o módulo máximo de internação, hoje fixado em três anos, criando espaços próprios para o atendimento de jovens-adultos (pessoas com mais de dezoito anos, autores de atos infracionais quando adolescentes). Há ainda que resolver melhor a questão dos adolescentes psicóticos, acometidos de doença mental, que, mesmo após completarem dezoito anos de idade, permanecerão inimputáveis, vez que o são não por terem menos de dezoito anos, mas especialmente porque são portadores de doença mental que os incapacita a discernir, nos termos do vigente art. 26, do Código Penal.

Como o disse L. N. A. em sua entrevista à Dra. Márcia Ribeiro, a integrar este trabalho, no estudo de caso realizado: do ponto de vista da privação de liberdade, da restrição ao direito de ir e vir, não há diferença entre o Presídio e a FEBEM. Ou seja, do ponto de vista da aflitividade da sanção que subtrai do sujeito o direito fundamental da liberdade, não há diferença entre a pena privativa de liberdade e a medida socioeducativa de internação.

A grande distinção entre esta e a pena há de ser o modo operativo de sua execução, o falado conteúdo pedagógico da medida, a sempre referida proposta pedagógica a ser desenvolvida. Nesta linha há que se afirmar que a medida socioeducativatem natureza sancionatória e conteúdo prevalentemente pedagógico.

O Grupo de Trabalho da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude, encarregado de elaborar um anteprojeto de lei de execuções de medidas socioeducativas que resultou em uma proposta de Lei de Diretrizes Socioeducativas, alcançou a idéia de a proposta pedagógica constituir-se na oferta, por entidade ou programa, de princípios de conduta e ações que ensejem a superação de conflitos pessoais e sociais baseados em valores humanos e promoção da cidadania.

A idéia a ser desenvolvida neste estudo pode ser sintetizada nestas palavras iniciais: Quando se mitiga o conteúdo aflitivo da sanção socioeducativa está-se ignorando que esta tem uma carga retributiva, de reprovabilidade de conduta. A medida socioeducativa adequadamente aplicada será sempre boa, mas somente será sempre boa se o adolescente se fizer sujeito dela. Ou seja, somente será boa se necessária, e somente será necessária quando cabível, e somente cabível nos limites da legalidade, observado o princípio da anterioridade penal e o conjunto do sistema de garantias.

Capítulo I

QUEM É O ADOLESCENTE?

Nossos adolescentes atuais parecem amar o luxo. Têm maus modos e desprezam a autoridade. São irrespeitosos com os adultos e passam o tempo vagando nas praças, mexericando entre eles... São inclinados a contradizer seus pais, monopolizam a conversa quando estão em companhia de outras pessoas mais velhas; comem com voracidade e tiranizam os seus mestres.

1. A adolescência

O epíteto acima expresso, a inaugurar este capítulo dando o perfil do adolescente, parece extraído do desabafo de um pai após digladiar-se com um adolescente seu filho, mergulhado em seu quarto em um som estonteante da Metálica, que fazestremecer o prédio, impondo a todos na casa (e também aos vizinhos) seu gosto musical..... Ou poderá ser de um professor de nossas escolas modernas diante dos diários conflitos enfrentados em sala de aula com seus jovens alunos, onde a autoridade se faz cada dia mais desgastada. Eis que, temeroso por passar por autoritário, aquele que deveria deter a autoridade abdica do exercício desta.

A epígrafe que serve de mote a este texto, entretanto, foi recolhida pelo Dr. Cyro Martins de um fragmento de Sócrates. A expressão é de antes de Cristo e nos soa tão atual, afirmando o eminente psicanalista:

Isso de que acusam os adolescentes, hoje, contém, na essência e às vezes na minúcia, as mesmas queixas que há 2.500 anos registrava, com amargura, o filósofo.

O texto é citado por Ronald Pagnocelli de Souza no perfil da adolescência que faz em seu trabalho Nossos Adolescentes1 .

Desta lição, na construção do perfil do adolescente, pode-se extrair que:

na verdade, do adolescente só o que se costuma salientar é o seu aspecto, ou seus maneirismos, ou seus trajes esquisitos, sua tendência a ser buliçoso, preguiçoso, contestador. O mínimo que costumamos fazer é considerá-

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lo delinqüente. Poucas vezes consideramos que a maioria estuda e, além de estudar, trabalha. É sabido que contestam valores tradicionais, mas sempre lutam por condições justas, opõem-se às guerras e, de alguma forma, contribuem para a Nação. São dotados de uma enorme capacidade de amar e se deixam apaixonar com grande facilidade. Quem sabe não está justamente aí, nessa invejável e desprendida capacidade de amar, o forte elemento gerador das dificuldades que muitos adultos têm em aceitar o adolescente assim como ele é. (Souza, 1989)

Se a invenção da infância, com o reconhecimento do direito a brincar, divertir-se, data da época dos descobrimentos, como bem enfoca o trabalho de Liliana Sulzbach, no filme de curta metragem A Invenção da Infância2 , coloca-se a invenção da adolescência, com o reconhecimento de uma especial condição de desenvolvimento do homem anterior à idade adulta, ao tempo de revolução industrial, com a intensa absorção de mão-de-obra infantil nas linhas de produção.

As primeiras leis de proteção à criança trabalhadora, surgidas diante das denúncias e reivindicações da sociedade, principalmente dos trabalhadores, vêm da Inglaterra, a partir de 1802, com a Carta dos Aprendizes. Segundo documento da CUT, esse ato legislativo instituía a jornada de trabalho de no máximo doze horas e proibia trabalho noturno (!).

Quanto ao conceito de criança, do antes mencionado trabalho de Liliana Sulzbach se extrai que em um dicionário francês do início do século XVIII, o termo criança era definido como um termo cordial utilizado para saudar alguém ou agradar alguém, ou, ainda, para levá-la a fazer alguma coisa. Assim, diz, por exemplo: “Minha criança, vá buscar meu copo”. Um Mestre dirá aos trabalhadores: “Vamos crianças, trabalhem”. Um Capitão dirá a seus soldados: “Coragem crianças, agüentem firme”; e os soldados da primeira fila, que estavam mais expostos ao perigo, ele os chamava de “crianças perdidas”.

Se a idéia de criança remonta ao renascimento, o conceito de adolescência é, pois, bem mais recente na história do homem. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989, não estabelece distinção, tratando criança como toda a pessoa entre zero e dezoito anos de idade3 .

1.1. Condição peculiar de pessoa em desenvolvimento: Parecem-se com adultos, mas comportam-se como crianças

Embora exista uma diversidade de concepções de infância e adolescência, cada sociedade termina por estabelecer aquelas que são consideradas paradigmas válidos para toda a sociedade. Assim, as constantes referências à infância e adolescência, referem-se em realidade, a uma concepção predominante aceita legal e institucionalmente... (Santos, 1996)

O direito brasileiro estabelece a imputabilidade penal a partir da idade de 18 anos completos, dando ao agente com menos de dezoito anos um tratamento especial através do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069 de 13.07.1990. Como dito antes, esta decisão legal não é fruto aleatório do legislador brasileiro, que seguindo tendência mundial sobre o novo direito da criança e do adolescente preconizado pela Organização das Nações Unidas, reconhece tal grupo como sujeito de direitos, destinatário da doutrina da proteção integral e prioridade absoluta das políticas públicas.

Nessa perspectiva, como fundamenta a Equipe Técnica da Fundação de Desenvolvimento Social e Cidadania de Maringá, em documento que produziu, torna-se cada vez mais necessário esclarecer o significado do Direito4 e das garantias mínimas de vida saudável, deixando claro que os avanços legais sob essa ótica representam a possibilidade de ampliar ou criar condições para implantar uma política de atendimento integral, introduzindo uma série de inovações na política de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, a ser aplicada a todas as pessoas com idade inferior a dezoito anos em qualquer situação.

O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA estabelece como um de seus princípios norteadores o reconhecimento de que crianças e adolescentes gozam de uma condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, expressos, por exemplo, em seus artigos 65 , 156 e 1217 , na esteira do mandamento constitucional insculpido no art. 227, § 3º, inc. V8 .

Esta peculiar condição de pessoa em desenvolvimento faz-se inquestionável, a justificar a existência de um sistema diferenciado de atendimento deste segmento da população. Nem sempre, porém, esta condição especial é percebida por todos. Ao menos nem sempre é percebida como uma condição que atinja a todos que se encontram na mesma etapa de desenvolvimento. Estabelece-se uma distinção entre os que podem e os que não podem adolescer.

Veja-se, por exemplo, a maneira como os formadores de opinião de nossos meios de comunicação tratam da matéria. São eles, invariavelmente, absolutamente complacentes com os jovens atletas de futebol (na maioria das vezes tratados a pão-de-lóem seus clubes), quando submetidos às disputas esportivas, erram lances elementares bisonhamente. Logo surgem justificações, como muito verde, inexperiente, é apenas um menino, contemporizando os erros que cometem, a par de muitas vezes já estarem estes jovens recebendo salários extraordinários apesar de seus 17, 18 anos de idade.

Estes mesmos formadores de opinião, todavia, não têm a mesma complacência, com erros cometidos por jovens destas mesmas idades, muitas vezes (se não na maioria absoluta das vezes) desprovidos de quaisquer oportunidades na vida, quando cometem pequenas infrações, reclamando para estes um tratamento adulto, pois aqui não são considerados nem meninos, nem muito verdes, são marginais.

Funciona uma certa lógica, em especial com a adolescência excluída, de que estes seriam adolescentes diferentes dos

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outros (os incluídos).

No tratamento distinto que é dado aos jovens, a uns tudo justificando e a outros implacavelmente cobrando uma postura adulta, resulta a conclusão de que seriam eles diferentes entre si.

Afigura-se algo como aquela conversa que seguidamente se escuta em um encontro de tias para um chá, ou em um verão abrasador, sob o frescor de um ar condicionado; ou no inverno gelado, no aconchego de uma lareira, quando alguém, entre um canapé e outro, sempre indaga: “Como será que os pobres agüentam?”. Imaginam por certo que estes, sendo diferentes, teriam uma resistência desumana ao frio ou ao calor, quando na verdade, sabe-se: passam muito frio ou padecem intensamente no calor.

Lembro-me de episódio havido em 1992, quando houve na FEBEM em São Paulo um grande motim, durante o III Seminário Latino Americano do Avesso ao Direito, Da Situação Irregular à Proteção Integral da Infância e Adolescência na América Latina. Em um jornal de grande circulação houve, na época, editorial criticando duramente a então Secretária do Menor do Estado de São Paulo por haver esta se referido aos internos amotinados como meninos. Falava o editorialista do equívoco desta linguagem, dizendo que havia delinqüentes, do tipo de Mike Tyson, dentre os revoltosos, sugerindo que aquela seria uma linguagem paternalista, de utilização imprópria. Tangenciando a propriedade ou não da expressão utilizada, o fato é que aquele mesmo jornal, que tão duramente criticara a Secretária por tratar de meninos os adolescentes amotinados, estampava manchetes, em suas páginas esportivas, saudando os Meninos de Ouro do Brasil, referindo-se à equipe olímpica de voleibol, que na época a todos vencia, com seus atletas de quase dois metros de estatura e todos com mais de dezoito anos de idade...

Efetivamente em uma sociedade como a nossa, onde por meio de uma mídia avassaladora e mecanismos de merchandisingextraordinários se impõe a todos um intenso sofrimento porque não têm coisas de que não precisam, em uma assustadora prevalência do TER sobre o SER, não é de se admirar que se imagine existir duas adolescências: a dos que podem adolescer e a dos que não podem.

Ocorre que a adolescência, como etapa de desenvolvimento físico e psíquico, é adolescência para todos, dos bairros mais nobres à periferia, submetidos às mesmas aflições próprias desta época, alcançados todos pelos mesmos apelos de mídia, todos destilando hormônios, todos desejantes, todos fascinados pelo mesmo tênis importado.

A contribuir com esta reflexão, discorre Souza:

Torna-se mais fácil compreender suas aflições quando consideramos com atenção o que se passa com seu corpo e sua mente.

Num determinado momento, por comando do hipotálamo e da hipófise, na base do cérebro, as glândulas do aparelho reprodutor, entre outras que participam menos intensamente do processo, começam a produzir grandes quantidades de hormônios e sob o efeito desses passa a ocorrer uma série de transformações orgânicas. Há um grande crescimento estatural (período de estirão), surgem os caracteres sexuais secundários; seios, distribuição de pêlos no corpo – pêlos axilares, pêlos pubianos, aspecto dos cabelos e desenvolvimento da barba. Modificam-se as proporções do corpo, com o aumento da bacia e distribuição da gordura na mulher, e dos ombros e da musculatura no homem. A libido – energia que alimenta a conduta sexual – que na fase anterior estava dirigida à atividade muscular e às especulações intelectuais (no período de latência – dos seis aos dez ou doze anos), é agora dirigida à genitalidade. O interesse heterossexual passa a predominar e, habitualmente, entre as brincadeiras, carícias e masturbação os adolescentes treinam para o intercurso sexual, amadurecendo em direção da sexualidade adulta.

Isso não se passa abruptamente, mas nem sempre os três ou quatro anos em que esses fatos se sucedem constituem tempo suficiente para que o amadurecimento mental acompanhe o desenvolvimento físico.

Torna-se comum a análise: Parecem-se com adultos, mas comportam-se como crianças. (Souza, 1989:7-9)

Por fim, cumpre ilustrar esta reflexão com o pronunciamento de Arminda Aberastury:

Entrar no mundo dos adultos – desejado e temido – significa para o adolescente a perda definitiva de sua condição de criança. É o momento crucial na vida do homem e constitui a etapa decisiva de um processo de desprendimento que começou com o nascimento9 .

1. 2. Condição peculiar de pessoa em desenvolvimento: sujeito de suas ações

Conceituar adolescente, este indivíduo em condição peculiar de desenvolvimento, buscando compreender o tratamento diferenciado a que faz jus, não se constitui em tarefa simples.

Vê-lo como sujeito de suas ações, vê-lo como sujeito de direitos e, em conseqüência, titular de direitos e obrigações, nem sempre dá-se de forma a ser perfeitamente compreendida por todos. Até porque há mitos e preconceitos impedindo esta compreensão, além de um equivocado entendimento da ordem legal, resultando no que Emílio Garcia Mendez (2000) define como a crise de interpretação do ECA.

Viajando por lições de Freud, Lacan e Winnicott, em uma incursão psicanalítica sobre o tema, a professora Sonia Carneiro Leão10 oferece outras reflexões sobre a adolescência, destacando o imaginário adulto frente a adolescência, uma época onde

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tudo é permitido e nada seria cobrado, segundo este ideal adulto da adolescência.

A propósito disso, cumpre realçar, com especial relevo, que o ignorar a existência de um Direito Penal Juvenil, que adiante será abordado, conduz a esta sensação equivocada de impunidade na adolescência, aspecto que ainda mais contribui para o mito sobre esta fase, quase idolatrada pelo mundo adulto, ao mesmo tempo que a inveja e condena.

Diz Leão:

Sensação de plenitude o adolescente sente, realmente. O adulto o inveja, invariavelmente. Por causa dessa plenitude o adolescente vê o mundo com as cores mais intensas. O mundo adulto já ficou um tanto desbotado.

O jovem acha que pode tudo. Há bem pouco tempo eram crianças submetidas aos padrões éticos de suas famílias, reproduzindo fielmente

os desejos do meio em que viviam. Agora têm estilo próprio. Vestem-se de modo peculiar. Cantam músicas que lhe são destinadas especialmente, e já têm pontos de vista próprios. (Leão, 1990:80)

Prossegue a eminente psicanalista carioca:

As crianças de 6 a 9 anos são muito reacionárias. Tudo o que elas pedem é que lhes seja dada bem pouca liberdade. Educadores severos para conterem seus impulsos descontrolados é o que elas reclamam. É esta a fase áurea da formação do superego, instância prepotente e dominadora que, se não for muito vigiada, vigiará o sujeito para o resto de sua vida, incapacitando-o freqüentemente a buscar novos prazeres.

Na adolescência há como que a busca de uma trégua do superego. Isso não significa que o jovem não internalizou esta instância psíquica. Ela está lá, só que, agora, numa espécie de latência. Digamos que o adolescente percebe o seu cão de fila superegóico, farejando bem de perto seus impulsos sexuais. Mas ele agora sabe driblar o vilão. Então já pode ir ao encontro do grande amor, já pode ir buscar o seu desejo. Esta é a idade em que a libido está solta, dentro e fora do sujeito, nele e no outro, ao mesmo tempo.

O adolescente não quer tomar o lugar dos pais. Quer apenas um lugar para ele próprio. Os pais já não são os super-heróis da infância, não são mais a causa do desejo. O desejo está alhures. Onde? Em toda a parte. O jovem luta nos esportes e faz poesia. Trabalha árduo na escola e namora com paixão. Está sempre pronto para agir e parar. Sorrir e chorar. Bater e perdoar. (Leão, 1990:81)

O adolescente, enquanto sujeito em peculiar condição de desenvolvimento, carece de uma atenção especial, em um país que, se tem dito, ao invés de mãe gentil tem sido uma madrasta megera de seus filhos.

O atendimento diferenciado, respeitada esta condição especial, é conceito universal, estampado na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e em toda a normativa internacional que trata da matéria. O conjunto desta normativa resulta na chamada Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança, contemplando, além da Convenção, As Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça de Menores, As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade e as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil. Este corpo de legislação internacional tem força de lei interna para os países signatários, entre os quais o Brasil. A Doutrina da Proteção Integral foi adotada pela Constituição Federal, que a consagra em seu art. 227, tendo sido acolhida pelo plenário do Congresso Constituinte pela extraordinária votação de 435 votos contra 8. O texto constitucional brasileiro, em vigor desde o histórico

outubro de 1988 antecipou-se à Convenção11 .

Por fim, afirmada, por força da normativa internacional e por uma imposição de uma constatação biológica e psicológica, há que ser reconhecida a adolescência como uma etapa especial de desenvolvimento, não se admitindo o ignorar desta situação.

Maria Auxiliadora Minahim, em obra contemporânea à edição do Estatuto da Criança e o Adolescente, discorre sobre a visão do direito penal e a imputabilidade em face à idade, fazendo uma análise histórica do tema, afirmando, no capítulo final de seu trabalho:

Se as emoções variam de uma identificação positiva para uma identificação negativa com os adultos, em relação à criança e ao adolescente o fenômeno é ainda mais acentuado. Isso ocorre ainda mais pela indiscutível sedução que a infância exerce, ao menos nos primeiros anos, como promessas de uma vida que se instala só de pureza e bondade. No entanto, e como tudo na natureza, a uma qualidade opõe-se outra, o que deveria conduzir à procura do todo que, em sua essência, é diferente da soma das partes. A humanidade, todavia, insiste em fragmentar percepções do maturo, entendendo-o em razão de facetas isoladas. Assim, da pureza a perversidade, de alma abandonada à infância viciada, de carente a pivete, a criança flutua na consciência grupal com reflexos no Direito.12

Cumpre assim, remeter a leitura para adiante, afirmando-se a existência de um ramo do sistema jurídico que, compreendendo este caráter especial, esta peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, contemple a questão do envolvimento do adolescente com a lei, do adolescente em conflito com a ordem jurídica, que se faz pela análise do Direito

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Penal Juvenil, sem concessões a um paternalismo ingênuo, que somente enxerga o adolescente infrator como vítima de um sistema excludente, em uma leitura apenas tutelar; ou a um retribucionismo hipócrita, que vê no adolescente infrator o algoz da sociedade, somente o conceituando como vitimizador, em uma leitura sob o prisma do Direito Penal Máximo.

1 Souza, Ronald Pagnocelli de. Nossos Adolescentes. 2ªed. – Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 1989.

2 Sobre este tema faz-se imprescindível conhecer o trabalho da psicanalista Liliana Sulzbach, no premiado Curta Metragem “A Invenção da

Infância” (The Invention of Childhood), de M. Schmidt Produções, com animações de Tadao Miaqui, música de Nico Nicolaiewsky e direção de

fotografia de Adrian Cooper e Alex Sernambi.

3 Artigo Primeiro da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança : “... entende-se por criança todo ser humano menor de 18 anos, salvo se,

em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”.

4 Direito: “conjunto de normas de conduta e de organização, constituindo uma unidade e tendo por conteúdo a regulamentação das relações

fundamentais para a convivência e sobrevivência do grupo social, tais como, relações familiares, econômicas, superiores de poder, também

chamadas de relações políticas, e ainda a regulamentação dos modos e das formas através das quais o grupo social reage à violação das normas de

primeiro grau ou a institucionalização da sanção” ( Norberto Bobbio). Estado de Direito, o indivíduo não tem só direitos privados, mas também

direitos públicos. O Estado de Direito é o Estado de cidadãos (Bobbio, apud Pereira, Irandi e Mestriner, Maria Luiza. Liberdade Assistida &

Prestação de Serviço à Comunidade: Medidas de Inclusão Social Voltadas a Adolescentes Autores de Ato Infracional. IEE/PUC São Paulo e

FEBEM/ São Paulo. São Paulo: Vox Editora, 1999. É portanto, aquele em que as soluções dos conflitos obedecem aos primados da lei.

5 Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e

coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento.

6 A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como

sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

7 A internação constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa

em desenvolvimento.

8 Obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de

qualquer medida privativa de liberdade.

9 Aberastury, Arminda. Adolescência Normal: Um enfoque psicanalítico. P.13.

10 Leão, Sonia Carneiro. Infância, latência e adolescência: Temas de Psicanálise – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1990.

11 A Convenção tem uma história de elaboração de dez anos. A origem remonta ao ano de 1979, Ano Internacional da Criança, quando surgiu uma

proposta originária da Polônia de uma convenção sobre o tema. A Comissão de Direitos Humanos da ONU organizou um grupo de trabalho aberto

para estudar a questão. Neste grupo poderiam participar delegados de qualquer país membro da ONU, além dos representantes obrigatórios dos 43

Estados integrantes da Comissão, organismos internacionais como o UNICEF, e o grupo “ad hoc” das organizações não governamentais. Em 1989,

no trigésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança, a Assembléia-Geral da Organização das Nações Unidas, reunida em Nova York,

aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Desde então os Direitos da Criança passam a se assentar sobre um documento global, com força

coercitiva para os Estados signatários, entre os quais o Brasil.

12 Minahim, Maria Auxiliadora. Direito Penal da Emoção: A inimputabilidade do menor. – São Paulo: RT, 1992.

Capítulo II

O MITO DA IMPUNIDADE

Pretender construir cidadania sem responsabilidade constitui um contra-senso, produto da ingenuidade ou da incompetência.

2. Com menor não dá nada

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A responsabilidade penal dos adolescentes tem gerado debate, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, ocupando espaços de mídia. O tema se torna mais discutido quando desfocado do prisma da responsabilidade juvenil, para pretender incluí-lo apenas como uma matéria do Direito Criminal ou somente como assunto de elucubrações sociológicas.

Na reforma do Código Penal Espanhol, que resultou na alteração da idade de imputabilidade penal, anteriormente fixada em 16 anos pelo ordenamento penal herdado do regime franquista, houve intensos debates, redundando na adoção de um modelo semelhante ao alemão, ficando a idade de imputabilidade penal em 18 anos13 . Na América Latina a situação não é diferente, e a matéria enseja discussões em todos os níveis, com ingredientes passionais e de manipulação de informação14 .

A expressão com menor não dá nada, de vezo discriminatório e preconceituoso, ainda se faz presente no inconsciente coletivo, decorrente de uma apreensão equivocada da legislação. Percepção distorcida, que se faz produto da antiga doutrina da situação irregular, montada sobre a idéia fundante de que o infrator necessitava de um certo tratamento, como se portador de uma moléstia. Seria ele portador de uma moléstia social, não sendo considerado como sujeito de seus atos, e sim como objeto de uma ação estatal, que sequer seria jurisdicional, mas administrativa, muito mais voltada para o plano da piedade e da caridade, do que da justiça e do direito. A questão infracional, por esta visão, teria uma consideração exclusivamente sob a ótica da sociologia, desimportando o direito. O Direito da Infância e Adolescência padeceria ainda da pecha de um direito menor.

A idéia da impunidade, ventre nefasto do extermínio de crianças pelo qual o Brasil é tristemente famoso, decorre de uma apreensão equivocada da Lei, fundamentalmente da ignorância e desconhecimento de que o Estatuto da Criança e do Adolescente se constitui em instrumento de responsabilidade do Estado, da Sociedade, da Família, fundamentalmente, mas também do próprio adolescente, que retirado de uma condição de mero objeto do processo, assume definitivamente a condição de sujeito.

Sobre o tema leciona Emílio Garcia Mendez:

Os adolescentes são e devem seguir sendo inimputáveis penalmente, quer dizer, não devem estar submetidos nem ao processo, nem às sanções dos adultos e, sobretudo, jamais e por nenhum motivo devem estar nas mesmas instituições que os adultos. No entanto, os adolescentes são e devem seguir sendo responsáveis por seus atos (típicos, antijurídicos e culpáveis). Não é possível nem conveniente inventar aforismos difusos, tais como uma suposta responsabilidade social somente aparentemente alternativa à responsabilidade penal. Contribuir com a criação de qualquer tipo de imagem que associe adolescência com impunidade (de fato ou de direito) é um desserviço que se faz aos adolescentes, assim como, objetivamente, uma contribuição irresponsável às múltiplas formas de justiça com as próprias mãos, com os quais o Brasil desgraçadamente possui uma ampla experiência. A responsabilidade – neste caso penal – dos adolescentes é um componente central de seu direito a uma plena cidadania. Pretender construir cidadania sem responsabilidade constitui um contra-senso, produto da ingenuidade ou da incompetência. (Garcia Mendez, 2000:14)

Relativamente a esta mudança paradigmática, de objeto do processo para sujeito do processo, em estudos anteriores15 já tivemos oportunidade de abordá-la.

A ordem jurídica não mais se conforma com o velho conceito de menor, discriminatório e preconceituoso, introduzindo um novo conceito jurídico, criança e adolescente, aqueles de zero a doze anos incompletos, e estes de doze a dezoito anos incompletos (ECA, art. 2º).

Aliás, a precisão conceitual se faz imperativa, visando arredar preconceitos, decorrente de exigência ética e de boa técnica presente em todas as áreas, como por exemplo, no plano de Direito de Família. Neste, por anos, houve a utilização com dúplice sentido da palavra concubina. Esta expressão ora designava amásia, ora designava a companheira (aliás, esta, também, outra expressão equívoca). A doutrina e a jurisprudência do Direito de Família acabaram por distinguir concubinato puro de concubinato impuro, para justificar a utilização das expressões, aquele para definir as relações clandestinas e este para as uniões estáveis. Não satisfatório, o conceito evoluiu hoje em uma expressão mais adequada, para a idéia de convivência, a permitir afirmar que aqueles que vivem em união estável vivem convivência e, portanto, são conviventes e não concubinos.

Dessa forma, pela ordem vigente, assim como não se admite que no protocolo de certa solenidade seja apresentado alguém acompanhado de sua concubina fulana de tal; não mais se concebem manchetes de jornal do tipo menor assalta criança, de manifesto conteúdo discriminatório, onde a criança era o filho bem nascido, e o menor o infrator. Tal noticiário se constituía em legítimo produto de uma cultura excludente que norteava o anterior sistema, que distinguia crianças e adolescentes de menores.

Para Emílio Garcia Mendez na análise que fez sobre a velha doutrina da situação irregular em confronto com a nova ordem estabelecida a partir da Convenção das Nações Unidas para o Direito da Criança16 ,

no contexto sócio-econômico da chamada década perdida, resulta supérfluo insistir com cifras para demonstrar a existência de dois tipos de infância na América Latina. Uma minoria com as necessidades básicas amplamente satisfeitas (crianças e adolescentes) e uma maioria com suas necessidades básicas total ou parcialmente insatisfeitas (os menores).

A ideologia que norteia o Estatuto da Criança e do Adolescente se assenta no princípio de que todas as crianças e adolescentes, sem distinção, desfrutam dos mesmos direitos e sujeitam-se a obrigações compatíveis com a peculiar condição de desenvolvimento que desfrutam, rompendo, definitivamente com a idéia até então vigente de que os Juizados de Menores seriam uma justiça para os pobres, posto que, analisada a doutrina da situação irregular, constatava-se que para os bem nascidos

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a legislação baseada naquele primado lhes era absolutamente indiferente.

2.1. O tríplice mito

Mário Volpi, em diversos estudos publicados17, sustenta a existência, em relação ao adolescente em conflito com a lei, de um tríplice mito a animar os arautos do catastrofismo, sempre de prontidão a encontrar no adolescente uma, se não a principal, causa da problemática da segurança pública.

Os mitos são: � do hiperdimensionamento do problema, � da periculosidade do adolescente, � da impunidade.

Destes três mitos, o mais gravoso para a efetividade dos Direitos dos adolescentes tem sido o terceiro, o mito de impunidade, objeto deste trabalho.

Os dois primeiros mitos (do hiperdimensionamento do problema e da periculosidade do adolescente) resultam de uma crescente manipulação de informações, em especial por parte da mídia. A idéia que se faz passar à opinião pública é no sentido de que cada vez há mais adolescentes envolvidos com a criminalidade, que este número é gigantesco e que os atos infracionaispraticados por estes jovens revestem-se cada vez mais de intensa violência.

Nenhuma das duas informações se faz verdadeira. Não há quaisquer dados que autorizem afirmar um crescimento da delinqüência juvenil, tão pouco do incremento da violência, ao ponto de afirmar a periculosidade alarmante destes agentes.

Mário Volpi (2001:15), analisando informações extraídas do Censo Penitenciário Brasileiro, do Ministério da Justiça, traz informação no sentido de que, em 1994, havia 88 presos (adultos) para cada cem mil habitantes no Brasil, enquanto a proporção para adolescentes privados de liberdade era de 3 para os mesmos cem mil habitantes. A proporção entre delitos por adultos e delitos por adolescentes se manteve inalterada três anos depois, pelos dados obtidos oficialmente em 1997. Este fato, considerando que a privação de liberdade se faz a medida restrita aos adolescentes infratores graves e aos reiterados autores de ações infracionais, autoriza a conclusão de que, evidentemente, o alarma resultante do crescimento invencível da chamada delinqüência juvenil não encontra comprovação nos dados estatísticos.

Igualmente os dados desmentem o mito da periculosidade do adolescente infrator. A imagem do jovem infrator, de que seria violento e perigoso, para o qual contribui a mídia mostrando-o com uma voz distorcida nas entrevistas e sem o rosto, permitindo que o imaginário coletivo construa a imagem que desejar, resulta amplamente desmentido pelos dados.

Por certo estamos vivendo um momento extremamente difícil no País. O clima de insegurança que inquieta a sociedade brasileira se faz muito grave, transformando nossas cidades, especialmente as maiores, em cenário de medo e intranqüilidade. Daí, porém, eleger os adolescentes como os responsáveis por esta situação, propondo como solução o rebaixamento da idade de responsabilidade penal, beira a irresponsabilidade total e escancara a falta de compreensão da situação e a incompetência do Estado, induzindo a sociedade em erro. Não é verdadeira a informação no sentido de que sejam os adolescentes os responsáveis pela escalada de violência.

Como se está a demonstrar, os levantamentos estatísticos realizados no País indicam que o percentual de infrações praticadas por adolescentes, se cotejadas com a população adulta (maiores de 18 anos) perfaz menos de dez por cento daquela. Delitos graves (homicídios, estupros, latrocínios) constituem cerca de apenas 19% dos delitos praticados por estes jovens, ou seja, 19% dos dez por cento do total, ou seja, menos de 2% dos delitos praticados. Estes dados estão à disposição de todos no trabalho de Mário Volpi (1999). Ainda assim a opinião pública é induzida a crer que juventude assusta.

Em 1997, apenas um em cada quatro adolescentes privados de liberdade se encontrava nesta situação por haver atentado contra a pessoa. Do total dos atos infracionais praticados por adolescentes no Recife - PE durante o ano de 1996, apenas 3% destes referiam-se a crimes contra a pessoa, sendo que este percentual, no mesmo período, no Rio de Janeiro - RJ, situava-se na órbita dos dez por cento18 .

Leonel Augusto Mayer Neto, especialista em método estatístico, realizou trabalho de pesquisa junto a unidades da FEBEM do Rio Grande do Sul, procurando estabelecer o perfil dos internados, tomando por referências as unidades de Santo Ângelo (CJSA), de Pelotas (CJP), de Caxias do Sul (CJC), de Santa Maria (CJSM) e de Uruguaiana (CJU).

O trabalho de Leonel tomou como referência apenas os adolescentes privados de liberdade, assim sendo seriam aqueles tidos como piores, considerando que o percentual de adolescentes infratores que cumprem medidas socioeducativas em meio aberto (por delitos cometidos sem violência à pessoa em 99% dos casos), representam mais de 95% destes jovens.

Do trabalho de Leonel se extrai:

Apresentaremos, a seguir, os percentuais dos atos infracionais praticados contra a pessoa (homicídio, estupro, tentativa de estupro, tentativa de homicídio, lesões corporais) e contra o patrimônio (furto, roubo e roubo seguido de morte). Aqui, é possível percebermos que os atos infracionais praticados diretamente contra a pessoa tem menor representatividade, se comparados com aqueles que têm o patrimônio como motivação para a prática do ato19 .

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O ato infracional típico da adolescência em conflito com a lei é o furto. Homicídios, latrocínios, estupros ocorrem, mas o percentual destes dados não se fazem impressionantes, tanto que delito com violência praticado por adolescente (felizmente) ainda dá manchete de jornal, ante a banalização da violência.

O jornal Zero Hora de Porto Alegre revela em sua edição de 27.05.2001, nas páginas 44 e 45, com dados fornecidos pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, onde não estão computadas as ocorrências de remissões concertadas, mas apenas os procedimentos em que houve oferecimento de Representação contra Adolescentes, ou seja, onde se instalou o processo de conhecimento de apuração de ato infracional, em todo o Estado do Rio Grande do Sul, que:

ANO Furto e Roubo Narcotráfico Homicídio TOTAL

1999 4.543 152 261 7.703

2000 4.413 161 275 7.865

A não inclusão das remissões concertadas neste dado publicado pela imprensa subtraiu a informação de um número expressivo de ocorrências envolvendo infrações de menor potencial ofensivo, onde não há representação ou onde houve a conclusão de que os mecanismos de família, escola e sociedade foram suficientes para a construção de um projeto socioeducativo com o adolescente sem necessidade de processo.

Incluídos os dados sobre remissões concertadas (e pedidos de arquivamento), ter-se-á uma noção mais clara do conjunto da situação dos adolescentes em conflito com a Lei, permitindo, com os dados do Centro de Apoio das Promotorias da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul, fazer-se um cotejo destes dados, concluindo, necessariamente, que o percentual de atos infracionais graves cometidos por adolescentes (com violência à pessoa ou grave ameaça) faz-se pequeno.

Assim, segundo o Ministério Público do Rio Grande do Sul, nos anos de 1999 e 200020 se teve:

Expedientes/Procedimentos 1999 2000 p/apuração de ato infracional

Representações 7.703 7.865

Remissões 8.846 8.687

Arquivamento 3.079 3.918

A mesma matéria do jornal Zero Hora, citando como fonte o Ministério Público gaúcho, revela que no ano de 1999 houve 2.683 denúncias por homicídio contra adultos, e no ano 2000 houve 2.726, ou seja, as representações contra adolescentes por homicídio são cerca de dez por cento da criminalidade adulta naquele estado.

O jornal Zero Hora estampou como manchete, nesta matéria, em um evidente movimento de alimentação do mito do hiperdimensionamento do problema e da periculosidade dos adolescentes, que um adolescente é denunciado a cada hora. A mesma matéria, com os mesmos dados, oportunizaria outra manchete: um adulto é denunciado a cada cinco minutos.

Os elementos de pesquisa disponíveis apontam, sem dúvida, não ser verdadeira a afirmativa do crescimento da delinqüência juvenil como fator assustador e torna claro que os adolescentes são, em sua esmagadora maioria, o que a mesma mídia costuma definir como, em cotejo com os delitos de colarinho branco, ladrões de galinha.

O que assusta a classe média e inquieta a sociedade, sem dúvida, é a horda de excluídos que se movimentam pelas ruas, meninos e meninas de rua, em situação de risco social e pessoal, porém não infratores, mas vistos como potenciais infratores por quem continua distinguindo, em sua escala de valores, menores de crianças e adolescentes.

2.2. O mito da impunidade

Por fim, o mito da impunidade. O mais grave, o mais prejudicial, apto a lançar sobre o sistema de atendimento a adolescentes em conflito com a lei uma suspeição de inidoneidade. A idéia de que ao adolescente infrator nada se sanciona, que restaria impune de sua conduta infracional, de sua conduta típica e antijurídica, de sua conduta reprovável, em circunstâncias em que se lhe exigiria um agir de acordo com a Lei, tendo plena consciência da ilicitude de seu agir.

Em outra ocasião se afirmou, e aqui se reitera, que o clamor social em relação ao jovem infrator – menor de 18 anos –surge da equivocada sensação de que nada lhes acontece quando autor de infração penal. Seguramente a noção errônea de impunidade se tem revelado o maior obstáculo à plena efetivação do ECA, principalmente diante da crescente onda de violência, em níveis alarmantes.

A criação de grupos de extermínio, como pseudo-defesa da sociedade, foi gerada no ventre nefasto daqueles que não percebem que é exatamente na correta aplicação da lei que está a salvaguarda da sociedade. Todo o questionamento que é feito por estes setores parte da superada doutrina que sustentava o velho Código de Menores, que não reconhecia a criança e o adolescente como sujeitos do processo, mas como meros objetos.

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A experiência que se tem tido nestes anos de aplicação do ECA permite afirmar a eficácia do Estatuto e das medidas socioeducativas que preconiza aos adolescentes autores de infração penal.

A responsabilidade destes jovens, diferentemente do que se afirma, não os faz livres da ação da lei. Ao contrário, ficam subordinados aos ditames da norma, que lhes imporá em caso de culpa, apurada dentro do devido processo legal, medidas socioeducativas compatíveis com sua condição de pessoa em desenvolvimento e ao fato delituoso em que se envolveu. Disso decorre a circunstância de muitos jovens, dentro de uma proposta pedagógica formada, estarem hoje privados de liberdade, em internamento sem direito à atividade externa, recebendo atendimento profissionalizante e educação.

Se, como bem identificou Antônio Cezar Lima da Fonseca (2001), o Estatuto da Criança e do Adolescente contempla um Direito Penal de Proteção à Criança, sancionando os crimes praticados contra a criança e o adolescente; não é menos certo que o ECA incorporando a Doutrina da Proteção Integral, estabelece regras de um Direito Penal Juvenil, sancionando, com medidas socioeducativas, as condutas infracionais praticadas por adolescentes, estabelecendo uma responsabilidade juvenil, uma responsabilidade penal juvenil.

Antônio Fernando Amaral e Silva, a mais alta expressão do pensamento jurídico brasileiro em tema de direito da infância e da juventude, leciona:

A inimputabilidade penal dos menores sempre serviu para legitimar o controle social da pobreza, por isso que os maus filhos das boas famílias, como explicitamos, tinham aberta a larga porta da impunidade.

Mito conveniente, porquanto, a pretexto de proteger, o Estado pôde segregar jovens indesejáveis, sem que tivesse de se submeter aos difíceis caminhos da estrita legalidade, das garantias constitucionais e dos limites do Direito Penal.

As medidas dos antigos Códigos, rotuladas de protetivas, objetivamente, não passavam de penas disfarçadas, impostas sem os critérios da retributividade, da proporcionalidade, principalmente da legalidade.

Penas indeterminadas e medidas de segurança sem os pressupostos da certeza da autoria, por fatos geralmente atípicos, repetiam-se no superior interesse do menor, que precisava ser protegido dos condicionamentos negativos da rua.

Com tal falácia, crianças e adolescentes pobres eram internados, isto é, presos em estabelecimentos penais rotulados de Centros de Recuperação, de Terapia, e até de Proteção, quando não reclusos em cadeias e celas de adultos.

A nova Doutrina, ao reconhecer o caráter sancionatório das medidas socioeducativas, deixa claro a excepcionalidade da respectiva imposição, jungido o juiz aos critérios garantistas do Direito Penal. (Amaral e Silva, 1998)

É do Direito Penal Juvenil, desconstruindo o mito da impunidade, incorporando o garantismo jurídico em sua prática, onde os operadores do Direito e especialmente o Juiz têm o dever de procurar, de uma vez por todas, tornar eficazes os direitos incorporados na Constituição e nas leis, que passamos a nos ocupar.

Unidade AI AI Amostra Total de Período contra contra conside- internações conside- pessoa patrimônio rada ocorridas rado

CJSA 24% 70% 233 233 02-04-98 a 30-04-00

CJP 15% 85% 93 146 18-10-98 a 23-03-00

CJC 16% 79% 151 277 04-01-99 a 27-04-00

CJSM 20% 78% 269 282 02-01-99 a 29-04-00

CJU 41% 59% 78 151 07-01-99 a 25-04-00

AI: ato infracional

13 Em estudo anterior fizemos referência à alteração da legislação espanhola, comparando-a com a alemã. Saraiva, João Batista Costa. Adolescente e Ato Infracional: garantias processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

14 Para análise desta questão, notadamente da evolução do direito da infância e juventude e suas repercussões na América Latina remetendo aos

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debates em torno da aplicabilidade do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil faz-se imprescindível a leitura de texto de Emílio Garcia Mendez: Adolescente e Responsabilidade Penal: Um Debate Latino-Americano – Porto Alegre: AJURIS, ESMP, FESDEP, 2000.

15 Saraiva, João Batista Costa, op. Cit., pp. 15-37. 16 in “Legislação de “Menores” na América Latina: uma doutrina em situação irregular”, texto de Emílio Garcia Mendez. 17 Ver especialmente: Volpi, Mário. O adolescente e o ato infracional. São Paulo, Cortez, 1997; Volpi, Mário e Saraiva, João Batista, O Adolescente e a lei. Brasília, ILANUD, 1998, e mais

recentemente, Volpi, Mário. Sem Liberdade, Sem Direitos: São Paulo, Cortez, 2001. 18 Volpi, Mário. Sem Liberdade, Sem Direitos: São Paulo, Cortez, 2001. 15 e 16. Mayer Neto, Leonel Augusto. Adolescentes autores de atos

infracionais internados em unidades localizadas no interior do Rio Grande do Sul - Algumas Características. Santo Ângelo: MIMEO, 2000. 19 Mayer Neto, Leonel Augusto. Adolescentes autores de atos infracionais internados em unidades localizadas no interior do Rio Grande do Sul -

Algumas Características. Santo Ângelo: MIMEO, 2000. 20 Dados coletados no relatório de Prestação de Contas do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

Capítulo III

O DIREITO PENAL JUVENIL

Nossa “pátria mãe gentil” tem sido madrasta para a grande maioria de seus filhos: cobra de todos, mas oferece condições a poucos... acabará sendo destituída do pátrio poder por abandono.

3. O Direito Penal Juvenil: inimputabilidade penal e responsabilidade penal juvenil

A crescente violência urbana e a desconfortável sensação de insegurança que assola os centros urbanos, em especial as maiores cidades brasileiras, com seus reflexos em todos os segmentos da Nação, inquietam e produzem um sem número de proposições visando o enfrentamento da questão. Neste contexto, a delinqüência juvenil também se mostra um tema angustiante, até porque, como ensina Emílio Garcia Mendez, é suficiente que um problema seja definido como um mal para passar a tornar-se mal.

A Nação clama por segurança, e soluções simplistas são encorajadas, até mesmo porque se estabelece um raciocínio simplista, enfocando um álibi estrutural, que seria a pobreza, apontada como causa da violência, e como esta (a pobreza) não pode ser resolvida (ao menos no imediato), também a violência não teria solução.

A discussão em torno da responsabilidade penal juvenil, da criminalidade juvenil e da delinqüência na adolescência, costuma ser conduzida para que imediatamente o foco seja direcionado para a proposta do rebaixamento da idade penal. Há no Congresso mais de uma dúzia de propostas de Emenda Constitucional neste sentido, inobstante ser sabido que a regra insculpida no art. 228 da CF se constitui em cláusula pétrea21 .

A propósito disso cumpre destacar que o eminente Magistrado Eugênio Couto Terra22 , em tese de Mestrado, sustenta o caráter de cláusula pétrea do disposto no art. 228 da CF, afirmando:

O artigo 228, ao estabelecer a idade mínima para a imputabilidade penal, assegura a todos os cidadãos menores de dezoito anos uma posição jurídica subjetiva, qual seja, a condição de inimputável diante do sistema penal. E tal posição, por sua vez, gera uma posição jurídica objetiva: a de ter a condição de inimputável respeitada pelo Estado.

Num enfoque do ponto de vista individual de todo cidadão menor de dezoito anos, trata-se de garantia asseguradora, em última análise, do direito de liberdade. É, em verdade, uma explicitação do alcance que tem o direito de liberdade em relação aos menores de dezoito anos. Exerce uma típica função de defesa contra o Estado, que fica proibido de proceder a persecução penal.

Trata-se, portanto, de garantia individual, com caráter de fundamentabilidade, pois diretamente ligada ao exercício do direito de liberdade de todo cidadão menor de dezoito anos. E não se pode olvidar que a liberdade sempre está vinculada ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, especialmente em relação às crianças e adolescentes, pois foram reconhecidos como merecedores de absoluta prioridade da atenção da família, da sociedade e do Estado, em face da peculiar condição de seres humanos em desenvolvimento.

No mesmo trabalho, o autor anota oito pontos dando conta da insusceptibilidade de alteração da idade penal mínima a saber: 1. É inviável qualquer interpretação que não passe por um rebate principiológico, ou seja, só é possível aaplicação/interpretação da lei (lato sensu) em consonância com os princípios constitucionais que dão a conformação do Estado Democrático de Direito. E assim é, pois só se justifica o existir do Estado – domínio de homens sobre homens – porque a razão única de sua existência e finalidade é o ser humano. O Estado que não tenha por fim a promoção da dignidade humana – ou, se preferido, a realização dos direitos fundamentais – não tem razão de ser. 2. Uma Constituição, como obra humana que é, sempre

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apresentará imperfeições, além de não poder ficar indiferente às modificações que se operam no mundo em que exerce a sua função direcionadora. Logo, a possibilidade de sua reforma é imperativa, até para que não venha a perder a sua força normativa. A reforma constitucional é meio de vivificação da Constituição, pois permite a sua atualização e adequação à realidade. Entretanto, a atividade reformatória, por limitada, não pode transformar-se num meio de desnaturação da vontade do Constituinte originário, sob pena de ser cometida fraude contra a Constituição. A impossibilidade de reforma irrestrita tem por finalidade a preservação do núcleo essencial da Constituição, impedindo que ocorra a perda de sua conexão de sentidos, que é o que lhe dá unidade sistêmica. 3. A Constituição, ao determinar prioridade absoluta na concretização das condições de uma existência digna para a infância e juventude, estabelece que a promoção da dignidade humana dessa categoria de cidadãos tem natureza fundamental, posto que visceralmente ligada ao princípio da dignidade humana. 4. O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADIn nº 939, que versava sobre a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional que instituiu o IPMF, delineou o seu entendimento sobre a possibilidade de existência de direito fundamental fora do catálogo previsto na Constituição. Foi reconhecido o caráter materialmente aberto dos direitos fundamentais, posto que podem ser localizados em qualquer local do texto constitucional (e até fora dele), sempre que presente uma posição de fundamentabilidade no conteúdo do direito. Ocorreu, com isso, o acolhimento jurisprudencial da posição da doutrina majoritária. Para além disso, a Corte Constitucional reconheceu que a Constituição é uma unidade sistêmica, em que há um entrelaçamento entre princípios e direitos fundamentais, devendo haver um respeito incondicional aos princípios informativos da Carta Política. Foi ressaltado, também, que os limites à reforma constitucional devem ser observados, pois visam assegurar a obra do Poder Constituinte, não cabendo ao Poder Reformador agir para desnaturar os direitos e garantias fundamentais insculpidos na Constituição, razão pela qual a pretensão reformatória que possa atingir o núcleo essencial de direito protegido por cláusula de intangibilidade deve, necessariamente, ter uma apreciação restritiva. 5. Sendo a regra que estabelece a idade da imputabilidade penal uma opção política do Constituinte, tanto que a erigiu à condição de norma constitucional, deve assim ser respeitada, visto que a sua constitucionalização implicou na mudança de sua natureza jurídica. 6. Apresenta-se como um direito de defesa da liberdade de todo cidadão menor de dezoito anos de idade, a exigir uma abstenção do Estado, qual seja, a de não promover a persecução penal. Nessa ótica, é garantia (direito-garantia) de direito individual, cuja condição de claúsula pétrea tem expressa (e literal) previsão constitucional (artigo 60, § 4º, inc. IV). 7. Por outra dimensão, apresenta-se como condição de possibilidade do pleno exercício à fruição dos direitos a prestações – garantes de um pleno desenvolvimento social – outorgados à infância e juventude pelo artigo 227 e parágrafos da Lei Maior. E assim é, pois a idade da maioridade penal é que demarca o limite da adolescência. Diminuída, implicaria afastar da condição de adolescente uma parcela dos cidadãos menores de dezoito anos. 8. O artigo 228 da Constituição é regra de imbricação direta com o princípio da dignidade humana, pois preservadora do direito de liberdade, caracterizando-se como autêntico direito fundamental. Logo, pela proibição de retrocesso da posição jurídica outorgada, no que se refere ao seu conteúdo de dignidade humana, é insuscetível de qualquer modificação. Além do que, uma interpretação desse artigo conforme o Estado Democrático de Direito afasta toda e qualquer possibilidade de que sofra alteração.

3.1 O Direito Penal Juvenil e o ECA: nem Direito Penal Máximo, nem Abolicionismo Penal

No torvelinho de idéias e confronto de argumentos que se estabelece, em especial no meio jurídico, emerge com clareza, em um extremo os partidários da Doutrina do Direito Penal Máximo, idéia fundante do Movimento Lei e Ordem, que imagina que com mais rigor, com mais pena, com mais cadeia, com mais repressão em todos os níveis, haverá mais segurança. No outro extremo, os seguidores da idéia do Abolicionismo Penal, para quem o Direito Penal com sua proposta retributiva faliu, que a sociedade deve construir novas alternativas para o enfrentamento da criminalidade, que a questão da segurança é essencialmente social e não penal, etc.

Em meio a estes extremos que se opõem há a Doutrina do Direito Penal Mínimo, que reconhece a necessidade da prisão para determinadas situações, que propõe a construção de penas alternativas, reservando a privação de liberdade para os casos que representem um risco social efetivo, buscando nortear a prisão por princípios como o da brevidade e o da excepcionalidade, havendo clareza que existem circunstâncias em que a prisão se constitui em uma necessidade de retribuição e educação que o Estado deve impor a seus cidadãos que infringirem certas regras de conduta.

Na verdade, entre os direitos fundamentais há o direito à punição, à possibilidade de expiação, tanto que é comum, na linguagem carcerária, a expressão dos detentos de estar ali “pagando”. De certa forma, parece insuportável a idéia do estar devendo, daí porque o pagar é encarado com natural acatamento, sendo justa e proporcional a retribuição.

Dito tudo isso, há que se afirmar que a discussão da questão infracional na adolescência está mal focada, com, muitas vezes, desconhecimento de causa. Ignora-se, por exemplo, que o Estatuto da Criança e do Adolescente instituiu no país um Direito Penal Juvenil, estabelecendo um sistema de sancionamento, de caráter pedagógico em sua concepção, mas evidentemente retributivo em sua forma, articulado sob o fundamento do garantismo penal e de todos os princípios norteadores do sistema penal enquanto instrumento de cidadania, fundado nos princípios do Direito Penal Mínimo.

Quando se afirma tal questão, não se está a inventar um Direito Penal Juvenil. Assim como o Brasil não foi descoberto pelos portugueses, sempre existiu. Estava aqui. Na realidade foi desvelado. O Direito Penal Juvenil está ínsito ao sistema do ECA.

A crise no sistema de atendimento a adolescentes infratores privados de liberdade no Brasil só não é maior que a crise do sistema penitenciário, para onde se pretende transferir os jovens infratores com menos de dezoito anos. Esta crise do sistema dos adolescentes se torna mais aguda quando os arautos do catastrofismo, sob argumentos os mais variados, até mesmo de defesa dos direitos humanos, deixam de demonstrar uma série de experiências notáveis que se desenvolvem nesta área no País, passando uma falsa idéia de inviabilidade do sistema. Sistema esse que tem, quer se goste quer não se goste, um efetivo perfil prisional em certo aspecto, pois é inegável que do ponto de vista objetivo, a privação de liberdade do internamento faz-se tão ou mais aflitivo que a pena de prisão do sistema penal.

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Do ponto de vista das sanções, há medidas socioeducativas que têm a mesma correspondência das penas alternativas, haja vista a prestação de serviços à comunidade prevista em um e outro sistema com, praticamente, o mesmo perfil.

O que deve ser feito, visando preservar uma geração que agoniza, não é lançá-la no fundo poço do sistema penal, igualando desiguais.

Há vários parâmetros para o estabelecimento do módulo máximo de privação de liberdade que pode ser imposto a um adolescente em conflito com a Lei. Pelo ECA foi fixado no Brasil em um teto de três anos, mas na Alemanha pode alcançar dez anos, na Costa Rica chega atingir quinze anos, no México é de cinco anos, no Panamá é de dois anos, etc.23

O que não é possível é que se desperdice a chance que o Estatuto da Criança e do Adolescente nos deu para construir um sistema de garantias, um verdadeiro sistema penal juvenil, que por incompetência ou despreparo não querem ver funcionar plenamente, retrocedendo com propostas de redução de idade de imputabilidade penal, tratando desiguais como se fossem iguais.

3.2 O tríplice sistema de garantias proposto pelo ECA

Trabalhando com a idéia de que o Direito da Infância e Juventude, no trato da questão infracional, na delinqüência juvenil, vem organizado sobre a idéia fundante de um Direito Penal Juvenil, há que se desconstruir, de uma vez por todas, o mito da impunidade, fator determinante da crise de implementação do ECA, o qual, passados tantos anos de vigência, ainda se ressente da ausência de programas socioeducativos em meio aberto na maioria dos municípios brasileiros. Esta crise de implementação, como realçado por Emílio Garcia Mendez, decorre de outra ainda mais grave, na medida em que vulnera o próprio texto legal, a crise de interpretação, que adiante retomaremos.

Cumpre fixar que o ECA disponibiliza todo um aparato de caráter retributivo e pedagógico à disposição do Estado e da sociedade para o enfrentamento da questão da chamada delinqüência juvenil, apto a, do ponto de vista da reação social, trazer a resposta que a sociedade almeja enquanto instrumento de segurança pública, bem como propondo paralelamente, a construção de políticas básicas fundamentais de caráter preventivo.

O Direito Penal Juvenil vem fundado no sistema garantista preconizado por Luigi Ferraioli e se faz conseqüência da Doutrina da Proteção Integral, cuja transposição para o ECA, elevando a criança e o adolescente à condição de sujeito de direito, trouxe o estabelecimento de três níveis de garantias.

Estes três níveis se organizam em três planos de ações preventivas24 :

� o nível primário onde se situam as Políticas Públicas gerais relativas à infância e à juventude no âmbito da educação, da saúde, da habitação, etc. (art. 4º do ECA e 227 da Constituição Federal);

� no nível secundário onde se listam as chamadas medidas de proteção aplicáveis a crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal (art. 101, do ECA); e

� no nível terciário, as medidas aplicáveis a adolescentes autores de atos infracionais e as medidas socioeducativas (art. 112, do ECA).

O caráter retributivo das medidas socioeducativas, de quaisquer delas, mas especialmente daquelas privativas de liberdade, não prevalece sobre sua carga pedagógica. Porém, não pode ser desconsiderado. As Medidas Socioeducativas guardam, no que respeita ao seu caráter de retribuição face alguma conduta infracional, certa simetria ao sistema penal, com seu caráter aflitivo, como lecionava o grande Basileu Garcia, a enfatizar este (o grau de aflitividade) como o traço caracterizador da sanção .

3.3. A Medida Socioeducativa

A abordagem do tema relativo às medidas socioeducativas oportuniza uma série de reflexões. Em estudos anteriores25 já nos reportamos à matéria, cuja compreensão faz-se imprescindível para o domínio deste ramo do Direito. Há experiências magníficas em andamento no Brasil, com resultados impressionantes, redução de reincidência, comprometimento do Estado e da sociedade e resultados expressivos. A par dessa situação há fracassos que não podem ser ignorados, indiferença do Poder Público (Executivo, como um todo, e Sistema de Justiça – onde incluo Judiciário, Ministério Público e Organismos de Segurança e Atendimento) e indiferença da própria sociedade.

As boas experiências, inclusive em privação de liberdade, raramente encontram espaço na imprensa para divulgação. Já o contrário é objeto de denúncias que se sucedem, como tem sido, por exemplo - e com acerto na denúncia, por se constituir em uma situação insuportável e inadmissível - o modelo de atendimento para adolescentes privados de liberdade da FEBEM de São Paulo, exposta na mídia seguidamente por suas mazelas e violação dos direitos humanos dos adolescentes, em primeiríssimo lugar, mas também de suas vítimas e do próprio pessoal que trabalha com estes jovens. Chegam a lembrar o porão do La

Amistad26 .

Como sabemos, é inegável que estes jovens são, antes de mais nada, vítimas de um sistema. Vítimas do abandono estatal e da família, no mais das vezes. Mas, é inegável , que também são ou que também tornam-se vitimizadores. Na carreira infracional o adolescente em conflito com a lei costuma iniciar vitimizando seus iguais, no próprio bairro onde mora.

Do sucesso no trato da questão infracional, de nossa capacidade de demonstrar o sentido de responsabilização da Lei, que

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contempla direitos e obrigações, depende o futuro não apenas do Estatuto da Criança e do Adolescente, como modelo, mas o futuro da própria infância e juventude no País.

Nesta questão da infância e da juventude, particularmente na problemática da delinqüência juvenil, parafraseando Cecília Meireles: ou tomamos o destino em nossas mãos e o conduzimos, ou nos deixamos conduzir pelo destino que, neste caso, nos levará inevitavelmente ao caos.

Como as boas experiências não têm sido relatadas, é incutido na opinião pública um sentimento falso de que o modelo de atendimento de adolescentes infratores está fadado a não funcionar. Ao lado disso, os inimigos do ECA propalam aos quatro ventos, semeando sofismas e muitas inverdades, a idéia falsa de que o ECA teria se transformado em um instrumento de impunidade, confundindo conceitos, não sabendo estabelecer a diferença entre inimputabilidade penal - ou seja, a vedação de submeter-se o adolescente ao regramento penal imposto ao adulto, no Brasil os maiores de 18 anos - e impunidade. Por não saberem distinguir inimputabilidade de impunidade induzem em erro a opinião pública, trazem propostas reducionistas à idade de responsabilidade penal, distorcem fatos. Muitos o fazem por desconhecimento, por ignorarem os instrumentos que o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe. Vomitam aquilo do qual não se alimentaram, como certa vez sentenciou Antônio Carlos Gomes da Costa.

Considerando uma distinção entre maioridade civil: a idade em que se atinge a capacidade de exercício pessoal dos atos da vida civil, sem necessidade de assistência ou representação (que no Brasil, ao menos até vigência do Novo Código Civil se dá aos 21 anos); maioridade penal (imputabilidade penal), que no Brasil se dá aos 18 anos de idade; e idade de responsabilidade penal juvenil, que no Brasil surge na adolescência, ao se completar 12 anos de idade, cumpre remeter o leitor à tabela incluída no anexo deste trabalho onde se incluem as idades de maioridade civil, maioridade penal (imputabilidade) e idade de responsabilidade penal juvenil, em países de comunidade européia.

A propósito de idade de responsabilidade penal, onde seguidamente os Estados Unidos da América são invocados como paradigmas, cumpre destacar que em Estados como Califórnia, Arkansas e Wyoming a idade de imputabilidade penal está fixada em 21 anos. Já países como Índia, Paraguai e Egito estabelecem a idade de imputabilidade penal em 15 anos27 .

Assim se aproveitam os simplistas de prontidão, diante do clima de insegurança, violência e medo que desnorteia a sociedade brasileira, vitimizada pelo desemprego e pela paralisia de seus governantes, e bradam com propostas de redução de idade de imputabilidade penal, induzindo a opinião pública no equívoco de que inimputabilidade seria sinônimo de impunidade, construindo um imaginário de que tal alternativa seria apta a conter a criminalidade e restabelecer a ordem28 .

É passada a idéia de que o sistema de atendimento de infratores não tem jeito, e que motins e insurreições são da rotina deste processo, com mortes e desrespeito dos direitos humanos de todos, dos infratores, de suas vítimas, dos trabalhadores do sistema.

A par disso, decorrente da já mencionada crise de interpretação do ECA, ainda grassa um debate relativamente à natureza jurídica da medida socioeducativa, se o Estatuto contemplou ou não, sob este ou outro adjetivo, um direito penal juvenil, sancionatório do adolescente quando autor de conduta a qual a Lei Penal define como crime ou contravenção29 .

Este debate resultou exacerbado desde que passou a ser discutida no Brasil a necessidade ou não de uma Lei para regular a execução das medidas socioeducativas, ante a ausência de disposições específicas, notadamente a partir de uma proposta de esboço de anteprojeto da lavra do eminente Desembargador Catarinense Antônio Fernando do Amaral e Silva, intransigente defensor do ECA, que ensejou muita polêmica entre os militantes da área da infância e juventude30 .

3.4. A proposta de uma Lei de Diretrizes Socioeducativas em complemento ao ECA

Superada a divergência sobre a necessidade de regulamentação do procedimento de execução de medidas socioeducativas, resultou produzida outra proposta, de uma Lei de Diretrizes Socioeducativa, posta em discussão.

A proposta de uma Lei de Diretrizes Socioeducativas (LDS) surgiu por ocasião do 18º Congresso da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude, ocorrido em Gramado (RS), no período de 14 a 17 de novembro de 1999.

Naquela ocasião foi formado um grupo de trabalho para, afirmada a necessidade de regulamentação dos procedimentos de execução de medidas socioeducativas, oferecer um projeto alternativo ao elaborado pelo Desembargador Amaral e Silva. O grupo teve como incumbência apresentar proposta alternativa que viesse a explicitar processual e procedimentalmente a efetivação das medidas socioeducativas e demais garantias estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente31.

Na proposta em discussão, a de Lei de Diretrizes Socioeducativas, considerando a apresentação feita pelo Grupo de Trabalho, tem-se oito Títulos.

No Título I (Disposições Gerais) estabelecem-se alguns pressupostos que até então preocupavam a comunidade jurídica e administrativa, entre os quais os critérios de municipalização das medidas socioeducativas, a sua prescritibilidade, além da exigência e conceito da proposta pedagógica, e a sua prevalência sobre o caráter sancionatório.

O Título II (Da Formação do Título Executivo) contempla, entre outras tantas garantias, a forma do início da execução, seja através de ofício da autoridade judiciária para a autoridade administrativa, nas hipóteses de internação decretada antes da

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sentença (Estatuto, artigo 108), ou guia de execução quando da aplicação das demais medidas socioeducativas decorrentes de sentença, e finalmente disciplina as exigências para a execução da denominada internação-sanção (Estatuto, artigo 122, III), estabelecendo rigorosamente os documentos que devem acompanhar a peça de encaminhamento, visando assegurar a boa aplicação da medida pelos técnicos e equipe administrativa.

No Título III (Das Atribuições dos Operadores do Sistema) trata-se dos personagens do procedimento desde o Juízo da Execução, do Ministério Público, da Defensoria Pública, das Entidades de Execução de Medidas em Meio Aberto e das Entidades de Execução de Medidas Privativas de Liberdade.

No Título IV (Da Competência e do Plano Individual de Atendimento), a proposta traz a exigência de um plano individual para a execução da medida socioeducativa, com características personalíssimas para o seu adequado cumprimento.

O Título V (Das Medidas Socioeducativas ) enfrenta e disciplina cada uma delas em seus seis Capítulos.

O Título VI estabelece as regras referentes aos Incidentes da Execução, enquanto o Título VII fixa o recurso cabível às decisões proferidas pelo Juiz da execução, e as Disposições Finais e Transitórias, constantes do Título VIII, concluem as regras básicas que a comissão entendeu necessárias para o êxito das medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes infratores.

3.5 A crise de interpretação

Ocorre que a ausência de programas de efetivação de medidas socioeducativas e a não satisfação dos três planos de garantia em que se sustenta o ECA geraram uma crise de implementação do sistema, circunstância que põe em cheque toda a proposta do ECA.

Associada à crise da não percepção da existência de um Direito Penal Juvenil, a resistência decorrente da antiga cultura da Doutrina da Situação Irregular gera uma segunda crise.

É neste contexto que Emílio Garcia Mendez (2000) tem afirmado a superveniência desta segunda crise, ainda não vencida a primeira. A primeira seria a crise de implementação do ECA, ainda não vencida haja vista a ausência ou insuficiência de programas socioeducativos. A segunda crise seria uma crise de interpretação, onde alguns, afirmando estarem defendendo o ECA, sustentam a Doutrina da Situação Irregular, agora travestida sob outras vestes.

A certeza que se extrai de todo o debate e do ambiente que se estabelece diz a necessidade de se demonstrar o óbvio. Sim, porque o óbvio precisa ser dito, ou como costuma afirmar o bom Lênio Streck, “é preciso retirar o óbvio do anonimato”. Qual seja, de que o Estatuto prevê soluções adequadas e efetivas à questão da chamada delinqüência juvenil e o que nos tem faltado é a efetivação destas propostas, seguramente por ausência de decisão política, mas não apenas por isso, também pela inação da sociedade, que parece, em especial em nossos centros urbanos maiores, adormecida, indiferente ao destino de nossas crianças e jovens, prioridade absoluta da Nação brasileira.

3.6 Uma reflexão necessária

Certa feita utilizei uma referência feita por Moacir Scliar em um artigo seu, onde relata história contada por Simone de Beauvoir, buscando eu simbolizar o equívoco na condução do debate relativo à delinqüência juvenil em face ao nosso ordenamento jurídico e organização política e social. Cabe aqui retomar esta parábola.

Na história contada por Simone, uma mulher maltrada pelo marido arranjara um amante, a cuja casa ia uma vez por semana. Para visitar o amante tinha de atravessar um rio e podia fazê-lo de duas maneiras: por barca ou por uma ponte. Ocorre que nas vizinhanças havia um conhecido assassino, motivo pelo qual a mulher a evitava. Um dia, demorou-se mais que de costume, e quando chegou ao rio, o barqueiro não quis levá-la, dizendo que seu expediente tinha terminado. A mulher pediu ao amante que a acompanhasse até a ponte, mas este recusou, alegando cansaço. A mulher resolveu arriscar e o assassino a matou.

Simone então pergunta: quem é o culpado? O barqueiro burocrata? O amante negligente? Ou a própria mulher, por adúltera? E comenta: “Em geral, as pessoas culpam um destes três, mas ninguém se lembra do assassino. É como se fosse normal para um assassino assassinar.

Quando se retoma com força a idéia de redução da idade de responsabilidade penal para fazer imputável os jovens a partir dos 16 anos (há quem defenda menos), em especial porque se desconhece as medidas socioeducativas, esta história permite uma transposição para a realidade de nossa discussão.

Esta tese, do rebaixamento da idade, em princípio, convenço-me, faz-se inconstitucional, pois o direito insculpido no art. 228 da CF (que fixa em 18 anos a idade de responsabilidade penal) se constitui em cláusula pétrea, pois é inegável seu conteúdo de “direito e garantia individual”, referido no art. 60, IV da CF como insusceptível de emenda. Demais, a pretensão de redução viola o disposto no art. 41 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, onde está implícito que os signatários não tornarão mais gravosa a lei interna de seus países. O texto da Convenção se faz Lei interna de caráter constitucional à luz do parágrafo segundo do art. 5º da CF.

Mas a questão de fundo não é esta. Tangenciando a sempre lembrada tese do discernimento - absolutamente descabida,

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pois é notório que se trata de decisão de política criminal a fixação etária - tal procedimento vem na contramão da história, vide a recente reforma do Código Penal Espanhol, que desde o tempo da ditadura franquista fixava a responsabilidade penal em 16 anos e que agora foi elevada para 18 anos.

A questão da responsabilização do adolescente infrator e a eventual sensação da impunidade que é passada para a opinião pública decorre não do texto legal nem da necessidade de sua alteração - mesmo se admitindo não ser o Estatuto da Criança e do Adolescente uma obra pronta e acabada. A questão toda se funda na incompetência do Estado na execução das medidas socioeducativas previstas na Lei, a inexistência ou insuficiência de programas de execução de medidas em meio aberto e a carência do sistema de internamento (privação de liberdade), denunciado diariamente pela imprensa, com raras e honrosas exceções.

Como no caso do homicídio da mulher adúltera narrado por Simone, fica-se discutindo o crescimento da violência juvenil, esquecendo que tem como causas o desemprego, a miséria, a deseducação e a desagregação familiar. Fica-se afirmando a necessidade de redução da responsabilidade penal, esquecendo-se que o sistema penal brasileiro é caótico, pretendendo lançar jovens de 16 anos no convívio de criminosos adultos, e não se fala do verdadeiro vilão, qual seja, a ausência de comprometimento do Estado e da sociedade com a efetivação das propostas trazidas pelo ECA.

O modelo preconizado pelo ECA é totalmente eficaz e adequado, e estão aí as experiências onde houve uma efetiva aplicação a demonstrar o que afirmo, responsabilizando e recuperando jovens, devendo sim ser efetivado o que Marcel Hopevaticina: O Estatuto é a receita, que a nós cumpre aviar.

Em resumo: falhas há e são graves, mas não são falhas de legislação.

O erro que subsiste está na execução das medidas, na ausência (ou insuficiência) de investimentos nesta área e na necessidade de uma organização própria e especializada para o trato de jovens em confronto com a lei, os quais exigem tratamento diferenciado daquele dedicado a jovens e crianças em situação exclusiva de abandono ou portadores de necessidades especiais.

No que respeita ao projeto socioeducativo, há necessidade de uma regulamentação em complemento ao ECA, definindo procedimentos e estabelecendo com clareza os limites de responsabilidade de cada ator que opera na cena do trato do adolescente em conflito com a lei.

Daí ser oportuno que exista uma lei de execução de medidas socioeducativas, rompendo com a desregulamentação desta área e opondo-se definitivamente ao arbítrio.

A desregulamentação na área de execução das medidas socioeducativas, em flagrante oposição ao garantismo penal que deve presidir o sistema, permite referir Emílio Garcia Mendez, que, citando Ferraioli, lembra:

a ausência de regras nunca é tal; a ausência de regras é sempre a regra do mais forte. No contexto histórico das relações do Estado e dos adultos com a infância, a discricionariedade tem funcionado sempre de fato e de direito, a médio e longo prazo, como um mal em si mesmo. Além de incorreta, a visão subjetiva e discricional é miopemente imediatista e falsamente progressista. (Garcia Mendez, 2000)

Enquanto se despende energia vital discutindo redução da idade de responsabilidade criminal, permanecemos a ignorar a questão fundamental, qual seja, basta se dar meios de execução às medidas que o ECA propõe que se alcançarão os resultados que toda a sociedade afirma desejar.

O fato é que falamos muito em igualdade de direitos e de obrigações, mas no momento de cobrarmos, especialmente dos excluídos suas obrigações, que são iguais às que exigimos dos incluídos, esquecemo-nos de que àqueles não se asseguram os mesmos direitos do que a estes .

Nossa “pátria mãe gentil” tem sido madrasta para a grande maioria de seus filhos: cobra de todos, mas oferece condições a poucos... Acabará sendo destituída do pátrio poder por abandono.

21 Sobre o tema: Gomes Neto, Gercino Gerson. A Inimputabilidade Penal como Cláusula Pétrea. Florianópolis: Centro das Promotorias da Infância, 2000.

22 Terra, Eugênio Couto. A Idade Penal Mínima como Cláusula Pétrea. Santa Maria. MIMEO, 2001

23 No anexo a este trabalho há uma tabela apontando a síntese do sistema de responsabilização juvenil em diversos países latino-americanos.

24 Sobre o tema: Pereira, Tânia da Silva. Direito da Criança e do Adolescente: Uma proposta Interdisciplinar. Rio de Janeiro : Renovar, 1996, eBrancher, Leoberto Narciso. Semântica da Exclusão. Revista da ESMESC. Florianópolis: AMC, 1998, p. 69.

25 Saraiva, João Batista Costa. Op. Cit.

26 Navio negreiro que em 1839 partiu de Havana, Cuba, levando 53 escravos africanos, entre eles 4 crianças. Amotinados, após confronto que gerou várias mortes, os Africanos tomaram o comando. Vagaram por dois meses e foram levados pelo vento à costa norte-americana. Foram presos e acusados de pirataria e assassinato. Graças à intervenção de abolicionistas foram finalmente absolvidos e libertados.

27 Terra, Eugênio Couto. Op. Cit.

28 Sobre o tema: Saraiva, João Batista; Koerner Júnior, Rolf, Volpi, Mário (Org.). A normativa Nacional e Internacional & Reflexões sobre a responsabilidade penal dos adolescentes. FONACRIAD. São Paulo: Cortez, 1997.

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29 obre o tema: Amaral e Silva, Antônio Fernando do. “O mito da inimputabilidade Penal do Adolescente”. In Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, v. 5, Florianópolis: AMC, 1998, e Saraiva, João Batista Costa. “Adolescente e Ato Infracional: garantias processuais e medidas socioeducativas”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

30 Esboço para um anteprojeto de Lei de Execuções de Medidas Socioeducativas , Texto da Discussão, publicado pela ABMP, em 1998.

31 O grupo resultou formado por Eleonora Machado Poglia, Promotora de Justiça/RS, José Luís Alicke, Procurador de Justiça/SP, Luciana BergamoTchorbadjian, Promotora de Justiça/SP, Munir Cury, Procurador de Justiça aposentado/SP, Murillo José Digiácomo, Promotor de Justiça/PR, Wilson Donizetti Liberatti, Procurador de Justiça aposentado/RO e João Batista Costa Saraiva, Juiz de Direito/RS.

Capítulo IV

DESCONSTRUINDO O MITO DA IMPUNIDADE

O Estado de Direito se organiza no binômio direito/dever, de modo que às pessoas em peculiar condição de desenvolvimento, assim definidas em lei, cumpre ao Estado definir-lhes direitos e deveres próprios de sua condição.

4. A Natureza Jurídica da Medida Socioeducativa

É inegável que o Estatuto da Criança e do Adolescente construiu um novo modelo de responsabilização do adolescente infrator.

Quando nosso País rompeu com a vetusta doutrina da situação irregular e incorporou a Doutrina da Proteção Integral, promovendo o então menor, mero objeto do processo, para uma nova categoria jurídica, passando-o à condição de sujeito do processo, conceituando criança e adolescente em seu artigo segundo, estabeleceu uma relação de direito e dever, observada a condição especial de pessoa em desenvolvimento reconhecida ao adolescente.

O conceito que se pretenda emprestar ao sistema jurídico adotado pelo ECA no tratamento da questão do adolescente em conflito com a Lei, o nomem juris deste sistema, tem provocado algumas reações. Se desejarem chamar de sistema de responsabilização especial, se de responsabilização estatutária, se de responsabilização infracional, ao invés de direito penal juvenil, desimporta.

O fundamental é que exista clareza que o ECA impõe sanções aos adolescentes autores de ato infracional e que a aplicação destas sanções, aptas a interferir, limitar e até suprimir temporariamente a liberdade dos jovens, há que se dar dentro do devido processo legal, sob princípios que são extraídos do direito penal, do garantismo jurídico e, especialmente, da ordem constitucional que assegura os direitos de cidadania.

O Estado de Direito se organiza no binômio direito/dever, de modo que às pessoas em peculiar condição de desenvolvimento, assim definidas em lei, cumpre ao Estado definir-lhes direitos e deveres próprios de sua condição.

A sanção estatutária, nominada medida socioeducativa, tem inegável conteúdo aflitivo (na lição legada por Basileu Garcia) e por certo esta carga retributiva se constitui em elemento pedagógico imprescindível à construção da própria essência da proposta socioeducativa. Há a regra e há o ônus de sua violação.

Desta forma, somente poderá ser sancionável o adolescente em determinadas situações. Só receberá medida socioeducativase autor de determinados atos. Quais? Quando autor de ato infracional. E o que é ato infracional? A conduta descrita na Lei (Penal) como crime e contravenção.

Não existe mais o vago e impreciso conceito de desvio de conduta, tantas vezes invocado no anterior sistema, sob arrimo do art. 2º, inc. V, do antigo Código de Menores, para segregar menores inconvenientes32 .

Desde o advento do ECA vige o princípio da legalidade ou da anterioridade penal33 . Ou seja, somente haverá medida socioeducativa se ao adolescente estiver sendo atribuída a prática de uma conduta típica.

Ainda assim, para sofrer a ação estatal visando a sua socioeducação haverá de esta conduta ser reprovável, ser passível desta resposta socioeducativa que o Estado sancionador pretende lhe impor, na medida em que o Ministério Público, na Representação que oferece, deduz a pretensão socioeducativa do Estado em face ao adolescente ao qual atribui a prática de ato infracional.

A conduta, pois, além de típica, há de ser antijurídica, ou seja, que não tenha sido praticada sob o pálio de quaisquer das justificadoras legais, as causas excludentes da ilicitude previstas no art. 23 do Código Penal. Se agiu o jovem em legítima defesa, ele, como o penalmente imputável, terá de ser absolvido, mesmo tendo praticado um fato típico. Será absolvido com fundamento no art. 189, III, do ECA, ou seja, por não constituir o fato ato infracional.

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Há que se ter em mente o conceito de crime (ato típico, antijurídico e culpável). Não sendo antijurídico não será a conduta típica crime e, não sendo a conduta típica crime também não será ato infracional.

Igualmente não haverá ato infracional quando sua conduta não for culpável, excluindo-se do conceito de culpabilidade o elemento biológico da imputabilidade penal, ou, como para alguns, o pressuposto da culpabilidade34 .

Assim sendo, excluído o pressuposto da culpabilidade do ponto de vista da imputabilidade penal, os demais elementos da culpabilidade hão de ser considerados, a saber, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa, circunstâncias que levam à reprovabilidade da conduta.

Se a ação cometida pelo adolescente, embora típica e antijurídica, por ausência de elementos de culpabilidade não for reprovável, assim como ao adulto não caberá a imposição de pena, ao adolescente não se lhe poderá impor medida socioeducativa.

Não haverá culpabilidade e, em conseqüência, não haverá sanção socioeducativa quando houver na conduta do adolescente erro inevitável sobre a ilicitude do fato (art. 21, do Código Penal); erro inevitável a respeito do fato que configuraria uma descriminante – descriminantes putativas (art. 20, § 1º, do Código Penal); obediência à ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico (art. 22, Segunda parte, do Código Penal) e ainda a inexigibilidade de conduta diversa na coação moral irresistível (art. 22, primeira parte, do Código Penal) 35 .

Assim, se no agir do adolescente lhe for inexigível conduta diversa, como legou ao mundo jurídico a doutrina penal alemã, não poderá este ser sancionado com medida socioeducativa, haja vista que um penalmente imputável nestas condições também não teria sua conduta reprovada e não seria penalizado.

O jovem, em certas situações, até poderá necessitar de medida de proteção, como o acompanhamento e orientação temporários, dentre as demais listadas no art. 101, em face a alguma situação pessoal ou social que reclame esta medida protetiva, nos termos do 98 do ECA. Todavia, jamais será destinatário de uma medida socioeducativa quando o seu agir, fosse ele penalmente imputável, se fizesse insusceptível de reprovação estatal.

São estes efeitos, entre tantos, que, no plano do direito, trouxe a Doutrina da Proteção Integral para o corpo do ordenamento jurídico pátrio, incorporando no ECA, no trato da questão infracional, toda a idéia do Garantismo Jurídico, da estrita legalidade, dos princípios da legalidade e do devido processo legal.

Desta forma, há que ser examinado o cabimento da aplicação da medida socioeducativa ao infrator sob o prisma, sob os fundamentos do Direito Penal.

Faz-se pacífico que a Medida Socioeducativa se constitui em um sancionamento estatal36 , tanto que somente o Judiciário pode impô-la, mesmo nos casos em que esta venha a ser concertada pelo Ministério Público em sede de remissão37.

Para realçar este aspecto, não pode ser olvidado que o descumprimento injustificado e reiterado de medida socioeducativaem meio aberto (v.g. Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade) anteriormente imposta, pode sujeitar o adolescente à privação de liberdade, nos termos do art. 122, III, do ECA.

Assim, mesmo em uma medida socioeducativa em meio aberto tem o adolescente sobre sua cabeça esta espada do Estado. É inegável, pois, o caráter aflitivo desta imposição.

Daí porque deveria estar presente o Defensor do Adolescente, mesmo naquela audiência preliminar (pré-processual) feita perante o Ministério Público, quando da apresentação do adolescente ao Órgão do Parquet (arts.175 a 180, do ECA), quando não raras vezes é concertada a remissão (e aí há concerto e não concessão, porque quem concede é Autoridade Judiciária quando homologa o ato).

A presença do Defensor neste ato traria o necessário equilíbrio à relação, mesmo sendo esta pré-processual, haja vista os efeitos disso resultante. Identifica-se aqui, na atual redação da Lei, uma concessão feita pelo ECA à antiga doutrina da situação irregular, tendo apenas transferido a antiga condição do Juiz de Menores, agora ao Promotor da Infância.

Visando a obrigatoriedade de presença de Defensor nesta fase pré-processual, tramita proposta de alteração do ECA, de iniciativa da Deputada Luíza Erundina.38

A inimputabilidade penal do adolescente, cláusula pétrea instituída no art. 228 da Constituição Federal, aspecto já destacado neste estudo anteriormente, significa fundamentalmente a insubmissão do adolescente por seus atos às penalizaçõesprevistas na legislação penal, o que não o isenta de responsabilização e sancionamento. Afinal, pena e sanção são conceitos que se tocam, embora não se confundam. Aliás, as sanções administrativas, advertências, suspensão, etc. são espécies de penalização de uma legislação especial, a administrativa. As sanções tributárias, multas, etc. são espécies de penalização de outro ramo de legislação especial, e assim por diante. O Estatuto da Criança e do Adolescente introduziu no Brasil um Direito Penal Juvenil. Afinal, assim o é definido em todos os países da América Latina onde houve a recepção em seus sistemas legislativos da doutrina da proteção integral, cujo modus operandi é idêntico ao adotado no Brasil39.

A questão conceitual aqui exposta se faz fundamental. Não há cidadania sem responsabilidade e não pode haver responsabilização sem o devido processo penal e sem as regras do garantismo. E isso se extrai da ordem constitucional, da normativa internacional, dos preceitos do direito penal, que será juvenil, porque especial, distinto, próprio da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento do sujeito desta norma.

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4.1 Os eufemistas e as crianças no Brasil

Às vezes sob o pretexto de proteger se desprotege. Quando se pugna pela exigibilidade de um procedimento calcado nas garantias processuais e penais na busca da fixação da eventual responsabilidade do adolescente, o que se pretende é vê-lo colocado na sua exata dimensão de sujeito de direitos.

Quando se mitiga o conteúdo aflitivo da sanção socioeducativa está-se ignorando que esta tem uma carga retributiva, de reprovabilidade de conduta.

A medida socioeducativa adequadamente aplicada será sempre boa, mas somente será sempre boa se o adolescente se fizer sujeito dela. Ou seja, somente será boa se necessária, e somente será necessária quando cabível, e somente cabível nos limites da legalidade, observado o princípio da anterioridade penal.

Se não há ato infracional, não se pode cogitar em sanção. Pode-se ver o adolescente inserido em programas de proteção, mas não em programas socioeducativos, na forma como se organiza o ECA, que faz uma clara e explícita distinção entre medidas de proteção (art. 101 do ECA) e medidas socioeducativas (art. 112 do ECA). Aquelas passíveis de terem como destinatários crianças e adolescentes e estas que têm como alvo apenas adolescentes a quem se atribua a prática de ato infracional.

Sobre o título adotado neste item do presente capítulo, o sempre atento Edson Sêda fez publicar um artigo onde tece observações quanto à dificuldade de alguns segmentos em admitir, mais por desconhecimento do que por outra razão, a natureza penal de certas disposições do ECA.

É tomada a expressão de natureza penal em seu caráter de garantismo, nos princípios que norteiam esta ciência, criado como garantia do cidadão contra o Estado.

O texto de Sêda surgiu do questionamento de alguém que afirmava que as regras do ECA eram de Direito Civil exclusivamente, como se fosse possível dividir os ramos do direito em civil e penal.

O fato de o Direito da Infância e Juventude se constituir em um sistema autônomo não resta dúvida, como autônomo são o direito civil, o próprio direito penal, o comercial, etc. Esta afirmada autonomia entretanto é, e necessariamente sempre será, relativa. Diz respeito aos princípios que o informam, como no caso do direito da infância, os princípios da prioridade absoluta, da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, do caráter excepcional da privação de liberdade, etc. Mas há áreas de intersecção entre as ciências. Aliás o direito da infância e da juventude, por princípio, é o mais transdisciplinar dos direitos, estabelecendo uma interface permanente com outras áreas como psicologia, sociologia, pedagogia, entre outras.

Mas não existe uma autonomia absoluta. Não há ramo do direito que se lhe reconheça eficácia se não for constitucionalmente contaminado.

O direito é formado por um conjunto de sistemas que se interligam. Assim, há normas de direito civil, de direito penal, de direito tributário, de direito administrativo, no direito da infância. Quando criou o Conselheiro Tutelar, o ECA criou uma figura híbrida de Direito Administrativo. Ninguém questiona que o Conselho Tutelar é um instituto do Direito da Infância e Juventude, mas terá situações a serem equacionadas no Direito Administrativo, e assim por diante.

Imaginar que possa existir autonomia absoluta de um ramo da ciência do direito, será ignorar que o sistema se faz em um conjunto, com normas que se interligam.

Cabe aqui transcrever parte do texto de Sêda, em homenagem a este homem que tem dedicado sua vida à luta pelos Direitos das Crianças e dos Adolescentes:

No âmbito das infrações de crianças e adolescentes de que trata este texto, todos nós (quando procuramos aprender sobre a matéria) sabemos que o Direito Criminal foi inventado para proteger o cidadão das arbitrariedades dos governantes do momento (Raimundo Faoro diria, dos donos do poder) que encarceravam seus desafetos ou as pessoas com quem não simpatizavam segundo seu próprio arbítrio.

Criou-se então uma doutrina (de que Cesare Bonesana é precursor) através da qual se veda ao Estado punir pessoas por sua condição pessoal (ser pobre, ser rica, ser de esquerda, ser de direita, ter tal ou qual raça, pensar desta ou daquela maneira, ser idoso, adulto, criança ou adolescente). Humanista, a nova doutrina prevê que não se pune pessoas pelo que são, mas somente por condutas que a sociedade reprova e que sejam descritas (as condutas) em lei aprovada pelo povo ou por seus representantes. Isso exatamente para evitar que o detentor do poder, no tempo (durante um governo) ou no espaço (um país, uma região, uma cidade, um bairro) proteja seus amigos e persiga ou puna seus desafetos.

Nascem assim as leis criminais para proteger o cidadão do arbítrio quando é acusado de praticar condutas que atingem o interesse dos demais. O que perversamente ocorreu, entretanto, é que historicamente, crianças e adolescentes foram excluídas dessas garantias e continuaram a ser punidas sem que os cuidados reservados aos adultos fossem respeitados. Por que isso? Trato dessa matéria em detalhes num outro texto chamado El Derechoa Las Oportunidades (Edição Adês, fora do comércio).

Aqui basta dizer que nesse passado que estamos compulsoriamente encerrando agora em 1999 se praticou

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uma exclusão conceptual de crianças e adolescentes no mundo dos direitos e dos deveres chamado também mundo do Direito. Excluídos conceitualmente da condição cidadã (eram tidos como cidadãos do futuro, não cidadãos daqui e dagora), crianças e adolescentes automaticamente ficaram excluídos dos benefícios da cidadania, entre os quais, principalmente, o da presunção de inocência (não se é infrator por mera denúncia...) e o de não serem punidos publicamente por condutas que praticadas por adultos não são puníveis. Repetindo para superior clareza: não puníveis publicamente por condutas que, praticadas por adultos, são impuníveis.

Esse, o imenso erro histórico que devemos corrigir urgentemente agora. Para que não ocorram barbaridades como essas das FEBEMs brasileiras (com esse ou com outro nome) da vida. E não ocorram declarações que a mim me parecem tacanhas de autoridades que ignoram certos avanços do tempo em que vivem e mantêm essa exclusão conceitual de não cidadania.

Com nossa adesão à Convenção dos Direitos da Criança da ONU, em 1989 ratificamos internacionalmente nosso compromisso constitucional de não punir crianças e adolescentes por atos que nós não puniríamos se adultos os praticassem. E nos comprometemos a estender a crianças e adolescentes as garantias de que em caso de punição, esta somente seria feita se ficasse provada a culpa do acusado (do imputado), com a presunção da inocência, ampla defesa por advogado e através do devido processo legal conduzido por juiz ou autoridade imparcial.

Tudo isso são conquistas nas esferas filosófica, ética, antropológica, psicológica, política, administrativa, histórica e, ufa!... jurídica... do Direito Criminal, que opera conquistas científicas, trabalha com recursos técnicos (visando à eficiência e à eficácia) e se rege por normas de organização social (ordenamento jurídico do país) de caráter... jurídico (ufa! outra vez). Avançado, o Estatuto da Criança e do Adolescente pauta-se por essas conquistas da cidadania, se nós, cidadãos, temos a percepção de que esse Estatuto seja um instrumento válido para os novos tempos que se iniciam, digamos, no primeiro dia do ano 2.000.

Que quer dizer isso? Quer dizer que estendemos às crianças e aos adolescentes os benefícios do Direito Criminal. Então, o Estatuto, nessa matéria, trata sim de Direito Criminal e o faz da forma mais sublime possível: Quando a um adolescente se imputa (é imputável) uma conduta que é definida como crime ele goza da presunção da inocência, tem direito à ampla defesa por advogado, é submetido a um julgamento justo para responder por sua conduta (é responsável), terá sua culpa aferida no devido processo legal previsto no Estatuto (é culpável, tem culpabilidade) por juiz imparcial.

Se for inocente (se não for culpado) será absolvido (ver o rigoroso artigo 189 do Estatuto). Se for culpado será condenado. Em julgamento justo, segundo o grau de gravidade de sua conduta, será sentenciado à repreensão, ou à reparação do dano causado, ou a prestar serviços comunitários, ou ficar em liberdade assistida (terá sua liberdade cerceada sob certos cuidados pedagógicos), ou ficar em semiliberdade, ou ficar internado, privado de liberdade, quer dizer, preso. Se isso não é o Direito criminal, a ser aplicado com justiça e garantia dos direitos humanos e sociais pelo Estatuto, se isso é Direito Civil como S.R. afirmou, eu não sei o que é Direito Criminal nem sei o que é Direito Civil. (Sêda, 1999)

A propósito desta questão se faz elucidativa entrevista que tive oportunidade de produzir com o auxílio da Dra. Márcia Ribeiro, psicóloga do Juizado Regional da Infância e Juventude de Santo Ângelo.

Foi um contato com um jovem40 que, em sua trajetória, experimentou a privação de liberdade no Sistema FEBEM (em Porto Alegre – no antigo ICM – e em santo Ângelo, no Centro da Juventude), e mais tarde no sistema penitenciário (em Porto Alegre no Presídio Central e em Santo Ângelo no Presídio Regional).

Na fala do jovem, hoje com 21 anos, o que se extrai é que, do ponto de vista da privação de liberdade, tanto a FEBEM, quanto o Presídio, tiveram o mesmo significado em sua vida, sendo que, disse ele, era-lhe muito mais aflitiva a privação de liberdade no tempo em que estava na FEBEM, porque era mais jovem.

Este aspecto permite uma consideração breve quanto ao significado da privação de liberdade quando imposta a um jovem de quinze, dezesseis, dezessete anos, quando a noção de tempo é absolutamente diversa daquela experimentada por um homem mais velho. Mesmo que seja um jovem adulto, o modo como este encara a questão do tempo em face ao adolescente se faz totalmente diversa. Assim, o privar de liberdade um adolescente resulta ainda muito mais gravoso a este, e isso se faz claro na entrevista realizada.

O grande fator diferenciador da Medida Socioeducativa privativa de liberdade, em especial esta, e da pena, há de ser o conteúdo de sua execução, a carga pedagógica, o modo de proceder-se. Além disso, há a questão temporal, o ato de a pena ser determinada, enquanto a medida socioeducativa é indeterminada, limitada por um módulo máximo de três anos, mas revisávelno máximo a cada seis meses (art. 122 e parágrafos, do ECA).

4.2. O Sistema Terciário de Garantias: natureza sancionatória e conteúdo pedagógico

O ECA prevê dois grupos distintos de medidas socioeducativas. O grupo das medidas socioeducativas em meio aberto, não privativas de liberdade (Advertência, Reparação do Dano, Prestação de Serviços à Comunidade e Liberdade Assistida) e o grupo das medidas socioeducativas privativas de liberdade (Semi-liberdade e Internação).

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A maior parte do debate na questão das medidas socioeducativas tem surgido a partir da grave crise que se abate sobre o sistema de internação.

Nesta questão cumpre mais uma reflexão. Em privação de liberdade encontram-se, em maioria, adolescentes autores de atos infracionais graves, com violência à pessoa e grave ameaça: estupro, latrocínio, homicídio, roubo. Os adolescentes privados de liberdade não perfazem 3% daqueles que respondem a processos nas Varas da Infância.

Ninguém, salvo raras exceções, inicia sua carreira de delinqüente pelo fim. Antes do homicídio, antes do roubo, antes do latrocínio, via de regra, em 95% dos casos, houve outra infração. Mais leve. Por que não temos conseguido com eficiência evitar que muitos de nossos jovens avancem nesta carreira infracional?

Porque nos preocupamos muito, e por certo é causa de preocupação, mas nos preocupamos demasiadamente com as medidas socioeducativas privativas de liberdade e esquecemos das medidas socioeducativas em meio aberto.

Uma boa rede de atendimento, um bem estruturado programa de Liberdade Assistida ou de Prestação de Serviços à Comunidade é capaz de prevenir a internação. Há falha grave no sistema de atendimento em meio aberto e a conseqüência imediata disso é o inchamento do sistema de privação de liberdade. Este, por seu turno, por ausência de investimentos, de decisão política, tem sido causa de violência e atentados aos direitos humanos.

4.3. Medidas Socioeducativas em Meio Aberto

Relativamente ao primeiro grupo de medidas, a plena realização desses programas está vinculada em direta proporção ao grau de comprometimento do Juizado da Infância e Juventude local com sua efetivação, assim como o efetivo engajamento da sociedade e do Estado na proposta41 .

Enquanto em relação às medidas socioeducativas que importam em privação de liberdade resta pacificado o entendimento de que a efetivação dos programas de atendimento são de competência do Executivo das Unidades Federadas. Relativamente ao primeiro grupo de medidas, nada obsta que os programas sejam realizados pelos próprios Juizados (excepcionalmente), ou por estes em articulação com o Estado, ou preferencialmente com Município, ou por organizações não-governamentais. Estes programas visam o atendimento de adolescentes em prestação de serviços à comunidade e em liberdade assistida.

A advertência, a mais branda das medidas preconizadas pelo art. 112, esgota-se na admoestação solene feita pelo Juiz ao infrator em audiência especialmente pautada para isso; enquanto a reparação do dano supõe um procedimento de execução de medida que se exaure na contraprestação feita pelo adolescente, consoante estabelecido em sentença e cientificado o infrator em audiência admonitória.

As medidas de prestação de serviços à comunidade e de liberdade assistida têm-se revelado as mais eficazes e eficientes entre as propostas pela lei. A exemplo da prestação de serviços à comunidade prevista para o imputável como pena alternativa pelo Código Penal, a medida socioeducativa correspondente pressupõe a realização de convênios entre os Juizados e os demais órgãos governamentais ou comunitários que permitam a inserção do adolescente em programas que prevejam a realização de tarefas adequadas às aptidões do infrator.

Forma-se aí o respectivo processo de execução de medida de Prestação de Serviços à Comunidade, com relatos mensais fornecidos pelo órgão conveniado onde o adolescente presta o serviço. O encaminhamento do jovem a estes órgãos se fará por prévia audiência admonitória, onde recebe a orientação relativa ao cumprimento da medida, sendo cientificado de suas responsabilidades e dos objetivos buscados.

A prévia escolha da entidade para onde o adolescente em Prestação de Serviços à Comunidade é encaminhado faz-se mediante avaliação de suas condições pessoais, em juízo de execução de medida. Há, portanto, uma fase pré-início da medida, buscando a definição da entidade mais adequada para receber o infrator. Decorrido o prazo de cumprimento, por período não excedente a seis meses, nova audiência marcará o encerramento da medida, em face dos relatos da instituição. A propósito, tanto aqui como na Liberdade Assistida, o adolescente é advertido de que o descumprimento injustificado da medida poderá resultar na regressão de medida mais grave, até mesmo privativa de liberdade, quando o então módulo máximo de privação será de três meses (art. 122, § 1º).

A Liberdade Assistida constitui-se naquela que se poderia dizer medida de ouro. Assim dito, haja vista os extraordina-riamente elevados índices de sucesso alcançados com esta medida, desde que, evidentemente, adequadamente executada.

Impõe-se que a Liberdade Assistida realmente oportunize condições de acompanhamento, orientação e apoio ao adolescente inserido no programa, com designação de um orientador judiciário que não se limite a receber o jovem de vez em quando em um gabinete, mas que de fato participe de sua vida, com visitas domiciliares, verificação de sua condição de escolaridade e de trabalho, funcionando como uma espécie de sombra, de referencial positivo, capaz de lhe impor limite, noção de autoridade e afeto, oferecendo-lhe alternativas frente aos obstáculos próprios de sua realidade social, familiar e econômica.

Estes programas de Liberdade Assistida, de onde se extrai a figura do orientador, tanto podem ser governamentais como comunitários, funcionando os Juizados como órgãos de execução da medida, acompanhados por relatos mensais, com avaliações periódicas nunca inferiores a seis meses, relativos à evolução da medida.

Como na Prestação de Serviços à Comunidade, a Liberdade Assistida tem início em uma audiência admonitória, onde o

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adolescente é apresentado a seu orientador judiciário e na qual são estabelecidas as combinações iniciais sobre o cumprimento da medida, sendo, como na Prestação de Serviços à Comunidade, advertido da necessidade de cumprimento dessas combinações, sob pena, inclusive, de regressão da medida.

A manutenção de adolescentes infratores adequadamente assistidos, comprometendo-se a sociedade com esses programas, alcança sucesso na medida em que não se faça da medida de Liberdade Assistida um simulacro de atendimento, como muitas vezes se faz em relação aos imputáveis colocados em sursis.

4.4. Medidas Privativas de Liberdade

As medidas socioeducativas que importam em privação de liberdade hão de ser norteadas pelos princípios da brevidade e excepcionalidade consagrados no art. 121 do ECA, respeitada a peculiar condição de pessoa em desenvolvimento. Afirma Antônio Carlos Gomes da Costa:

Três são os princípios que condicionam a aplicação da medida privativa de liberdade: o princípio da brevidade, enquanto limite cronológico; o princípio da excepcionalidade, enquanto limite lógico no processo decisório acerca de sua aplicação; e o princípio do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, enquanto limite ontológico, a ser considerado na decisão e na implementação da medida42 .

As medidas privativas de liberdade (Semi Liberdade e Internamento) são somente aplicáveis diante de circunstâncias efetivamente graves, seja para segurança social, seja para segurança do próprio adolescente infrator, observando-se com rigor o estabelecido nos Incs. I a III do art. 122, reservando-se especialmente para os casos de ato infracional praticado com violência à pessoa ou grave ameaça ou reiteração de atos infracionais graves. A deliberação pelo internamento fora das hipóteses do art. 122, do ECA, viola literalmente a lei.

Cumpre destacar, porém, que a decisão pelo internamento deverá ocorrer em última alternativa, como expressamente disposto no § 2º do art. 122, considerado o princípio da excepcionalidade, de caráter norteador do sistema.

No Rio Grande do Sul, desde a regionalização dos Juizados da Infância e Juventude com competência de Execução de Medidas Socioeducativas privativas de liberdade vive-se interessante experiência.

Visa a iniciativa gaúcha garantir que as medidas privativas de liberdade sejam cumpridas pelo adolescente o mais próximo possível de sua cidade de origem, evitando a crônica centralização das internações na Capital, problema de quase todos os Estados Federados.

A inegável necessidade de interiorização dos internamentos neste País continental faz-se imprescindível. Necessário, porém, que se tenha sempre em mente a parábola do Raio X do Dentista, referida por Emílio Garcia Mendez.

Sobre o risco da proliferação de unidades de internamento, no revés da quase ausência total em nossos dias, advertia Emílio, referindo-se à necessidade de qualificação dos Juízes para esta área tão especial da jurisdição: imagine-se um dentista, aquele, do interior, que sempre tratou nossos dentes, sem necessidade de extrair chapas de raio X para este ou aquele procedimento. Um dia ele adquire o aparelho de raio X. Desse dia em diante, nosso bom dentista não faz mais nenhuma restauração sem extrair uma chapa de raio X, como forma de aumentar o custo, dirá alguém, talvez; mas, especialmente, como forma de justificar a aquisição da máquina.

Não será o fato de existirem as unidades que se tornará rotineira a internação, limitadas que estão aos expressos casos em que outra solução não houver, observados os critérios objetivos e subjetivos da Lei. Porém, se não houver engajamento e comprometimento de Juízes e Promotores de Justiça para com o ECA, o risco existe, em especial se os programas sócio-educativos em meio aberto não forem efetivados e disponibilizados. O risco se torna ainda maior enquanto não houver consciência que a medida socioeducativa tem uma natureza sancionadora, pelo que somente deve ser aplicada nos casos expressos em lei, com observância rigorosa das garantias constitucionais, processuais e penais previstas no sistema legal.

32 Lei 6.697/79 (Código de Menores), art. 2º: Para efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: V – com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária.

33 Saraiva, João Batista Costa, op. Cit., p. 31.

34 Fragoso, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal: Parte Geral. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.202.

35 Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, v. 1, 2ªed. São Paulo: Atlas, 1985, p.196.

36 A medida socioeducativa tem natureza sancionatória e conteúdo prevalentemente pedagógico, conceito incorporado na proposta inicial contida no esboço de uma Lei de Diretrizes Socioeducativas - LDS.

37 Súmula 108 do STJ.

38 Projeto de Lei n.º 256, de 1999, que introduz o seguinte parágrafo ao art. 179, do ECA: § A oitiva do adolescente necessariamente será realizada com a presença do advogado constituído nomeado previamente pelo Juiz da Infância e da Juventude, ou pelo juiz que exerça essa função, na forma da Lei de Organização Judiciária local.

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39 Veja-se, por exemplo, a legislação da Costa Rica, cujo sistema de tratamento ao adolescente em conflito com a Lei é praticamente idêntico ao adotado no Brasil, com praticamente as mesmas medidas socioeducativas previstas como sancionamento às condutas infracionais, como pode ser visto em Armijo, Gilbert. “Manual de Derecho Procesal Penal Juvenil” – 1ª ed. – San José – Costa Rica: IJSA, 1998.

40 A íntegra da entrevista encontra-se ao final, no anexo a este trabalho.

41 A experiência que se realiza no Município de Maringá, no Paraná, na municipa-lização da Execução das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto faz-se exemplar.

42 Cury, M./Amaral e Silva, A./Mendez, E.G. - Coord., Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Comentários Jurídicos e Sociais, Malheiros ED., São Paulo – SP

Capítulo V

O PERFIL DO OPERADOR DO SISTEMA

Há de se compreender que se discorre sobre o Perfil deste Juiz sob um certo ponto de vista, uma certa maneira de vê-lo, ou seja, comprometido com a efetivação plena da Doutrina da Proteção Integral em uma sociedade ainda contaminada pelo germe da Doutrina da Situação Irregular.

5. O perfil do Juiz e o Novo Direito da Infância e da Juventude

Desde o advento da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança43 estabeleceu-se um novo paradigma na atuação do Sistema de Justiça relativamente à questão da Infância e da Juventude, compreendidos aqui todos os operadores deste sistema e considerado seu conteúdo interdisciplinar (Judiciário, Ministério Público, Segurança Pública, Serviço Social, etc.).

Cumpre novamente realçar que a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança tem uma história de elaboração de dez anos. A origem remonta ao ano de 1979, Ano Internacional da Criança, quando surgiu uma proposta originária da Polônia de uma convenção sobre o tema. A Comissão de Direitos Humanos da ONU organizou um grupo de trabalho aberto para estudar a questão. Neste grupo poderiam participar delegados de qualquer país membro da ONU, além dos representantes obrigatórios dos 43 Estados integrantes da Comissão, organismos internacionais como o UNICEF e o grupo ad hoc das organizações não governamentais. Em 1989, no trigésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, reunida em Nova York, aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança.

Desde então os Direitos da Criança passam a se assentar sobre um documento global, com força coercitiva para os Estados signatários, entre os quais a maioria dos países da América Latina. Inaugura-se um novo momento histórico no trato da questão da infância. Instala-se um Novo Direito.

Assim, somente há de se falar sobre o perfil do Juiz e dos demais operadores do Sistema de Justiça em face o Direito da Infância e Juventude, tomando como referenciador deste perfil os princípios e mandamentos insculpidos na Convenção e a nova ordem dela decorrente. Há também que se retirar a figura do menor de sua condição de objeto do processo para inseri-lo em uma nova categoria jurídica, qual seja, a de sujeito do processo, titular de direitos e obrigações, respeitada sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento.

5.1. Uma certa maneira de definir este perfil

Apresentada esta premissa - indissociável no que se refere ao delineamento do que seria o perfil do Juiz da Infância e Juventude em face à nova ordem estabelecida com o marco de um novo paradigma para sua atuação - cumpre, preliminarmente, no esforço de explicitar o conteúdo dessa nova postura, socorrer-se da lição de Michel Miaille, quando leciona, em Introdução ao Estudo de Direito, dispondo que toda propositura de apresentação, de exposição, supõe que seja feita de uma certa maneira, reportando-se à parábola da visita ao Castelo.

Diz Miaille:

Introduzir é conduzir de um lugar para outro, fazer penetrar num novo lugar. Ora, ao contrário do que se poderia facilmente pensar, esta deslocação de um lugar para o outro, este

movimento, não pode ser neutro. Não há introdução que se imponha por si mesma, pela lógica das coisas. Tomemos um exemplo para nos convencermos desta afirmação.

A visita a uma casa desconhecida, sob a orientação de um guia, é sempre uma estranha experiência: o guia

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introduz-vos na casa, faz-vo-la visitar, faz-vos, de facto, descobrir as suas diferentes divisões. Mas há sempre portas que permanecem fechadas, zonas que não se visitam, e, muitas vezes, uma ordem de visita que não corresponde à lógica do edifício. Em suma, vocês descobriram esta casa de uma certa maneira: essa introdução foi condicionada por imperativos práticos e não necessariamente pela ambição de dar um verdadeiro conhecimento do edifício. É, aliás, admissível que, se vocês conhecessem bem o guarda, tivessem podido passear sem restrições na casa, abrir as portas proibidas e visitar as zonas fechadas ao público. Em resumo, teriam tido um outro conhecimento dessa casa, porque teriam aí sido introduzidos de forma diferente. Que dizer, então, se vocês fossem um dos habitantes dessa casa? Conhecê-la-iam do interior – conheceriam os seus recantos familiares, as escadas ocultas, o desgaste produzido pelo tempo e a atmosfera íntima. Tudo se passa como se, nas três hipóteses que acabamos de imaginar, não houvesse uma casa, mas três edifícios diferentes, no fundo muito diferentes pelo conhecimento que temos deles. (Miaille, 1979:12)

Nesta linha de raciocínio, de quem pretenda discorrer sobre o perfil do Juiz neste Novo Direito, ilustro ainda com o que o próprio Miaille afirma em sua proposta de fazer uma Introdução Crítica ao Estudo do Direito:

O direito não tem a consistência material de uma casa, não é delimitado no espaço por paredes e portas. Quando eu tomo a iniciativa de vos introduzir no direito, tomo a responsabilidade de abrir certas portas, de conduzir os vossos passos num determinado sentido, de chamar a vossa atenção para este elemento e não para outro. Ora, quem poderá dizer se as portas que eu abri eram boas? Se o sentido da visita era instrutivo para o visitante? (Miaille, 1979:13)

Assim sendo, o traçar, ou a pretensão de traçar o perfil do Juiz nesta nova Ordem parte, por evidente, de uma visão pessoal, da experiência que se tem tido no Brasil na busca da efetivação em todos os níveis do Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece no plano infraconstitucional a normativa nacional relativa às questões da infância e da juventude.

Passados tantos anos da promulgação deste texto, ainda se depara no Brasil com a resistência de diversos setores em libertar-se dos primados da vetusta Doutrina da Situação Irregular, ainda presente na cultura nacional e, por evidente, em setores do próprio Poder Judiciário, espaço onde a resistência ao novo e ao inovador, seja no Brasil, seja onde for, sempre se faz de modo mais manifesto, às vezes de forma expressa, às vezes de forma subliminar. Esta última, aliás, mais perversa do que aquela, pois se diz estar cumprindo a nova ordem, porém apenas o fazendo aparentemente, aplicando a velha doutrina travestida do novo.

Logo, o perfil do Juiz a que passo a me referir relaciona-se a uma visão comprometida com a efetividade da Doutrina da Proteção Integral, com a efetividade da Normativa Internacional e Nacional, que a recepcionou na atuação do Poder Judiciário.

No que respeita ao comprometimento, não há como deixar de referir aqui uma figura de linguagem utilizada pelo Pedagogo Ernest Sarlet, que estabelece um paralelo entre o que é comprometer-se e o que é participar. Para tanto utiliza a quase prosaica parábola do omelete com bacon. Diz Sarlet que nesta elaboração a galinha participa, porque entra com o ovo, mas o porco se compromete.

Por certo, a proposta que nos move não é uma proposta de morte, como a do porco, que se sacrifica, mas uma proposta de vida, de entrega.

De qualquer sorte, o que se busca ao pretender traçar o perfil do Juiz neste novo modelo, parte de uma visão comprometida com este ideal.

Assim, retomando Michel Miaille, há de se compreender que se discorre sobre o Perfil deste Juiz sob um certo ponto de vista, uma certa maneira de vê-lo, ou seja, comprometido com a efetivação plena da Doutrina da Proteção Integral em uma sociedade ainda contaminada pelo germe da Doutrina da Situação Irregular.

5.2 De menor a cidadão

Na definição do perfil deste Juiz há que se ter em mente a mudança paradigmática estabelecida a partir da Convenção dos Direitos da Criança. Esta mudança que transita, para sua efetivação, por uma necessária alteração de condutas, supõe um câmbio conceitual.

No Brasil, esta modificação conceitual passa pela adoção pelo texto legal de conceitos como criança e adolescente, abandonando a antiga conceituação de menor.

Pela nova ordem estabelecida, não se admitem manchetes de jornal do tipo menor assalta criança, de manifesto cunho discriminatório, onde a criança era o filho bem-nascido, e o menor, o infrator. Esta espécie de manifestação, comum no Brasil, ainda hoje, ainda presente na linguagem dos próprios Tribunais, se constitui em legítimo produto de uma cultura excludente –norteadora do anterior sistema – que distinguia crianças e adolescentes de menores; que fazia uma divisão entre aqueles em situação regular dos demais em situação irregular.

Para Emílio Garcia Mendez, em análise que fez sobre a velha doutrina da situação irregular em confronto com a nova ordem estabelecida a partir da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança,

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no contexto socioeconômico da chamada década perdida, resulta supérfluo insistir com cifras para demonstrar a existência de dois tipos de infância na América Latina. Uma minoria com as necessidades básicas amplamente satisfeitas (crianças e adolescentes) e uma maioria com suas necessidades básicas total ou parcialmente insatisfeitas (os menores)44 .

Nestas condições há que se ter em mente as conclusões alcançadas pela Oficina de Trabalho sobre “A Justiça da Infância e Juventude”, por ocasião do III Seminário Latino Americano do Avesso ao Direito, Da Situação Irregular à Proteção Integral da Infância e Adolescência na América Latina, de 19 a 23 de Outubro de 1992, em São Paulo, cuja atualidade permanece.

Naquela ocasião foram lançados os seguintes considerandos:

� os sistemas de justiça tutelar, por estarem baseados na doutrina da situação irregular, não atendem às expectativas dos povos da América Latina, permanecendo em todos os países a justiça de menores como uma justiça de menor importância;

� nos vários países da América Latina, mesmo naqueles onde houve a incorporação dos princípios da Convenção Internacional, sua legislação interna ainda guarda flagrantes conflitos. Nesses mesmos países observa-se que os direitos fundamentais da pessoa humana, inscritos em suas Constituições, não vêm sendo respeitados em relação às crianças e adolescentes;

� o sistema de justiça de menores não se tem mostrado nem tutelar nem promotor de interesses da criança e do adolescente, mas instrumento de controle social da pobreza;

� o sistema da situação irregular tem provocado a judicialização de questões exclusivamente sociais, fazendo do juiz muito mais que um cúmplice da omissão das políticas públicas, do que um executor da justiça;

� nos países da América Latina tem-se observado que crianças e adolescentes não têm sido encarados pelo sistema de justiça como sujeitos de direitos, mas sim como meros objetos da intervenção estatal.

Recomendando aquela oficina:

I Que os princípios da Convenção Internacional sejam incorporados com urgência aos sistemas de distribuição de Justiça, sendo considerados desde já, nos países signatários, regras auto-aplicáveis e não meramente programáticas, máxime, se já previstos na respectiva Constituição.

II Que se estimule a mobilização popular visando às necessárias mudanças nos sistemas judicial e legislativo para incorporação dos princípios da Convenção Internacional.

III Que seja dada prioridade absoluta para o aparelhamento do sistema judicial nos países que adotaram a Doutrina da Proteção Integral.

IV Que seja incluído nos cursos de formação dos profissionais do sistema de justiça, o estudo da Convenção Internacional como parte integrante da Doutrina dos Direitos Humanos.

V Que a atuação dos profissionais do sistema judicial seja norteada por uma postura ética e de compromisso social.

Estabelecidas as premissas de que a Convenção Internacional de Direitos da Criança elevou este agente da condição de objeto do processo para sujeito do processo, titular de direitos e obrigações que lhe são próprios, observada a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, com repercussão imediata no ordenamento jurídico interno dos países signatários, faz-se possível, então, lançar considerações sobre o perfil do Juiz neste novo contexto.

5.3. Um novo Direito. Um novo Juiz?

Ao menos até o advento da Convenção Internacional, o chamado Direito do Menor, e, por conseqüência, a Justiça de Menores, eram vistos pelos operadores do Direito como uma justiça menor.

O imaginário norteador de muitos operadores do Direito de então – presente ainda hoje – é de que o Juiz da Infância e Juventude não se ocupa da nobreza do mundo jurídico, e que trataria de questões ajurídicas, não científicas , naquela idéia de uma jurisdição subalterna.

Este equívoco de concepção está no seio da organização judicial latino-americana – pois não é um mal apenas brasileiro, haja vista o primeiro considerando da Oficina de Trabalho antes mencionado – em um total desconhecimento do que seja o Direito da Infância e Juventude, e, pior, o desconhecimento deste próprio Direito no sistema de Justiça, norteado pelo Direito Constitucional.

Há sim, um Novo Direito e na aplicação deste Novo Direito há que existir um Novo Juiz.

O perfil do Juiz, do Novo Juiz neste Novo Direito, pressupõe um operador qualificado, com sólido conhecimento de Direito Constitucional, na medida em que lida com direitos fundamentais da pessoa humana, havendo de transitar com naturalidade pelo mundo jurídico com domínio das regras fundantes deste sistema.

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Não está o Juiz deste Novo Direito atuando em uma esfera parajudicial, ou meramente administrativa, mas de pleno exercício da jurisdição, cumprindo o papel de julgador de conflitos, seja na órbita cível, seja na órbita criminal.

São exigíveis conhecimentos sólidos para que possa atuar no Direito Penal Juvenil, incorporado de todas as garantias e prerrogativas próprias do Direito Penal e do Processo Penal, mesmo que, na área da Infância e Juventude não se cogite de penas, mas sanções de natureza própria.

Na mesma intensidade, no que respeita aos direitos fundamentais atinentes às garantias de convivência familiar e comunitária, por exemplo, há que se pressupor sólidos conhecimentos de Direito Civil e Processual Civil. Igualmente há que estar habilitado para pronunciar-se nos conflitos que versarem sobre Direitos Coletivos ou Difusos, onde prevaleça o interesse da criança, conflitos estes afetos a este segmento especializado do Direito.

Portanto o perfil deste Juiz para aplicação do Novo Direito, onde o Poder Judiciário é recolocado no devido papel que o sistema de tripartição de poderes lhe impõe, supõe um profissional altamente qualificado.

Destaco, neste particular, o avanço no Brasil nas Ações Civis Públicas, na órbita de competência da Justiça da Infância e Juventude, inclusive com decisões determinando ao Estado-Executivo a criação de Programas de atendimento para Adolescentes Infratores45.

De resto, a par desta formação profissional, há de estar comprometido com a transformação social, apto a assegurar no exercício desta jurisdição as garantias próprias da cidadania a quaisquer de seus jurisdicionados, independente de sua condição econômica ou social. Extingue-se a vetusta figura do Juiz de Menores como mero instrumento de controle da pobreza, com decisões não fundamentadas, com procedimentos sem observância de garantias constitucionais e processuais.

Há de ter em mente a lição de Michele Taruffo, para quem

…o direito não pode ser concebido como algo autônomo e destacado da realidade social e da cultura em cujo seio o juiz atua… (Taruffo, 2001:9)

Sentenciando o eminente Mestre Italiano em Conferência realizada na Universidade federal do Paraná, no início do ano letivo de 2001:

É preciso, pois, conscientizar o fato de que o raciocínio do juiz é inevitavelmente imerso no senso comum, o qual compõe, juntamente com o direito, o seu contexto inafastável. (Taruffo, 2001:9)

Enfim, ao se traçar o perfil deste Juiz estar-se-á falando de um Magistrado qualificado e comprometido, apto a trazer para o cotidiano de sua jurisdição a eficácia das normas do sistema, incorporando uma Normativa Internacional que deve conhecer tão bem quanto as normas de seu sistema nacional. Não poderá, porém, em momento algum este profissional deixar de indignar-se com a injustiça, tampouco perder a qualidade de, mesmo mantendo-se em sua posição de julgador, ser capaz de emocionar-se com a dor de seu jurisdicionado. Aqueles que endurecem nesta atuação, que não mais se emocionam, não servem mais para o que fazem.

Há, sim, um Novo Direito, e deve existir um Novo Juiz. Aliás, se não existir um Novo Juiz, apto a operar este Novo Direito, o Novo Direito não existirá, pois ao Juiz compete dar eficácia às normas.

5.4 Um Juiz capaz de agir e interagir na sociedade

Em seu Ensaio Contra a Pena de Morte, Norberto Bobbio cita John Stuart Mill:

Toda a história do progresso humano foi uma série de transições através das quais costumes e instituições, uma após outras, foram deixando de ser consideradas necessárias à existência social e passaram para a categoria de injustiças universalmente condenadas. (Bobbio, 1992:177)

A doutrina da Situação Irregular e o velho Juiz de Menores cumpriram, em determinado momento histórico seu papel, fazendo incluir o Direito do Menor como instrumento do Estado. Esta etapa se faz vencida. O Novo Direito, a Doutrina da Proteção Integral, a elevação da criança e do adolescente à condição de sujeito de direito, faz com que se constate que a antiga doutrina e o velho direito cumpriram sua etapa.

Na atuação deste Juiz deve se levar em conta a melhor hermenêutica, tão bem esplanada por Lênio Luiz Streck46 quando enfoca a necessidade de uma interpretação do Direito à luz dos princípios constitucionais, que contaminam as normas e a estas sobrepairam.

Assim, este Juiz, na aplicação e interpretação da lei, há de ter sempre presente a lição de Carlos Maximiliano47, que ensinava que a relação existente entre o Juiz e o Legislador é a mesma que existe entre o Ator e o Dramaturgo (o juiz está para o legislador, assim como o ator está para o dramaturgo). Da qualidade da interpretação do texto, da carga criativa emprestada a esta interpretação, do comprometimento do operador jurídico, extrai-se a qualidade do trabalho, que, no caso da Lei, é a Justiça.

Como nos ensina Norberto Bobbio, na Era dos Direitos, em se tratando de Direitos Humanos o problema que nos aflige

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não é tanto de fundamentação destes Direitos, e sim, fundamentalmente, de implementação destes Direitos.

Na afirmação de um Novo Direito, para o qual se exige um Novo Juiz, o que se constata é que conquistas do passado são tidas hoje como plenamente superadas, na medida em que se afirmam os direitos de cidadania e se estendem estes direitos a todos os cidadãos, em especial àqueles em peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, respeitada esta condição sem lhes sonegar as garantias da cidadania.

É para operar este Novo Direito que se espera um Novo Juiz, não necessariamente um juiz novo, mas um Juiz capaz de agir e interagir na sociedade, na condição de Magistrado, investido e imbuído de uma nova ordem de direitos, qualificado e, acima de tudo, comprometido com um ideal.

43 Como destaca a Dra. Mary Beloff, em conferência realizada em Salta, Argentina, por ocasião da Primeira Reunião do Foro de Legisladores Provinciais pelos Direitos da Criança e do Adolescente, a Convenção não se constitui no primeiro instrumento internacional que proclama e afirma direitos das crianças. O status e o tratamento dos direitos da criança tem sido por longo tempo assunto considerado do maior interesse por parte da comunidade internacional. Assim, a Declaração de Gênova dos Diretos da Criança, que foi adotada pela Liga das Nações em 1924, foi o primeiro instrumento internacional importante em reconhecer essa idéia. Logo, em 1959, as Nações Unidas adotaram a Declaração dos Direitos da Criança. Também adotaram, junto com outras organizações internacionais regionais e globais, muitos outros instrumentos específicos para a infância ou instrumentos gerais de direitos humanos que especificamente reconhecem os direitos das crianças. Beloff, Mary. Estado de avance de laAdecuación de la legislación Nacional y Provincial a la Convención sobre los derechos del Niño en la Argentina, tendencias y perspectivas, Salta, Março de 1998, MIMEO.

44 44 MENDEZ, Emílio Garcia. “Legislação de Menores na América Latina: uma doutrina em situação irregular”. In Cadernos de Direito da Criança e do Adolescente, v. 2 – 2ª ed., Recife, ABMP, 1998.

45 A propósito, destaco aqui decisão unânime da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em apelação interposta pelo Estado, mantendo decisão de Primeiro Grau que condenou o Executivo a construir unidade de atendimento a infratores e a manter um programa especializado. Esta decisão teve grande repercussão no mundo jurídico, na medida em que enfrentou dogmas como os princípios de conveniência e oportunidade do administrador público, tendo sido publicada em diversas periódicos jurídicos, inclusive em língua espanhola, em tradução de Julio Cortés, na Revista Justicia y Derechos del Niño, nº 1, UNICEF e Ministerio de Justicia, Santiago-CHI, 1999, p.177.

46 Streck, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 2ª ed. rev. Ampl. – Porto Alegre -BR: Livraria do Advogado, 2000.

47 “Existe entre o legislador e o juiz a mesma relação que entre o dramaturgo e o ator. Deve este atender às palavras da peça e inspirar-se no seu conteúdo; porém, se é verdadeiro artista, não se limita a uma reprodução pálida e servil: dá vida ao papel, encarna de modo particular a personagem, imprime um traço pessoal à representação, empresta às cenas um certo colorido, variações de matiz quase imperceptíveis; e de tudo faz ressaltarem aos olhos dos espectadores maravilhados belezas inesperadas, imprevistas. Assim o magistrado: não procede como insensível e frio aplicador mecânico de dispositivos; porém como órgão de aperfeiçoamento destes, intermediário entre a letra morta dos Códigos e a vida real, apto a plasmar, como matéria-prima da lei, uma obra de elegância moral, e útil à sociedade. Não o consideram autômato; e, sim, árbitro da adaptação dos textos às espécies ocorrentes, mediador esclarecido entre o direito individual e o social. Hermenêutica e aplicação do direito/ Carlos Maximiliano. -Rio de Janeiro: Forense, 14ª ed. 1994, p. 59.

Anexos

ENTREVISTA

A entrevista que segue, feita com o objetivo de investigar a visão de uma pessoa que vivenciou diferentes modelos de privação de liberdade, foi gravada e transcrita com a concordância de L., hoje com vinte e dois anos, detento no sistema penitenciário. Ela constitui um dos elementos de um projeto de pesquisa que culminou com a publicação do presente livro.

Ex-interno da FEBEM, oriundo de uma família da periferia, iniciou na via delitiva aos 14 anos cometendo pequenos furtos, até o delito de homicídio aos 17 anos, pelo qual cumpriu medida socioeducativa de internação.

Na época da primeira experiência de privação de liberdade ocorrida em meados de 1997, cuja entrevista elucida algumas particularidades, os adolescentes em conflito com a lei eram encaminhados a unidades de detenção juvenil na capital do Estado, visto que o projeto de regionalização - cuja premissa básica é a manutenção dos laços com a família na cidade de origem ou mais próximo possível - estava em fase de implantação. Neste período que poderíamos denominar de transição, o modelo de internação estava ainda ancorado no Código de Menores. Grandes casas comportavam centenas de internos, e nas quais a privacidade e a possibilidade de um atendimento individualizado eram remotas.

Os adolescentes partilhavam de um dormitório onde co-habitavam doze, às vezes catorze adolescentes, oriundos de diferentes pontos do estado, e com experiências de vida absolutamente diversas. Lá estavam aqueles que cumpriam medida pela primeira vez, situação de L., e aqueles que estavam na segunda ou terceira internação. Seu relato carregado de emoção diz da angústia de estar em meio a motins, onde cada um é tomado como a massa descontrolada.

Contraponto é a breve descrição da experiência de internação, ainda na adolescência, em modelo inspirado no ECA, no qual os adolescentes em conflito com a lei passam a ser inseridos em celas individuais e recebem atendimento que procura privilegiar, mesmo existindo regras que servem para todos, a peculiaridade de cada um. Esta diferença que pode parecer banal ao primeiro olhar, revela o quanto ser reconhecido na sua singularidade, diferente da massa, pode viabilizar saídas mais produtivas.

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Podemos observar na fala de L. que as diferenças entre a internação no primeiro modelo e a no segundo podem ser radicais a ponto de lhe parecer que o Centro da Juventude seria exterior ao sistema FEBEM. Sua fala não deveria ser tomada como ingenuidade, já que também tem clareza de que a tônica de todas essas experiências é perda da liberdade, bem que lastima ter perdido. No entanto, lembra com propriedade que é diametralmente diferente perdê-la quando se tem as condições mínimas de dignidade asseguradas, proposta que os operadores do ECA tentam a duras penas implementar.

O relato de L. viabiliza que cheguemos a diferentes conclusões dependendo do ângulo pelo qual tenhamos possibilidade de ler e, desde essa perspectiva, pensamos poder reconhecer nela a expressão do pensamento de Volpi, quando afirma:

que a experiência de privação de liberdade, quando observada pela percepção de quem a sofreu, revela toda a sua ambigüidade e contradição, constituindo-se num misto de bem e mal, castigo e oportunidade, alienação e reflexão, cujo balanço final está longe de ser alcançado, uma vez que as contradições da sociedade nunca serão isoladas no interior de qualquer sistema, por mais asséptico que ele seja. (Volpi, 2001:56)

Pergunta – Eu gostaria que me contasses um pouco da tua história. Como foi o teu primeiro delito? Resposta – Meu primeiro delito começou quando eu estudava. Eu pegava e mentia para minha mãe que iria estudar e

escondia minha pasta no mato e saía para o centro. Eu tinha uns 14 anos...

P – Tu tinhas 14 anos. Antes disso tu nunca roubaste? R – Não. Só andava com más companhias. Desde os onze, doze anos eu comecei a andar com más companhias. Depois dos

14 anos eu já comecei a me envolver e cometer pequenos furtos em farmácias e lojas.

P – E o quê que são para ti más companhias? R – Má companhia é um monte de amigos que estão perdidos na vida do crime. Só querem cometer delitos e roubar.

Quando me dava por conta estava roubando também.

P – E o que tu fazias com os objetos que roubavas? R - Eu sempre achava uma desculpa por causa do dinheiro. Ás vezes eu comprava um calçado, uma roupa. Eu tinha que

chegar em casa e dar uma explicação a meus pais, eles me cobravam isso. Eles achavam que eu estava me metendo em pequenos furtos. Aí eu comecei nesta vida e quando me dei por conta estava arrombando casas. Já respondi alguns processos com o doutor Saraiva. Mais adiante, eu me envolvi num homicídio...

P – ... foi quando eu te conheci... R - ...sim. Eu me envolvi num homicídio. O doutor Saraiva achou melhor me internar na FEBEM. Quando eu tinha 17

anos, ele me encaminhou para o ICM em Porto Alegre.

P – Não tinha FEBEM aqui ainda...? R – Não tinha FEBEM aqui. Ele sempre me relevava quando era pequenos furtos, pequenos delitos, ele procurava manter-

me aqui, na cidade. Falando com psicólogas, ou falando com um senhor que tinha ali... que sempre me chamava...

P – ... o teu orientador... R - ... meu orientador, é! Ele sempre procurava dialogar comigo, tentava colocar-me numa escola... sempre eles queriam

ver o meu caminho para frente. Eu seguia um pouco, depois pegava e saía para o outro lado novamente. Foi aí que eu cometi um homicídio. Eles falaram: “não, eu vou ter que te mandar para a FEBEM. Tu cometeu um delito grave”. Ele falou: “vou te mandar, daí tu vais ficar três meses lá, depois eu te chamarei aqui, para conversarmos”. Havia alguns rapazes de maior idade que não tinham nada a ver com esse delito, sabe? Estavam sendo ouvidos também, estavam sendo envolvidos no processo.

P – Foi uma briga? R – Sim. Foi... o cara, o senhor esse, me desferiu um tiro na perna, no joelho, quase me deixou aleijado e me deu um tapa

na cara. Falou que mataria minha família. Passou alguns dias e eu comecei a trabalhar com meu pai. Todas as semanas meu pai me dava dinheiro. Sempre me dava uns trocos... eu fui guardando e comprei uma arma. Naquele dia eu estava indo para casa quando eu avistei o senhor, eu não tinha intenção de atirar nele, mas ele falou: “agora eu vou te matar” e veio para cima de mim. Eu desferi dois tiros nele. Saí correndo e joguei a arma fora.

P – Mas por que tu resolveste comprar uma arma? R – Eu achei que ele voltaria e me pegaria novamente, porque o dia que ele meu deu o tiro, quando estávamos num bar

jogando sinuca, ele falou não sei o que, ele estava meio bêbado, eu saí para fora do bar. Disse: bah! vou embora. Quando eu saí para fora do bar, ele me deu um tiro na perna...

P –Vocês já tinham tido alguma briga antes? R – Não. Foi ali. Ele estava embriagado e nós estávamos jogando. Ele achou que eu estava levando vantagem dele no jogo.

Ele pegou e começou a falar: “ah, não sei o que, não sei o que”. Então, deixa. Eu vou embora. Só que nós estávamos jogando por dinheiro, e ele não gostou, queria que eu continuasse jogando. Falei: “Não, eu vou embora” e quando eu saí para fora ele me deu um tapa na cara e disse: “Piá, por enquanto eu vou te dar um tiro na perna. Eu vou te matar ou vou matar tua família e não vai registrar ocorrência na Polícia”. Eu dei entrada no hospital e não fui à polícia...

P – Mas, o hospital é obrigado a avisá-la... R – Mas no hospital, telefonaram para o plantonista, era num sábado e eles telefonaram, mas não apareceu ninguém...

P – Então não foi feita a ocorrência?

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R – Não foi feita a ocorrência. No hospital eles falaram porque tomei um tiro. Eu falei que tinha sido uma bala perdida num campo de futebol. Eu fiquei, né?

P – Ficou assim? R – Ficou assim e eu voltei para casa. Passou um tempo. Daí naquele dia eu disse: “Bah! Esse cara vai incomodar minha

família, porque um monte de pessoas tinham medo dele onde eu morava. Tinham medo dele. Entendeu? Ele disse: “Bah! Não sei o que”, só falta o cara incomodar minha família. Eu achei melhor para mim, mas não era o que deveria ter feito, o que eu deveria ter feito era ter registrado a ocorrência e contado para os meus pais. Meus pais foram saber que ele tinha me dado um tiro e um tapa no rosto só quando aconteceu o delito, noutra semana. Eles não sabiam que eu tinha arma, eles não sabiam. Eu estava trabalhando até o fato, e não parei, já fazia alguns meses, estava trabalhando certinho. Naquele dia eu coloquei a arma na cintura, por acaso, havia uma rua que ia à casa da minha avó e eu fui com a arma na cintura. Quando ele me avistou, ele... “bah! eu vou te matar” eu desferi dois tiros nele, corri e atirei a arma em um rio...

P – Acharam a arma? R – Não... Eu peguei e atirei dentro de um rio... Umas pessoas que estavam vindo com mochilas nas costas, rapazes de

maior idade que tinham jogado futebol e eles estavam indo a um bar, tomar refrigerante. Algumas pessoas falaram que esses rapazes estavam junto. Mas eles não estavam. Estava só eu que disparei. Corri. Passou alguns dias e eu contei para o meu pai. Disse: “ó, bah! aconteceu aí, fui eu que matei aquele senhor”. Meu pai disse: “mas por que meu filho?” Eu contei: “se lembra aquele tiro que eu tomei na perna? Foi aquele senhor...

P – E tua família ? R – Meu pai é construtor. A mãe é dona de casa. Somos quatro filhos, eu e mais três irmãs Uma de seis anos, uma de 19

anos e a outra de 23 anos. Sou o único filho homem.

P – Tua mãe não perdeu um filho? R – Não. Perdeu antes, uma guriazinha. Ela era bem novinha, deu pasmo. Ela morreu nos braços da mãe no hospital.

P – Triste... tu chegaste a conhecer? R – Eu cheguei a conhecer mas foi por poucos dias. Ela nasceu e depois a mãe foi para casa, ela chegou e foi ao hospital

ver o que era e a guriazinha morreu nos braços dela.

P – Retomando, tudo isso se passou aqui, e lá no ICM? Como é que foi? R – Bah! No ICM lá, lá é bravo...Vou explicar: O bravo é que me refiro é... Eu cheguei lá... o doutor Saraiva me

encaminhou, cheguei lá e me largaram para o Fórum Central. No Fórum Central eles falaram: “agora tu vais para o ICM...

P – Quem te levou até lá? R – O comissário. Ele me aconselhou a chegar lá numa boa. Lá dentro a situação é a seguinte... Os comissários de Porto

Alegre me levaram. Cheguei lá no ICM, me revistaram e me disseram: “entre por esse corredor aí, vamos te botar numa ala, onde todos os que chegam da rua vão”. Tem outras alas, são seis alas. Daquela ala eles distribuíam para as outras. Eu cheguei lá e fui conversando, cinqüenta estavam nessa ala. Cinqüenta menores. Tudo por homicídio, assalto, de tudo que se imaginasse. Conversando com um, conversando com outro, meio apavorado, pessoal de cidade pequena...

P – Tu tinhas que idade? R – Tinha 17 anos, direto para lá. Daí eu disse: “bah! onde é que eu estou?” Eu fui conversando com os “menudos”. Cada

dia que passava, bah!, era um pesadelo, né? Nunca estive em presídio, nunca... Fui conversando. Lá é tudo controlado. De manhã tínhamos que arrumar a cama, sair no corredor, tudo bem certinho. Tudo bem organizado, tinha sala de auditório, pegava pátio... tudo. Tinha assistente social, psicóloga. Depois eu comecei a conversar com assistente social e psicóloga e foi me aliviando. Dali a alguns dias fui me adequando ao lugar. Em um mês subi para a ala três, logo que eu subi, dali dois dias, estourou um motim. Naquele tempo era só eu de Santo Ângelo.

Daí aconteceu esse motim porque os monitores batiam demais, espancavam os menores.

P – Você chegou a apanhar? Porquê? R – Sim. Eu apanhei porque pedia para ir ao hospital, estava mal da garganta. Fui falar com uma enfermeira e ela falou que

eu não tinha nada. “Mas como não tenho nada? Estou cheio de ínguas. Eu quero ir ao médico, eu tenho direito de ir ao médico!”. E ela saiu me espancando. Me encheu de socos. Eu não revidei, só coloquei os braços e fui indo.Daí já veio mais.

P – E o que aconteceu depois? R – Eles mandaram subir para a ala. Mandaram eu subir e falaram para não contar nada para ninguém. Naquela época eram

180 menores. Neste dia aconteceu o motim, eles quebraram tudo, sabe? Começou lá no início e foi estourando tudo, escureceu tudo. Daí eu disse: “bah! Faziam dois meses que eu estava lá. Eu disse: “bah, minha nossa do céu! Onde é que eu vim me enfiar?” Já começaram a tocar fogo. Eu disse: “bah, e agora?” Ainda bem que eu cruzei para frente do portão. Dei graças a Deus que consegui passar o portão, sabe? Esse portão dava acesso na frente, onde fica o diretor, a secretaria, sabe? Eles iam botando quem não queria se envolver, né, eu consegui cruzar e quando eu cruzei, cruzou mais guris, e os caras já fizeram uma lista de todos. Não cruzava mais ninguém. Daqui há pouco, chegou um Policial Militar e disparou dois tiros de arma de fogo. Bem perto e caiu alguns tijolos, abrindo um buraco, abriu um rombo perto. Disse: “bah! minha nossa!”Comecei a apavorar, eu disse: “bah! Eu vou ter fé em Deus “. O que veio em minha cabeça, era ter fé em Deus que Deus vai me ajudar. Porque era a primeira vez que eu estava lá. Nunca havia estado lá. Eu disse:”bah! E agora?” Daqui há pouco os guris estouraram um liquinho de gás, deu um estrondo maior que os dois tiros de calibre doze que o brigadiano havia desferido. Aquele liquinho deu um estouro, o dobro. Aí eu digo: “bah! Minha nossa o que tá acontecendo?”Amanheceram quebrando tudo. Nessas alturas eu deixei, consegui cruzar. De madrugada nós estávamos em uma peça, eu e mais alguns menores e veio os caras que estavam liberando camiseta. Noutro

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dia eles foram até quase dez, onze horas e acharam melhor se entregar. Nos tiraram de lá e nos levaram para o pátio e começou tudo de novo. Não sobrou nada As roupas eles queimam tudo. O que sobra mandam para a lavanderia, depois tem que achar. Mas, geralmente, a gente achava. Lá eles dão roupa, calçado e material de higiene.

Depois que eu peguei e subi, daí a mãe todas as quintas e terças feiras telefonava, sabe? Ela telefonava para saber como eu estava. Eu dizia: “Não. Está tudo bem, está tudo bem!” Havia aula, era tipo um corredor assim, cheio de salas de aula, tipo um colégio. Aula em várias séries, um monte de professor, tinha artesanato.

Eu ia para a escola. Quando não ia à escola, ia ao artesanato passar o tempo. Para não ficar com os outros. Os outros, tinhamenores com dois, três latrocínios, só queriam saber de “buchincho”, só pensavam na pior das hipóteses.

P – Tu não pensavas em fugir? R –Eu cheguei a fugir. Eu fui e fiquei, mas quando faltavam três dias para vir a Santo Ângelo para falar com o doutor

Saraiva, eu fugi. A Brigada me capturou ali, logo abaixo, nos fundos do estádio do Inter. Aí estourou outro motim.

P – Neste terceiro dia antes de vir embora estourou outro motim? R – Outro motim. Eu passei lá, uns seis ou sete motins neste ano que eu fiquei lá.

P – Mas esse motim que tu estavas me contando foi no período da regressão de três meses? R – Sim.

P – Ao final destes 90 dias tu viestes a Santo Ângelo. R – Ele me encaminhou para lá, eu fiquei um mês. Um mês e uns dias e estourou o motim. Quando faltavam três dias para

completar os 90 dias, antes de vir, estourou o outro motim. Eu e cinco rapazes fugimos. Quando fugimos, os outros rapazes que não conseguiram fugir, se amotinaram. Nós pulamos e saímos por cima do telhado. Quando pulei no chão, um brigadiano me desferiu vários tiros. Eu peguei e, graças a Deus, acho que não devia ser minha hora de morrer, eu entrei no mato e saí lá na faixa, era noite. Eu pensei: “bah! eu vou por aqui”, eu e mais cinco. Quando estávamos indo a Cavalaria da Brigada vinha ao nosso encontro, fazendo um arrastão, eles sabiam da fuga de menores. Daí, disse: “bah!”. Corremos e nos atiramos em um valo, daí um brigadiano desferiu tiros de pistola. Eu parei, não tinha mais saída, se tentasse fugir acabariam me baleando ou me matando.

P – Me explica uma coisa: quando tu fugiste, tu já sabias que ficarias lá por um ano? R – Não...

P – Então, tu ainda não tinhas voltado a Santo Ângelo para saber da sentença? R – Não. Sim. Minha sentença era de três meses.

P – Isso, uma regressão de medida, porque tu estavas em liberdade assistida... R - Estava em liberdade assistida.

P - Três dias antes de completar estes três meses é que tu fugiste? R – Fugi. Me capturaram e me botaram no isolamento. Mas daí, me conduziram para delegacia, só que eu e os outros cinco

não tínhamos nada a ver com o motim, tínhamos a ver com a fuga. Nós abrimos a porta e descemos em cima do telhado, fugimos, só que os outros não conseguiram e aproveitaram da situação. Daí, voltamos lá para a unidade e eu fiquei no isolamento. Quando eu estava no isolamento, aconteceu, noutra noite, uma nova tentativa de fuga. Entrou o batalhão de choque no corredor. Aquele dia só nos tiraram os colchões, nos deixaram sem nada nas celas. Eu posei aquela noite e, no outro dia os comissários foram me buscar para vir a Santo Ângelo, falar com o doutor Saraiva. Aqui, o doutor Saraiva disse: “E daí, L. ? Como é que tu está?”. Disse: “Não. Estou bem”. Ele para mim, assim: “Mas não tentou fugir?” Eu fiquei na minha. O advogado que estava com meu pai apareceu e disse: “Tentou fugir, né?” O doutor Saraiva me disse: “Bah! L., tentou fugir? Por que fizestes isso?” Daí, bah! Apavorado, doutor! Bah! Lá, graças a Deus, eu tive uma amizade com os outros internos, uma amizade boa, não briguei, nunca discuti com ninguém. Só falei para ele: “me apavorei”. No primeiro motim os caras amanheceram quebrando tudo...

P – Tu lembra que me dissestes quando começou a falar na FEBEM: “bah! é bravo!”. Eu te perguntei o que que é bravo? Então, o que é bravo?

R – Aí,ttem menores lá que apanham. Cada vez que acontece um motim, eles apanham.

P – O bravo é ficar na FEBEM? R – É bravo por tu não ter tua liberdade. Lá é sofrimento, lá é sofrimento, lá, tipo que nem eu, fiquei um ano lá e passei

uma série de motim, eu vi cada coisa que bah!. Se Deus me ajudar nunca mais eu quero ver.

P – Tu pode contar o que vistes? R – Ah, eu vi menores batendo em cima de outros, de esmagar, de se prevalecer assim de bando, um querendo botar fogo

no outro.

P – Atear fogo de verdade? R – Botar fogo. Eu vi três morrerem queimado. Noutro dia eu fui lá, estava a marca na parede dos rapazes que morreram

queimado. Aquilo parecia um inferno, Deus o livre.

P – Como se tudo pudesse acontecer? R – Sim. A qualquer momento. Tu não podia dormir tranqüilo. A qualquer momento estourava um motim.

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P – Tu te sentia inseguro por causa dos teus companheiros de FEBEM? Eram eles que te deixavam com medo de que te acontecesse alguma coisa?

R – Sim. Porque a gente nunca sabe o que se passa na cabeça dos outros. Porque volta e meia eles faziam um motim. Nem precisava ser motim, se reuniam lá e decidiam surrar um, pegavam o cara e surravam.

P – Por? R – Ás vezes, por nada.

P – Por que dava na cabeça? R – Dava na cabeça. Aí eles achavam: temos que bater nesse aí, e eles batiam.

P – Isso era sempre feito em grupo? Um grupo que batia em uma pessoa? R – Em um, dois, três. Eles formavam um grupo de quinze, vinte, conversavam e escolhiam os três.

P – Mas isso era para disputar alguma coisa? R – Sim. Eles pegavam mais este pessoal, tipo estuprador, esses caras que “cagüetam”, eles dizem que “cagüetaram” com a

polícia ou “cagüetaram” os monitores e esses outros caras, por exemplo, quando eles estão cuidando um negócio, quando vê não dá certo, pegam os caras e cobram, que ele que está cuidando. E matam, torram, como eles dizem. Os estupradores, os “cagüetes”.

P – E quem conta que o delito foi de estupro? Isso, à princípio, não é para ninguém saber? R – Não é para ninguém saber. Lá o processo não entra contigo, fica lá na frente.

P - Isso. E quem conta? A própria pessoa que faz? R – Às vezes eles se atrapalham nas conversas, porque, geralmente, chegam lá e dizem que cometeram latrocínio, assalto,

apenas para dizer que o cara é da ala quarenta e poucos, e tem sempre um falando o que aconteceu contigo.

P – Por quê que tu achas que perguntam? R – Ah, eles querem saber qual é o teu delito para eles verem, qual é que é a tua. Eles dizem: “bah! esse cara aí é xarope”, é

como eles chamam lá quem faz e não está nem aí.

P – “Xarope”, quer dizer que é mal? R – Não, eles dizem “xarope” para a pessoa que não tem sangue, chega e faz o “negócio” e não está nem aí.

P – Com este não é para se meter? R – É. Lá na frente onde estão os processos, quando é para falar com a assistente social ou com o psicólogo desce cinco,

três guris. Ficam alguns para o lado de fora e a assistente social, a par dos processos, às vezes conversando sobre os delitos, os guris escutam e até mesmo os próprios monitores não gostam destas atitudes tipo estuprador, “cagüetes”, eles mesmo contam. Porque eles têm acesso, eles contam.

P – Eles contam porquê? R – Eles contam por vontade, eles não gostam de estuprador, de “cagüetes”, porque os “cagüetes” geralmente entregam os

outros para eles. Eles são corruptos, a maioria é corrupto e dão laço nos menores. Eles fazem as trapalhadas de venda de droga ou negócios assim. Eles têm medo de que esses menores prejudiquem. Eles preferem eliminar, cortar os caras, para se verem livre, continuarem livre em seus negócios.

P – Tu fugiste mais de uma vez? R – Não. Só uma vez. Depois eu disse: “eu vou ir para frente, vou fazer por mim, vou conquistar minha liberdade”.

P – Ficaste quanto tempo no ICM? R – Um ano, depois fui posto em liberdade. Fiquei aqui três meses e fui posto em liberdade.

P – E tem alguma diferença da FEBEM daqui e a de lá? R – Bah! Tem. A diferença é que aqui, quando chegamos fomos bem recebidos pelos monitores, por parte de todos. A casa

era nova, recém tinha inaugurado, quando chegamos com os agentes penitenciários. Mas antes de sairmos do ICM, estava acontecendo um motim, sabe? Os guardas estavam na maior correria e, num intervalo, eles nos botaram em uma Kombi e nos levaram para uma unidade como esta aqui.

P – O Centro da Juventude de lá? R – De lá, isso. São modelos. São diferentes das outras unidades. Nós fomos até lá e não nos aceitaram, porque estávamos

vindo do ICM, que era barra pesada, eles mesmos falaram. Tivemos que voltar para o ICM, conversamos com o diretor, acho que com um psicólogo e com a dona Carmem

P – A presidente da FEBEM na época? R – Presidente. Nós conversamos com ela e lhes explicamos que não queríamos nos envolver em nada, só queríamos voltar

para nossa comarca, nós sabíamos que havia uma FEBEM e, pela nossa parte, jamais iríamos aprontar, ou fazer besteira, fugir ou fazer um motim, só porque estávamos vindo de uma outra unidade. Nós conversamos e voltamos para a unidade, ficamos dois ou três dias nos adaptando, e viemos para Santo Ângelo, quando chegamos aqui, fomos bem recebidos. Bah!, totalmente diferente.

P – O que é diferente para você? R – O ambiente, tudo é diferente, a comida, a higiene, o tratamento do pessoal da casa, dos monitores, de todos. Tínhamos

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assistente social, psicólogo, enfermaria, de tudo que tu imaginar tem lá dentro. Quando nós chegamos, sabe?, Botaram um em cada cela, e nos deixaram fechado. Depois fomos conquistando espaço e foram nos liberando.

P – E lá no ICM? R – Eram dormitórios coletivos para onze, doze. Dormitórios com camas altas, feitas de tijolos, botavam o colchão em

cima, era tipo só uma pedra e botavam o colchão, mas aqui na FEBEM, é só para um.

P – Tu disseste que o tratamento é diferente... R – Sim, o tratamento é diferente. A diferença é que aqui os monitores te respeitam, não te batem, não te falam, se tu fores

conversar com eles e perguntar: “ô seu monitor, não tem como eu ir na enfermaria?”, Davam umas risadas, diziam: tu aguarda aí. Lá não, lá já dizem “não, não tem enfermaria” e já te maltratavam, isso lá no ICM, aqui na FEBEM, é totalmente diferente, totalmente.

P – E tu consegues pensar e me dizer: como era o ICM, o Centro da Juventude e o presídio hoje? Que diferenças haveria? R – Tem, tem diferença.

P – Quanto tempo tu estás aqui no presídio? R – Aqui no presídio? Estou há dois anos e cinco meses por assalto. Eram dois, eu assaltei esse senhor com uma arma.

P – E tu percebeste alguma diferença. Qual é a diferença entre estar na FEBEM e estar no presídio? R – A diferença é enorme. É completamente diferente.

P – O quê muda? Porque privado de liberdade, ou seja, sem liberdade, tu estás em qualquer um dos dois. R - Em qualquer um dos dois. Mas no presídio, para alcançar a liberdade é mais rígido. Você só vai a uma aula se for

colocado teu nome, você só sai da cela se fores à aula, na biblioteca, ou cortar o cabelo, ou se te chamarem para ir ao médico, senão...

P - Todo o tempo fechado? R – Todo o tempo fechado. As únicas duas horas que não fica fechado é quando se vai para o sol e para ir ao refeitório, no

trajeto da cela até o refeitório buscar comida. E come na cela. Geralmente na cela. Na cela tem fogareiro. A gente faz comida. Porque a comida da FEBEM e da cadeia é totalmente diferente. A FEBEM ali...

P – Até a tua fisionomia mudou quando tu começaste a falar do presídio. R – É!?

P – É. R – Presídio é presídio mesmo.

P – Quando tu estavas falando da FEBEM parecia que falavas de um tempo de saudade. Tens saudade daquele tempo? R – Quero esquecer da FEBEM. Quero, agora quando eu sair, daqui mais alguns anos, seguir em frente com meu pai,

trabalhando.

P – Dissestes que só sai da cela se tiver ordem. E quem determina se tu podes estudar, se tu podes trabalhar? R – Os agentes.

P – Pelo comportamento? R – Pelo comportamento. Vai fazer um ano e dois meses que eu estou costurando bolas. Faço bolas dentro da cela. Eu peço

para um senhor que fica no corredor “faz um favor”, eu peço para ele: “ô, ô, seu, não tem como ir na biblioteca pegar uma revista para ler?”. Ele vai e pergunta para o guarda. Daí o guarda: “ô, seu! Pode ser liberado para ir na biblioteca? Claro!” Vai sai da cela, pega o livro e retorna para cela.

P – Quer dizer que a maior parte do tempo é solitário? R – Não. No presídio é uma cela para quatro pessoas. Tem quatro camas, uma mesinha e um banquinho. Só que, às vezes,

estamos entre seis numa pecinha que é menor que isso aqui, quase a metade disso e tem quatro camas, quando está cheio elesbotam dois no chão. Esta noite eu dormi no chão.

P – Ocorre muita briga? R– Não. Mal entendido é normal. Ali, tu se desentende, mas é só no momento, porque todos que estão ali, só querem ir

embora, só querem liberdade.Em um presídio não tem porque ficar brigando entre si, apenas para ficar dentro do presídio, porque ali tu sabe que mais adiante tu vai ser solto, eles te darão uma oportunidade. A gente fica na cela, aí escuta música, assiste televisão. A gente divide tudo. Nós dividimos com os outros. Porque alguns têm outros não tem, assim tudo é dividido, porque estamos sofrendo juntos.

P – E tu está na mesma cela há dois anos e meio? R - Não. Mudamos de companheiro. Vai fazer 30 dias que eu mudei de cela. Pelo meu bom comportamento, eu estou com

comportamento bom. Depois que eu fugi durante o benefício e me capturaram, eu estou um ano e cinco meses, neste um ano e cinco meses, eu não tenho nada. Briga, nada.

P – E porque fugiu? R - Fugi. Achei que devia sair, depois me arrependi e fiquei com medo de voltar e ser fechado. Achei melhor fugir, fui para

São Leopoldo, lá a Brigada me trancou, me capturaram, mas meus pais queriam que eu voltasse e falasse com o Saraiva.

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P – Você está com quê idade? R - Vinte e um. Estou desde os 17 anos nesta vida, puxando cadeia. Agora, graças a Deus, acho que está se encaminhando

de novo.

P – Tu já tens uma profissão? Neste tempo que tu estás lá, conseguiste aprender alguma coisa além de costurar bolas? R - Lá não tem muita tarefa. A única tarefa é costurar bolas. Tem os faxineiros que limpam sala de aula, tem os caras que

trabalham na cozinha, geralmente trazem comida para os presos e tem a escola. Logo que eu cheguei, não tinha o que fazer, pedipara ir à escola e eles me concederam. Agora eu não vou mais, porque lá tem que ser uma atividade só. A cada três dias diminui um dia da pena. Se, por exemplo, eu estou ligado nas costuras de bolas, eu não posso ir à aula, porque na aula é outro ritmo. Lá é seis dias para ganhar um dia de redução. Eles não aceitam.

P – Tu me falavas que na FEBEM, em Porto Alegre, no ICM, não conseguia dormir com medo do que o outro poderia fazer, tu nunca sabias o que o outro poderia fazer. E no presídio também?

R - Não. No presídio durmo tranqüilo. É que lá tinha mais piazedo novo. Como eu lhe falei, é um, dois latrocínios, outro por assalto a banco, outro por furto, pequenos furtos, de tudo que tu imagina. Eles querem é ficar passando o tempo fugindo, fazendo motim.

P – Mas são pelos mesmos delitos que as pessoas vão para FEBEM e para o presídio. R - Sim, mas é que aqui no presídio são maiores de 18 anos. Aqui no presídio eles só querem ir embora, não ficam

formando grupinho e cobrar se é estuprador, se é “cagüete” ou não.

P – Mas por que tu achas que as pessoas não querem ir embora da FEBEM? R – Ah. Eles não querem, porque a gente para ir embora, puxa a pena numa boa, não precisa estar distratando ninguém,

não precisa estar brigando.

P – Mas tu achas que o comportamento deles era porque eles não queriam ir embora, por que se eles quisessem ir embora eles se comportariam direito?

R - Sim. A meu ver é isso, porque se tu queres ir embora tem de fazer por merecer.

P - Pensavas assim quando tinha 17 anos e estavas lá no ICM? R - Não.

P – Como é que tu pensavas? R - Ah, eu era mais jovem. Quando eu estava no ICM eu tinha vontade de... mas graças a Deus, que sempre eu recebia

visitas e minha mãe sempre estava me aconselhando, tanto que uma vez eu fui parar na PASC, em Charqueadas.

P - PASC!? Por quê? R - Porque eu tinha, foram quebradas as cordas de isolamento. Eu estava pagando castigo, e os outros me envolveram,

falaram que eu estava junto. Todos que estavam nas celas foram retirados.

P - Disseram que tu estavas envolvido num motim? E todos que estavam no motim foram levados para o PASC? R - Sim, mas esse motim aconteceu em um só corredor, em uma ala que é o castigo.Foram quebradas todas as cordas e os

monitores invadiram, o pelotão de choque, nos botaram no corredor, algemaram e apertaram as algemas.

P – Essa coisa de motim, de se rebelar, de queimar as coisas, acontece no presídio? R - Não.Vai um representante e coloca para o administrador. Não tem esse negócio de rebelião, pelo menos aqui. Agora lá

na FEBEM fomos torturados, depois nos deram uma injeção que eles chamam de “sossega leão”, para acalmar. Tu fica 36 horas sonolento e bobo, me botaram no caminhão da choque e me levaram para uma penitenciária. Ficamos dez ou quinze dias. Saiu na Zero Hora esse negócio que tínhamos ido para o PASC, aí veio o instrutor F. do Fórum Central de Porto Alegre com psicólogas, advogados, e nos tiraram de lá. Eu fiquei muito mal, os meus braços, a injeção travou meus braços. Travou tudo, é o efeito da injeção. Não podia nem tomar banho, entrava debaixo d’água e ficava paralisado, para descer as escadas um monitor precisava me segurar.

P – Tu estavas me dizendo que no presídio ou fazes uma coisa ou outra, porque todas as atividades estão vinculadas ao fato de diminuir a pena. Se tu vais à escola também?

R - Diminui a pena.

P – E por que tu optaste em fazer as bolas e deixar a escola? R - Não. Porque costurando bolas eu achei melhor. Eu fico dentro da cela, costuro. Era o único serviço que havia quando

cheguei. Havia aula, mas as vagas estavam preenchidas. Eu não sabia costurar, fui me interessando. Eu morava com um senhor na cela que não tinha uma perna e ele costurava bolas e foi me explicando e eu fui aprendendo. Quando faltavam quatro meses eu pedi para falar com o doutor J., que é o vice-diretor da casa, e ele conseguiu o serviço para mim. A gente é pago pelo trabalho. Um senhor, eles entregam o material para ele que repassa para nós. Quando ele recebe, ele nos repassa. Não é pela SUSEPE. Os outros apenados que trabalham no corredor, de faxineiro, limpam o corredor, trabalham na cozinha, nos serviços internos, eles ganham o chamado pecúlio, que é da SUSEPE, que a SUSEPE repassa para eles. Eles ganham vinte e poucos reais, depende.

P – Me chama a atenção, que falaste que a FEBEM é bravo, é um inferno, mas não falas nestas características para o presídio. A FEBEM era bravo. E o presídio é o quê?

R - O presídio é ruim, mas não é tanto como lá. Ali tudo pode se resolver. Ali tudo é resolvido no diálogo entre as pessoas.

P – Mas todo o tempo que tu está me falando disso, tu está lembrando da tua experiência no ICM. Quando tu falas que a

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FEBEM é bravo, é da tua experiência do ICM e do Centro de Juventude, aqui? Falas das duas experiências? R - Experiências? Como assim?

P – Assim: tu estiveste no ICM, não é? E tu estiveste na FEBEM aqui de Santo Ângelo, certo?. Quando tu dizes que a FEBEM é bravo, tu estás falando das duas?

R - Não, estou falando.só do ICM. Porque a FEBEM daqui seria uma casa de recuperação, mesmo, do adolescente. Para se recuperar...

P – E o presídio? Seria o quê? R - O presídio seria quase a mesma coisa. Quase como uma FEBEM, como essa casa da FEBEM de Santo Ângelo. Ali

pode se regenerar, pode cumprir a pena e pode ser posto em liberdade o mais rápido possível.

P – A impressão que eu tenho quando tu falas do ICM, da FEBEM e do presídio é de que aqui é um lugar difícil, estás sem liberdade, mas que estás tranqüilo, se é que posso dizer isso.

R - Tranqüilo. Porque não é como em Porto Alegre. Não tem toda hora motim, toda hora queimando tudo, coisas ruins. Aqui no presídio, todo esse tempo que eu estou, nunca briguei com nenhum apenado, jogo futebol, tudo...

P – Nunca correste nenhum risco? R - Nunca corri nenhum risco, sempre respeitei os agentes, os guardas, sempre os respeitei, eles também sempre me

respeitaram.

P - Isso é importante. E para o teu futuro, tens algum projeto? R - Meu projeto é sair agora e pagar essa minha pena. Peguei seis anos. Só que esta semana eu ganhei remissão, o doutor

Saraiva despachou para mim e a pena veio para cinco anos, seis meses e dois dias

P – Então poderias passar do regime fechado para o aberto? R - Sim. Eu peguei exame e rodei. Agora fiz o segundo e passei. Agora a minha cadeia retornará ao semi-aberto porque,

quando o doutor Saraiva me condenou há seis anos em regime semi-aberto, só que fui posto em liberdade na horta do presídio, que era para mim pagar até completar o meu tempo de pena, que era de um ano. Quando eu completasse um ano, receberia uma carta de trabalho e só pernoitava no presídio.

P – Queria fazer mais uma pergunta: agora, passados cinco anos desde quando tu cometeste teu primeiro furto, o que tu pensas? O que tu achas que te fez ir por este e não por outro caminho?

R – O que me fez ir por este caminho, foi que eu achei que devia seguí-lo, mas não é por aí.

Este caminho me mostrou só coisas ruins. Naquela época eu achava que era tudo legal, tudo bom, roubar ali, arrumar um dinheiro fácil, ir na loja, comprar um calçado, uma roupa, andar com dinheiro fácil, vou ali, roubo e estou com dinheiro fácil. Eu achava isso. Roubava, tinha dinheiro e um monte de amigos, depois ficava sem dinheiro e ia de novo.

P – Fizeste alguma escolha religiosa nestes tempos de presídio? R - Quando eu entrei no presídio achei melhor me decidir, prometi para mim mesmo que ia largar de fumar maconha. Este

foi o primeiro passo que eu queria dar, que era não mais me envolver com droga.

P – Teria alguma coisa que tu gostarias de falar, de deixar registrado. R - Eu queria deixar registrado que se a gente pudesse cometer um delito, que seja um delito simples, se a gente tiver

recuperado e não voltar a fazer. Porque mais tarde a gente está cometendo delitos maiores, quando se dá por conta sai da FEBEM, vai para o presídio e vai perdendo a juventude, como eu perdi. Mas agora eu estou feliz, bah! Minha mãe me ajuda, em tudo.

P – Tens uma ligação muito forte com a tua mãe! R - É.

Quadro 1

Comparação européia da idade da responsabilidade penal juvenil, maioridade da idade penal

e maioridade da idade civil

País Idade da Idade de Maioridade da responsabilidade Imputabilidade Idade Civil penal juvenil penal Alemanha 14 18-21*** 18 Áustria 14 19 19 Bélgica 16 18 18 Bulgária 14 18 18 Dinamarca 15 18-21*** 18 Espanha 12 18* 18

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França 13 18 18 Grécia 13 18 18 Holanda 12 18 18 Hungria 14 18 18 Inglaterra 7-15 18 18 Itália 14 18 18 Polônia 13 17 18 Portugal 16 16-21*** 18 Romênia 16 18-21*** 18 Suécia 15 18 18 Suíça 7/15 18-25*** 20

Fonte: Conselho da Europa: reações sociais contra a delinqüência juvenil Dados fornecidos pelos diferentes consulados.

Referência bibliográfica: SOTOMAYOR, Carlos Tiffer

Quadro 2

Comparativo entre as diferentes medidas ou sanções contidas nas legislações da América Latina em face a Adolescentes

em conflito com a Lei

País/Ano Tipos de sanções Duração Critérios (Ref. A arts.)

Argentina Não se define no Código Tempo Não faz 25.08.80 indeter- referência minado Colômbia 1. Medidas de Proteção Máximo Código do 27.11.89 � Prevenção ou admoestação 3 anos Menor � Custódia ou cuidado pessoal Art. 30 � Colocação a) Atenção integral em centro de proteção especial b) Colocação em centro de proteção especial c) Adoção d) Qualquer outra que permita o cuidado e a atenção do menor 2. Medidas de Reabilitação a) Admoestação b) Imposição de regras de conduta c) Liberdade Assistida d) Inserir em instituição e) Qualquer outra que contribua para a reabilitação do menor

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País/Ano Tipos de sanções Duração Critérios (Ref. A arts.) Costa Rica a) Admoestação (art.31) Proibidas as L.O.J.T.M. 21.12.63 b) Liberdade Assistida medidas arts. I, (arts. 32 e 33) indefinidas Cap. II, 16.03.94 c) Colocação em lugar (art. 7) 41 e 42

Reforma substituto (art. 14)

d) Colocação em um trabalho ou ocupação convenientes (art. 29, inc. ch) e) Internação em estabelecimentos reeducativos Total ou Parcial (art. 35). Equador 1. Medidas de caráter sócio– 1. Incs.B, c, Via educativo (art. 184) d,e: um ano regramento a) Admoestação e Advertência no máximo ao Menor b) Participação Obrigatória em Inc.F = 4 anos programas de atenção, no máximo orientação e supervisão c) Liberdade Assistida d) Prestação de Serviços Comunitários e) Regime de semi-liberdade f) Inserir em instituição g) Obrigação de reparar econo- micamente o dano causado 2. Casos especial em relação a 2. Indefinida Lei de Psicotrópicos (art. 192) Internação para tratamento de desintoxicação e reabilitação Indefinido México 1. Medidas de Orientação (art.97) Tratamento Lei para o 24.12.91 a) Admoestação (art.98) Externo tratamento b) Advertência 1 ano máx de Menores (art.99) Infratores c) Terapia Ocupacional (art. 100) Tratamento arts. 59. V, d) Formação ética, educativa e Interno 60,61,88 e cultural (art. 101) 5 anos máx ss., 96

e) Recreação e desporto (art. 102)

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2. Medidas de Proteção ( art. 103) a) Manutenção na família b) Mudança do lugar onde se encontra o domicílio familiar (art. 105) c) Indução para assistir instituições especializadas (art. 106) d) Proibição de frequentar determinados lugares e de conduzir veículos (arts.107 e 108) e) Aplicação dos instrumentos e objetos e produtos da infração nos termos que determine a lei penal (art. 103,V) f) Medidas de Tratamento externo e interno (art. 110 e ss)

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El Salvador a) Orientação e Apoio sócio familiar Máximo Lei do (art. 10) 3 anos Menor b) Admoestação (art. 11) Infrator c) Imposição de regras de conduta arts. 9 a 15 (art. 12) d) Serviços à Comunidade (art. 13) e) Liberdade Assistida (art. 14) f) Internamento (art. 15) Venezuela Medidas (art. 107) Indetermi- Lei Tutelar a) Colocar o menor ao cuidado de nada de Menores seus pais, tutores, guardiães ou arts. 108 ao parentes responsáveis (art. 107.1) 122 b) Liberdade Vigiada (art. 108 a 110) c) Colocação familiar (arts. 11 a 117 d) Assistência em Instituições de reeducação ( art. 118 a 121) e) Assistência em Instituições

Curativas ( art. 122)

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Panamá Medidas (art. 535) Máximo Código da a) Entregar o menor a seus pais, 2 anos com Família tutores ou pessoas que o tenham possibilidade art. 523 sob sua guarda e sob as condições de amplia- que o juiz determinar ção b) Liberdade Vigiada c) Colocação em lugar substituto d) Integrá-lo em Programas oficiais ou privados de auxílio, orientação, tratamento e ressocialização e) Interná-lo em um centro de observação ou ressocialização f) Qualquer outra medida que busque resolver a situação do menor Caso especial da Lei de Psicotrópicos - Internamento em um centro de saúde para alcançar a desintoxicação e reeducação, por tempo indeterminado Uruguai a) Reclusão (art. 113,c) Indetermi- Código b) Regime de Vigilância e Proteção nado da Criança (art. 124) arts. 12 e c) Colocação na própria residência dos 119 pais ou guardiães (art. 124) d) Conceder a guarda do menor a outros parentes ou estranhos (art. 124) e) Detenções escolares( art. 124) f) Internamento em estabelecimentos do Conselho, ou em outros públicos ou particulares (art. 124) g )Encaminhar os menores ao serviço do Exército ou da marinha (art. 124)

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Honduras a) Admoestação Inc. E = Não faz 1970 b) Devolver o menor a seus pais, indetermi- referência guardião ou pessoas responsáveis nada pelo menor, fazendo-se as prevenções do caso c) Liberdade Vigiada d) Internamento pelo tempo que julgue necessário, no Centro de reeducação ou alguma instituição que seja adequada e) Colocação no seio de uma família que se ofereça para isso e que o Juiz considera capacitada para dirigir sua educação. Se aplica em conjunto com o regime de Liberdade Vigiada. Brasil 1. Medidas Sócio Educativas 1. Inc. D = Estatuto (art. 112) min. 6 da Criança a) Advertência (art. 115) meses e do Ado- b) Obrigação de reparar o dano lescente art (art. 116) 2. Regime 121 a 125 c) Prestação de Serviços à semi-liberdade Comunidade (art. 117) máx. 3 anos d) Liberdade assistida ( art. 120) e) Inserção em regime de 3. Internamento Semi-liberdade (art. 120) máx. 3 anos f) Internamento em estabelecimento educacional (art. 121 a 125) 2 e 3 devem g) As previstas no artigo 101, reavaliar-se incs. V a VI a cada 6 meses 101.I. Encaminhamento aos pais ou responsáveis (declaração de Liberdade Com- responsabilidade). pulsória aos 21 101.II.Orientação,acompanhamento anos de idade e apoio temporários.

101. III Matrícula e freqüência obrigatória em estabelecimento oficial ou comunitário de auxílio. 101. IV. Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio à família, a criança e ao adolescente. 101.V Solicitação de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico em regime de internação hospitalar ou em tratamento ambulatorial. 101.VI Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento para alcoolistas ou toxicômanos.

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