Desemprego e crise de identidade do trabalhador: elementos que...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA Desemprego e crise de identidade do trabalhador: elementos que contribuem para a desestabilização do caráter do trabalhador Vanúzia Almeida Rodrigues São Paulo 2005

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

Desemprego e crise de identidade do trabalhador: elementos que contribuem para a desestabilização

do caráter do trabalhador

Vanúzia Almeida Rodrigues

São Paulo 2005

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

Desemprego e crise de identidade do trabalhador: elementos que contribuem para a desestabilização

do caráter do trabalhador

Vanúzia Almeida Rodrigues

Orientadora – Profa Dra Maria Helena Oliva Augusto Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Faculdade de Filosofia Letras e

Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do Título de Mestre em Sociologia

São Paulo Dezembro de 2005

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AGRADECIMENTOS...........................................................................................................3

RESUMO............................................................................................................................5

ABSTRACT……...................................................................................................................6

INTRODUÇÃO..................................................................................... ................................7

CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS PARA O TRABALHO DE CAMPO................................15

A Petroquímica União................................................................................................................... 15

A reinvenção das relações de trabalho.......................................................................................... 25

Desemprego (s) e precarização das relações ................................................................................. 32

Desemprego à brasileira................................................................................................................ 34

Desestabilização do caráter e a reconfiguração das relações de trabalho............... 37

Novos contornos identitários na realidade operária.....................................................................44

Individualização e desemprego – elementos que alteram a identidade operária ......................... 47

Descrição da metodologia e procedimentos de pesquisa............................................................... 50

Procedimentos de campo............................................................................................................... 53

CAPÍTULO II - A DINÂMICA DAS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO ....................66

Efetivos da Petroquímica União ...................................................................................................66

Perfil – os escolhidos da “arca do emprego”................................................................................. 67

Análise das Entrevistas ................................................................................................................. 70 Fazendo e refazendo a permanência no emprego – o mito de Penélope ......................................... 70 O trabalho como sentido da vida..................................................................................................90 Considerações gerais sobre os efetivos....................................................................................... 112

TERCEIRIZADOS DA PETROQUÍMICA – ABRINDO DIÁLOGO.................................127

Perfil – conhecendo os terceirizados ........................................................................................... 128

Análise das entrevistas ................................................................................................................ 129 O trabalho como parte do ser ..................................................................................................... 129 Reinventando o trabalho............................................................................................................ 144 Considerações gerais sobre os terceirizados ............................................................................... 155

DESPEDIDOS DA PETROQUÍMICA – FALANDO SOBRE AS ENTREVISTAS.............165

Contextualizando a situação dos despedidos .............................................................................. 167

Perfil dos entrevistados ............................................................................................................... 168

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Análise das Entrevistas ............................................................................................................... 169 O universo numa casca de noz................................................................................................... 169 Trabalho e status afinidades eletivas? ........................................................................................ 189 Considerações gerais sobre os despedidos da Petroquímica ........................................................ 210

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................234

A dinâmica das transformações do mercado de trabalho e a alteração do caráter ................... 234

BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................243

ANEXOS.............. ..........................................................................................................247

Entrevista com Heli Vieira Alves................................................................................................ 247

Roteiro de perguntas - Trabalhadores da Petroquímica União ................................................. 249

Roteiro de perguntas – Trabalhadores terceiros ........................................................................ 255

Roteiros de Entrevistas – Desempregados .................................................................................. 261

Comentários preliminares sobre as impressões de campo ......................................................... 266

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Agradecimentos

Em um trabalho longo e absorvente como uma dissertação de

mestrado, ainda que seja um esforço individual, necessariamente contamos

com uma rede de relações que inclui instituições, pessoas e entes, sem os

quais esse estudo não se realizaria ou, pelo menos, não chegaria ao fim.

Começo os agradecimentos pelas instituições que me apoiaram e que me

fizeram levar este projeto adiante. Ao Departamento de Pós-Graduação de

Sociologia da Universidade de São Paulo, que ofereceu e continua

oferecendo a estrutura necessária para que a imaginação sociológica de

tantos brasileiros e brasileiras permaneça viva. Sempre que precisei contei

com a solicitude dos funcionários, principalmente Irani e Izabel. Ao Conselho

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPQ, órgão de

fomento à pesquisa, que viabiliza o trabalho de milhões de cientistas nas

mais diversas áreas e que tornou possível minha pesquisa, incentivando-me

a levar a cabo este trabalho. Seria injusto esquecer o CEBRAP e o CEDEC,

que, embora não tenham relação direta com esta dissertação, foram

instituições importantes, durante a graduação para minha iniciação como

pesquisadora.

À Maria Helena Oliva Augusto, minha querida orientadora,

excepcionalmente atenta ao processo de pesquisa, além de dedicada e

questionadora, indicou caminhos valiosos na feitura do texto. Seu rigor e

atenção me fizeram aprender muito sobre o fazer sociólogo. Ao professor

José de Souza Martins, grande mestre, inspirador de toda uma geração de

sociólogos na “artesania” sociológica, conhecedor dos muitos Brasis e

brasileiros que povoam nossos rincões. Foram inúmeras e inesquecíveis as

lições sobre produzir sociologia, sobre o campo, sobre a maneira de

questionar, e sobre a infinitude do conhecimento em Ciências Humanas.

Entre outras coisas, nos ensinou o significado do “possível”, sob a ótica

Lefebvriana.

Não poderia deixar de agradecer aos amigos e colegas que foram

testemunhas do meu processo de aprendizagem, me acompanhando nessa

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longa jornada. Pude contar com seres humanos preciosos. Enca, amiga de

coração, companheira tão importante para, nos momentos de apuro, não me

deixar desistir e para partilhar minhas descobertas como socióloga, na

graduação, e como pessoa, na vida. À Patrícia Rossi, Aninha Tomioca e Lilian

Alves, amigas presentes, com quem varei diversas noites para estudar textos

árduos, realizar trabalhos em grupo, discutir questões que nos pareciam

relevantes. A amizade foi o grande prêmio que recebemos por esta vivência

tão rica. À Monika Dowbor, com quem pude contar diversas vezes, com

quem trabalhei desde o início da graduação, e para quem o fascínio pelo

“outro” é um manancial de aprendizagem. Esta centelha foi despertada por

você.

Aos meus pais, que sempre me apoiaram, alimentando os meus

sonhos, ainda que não soubessem o significado preciso do que é Sociologia.

Minha mãe, um dos grandes presentes que eu recebi da vida, com quem

aprendi a “fé cega” e meu pai, com seus olhos verdes, me ensinou a

verdejar o sonho, mesmo quando só há aridez. O significado da palavra

“Luta” é um legado que herdei dele. Aos meus irmãos, Maria Rita, Rejania,

João Carlos, Sirlene e Lillian, com quem aprendi as primeiras lições de

sociabilidade, partilhando espaços, utopias, dificuldades, gostos e

descobertas, nas mais diversas fases de minha vida. Aos meus sobrinhos

queridos, Neto, João Antônio, Vida e Marquinho, a continuidade de nossa

linhagem. Estou com saudades de nossas oficinas de pintura e de nossas

incursões no mundo fantástico, que são seminais para mim.

Ao Edu, nem sei como seria todo esse processo sem seu amor e

compreensão. Nos momentos mais dramáticos, apaziguando meu desespero,

me fazendo enxergar com simplicidade os problemas e ajudando a resolvê-

los. Sua participação foi vital para eu concluir esta etapa de minha vida. Com

o calor dos teus braços, tive momentos doces e alentadores, que renovaram

minha alma, foram um bálsamo.

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Resumo Esta dissertação tem como tema a “desestabilização do caráter dos

trabalhadores nas relações de trabalho”. Por meio da análise de entrevistas

com profissionais do setor petroquímico, discute e analisa os efeitos das

transformações do mundo do trabalho – como as alterações no sistema de

produção, a automação, a reestruturação produtiva, a flexibilização do

trabalho e a persistência do desemprego – sobre o caráter do homem nas

relações de trabalho. O caráter reflete a constituição de relações sociais que

se estabelecem a longo prazo, pressupõe a correspondência entre regras

sociais estabelecidas no âmbito das instituições e o comportamento dos

indivíduos. São analisadas três categorias: trabalhadores efetivos na

Petroquímica União, trabalhadores terceirizados que atuem nela e

trabalhadores que tenham sido despedidos. Foram realizadas quinze

entrevistas, sendo cinco para cada categoria em questão. A análise das

biografias permite compreender os elementos que influenciam a forma como

essas pessoas se comportam, como se vêem e como supõem que são vistas

pelos outros, a partir das transformações do mercado de trabalho. Estas

mudanças têm como efeito a flexibilização das relações de trabalho e a

precarização das relações sociais. Por fim, a desestabilização do caráter, no

contexto analisado, compreende o sentido oposto ao da condição que define

o caráter estável, ou seja, implica a existência de laços sociais vulneráveis,

pautados por interesses provisórios.

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Abstract This subject of this monography is the “desestabilization of character in

workplace relationships”. By interviewing professionals from the

petrochemical sector, it discusses and analyses the effects of changes in

work environment – such as modifications in production patterns, increasing

levels of automation, reestruturing of manufacture models, flexibilization of

work procedures and unemployment resilience – on human character in

workplace relationships. The character reflects the development of social

relations in the long term, assuming the linkage between social rules

established inside organizations and individual behavior. Three categories are

studied: Petroquímica União’s own employees, contracted workers and lay-

off/resigned workers. Fifteen interviews were accomplished. Five for each

appointed category. The biography analysis allows the understanding of the

elements that have influence on personal behaviour, on the way each person

sees him/herself and the way he/she believes other people may see

him/herself, taking into account the continuous evolution on labor conditions

and the instability on social relations.In conclusion, the desestabilization of

the character in this context, reflects the opposite sense of the condition that

defines a stable character, it indicates the existence of vulnerable social links,

ruled by temporary interests.

Palavras-chave: Sociologia do trabalho, caráter, desestabilização do caráter, desemprego, flexibilização das relações de trabalho Key-words: Labor sociology, character, desestabilization of character, unemployment, flexibilization of relations in the workplace.

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Introdução

O presente estudo discute e analisa os efeitos das transformações do

mundo do trabalho. Essas transformações incluem alterações no sistema de

produção, a automação, a reestruturação produtiva, a flexibilização do

trabalho e a persistência do desemprego – sobre o caráter do homem nas

relações de trabalho. O caráter reflete a constituição de relações sociais que

se estabelecem a longo prazo, pressupõe a correspondência entre regras

sociais estabelecidas no âmbito das instituições e o comportamento dos

indivíduos. “É o valor ético que atribuímos a nossos desejos e nossas

relações com os demais”, está vinculado a nossos laços duradouros e “se

expressa pela lealdade e o compromisso mútuo, por meio da busca de

objetivos de longo prazo” (Sennett, 2000: 10). Entendemos a

desestabilização do caráter no sentido oposto ao da condição que define o

caráter estável, trata-se d“a dissolução dos vínculos de confiança e

compromisso, constituídos no longo prazo”, que provoca a separação entre

“vontade e comportamento” (Sennet, 2000: 30). Nesse sentido, implica a

existência de laços sociais vulneráveis, pautados por interesses provisórios.

A nova fase de acumulação capitalista, cujas manifestações

características vieram à tona, com mais força, a partir da década de 1980,

provocou um conjunto de mudanças que vêm contribuindo para a

reconfiguração da esfera do trabalho. Os processos de reestruturação

produtiva e as mudanças nos padrões tecnológicos e de comunicação,

ligados à produção, estão no epicentro dessas transformações, e a

precarização das relações sociais, mediante a flexibilização dos contratos de

trabalho e do sistema de welfare é um dos seus efeitos (Guimarães, 2002a:

105).

As mudanças acima referidas tornaram-se, comumente, motivo de

insatisfação das pessoas no âmbito do trabalho. Excesso de atividades e

incumbências, insegurança em relação ao futuro, automatização de funções

– que, em muitos casos, implica redução da participação do trabalhador na

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elaboração de sua tarefa1, limitando seu papel à execução de funções

relativas à vigilância sobre um processo do qual não tem total domínio –,

além do medo do desemprego e das mudanças frequentemente

implementadas no sistema de produção são alguns dos sintomas mais

recorrentes.

A ideia deste projeto nasceu do questionamento acerca das

conseqüências das transformações no mundo do trabalho, como decorrência

das mudanças sociais, em geral. Propus-me a compreender o novo tipo de

sociabilidade que se constitui nesse processo de mudanças nas relações

institucionais e de reorganização das relações de trabalho, em que a

insegurança e as instabilidades parecem ser a tônica.

Parti de impressões recolhidas no dia a dia, de depoimentos de pessoas

conhecidas, amigos, parentes, de debates na imprensa falada e escrita, e da

percepção de um mal estar geral nas relações sociais, que têm no âmbito do

trabalho uma de suas fontes. Ou seja, os problemas resultantes das

mudanças na esfera do trabalho ajudam a explicar a transformação no modo

das pessoas se relacionarem no momento atual. As duas esferas – a do

trabalho e a das relações cotidianas – influenciam-se mutuamente.

Entendo que as transformações às quais me referi delineiem a

reconfiguração das instituições2. De minha perspectiva, esse processo

consiste na reorganização das relações a elas subjacentes, ou seja, dá lugar

a outro tipo de sociabilidade nas referidas instituições, entre as quais se

enquadram as empresas.

Para analisar se a reconfiguração do mundo do trabalho poderia

provocar a desestabilização do caráter nas relações sociais nesse âmbito,

busquei descobrir o tipo de comportamento adotado pelos trabalhadores a

partir das novas regras nele introduzidas. Além disso, pretendia identificar

também os problemas surgidos no processo de constituição do novo modo 1 Em outras situações, o processo de automação pode exigir que sejam desenvolvidos raciocínios mais complexos por parte dos trabalhadores. Isso requer que as pessoas reorganizem seu tempo entre a execução de tarefas, no campo prático, e a atividade de reflexão, de cunho intelectual. Em muitos casos, isso exige a realização de cursos de aperfeiçoamento para a atualização de conhecimentos. 2 As instituições são vistas aqui como mediações entre as estruturas sociais e os comportamentos individuais (Théret, 2003: 225)

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de ser operário, as tensões das relações entre os trabalhadores, como

conseqüência do aumento da competição, os mecanismos de negociação, os

artifícios para a adaptação aos novos papéis no campo de trabalho, e a

contínua presença do provisório no modo de ser e de pensar. Isso constituiu

a motivação de minha investigação sociológica.

Os rearranjos sociais poderiam ser vistos mediante os desencontros e

conflitos entre o que é desestruturante e o que é reorganizador. Nesse

sentido, vem a pergunta: “Como sustentar a lealdade e o compromisso em

instituições que estão em contínua desintegração e reorganização?”.

(Sennett, 2000: 10)

Presumia que a automação das fábricas e o processo de reestruturação,

que geraram historicamente a redução de cargos ou a readequação das

funções existentes, as fronteiras entre as situações de trabalho e de não-

trabalho, e as pressões por aumento de produtividade, vistos na indústria

entre a década de 80 e 903, poderiam provocar ajustes no comportamento

dos trabalhadores. Supunha que o conjunto de mudanças a que eles se

submetiam implicaria a reformulação de seus padrões de conduta.

Examinei em que medida, considerando um cenário de instabilidade

econômica e social, as referidas mudanças na esfera profissional, poderiam

alterar os padrões de comportamento das pessoas. Ao que me parece, as

relações sociais têm sido marcadas por vínculos momentâneos e pautadas

por interesses passageiros, conforme aborda Richard Sennet (2000) em sua

obra A Corrosão do Caráter. Nela são discutidos os efeitos do capitalismo,

competitivo ou flexível4, sobre o caráter do homem nas relações de trabalho.

Esse foi, em termos teóricos, o ponto de partida para o estudo em questão.

3 Para saber mais informações, consulte Castro, Cardoso e Caruso (1997); Cardoso (2000). 4 Segundo Sennett, “na atualidade, a expressão ‘capitalismo flexível’ descreve um sistema que é algo mais que uma variação sobre um velho tema. O acento se coloca na flexibilidade e se atacam as formas rígidas da burocracia e dos males da rotina cega. Aos trabalhadores pede-se um comportamento ágil; pede-se a eles também – com muito pouca antecedência – que estejam abertos à mudança, que assumam um risco atrás do outro, que dependam cada vez menos dos procedimentos formais.” [......] “o capitalismo flexível tem bloqueado o caminho reto da carreira, desviando os empregados, repentinamente, de um tipo de trabalho a outro. No inglês do século XIV, a palavra job (trabalho, emprego) designava um pedaço ou fragmento de algo que poderia encarrerar-se. Hoje, a flexibilidade devolve esse sentido desconhecido, pois ao longo de sua vida as pessoas fazem fragmentos de trabalho” (Sennett, 2000: 9)

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Interessava-me saber se a mudança de conduta devida às

transformações no mundo do trabalho era capaz de provocar uma crise de

identidade operária, expressa na dificuldade em ajustar velhos padrões de

orientação social à nova situação de emprego, cuja tônica se apresentava

como instabilidade, insegurança e provisoriedade. Presumia assim, que tal

conflito de identidade5, isto é, a crise que ocorria no modo de ser operário

poderia indicar a formação de novos arranjos sociais.

É importante destacar que o termo identidade guarda uma certa

ambivalência e deve ser entendido em termos da singularidade e da

identidade ou semelhança a um grupo social, tal qual nos mostra Dubar

(2000)6. Discutimos esse conceito, de modo mais acurado, ao longo do

texto, tendo em vista as relações de trabalho como um lugar de pertença

social.

Nesta pesquisa, a transformação das relações de trabalho é vista num

contexto marcado pela reorganização das relações institucionais e das

estruturas sociais (Touraine, 1999; Beck e Beck-Gernsheim, 2002).

Touraine usa o termo desmodernização para indicar que, do seu ponto

de vista, há um processo de dessocialização e de desinstitucionalização do

modo de vida dos sujeitos. “Chamo dessocialização ao desaparecimento dos

papéis, normas e valores sociais pelos quais se construía o mundo vivido. A

5 Com conflito de identidade, quero dizer da crise no modo de ser dos indivíduos, em função da perda de balizas sociais e da fragmentação da experiência vivida, tal qual nos mostra Touraine (1999). No âmbito do trabalho, isso pode ser visto na precarização das relações, que acarreta, entre outras coisas, a perda do sentido de classe dos trabalhadores. 6 Sobre o termo identidade, Dubar explicita: “identidade não é o que resta de idêntico, mas o resultado de uma ‘identificação’ contingente. É o resultado de uma dupla operação linguística: diferenciação e generalização. A primeira é a que visa a diferença, isso que faz a singularidade de qualquer coisa ou de qualquer um em relação a qualquer outro ou a qualquer coisa do outro: identidade é a diferença. A segunda é essa que busca definir o ponto comum a uma classe de elementos todos diferentes entre si: identidade é a pertença comum. As duas operações são a origem do paradoxo de identidade: e o que há de único é o que é partilhado. Esse paradoxo não pode ser considerado sem que se leve em conta o elemento comum às duas operações: a identificação de e para o outro. Nessa perspectiva não há identidade sem alteridade. As identidades, como as alteridades, variam historicamente e dependem de seu contexto de definição.” (Dubar, 2000: 3)

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dessocialização é a conseqüência direta da desinstitucionalização da

economia, da política e da religião” (Touraine, 1999: 53)7.

Com isso o autor quer dizer que, no mundo contemporâneo, há uma

cisão entre o sistema social e o mundo vivido pelas pessoas, que se expressa

na fragmentação da sociabilidade e na perda das identidades coletivas. A

esse processo Ulrich Beck refere-se como o da “descontinuidade das relações

institucionais” vistas na segunda modernidade8. Nesse estudo, suponho que,

em vez de uma ‘cisão’ entre mundo vivido e sistema social, as

transformações das relações de trabalho, no âmbito de trabalho, impliquem

uma reconfiguração das condutas.

Por se tratar de um estudo sobre processos sociais relativos a uma

situação de instabilidade, em que novas estruturas vão se formando, evitei

amarrar a investigação a conceitos. Utilizo o conceito de Sennet somente

como norteador da análise, para entender os novos arranjos sociais. Mas,

focada em sua experiência, analiso o comportamento do trabalhador,

7 Outros autores como Giddens já haviam se referido à questão da superação da modernidade. Diferente de Touraine, Giddens, não admite termos como desinstitucionalização. Segundo ele, para que se sustente a ideia de superação da modernidade não basta considerar a descontinuidade do tempo, a redução do espaço entre passado e futuro, a impossibilidade de nos situarmos em um tempo histórico definido. O ingresso numa nova era deveria implicar necessariamente que a trajetória do desenvolvimento social se fizesse no sentido de uma mudança das instituições da modernidade para um novo e diferente tipo de ordem social, algo que, do seu ponto de vista, não se verifica no plano concreto. Giddens entende as mudanças institucionais da atualidade e seus desdobramentos como a radicalização das conseqüências da modernidade. (Giddens, 1991). No caso estudado, suponho haver uma reconfiguração do tipo de relação no âmbito do trabalho. 8 Beck e Beck-Gernsheim (2002) usam o termo ‘segunda modernidade’ no mesmo sentido que empregam ‘modernidade tardia’. Ou seja, um processo de desenvolvimento das relações sociais em que, diferente do que se viu na fase inicial da modernidade, as instituições não são necessariamente capazes de produzir regras claras, que orientem o comportamento das pessoas. Pelo contrário, esse é um momento em que se assiste a um enfraquecimento de sua capacidade de regulação das ações e da conduta social. Tal contexto se combina à tendência de perda de identidade coletiva, ao mesmo tempo em que fortalece comportamentos individualistas. Não se quer com isso dizer que o funcionário de uma empresa deixe de cumprir as regras por ela estabelecidas, mas a forma de socialização dos padrões de conduta se ancora cada vez menos na identidade com o outro trabalhador, baseando-se mais no próprio indivíduo. No mercado de trabalho, é a disputa, aquisição, oferta e aplicação de uma diversidade de habilidades de trabalho, que tendem a moldar a conduta dos empregados. Nesse contexto, a individualização é a expressão de um modo particular de sociabilidade compartimentada, em que prevalecem sistemas não-lineares. Isso configura as condições que viabilizam mudanças contínuas nas relações de trabalho, sem o tempo necessário para a incorporação das mesmas, nas ações e condutas adotados pelas pessoas nesse âmbito.

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observando de que modo as mudanças em sua conduta se efetivam e como

se apresentam em seu cotidiano. Meu esforço foi identificar os elementos

estáveis que surgiram num processo que gera insegurança e instabilidades

nas relações como as mudanças no padrão tecnológico, o aumento do

desemprego a flexibilização das relações de trabalho, entre outros.

Supunha que, às mudanças implementadas no sistema de produção de

uma empresa, como, por exemplo, a automação, a informatização e a

substituição de sistemas tecnológicos obsoletos por outros avançados,

corresponderiam mudanças nas relações sociais de trabalho. De minha

perspectiva, isso exigiria dos empregados um novo ritmo de trabalho, formas

diferenciadas de lidar com o espaço, diferentes habilidades profissionais,

entre outros, no sentido de conformarem sua conduta às mudanças do

sistema de produção.

Analisei as relações de trabalho dos funcionários (efetivos e terceiros)

da Petroquímica União – empresa do ramo petroquímico – e a forma como

pensam e se comportam as pessoas que atuaram ali e foram dispensadas. A

maneira como cada uma das categorias interpreta suas condições de

trabalho e de vida é matéria dessa pesquisa.

Minha expectativa era descobrir se, nesse contexto de reconfiguração

das relações institucionais e de transformações na estrutura de produção da

empresa, houve mudanças no padrão de conduta dos trabalhadores, de

modo a configurar o que chamo de desestabilização do caráter. Nesse

sentido, indagava se a crise de identidade dos trabalhadores poderia

gerar desestabilização do caráter. Uma de minhas hipóteses era de que

as ações do operário da Petroquímica passariam a ter como orientação

valores em contínua mudança, em vez de se pautarem somente por regras

consolidadas por longo período na instituição (empresa), configurando um

modo de ser descontínuo, fragmentário9 ou a “sensação” de se estar sempre

em processo de mudança, ainda que isso não ocorra – o que produz

insegurança.

9 É importante salientar que essa configuração em que se percebe mudança contínua de valores não se dá somente no âmbito do trabalho, mas em diversos campos da vida das pessoas. No entanto, me limitarei a analisar somente o contexto do trabalho.

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Justifica-se a escolha por uma empresa desse ramo porque, juntamente

com o automobilístico, o setor petroquímico é um dos braços da indústria

que mais tem incorporado mudanças, tanto estruturais como no sistema de

produção10. O fato de ser uma empresa intensiva em capital e tecnologia faz

acelerar essas mudanças, que são condição sine qua non para as

transformações das relações sociais de trabalho.

Para discutir o processo de desestabilização do caráter, esta análise

fixou-se sobretudo nas mudanças efetuadas11: nas relações de trabalho e

nos processos de produção. O primeiro eixo de análise, o das relações de

trabalho, discute em que medida o aumento do processo de terceirização12,

resultante da flexibilização da regulação do trabalho e o desemprego, em

suas várias manifestações, têm marcado a subjetividade do trabalhador da

Petroquímica União e de que modo têm influenciado sua conduta no

trabalho. Supunha que a desregulação das relações de trabalho exigia uma

adaptação do trabalhador a relações instáveis a situações provisórias e que

denotem insegurança. Além disso, a incorporação de sistemas flexíveis

poderia reduzir as possibilidades de resistência desses trabalhadores às

mudanças (Guimarães, 2002a), alterando o modo como se sentem ao

assumirem papéis sociais no âmbito do trabalho.

Com relação ao segundo eixo, relativo aos processos de produção,

busquei perceber se as mudanças nos sistemas de produção – como os

avanços tecnológicos e a automatização, entre outros – contribuíram para

uma mudança de conduta dos trabalhadores.

10 Furtado mostra que “A indústria petroquímica representa um dos poucos setores industriais intensivos em capital e com perspectivas de crescimento elevadas em que a presença de empresas de capital nacional é predominante.” Sobre o perfil do setor, o autor também indica que as petroquímicas brasileiras, seguindo o modelo internacional, tanto geram quanto demandam grandes volumes de capital. Além disso, o setor petroquímico tem outra importante característica, qual seja, capacitação tecnológica, tanto própria quanto vinculada a terceiros. (Furtado, 2003: 59) 11 Os dois eixos influenciam-se de maneira dialética, e a sua separação é usada somente para efeito metodológico. 12 De acordo com Schutte, entre 1989 e 1999, o número de trabalhadores diretos no setor petroquímico no Brasil, caiu cerca de 52%, de 29.223 para 13.960. Apesar de considerar que houve terceirização de algumas áreas, mostra que é difícil computar o número total de trabalhadores terceiros em cargos antes ocupados por trabalhadores efetivos. (Schutte, 2003: 168-169)

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14

Com as entrevistas, pretendia identificar de que modo o desemprego,

as mudanças no sistema de produção e a modernização tecnológica

influenciam o modo de ser dos trabalhadores. Por meio da análise das falas

dos trabalhadores (efetivos e terceiros), procurei identificar seus sentimentos

e sua percepção sobre as mudanças as quais me referi, sobre a forma como

são vistos e como imaginam serem vistos, suas expectativas, sua percepção

sobre o trabalho e sua conduta.

Entrevistei trabalhadores – do quadro de funcionários efetivos e

terceirizados – que atuavam na Petroquímica União há pelo menos 15 anos e

pessoas que tiveram longa experiência na empresa, mas foram desligadas13

dela (desempregados do setor petroquímico)14. Meu objetivo era traçar

comparações entre os depoimentos dos que permanecem na empresa e os

que foram despedidos, com o objetivo de compreender de que modo o

desemprego, as mudanças no sistema de produção e nas relações de

trabalho alteram ou alteraram sua conduta, a conformação do seu caráter e

se algum elemento sinalizava a tendência à desestabilização do caráter.

Para cada uma das três situações: efetivos, terceiros na PQU e

desempregados, egressos daquela empresa, supunha que se a tendência à

desestabilização do caráter se confirmasse, ela se manifestaria de um modo

específico para as diferentes categorias. Considerava também que, em vez

de desestabilização, as referidas transformações poderiam gerar

comportamentos mais individualistas, resultando no aumento da

competitividade ou na tendência à criação de um ambiente do tipo “salve-se

quem puder”.

13 Neste trabalho, a ideia inicial era entrevistar desempregados da Petroquímica União. Contudo, entre os entrevistados que foram desligados, somente um permanecia na situação de inativo. Muitos tinham sido dispensados mediante acordo entre as partes, e, ao saírem, já dispunham de nova oportunidade profissional. 14 Para efeito de análise, trabalhar com essas três categorias permitiu fazer comparações em dois sentidos: entre os entrevistados classificados na mesma categoria – por exemplo, desempregados comparados entre si – e entre as diferentes categorias como os ativos e não-ativos. Desse modo, os relatos dos entrevistados, de cada uma das categorias, servem como contraponto para o refinamento da análise. Para entender melhor, veja a metodologia do trabalho.

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Capitulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

Capítulo I - Pressupostos para o trabalho de campo

A Petroquímica União

A Petroquímica União, primeira central de petroquímicos básicos do

Brasil, foi constituída em 1966, com o nome de Petroquímica União LTDA,

como parte do projeto de implantação do maior complexo petroquímico da

América Latina. Surgiu como resultado do acordo entre a Petróleo União S.

A., em Capuava, Santo André (hoje RECAP Petrobrás) e a americana Philips

Petroleum. (2004: www.pqu.com.br). Em 1972, tornou-se a central

produtora de matérias-primas do pólo petroquímico de São Paulo, com a

denominação de Petroquímica União S. A. Com isso, constituiu-se como a

primeira empresa produtora de matérias-primas petroquímicas no Brasil.

(Rizek, 1994)

Segundo Rizek, a Petroquímica União foi constituída a partir de uma

base técnica internacionalmente consolidada, conhecida como “eletrônica

analógica”. Desde a década de 1960 até meados de 1980, impunha-se à

empresa, como um imperativo, a necessidade de modernização do sistema,

própria do setor petroquímico. No entanto, as tentativas de modernização

desse modelo tecnológico esbarraram no fato de a empresa ser de controle

estatal. A substituição do princípio analógico pelo de sistemas digitais de

controle distribuído foi feita parcialmente, a partir de meados de 80. Após a

explosão da fábrica, em 1992, a empresa passou por processo de

reestruturação e foi privatizada, em 1994.

Segundo Rizek (1994), o uso de tecnologia de ponta na indústria

petroquímica não se justifica pela necessidade de aumentar a produtividade,

mas para dar conta de certas propriedades dos valores de uso produzidos.

Estes são obtidos em condições de temperatura e pressão específicas, que

inviabilizam o contato direto da mão-de-obra.

Nos últimos anos, a indústria brasileira sofreu uma redução do volume

de emprego (Guimarães, 2002b). No setor petroquímico, essa redução

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

16

deveu-se, fundamentalmente, à reestruturação produtiva e à terceirização da

mão-de-obra (Rizek, 1994; Guimarães, 2002b e Furtado, 2003).

Para entender de que modo os trabalhadores percebem essas

mudanças e como se sentem afetados por elas, realizei entrevistas prévias

com dirigentes sindicais e com funcionários da Petroquímica União. Com isso,

visava também saber se minhas premissas iniciais e questionamentos sobre

a realidade de trabalho da referida empresa eram coerentes. As primeiras

entrevistas foram importantes para eu elaborar questões sobre o problema

do desemprego na Petroquímica União.

Conforme Guimarães (1998, 2002b) destacou, havia indícios de

mudança do cenário de estabilidade desse setor, desde fins dos 80 e meados

de 90. Rizek indica que essa tendência se evidencia nos 5 primeiros anos de

1990.

O diretor do sindicato dos químicos (funcionário da Petroquímica

União, que se dedica exclusivamente às atividades sindicais) informou que,

atualmente, a flexibilização das relações de trabalho (mediante terceirização)

e a redução dos quadros funcionais, na empresa, via automação, são os

principais problemas ligados à questão do desemprego.

Para os trabalhadores petroquímicos, são perceptíveis os resultados e

implicações dos processos de reestruturação produtiva, para os quais

Guimarães(1998, 2002b) e Furtado (2003) chamam a atenção. De acordo

com Heli Alves, diretor do Sindicato dos Químicos e Petroquímicos do Grande

ABC, nos últimos 20 anos, o setor petroquímico reduziu consideravelmente

seu quadro de pessoal. O sindicalista esclarece:

“Em 1989, o levantamento para a desestatização indicava que a

Petroquímica União possuía 1.200 trabalhadores diretos e 200 terceirizados.

Hoje contamos com cerca de 550 trabalhadores diretos e 600 terceirizados.

É possível constatar que houve uma diminuição dos postos de trabalho,

principalmente no setor produtivo, devido principalmente às melhorias nos

sistemas de controle. Mas, além disso, a quase totalidade dos trabalhadores

da área de manutenção e todos os da área de segurança e refeitório, foram

terceirizados.”

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

17

Alves indica que os processos de reestruturação produtiva e de fusões e

aquisições vem trazendo conseqüências para o setor como um todo.

Segundo ele, “Está em moda a integração das gerações da cadeia

termoplástico. Um dos objetivos do setor é redefinir a produção, integrando-

a desde o refino até a fabricação de polímeros. Para tanto, é necessária a

troca de ativos e aquisições de controles acionários. A Braskem (Odebrecht)

é a primeira a executar uma operação do gênero e os demais grupos

seguem o mesmo caminho. Portanto, é possível vislumbrar o desemprego

que tal tendência irá gerar.”

Nesse sentido, percebi que valia a pena investigar se os processos de

mudança de todo o sistema de produção e de organização do trabalho na

Petroquímica União induzem à expectativa de desemprego por parte dos

trabalhadores.

Segundo depoimentos de trabalhadores da Petroquímica União, “o

desemprego não apenas é uma ‘ameaça’ a sua situação social, como é um

instrumento de dominação.” Da perspectiva dos operários da Petroquímica

paulista, a ameaça do desemprego num setor fortemente concentrador (de

estrutura oligopolista, com número pequeno de firmas em atividade), no qual

as possibilidades de um trabalhador transitar entre firmas do setor são

pequenas, chega a ser “assustadora”.

Para uma parte do pessoal, nas petroquímicas, as relações de trabalho

seguem o padrão clássico de regulação e os salários ainda são altos, se

comparados à média nacional. Isso gera a divisão entre os assalariados bem

remunerados – regidos por relações estáveis – e os mal remunerados,

regidos por relações flexíveis. O capital cria diferenciações internas “entre

bons e maus empregos” (Guimarães, 2002a: 105) e desigualdades, mesmo

entre os “iguais”.

A lógica de concentração do capital leva à ampliação das chances de

flexibilização das relações, o que provoca um clima de insegurança na

empresa. Nesse sentido, conforme depoimento de um trabalhador da

Petroquímica União, o “desemprego passa a ser um fantasma na vida dos

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

18

trabalhadores”, e a fazer parte de sua realidade concreta, uma vez que está

presente em seu cotidiano.

No contexto de flexibilização das relações de trabalho, de minha

perspectiva, o estudo do comportamento dos trabalhadores se afigurou

matéria rica de investigação sociológica. Que desafios se impõem em função

da reestruturação do sistema de produção? As novas tecnologias

implementadas impõem ou impuseram uma mudança na forma desses

trabalhadores lidarem com o espaço e o tempo no trabalho?

A nova dinâmica da produção impõe a coexistência de formas de

trabalho regulado e flexível; provoca a extinção de setores da produção e a

automação de algumas áreas; propõe ao trabalhador novas formas de

atuação.

Em função desse processo, questiono-me se faz sentido pensar que o

tipo de mudança imposta ao modo de os trabalhadores desempenharem

papéis sociais possa produzir padrões de conduta desprovidos de

regularidade, fazendo com que ajam de acordo com interesses

momentâneos e alianças provisórias – configurando o que entendo por

desestabilização do caráter.

Cabe compreender se, de fato, os atores se pautam por regras e

valores que variam continuamente e, em que termos é possível a

rearticulação entre esses trabalhadores e a experiência social, num contexto

em que a categoria e a pertença à classe operária parecem perder força.

Nesse sentido, a permanência e a provisoriedade são critérios importantes

para avaliar a adaptação às regras ou novas normas estabelecidas. Por

exemplo, permanecer na empresa por longo período é uma qualidade – dado

que pressupõe envolvimento e compromisso com a corporação – ou um

problema do trabalhador, no sentido de que pode ser indicativo de

passividade, falta e iniciativa ou resistência a mudanças? Ser propenso a

mudanças é bom ou ruim?

Considerando que a queda na posição de status de uma pessoa – vista

na situação do desempregado ou do trabalhador terceirizado – determina

uma mudança da imagem que ela tem sobre si mesma, e,

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

19

conseqüentemente, na que os outros têm sobre ela, questiono o que a piora

da posição institucional – quando o empregado passa do trabalho regulado

para o terceirizado – acarreta à sua estrutura de caráter?

De que modo a perda de status e a falta de perspectiva de recuperá-lo,

por parte daqueles que se tornaram terceirizados, influenciam o seu

autoconceito15? Como os funcionários que permanecem na empresa, com

relações de trabalho protegidas, vêem essas mudanças de papéis de seus

cômpares? Sentem-se afetados ou ameaçados pelas instabilidades e

transformações do mercado? De que modo isso influencia a forma de os

trabalhadores se relacionarem entre eles, nesse momento em que o

“universo da economia, dos mercados e das técnicas separa-se do das

identidades coletivas e individuais” (Touraine, 1999: 65)?

É possível que se constitua um eixo comum, a partir dos fragmentos da

vida dos operários, que ajude a compreender esse processo como o da

experiência dos trabalhadores, vistos enquanto classe social?

Cabe descobrir se o operário da Petroquímica União se percebe como

um ator social fundamental na transformação da instituição em que trabalha;

se ele ainda se sente pertencente a classe de trabalhadores ou isolado na

responsabilização por seu destino profissional – um solitário cuja vida se

torna um peso a ser carregado o uma pessoa com autonomia para cuidar da

vida profissional individualmente? Busco descobrir os valores que orientam a

conduta dos trabalhadores, se existe uma ética que pauta seu

comportamento parcelar, seu modo de ser.

15 Por autoconceito entendo, conforme Gerth e Mills, a noção que uma pessoa tem de si mesma.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

20

Os desempregados da indústria petroquímica em São Paulo

Saltam aos olhos o modo e o ritmo com que a indústria brasileira

mudou, a partir dos anos 1990.

Adalberto Cardoso (2000) identifica uma mudança estrutural no

mercado de trabalho da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), nas

décadas de 80 e 90. Para ele, o avanço do desemprego na região

metropolitana de São Paulo estava associado à escassez de emprego na

indústria. Embora seu trabalho focalize os deserdados da indústria

automobilística, algumas de suas considerações podem ser aproveitadas para

outros setores da indústria, como o petroquímico. Entre 1989 e 1995, uma

parte dos trabalhadores liberados da indústria encontrava dificuldades para

empregar-se em qualquer outro setor de atividade (2000: 67).

A mudança no sistema de produção da indústria trouxe conseqüências

para o emprego naquele setor. Nadya Guimarães afirma que “o volume do

emprego industrial caiu, ao longo da década de 90, não importando o

momento do ciclo” (2002b: 208). Especificamente sobre a cadeia

petroquímica, ela explicita:

Incrementou-se de modo significativo, nos anos 90, a

terceirização de serviços operacionais, basicamente no

apoio à produção, em tarefas de manutenção corretiva (e

não apenas nas “paradas” de manutenção, como também já

era de hábito). Nesse caso, os postos de trabalho se

mantinham, o número de trabalhadores por posto por vezes

também, mas rompia-se a relação funcional, introduzindo-

se uma nova forma de contratação, a de serviços

externalizados, que permitia redução de gastos com

pessoal. (1998: 99)

A queda do número de postos na indústria em geral e a reestruturação

na produção no setor petroquímico impuseram alterações na composição do

emprego nesse setor. Entre as décadas de 80 e 90, os trabalhadores

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

21

petroquímicos gozavam de relativa estabilidade, se comparados aos da

indústria automobilística, também intensiva em capital. (Rizek, 1994: 24).

A partir da década de 90, esse quadro sofreu mudanças. A

terceirização, destacada por Guimarães (1998), era indicativa da piora nas

condições de trabalho e de vida dos profissionais daquela indústria. Mas,

além disso, a reestruturação na produção provocou a extinção de

determinadas áreas ocupacionais, implicando a “degradação do capital de

qualificação acumulado”, ou a “experiência subjetiva da redundância”

(Guimarães, 2002b).

É possível que tal desestruturação das relações tenha produzido forças

desestabilizadoras do caráter dos trabalhadores. Estarem submetidos à

precarização progressiva de relações contratuais trabalhistas, sob ameaça de

desemprego, ou mesmo sofrendo lenta piora das condições de vida,

configura o que se denomina ameaça à integridade do trabalhador, torna

vulneráveis os laços de confiança.

No caso das petroquímicas, a exigência de fidelidade do trabalhador

para com a corporação na qual ingressa torna ainda mais delicada a questão

do desemprego no setor. Isso porque, caso uma pessoa saia de determinada

empresa petroquímica, dificilmente será aceita em outra do ramo, dado o

“fator fidelidade / exclusividade”. Se já tiver consolidado uma carreira na

empresa o quadro se agrava. Isso coloca em risco o capital profissional

acumulado pelo trabalhador, que pode enfrentar resistências para ser

aproveitado em outro lugar, e favorece o fenômeno da redundância.

Em quase todas as entrevistas, os respondentes comentaram essa

característica de “especialização” do trabalho petroquímico, que torna muito

difícil a mudança para outra empresa do ramo e é um agravante para as

pessoas que temem o desemprego.

Além de levar em conta as especificidades do setor petroquímico,

acredito que a tensão pela expectativa do desemprego tenha um outro

agravante: o histórico em que o mercado de trabalho brasileiro se

estruturou. Conforme Guimarães,

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

22

Em países como o Brasil, a questão do desemprego se

coloca de maneira particularmente crítica. Ora, nesse

tipo de contexto, nem a estruturação do mercado de

trabalho generalizou a relação salarial estável como a

forma dominante de uso do trabalho, nem a produção

em massa se sustentou num movimento de extensão da

cidadania e proteção social na forma de um Welfare

público, socialmente eficaz na proteção do trabalho.

(2002a, 111)

Desde a década de 1960, quando foram fundadas as primeiras

empresas, até 1980, o setor petroquímico foi uma exceção no precário

mercado de trabalho brasileiro, uma vez que, historicamente, se serviu de

uma política de estabilização da força de trabalho, ancorada em salários

elevados e benefícios extra-salariais, que se distingue significativamente da

média brasileira.

No entanto, a dificuldade de manutenção do emprego e de sua

qualidade, vista entre as décadas de 1980 e 1990, ampliou-se até os anos

2000. Os crescentes ganhos de produtividade, propiciados pela intensiva

reestruturação produtiva entre 1990 e 2000, vêm refreando a manutenção

da empregabilidade no setor. Segundo João Furtado,

os avanços da produtividade petroquímica brasileira

nestes últimos dez anos são notáveis, às vezes próximos

do espetacular. Os dados do Ministério do Trabalho

(RAIS) indicam uma redução acentuada do emprego. As

empresas, por seu lado, estimam também esses avanços

numa proporção impressionante: aumentos de produção

física da ordem de 50%, com redução do emprego total

de 50%, o que resulta numa multiplicação dos

indicadores de produtividade do trabalho por um fator 3.

(2003: 65)

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

23

Tendo em vista a realidade de não generalização da relação salarial

estável, no mercado de trabalho brasileiro e considerando as características

de empregabilidade do setor que me propus a estudar, em que se percebe:

média salarial alta – em comparação com outros segmentos da produção – e

piora das condições de trabalho, dada a tendência à terceirização de algumas

áreas, empenhei-me a tarefa de analisar de que modo as estratégias de

racionalização da produção, de redução dos custos e de “enxugamento” da

mão-de-obra (vistos, sobretudo, da década de 90 em diante) afetaram e vêm

afetando a situação de trabalho e de vida dos trabalhadores bem como seus

padrões de conduta na empresa.

Realizei análise das falas dos empregados efetivos e dos terceiros da

PQU, e dos desempregados do setor16, com o objetivo de perceber se, no

exercício de suas funções, as pessoas perdem os vínculos de confiança

consolidados ao longo de sua carreira, configurando o que se denomina de

desestabilização do caráter. Suponho que a vulnerabilização dos acordos e

alianças feitos na esfera do trabalho, tal qual mostra Beck (2002), impõe um

sentido de provisoriedade às relações sociais.

No caso estudado, aparentemente, os principais problemas

relacionados com o desemprego do setor petroquímico são: a perda de

status e a piora das condições de vida, devido à terceirização e à

redundância – presentes no setor, claramente desde a década de 90 do

século passado – e não o desemprego de longa duração. A automação de

áreas de produção e a mudança das técnicas de produção têm gerado, em

muitos casos, a redução e o empobrecimento de tarefas e funções na

fábrica. Em outros casos, a simplificação de tarefas resulta no aumento da

complexidade do raciocínio exigido para a compreensão dos processos

envolvidos – o que requer atualização dos conhecimentos do funcionário.

Mesmo assim, é possível pensar que, de modo geral, as pessoas são

afetadas pelo medo da perda, um ‘fantasma’ em sua realidade, o ‘fantasma

do desemprego’ e da precarização das condições de trabalho e de vida, uma

16 Com o objetivo de preservar a privacidade dos entrevistados, os nomes citados nessa dissertação são fictícios.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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vez que essas situações se ampliaram e se configuram como uma tendência

no mercado de trabalho brasileiro, em geral. No setor petroquímico, embora

tenha havido um relativo desgaste nas condições de vida dos trabalhadores

que ali atuam, – se compararmos os salários e benefícios praticados na

década de 80 com os do momento atual – há expectativas de expansão da

cadeia petroquímica17.

Se o status social dos indivíduos depende primeiramente de sua

participação nos sistemas econômicos de produção, uma pessoa

desempregada tende a conviver com o sentimento de falha e incapacidade

por sua condição em relação ao emprego. De acordo com Ledrut, o

desempregado pode sentir-se humilhado, sem necessariamente vivenciar

uma situação real de humilhação e inferioridade pessoal (1966). Isso porque

a perda do emprego – que se reflete em sua situação econômica e social –

se transforma na perda do status social e se enquadra entre as

representações que se relacionam à ideia de derrota.

Durante a pesquisa, o fato de alguns funcionários terceirizados serem

aposentados da petroquímica fez-me pensar também na condição dessa

categoria. É preciso considerar que sua situação é bastante diferente da de

uma pessoa desempregada, uma vez que ele dispõe de renda. No entanto,

pelo que pude observar, é difícil saber o momento ideal para se aposentar. A

pesquisa mostrou que esse processo mexe com a estrutura emocional e

altera comportamento, mesmo dos que se consideram prontos para

passaram por tal experiência. Isso foi visto nos relatos de pessoas que

vivenciaram a situação de aposentadoria18.

De maneira geral, o que se exige do trabalhador é que oriente sua vida

profissional com base em valores destoantes entre si: o da atividade, da

produção, da criação e o da ausência dela. Como se tivesse de viver

mergulhado em dois mundos que nada têm a ver um com o outro, mas que

17 Durante as entrevistas, alguns respondentes indicaram otimismo em relação ao setor petroquímico, uma vez que tanto a Petroquímica como outras empresas do setor estão em processo de expansão de sua planta e das atividades. 18 Veja a entrevista de Chico, que atua como terceirizado na Petroquímica União, mas viveu por um tempo somente como aposentado. Mesmo nessa condição, a ausência do emprego pode ser encarada como derrota e humilhação perante a família e outros núcleos sociais.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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atravessam sua existência. Ele é treinado e capacitado para ser competitivo,

para superar limitações e desafios, para receber troféus, ultrapassar metas,

crescer continuamente. O mundo do desemprego, das perdas, das

limitações, da precariedade, e das pessoas aposentadas, portanto, não tem a

ver com esse outro; está em confronto, mas estranhamente contido nele. O

contato com os problemas desses trabalhadores faz-me pensar no conflito

entre essas realidades citadas enquanto uma força desorganizadora do modo

de fazer e de pensar do operário, podendo produzir o efeito do

desenraizamento.

A reinvenção das relações de trabalho A crescente flexibilização e a reorganização da vida no trabalho, vista

nos processos de reestruturação produtiva, coadunam-se com a progressiva

individualização da sociedade. Beck (1992) considera que a distribuição do

desemprego temporário coincide com o número crescente de pessoas

desempregadas há muito tempo e com formas híbridas entre emprego e

desemprego. Além disso, a intensificação e a individualização da

desigualdade social são resultantes, entre outras coisas, do processo de

precarização que se encadeia na situação de trabalho. Os problemas do

sistema são deslocados do âmbito político, passando a ser vistos como

“fracassos individuais”.

Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim sustentam que, na

modernidade tardia19, a individualização é “um produto do mercado de

19 Conforme dito no começo desse trabalho, Beck e Beck-Gernsheim usam o termo ‘modernidade tardia’ no mesmo sentido que empregam ‘segunda modernidade’. Trata-se de um processo de desenvolvimento das relações sociais que difere do visto na fase inicial da modernidade. Os autores apontam, como principal característica das instituições, a falta de definição de regras claras que, pautadas em valores coletivos, orientem o comportamento das pessoas. Ou seja, tais instituições teriam perdido ou tenderiam a perder sua capacidade de regulação das ações coletivas e da conduta social. Nesse contexto, a individualização é a expressão de um modo particular de sociabilidade compartimentada, em que prevalecem sistemas não-lineares, aos quais já nos referimos anteriormente. Isso configura as condições para que sejam impostas mudanças contínuas nas relações de trabalho, nas ações e condutas adotados pelas pessoas nesse âmbito. A discussão desenvolvida por Beck e Beck-Gernsheim constitui um retorno ao debate acerca do antagonismo entre ‘coletivismo’, de um lado, e individualização, de outro, vistos nos estudos de Thompson sobre a classe operária do século XIX. Thompson

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

26

trabalho e se manifesta na aquisição, oferta e aplicação de uma diversidade

de habilidades de trabalho”, obtidas por meio de educação, mobilidade e

competição. (Beck e Beck-Gernsheim, 2002: 32). Argumentam que a

categoria trabalho é fundamental para o processo de individualização, mas já

não sustenta o significado de classe. Assim, esclarecem, “tanto a firma como

o lugar do trabalho perdem significação no conflito e na formação de

identidade”; perdem sentido como espaço de um coletivo, uma vez que este

se dissolveu (2002: 36).

As mudanças em torno do universo de trabalho podem ser vistas no

plano material, ou concreto, onde se inclui a precarização das condições de

vida – resultante da flexibilização das relações de produção – e a revolução

tecnológica, que implica mudanças nas relações sociais, principalmente no

que respeita à relação do empregado com o tempo e com o espaço de

trabalho.

Mas, além disso, há uma nova configuração no plano das

representações. Isso porque a presença do desemprego na vida das pessoas

vem se tornando mais duradoura e constante, o que aviva o sentimento de

perda e gera tensão contínua na vida do proletário.

A expansão generalizada do desemprego provoca deformações no

mundo do trabalho. O aumento do contingente de pessoas desempregadas

faz pensar na possibilidade do desenvolvimento de um outro tipo de

sociabilidade, não mais entre os trabalhadores, mas entre os

desempregados. Nesse contexto, a identidade se constituiria pelo

desenvolvimento do não-trabalho, isto é, em termos da ausência do fazer

operário, em função do desemprego. Mas, pensar a pertença coletiva

somente em termos das perdas e frustrações expõe-nos ao risco de olhar os

trabalhadores apenas como vítimas do processo e resvalar para posições

pouco realistas, distanciando-nos de acepções universalistas. Conforme nos

diz Touraine,

mostra o individualismo como um valor característico da classe média, enquanto o coletivismo se pauta em valores comuns. Já Beck e Beck-Gernsheim pensam a individualização como a experiência comum possível entre os trabalhadores do final do século XX e início do XXI.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

27

Assim como uma classe operária definida somente como

proletariado, e não como conjunto dos trabalhadores

assalariados manuais, definida, portanto, por aquilo de que

está privada e não por sua contribuição positiva, só pode

servir de recurso social para um poder autoritário, assim a

identidade comunitária, se ela é definida somente pela

discriminação sofrida, só é ativada por dirigentes

autoritários que a mobilizam ao seu serviço. (1999: 46)

Nas entrevistas realizadas, a tensão por causa do desemprego tornou-

se evidente. Apesar disso, embora os respondentes tenham expressado sua

angústia com relação à ameaça do desemprego, há um esforço no sentido

de pensar em soluções para o problema. Um aspecto curioso é que, em

muitos casos, o próprio trabalhador enxerga a perda do emprego como um

problema pessoal, decorrente de falhas em sua conduta na empresa.

Conforme nos indica o depoimento de “Cadu”: “ É preciso estar sempre

atento. Por isso que eu acho que sempre tem que procurar tá atualizado,

fazer curso, estudar, tá atento às mudanças de mercado. Sempre tiveram

vantagem aquelas pessoas que se saíam melhor, as pessoas que procuravam

tá atualizadas. Mas, hoje a necessidade de atualização é ainda maior.”

De acordo com Dubar, na França, o aumento do desemprego provocou,

entre outras coisas, uma mudança na responsabilização pelas competências.

Cada pessoa deve cuidar da própria sorte, de seu destino profissional. Ao

mesmo tempo em que a situação de trabalho de cada um tende a ser

interpretada como o resultado de sua atuação na luta por um emprego.

Segundo o autor, ”a nova noção que se expande é a de empregabilidade20.

Ela implica uma mudança maior uma vez que a empresa não é mais

coletivamente responsável pelas competências dos trabalhadores, mas cada

20 Em Por uma Sociologia do Desemprego, Nadya Guimarães sublinha que, no Brasil, só muito recentemente a noção de empregabilidade foi tomada como central no discurso que informa as políticas sociais. No contexto internacional, pelo contrário, já vinha sendo utilizada pelas agências responsáveis pelas políticas públicas focadas no emprego e na diminuição do desemprego. (Guimarães, 2002a)

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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trabalhador torna-se responsável pela aquisição e manutenção de suas

próprias competências”21. (Dubar, 2000: 112)

Nesse processo de individualização das perdas a competição do

mercado tem um papel determinante. Conforme Beck e Beck-Gernsheim

asseveram, ela causa o “isolamento dos indivíduos dentro de grupos sociais

homogêneos”, trocando em miúdos, torna pusilânimes valores coletivos –

formados a partir de uma experiência comum. Ou mesmo, altera a formação

de identidades coletivas nos moldes que se tinha antes. O operário

contemporâneo é altamente diferenciado, vivencia realidades sociais

diversas, porque está enredado num conjunto de situações complexas e

variadas. Nesse sentido,

A construção das identificações pessoais, subjetivas, plurais,

não significa a ausência ou a abolição de todo coletivo, mas

a construção de um outro tipo de coletivo, diferente do

precedente, mais “societário”, quer dizer ao mesmo tempo

livremente escolhido e voluntariamente regulado. (Dubar,

2000: 217)

Outra decorrência desse processo é a preponderância da identidade

pessoal em relação às demais formas identitárias. Ela tende a se consolidar

como a forma de os indivíduos se conceberem, num processo social

específico, em que o “para si” é preponderante sobre o “para o outro”,

configurando a formação do próprio sujeito. Ou seja, o foco da ação é o

21O autor explicita que “Saber, saber-fazer, e saber-estar tornaram-se os três pilares da competência, rapidamente ligados pelas qualidades a exigir e/ou desenvolver em todos os trabalhadores: iniciativa, responsabilidade e trabalho em equipe”. (Dubar, 2000: 111). Destaque-se que o termo ‘responsabilização das competências’ faz parte do jargão utilizado pelas empresas e parece adequado à ideologia de que a pessoa (empregada ou não) é responsável por sua situação social e sua condição de vida. Beck (2002) mostra que o acirramento da individualização resulta, entre outras coisas, na expectativa de que cada pessoa seja responsável por sua biografia, seu destino profissional. Essa ideia se ancora na legitimação da liberdade como um importante valor em nossa sociedade. No entanto, ainda que a autonomia seja considerada um bem na sociedade contemporânea, a valorização dela obscurece um fato concreto que é a desigualdade de oportunidades e condições no mercado. É nesse sentido que Beck sustenta que uma das faces da individualização é a das ‘liberdades precárias’.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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próprio indivíduo, com um modo de ser, pensar e fazer específicos, o que, no

plano social, resulta numa pluralidade de sujeitos. Sobre isso, Dubar explica,

Pode-se chamar de sujeito esse tipo de identidade pessoal

que não é outra coisa senão uma configuração de formas

identitárias construídas, por e num processo específico de

socialização que assegure em geral essa dupla

proeminência do “societário” sobre o “comunitário” e do

“para si” sobre o “para o outro. (2000: 175).

Esse arcabouço teórico permite repensar as relações de trabalho,

considerando o processo de individualização e a perda da importância da

experiência comum do viver operário como elementos chaves na constituição

do novo caráter do trabalhador. É possível pensar essas pertenças coletivas

como um mosaico, uma vez que as relações sociais são descontínuas,

regidas por valores que mudam continuamente e não por regras constituídas

a longo prazo.

Além disso, o fato de que é o emprego que dá valor social aos

indivíduos abre espaço para questionar como fica a situação dos que passam

pela experiência do desemprego e legitima o esforço de identificar como se

dá a construção do discurso sobre tal vivência. Que lugar ocupa o “não

fazer” operário na vida das pessoas que dependem de salário para viver?

Qual o espaço de representação social do desemprego?

As entrevistas com os terceiros22 introduziram um elemento com o

qual não contava na pesquisa. A situação das pessoas que ficaram

aposentadas por um período de tempo, suspensas de sua atividade de

trabalho. No depoimento de “Chico”, ficou evidente que, mesmo tendo

condições de manter seu padrão de vida com o que recebia pela condição de

aposentado, ele sentia certa frustração por ficar na situação de ‘ não-ativo’.

22 Trata-se de trabalhadores contratados de uma outra empresa, para atuarem na Petroquímica, organização que nos propomos a estudar. Eles são diferentes dos efetivos, que gozam de relação salarial estável, em regime CLT.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

30

Claramente ele sentiu a perda do status, quando assumiu a condição de

quem deixara de trabalhar:

O que aconteceu? Eu fui me enfiando dentro dessa casa, fui me

desanimando, já não ia mais nos lugares com ela (refere-se à esposa):

banco, shopping, até isso eu deixei de fazer com ela! Porque você passa a se

sentir meio ocioso, meio “vagabundo”, porque eu trabalhei a vida inteira, e

me sentia jovem. Deixei de freqüentar o clube, ao mesmo tempo eu me

sentia até envergonhado de tá na rua.”

Claus Offe (1995) fala de uma subjetividade perdida pelo trabalhador,

no que concerne ao sentimento de identidade, ou pertença de classe,

enquanto classe social ou trabalhadora. Essa situação seria decorrente do

processo de individualização, dos problemas, interesses, desejos e satisfação

dos sujeitos e, em última instância, do esvaziamento do sentido social do

trabalho, em um mundo extremamente individualizado.

Na visão de Beck (1992), com a complexificação da sociedade, que se

expressa na pluralização das formas de vida, os modelos de estratificação e

diferenciação de classe já não podem explicar as múltiplas variações do

tecido social que constitui as relações de trabalho. Do seu ponto de vista, a

cultura das classes sociais não é capaz de explicar situações híbridas entre

emprego e desemprego; o que ocorre, então, é que os problemas

relacionados à questão do emprego tendem a ser entendidos como

problemas individuais. Com isso, torna-se difícil a articulação entre

trabalhadores, em torno de interesses e problemas comuns do mundo do

trabalho.

Para os que permanecem trabalhando, manter-se no mercado de

trabalho parece tarefa cada vez mais árdua. As exigências feitas são

progressivamente mais intensas, não apenas no sentido de que os

trabalhadores devam ser produtivos, eficientes, ter boa formação, ser

criativos e superar as expectativas dos seus superiores, quanto ao

desempenho. Conforme explicita um dos entrevistados:

Não adianta uma pessoa recém formada correr atrás de emprego, se

a maioria das empresas pedem dois anos de experiência. Onde que a pessoa

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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recém formada, um universitário por exemplo, recém formado pronto pra um

trabalho né! Ele tem dois anos de experiência, nunca! Entende? Então por

isso, então a maioria das pessoas se acomodaram, estudam e procuram

fazer outra. Muitos se formam até e vão fazer outras coisas que está mais à

mão, fora daquela área de formado. (...) Por isso que eu digo aquela corrida

ao mercado de trabalho está bem devagar.” (...) “ Tem, tem a procura tem

muita tá? mas onde que...// É o que eu falei, onde que vai achar uma

pessoa, um profissional recém formado com 2, 3 anos de experiência? Tem

muitas empresas que pedem 5 anos de experiência.”

O excesso de exigências feitas aos que passam pela seletividade do

mercado produz uma espécie de colonização da existência das pessoas. Suas

vidas estão pautadas pelo trabalho, até porque o tempo envolvido nessa

atividade – não obstante todo o desenvolvimento tecnológico no sentido da

redução da jornada – se tem alargado.

Na linha de autores como Bila Sorj (2000) e Suzana Evelyn (1998),

supomos que o trabalho continue a ser um dos aspectos determinantes das

condições de vida das pessoas. Há um eixo comum que une todos os

trabalhadores, em geral, que é o fato de as pessoas partilharem dos mesmos

nexos, de viverem sob a mesma ótica de um tipo de capitalismo

desorganizador. A unidade comum do trabalho social concerne à

racionalidade dominante de um capitalismo sem freios.

De fato, pode-se dizer que se ampliou a importância do trabalho na

vida das pessoas, talvez na proporção inversa da evolução da oferta no

mercado de trabalho. A redução dos postos de trabalho no mundo fez

engrossar as filas dos desempregados, aumentando o valor relativo do

trabalho, por haver mais oferta do que procura por mão-de-obra.

A queda do número de empregos, associada à tendência à flexibilização

das relações de trabalho, diminui as chances de os trabalhadores

assalariados (regidos por relações estáveis e protegidas de trabalho)

resistirem às mudanças (Guimarães, 2002a: 105). A desregulação das

relações tem reforçado a precarização da situação de trabalho e gerado

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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formas diferenciadas de desemprego. A escassez de trabalho também faz

aumentar seu valor simbólico, tanto para os que estão empregados quanto

para os que buscam um novo posto, e a questão do trabalho ou a falta dele

ganha ainda mais importância, tornando-se pauta de discussão nos diversos

ambientes sociais.

Desemprego (s) e precarização das relações

Emprego e desemprego estão ligados dialeticamente. No sentido

sociológico, desemprego é o lugar de um indivíduo dentro de uma situação

social típica. Essa situação é própria de uma certa condição econômica e

social que é a do trabalhador assalariado. “Desempregado é o sujeito

impedido de trabalhar por certas condições sociais que superam outras

condições que lhe permitiriam ocupar um emprego” (Ledrut, 1966: 2). Essa é

a dialética social do desemprego, apontada por Ledrut, que tipifica a

condição do indivíduo desempregado, isto é, privado de emprego. Para

grande parte dos sociólogos atuais, o desemprego é resultante do modo de

configuração do emprego no mundo (Ledrut, 1966; Demazière, 1995a).

A multiplicação das formas de desemprego faz variar não apenas a

situação social das pessoas que necessitam de trabalho assalariado para

viver, mas a forma como vêem as situações de emprego e desemprego, nos

contextos nacional e internacional. Assim, poderíamos considerar

“desempregos plurais”, dada a diferenciação da forma como o fenômeno se

manifesta. Isso altera o modo como as pessoas se vêem e como são vistas

no trabalho; o significado do seu papel também sofre alteração, o que

necessariamente é indicativo de modificação de sua conduta social.

Em Sociologie du Chômage, Demazière (1995) aborda a questão do

desemprego, na França, pensando-o como um elemento que se coloca na

fronteira entre atividade, inatividade, subemprego, pauperização e emprego.

Situações de inatividade e desocupação qualificam, mas não revelam,

as especificidades e singularidades do desemprego, que pode ser, por

exemplo, de tipo estrutural, de curta duração (menos de um ano de

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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desemprego), de longa duração (mais de um ano de desemprego), e

desemprego por desalento (correspondente à situação do desempregado

que, por perdurar como desempregado de longa duração por muito tempo,

desistiu de procurar emprego). Nos países em que o emprego estável não se

generalizou, a vulnerabilidade da situação de trabalho também pode ser vista

na recorrência do desemprego.

Guimarães (2002a) considera que a invenção da categoria dos

‘desempregados de longa duração’ – nos países onde, tradicionalmente, as

relações de trabalho são reguladas e protegidas – produziu uma alteração

fundamental no nexo entre emprego e desemprego. Com isso, o tempo de

permanência na situação de desemprego passou a ser uma medida do tipo

de dificuldade que seria encontrada no processo de reinserção profissional.

Citando Demaziére, ela indica que ‘tudo se passa como se o desemprego

contribuísse para distribuir os empregos’. Para que o desemprego seja

discutido com propriedade, se faz mister atentar para suas especificidades,

nos contextos em que ocorrem.

O conhecimento das singularidades desse fenômeno torna possível

compreender os processos de transformação dos padrões sociais que ele

provoca, as mudanças de comportamento por ele produzidas. De minha

perspectiva, nos diferentes setores de atividade, o aumento do volume de

desemprego, a recorrência e o tempo de duração dessa situação reforçam o

sentimento de insegurança das pessoas que dependem de trabalho

assalariado para viver. A ampliação e diferenciação da textura do

desemprego gera deformações nas relações de trabalho e acelera o processo

de precarização da situação de emprego.

A terceirização de certas funções e o processo de flexibilização dos

contratos de trabalho expandem-se, alteram a configuração do emprego e as

condições de vida do trabalhador. Desemprego e precarização das relações

de trabalho são duas faces da mesma moeda: resultam na piora das

condições de vida das pessoas que precisam de trabalho para viver. O

acirramento desse processo abre a possibilidade de haver uma fronteira que

separa excluídos e incluídos na atividade de trabalho.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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O desemprego, as incertezas e a piora das condições de trabalho

alteram a identidade do operário, porque modificam seu modo de ‘fazer’,

‘julgar’ e ‘sentir’. Na esfera do trabalho, parece haver dissociação entre a

experiência individual do trabalhador e as relações sociais constituídas nesse

âmbito, podendo gerar atitudes pautadas em acordos e interesses

passageiros. Em outras palavras, as transformações sociais resultam na

desestabilização de valores, normas e condutas adotadas, o que configura

uma crise23 no modo de os trabalhadores se conceberem.

A pesquisa permitiu identificar a tendência à reconfiguração do mundo

vivido no campo de trabalho. Nesse processo, as relações de trabalho são

ressignificadas. Essa mudança de significação do emprego/trabalho motivou-

me a compreender em que bases as novas relações se formam, qual é a

configuração do novo caráter ou como se constitui a identidade do

trabalhador.

Desemprego à brasileira Em Trajetórias ocupacionais, desemprego e empregabilidade, Castro,

Cardoso e Caruso (1997), mostram que, no Brasil, a preocupação com o

desemprego estrutural passou a ser o grande tema dos sociólogos. A partir

da década de 1980, a reestruturação produtiva foi de tipo não-sistêmico, o

que significa que as políticas tecnológicas e de gestão de trabalho não

estavam integradas de modo horizontal. A reestruturação enfatizou a

mudança na gestão do trabalho, tendo sido pouco efetiva na renovação de

equipamentos.

As transformações da indústria, na década de 1990, resultaram no

aumento da competitividade de alguns produtos e no aumento da

produtividade do trabalho, tendo por conseqüência a redução do nível de

23 “ ‘fase difícil atravessada por um grupo ou um indivíduo’. Mais precisamente, essa acepção da palavra crise faz-nos voltar à ideia de uma ‘ruptura de equilíbrio entre diversos componentes’. A exemplo das crises econômicas, as crises identitárias podem ser pensadas como perturbações em relações relativamente estáveis entre elementos que estruturam a atividade (produção e consumo, investimentos e resultados, etc.). A atividade da qual se trata é a da identificação, quer dizer, o fato de categorizar os outros e a si-mesmo” (Dubar, 2000: 9-10)

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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emprego industrial. Os autores mostram-nos que, entre 1991 e 1995, o

aumento de 31% da produtividade na indústria teve como contraparte a

queda de 10% do nível de emprego.

Por efeito de processos de modernização, com ênfase na redução de

custos, a progressiva queda do nível emprego tornou ainda mais difícil a

reinserção dos trabalhadores no mercado de trabalho. A partir dos 90, o

desemprego24 no Brasil ampliou-se em todos os setores, mas,

principalmente, na indústria. A generalização do desemprego, o aumento do

número de pessoas sem ocupação, fez com que também houvesse variação

do ponto de vista qualitativo. Com isso, questões como ocupação25,

inatividade, desocupação, informalidade e redundância encorparam o debate

sobre esse tema. 24 O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – DIEESE, na Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED utiliza os seguintes conceitos para as categorias relacionadas ao desemprego: desempregados - São indivíduos que se encontram numa situação involuntária de não-trabalho, por falta de oportunidade de trabalho, ou que exercem trabalhos irregulares com desejo de mudança. Essas pessoas são desagregadas em três tipos de desemprego: desemprego aberto: pessoas que procuraram trabalho de maneira efetiva nos 30 dias anteriores ao da entrevista e não exerceram nenhum trabalho nos sete últimos dias; desemprego oculto pelo trabalho precário: pessoas que realizam trabalhos precários - algum trabalho remunerado ocasional de auto-ocupação - ou pessoas que realizam trabalho não-remunerado em ajuda a negócios de parentes e que procuraram mudar de trabalho nos 30 dias anteriores ao da entrevista ou que, não tendo procurado neste período, o fizeram sem êxito até 12 meses atrás; desemprego oculto pelo desalento: pessoas que não possuem trabalho e nem procuraram nos últimos 30 dias anteriores ao da entrevista, por desestímulos do mercado de trabalho ou por circunstâncias fortuitas, mas apresentaram procura efetiva de trabalho nos últimos 12 meses. 25 Ocupados - São os indivíduos que, nos sete dias anteriores ao da entrevista, possuem trabalho remunerado exercido regularmente, com ou sem procura de trabalho; ou que, neste período, possuem trabalho remunerado exercido de forma irregular, desde que não tenham procurado trabalho diferente do atual; ou possuem trabalho não-remunerado de ajuda em negócios de parentes, ou remunerado em espécie/beneficio, sem procura de trabalho; Inativos (de dez anos e mais) - Parcela da PIA que não está ocupada ou desempregada. Incluem-se as pessoas sem procura de trabalho que, nos últimos 30 dias, realizaram algum trabalho de forma excepcional porque lhes sobrou tempo de seus afazeres principais; Procura de Trabalho - Corresponde à busca de um trabalho remunerado, expressa na realização, pelo indivíduo, de alguma ação ou providência concreta. A procura de trabalho inclui não apenas a busca por um trabalho assalariado como também de outros trabalhos, como a tomada de providências para abrir um negócio ou empresa e a procura por mais clientes por parte do trabalhador autônomo; Situação de Trabalho – É definida como aquela em que o indivíduo tem um trabalho remunerado ou não-remunerado no período de referência, excetuando o trabalho excepcional; Taxa de Desemprego – Indica a proporção da PEA que se encontra na situação de desemprego total (aberto mais oculto). A taxa de desemprego específica de determinado segmento populacional (homens, chefes de família, etc.) é a proporção da PEA desse segmento que se encontra na situação de desemprego. Taxa de Desemprego = Nº de Desempregados x100( http://dieese.org.br/ped) PEA

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

36

Nadya Guimarães (2002a) deixa claro que a forma como o desemprego

se manifesta em cada país é variável conforme sua realidade econômica e

cultural. No Brasil, não só variam as formas de ocupação e seus estatutos

(empregos com e sem registro, trabalhos regulares e bicos), como os

próprios trabalhadores transitam entre as diversas situações de atividade ou

ocupação para as de desemprego ou inatividade. No caso Brasileiro, a autora

sugere que, uma vez que o emprego estável e a institucionalização do

desemprego contrastam com nossa realidade, não se generalizaram, em

vez da preocupação em relação ao desemprego estrutural talvez fosse mais

coerente atentar ao fenômeno da recorrência do desemprego.

Quanto à construção social do desemprego, à diferença da França,

onde estar desempregado é estar privado de emprego, e a situação de

desemprego é a base de referência para a sustentação do sistema de

proteção social, no Brasil, a equivalência entre privação de emprego e

desemprego foi rompida. Segundo Guimarães (2002a) “onde a fronteira

entre o desemprego e o emprego se faz tão permeável, ganham força outras

categorias de identificação subjetiva e política (desabrigados, ‘sem-teto’ e os

‘sem-terra’, por exemplo) sendo tanto mais utilizados quanto mais eficazes

(que o desemprego) se mostrem para negociar a proteção social” (2002a:

50). A autora chama a atenção para a falta de institucionalização do

desemprego. De minha perspectiva, a escassez de trabalho regulamentado e

a falta de programas sociais de proteção ao desempregado, funcionando em

larga escala, fazem parte do mesmo processo.

Assim, parece-me que essa configuração decorre do fato de haver

falhas na estruturação do mercado e de a relação salarial estável não se ter

generalizado, o que mostra a fragilidade das relações institucionais de

trabalho. Entendo que a escassez de trabalho protegido e de investimentos

na formação do trabalhador e a carência de bases sólidas para a

institucionalização do desemprego refletem e expressam o modelo de

constituição do mercado de trabalho no Brasil e as deformações no sistema

de proteção aos desempregados.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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Desestabilização do caráter e a reconfiguração das

relações de trabalho

Toda a discussão desenvolvida neste trabalho, tomou por base a noção

de caráter adotada por Sennet, que abarca as ideias de provisoriedade,

descontinuidade e precarização dos vínculos sociais, bem como as

contradições oriundas do capitalismo flexível e as dualidades intrínsecas às

relações capitalistas, como a fragilização das relações que tinham como eixo

orientador a organicidade entre o sujeito e as instituições.

Para Sennet, “caráter é o valor ético que atribuímos aos nossos desejos

e às nossas relações com o mundo e com as pessoas” (2000:10). Com isso,

quer referir-se aos hábitos e padrões de comportamento que se cristalizam

no processo de formação de um indivíduo, mediante aprendizagem nos

grupos sociais de que faz parte. Nesse sentido, o termo caráter refere-se “ao

aspecto duradouro, ‘a longo prazo’, de nossa experiência emocional”

(2000:10).

Segundo Sennet, no atual estágio do capitalismo, valores como

lealdade, fidelidade, compromisso, e outros – por natureza de longo prazo –

dão lugar a interesses sociais provisórios, necessidades momentâneas.

O autor indica o que, de sua perspectiva, pode provocar a corrosão do

caráter. “Estar continuamente exposto ao risco26 pode desgastar nossa

26 Frequentemente a noção de risco carrega o sentido de “perda”. A perda é tomada como um resultado provável, imediato. No dicionário Houaiss, Risco significa: 1 –“probabilidade de perigo, ger. com ameaça física para o homem e/ou para o meio ambiente. (Ex.: risco de vida, risco de infecção, risco de contaminação)” ; 2 – “probabilidade de insucesso, de malogro de determinada coisa, em função de acontecimento eventual, incerto, cuja ocorrência não depende exclusivamente da vontade dos interessados. (Ex.: o projeto está em risco de perder seu patrocínio); 3 – “em contratos de seguro, incidente que acarreta indenização”, (Ex.: roubo, incêndio)”; 4 – “responsabilidade ou encargo acerca da perda ou do dano por situação de risco” (http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=risco). Para Sennett o capitalismo flexível gerou as condições para que o risco fosse introjetado nas relações, uma vez que, nesse caso, as pessoas são obrigadas a agir num contexto de insegurança, em que as oportunidades são fugazes e os acordos são provisórios. Isso implica conviver com a possibilidade de perder ou ganhar tudo aquilo em que se investe ou se aposta: o plano de vida, a carreira, um projeto de profissionalização, etc.. As pessoas são obrigadas a agir no dia-a-dia como se estivessem num jogo, e como se jogar com as oportunidades e possibilidades fosse natural, mesmo que se saiba que o sucesso ou o revés pode trazer implicações para a vida como um todo. “Grande parte da bibliografia sobre o risco analisa a estratégia e os planos do jogo, dos custos e dos benefícios, em uma espécie de sonho acadêmico. Na vida real, o risco avança de uma maneira mais elementar em função

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

38

sensação de caráter” (2000: 87), o que reflete uma situação de

desorganização ou desregulação de nossa experiência emocional e social.

Não se trata apenas de perceber que as relações sociais estão permeadas

pela condição do risco, mas de reconhecer que ele passou a ser um valor

entre nós. Como explica Sennet: “A cultura moderna do risco se caracteriza

pela ideia de que não se mover é sinônimo de fracasso, e a estabilidade é

quase um risco em vida” (2000: 91).

Sennet critica o fato de, no momento atual, as pessoas serem

estimuladas a se moverem em situação de incerteza, frequentemente, de

serem motivadas a mudarem de atitude constantemente. O comportamento

ao qual o autor se refere denota a propensão à assunção de acordos

provisórios. De qualquer modo, há uma certa naturalização do significado do

risco para as pessoas que lidam diretamente com áreas sujeitas a ameaça de

perdas ou prejuízos. Ainda que seja um risco de outra natureza.

Da perspectiva de Sennet, a valorização e a exposição frequente a

situações de incerteza, por parte de nossos contemporâneos, denotam a

propensão a mudanças sociais repentinas, que geram a precarização das

relações em diversos âmbitos da vida, inclusive o do trabalho.

O autor atualiza a noção de desestabilização, pensando em como esse

processo se dá nos ambientes de trabalho, e vincula o processo de

desestabilização a algumas características típicas do capitalismo flexível. No

âmbito das empresas, destaca que as pessoas são estimuladas a viverem

cotidianamente em situação de insegurança, expostas a expectativas

ambíguas de ‘êxito ou fracasso’. Lidar cotidianamente com o risco dificulta a

escolha de uma conduta apropriada e gera a “desorientação, que implica

mover-se face às incertezas”. (Sennet, 2000: 88). Esse é mais um

componente que se agrega à competitividade. do medo de deixar de atuar. Numa sociedade dinâmica, as pessoas passivas se enfraquecem. Poderia parecer, em conseqüência, que o risco seria menos desencorajador se fosse possível realizar o sonho do acadêmico estratégico, calcular as perdas e os danos de uma maneira racional, fazer o risco legível. Entretanto, o capitalismo moderno tem organizado certos tipos de risco de tal modo que essa clareza não é necessariamente mais estimulante. As novas condições do mercado obrigam um grande número de pessoas a assumir riscos muito pesados ainda que os jogadores saibam que as possibilidades de recompensa sejam escassas.” (Sennett, 2000: 91-92)

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

39

Ele indica, ainda, que a habilidade de um indivíduo em lidar com

tempos fragmentados e provisórios é uma das características exigidas e

valorizadas nas instituições contemporâneas. Num ambiente de trabalho,

espera-se que as pessoas saibam tomar decisões e agir em situações de

riscos. Sobre o significado do papel do risco no mercado de trabalho, nos diz:

“Uma pessoa que se apresenta a um novo empregador ou grupo de trabalho

tem que ser atrativa e estar disponível; o risco implica algo mais que uma

simples oportunidade”. (2000: 88)

Entre as principais inquietações desse estudo estava a de compreender

o valor ético que os entrevistados atribuem às relações intrínsecas ao mundo

do trabalho, a forma como lidam com a alteração da cultura da empresa,

sobretudo quando isso exige uma conduta conflitante com a adotada ao

longo de determinado tempo de atuação na corporação; também me

preocupava em entender como se deu a adaptação às transformações. Por

exemplo, como manter o empenho em atingir as novas metas definidas pela

empresa, em um cenário de insegurança e incerteza que exige mudança de

atitude? Como assumir novas condutas, quando os empregados já têm um

comportamento enraizado em regras antigas? Como se manter motivado no

âmbito profissional e ao mesmo tempo se preparar emocionalmente para

enfrentar o desemprego ou a perda do status?

Este estudo buscou identificar, nas falas dos entrevistados, as

mudanças de conduta e de aspectos que eles próprios julgam importantes

para sua vida, ao longo de sua trajetória profissional, em conseqüência das

transformações do mercado. Talvez seja válido considerar situações que

supõem alterações na condução da empresa. Por exemplo, nos processos de

reestruturação da fábrica, que expõem o trabalhador ao risco da perda do

emprego. Esse pode ser considerado um importante elemento capaz de

provocar mudanças na conduta do trabalhador no ambiente de trabalho. Isso

foi visto no depoimento de Cadu, um dos entrevistados terceirizados. Por ter

sido funcionário efetivo da Petroquímica, ele apontou mudanças de

comportamento dos funcionários, à época, ocasionadas pelo processo de

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

40

reestruturação da empresa. Além disso, ele indicou diferenças entre a forma

de atuação de um efetivo e um terceiro.

Quando eu indaguei a respeito do processo de reestruturação na

empresa ele deu ilustrações. Ao perguntar se mudou a forma como ele

passou a se ver e a ser visto a partir dos cortes de funcionários e da

reestruturação ele explicitou:

“Ah, muda sim! Por exemplo, você tem sua rotina de trabalho, mas

quando se fala em corte de funcionários, em redução, você fica preocupado.

Com isso, talvez você queira fazer mais que aquilo que você faz, que eu

acho que talvez nem seja o correto. Mas, todo mundo sai correndo. A

expectativa é essa. E eu acho até errado, porque você começa a atropelar,

pode nem fazer sua função corretamente.”

Diante do julgamento moral que o entrevistado faz sobre as próprias

ações, eu perguntei porque ele considerava errado agir de maneira mais

competitiva. Em seu depoimento o respondente demonstra que a ansiedade

em superar as expectativas da empresa gera um modo de agir irracional.

“Por exemplo, você tem 20 anos numa empresa. Você tem uma rotina e um

comportamento. Se você vai mudar tem que ser num comportamento

normal, de acordo com o que você tem no dia a dia. Não é achar que em

um dia você pode fazer o trabalho de 20 anos em um mês. Então

gera uma certa ansiedade em todo mundo. Todo mundo fica querendo

fazer a mais, mas é loucura.”

A pesquisa abordou o modo como o “trabalho” ganhou significado na

vida dos entrevistados. Isso incluiu a prospecção de informações que

abarcaram desde as primeiras referências a respeito do sentido do trabalho,

no período da infância, até o ingresso da pessoa no mercado de trabalho,

passando pela forma como lidaram com as transformações desse mercado.

(veja roteiros de entrevistas anexos).

Durante o tempo em que realizei as entrevistas e a análise do material

de campo, busquei verificar em que medida havia indícios de ocorrer

desestabilização do caráter dos trabalhadores, em decorrência das

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

41

transformações das relações de produção27 e de trabalho e da presença do

desemprego no setor.

Busquei perceber se havia indícios de que os trabalhadores pautavam

seu comportamento em acordos provisórios ou passageiros. Além disso, era

importante perceber como se harmonizavam as relações entre essas

pessoas, no âmbito do trabalho.

A fala dos entrevistados permitiu-me indagar se, no caso dos

trabalhadores e desempregados do setor, a lógica capitalista de flexibilização

tende a produzir a dissolução dos vínculos de confiança e compromisso entre

as pessoas, bem como a provocar a individualização das perdas, conforme

nos dizem Beck e Beck-Gernsheim (2002)28.

Como dito antes, de minha perspectiva, a desestabilização do caráter

delineia uma situação em que a pessoa adota comportamentos sociais

calcados em interesses e acordos não duradouros. Nesse sentido, a conduta

guiada por valores provisórios resulta em ações sociais desempenhadas sem

regularidade. Ou seja, a pessoa orienta sua conduta em função de valores e

desejos que mudam continuamente, de modo que o risco funciona como um

catalisador para suas ações, que passam a estar vinculadas a necessidades

fugazes.

Para avaliar a forma de os trabalhadores petroquímicos se relacionarem

com essa questão, era necessário considerar também o risco inerente ao

funcionamento da Petroquímica e à realização de determinadas atividades,

que os expõe ao perigo iminente de acidentes, devido à periculosidade das

condições de trabalho. 27 O termo ‘relação de produção’ é aqui entendido, no sentido marxiano, como sistema de produção que implica um modo específico de organização das relações sociais. Ou seja, as forças produtivas implicam a produção de um modo de vida e estão relacionadas a um período histórico determinado. Elas resultam na transformação da natureza e da realidade social pela ação humana e também pela utilização de padrões tecnológicos específicos e métodos de trabalho determinados. Por exemplo, o trabalho assalariado está relacionado ao modo capitalista de produção, sobretudo com o advento da indústria. No presente estudo, refiro-me ao sistema de organização do trabalho, onde se incluem a tecnologia adotada – sistemas digitais de controle no setor de produção – a divisão em setores e a organização do trabalho. 28 Esses autores nos mostram que há uma tendência à individualização de situações de perda, que está em consonância com a expectativa das próprias pessoas no sentido de terem o controle sobre todos os âmbitos de sua vida. Isso contribui para que o desemprego seja visto como uma derrota, como um problema de quem o tem.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

42

A partir de alguns depoimentos, foi possível perceber que a empresa

prepara seus funcionários para conviverem com essas condições de trabalho,

de modo a fazer com que o risco, por ser dimensionado, “controlado”, seja

incorporado no dia-a-dia como natural. “Natural da profissão, do setor”.

Conforme mostra o depoimento de um ex funcionário, que atua agora como

terceirizado, no seguinte trecho:

“ (...) Sinceramente, toda essa a minha carreira, o que eu mais gostei de

fazer foi essa parte de logística, de treinamento. Ter na mão, assim..., toda

a fábrica. De você saber, a cada dia, quanto tempo tem de trocar um

equipamento.

Mesmo quando eu insisti se não dava receio ter controle sobre o

processo, sabendo que é uma empresa que trabalha sob algumas condições

de risco, ele corrobora a afirmação anterior:

“Não, eu sempre me senti muito mais seguro dentro da Petroquímica

do que fora dela. (...) Fora dela, eu corro um risco danado de morrer com

um tiro, atropelado. E lá dentro não. Lá dentro com certeza você entra e sai

à tarde. Agora, é lógico, do mesmo jeito que tô vivo aqui e à tarde eu posso

tá morto, também né! não sei. A gente pode tá trabalhando e de repente

estoura uma linha, uma turbina estoura, qualquer coisa. Mas pra isso, tem

todo um corpo técnico que tá continuamente observando equipamento por

equipamento.”

Pelo que o entrevistado deixa transparecer, o risco é encarado como

algo natural. Talvez, fosse conveniente para ele concordar com essa forma

de interpretação, uma vez que o perigo era condição e característica inerente

ao trabalho. Por isso, nem questiona a situação que vivenciava.

É importante explicitar que o risco ao qual ele se refere é o de

exposição a algum tipo de acidente no interior da fábrica, dado que algumas

áreas trabalham sob condições controladas de pressão e temperatura.

Essas situações de incerteza e vulnerabilidade podem resultar na

desestabilização do caráter das pessoas. No entanto, no meu entendimento

não há desestabilização ou corrosão do caráter sem que se dê, ao mesmo

tempo, a constituição de um novo caráter, a reconfiguração de arranjos

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

43

sociais específicos. Isto é, na dinâmica das transformações das relações, as

pessoas modificam o modo de estabelecer acordos, mas não deixam de

assumir novos laços sociais, mesmo que esses passem a ser provisórios. Os

desajustes dão lugar a rearranjos e à formação de novos laços sociais, tal

qual um pano que se faz a partir da lã restante de um outro tecido já

desfeito.

Com o processo de transformações do mundo do trabalho, o

trabalhador foi constantemente estimulado a se comportar de maneira

competitiva, preparado para o êxito, para a prosperidade, para a excelência

na realização de sua atividade, muito embora ele esteja exposto ao risco da

perda desse lugar de realização. Esse processo não se restringe apenas à

sua vida profissional, mas atravessa sua vida pessoal.

A fala do entrevistado indica a tendência à individualização, nas

situações em que a pessoa se sente ameaçada, de algum modo, como, por

exemplo, quando percebe que o desemprego está mais persistente, mais

presente no mercado de trabalho.

“Cada um individualmente pensa em mostrar mais trabalho.

Fica meio corrida, uma loucura! O funcionário querendo fazer um monte de

coisa que talvez não leve a nada. Isso por causa da insegurança de

perder o emprego. Hoje vive muito isso né! Qualquer coisa, a

pessoa pensa que pode perder o emprego. Já fica o comentário, ah,

não posso perder o emprego, coisa e tal. Mas, vai fazer o que né! você é

empregado e a empresa precisa mexer em alguma coisa pra diminuir,

porque de repente tem funcionário a mais. Então todo mundo tem que tá

preparado.”

Se a cada tipo de caráter corresponde uma estrutura social e

institucional específica, a desestabilização do caráter, dada a mudança

constante das condutas sociais, pressupõe ou deveria pressupor estruturas

institucionais em processo de mudança.

O que há de peculiar e que se deve considerar de antemão é que, no

panorama delineado por Sennet, a tendência à provisoriedade das relações e

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

44

dos acordos pouco duradouros entre os indivíduos estão em consonância

com as mudanças nas instituições. Nelas, o equilíbrio interno parece também

estar sempre mudando. Ou seja, as instituições exigem que mudanças sejam

implementadas continuamente, o que prefigura uma espécie de

descontinuidade nas relações.

No caso estudado, percebi que a percepção de que o desemprego está

mais persistente e que para alguns grupos ele é recorrente provoca uma

predisposição maior por parte dos trabalhadores em aceitar e implementar

as mudanças exigidas pela empresa. A escassez de postos disponíveis limita

as possibilidades de mudança para um outro emprego, no caso de estarem

insatisfeitos com suas condições de trabalho e faz com que o empregado

busque se adaptar facilmente às mudanças demandadas pela empresa,

evitando questioná-las ou manifestar qualquer tipo de resistência.

Novos contornos identitários na realidade operária Do meu ponto de vista, o processo de transformação das instituições e

do sentido que elas têm para as pessoas tende a gerar uma mudança na

identidade dos indivíduos. O conceito de identidade denota o sentido de

pertencimento a determinado grupo social. Conforme Dubar, para a

sociologia clássica,

a pertença ‘objetiva’ a uma categoria, dado que ela mede

os aspectos importantes da vida dos indivíduos nas

sociedades modernas (a renda, notadamente) determina,

de maneira mais ou menos forte, isso que Durkheim chama

de as ‘maneiras de fazer, de sentir e de julgar’ e que são

consideradas como ‘fatos sociais’ (2000: 7).

O desaparecimento ou a transformação dos papéis, normas e valores

sociais, aos quais me referi inicialmente, alteram a maneira de fazer, de

sentir e de julgar dos próprios indivíduos. Ou seja, a mutação das relações

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

45

sociais implica uma alteração nas pertenças e na maneira de os indivíduos se

conceberem. Isso porque, há uma relação de mutualidade entre identidade

coletiva e individual: a mudança de uma altera a outra. Nesse sentido

identidade e caráter parecem-nos correlatos. A transformação nas

concepções que ordenam a vida social reflete-se na conduta adotada pelos

operários.

Em alguns momentos, as menções que denotam sentimento de

pertença parecem ter na empresa sua principal referência. Como na fala: “Os

colaboradores da PQU têm um tipo de relação, quem é contratado tem outro

tipo.” Aqui, a identidade é a do efetivo na empresa, que se diferencia do

terceiro ali dentro.

Em outros momentos, nas falas dos trabalhadores, as organizações

coletivas aparecem pra indicar a falta de pertenças coletivas e a tendência à

individualização das perdas dos trabalhadores. Como segue: “Na verdade,

mesmo na condição de aposentado eu me sentia um desempregado, mesmo

sem faltar nada em casa. Não era uma questão monetária. Eu me sentia

vazio por não trabalhar e eu me sentia capacitado pra trabalhar.”

Ou seja, associamos uma pessoa a um certo grupo ou categoria,

mediante a identificação ou distinção entre seus hábitos, opiniões e

comportamentos. A identidade é portanto uma forma de reconhecimento das

pessoas em relação a si mesmas e às outras. Dubar considera que o

processo de identificação coletivo é anterior ao individual. Para ele, não se

pode identificar a si mesmo de outra forma que não seja referido aos outros.

Essa relação entre os dois processos de identificação é o fundamento das

formas identitárias29. (Dubar, 2000: 4). Essa formulação se assemelha à de

Gerth e Mills, que mostram que o conceito que as pessoas têm de si mesmas

29 As “formas identitárias são as maneiras de identificar os indivíduos; sua combinação pode teoricamente permitir caracterizar configurações históricas mais ou menos típicas. Mas elas coexistem na vida social. Cada um pode identificar os outros ou se identificar a si mesmo, seja por um nome próprio, que o liga a uma linhagem, uma etnia, ou um ‘grupo cultural’, seja pela denominação de um papel que depende das categorias oficiais dos ‘grupos estatutários’, seja por nomes íntimos que traduzem uma reflexividade subjetiva (‘si-mesmo’) seja por nomes designando enredos que resumem uma história, projetos, um percurso de vida, enfim, narração pessoal (‘si’)”. (Dubar, 2000: 53-54)

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

46

se forma a partir das relações sociais30 nos diferentes âmbitos da vida. Nesse

sentido, a posição ocupada pela pessoa influencia a formação de sua

identidade e vice-versa.

Como mostra o autor, a configuração das formas identitárias, definidas

como modalidades de identificação, se modifica mediante processos

históricos, ao mesmo tempo coletivos e individuais.

Com base nesses processos históricos de mudanças sociais, Dubar

distingue dois tipos de formas identitárias: as formas comunitárias e as

societárias. De acordo com o autor, as primeiras, “supõem a crença na

existência de grupos chamados ‘comunidades’ consideradas como sistemas

de lugares e de nomes designados aos indivíduos e que se reproduzem de

maneira idêntica através das gerações”.

[.....]Essas formas são estreitamente dependentes das

crenças no caráter essencial das pertenças a certos grupos

considerados como primordiais, imutáveis ou simplesmente

vitais para a existência individual. Quer se tratem de

‘culturas’ ou de ‘nações’, de ‘etnias’ ou de ‘corporações’,

esses grupos de pertença são considerados, pelo poder e

pelas próprias pessoas, como fontes ‘essenciais’ de

identidades. (Dubar, 2000: 5).

No processo de expansão do capitalismo, a forma identitária societária

tende a predominar sobre a comunitária. Ela resulta de formas coletivas

diversas e provisórias e configura relações sociais pautadas por interesses

passageiros. Sobre as formas identitárias societárias, Dubar esclarece:

Elas supõem a existência de coletivos múltiplos, variáveis,

efêmeros, aos quais os indivíduos aderem em certos

períodos limitados e que lhes fornecem as fontes de

identificação que eles geram de maneira diversa e

provisória. Nessa perspectiva, cada um possui múltiplas

30 Veja mais detalhes sobre autoconceito, no item Desemprego e desestabilização do caráter.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

47

pertenças que podem mudar no curso da vida. Essas formas

estão ligadas a crenças diferentes das anteriores, em

particular, aquelas da primazia do sujeito individual sobre as

pertenças coletivas e da preponderância das identificações

‘para si’ sobre as identificações ‘para o outro’(2000: 5).

O acirramento do processo de individualização, a mudança do lugar do

trabalho na vida das pessoas, a perda do sentido de classe, a progressiva

precarização das relações de trabalho e o desemprego provocam uma

inflexão no princípio de unidade identitária do trabalhador.

Ao descrever o tipo de comportamento que o processo de

reestruturação na PQU provocou entre os trabalhadores, “Cadu” mostrou que

aquelas modificações implementadas alteraram também o modo de “fazer”,

“pensar”, “sentir” ou, pelo menos, tornaram difusa ou mais distante do

cotidiano laboral a pertença a um coletivo de trabalho.

Num contexto de fragmentação do sujeito operário, em que o ‘não

trabalho’ se faz presença marcante na vida das pessoas – tanto na das que

estão empregadas como na das desempregadas – percebi que a ameaça do

desemprego influencia e provoca alterações na forma de execução das

tarefas no trabalho e na forma como encaram o âmbito profissional.

Individualização e desemprego – elementos que

alteram a identidade operária O trabalho constitui uma importante dimensão da vida das pessoas e

das relações sociais, dado que é por meio dele que nos posicionamos na

sociedade. Nas palavras de Robert Cabanes (2002), ele constitui uma

referência essencial no que diz respeito à estruturação das pessoas e das

relações sociais. O status social de um indivíduo deriva de sua participação

no sistema de produção econômico. Assim, importa saber de que modo a

presença do desemprego na realidade social influencia a conduta das

pessoas e suas relações.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

48

Nesta seção, examinei alguns elementos que mostram as

transformações no mundo do trabalho31. Discuti a relação entre a

experiência subjetiva do desemprego e a situação de emprego, na indústria

petroquímica, ramo a que pertence a Petroquímica União – objeto empírico

de desse estudo.

Gerth e Mills afirmam que as pessoas buscam estabelecer relações

sociais que confirmem o conceito que elas possuem sobre si mesmas. O

autoconceito é um elemento essencial na constituição do caráter de uma

pessoa e “Para conhecer o autoconceito de um indivíduo devemos estudar os

Outros que são importantes para ele”. (1973: 108). Os autores mostram que

a carreira é fundamental na escolha dos Outros Importantes, e por

conseguinte, na estrutura do caráter de cada um. Sobre isso, explicitam: “A

seleção dos Outros Importantes é limitada pela posição institucional da

pessoa e pela passagem de sua carreira de uma posição institucional a

outra” (1973: 102).

Os Outros que servem de referência para a formação do caráter das

pessoas são selecionados nos grupos dos quais elas participam e o âmbito

profissional é determinante nesse processo. Na medida em que ocorre a

precarização das relações de trabalho e aumenta a insegurança do

trabalhador, os vínculos do empregado no âmbito profissional se tornam

mais frágeis. Por outro lado, a proeminência dos valores individuais sobre os

coletivos dá nova roupagem às formas identitárias, que tendem a ser mais

societais e não coletivas.

Nesse sentido, perguntamos: que conseqüências a passagem de uma

situação de emprego estável para a de desemprego ou de emprego

31 Conforme ilustra Dubar, “assiste-se a uma diversificação, a uma ruptura das formas de emprego, das organizações de trabalho, dos conteúdos de atividades. Assiste-se sobretudo a uma vasta recomposição dos ciclos de vida profissional: alongamento do período de inserção no mercado de trabalho e experimentação de atividades cada vez mais ligadas (formações, estágios, trabalhos voluntários, empregos temporários, desemprego e sub-emprego), precocidade das aposentadorias e multiplicação das atividades “fora do mercado de trabalho” durante o período de aposentadoria, mudança de posto, de estabelecimento, de ofício, de atividades no curso da vida ativa “ordinária” cuja duração tende a se reduzir e o estatuto a tornar-se mais indefinido, mais ambivalente. A questão mais delicada é a do sentido a dar a essa “vida de trabalho” na medida em que as carreiras do emprego se misturam, que as denominações se modificam e que a ‘flexibilidade temporal’ tende a ser erigida em nova norma” (2000: 193).

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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desprotegido – que significa perda de status no sistema de produção – pode

acarretar à conduta de uma pessoa? Talvez não chegue a se configurar um

processo de dessocialização das relações, conforme Touraine teoriza, mas

suponho que, no atual contexto, a tendência à individualização (que abordei

anteriormente) se manifeste como uma força oposta ao processo de

formação de valores coletivos. Isso torna difusa a formação da identidade

operária e pode dificultar a constituição unitária do sujeito que trabalha32,

sobretudo se se levar em conta que as formas híbridas entre emprego e

desemprego dificultam a articulação entre os trabalhadores, enquanto

coletividade.

A flexibilização das relações de trabalho, a tendência à individualização

nas formas de negociação das condições de trabalho e de salário, e o

enfraquecimento do sindicato como instituição mediadora da relação entre

empresário e empregados, são resultantes desse processo de perda da força

dos valores comuns, erigidos no seio de grupos sociais. Trocando em

miúdos, a individualização esvazia o sentido das formas de representação

coletiva de trabalho, muito embora categorias como os trabalhadores

petroquímicos permaneçam existindo. Mesmo que se admita que os

petroquímicos são uma coletividade, a realidade em que vivem favorece que

ajam orientados por princípios individualistas em detrimento dos

comunitários.

Conforme Dubar define, “As identidades profissionais são maneiras

socialmente reconhecidas, para os indivíduos, de se identificarem uns aos

outros, no campo do trabalho e do emprego” (2000: 95). Empenhei-me em

entender o funcionamento desse âmbito das relações, como as novas regras

32 É importante destacar que a tendência à dessocialização ou à fragilização de valores coletivos formados a partir de uma experiência comum se opõe radicalmente à situação da classe operária constituída a partir da formação da sociedade industrial inglesa, sobretudo no século XIX. A esse respeito, Thompson, citando Raymond Williams, mostra que “ ‘O principal elemento característico da vida inglesa, a partir da Revolução Industrial é a coexistência de ideias alternativas sobre a natureza das relações sociais’. Em contraste com as ideias da classe média sobre o individualismo ou (na melhor das hipóteses) sobre a assistência. ‘O que se entende propriamente por cultura da classe operária...é a ideia básica do coletivismo, e as instituições, maneiras, hábitos de pensamento e intenções que provêm dela. As sociedades de auxílio mútuo não ‘provêm’ de uma ideia: tanto as ideias quanto as instituições surgem em resposta a certas experiências comuns.” (Thompson, 1987: 316)

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

50

do trabalho vêm alterando o modo de “fazer”, “julgar” e “sentir” do

trabalhador do setor petroquímico.

De minha perspectiva, nesse contexto de mutação das relações

empregatícias, é provável que os trabalhadores atuem pautados em coletivos

múltiplos ou baseados em relações societais, ainda que a individualização se

apresente prevalecente.

Descrição da metodologia e procedimentos de

pesquisa

No início do trabalho, havia definido somente os trabalhadores da

Petroquímica União como “universo de pesquisa”. Estava interessada em

saber sobre o modo como os trabalhadores dessa empresa, pertencente ao

setor petroquímico, lidavam com a insegurança do desemprego e se as

transformações no mundo do trabalho – entre as quais se incluem os

processos de reestruturação produtiva, as mudanças de padrão tecnológico –

poderiam gerar desestabilização do caráter.

O foco de minha questão era saber se as mudanças acima referidas

provocariam a tendência à desestabilização do caráter nas relações de

trabalho. Para isso, propus-me a investigar o modo como os trabalhadores

pensam, se sentem e se comportam em decorrência das mudanças da rotina

de trabalho, do sistema de produção, da tecnologia empregada na produção,

e do aumento do nível de desemprego no mercado de trabalho – elementos

que, em conjunto, delineiam um quadro de insegurança do trabalhador.

Ao enveredar no tema da desestabilização do caráter nas relações de

trabalho, deparei-me com o seguinte questionamento: Por que discutir a

presença ou a importância do desemprego na vida de pessoas que estão

empregadas? Essa indagação foi persistente durante toda a pesquisa e soava

como um contra-senso. Havia dúvidas sobre a validade de tal levantamento

acerca da desestabilização do caráter devida, entre outras causas, à

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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presença do desemprego na vida de pessoas empregadas. Isso persistiu até

o momento em que eu percebi que ter apenas os trabalhadores da

Petroquímica como objeto de investigação poderia produzir um resultado

insatisfatório, dado o tipo de inquietação e questionamento que motivaram

este trabalho.

As dúvidas conduziram para uma reformulação do método de pesquisa

e de análise. A partir de então, remontei a estratégia para o trabalho de

campo, ampliando o âmbito e as perspectivas que permitiriam desenvolver

uma discussão sociológica bem fundamentada.

Assim, decidi utilizar três categorias distintas: os trabalhadores da

Petroquímica, efetivos na empresa; os terceiros, que atuavam naquela

corporação; e os desempregados saídos dela. Fazendo isso eu adensava meu

campo de discussão. As novas definições impuseram-me travar um diálogo

com três realidades diferentes, o que, na prática, resultou em perguntas

específicas e distintas para cada uma delas33.

A extensão do campo para duas novas categorias me permitia traçar

comparações entre realidades específicas de pessoas com experiências

semelhantes em, pelo menos, um momento de sua vida. Elas teriam em

comum a vivência com o mundo do trabalho, a passagem pela Petroquímica

União e o fato de terem sido efetivos naquela empresa. Era necessário

matizar a discussão sobre a questão da desestabilização do caráter nas três

perspectivas que se abriam a partir de minha abordagem. Isso porque

supunha que, para cada uma das três categorias, a tendência à

desestabilização do caráter se manifestaria de um modo específico, uma vez 33 O trabalho de campo foi realizado concomitantemente com as três categorias definidas para a pesquisa. Entretanto, era necessário utilizar procedimentos específicos para cada uma delas, desde o roteiro de entrevistas até o modo como falava com as pessoas a serem entrevistadas. Havia a tensão de adotar procedimentos adequados a cada categoria entrevistada. O tipo de questionamento para cada um era específico, muito embora o objetivo da pesquisa tivesse um fio condutor comum: compreender como as transformações no processo de produção e nas relações de trabalho (sobretudo pela presença do desemprego no mundo do trabalho) alteravam as relações de trabalho e se a insegurança do mundo do trabalho era capaz de gerar desestabilização do caráter do trabalhador. No fim das contas, a metodologia escolhida me obrigava a fazer comparações entre as três situações, buscando semelhanças e diferenças: O que havia em comum na vida dos trabalhadores efetivos da Petroquímica, dos terceiros e dos desempregados, e o que era peculiar na situação de cada um que se inseria em uma das categorias definidas para a pesquisa em curso.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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que essas pessoas estavam inseridas em contextos determinados. Ou seja,

buscava compreender o que havia de singular no modo como os efetivos, os

profissionais terceirizados ou os desempregados lidavam com situações de

insegurança, mudança, risco e incerteza no campo profissional. Afinal,

pensar no desemprego na condição de trabalhador é diferente de estar

vivendo a situação de inatividade.

Em virtude dessas ponderações, optei por falar com pessoas que

tivessem vivenciado o processo de transformação do mercado de trabalho no

setor petroquímico, durante um período determinado. Escolhi pesquisar

aquelas que tivessem, pelo menos, 15 anos de experiência – estando em

atividade entre final da década de 1980 e meados de 90 –, fase em que o

setor petroquímico e o mercado de trabalho como um todo sofreram

importantes transformações. Esses requisitos foram utilizados como critérios

na escolha dos entrevistados (efetivos e terceiros na PQU). No caso dos

desempregados, a exigência era que tivessem tido longa experiência na

Petroquímica em, pelo menos, uma fase do período referido, e que,

posteriormente, tivessem vivido a situação de desemprego.

Propus-me a compreender a forma como os entrevistados as

interpretam e o modo como as mudanças no mundo do trabalho moldam seu

comportamento, com o intuito de investigar se essas transformações tendem

a gerar desestabilização do caráter, nas três categorias definidas: efetivos na

PQU, terceiros na PQU e desempregados, com experiência naquela empresa.

A reconfiguração do campo me permitiu traçar comparações entre os

depoimentos dos que permanecem na empresa e os que foram despedidos,

com o objetivo de entender de que modo o desemprego, as mudanças no

sistema de produção e nas relações de trabalho interferem em sua conduta e

na conformação do seu caráter.

A forma como o funcionário da empresa percebe a questão do

desemprego, as mudanças no mercado de trabalho e as mudanças no

sistema de produção, difere do modo como o empregado terceirizado encara

as mesmas situações. Este, por sua vez, se distingue do modo como os

desempregados encaram as condições de vida. Considero que a condição ou

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

53

a situação de cada um marca e influencia, de modo determinante, seu modo

de sentir, pensar e julgar o mundo34.

Procedimentos de campo Para realizar a pesquisa, inicialmente fiz contato com o Sindicato dos

Químicos do ABC35, com o objetivo de falar com os trabalhadores da PQU por

intermédio daquela organização. Pretendia obter uma lista de funcionários e

fazer a escolha dos entrevistados por sorteio, sem intervenção da direção

daquela corporação, evitando vieses. O primeiro passo foi realizar uma

entrevista com o diretor do sindicato, com o objetivo de perceber o modo

como a representação sindical daquela categoria entendia as transformações

do setor petroquímico, no período que eu pretendia estudar. Além disso,

buscava uma maneira de estabelecer contato com os funcionários da PQU.

Realizei entrevista com o diretor-presidente, Heli Vieira Alves, em 2002,

por email. As questões concerniam às transformações do setor nas décadas

de 80 e parte da de 90. (veja roteiros de entrevistas anexos). O fato de me

manter em contato com Alves abriu espaço para a primeira visita ao

sindicato.

Tive oportunidade, então, de aplicar um pré-teste do roteiro de

entrevistas, com perguntas básicas. Os entrevistados eram funcionários

efetivos da Petroquímica União. Nessa ocasião, tinha como finalidade

perceber se o tipo de questionamento que vinha fazendo sobre a realidade

do trabalhador petroquímico era coerente com o objetivo da pesquisa, se eu

estava sintonizada com a realidade dos trabalhadores. As entrevistas

apontaram que grande parte de minhas indagações era pertinente. Elas

34 De acordo com Dubar, a pertença objetiva a uma categoria determina os modos de pensar, sentir e julgar de um indivíduo. 35 Atualmente o Sindicato abrange as sete cidades da região do ABC paulista, a mais industrializada do país. A região possui uma população aproximada de 2.354.722 milhões de pessoas (IBGE-2000) e responde por quase 14% da atividade industrial do Estado de São Paulo. Na região do ABC estão instaladas cerca de 600 empresas do ramo químico, petroquímico, plástico, resinas sintéticas, tintas e vernizes, armas e munições e farmacêutico. Atualmente, há cerca de 32.000 trabalhadores nessas empresas, dos quais aproximadamente 12.000 são associados ao Sindicato dos Químicos do ABC, contribuindo mensalmente com 1,5% do seu salário para o Sindicato. (http://www.quimicosabc.org.br/)

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

54

também auxiliaram a elaboração de outras perguntas que abarcassem o

cotidiano do trabalhador: entre outros, seus dramas, os motivos de

insatisfação, as soluções encontradas.

No entanto, percebi, que acessar os trabalhadores da PQU pela

mediação do Sindicato, me expunha ao risco de encontrar um perfil

monocórdio de trabalhador. Provavelmente encontraria pessoas que

tivessem uma inserção muito específica na empresa, imbuídas da perspectiva

sindicalista. Considerava que entrevistar um trabalhador articulado com o

sindicato não era problema, desde que eu chegasse a ele sem intervenção

da própria corporação. A partir de então, decidi pela escolha aleatória dos

trabalhadores, o que me impunha uma mudança na forma de prospectar

informações. Era importante acessar um universo de pesquisa diverso, e que

se assemelhasse ao encontrado na empresa. Ou seja, as pessoas poderiam

ser ou não engajadas nas temáticas do organização sindical, assim como

poderiam ter interesses em outras áreas distintas da própria corporação.

Essas ponderações fizeram pensar que, talvez, o caminho mais

coerente fosse falar com os trabalhadores a partir de suas bases de trabalho,

na fábrica e na empresa terceira – contratada para agenciar trabalhadores

para a PQU -, e, o mais importante, falar com o desempregado sobre sua

condição de egresso do mercado petroquímico: seus dramas, a distância do

mercado petroquímico, a adaptação à nova realidade, a construção de uma

nova vida, fora do trabalho.

Com a pesquisa, busquei entender como esses trabalhadores ou

desempregados percebem as mudanças, em geral, e as transformações do

mercado petroquímico, bem como avaliar se elas têm provocado processo de

desestabilização no caráter desses trabalhadores. Para fazer essa análise

considerei as alterações no setor produtivo e os novos sistemas tecnológicos

e de informatização, entre outros. Mas não só: também considerei as

mudanças que concernem às relações de trabalho, vislumbrando o fato de

que o universo a ser pesquisado abarcava três categorias (empregados

efetivos, empregados terceiros e profissionais que tivessem vivido o

desemprego no setor petroquímico), organizadas em dois blocos: o dos que

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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trabalham e o dos que não trabalham. Além disso, era necessário fazer

distinções entre as pessoas inseridas no mercado de trabalho. Entre elas, um

grupo era o dos que tinham vínculo com a empresa e o outro era o dos

terceirizados.

De minha perspectiva, a compreensão de uma pessoa empregada

acerca do desemprego seria qualitativamente distinta daquela do

desempregado. Sua experiência de vida provavelmente marcaria seu modo

de pensar, sentir, julgar. Assim, na medida em que o desemprego era

considerado um dos fatores que poderiam gerar desestabilização do caráter,

ele se tornava uma categoria chave para analisar e dialogar com as outras

duas escolhidas. Supunha que esses critérios também me levariam às

percepções e modos de viver do empregado efetivo e do terceiro sobre

desemprego.

Assim, utilizei estratégias distintas para falar com os entrevistados.

Decidi falar com os efetivos, entrando pela “porta da frente” da corporação,

por intermédio da empresa; os empregados terceiros foram contatados

mediante a escolha de uma das empresas terceiras, cuja participação na

Petroquímica União é significativa; e os desempregados foram contatados

pelo Sindicato dos Químicos.

Dado isso, busquei estabelecer contato com a Petroquímica,

informando-a sobre o interesse em desenvolver a pesquisa com os

trabalhadores efetivos e com terceiros, que atuassem na empresa. Ao

mesmo tempo, voltei a falar com o Sindicato dos Químicos do ABC, agora

com um objetivo diferente daquele que me levou a contatá-lo em 2002.

Precisava ter acesso aos desempregados do Setor Petroquímico, de

preferência entrevistar aqueles que fossem ex-funcionários da Petroquímica

União.

O contato com a Petroquímica União Com a empresa, os primeiros contatos foram feitos por email, uma vez

que, por telefone, não conseguia acesso a nenhum dos diretores. As

tentativas de diálogo com a PQU iniciaram-se no final de 2003 e somente

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

56

entre o final de 2004 e início de 2005 começaram a surgir indícios de uma

comunicação mais efetiva.

Cheguei a falar com três funcionários: o supervisor de produção, a

diretora de comunicação e o diretor de RH, Maurício. Este viria a ser meu

principal contato, uma vez que avalizou a realização de entrevistas com os

trabalhadores efetivos. Após explicar-lhe o escopo da pesquisa, por exigência

dele, enviei, para sua apreciação, os roteiros das entrevistas dirigidas aos

efetivos, aos terceiros e aos desempregados do setor. Esses roteiros foram

avaliados durante cerca de um mês e meio. A espera deixou-me angustiada

e ansiosa, uma vez que, caso a empresa se recusasse a participar, eu corria

o risco de ter todo o projeto inviabilizado.

Maurício entrou em contato comigo somente no final de março de

2005. Na ocasião, pedi-lhe para fazer uma visita à empresa para tirar

eventuais dúvidas sobre o teor da pesquisa que vinha desenvolvendo.

Conforme combinado, fui à fábrica com o objetivo de conhecer a planta e

explicitar o objetivo da pesquisa e o método selecionado para realizá-la.

No primeiro contato, senti o estranhamento do diretor de RH e de seu

assistente, o que era natural, uma vez que não fazia parte da corporação.

Fizeram-me diversas perguntas sobre o escopo do meu trabalho, até que

demonstrei que, de fato, minha pesquisa não tinha como objetivo investigar

problemas ou particularidades da Petroquímica e sim mostrar as

transformações do mercado e suas conseqüências nas relações dos

trabalhadores.

Deixei claro que a empresa fora escolhida por ser a única em São

Paulo36. O setor petroquímico, juntamente com o automobilístico, é um dos

que mais se moderniza em toda cadeia industrial.

36 Até o primeiro semestre de 2005, existiam somente três centrais petroquímicas no Brasil: A Petroquímica União em São Paulo, a Refinaria Landulfo Alves em Camaçari e uma terceira no Rio Grande do Sul. Em 23 de junho de 2005, foi inaugurada uma central petroquímica, no Rio de Janeiro, a Riopol. De acordo com a Gasnet, na ocasião a Riopol era o maior complexo gás-químico da América Latina. “a empresa nasce(u) com uma capacidade inicial de produção de 540 mil toneladas, com uma carteira de 300 clientes (concentrados nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste) e com a expectativa de faturamento de cerca de US$ 650 milhões por ano. Nos primeiros dez anos de operação, a Riopol destinaria um total de 1,2 bilhão de toneladas de polietileno ao mercado externo. Garantidas por meio de um contrato de cerca de US$ 1 bilhão com a trade americana Vinmar International, as exportações

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

57

A segunda visita foi mais tranqüila, tornou-se uma ocasião para eu

conhecer um pouco mais da realidade da empresa. Mais uma oportunidade

para entender o sistema de trabalho, analisar as normas implantadas e os

procedimentos adotados internamente, e compreender o significado da

presença de um pesquisador de ciências humanas ali.

Metodologia de pesquisa e escolha dos pesquisados na PQU

Após a segunda visita à empresa, a partir do esclarecimento de que

tinha interesse em desenvolver pesquisa com os empregados do

estabelecimento e atendendo a um pedido meu, o diretor de Recursos

Humanos da Petroquímica forneceu-me a lista de funcionários, por tempo na

empresa. Com a lista em mãos, fiz o sorteio das pessoas que seriam

entrevistadas. Selecionei 15 empregados, com o intuito de prospectar

informações e analisar as entrevistas de 5 efetivos na Petroquímica União.37

Um dos critérios para a escolha foi o tempo do trabalhador como

funcionário na empresa: busquei pessoas que tivessem trabalhado na PQU,

entre a década de 80 e meados de 90. Além disso, porque um dos principais

questionamentos da pesquisa abordava a existência ou não de

transformações no sistema de produção, selecionei preferencialmente

trabalhadores diretamente ligados à produção.

O passo seguinte foi comunicar-me com os funcionários efetivos,

explicitar o objetivo do trabalho e solicitar sua participação na pesquisa. O

diretor de RH indicou-me também uma empresa terceirizada, a Platume, teriam início em agosto do mesmo ano [grifos meus]”. (http://www.gasnet.com.br/projetos). O principal negócio da Petroquímica União é a produção, venda e distribuição dos petroquímicos básicos – chamados produtos de primeira geração – fabricados a partir da nafta fornecida pela Petrobrás. A empresa vende os produtos de primeira geração para outras empresas do Pólo do Grande ABC e de regiões próximas como a Polietilenos União, Polibrasil, Solvay, Oxiteno, Cabot, Unipar, Rhodia, Basf, Bayer, Dow, Petroflex e outras. Essas empresas fabricam os produtos de segunda geração e vendem-nos para as indústrias de bens de consumo. Atualmente a PQU produz gasolina automotiva tipo “A” e está se preparando para vender também GLP, o Gás de cozinha. Além disso, é a única fabricante de resinas hidrocarbônicas de petróleo da América Latina. (Petroquímica União em comunidade, 2002). 37 Com as listas em mãos, o contato inicial e grande parte das entrevistas com os terceiros e com os efetivos se processaram mais ou menos no mesmo período: entre abril e setembro de 2005.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

58

para que eu a consultasse sobre a possibilidade de realizar as entrevistas

com seus trabalhadores – os que atuavam na PQU. As entrevistas com os

trabalhadores efetivos ocorreram logo depois que eu entrevistei os

trabalhadores da Platume, uma vez que a Petroquímica fez restrições ao fato

de eu mesma fazer o contato com seus funcionários, em vez de ela própria

fazê-lo. Cerca de um mês depois, consegui dar prosseguimento ao trabalho

de campo com os efetivos da empresa.

A visita à Platume

Com o auxílio da PQU, por meio de telefone, entrei em contato com o

diretor-presidente da Platume, empresa terceirizada que tem a Petroquímica

como uma de suas clientes. Após explicitar as razões que me levaram a

realizar a pesquisa e o escopo do trabalho, ele dispôs-se a conversar comigo

sobre a possibilidade de seus funcionários participarem de minha pesquisa.

Assim, marcamos a visita à Platume para a semana seguinte – início de

março.

Do mesmo modo que a PQU, a Platume localiza-se em Santo André, na

Grande São Paulo. O caminho até a empresa constitui uma jornada de quase

três horas para ir e o mesmo tempo para voltar, o que me dava uma ideia do

tempo que eu despenderia realizando a tarefa de entrevistar cada um dos

funcionários daquela empresa e os da PQU, dado que a maioria morava em

Santo André e em São Bernardo. Era necessário acordar às 4:30h, para

conseguir chegar na empresa às 8:30h, ou sair de São Paulo às 17h para

chegar na casa dos entrevistados entre 19:30h e 20h, o que retardava minha

chegada de volta – quase 1h da manhã, uma vez que as entrevistas eram

longas.

O fato de ter entrado em contato com a Platume pela intermediação da

Petroquímica tornou o diálogo mais fácil. O diretor da Platume era ex-

funcionário da Petroquímica e tem laços estreitos com a empresa. Já na

primeira visita, ele tornou disponível a lista de funcionários, indicou os que

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

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atuavam na PQU e, com isso, pude realizar naquele mesmo dia o sorteio das

pessoas a serem entrevistadas na categoria – empregados terceiros.

Feita a seleção prévia dos trabalhadores da Platume – um total de 15

pessoas, com o objetivo de chegar às cinco entrevistas finais –, tive acesso a

seu endereço e telefone e, finalmente, entrei em contato com eles.38

A retomada do contato com o Sindicato

No Sindicato dos Químicos, retomei o contato com o diretor-presidente

da instituição que mostrou disposição para me ajudar indicando nomes de

empregados efetivos na PQU que pudessem participar da pesquisa.

Mais de um ano depois, havia reconfigurado todo o trabalho de campo.

Minha expectativa com o sindicato já não era a mesma de quando estabeleci

contato na primeira oportunidade. Dessa vez, buscava acessar

desempregados, preferencialmente que tivessem sido funcionários da

Petroquímica, e não mais funcionários dela. Entretanto, o mais importante

era que fossem pessoas do setor petroquímico que tivessem vivido a

experiência do desemprego.

Para escolher desempregados, usei procedimento semelhante ao que

empregara para selecionar os trabalhadores das empresas (Platume e

Petroquímica União).

A instituição transmitiu-me a lista de funcionários desligados desde

2000 por email. Com essa lista em mãos, selecionei os que haviam saído da

PQU. Desses, escolhi os que tinham tido mais tempo de casa, e os mais

velhos, com o objetivo de entrevistar pessoas que tivessem vivenciado as 38 A despeito de eu ter começado os contatos de campo com a Petoquímica União, as primeiras entrevistas foram realizadas com os empregados da Platume. Sendo a Petroquímica uma empresa mais fechada, com uma estrutura organizacional pautada no controle dos trabalhadores, o contato com os efetivos tornou-se mais difícil do que com os trabalhadores terceiros. O diretor de RH insistia em informar, ele mesmo, os trabalhadores a respeito de minha pesquisa sobre “relações de trabalho”. Somente depois de muita insistência e de mostrar que o contato com os trabalhadores era procedimento de método fundamental para preservar a isenção no processo de escolha dos entrevistados, consegui convencê-los de que era necessário que eu mesma fizesse esse contato. Caso os trabalhadores fossem informados sobre a pesquisa pela própria Petroquímica, isso daria margem a que pensassem que o trabalho era de iniciativa da PQU. Isso implicou a suspensão temporária do processo de prospecção de relatos com os efetivos da empresa.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

60

transformações do mercado entre as décadas de 80 e 90, e fiz uma lista de

10 pessoas. Em seguida, fiz os primeiros telefonemas. Alguns números

haviam mudado, o que exigia sua atualização por meio de serviço telefônico,

tarefa nem sempre possível; outros pediram-me um tempo para decidirem se

participariam ou não.

Enquanto isso, eu finalizava as entrevistas com pessoas terceirizadas.

Com o passar do tempo, fui percebendo que a lista fornecida pelo sindicato

não era totalmente aproveitável. Os poucos contatos que consegui por meio

dela, quase sempre, frustraram minhas expectativas. Muitas vezes, o que

aparecia no cadastro como dispensa da empresa era, na realidade, uma

pessoa aposentada – que não se enquadrava entre as categorias definidas

por mim.

A falta de atualização do cadastro do sindicato me obrigou a

desenvolver uma estratégia diferente da que havia definido inicialmente para

contatar as pessoas dispensadas pela Petroquímica União. Cheguei a pensar

que seria inviável falar com elas. Foi então que me ocorreu a ideia de pedir

que os trabalhadores efetivos indicassem pessoas que tivessem sido

desligadas. Por intermédio de alguns funcionários, tive acesso a uma

pequena rede de pessoas dispensadas pela PQU. Como elas já eram

informadas, previamente, por seus colegas, sobre o objetivo da pesquisa e

se tratava de uma indicação de amigos, tinham predisposição a participar da

pesquisa, contribuindo com seus depoimentos. O ‘plano B’ para contatar

essas pessoas deu certo.

A ida a campo O caminho até Santo André e suas imediações é longo e esse período

foi, de certo modo, atribulado. Eu tinha de ir até a estação Clínicas do metrô,

baldeava na estação Paraíso (no sentido da Estação da Luz) e lá fazia

conexão com a Estação de Trem (no sentido de Rio Grande da Serra).

Frequentemente meu destino era Santo André; no entanto, algumas vezes

fui para São Bernardo, São Caetano e a Ribeirão Pires. Chegando à estação

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

61

mais próxima de meu destino final, pegava um ônibus ou um táxi para o

endereço do entrevistado.

Muitas vezes, esse percurso durava quase três horas. Durante a

trajetória, ia refletindo sobre o que viria pela frente. Preocupava-me com o

tipo de abordagem das perguntas elaboradas, se elas interrogavam sobre o

que de fato representava a minha questão sociológica. Na base de meus

questionamentos estava a dúvida central: se a insegurança produzida a

partir da automatização, a percepção das mudanças no sistema de produção,

e também da persistência do aumento e da presença do desemprego no

mercado como um todo, era capaz de gerar a desestabilização do caráter do

trabalhador. De minha perspectiva, as variáveis em conjunto contribuíam

para a possível inflexão do sentido do trabalho na vida dos trabalhadores.

Sem perceber, a distância e o longo itinerário até o campo se

apresentavam como uma mediação entre a realidade em que eu estava

inserida e aquela em que os meus entrevistados se situavam. A linha de trem

constituía o caminho que separava e, ao mesmo tempo, ligava a estudante

de sociologia em São Paulo e o entrevistado na região fabril do ABC. Na

viagem a Santo André, a cada estação, eu ia me aproximando desse

universo operário sobre o qual me interrogava, até que de fato eu chegasse

ao destino certo.

Percebia em mim uma preocupação antecipada com relação aos

resultados das entrevistas. Se eles estariam em consonância com o objeto de

pesquisa. Isso remete à discussão sobre a preparação da pesquisa empírica.

Sobre essa questão, a primeira consideração importante é perceber que o

“campo” se faz com o “campo”. Ou seja, mesmo que haja uma preparação

do desenrolar da pesquisa, o trabalho empírico desenvolve-se no decorrer

das entrevistas, dos levantamentos sobre o universo da pesquisa.

Trocando em miúdos, o método da pesquisa empírica, não é outra

coisa se não a construção em que o saber se erige em conjunto com o fazer.

É justamente no campo que surgem novos e importantes questionamentos e

embates, não considerados no início da pesquisa teórica. E as novas

indagações dão corpo às investigações empírica e teórica.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

62

Durante essa pesquisa, imbui-me da ideia de que, em Ciências Sociais,

o trabalho de campo deve se processar como uma incursão na artesania do

pensamento sociológico, tal qual nos propõe Wright Mills. Nessa perspectiva,

a pesquisa empírica deve ser encarada como o espaço de investigação em

que o sociólogo pode exercitar sua “imaginação criadora”, deslindando fios,

tecendo e entretecendo seu trabalho de pesquisa.

O trabalho de campo torna-se um âmbito rico de aprendizado da

pesquisa social, se formos capazes de dar abertura aos embates que surgem

no fazer diário, e chance para que o nosso objeto de pesquisa nos interpele.

Com esse espírito, somos, a um só tempo, sujeito e objeto de investigação.

Chegando à casa do entrevistado, apresentava-me e explicava

novamente o objetivo da pesquisa. Frequentemente, o relato do entrevistado

tinha a esposa como testemunho, e admitia até “participação especial”39.

Ao longo das entrevistas, sempre me preocupava se, de fato, o

entrevistado respondia o que eu perguntava. As entrevistas eram longas,

embora o tempo com cada respondente fosse bastante variável: de 1,5 h

(uma hora e meia) a quase 3h (três horas). Por essa razão, tinha receio de

ter respostas evasivas, de esquecer perguntas importantes. Muitas vezes,

tinha a desconfiança de que as perguntas não haviam sido respondidas a

contento. Ficava tensa, inquieta.

Essa tensão revela um equívoco sobre o fazer sociológico. Era

necessário perceber a importância da reflexão sobre o material colhido. Para

que o trabalho empírico fosse bem aproveitado, a riqueza do campo, como

fonte de informação, tinha que ser atrelada à imaginação criadora do

sociólogo e à capacidade de ir além das ideias produzidas no senso comum,

tornando as impressões imediatas matéria-prima para a artesania sociológica

a que me propunha. 39Algumas entrevistas tiveram participação ativa das esposas dos pesquisados. Conforme se verá no capitulo seguinte, em que eu analiso o material recolhido, há relatos onde as mulheres opinam sobre o assunto abordado, dão seu testemunho ou fazem reivindicações, com ou sem consentimento de seus companheiros. Tanto assim, que considerei necessário situar a posição delas na realidade estudada, muito embora não houvesse nenhum entrevistado do gênero feminino e não fosse escopo da pesquisa interrogar sobre a questão de gênero. Pelo fato de perceber que tais relatos poderiam informar sobre aspectos que não se evidenciaram nas falas de meus entrevistados, deixei que tais questionamentos viessem à tona tentando avaliar os pontos de intersecção com o objeto estudado.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

63

Algumas questões me expunham ao risco de ferir suscetibilidades, dado

que interrogavam sobre a vida e o comportamento da pessoa em seu

trabalho e fora dele, com a família, abrangendo questões pessoais. As

perguntas abarcavam também o modo como essas pessoas enfrentavam os

problemas cotidianos e impunham que refletissem sobre situações ou

questões que talvez evitassem enfrentar.

De volta para casa, revia o material colhido, as anotações de campo,

impressões recolhidas, e antes de ouvir os registros gravados montei uma

tabela com as impressões preliminares de campo (ver anexo). Ali eram

registradas as questões sobressalentes, os detalhes do ambiente em casa e

minúcias capturadas no cotidiano dos entrevistados. Os ruídos que se faziam

presentes, os lapsos de memória, o badalar dos sinos, das campainhas, o

zunido do telefone, os momentos de pausa. Esses registros foram utilizados

na produção da análise mais acurada, feita a partir da transcrição das

entrevistas, dos tempos de fala e de silêncio.

Neste capítulo 1 reuni elementos que ajudam a construir um quadro

geral das transformações do mundo do trabalho e seus efeitos sobre a

situação das categorias que me propus a pesquisar: efetivos e terceirizados

na Petroquímica União e desempregados saídos dessa empresa. A partir de

então, faz-se necessária uma análise mais apurada sobre a questão que me

proponho a discutir, qual seja, se as mudanças das relações de trabalho

chegam a configurar a desestabilização do caráter das pessoas no âmbito

profissional. Avalio como se dá a inflexão de comportamento dos que atuam

nesse contexto de modificações na esfera do trabalho, no setor

petroquímico.

No capítulo 2, a seguir, são discutidas, de maneira aprofundada, as

biografias de seis entrevistados. Elas estão organizadas, duas a duas, em

três blocos: o dos efetivos na Petroquímica, o dos terceirizados, que atuam

nela e o dos desempregados. Assim foi possível estabelecer comparações

entre os que possuem características comuns e também entre as diferentes

categorias.

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

64

A experiência relatada pelos entrevistados ajuda a construir o quadro

de cada uma dessas realidades. Os pontos que se sobressaíram durante a

realização das entrevistas são esclarecedores da condição de trabalho e

situação de vida dos que se encaixam em cada uma das categorias.

No final de cada bloco de análise são reunidos outros relatos que

iluminam questões importantes, enfeixando uma análise mais detida sobre as

modificações da maneira de pensar, julgar e sentir dessas pessoas. Importa

saber a forma de manifestação dos novos padrões sociais no ambiente de

trabalho, diante de situações de risco e incerteza como a do desemprego

prolongado ou a reincidência desse fenômeno.

Uma de minhas hipóteses era de que, no momento atual, a expansão e

diferenciação das formas de desemprego como o desemprego de longa

duração, a recorrência ao desemprego, o desemprego por desalento, entre

outros, convivendo com formas de flexibilização do trabalho, influenciam e

moldam o comportamento de todos os que dependem de trabalho para

viver, mesmo dos empregados que gozam de relações de trabalho reguladas.

Esse quadro de incertezas tanto pode resultar em motivação para que

os indivíduos se adequem às novas demandas como em problemas nas

relações do trabalho e em outros campos como o da família. Suponho ainda

que a reação às situações de risco e insegurança pode se manifestar em

termos de uma desestabilização do caráter do trabalhador, o que se traduz

na ausência de regularidades de padrões de comportamento. Do meu ponto

de vista, não há desestabilização sem que se dê uma nova configuração dos

valores dessas pessoas, o estabelecimento de padrões de socialização em

moldes diferentes dos que se consolidaram em etapas anteriores. Isso

porque a crise de identidade de um sujeito já anuncia a formação de outra

referência identitária que oriente padrões de conduta. Por exemplo, o

enfraquecimento da identidade coletiva do operário deve indicar, no mínimo,

a mudança do sentido de coletividade desse sujeito.

Ainda que alguma das experiências relatadas afigure-se em

conformidade com o que denomino desestabilização, tal situação não deve

ser vista como um processo linear ou como determinação, na lógica de

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Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo

65

relação de causa e efeito, mas como uma possibilidade entre outras na

situação vivenciada. Deve ser vista como uma das configurações possíveis de

comportamento, em contextos específicos como aqueles em que se faz

presente o desemprego estrutural, a flexibilização das relações de trabalho, e

situações que geram insegurança às pessoas no ambiente de trabalho.

Ainda que se leve em conta a importância do âmbito profissional para a

formação do caráter de uma pessoa, há outros, como a família e a escola,

que contribuem significativamente para a assunção de comportamentos e

definição de identidade de uma pessoa. Daí a importância de discutir as

experiências desses indivíduos nos diversos campos de sua vida, mesmo que

a pesquisa tenha seu foco nas relações de trabalho. Por outro lado, a

ausência de indícios de que houve um processo de desestabilização do

caráter não anula a validade das investigações e da avaliação dos relatos a

esse respeito. Passemos ao capítulo II, onde situam-se o perfil e a análise

dos entrevistados.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

66

Capítulo II - A dinâmica das transformações do trabalho

Efetivos da Petroquímica União Fiz o sorteio das pessoas que seriam convidadas a participar da

pesquisa e tive um problema, logo que comecei a fazer contato com os

funcionários da empresa. Depois de concordar em participar, um funcionário

perguntou-me se a empresa havia dado o consentimento para a realização

do trabalho. Expliquei que obtivera permissão para realizar as entrevistas, o

que poderia ser confirmado com o RH. Em vez disso, ele falou com o chefe

de seção responsável por sua área de trabalho, o que causou uma série de

mals entendidos, antes de poder prosseguir.

Nem sempre consegui encontrar as pessoas na empresa. Muitas vezes,

elas estavam escaladas pra trabalhar em outro período: ou em outro horário,

ou em outro dia da semana – no caso das pessoas que estavam de folga.

Além disso, algumas estavam em férias. Como dispunha também do telefone

residencial, arrisquei contatá-las em sua casa. Isso aconteceu somente uma

vez.

Apesar de ter conseguido realizar essa entrevista, depois dessa

experiência, decidi não entrevistar pessoas que estivessem em seu período

de descanso – férias ou folgas. Meu entrevistado parecia estar

desconfortável; tive a impressão de que ele supunha que a Petroquímica

União encomendara a entrevista. Por isso, busquei falar com as pessoas

somente pelo telefone do trabalho, o que tornou o processo mais demorado

devido aos freqüentes desencontros.

Com essa categoria de pesquisados, todas as entrevistas ocorreram

na residência dos participantes. A maioria na região do ABCD,

prioritariamente em Santo André ou em regiões vizinhas, como São Bernardo

e Ribeirão Pires.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

67

Perfil – os escolhidos da “arca do emprego” Antes de mostrar o perfil dos entrevistados da categoria dos efetivos da

Petroquímica União, gostaria de dar algumas características da mão-de-obra

do setor químico-petroquímico, entre a década de 80 e meados de 90,

quando ocorreu o processo de reestruturação.

O gênero é tido como um critério constitutivo da mão-de-obra do

complexo-químico petroquímico, desde a origem de formação desse setor,

cuja mão-de-obra é predominantemente masculina.

De acordo com Guimarães, mesmo no período de enxugamento do

pessoal, os homens representaram continuamente de 80% a 90% da mão-

de-obra. Baseada nesse fato ela conclui que,

se a condição de gênero não funcionou como elemento de

seletividade ex-post, funcionou de forma decisiva como

elemento de seletividade ex-ante, barrando, pura e

simplesmente, o ingresso de mulheres num mundo

ocupacional que se constituiu como marcadamente

masculino, por estar fundado seja em constrangimentos

simbólicos (posto representar-se como um “trabalho de

homem”, por seus requerimentos de “coragem”, pelo risco a

que expõe os que nele se engajam), seja em

constrangimentos legais (como o impedimento de

incorporação feminina em jornadas de turno contínuo,

regime de trabalho característico do core da força-de-

trabalho no eixo petróleo-petroquímica) (Guimarães, 1998:

42)

Como dito antes, a idade é outro elemento que constitui fator de

seleção da mão-de-obra nesse setor. Apesar de, hoje em dia, as empresas

preferirem mão-de-obra mais jovem, entre 80 e 90, houve um aumento da

faixa-etária dos empregados no setor químico-petroquímico40. Um terceiro

40 Sobre isso, Guimarães mostra que “No que tange à composição do emprego por idade houve, entre 1986 e 1994, um aumento significativo da idade dos ocupados, tanto no parque químico paulista, quanto no baiano. E, ao que parece, este aumento significativo

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

68

fator fundamental na seletividade dos trabalhadores do setor é a

escolaridade, utilizada como critério, durante o processo de

reestruturação.41 No período estudado, houve um aumento significativo do

nível de escolaridade. No entanto, importa destacar que esse fator não teve

correlação com o “redução da mão-de-obra”, dado que o nível educacional já

funcionava como um critério de inclusão. Ademais, com o passar do tempo,

a escolaridade continuou sendo, cada vez mais exigida. Isso posto, passemos

ao perfil dos entrevistados.

Perfil dos entrevistados

Foram realizadas sete entrevistas, e desse total, considerei as cinco

mais importantes, no sentido de serem mais ricas em informações e me

oferecerem mais subsídios para a realização das análises.

Todos os entrevistados efetivos na Petroquímica União eram homens,

casados e, com exceção de um deles, todos os outros têm filhos. Grande

parte tem mais de 15 anos de empresa. O menor tempo na companhia é de

14 anos e o maior é 30 anos. Todos estavam na empresa na década de 90,

durante o processo de reestruturação.

Os respondentes têm, no mínimo, o segundo grau completo. Quatro

deles têm curso técnico e somente um tem curso universitário concluído. De

certa forma, essas pessoas sentem-se valorizadas, pelo fato de terem

permanecido na empresa após o processo de reestruturação e privatização.

Afinal, depois da drástica redução do quadro de funcionários42, os que fazem

parte do grupo selecionado para continuar na empresa tendem a perceber

sua permanência como um sinal de distinção.

esteve, em qualquer das situações, correlacionado com a massiva dispensa de empregados. Em São Paulo, a participação das faixas até 29 anos caiu (de 45,5% para 37,1%), enquanto a participação das faixas acima de 30 anos variou no sentido oposto. E, vale notar, estas mudanças se concentraram nos mesmos anos em que o parque paulista eliminou boa parte de seus postos de trabalho.” (Guimarães, 1998: 43). Mais adiante, veremos como isso se aplica ao caso estudado. 41 Para saber mais sobre esse processo, veja (Guimarães, 1998). 42 Conforme Schutte (2003), entre 1989 e 1999, o total de funcionários do parque petroquímico brasileiro passou de 29.223 para 13.960, uma queda de 52%. No caso da Petroquímica União, o quadro é semelhante. De acordo com o diretor do Sindicato dos Químicos do ABC, o total de funcionários diretos passou de 1.200, em 1989, para cerca de 550, em 2000, uma redução de 54% do quadro de efetivos.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

69

Todos, sem exceção, encaram o trabalho feminino como suplementar

ao masculino. Talvez o fato de a maioria se ocupar de atividade de turno

faça com que o papel das mulheres em casa pareça mais importante. A

intermitência da participação do provedor da família torna necessária a

permanência regular da mulher em casa, não só para organizar o âmbito

doméstico como para assegurar boa educação aos filhos.

Nas entrevistas a seguir busquei lançar luz sobre as questões que cada

respondente destaca. O roteiro utilizado para prospectar informações foi o

mesmo (para detalhes, veja o roteiro em anexo). No entanto, a forma de

responder é peculiar a cada trabalhador. Sem querer, eles acabam dando o

tom das entrevistas e elucidando as questões que surgem de sua situação de

trabalho. Teoricamente, se a realidade é a mesma. Todos trabalham na

Petroquímica; no entanto, para além do fato de atuarem em áreas distintas,

cada um interage com o contexto de trabalho de uma forma peculiar.

Procurei identificar aquilo que dá notícia dessa singularidade, ao mesmo

tempo que busquei encontrar um eixo comum, no qual gravitassem todos os

trabalhadores.

As questões que aparecem interrogam sobre o cotidiano dessas

pessoas, seu modo de agir e pensar o trabalho. Apesar da singularidade de

cada um em responder, há aspectos mais importantes para uns do que para

outros. Adiante será fácil perceber como alguns temas são mais longos em

uma entrevista do que em outras. São as questões levantadas por mim, mas

salientadas por eles que ajudam a realçar o desenho dessas trajetórias

profissionais.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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Análise das Entrevistas

Fazendo e refazendo a permanência no emprego – o

mito de Penélope “Eu vejo aquele rio a deslizar

O tempo a atravessar meu vilarejo

E às vezes largo o afazer

Me pego em sonho a navegar

Com o nome paciência

Vai a minha embarcação

Pendulando com o tempo

E tendo igual destinação

Para quem anda na barcaça

Tudo, tudo passa

Só o tempo não...”

Chico Buarque,

Xote de navegação/ As cidades

Bira: 46 anos, casado, dois filhos. Tem curso técnico na área química e

atua na Petroquímica União há 16 anos, onde exerce a função de operador

petroquímico. Antes, trabalhava em uma empresa metalúrgica, onde

conheceu o trabalho de turno. Ao ingressar na PQU, realizou o grande sonho

de atuar no setor petroquímico. Mora em Ribeirão Pires, no alto de um

monte, de onde vê parte da cidade, com tranqüilidade.

Bira é um homem de estatura alta, ombros largos, corpo robusto. Tem

cabelos levemente enrolados e ralos, que prenunciam a calvície. Os olhos

vivos e escuros expressam a firmeza de seu pensamento. É com voz pausada

e tranqüila que discorre sobre sua trajetória pessoal e esboça suas

impressões, ideias e opiniões sobre o mercado de trabalho.

O entrevistado nasceu em uma família numerosa, tem 9 irmãos. A

perda do pai, aos 9 anos de idade, e o fato de sua família contar com parcos

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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recursos, obrigaram-no a trabalhar muito cedo. Como diz: “Não podia

ultrapassar, não tinha aquela disposição "ah mãe, me dá o dinheiro". E meu

pai morreu eu tinha 9 anos, então eu estudava. Em época de férias de escola

arrumava algum biquinho para ter algum dinheiro...não ficava com dinheiro

da minha mãe.”

Coerência e equilíbrio marcam essa entrevista em que o respondente

avalia as limitações a que um trabalhador de turno está sujeito, no setor

petroquímico.

Trajetória de trabalho

Bira atuou fundamentalmente no ramo industrial. Passou do ramo

metalúrgico para o químico e depois para o petroquímico. Demonstra que a

ida para o mercado petroquímico foi a realização de um sonho. O campo da

química é interessante para ele, que demonstra satisfação em atuar nessa

área.

“(...) Eu ouvia falar na Petroquímica, 'eu tenho que entrar nessa

empresa', prestei concurso na época, em 88, tive que fazer cursinho

preparatório. Depois, foi na época...// como era estatal, dependia do

governo para liberar as admissões. Ai fiquei um ano esperando a admissão, e

quando entrei o serviço...// é gostoso você trabalhar na área química, é

interessante devido aos processos, reações químicas. Se bem que eu já tinha

trabalhado antes na Brasifil, que também era do ramo químico, fazendo a

mesma coisa.”

Mesmo assim, sabe que o trabalho em turno limita sua vida social,

tanto com a família quanto com os amigos. Contudo, considera que essa é

uma característica intrínseca ao trabalho, assim como o são os riscos a que

se expõe no exercício da função. Apesar desses inconvenientes, não reclama

da profissão.

Demonstra segurança na atividade que desenvolve e confiança no

futuro, embora pondere que a questão do desemprego é um risco a que está

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

72

exposto todo trabalhador. É um dos poucos entrevistados que valorizam,

com veemência, o papel do sindicato na luta pelos direitos trabalhistas.

Mesmo estando conciliado com sua escolha profissional, consegue

analisar o processo de reestruturação e o de privatização com crítica e

lucidez, e reflete sobre o desemprego e outras questões que interpelam a

vida do trabalhador. Ainda que não tenha vivido a experiência do

desemprego, esforça-se para falar dessa realidade, no contexto atual,

olhando-a como situação que desorganiza a vida das pessoas que dependem

de salário pra sobreviver.

Competitividade no mercado de trabalho

Bira faz observações preciosas sobre a realidade de trabalho no

mercado competitivo. Com suas ponderações, dá-nos matizes que permitem

entender como as transformações no mercado de trabalho podem gerar

competição, em diferentes contextos.

Essas questões aparecem a partir do momento em que questiono se

houve mudanças no espaço de trabalho. O que busco saber é se houve

mudança de layout, ou qualquer tipo de alteração no espaço físico, que

exigisse ou induzisse a mudança de procedimentos. O que está por traz de

minha interrogação? Quero saber como se comporta e como se sente meu

entrevistado em meio a essas transformações.

O respondente disse-me ter mudado de cargo e transitado entre

diferentes áreas, duas vezes: Passou de operador estagiário a operador 1 e

depois a operador 2. Perguntei como havia sentido a transição e se tinha

surgido insegurança. Sua resposta:

“Bom, insegurança nem tanto, aumentou a responsabilidade. Já é um

outro serviço, você comanda pessoas, você já tem equipamentos caros que

ficam sob seu controle, e alguma coisa errada que você faz você gera

prejuízo. Não sei se quando você passou com o trem e viu um lugar saindo

um foguinho, então aquilo lá quando tá queimando é sinal de prejuízo,

porque a gente tem que manter a fábrica. Se tá queimando a matéria prima

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

73

e não está gerando lucro, então a responsabilidade aumenta muito quando

você vai para operador 2. E o impacto de segurança, não tive tanto porque

ao longo desses anos eu pegava interinidade, e mesmo como operador 1 eu

trabalhei muito no painel como interno, na função de 1 fazendo a função de

2. Então quando eu fui assumir a função 'não agora eu sou 2' não teve

aquele impacto de insegurança de estar na função porque já tinha passado

pelo processo.”

Bira contou sobre sua rotina de trabalho, o que ela exige e acarreta, e

como se sente. Revelou que a atividade que exerce, embora lhe propicie

satisfação, requer controle contínuo sobre o processo e, por isso, limita sua

liberdade. Deixa implícito que haver certa tensão intrínseca à natureza do

trabalho.

“Para quem trabalha na área é gostoso, você sente o sentimento de

estar assim, a gente sai na área não pode estar, porque para eu sair da

minha função pra ir na área ver como está as coisas, tem que ter uma

pessoa no lugar, não posso abandonar o serviço, então eu sinto uma

limitação de liberdade.

Você não pode circular, tem que estar de olho no painel, às 8:00 horas

a gente tá lá. Tomar um café, você vai e volta é coisa rápida. Agora pra você

ir almoçar, jantar ou ir para a área você tem que ter uma pessoa pra te

substituir então você fica com limitação da liberdade sua de tá controlando.

Se eu vou lá fora e voltar você tem que estar sempre avisando pra estar te

substituindo no painel.”

É importante ressalvar que ele fala da tensão, própria do tipo de função

que executa, sem dar a isso uma conotação de queixa ou reclamação. Até

porque Bira trata como “natural”tal situação.

A partir da discussão sobre as mudanças provocadas pela alteração de

funções, enveredamos pelo tema da reestruturação. Puxando pela memória,

meu entrevistado indicou que, na Petroquímica, esse processo teve início em

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

74

1990, mais especificamente em 1992, e que ele se desdobrou em várias

etapas. Sobre isso, disse o seguinte:

“Toda mudança sempre gera insegurança, porque as empresas elas,

esses processos que elas adotam, claro, é para se perpetuar, visa lucros,

porque ninguém...// o investimento vai tá melhorando a qualidade do

trabalho, sim, mas se não gerar lucro ela não faz esse investimento, e

quanto a esse investimento sempre reduz pessoas. Então sempre gera

insegurança com relação a todos, há esse comentário entre as pessoas.”

O primeiro aspecto que chama atenção é a afirmação de que toda

mudança gera insegurança ao trabalhador. E dou destaque a isso, por ser

uma ideia expressa por um empregado que demonstra estar adaptado às

dificuldades e desafios impostos pela gestão da empresa e pelo mercado de

trabalho. Além disso, está o fato de essa mudança ser motivada pela

necessidade de a empresa perpetuar-se, o que somente se realiza mediante

a ampliação dos lucros.

De sua perspectiva, os investimentos das empresas não têm o objetivo

primordial de garantir a qualidade do trabalho, mas o lucro. Esse

privilegiamento do material sobre o humano gera um certo estranhamento,

talvez porque meu entrevistado esteja comparando o volume de

investimento realizado com o tanto de gente que permanece, ou com o valor

dado às pessoas na empresa. Por isso ele diz: “se não gerar lucro ela não faz

esse investimento, e quanto a esse investimento sempre reduz pessoas”.

Fala isso como quem diz, após o enxugamento, a equipe de trabalho

ficou reduzida, “diminuída” em tamanho e importância. Bira parece reclamar

da condição do trabalhador, talvez pudesse dizer da “classe trabalhadora”?43,

43 Marx e Engels, com base na sociedade capitalista do século XIX, definem classe por “um tipo crítico de relações que une os aspectos material, ideológico e político de uma sociedade”. As classes sociais são formadas no interior de uma determinada estrutura social, dizem respeito a uma realidade social e econômica específica e, têm como base o antagonismo entre proprietários e não proprietários dos meios de produção (apud Collins, 1994: 62-64). Tal condição, combinada com as experiências comuns de um determinado grupo, pode resultar numa ação organizada que, enquanto tal, estará respaldada em posicionamentos políticos e ideológicos específicos. A consciência de classe pressupõe a pertença a um determinado grupo social, que se consolida por meio de experiência comum e torna viável a ação organizada. Nesse sentido, enquanto categoria de classe, o proletário é determinado por suas condições sociais, econômicas, materiais gerais e

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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em tempos anteriores. Hoje em dia, a realidade de trabalho é tão complexa

que deixa pouco espaço para a criação de uma identidade de classe. Em

Mundos do trabalho, Eric Hobsbowm condiciona a existência de classes

sociais à de consciência de classe:

Uma classe, em sua acepção plena, só vem a existir

no momento histórico em que as classes começam a

adquirir consciência de si próprias como tal.” (...), no

entanto pondera que a “ausência de consciência de classe

no sentido moderno não implica a ausência de classes e de

conflitos de classe (2000:41).

Para explicitar sua tese, o autor baseia-se na experiência de países

desenvolvidos como Inglaterra, França e EUA, argumentando que há uma

consciência de classe de cunho nacional cujas raízes se ancoram no controle

crescente da economia e dos assuntos sociais pelas nações. Não chega a

considerar que: 1 – a primeira fase da industrialização daqueles países

coincide com o período de afirmação das identidades nacionais (sobretudo

na Europa), que baseou-se, entre outras coisas na solidariedade e

reciprocidade dos trabalhadores industriais, propiciado a formação de

consciência de classe. Não por acaso, é naqueles países que se vê o controle

sobre os interesses nacionais; 2 – o processo de industrialização nos países

periféricos difere substancialmente do ocorrido nos países / nações

desenvolvidos. Sobre o desenvolvimento das economias industriais ideológicas. Suas ações refletem as determinações econômicas e podem estar pautadas pela consciência de classe (In Fernandes (org.), 1989). Conforme mostram alguns autores, o conceito marxiano de classe sozinho é insuficiente para explicar, compreender e interpretar as diversas configurações sociais da atualidade, “as novas maneiras de viver revelam possibilidades dinâmicas para uma reorganização das relações sociais, que podem não ser adequadamente compreendidas por Marx e Weber” (Beck & Beck-Gernsheim, 2002: 36). A divisão de classes entre proprietários e não proprietários, presente no modelo marxiano, não explica conflitos importantes fundados nas diferenciações sociais e devidos à pluralidade de sujeitos que convivem com interesses, opiniões e ideologias próprios, nas diversas instituições sociais, entre as quais, as empresas. Assim, parece arriscado o uso do termo “classe trabalhadora”, no sentido de que não é possível falar de uma experiência única do trabalhador. Pelo contrário, faz-se necessário considerar que o mundo do emprego e do trabalho se configura a partir de realidades complexas, que fazem surgir formas identitárias específicas, e que tendem a mudar continuamente.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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periféricas, téoricos como Giovanni Arrighi (1997), Celso Furtado (1992),

Fernando Henrique Cardoso (1993), Chico de Oliveira (1988), entre outros,

erigiram um arcabouço teórico específico com o objetivo de explicar aspectos

determinantes da estrutura do capitalismo nos países em desenvolvimento; e

ligado a esse fator, 3 – a influência dos conglomerados, das transnacionais e

das grandes empresas sobre o processo de modernização e sobre a política

econômica dos Estados-nação e sua atuação, enquanto agentes políticos,

sobre os interesses desses países, em âmbito macro, e sobre os interesses

dos diferentes atores econômicos, entre os quais estão os empregadores e

os trabalhadores (em escala menor). A esse respeito devem-se destacar os

processos de abertura comercial, privatização e desregulamentação

econômica, que resultaram na expansão da participação do capital externo

nas empresas instaladas naqueles países entre os quais o Brasil e,

consequentemente na limitação, ainda maior do controle do Estado sobre os

assuntos nacionais (Schutte, 2003). Nesse sentido, a tese de Hobsbowm

deixa de explicitar importantes fenômenos sobre as transformações do

capital e as mudanças de trabalho nos países em desenvolvimento. Bira faz

crítica sem a consciência de fazê-la. Ele busca nos tempos d’outrora a

lembrança de quando a equipe de trabalho era maior e com isso vêm à tona

os sentimentos que o afligiam, durante a reestruturação:

“'Automatizando como é que vai ser, será que vão manter a gente?' E

houve, de fato houve, porque quando eu entrei lá, a gente tinha 18 pessoas

no turno; hoje a gente tem 13 pessoas, isso graças à automatização. E

houve época que chegou a ter mais pessoal, antes de 88 chegou a trabalhar

com 24 pessoas noturno, isso na olefinas44 no meu turno.”

44Trata-se de uma das quatro divisões do setor de produção da empresa. Na PQU elas são denominadas como segue: Olefinas, Aromáticos, Resinas / PIB (Polibuteno) e Utilidades – Ligado ao sistema de produção de energia. Esses núcleos fabricam Etileno, Polibuteno, Propileno – G . Polímero, Propileno – G . Químico (Benzeno) e Resíduos Aromáticos, entre outros. Os produtos são vendidos à indústria de transformação (de segunda geração), que produzem matérias-primas para a indústria de terceira geração, onde se incluem as fabricante de embalagens, Cadeia Plástica, Pneus, Artefatos, Indústria textil, etc. (Petroquímica União em Comunidade/edução dez/2002 e http://www.pqu.com.br).

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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Depois, dá exemplos de como a mudança do sistema de produção, de

pneumático para analógico, gerou tensões e insegurança aos trabalhadores,

uma vez que ocasionaram redução do quadro de funcionários:

“Todas as mudanças de reengenharia, a automatização, quando se

efetivou mesmo houve uma redução de pessoas. Essa mudança foi depois de

uma parada para manutenção, aí foi quando o pessoal foi tudo, porque antes

o controle era na área, tudo pneumático, aí quando passou para analógico,

eletrônico, o pessoal de 96 foi tudo para a sala de controle, o CCO, que é

tudo digital. Calhou também que quando houve uma mudança de diretoria,

porque a petroquímica também estava mal das pernas, gastou-se muito na

parada de manutenção e aproveitou também para ter um enxugamento.”

Ainda, mostra que a insegurança desse período - “ah, todo dia uma

expectativa” – exigia mais empenho e dedicação dos funcionários na

execução de tarefas e em superar seus limites. Trocando em miúdos, o

resultado foi a mudança de comportamento: “Sim a gente tenta tá

procurando uma outra instrução, tá preparando e formando, pra estar

prestando um melhor serviço, e aí você faz esse curso a pessoa já te vê de

uma outra forma.”

Essa insegurança também decorre da consciência do excesso de mão-

de-obra no mercado de trabalho. Ele fala com clareza dos impactos da

realidade do mercado de trabalho, “o mundo lá fora”, que tem como uma

característica central a escassez de emprego e a perda da qualificação dos

empregos. Nesse contexto:

“Os impactos... é essa insegurança do dia-a-dia, a pessoa mesmo

desempenhando bem a sua função você tem aquela insegurança de

desemprego e até em relação com as outras pessoas a gente nota essa

insegurança, do stress no dia-a-dia com relação ao trabalho, com as

exigências de você estar desempenhando o dia-a-dia seu trabalho.” (Mais

adiante, voltaremos a falar a respeito da influência do desemprego sobre o

comportamento das pessoas no exercício de suas funções).

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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O respondente também indica que o empenho dos funcionários em

melhorar a qualidade de seus serviços traz implicações para a relação de

trabalho: “Você tem que estar integrado, realmente, serviço pra todo mundo,

você tem que estar lendo, fazendo procedimento, e tá sempre dependendo

de outras pessoas, que às vezes você não conhece o serviço de outra área,

tem que estar integrando, exatamente estar fazendo procedimento, tem que

estar buscando informações então há uma integração maior entre as

pessoas, entre pessoas e setores.”

No entanto, essa integração entre os trabalhadores de diferentes áreas

parece contradizer o processo competitivo que a expectativa do desemprego

gera. Por isso, questiono como é possível que essas duas situações se

harmonizem. Ele responde fazendo distinções entre o que cada processo de

mudança gera. Há as que ele considera mudanças estruturais e aquelas

decorrentes da necessidade de certificação da empresa; cada uma exige do

trabalhador maneiras bem distintas:

“Com relação às mudanças estruturais que houve, de reestruturação,

reengenharia, aí é uma competição individual entre as pessoas; agora, com

relação à certificação, que eles queriam ganhar o prêmio da qualidade, então

aí há uma integração, porque todos estão buscando o mesmo objetivo, então

não há competição, há uma integração. Agora quando há uma

reestruturação, aí sim há uma competição porque...// 'deixa eu fazer a minha

parte' pra mostrar que.”.

Nesse contexto, meu interlocutor dá exemplos que ilustram bem o

comportamento competitivo entre os colegas de trabalho. E não esquece de

destacar que, na avaliação profissional, nem sempre a eficiência do

empregado no exercício da função é o que mais conta. O contato pessoal

com a chefia conta como um aspecto importante. Por isso, às vezes os que

não “fazem tanto são mais valorizados” :

“Há comportamentos assim, pessoas que faz um negocinho e quer que

todo mundo note. E às vezes você faz alguma coisa, a pessoa viu que você

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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fez, então não há necessidade de você querendo mostrar tudo aquilo que

você faz. Pelo menos os supervisores, a chefia, tem essa sensibilidade de

estar vendo. É claro que em toda empresa tem um supervisor, uma chefia

que tem uma maior afinidade com o outro, aquele que não faz tanto é mais

valorizado do que aqueles que fazem.”

De acordo com o entrevistado, numa situação de competição, ter bom

conceito não adianta; às vezes, as amizades com pessoas influentes definem

a permanência no emprego. Entretanto, faz questão de destacar ser

fundamental preservar certos “limites morais” de respeito aos colegas nessa

seara de competições. Conforme diz: “(...) É bom você ter as amizades, e

sempre entre eles mesmo, 'você é um bom operador', o ideal é você estar

sempre bem com as chefias e até mesmo junto, mesmo que tá havendo

competição, procurar fazer a parte, não querer subir nas costas dos outros

para se destacar.”

Quando perguntei se ele já havia vivenciado situações em que as

pessoas “passam por cima das outras”, para permanecerem na empresa,

falou: “E isso sempre acontece, pessoas que querem pisar nos outros, ou

então, faz um serviço, não foi bem ele que fez e assume que foi ele; então,

sempre, isso existe, até hoje sempre existiu e sempre vai existir.”

O entrevistado demonstra capacidade para adaptar-se a situações de

alta competitividade, que, em parte, justifica sua permanência na empresa.

Para ele, as dificuldades aparecem como desafios a enfrentar, como

acicate, estímulo, e, ao mesmo tempo, são uma forma de crescimento e

aprendizado profissional e pessoal. Diz também que mudou a forma de se

ver depois de ocorridas as transformações na empresa:

“Sim eu comecei ...// Mesmo essas cobranças você vai crescendo, vai

superando, independentemente se você está mudando de cargos ou não,

está aprendendo e depois faz uma análise. Toda reestruturação é até bom

para a gente mesmo com relação a estar aprendendo mais, a estar buscando

informações.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

80

No entanto, é fundamental compreender que os graus de

adaptabilidade, em ambientes onde há alta competição, são variáveis de

acordo com os recursos de que as pessoas dispõem. Também é importante

considerar que, como dito antes, no processo de seletividade nas empresas

petroquímicas, durante a década de 90, conforme Guimarães (1998),

características adscritivas como idade e sexo, juntamente com grau de

escolaridade, contaram como critérios fundamentais para a definição dos que

permaneceriam nas empresas, durante o processo de enxugamento. Além

disso, é essencial levar em conta que as habilidades profissionais e

competências de Bira certamente constituíram um fator de escolha para que

ele continuasse na empresa.

Privatização e corte de funcionários

Durante todo o relato, Bira demonstrou conhecer e ter domínio do que

falava. Os temas do roteiro, foram aos poucos sendo dissecados, mediante o

relato de quem sabe do assunto. Conhece bem a realidade petroquímica, sua

escolha profissional, por paixão. Fala com clareza do processo de

privatização, da forma como se processou e de suas conseqüências, para a

empresa e para os trabalhadores.

Ele se antecipa em informar que antes havia muitos funcionários e

depois segue dando outras informações que respeitam à própria empresa;

num plano macro, fala sobre o modo como o processo de privatização se deu

no Brasil:

“Sim, quando do processo de privatização tinha muitos funcionários e

foi essa reestruturação depois daí, veio uma pessoa na época do Collor em

90, ele veio mesmo para privatizar, enxugar, fazer investimentos para

depois tá entregando a empresa. Os investimentos, eu vejo assim, nas

privatizações brasileiras, eles falam que os investimentos que depois que

privatizou que as empresas dão lucro. Dava lucro antes, como ia tudo para o

Estado, não se dava muito prestação de conta do lucro, e muitos

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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investimentos são feitos antes, prepara-se as empresas para

privatizar, equipamentos novos já são comprados antes, daí quando

entra o capital privado ele não tem que arcar, então eles...”

Reparo de perto sua assertiva: “privatizar, enxugar, fazer investimentos

para depois tá entregando a empresa”. Aqui meu interlocutor tece, de

uma só vez, algumas críticas à privatização. Quando emprega o termo

entregar ele fala como se se tratasse da venda de um objeto ou mercadoria

que se pode ter nas mãos, e quase confere a esse objeto a qualidade de ser

móvel. Como um pacote de embrulho: Um livro, um pacote de produtos de

beleza. Parece não se tratar de uma empresa, de capital fixo. Além disso,

também dá a conotação de algo que se está cedendo, sem que se reconheça

seu justo valor. Por último, seu tom de sugere que, do ponto de vista

político, a venda teve um caráter, de certa forma, entreguista: o Estado

perdeu seu patrimônio.

Em seguida, pôs-se a dar detalhes sobre a privatização brasileira, em

geral. Sublinha que, desde o início, antes de serem privatizadas, muitas

empresas, inclusive a Petroquímica, já eram lucrativas só que, “como os

recursos iam para o Estado”, não se fazia a prestação de contas do

montante. Seu argumento opõe-se à crença de que toda empresa estatal dá

prejuízo.

A antecipação dos investimentos seria um artifício utilizado para

valorizar a empresa a ser vendida. No entanto, como ele mesmo observa,

isso poupa o futuro comprador de fazer aportes vultosos de recursos quando

a empresa já está em suas mãos. Assim, o custo de manutenção da empresa

fica relativamente menor do que no período em que ainda era estatal. Com

essas asserções, ele revela seu ponto de vista. Dá a impressão de colocar na

balança implicações advindas do processo de privatização. De um lado, as

conseqüências para a vida do trabalhador – insegurança, medo, competição,

stress – e, de outro o impacto na empresa – os investimentos, a renovação

das máquinas, o enxugamento, o aporte tecnológico, o aumento em

competitividade, a expansão do lucro e a garantia de permanência no

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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mercado. Quem olha os pratos da balança tem a ideia de para onde ela

pende, qual o lado que desce. Outros exemplos sobre o processo de

privatização são pinçados num quadro geral do processo:

“minha posição geral, vai, das telefônicas; não é esse o número, mas

para dar o exemplo, ela gasta 10 milhões de dólares para comprar matéria,

insumo, para reposição, e antes da privatização ela gastou 30 milhões. Vai,

então ela comprou, fez aquele estoque, pra quando vir o capital privado não

teria que estar gastando. Então, são coisas, garantia de lucro, que nem a

gente vê aí das elétricas, das telefônicas, que quando foi privatizado o

governo deu uma garantia de lucro, isso daí não existe, se você vai....// e

mesmo se ela não dá lucro, a garantia de lucro é os aumentos. Quando

privatizou, foram privatizadas, foi contado para o povo que as tarifas iam

baixar, e não é verdade, as tarifas de telefônica, eletricidade, só pioraram,

aumentaram.”

Insisti para que ele desse mais detalhes de como a privatização

impactou as relações entre os trabalhadores. Explica que as principais

medidas resultaram em corte de funcionários:

“Sim, foi a mesma coisa, quando privatiza sempre 'vem aqui, tem muita

gente, vamos cortar pessoas'. E de fato houve...., a princípio, o corte foi na

própria, quando já era capital privado, a reestruturação que houve, que nem

eu falei, os investimentos para a reestruturação os investimentos para

automatização sempre....”

Destaca mais uma vez que o grosso do investimento foi feito

previamente e que esses recursos foram direcionados para a modernização

de tecnologia e automação. Além disso, indica que investimento em

produção não significa, necessariamente, aumento do pessoal:

“É na prévia, e sempre se investe para automatizar, aí sobre pessoas,

então corta. Se bem que agora, chega em um estágio de automatização que

não tem como estar cortando mais, então, você melhora a produção, você

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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produz mais com o mesmo número de pessoas, fazer um analogia, igual é

feito nas automobilísticas como na petroquímica: investe para você produzir

mais e com o mesmo número de pessoas. Investimento em produção, você

aumenta produção, mas não significa um aumento em postos de trabalho.”

Mas não foi só durante a privatização, ele informa que as paradas45 da

empresa se dão em meio a um processo de muita tensão, envolvem muita

responsabilidade e que, com o excesso de cobranças, muitas pessoas

perdem o equilíbrio, não suportam as pressões e, devido a atritos com a

chefia, acabam sendo dispensadas:

“Sempre depois das paradas é sempre quando ocorre os cortes, mesmo

independente, que a gente tem essa experiência, independente se era

previsto uma redução, isso não é redução, depois dessas paradas tem uns

cortes, é redução de pessoas, que é devido a esses atritos que tem em

época de parada.”

Embora demonstre sua adaptabilidade ao clima de tensão no trabalho,

tanto no que se refere à realização das atividades de alto risco, quanto no

que se relaciona à experiência de trabalho em períodos onde a

competitividade se acirra, como durante a privatização, a reestruturação e

nas paradas, ele deixa claro que é difícil superar essas situações. Elas exigem

mais empenho dos trabalhadores, uma habilidade a mais em lidar com o

stress, além do fato de ser necessário exercer bem sua função.

Depois do processo de enxugamento, mesmo com a longa experiência

de Bira, e considerando que ele deseja continuar desenvolvendo sua carreira

no setor petroquímico, as perspectivas não são promissoras. A automação da

fábrica deu-se tendo por base uma estrutura de produção bastante reduzida:

7 operadores de campo, 4 operadores de painel, um operador 3 e 1

supervisor. Com isso, mesmo que ele tencione subir de cargo, as chances

são limitadas, se levarmos em conta que a rotatividade do setor é baixa e

45 Como a empresa trabalha com o sistema de produção contínuo, depois de um período de funcionamento, o sistema de produção de toda fábrica é interrompido para realizar a manutenção. Esse processo é denominado parada de manutenção. Para mais informações, consultar Guimarães (1998) e Rizek (1994).

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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que as pessoas permanecem durante muitos anos exercendo a mesma

função. Conforme ele mesmo diz:

“Metas dentro da empresa sim , porque tem outros cargos, como

operador 3 e supervisor. Só que é difícil, porque principalmente hoje nós

somos 7 operadores de campo, 4 de painel, um operador 3 e um supervisor;

então, vai afunilando, geralmente os cargos, às vezes, leva muito tempo

para aparecer a possibilidade de uma outra mudança. Às vezes, você pode

estar até preparado, mas não tem a vaga; você fica lá, naquela mesa.”

Além disso, o fato de só existirem mais três empresas petroquímicas

limita suas chances de assumir uma vaga, com cargo superior, em outra

empresa do ramo. Conforme ele diz, raramente aparece uma vaga:

“Lá dentro mesmo, é porque o próprio mercado de trabalho hoje, na

nossa função, o mercado de trabalho aí fora não tem opção, não aparece

vagas, teria que ter outras petroquímicas, ou outras refinarias, para você ter

opção de trabalho, então a opção de mudança é interna.”

Significado do trabalho e influência do desemprego no

cotidiano Um dos momentos mais tocantes dessa entrevista foi quando

começamos a abordar a questão do significado do trabalho. Pergunto a Bira

sobre o assunto, que responde:

“Hoje a pessoa que não tem trabalho é marginalizada perante a

sociedade. Eu acho que o trabalho é tudo, com relação até mesmo à

estrutura familiar. Se a pessoa ficar sem trabalho hoje, as separações,

porque o dia-a-dia que a gente, até a experiência mesmo de pessoas que

perdem o emprego, fica marginalizada na sociedade, há separações, porque

começa a faltar coisas, então, acho que o trabalho hoje nas pessoas acho

que é tudo.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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Salta aos olhos o fato de que a primeira explicação que lhe ocorre

sobre o significado do trabalho baseia-se na ausência do trabalho. Por isso,

busca no exemplo de quem não tem emprego o substrato fundamental para

falar do significado do trabalho. É assim que mostra como o trabalho é

importante. Se “a pessoa que não tem trabalho é marginalizada

perante a sociedade”, logo “o trabalho é tudo”! Perguntei sobre

trabalho e ele fala sobre desemprego.

A partir dessa ideia, Bira cita as conseqüências que o desemprego traz

à vida de uma pessoa: na família, separações; a falta de emprego implica

também a impossibilidade da subsistência – “começam a faltar coisas”. Por

isso, a ausência de emprego deixa a pessoa à margem da sociedade”. É

nesse sentido que o trabalho é tudo! De certa forma, com essa assertiva, ele

abona o argumento de Cabannes (2002) que vê no trabalho uma forma

essencial de estruturação de pessoas e das relações sociais. Outro aspecto

importante é que, conforme Ledrut (1966) e Guimarães (2002a) a expansão

do desemprego acaba por imprimir mecanismos regulatórios sobre o

ingresso das pessoas no mercado de trabalho.

Durante a conversa, aqui e ali, fui percebendo como desemprego e

trabalho aparecem juntos em vários momentos de sua fala. Talvez a

percepção de que o alto nível de desemprego implique maior exigência dos

empregadores em relação ao desempenho de seus empregados o tenha

tornado mais resistente às pressões, mais bem preparado para o cotidiano

do trabalho na empresa, e, por conseguinte, mais competitivo. Isso fica claro

na já citada frase:

“Os impactos... é essa insegurança do dia-a-dia, a pessoa mesmo

desempenhando bem a sua função você tem aquela insegurança de

desemprego e até em relação com as outras pessoas a gente nota essa

insegurança, do stress no dia-a-dia com relação ao trabalho, com as

exigências de você estar desempenhando o dia-a-dia seu trabalho.”

Como uma sombra, o desemprego faz-se presente, no âmbito das

relações sociais de trabalho. Por isso, provoca insegurança no cotidiano de

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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trabalho, e isso independe do fato de o empregado executar bem a tarefa

que lhe cabe.

Nesse sentido, o desemprego tem um papel funcional na estrutura do

emprego. A percepção de que, lá fora, as chances de trabalho remunerado

estão mais escassas altera o comportamento dos trabalhadores. Eles

empenham-se para cumprir as exigências a mais, feitas pelos empregadores.

Perguntei se o fato de perceber que o emprego está mais escasso altera a

situação do trabalhador petroquímico e Bira responde o seguinte:

“Muda, muda, faz mudar, você tem que ser um bom funcionário para

você se manter empregado, vai, tá fazendo um bom trabalho. Você se

mantém empregado porque você sabe que se você sair da empresa hoje,...

se eu sair da Petroquímica, você não tem perspectiva de arrumar um outro

emprego no ramo petroquímico e até mesmo com o mesmo salário. Então,

hoje o emprego em si é escasso.”

O stress que provém do excesso de cobrança no trabalho, muitas

vezes, interfere na relação familiar. Segundo meu interlocutor, mesmo que

se esforce pra não deixar transparecer os conflitos e problemas no âmbito do

trabalho, às vezes, escapa. Isso se estampa nas atitudes cotidianas. Como

ele diz:

“Ah, a impaciência, assim, de alguma coisa, não fez isso, não fez

aquilo...”. E continua exemplificando, “A gente fica mais exigente, até

mesmo para...// com relação a roncar, essa é mais a parte de intimidade.

Tem vezes que você tá no serviço, que foi um dia bem atribulado, a mulher

reclama, 'você roncou essa noite prá caramba, né?', então...”.

Bira mostra que esse sintoma de que a rotina de trabalho influencia o

cotidiano em casa é partilhado por outros colegas do trabalho: “Tá

associado, até hoje mesmo eu tava conversando com um amigo sobre isso

ai, ele falou: “tem mesmo, tem dia que você cai na cama, você tem isso”. É

o dia que a esposa reclama que você roncou, e tem dias que você dorme

que você tá tranqüilo.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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Essa fala revela que os conflitos e dilemas, próprios da relação de

trabalho, não se limitam ao âmbito do trabalho. Eles ampliam-se para o

campo das relações familiares e, muitas vezes, interferem nas relações de

amizade também. No caso estudado, por ser organizado em turnos, o

trabalho parece influenciar ainda mais os outros âmbitos sociais, moldando o

comportamento das pessoas nas relações sociais. Da perspectiva de Bira, o

trabalho “amarra a vida social”. A respeito disso, ele dá exemplos: “Sim, a

vida social, por ser trabalho noturno você fica meio limitado. Aí uma festa,

você tem que se programar em função do trabalho noturno.”

Meu interlocutor mostra como a realidade do trabalho de turno molda

seu cotidiano:

“É, você acaba se adaptando porque, vai, tem esse caso do turno,

então, quando tem alguma coisa assim você olha 'bom, tal dia eu tô

trabalhando'. Você acaba se conformando, porque se você fosse estar se

frustrando fica difícil, então, você acaba se habituando, sabe que no Ano

Novo você vai estar trabalhando, no Natal... Então, no meu caso, eu acabo

encarando de uma forma normal. Você sabe que a função, o horário do

turno exige isso, então você não pode estar se, pô.. tentando....// tem

muitas pessoas, a gente vê no próprio turno que fica tentando arrumar uma

troca de horário com uma outra pessoa, quer privar uma outra pessoa pra

ele estar...”

Bira entende que o tipo de trabalho que realiza restringe sua vida social

e aceita essa realidade com resignação. Isso porque foi uma escolha pessoal

atuar no setor petroquímico e, por conhecer bem a natureza da atividade

que exerce, ele dá a entender que encara com “naturalidade” os prós e

contras de seu ofício. O trabalho de turno também limita o círculo de

amizades. Conforme ele mesmo assevera:

“É, você acaba tendo um vínculo, a gente não tem muitos amigos,

porque, veja bem, você procura ter amizade com as pessoas do seu turno,

ou turnos que coincidem, folgas. Lá no clube mesmo, no clube que eu vou

geralmente tem muitos amigos que trabalham comigo, então, o vínculo,

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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você começa a moldar sua vida ao horários de turno ou também as

pessoas que trabalham com você no turno ou no turno que coincide as

folgas, então saiu disso já...”

Além de dar contornos ao comportamento das pessoas no exercício de

sua atividade, o trabalho molda também a forma de agir das pessoas em

outros âmbitos. Molda a vida como um todo.

Mudança da atuação do Sindicato em função do aumento do

desemprego

Como a maioria de seus colegas, que participaram da pesquisa, Bira

não tem nenhum tipo de vínculo com o sindicato. Entretanto, ao contrário da

maioria, considera que a organização sindical tem papel importante na luta

pelos direitos dos trabalhadores e discorre sobre sua participação nas

atividades sindicais: “A gente participa não ligado, tendo alguma função no

sindicato. Isso aí eu nunca tive participação sindicato, uma função interna no

sindicato, a gente participa assim na época de dissídio, essas coisas, é que a

gente freqüenta o sindicato pra ter assembléia, essas coisas, pra haver a

negociação.”

Bira entende que, hoje em dia, o principal papel do sindicato na vida

dos trabalhadores é o de viabilizar a negociação com a empresa. Conforme

diz: “Eu acho que pra negociação, porque se não houvesse o sindicato eu

acho que a gente não teria muito, eu acho que os benefícios que a gente

tem hoje acho que não teria.”

Ele atribui ao sindicato um papel estratégico na conquista de ganhos

salariais e benefícios sociais para a categoria dos petroquímicos. No entanto,

percebe que o amplo contingente de desempregados limita as possibilidades

de ganhos ou conquistas dos trabalhadores: “ (...) hoje em dia a gente não

se tá, muitas vezes não se negocia salário e sim benefícios porque até

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mesmo com a oferta de mão-de-obra, os empresários eles andam

anos na nossa frente, então hoje em dia...”

Aqui também há uma referência ao fato de que, depois da década de

1990, em termos de renda, houve ganhos via salário indireto46, como, por

exemplo, mediante o PLR – Participação nos Lucros e Resultados. Nesse

sentido, afirma que, nas negociações relativas às condições de salário e

trabalho, os empresários sempre têm uma posição mais favorável devido ao

alto nível de desemprego, no mercado em geral:

“Mais favorável pra eles. E talvez você coloca 'vamos te dar um

benefício aqui'. Na época da negociação salarial a gente negocia beneficio e

não salário, porque hoje ter ganho real de salário agente não tem. É sempre

reposição da inflação do período, hoje há muito negociação de benefício e aí

sim, até mesmo do emprego, que é negociado hoje na época do dissídio.”

Bira compara o papel do sindicato nos diferentes períodos de sua

história na empresa: quando ingressou e hoje em dia. Percebe que, antes, o

sindicato era mais combativo. Hoje em dia, isso não é mais possível devido à

escassez de emprego. Sobre isso ele diz: “Ah, houve mudanças; naquela

época o sindicato era mais radical, né? Tinha muito radicalismo então

pra luta pra briga. Hoje não, hoje tá fazendo uma melhor negociação

[entre o sindicato], o sindicato não é tão mal visto como era na época”.

A mudança de postura do sindicato, no sentido de ser mais mediador

do que combativo, é bem vista por Bira. Isso pode apontar uma inflexão na

forma como a categoria à qual pertence – empregados do setor petroquímico

– vê o sindicato. Quer dizer, provavelmente, ele expresse a forma como os

trabalhadores desse setor, ou alguns deles, vêem as negociações trabalhistas

na nova conjuntura. De sua perspectiva, a postura mais mediadora dos

representantes dos trabalhadores propicia uma aproximação maior com a

empresa: “Antes as pessoas do sindicato nem, não participavam

internamente da empresa. Hoje, a gente tem negociações de PLR –

46 Guimarães (1998) traz informações mais precisas sobre a variação dos salários dos trabalhadores petroquímicos.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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Participação nos Lucros e Resultados e tudo e tem a participação mais

atuante dos sindicatos.” [Do seu ponto de vista] “isso é um ganho para os

trabalhadores.”

Essa seria para meu interlocutor uma forma de defender os empregos,

uma vez que, adotando a postura negociadora, os dirigentes sindicais evitam

atritos com a empresa e evitam as demissões. Tal posicionamento contrasta

com o antagonismo que orientava a tomada de posição das lideranças

sindicais desde o surgimento da classe operária até pouco tempo atrás.

“Ao próprio mercado de trabalho, aquela transição que houve,

que antes tinha mais emprego, as pessoas já ia mais, 'então eu saio

daqui..' ultimamente essa mudança é devida à falta de opções da pessoa ter

outro emprego; então, procura-se mais pra, na época de dissídio..evitar

atrito... e pra evitar demissões.”

Com essa perspectiva, meu interlocutor demonstra uma inflexão

recomendável de escopo do sindicato. É como se tivesse dizendo que não

existe mais espaço para haver uma postura defensiva de direitos, no sentido

de lutar pelos direitos ou reivindicações dos trabalhadores. Quando muito,

deve-se buscar manter os empregos, mesmo que a situação seja

relativamente mais precária que antes.

O trabalho como sentido da vida

“O nosso amor é tão bom

O horário é que nunca combina

Eu sou funcinário ela é dançarina

Quando pego o ponto ela termina

Ou quando abro o guichê

É quando ela abaixa a cortina

Eu sou funcinário, ela é dançarina

Abro meu armário salta serpentina

Nas questões de casal não se fala mal da rotina

Eu sou funcinário ela é dançarina

O seu planetário

Minha lamparina

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Ou quando tchum no colchão

É quando ela tchan no cenário

Eu sou funcinário ela é dançarina

No ano dois mil e um se juntar algum

Eu peço uma licença e

E a dançarina enfim já me jurou

Que faz um show pra mim...”

Chico Buarque,

Ela é dançarina / Almanaque

Beto: 50 anos, casado, vive com a mulher e seus três filhos em São Paulo.

Tem segundo grau completo e atua na Petroquímica União, onde exerce a

função de operador petroquímico, desde 1982. Começou a trabalhar cedo,

fazendo pequenos bicos, em atividades diversas. Depois, aos 14 anos,

ingressou como Office-boy no setor bancário, onde atuou por 12 anos, foi

proprietário de um bar, prestou concurso pra escrivão da polícia e trabalhou

como auxiliar de carga na Receita Federal. Quando ingressou na PQU,

conseguiu obter retorno satisfatório de seu empenho no âmbito do trabalho.

Beto é um homem de estatura alta, de tipo magro. Tem cabelos

levemente enrolados que já vão rareando em sua cabeça, avisando de ante-

mão a calvície. Os olhos vivos e escuros escondem-se atrás dos óculos que

lhe conferem um ar severo, meditativo e curioso. Durante a entrevista, fez as

vezes de um de contador de história. Minhas perguntas eram motes para o

almanaque que se abria mediante sua paciente explanação.

Como no caso de alguns colegas, Beto nasceu em uma família

numerosa de sete irmãos. O derrame que acometeu seu pai, ainda no

período de sua infância, obrigou-o a ingressar muito cedo no mercado de

trabalho. Conforme ilustra, mesmo tendo sido precoce, o trabalho era tudo!:

“Ah, isso é tudo né!, uma pela necessidade, porque meu pai teve

derrame muito cedo. Eram sete irmãos: o meu irmão mais velho e eu e mais cinco irmãs. Meu pai teve derrame novo e minha mãe foi trabalhar, foi trabalhar de costureira lá na Augusta. Então, era minha mãe trabalhando e

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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nós tudo em casa, aí era aquela dificuldade, e meu pai doente ainda. Então, qualquer coisinha que aparecia já ia eu e meu irmão pra dar conta do sustento da casa. Tínhamos uma casa própria, que meu pai já tinha comprado; mais tarde fomos desapropriados pra fazer a Bandeirantes (Ele fala da situação rindo...) .”

Beto destacou-se entre os entrevistados por sua leveza e minudência

no falar. É assim, com ilustrações, às vezes trágicas, outras cômicas, que ele

vai deslindando o fio de sua trajetória de trabalho. Talvez por ter sido

temporão nesse campo e por seu estilo reflexivo expresse com tanta clareza

sua crítica ao mundo do trabalho. Antes de ingressar na PQU, passou pelo

setor bancário, onde percebeu que as escassas oportunidades de crescer em

sua carreira – apesar da dedicação a seu ofício – poderiam ter correlação

com o fato de ser negro. Desde 1982 na PQU, atualmente no setor de

Utilidades, ele também passou por outras funções. Permanece no cargo de

operador I desde quando ingressou na empresa.

Embora se considere um funcionário dedicado, indica que não expandiu

seus estudos pelo fato de a vida em família não admitir mais ausências além

das que o trabalho de turno lhe impõe.

O trabalho como forma de aprender o mundo

Segundo Beto a experiência do trabalho implica várias formas de

aprendizado. Proporciona conhecer pessoas, mas não só, ensina também a

importância de “ser útil”. A utilidade do trabalho a qual ele se refere tem

sentido semelhante a “importância social”. “Ser útil “ é como se fosse “dizer

a que veio”. Ou seja, a realização de uma atividade permite a assunção de

um ofício, de um lugar social e isso dá sentido á vida. “O crescimento tem

que vir com o tempo. Não precisa começar cedo, mas você tem que ser útil.

A utilidade de você tá vivo é que vale a pena”.

Ele pondera que, ao contrário do ócio, o aprendizado /exercício de uma

tarefa exige esforço, e essa dedicação resulta numa espécie de realização

pessoal devida a aquisição do conhecimento de um ofício. Explicita o

significado do ingresso no mercado de trabalho:

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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“– É, de aprendizado, conhecer pessoas....//. Eu acho que muito jovem

não tem //, tá perdido aí. Mas, eu acho que eles nunca tiveram contato com

um emprego pra conhecer realmente o sentido de ser útil. Por isso que eles

ficam vagabundando. Acho que nunca tiveram oportunidade de pegar um

serviçinho, pra aprender a resolver os problemas. Entendeu? tem aquela

preocupação. É o tal negócio, pra ser vagabundo não precisa aprender,

porque não tem o que aprender pra ser vagabundo. Pra você trabalhar você

tem que aprender a trabalhar, você tem que saber a necessidade de

trabalhar, o porquê daquilo. A relação entre você fazer alguma coisa, aquilo

servir pra alguém, que te paga por isso, o patrão exigir que você trabalhe

mais pra ele ganhar mais, pra poder ganhar mais também”.

Por outro lado, o trabalho é visto como atividade disciplinadora, uma

vez que exige certo adestramento “tem que aprender a trabalhar”. Mas além

disso, é fundamental saber para que serve aquela atividade, sua utilidade e

importância. Isso informa o sentido social do fazer. É assim que se torna

possível mensurar o valor da tarefa que se executa em termos de uma

remuneração, algo palpável, que se transforma em meio de troca.

Por fim, ele mostrou o trabalho como forma de mediação com o

mundo, um meio que permite o acesso a relações de outra circunscrição que

não a profissional, como por exemplo as afetivas de amizade e amor. E, além

disso, a atividade laboral viabiliza um ganho financeiro que garante a

subsistência:(...) E também você se relacionar com o mundo. Você pega o

dinheiro, você sai com os amigos, aí você conhece uma namorada, quer

dizer, tem todo um sistema que vai organizando.”

À semelhança de outros entrevistados, ele se aproxima da formulação

de Cabanes (2002) que entende o trabalho como uma referência

fundamental na estruturação das pessoas e das relações sociais. O

depoimento de Beto faz pensar que, de seu ponto de vista, as identidades

profissionais são formas de reconhecimento que não se limitam ao âmbito do

trabalho, servem como parâmetro para formulações identitárias no campo

social, de maneira ampla. Isso porque, além de constituir um modo de

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

94

definir a posição das pessoas na sociedade, a situação de emprego pode

informar sobre comportamentos, hábitos, maneira de pensar, sentir e julgar

dos indivíduos, moldados a partir de sua vivência com os diversos grupos.

Ela pode também dar sentido à vida das pessoas.

O respondente busca na experiência dos colegas aposentados o

exemplo vivo de que uma vida sem emprego pode ficar desprovida de

significado:

“Pra mim é isso aí. Eu penso assim. Talvez, todo mundo que queria

ficar rico e não fazer nada, ou então quem pensou em se aposentar e ficar

só pescando, não vivesse feliz. Meus colegas que aposentaram, faz mais de

dez anos, voltam tudo na firma pra pedir serviço, trabalham nas firmas

contratadas, eles não guentam ficar em casa. Eles viajam durante um ano.

No dia seguinte eles tão lá: “e aí, não tem nada pra fazer?”. Geralmente

quando tem parada, a firma recebe muita mão-de-obra. Aí a firma recruta

todos os aposentados. Quando tem parada você vê todos os aposentados.

Os caras voltam todos a trabalhar, você acredita? Então, eles sentem falta.”

A formulação de Beto, efetivo da Petroquímica, sobre o significado do

trabalho para os indivíduos se assemelha à de Chico, que atua na mesma

empresa como terceirizado. Este chegou a se afastar da atividade

profissional, e agiu exatamente do modo como Beto descreveu acima.

Decidiu voltar à ativa na empresa, mesmo não sendo mais efetivo. Com isso,

recuperou o estímulo pela vida que havia perdido quando se aposentou.

A experiência do trabalho como reveladora da realidade

Ao iniciar a discussão sobre a importância do trabalho em sua vida,

percebi como para Beto, a incursão no campo profissional lhe abriu

horizontes. O trabalho resultou em aprendizado. Mas ele se refere a

aprendizagem que se adquire mediante o conhecimento aprofundado das

relações humanas e das pessoas, e não se limita a falar da aquisição de

conhecimento profissional. Conforme se vê: “Primeira coisa: conhecimento,

conhecimento das pessoas. Você em casa não conhece as pessoas. Você

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

95

conhece seu pai, sua mãe, seus irmãos, tem um relacionamento. Mas,

pessoas mesmo, política... Quando você sai, você conhece política, racismo,

um monte de coisa!”

É interessante notar que, de sua perspectiva, o trabalho e as

adversidades que dele decorrem estão para a vida pública assim como a

família está para a vida privada. Entende que o âmbito familiar é o lugar do

aconchego e da harmonia enquanto que “a rua”, onde o trabalho se sucede,

é o das adversidades, das coisas erradas e certas, talvez pudesse dizer, da

insegurança. “O que você sente no trabalho você não sente em casa. Em

casa é um aconchego! Na rua você aprende como o povo reage a certas

atitudes, no serviço você vê as falsidades, você vê as coisas certas, as coisas

erradas, você tem toda uma linha de pensamento das pessoas.”

Nesse trecho da fala de Beto surgem elementos que indicam a distinção

entre o que seria “moralmente” aceitável, ou seja aquilo que ele julga certo,

e o que é errado. O trabalho seria, portanto, o lugar das coisas chãs, e a

casa, o da harmonia e do que é certo.

Mais do que viabilizar a diferenciação entre os meios onde as pessoas

atuam, lutam, vivem, a separação entre as esferas pública e privada,

consiste em um sistema criado para dar ordem a um mundo que parece

estar em pura desordem. O mundo fora de casa se apresenta como o da

desorganização, das incongruências, das injustiças e da insegurança:

“As pessoas prejudicam as outras pra obter cargos, obter vantagens e,

mesmo o próprio sistema, ele é assim cruel mesmo! Principalmente nós

né, pobres, negros, sempre foi muito difícil conseguir,

principalmente promoções. Eu lembro que em minha época eu já tinha

colegial e tudo, mas não conseguia ser promovido, isso dentro do Banco.

Todos eram promovidos, quando chegava na última chance, pra promover,

falava da escolaridade. Aí eu falava ”já tenho o colegial”, O Rh dizia: “ah!,

mas é que é necessário o ginásio.” Na verdade isso era preferência da

pessoa que tava lá escolhendo, então muito tempo foi assim. Um dia eu me

rebelei, fui mandado lá pra matriz.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

96

Refere-se ao sistema [capitalista] como sendo injusto, “cruel”, e, nele,

as pessoas tenderiam a se comportar despidas de valores morais, para

obterem “vantagens” em proveito próprio. Mesmo não se referindo, de

maneira direta, ao termo caráter, Beto introduz a discussão sobre o tema,

sutilmente. Dá a entender que a competição intrínseca a esse sistema de

produção leva as pessoas a se comportarem de maneira semelhante.

Imbuídas de espírito competitivo, agem distanciadas dos valores que se

baseiam na lealdade e na confiança – que se consolidam ao longo de um

tempo. Assim, pautadas por interesses provisórios, para conquistarem seus

objetivos, mostram-se capazes de prejudicar as outras. “As pessoas

prejudicam as outras pra obter cargos”.

No entanto, Beto atenta para o fato de que as condições são desiguais,

entre os que atuam no mercado de trabalho, o que favorece alguns em

detrimento de outros. Sua experiência pessoal demonstra isso:

“Principalmente nós né, pobres, negros, sempre foi muito difícil

conseguir, principalmente promoções”. Por essa razão, alguns levam

mais vantagens que os outros na construção da carreira. A descrição que faz

sobre sua experiência mostra que, mesmo tendo a qualificação necessária

para receber promoção, suas chances eram sempre postergadas.

A crítica de meu interlocutor acerca de suas chances profissionais

corrobora a tese de que não apenas os critérios aquisitivos como educação

e formação profissional são empregados pelo mercado na seleção de

pessoas. Características adscritivas, não passíveis de escolha, como cor da

pele e etnia também são utilizadas nos procedimentos seletivos. Nesse

sentido, a desproporcionalidade de oportunidades entre os que concorrem a

uma vaga no mercado não resulta apenas das assimetrias nas condições de

competição, mas de um sistema de desigualdades que se erige no processo

de definição de parâmetros de escolha, coligidos em termos de

representações e que está na base da distribuição de empregos. Ou seja,

são criadas por quem faz essas escolhas47.

47 Ainda que seja possível admitir a existência de desigualdade de oportunidade associada à questão racial na experiência acima relatada, esse tema é complexo e para discutí-lo com acuidade seria necessário um estudo específico, levando em consideração o contexto em

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

97

Racismo e desigualdade de oportunidades – quem pensou

nisso antes?

Ao discorrer sobre a importância do trabalho em sua vida, Beto mostra

sua crítica às desigualdades de oportunidades entre as pessoas que

concorrem a uma vaga de emprego. Com isso, meu interlocutor envereda no

tema da discriminação racial. Foi quando ainda estava no Banco que, sentiu

na pele a questão da discriminação:

“É, eu trabalhava na agência Vila Mariana, aí o gerente começou a

‘criar caso’, porque ele não tinha motivo. Eu fazia o serviço direitinho, não

tinha motivo, entendeu! Pegou um arquivo de lá do banco, falou que tava

que ocorre. Tal procedimento evita que se incorra no erro de fazer conclusões infundadas ou simplistas. Sobre esse tema um importante estudo desenvolvido é “A integração do negro na sociedade de classes”, de Florestan Fernandes. O autor mostra o desajustamento estrutural dos negros em relação aos novos arranjos sociais do final do século XIX, no regime competitivo de classes determinados pela indústria em formação em São Paulo. Talvez se pudesse inferir que aquele contexto tenha influenciado a configuração atual sobre o mercado de trabalho, mas seria necessário estudo detido a esse respeito. Na atualidade, em “Classes, raças e democracia”, Antonio Sérgio Guimarães discute questões importantes dos conflitos originados na problemática da raça. Ele aponta o insulto racial como um dos rituais mais perversos do nosso cotidiano, presente nas relações entre os grupos sociais no Brasil, e que o sofrimento individual gerado pela inferirorização, embora revele uma dimensão determinante na criação de subjetividades, nem sempre foi abordado de maneira adequada pelas ciências sociais. (GUIMARÃES, A. S., 2002). É nos diversos ambientes sociais, entre os quais o do trabalho, que se criam as condições para o que ele denomina institucionalização da inferiorização e a desigualdade de oportunidades relacionada à questão racial viabiliza esse processo. Isso é visto na experiência de Beto, o entrevistado. Alguns dados recentes relacionados à questão do emprego e desemprego podem ser reveladores das desigualdades de oportunidades relacionas aos problemas raciais. O “Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho”, realizado pelo Dieese, revela que a discriminação racial é um fato cotidiano que interfere em todos os espaços do mercado de trabalho brasileiro. Diagnostica que os indicadores relativos à questão do emprego são sistematicamente desfavoráveis aos trabalhadores negros, seja qual for o aspecto considerado, o que indica a utilização de critérios discriminatórios baseados na cor dos indivíduos. O estudo feito nas regiões metropolitanas do Brasil, com dados válidos para o ano de 1998, indicou que no total das regiões, 50% dos desempregados eram negros, o que corresponde a 1.479.000 pessoas, naquele ano. Em São Paulo os negros desempregados eram 650 mil pessoas e representavam 40% dos desempregados desta região metropolitana. Além de as taxas de desemprego serem maiores para os negros (negros e pardos) do que para os não-negros (brancos e amarelos), segundo o mapa, a desigualdade que caracteriza a situação dos negros se evidencia quando comparados os rendimentos entre as duas raças, pois os dos negros equivalem, em média, a cerca de 60% dos auferidos pelos não-negros (http://www.dieese.org.br). Estudos do Dieese e Seade, em 2000, a PEA - População Economicamente Ativa totalizava 9,21 milhões de pessoas, das quais, 1,61 milhões estavam desempregadas. No mesmo ano, a taxa de desemprego era 20,9% para não brancos e 15,9% para brancos. (http://www.seade.gov.br).

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

98

bagunçado e jogou no chão pra mim arrumar. Aí eu falei “não vou arrumar

isso aí, você que se vire e arrume!”. Ele achava que era insubordinação, eu

falei “não vou mesmo”! Eu não dei mole. Eu fazia meu serviço certo, o

gerente tinha acabado de chegar, aí me chamaram na matriz. Lá, os caras

falaram: “mande ele pra cá, que a gente conversa com ele”. Mas eu acho

que era tudo combinado né? Ai eu fui pra lá pra trabalhar.”

Meu entrevistado mostrou que, os princípios de escolha profissionais se

unem aos de cunho pessoal para nortear a conduta das pessoas no cotidiano

de trabalho. O comportamento discriminatório da chefia na repartição onde

atuava revela também que os fundamentos dessa escolha nem sempre são

explícitos e estão impregnados de valores que se consolidam ao longo da

vida em âmbitos como o da família e o da escola, fora do escopo

profissional. De sua perspectiva, seu chefe agiu motivado pela ideia de

mudar a “aparência” do departamento em que atuava, queria trazer

mulheres para trabalhar ali. Com essa justificativa, Beto maquia o problema

principal da atitude de seu chefe – racismo no âmbito do trabalho – evitando

discuti-lo a fundo.

“Aí também eu desenvolvi meu serviço normal, não tive nenhuma

reclamação, como sempre, não tinha motivo né?, não tinha nenhuma razão.

Acho que ele queria mudar a cara da repartição, inclusive naquela

época não entrava mulher no banco. Aí começou a entrar mulheres,

então acho que eles queriam mudar o visual.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

99

Apesar das controvérsias no primeiro departamento em que trabalhava,

Beto teve outra chance de crescer profissionalmente quando foi transferido

para a matriz da empresa, onde pôde exercer seu ofício de maneira

satisfatória, tendo seu empenho reconhecido profissionalmente. Estava

equivocado quando pensou que a transferência para a matriz era uma forma

de represália (o passo inicial para seu desligamento), pois foi lá que recebeu

sua promoção – tornou-se chefe – e permaneceu por muito tempo naquela

seção. Fala disso com certo orgulho:

“Naquela época eu era escriturário. Aí eu fui pra matriz. Aí passou um

ano e me promoveram a chefe de seção. Mas, é uma coisa que você nem

espera né?. Eu achei que eles tinham me mandado ir pra lá pra me

encostarem, ou então me mandarem ir embora, aí fiquei de chefe de seção,

aí fiquei um tempão, fiquei até o fim lá, como chefe de setor de ordem de

pagamento! A minha mãe sempre falava: “há males que vêm pra bem”, “o

que é do homem o bicho não come.”, “vai, segue o seu caminho e pronto”.

Aí fiquei e só saí em 81, que teve aquela recessão. Eu achei até justo, eles

optarem por deixar os caras casados. Eu tava solteiro né!”

Ao avaliar sua trajetória profissional, Beto demonstrou satisfação por

ter ingressado na Petroquímica. Foi lá que conquistou o retorno profissional

esperado, onde seu empenho e dedicação foram reconhecidos,

corresponderam a suas expectativas. Na comparação com as outras

experiências de trabalho, a incursão na empresa petroquímica ganha de

longe, significou o reconhecimento de sua atuação como empregado:

“A PQU foi muito melhor porque ela deu tudo que eu precisava. As

outras não deram. As outras, além de eu estar na fase de conhecer pessoas,

de conhecer tudo, eu nunca tive um retorno satisfatório. Você nunca tá por

cima, sempre tá por baixo, quando você consegue alguma coisa, você

empatou. É uma política de desqualificar. Tudo que você faz não tá bom,

não tá suficiente. É, tá bom, mas podia ser melhor.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

100

O tempo de atuação na empresa lhe deu segurança na carreira. Ele

superou da fase de “conhecer pessoas”, aprendeu a execução de sua tarefa,

passando a exercê-la com propriedade. Além disso, seu relato indica que a

avaliação do próprio trabalho por seus superiores é satisfatória, o que gera

certo contentamento. Tudo isso contrasta com o que vivenciou em outras

empresas, que não proporcionaram segurança em nenhum dos aspectos

relacionados aqui.

Apesar de não ter sido mencionado por ele, suponho que a satisfação

de Beto em relação ao emprego também passe pela questão dos processos

seletivos. Tanto que ele critica a falta de clareza nas seleções às quais se

submeteu. Talvez, o fato de ter passado por um concurso para ingressar na

empresa confira mais legitimidade à escolha de candidatos feita ali. A forma

severa e transparente de avaliar candidatos, adotada pela PQU, também

serve para corroborar sua “competência profissional”. Isso tudo contrasta

com a experiência que obteve ao se sujeitar a diversos exames de seleção.

Em muitos concursos e avaliações, os procedimentos não eram claros, o que

faz suspeitar dos resultados. Como exemplifica:

“Engraçado que eu fiz um curso na academia de polícia. Fiz pra

escrivão. Fui lá, eu trabalhei com banco 12 anos. Aí tinha aquelas máquinas

de bater (teclar), datilógrafo. Eu ganhava tudo! O cara podia dar o que ele

quisesse. “Dá esse texto aí, tem 20 páginas, vamos ver em quanto tempo

você vai fazer”. Eu ia lá e ninguém ganhava de mim. Aí fui lá e fiz o curso,

passei. A última prova era datilografia. Eu falei “beleza, eu tô dentro”. Mas

eu não sabia da política deles lá dentro. Cheguei na sala, a delegada falou

assim: “vocês fazem..//, o texto é esse. Vocês fazem o texto, preenchem

direitinho, não colocam nada: não coloca o nome, coloca o nome do lado ( o

entrevistado ri). Eu falei “o que?”. Ela disse: “se colocar um nome na folha,

ta anulada. Eu falei “não é possível, cara”. Você vê tanta coisa errada na

vida.”

Sua frustração devido à falta de transparência e ao freqüente uso de

formas duvidosas de avaliação de candidatos a vagas nas empresas é

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

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patente: “Quer dizer, você vai lá, faz bonitinho, você entrega primeiro, aí sua

prova vai pra outro. Aí eu falei ”ah, não dá, deixa quieto”. Como eu to te

falando, você vai lá, faz um negócio direitinho, eles conseguem passar pra

outro, não pra você. O mérito não é seu. É fogo, é difícil!”

Apesar de afirmar que a Petroquímica avalia seus funcionários ou seus

candidatos de maneira clara e rígida, fala com reticência sobre o fato de

nunca ter mudado de cargo na empresa, depois de ter se submetido a

diversos concursos para funções superiores. Seu empenho foi em vão.

Mantem-se praticamente no mesmo posto desde que entrou lá:

“Operador estagiário, depois operador 1. Depois eu não fui mais

promovido. Eu fiz mais concursos, mas não fui promovido. Também achei

que era do sistema. A gente fica por décimos, mas já é considerável. Eu

fiquei três vezes por décimos, por décimos e uma vez fiquei por milésimos. Aí

eu resolvi não fazer mais.”

Se queixa pelo fato de ficar por décimos e até milésimos nos exames,

mas em seguida declina de sua ideia, reconhecendo que quase chegou lá!

Sabe que qualquer reivindicação nesse sentido seria em vão e valoriza o fato

de estar em uma empresa consolidada e que tem perspectivas de crescer.

“Não sei se trocaram minha prova também (risos...). Não é que eu

reclame não. Muita gente reclama e não adianta nada. Mesmo assim, ainda

vale a pena ficar. Petroquímica só tem uma aqui em São Paulo e é a melhor

ainda. Além de ser a pioneira, você vê, com toda a política que teve, depois

de ter sofrido sucateamento, ela saiu das cinzas, quer dizer, vai investir não

sei quantos R$ bilhões, quer dizer, agora vai crescer. Antes, não podia

crescer por causa do espaço, agora vai crescer mais. Então, o Lula foi lá, foi

um barato, tirou fotografia com os operadores, ele era alegre demais! Até o

meu chefe falou assim: “eu não gosto do PT, mas o Lula é uma figura

realmente carismática”. Ele chega, ele contagia as pessoas, é natural dele.

Por você saber que ele é uma pessoa de luta, que ele foi preso naquela

época, que ele sofreu aquela tensão violenta, você valoriza a pessoa. Porque

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

102

na época não tinha ninguém pra fazer isso. Os caras não tinham coragem, os

caras andavam na rua, faziam um grupinho e ficavam com medo. Os caras

tavam tudo dando risada num bar, aí passava aqueles camburão todo mundo

emudecia. Parecia que tinha passado uma coisa ruim. Uma pessoa que passa

por tudo isso e chegar a ser o presidente da república deve ser reconhecida.

Ele fez coisa boa, você vê qual o outro governo que se preocupou em fazer

bolsa, em fazer esse trabalho que eles tão fazendo? Ele foi atrás, foi no

campo pra ver o que era necessário. Quem pensou antes nisso? o Fernando

Henrique, não pensou nada! Ele pensou em ajudar os “irmãozinhos dele”,

cara de pau!”

Aqui vale fazer uma consideração. No início da análise, eu havia

decidido extrair parte da fala acima. Trata-se do momento em que ele

começa a falar do presidente Lula. A edição parecia adequada, dado que, em

princípio, eu não consegui estabelecer nexo com o início do que eu

perguntara e com a outra metade da fala. Tinha impressão de que ele

apenas fazia uma digressão, se evadia do objeto central da indagação. No

entanto, declinei da ideia inicial. Comparando as duas partes, percebi que

podia colher outros significados nesse relato. Citou a visita do Presidente da

República à empresa com deferência. Com isso, talvez buscasse dar status à

instituição e a seus funcionários.

Depois de informar sobre o entrosamento dos operadores com a

principal figura política do país, ele passou a avaliar sua biografia. Elogios

honrosos foram feitos. Coragem, simplicidade, audácia, capacidade de luta

são alguns citados. Isso me fez pensar que Beto se sentia identificado com o

Presidente. Ambos de origem humilde e batalhadores, mereciam respeito e

admiração.

Contudo, o mais importante está no final do relato. É exatamente na

figura de Lula que ele vê a possibilidade de que se faça justiça social, uma

chance de que as diferenças de oportunidades sejam diluídas. Afinal, quem

pensou nisso antes?

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

103

Processo de reestruturação e privatização

Ao discorrer sobre o processo de reestruturação, Beto mostrou que a

empresa sistematizou os procedimentos de modo a diminuir a dependência

em relação à experiência e ao conhecimento dos operadores. Fala que tudo

fico mais fácil. Agora, conforme assevera, tem tudo no computador e

“qualquer um pode fazer”, é só acessar e ele dá a instrução de como

proceder.

“Além de mudar a cabeça do pessoal, muda tudo que tem que fazer.

Antigamente você fazia uma tarefa, aí a gente ia lá no livro pra ver como

fazer. Às vezes a gente tinha que programar uma manobra que nunca tinha

sido feita. Hoje não, todas as instruções são renovadas todos os dias. Se um

setor faz uma manobra parecida, ele lança no computador, você vai lá,

acessa, programa pra fazer aquela manobra. O próprio computador te dá a

instrução de como fazer a manobra. Você vai operar um equipamento novo,

uma turbina, um equipamento novo, ele te dá todos os procedimentos que

você tem que fazer, desde segurança, até a conclusão do processo. Tem

toda uma lógica, então tem bastante treinamento com todo mundo. Eu tô

acostumado, se eu vou fazer um procedimento, eu olho como foi feito antes,

no relatório, ou então olhava numa apostila e via como fazer.”

Mesmo observando que hoje em dia os procedimentos de operação não

se baseiam mais na experiência dos funcionários, Beto não chega a

conjecturar as conseqüências disso para as relações entre os trabalhadores.

“Antes, a maioria se baseava na experiência. Hoje não, qualquer um

que entra lá, se não souber operar, pega a instrução, segue a instrução, e aí

fica mais fácil. Na firma acontece muito o seguinte: o cara sabia fazer uma

coisa, aí não passava pra ninguém. Aí dava aquela emergência e tinha que

chamar o encarregado. Assim não pode!”

A execução de tarefas ficou mais simplificada, mas se ela depende cada

vez menos da experiência e do fazer operário, provavelmente traz como

conseqüência a perda da capacidade de articulação dos trabalhadores, de

seu poder de barganha e resulta na desvalorização de sua mão-de-obra.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

104

Pode-se supor que esse contexto provoque insegurança aos empregados, o

que traz outras conseqüências como ansiedade, medo em relação ao futuro,

tornando mais vulneráveis as relações entre eles. No entanto, é preciso

considerar que, entre os operários, o modo de lidar com a insegurança é

variável e alguns podem até se sentir estimulados a exercer, com melhor

desempenho, suas funções ou buscar outras alternativas fora da empresa.

Quando perguntei a respeito das conseqüências do processo de

privatização, tive uma resposta intrigante. Parte dela eu já conhecia de

outros depoimentos, era a queixa devida à falta de informações e de clareza

do processo. No entanto, Beto trouxe à tona um outro elemento do qual, até

então, eu não tinha conhecimento. Tratava-se da venda de ações da

empresa aos empregados:

“Foi desgastante. O pessoal que dirigia não dava informação. A gente

mal sabia o que tava acontecendo. Foi incrível, que antes, eu tava numa boa

fase, o salário tava bom, o Banco do Brasil trouxe umas ações pra vender.

Aí, muita gente entrou né, aí acompanhando as ações, as ações sumiram,

foram pulverizadas.”

O entrevistado não tinha domínio sobre o processo em curso, contudo,

a partir das outras entrevistas descobri que a venda de cerca de 10% das

ações consistia em um mecanismo de capitalização, que antecedeu a

privatização da empresa. Por um lado, resultava em valorização da

corporação, pela negociação das ações em bolsa, e, por outro, produzia,

entre os empregados, a ideia de que passariam a ser proprietários de parte

da empresa. O entrevistado tenta explicitar:

“São aquelas ações de aumento de capital, sei lá, eu não entendo

muito bem. Então o pessoal ficou desgostoso. Logo em seguida veio a

privatização, então ninguém queria saber de ações. Ninguém procurou

saber. Só se sabia que aquilo lá eram ações patrimoniais, que, se fosse

vender a firma, eles tavam vendendo eles também, a mão de obra deles.

Não sabiam isso. Isso no geral da piãozada. Que acontece? ninguém se

interessou. O pessoal da administração, na época, guardou as

informações e procurou tirar proveito disso. Hoje, eles criaram uma

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

105

associação de empregados pra cuidar dessas ações. Ou os empregados

entravam nessa associação ou comprava as ações à vista. Só que quando foi

pra comprar à vista a firma tava em baixa, na recessão braba!, era no

Governo Collor. Então os caras tiveram que entrar nessa associação. Mas,

tinha que pagar ainda. Aí arrumaram um financiamento altíssimos, aquelas

contas impagáveis: Banespa e tinha outro banco de crédito, que eu não

consigo lembrar o nome. Aí esses dois bancos cobravam uns juros altos, aí

fizeram uma dívida pra pagar em quatro anos. Mesmo assim, o pessoal não

conseguia pagar, entendeu? [a esposa sugere que um dos bancos tinha sido

o BNDES], ele diz: BNDES não. São dois bancos grandes. O Banespa eu

lembro mais, o outro eu não lembro.”

Mesmo insistindo em esclarecer o trâmite da venda de ações aos

empregados, me pareceu confuso o modo como Beto explicava esse

processo. Ele lançava informações esparsas, que pareciam desconectas entre

si. “Então o pessoal ficou desgostoso. As ações evaporaram; Logo em

seguida veio a privatização, então ninguém queria saber de ações”...; “Só se

sabia que aquilo lá eram ações patrimoniais, que, se fosse vender a firma,

eles tavam vendendo eles também, a mão de obra deles”....; “O pessoal da

administração, na época, guardou as informações e procurou tirar proveito

disso”....

Na fala de meu interlocutor privatização, ações patrimoniais,

favorecimento em benefício de grupos restritos, evaporação das

ações, apareciam como se fossem peças de um quebra-cabeça, que não se

encaixavam. Nesse emaranhado de informações, chamou-me atenção um

fato: o tipo de negociação feito pela empresa, uma vez que assim ela

produzia a ideia de que seus funcionários poderiam também ser proprietários

da corporação48. Esse mecanismo introduziu uma mudança na forma de os

48 O artifício em questão faz com que os papéis de empregado e empresário pareçam idênticos. É provável que tal confusão tenha dificultado a articulação dos trabalhadores enquanto classe, dado que, ao se apropriarem das ações podiam assumir formas identitárias de proprietários e de empregados, ao mesmo tempo. Além de ter cunho excludente, a medida adotada pela empresa cria diferenciações entre os trabalhadores, uma vez que nem todos compraram ações e isso reforça ainda mais a desarticulação entre eles. Essa situação

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

106

empregados se relacionarem com a empresa. É provável que a perspectiva

de se tornarem donos da Petroquímica tenha alterado seu comportamento

no exercício das atividades que exerciam e na relação com os outros. Na

análise da fala dos desempregados, Dida fala sobre esse tema de forma mais

clara.

Busquei saber a opinião de Beto sobre o processo de privatização,

queria entender os efeitos sobre a relação entre os trabalhadores. A forma

como esse interlocutor interpretava o comportamento dos trabalhadores

podia apontar novas questões, era mais um elemento que, agregado aos das

outras entrevistas, enfeixava a maneira de pensar dos efetivos na

Petroquímica:

“O processo de privatização não foi claro, não foi transparente,

e outra, não te deu oportunidade. Dois anos antes a pessoa podia ter

feito uma poupança, ter comprado suas ações, suas, a que você tem direito,

à vista. Eu peguei meu lote, continuei pagando, pagando até onde deu,

quando eu vi, eu fiquei com metade do lote ainda. De um lote de 7.500

ações eu fiquei com um lote de 3.000. Mas por que? Com dificuldade

imposta pelo pessoal que criou a SEP (Sociedade dos Empregados da

Petroquímica), que era da administração.”

Os efetivos não tinham muitas opções de escolha, era ficar ou sair.

Quem permanecesse tinha que aceitar as regras impostas pela instituição e

saber conviver com o clima de insegurança. Mas, para além da descoberta

de que houve um processo de venda e compra das ações das empresas, e

de que ele tinha decorrido de forma suspeita, de fato, outras dúvidas me

inquietavam. Meu maior interesse era entender os desdobramentos da

privatização sobre as relações entre os funcionários. Como se sentiam

sabendo que ia ter a privatização? A resposta que eu obtive: confirma a ideia partilhada por Beck e Beck-Gernsheime de que, no contexto atual, as relações sociais se organizam fora do modelo marxiano de divisão de classes entre proprietários e não proprietários. Ou seja, a teoria de Marx não explica sozinha conflitos ancorados nas diferenciações sociais e devidos à pluralidade de sujeitos, que possuem interesses, opiniões e ideologia próprios. No exemplo em questão, o operário da fábrica passou a acumular interesses de empresário e trabalhador, podendo agir conforme os princípios de um ou outro. No bloco de análise das falas dos desempregados, esse processo é esclarecido por Dida, que chegou a participar das reuniões entre as pessoas responsáveis por ele na empresa.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

107

“Eles aceitavam. Ninguém queria, ninguém da parte da produção

concordava com isso. Mas, entre concordar, se manifestar, e perder o

emprego, o que você faria? Porque é o seguinte, nós ficamos reféns

do sistema. O Sobreiro49 que entrou lá, ele foi colocado pelo Collor lá. Foi

quando a empresa foi sucateada e que teve os acidentes graves50. A hora

que teve o maior corte foi essa época.”

É assim que Beto entende a situação dos trabalhadores, eles ficaram na

posição de ‘reféns’. A perda do emprego era o que de pior podia acontecer.

E, para evitar tal situação, era melhor se esforçar para preservar o emprego.

Mas, havia certa ambivalência nessa posição, já que eles permaneciam lá,

porém, em situação de insegurança. Ele disse também que houve clima de

terror: “Era o seguinte, tinha gente que aceitava. Na verdade, antes de ser

privatizada, teve esse clima de terror né! Um papo de que ‘eu vou mandar

embora’.” Ele detalhou o que considera ser aterrorizante “Toda hora o chefe

te chama e diz “é o seguinte: vai ter privatização”, e coisa e tal.”

Segundo a descrição feita, a insegurança e a ameaça de desemprego

se acirraram durante o processo de privatização, configurando um quadro

‘de terror’. Isso fez com que Beto buscasse alternativas. Afinal, não queria

vivenciar o desemprego novamente. “Ah, sim. Eu mesmo pensei que poderia

ser mandado embora – uma situação que eu tive e não queria ter de novo –,

e o que é que eu fiz?, eu fiz um curso de taxi.”

Mesmo percebendo que a tensão e a angústia devidas à ameaça de que

podia perder o emprego eram generalizadas, Beto encontrou sozinho, novas

alternativas de trabalho. Não aventou a possibilidade de se articular com os

colegas, em busca de uma alternativa para o problema comum à sua

categoria: “Cheguei a comprar o táxi e fiquei 8 anos trabalhando com táxi e

na firma ao mesmo tempo.(...) “Fique durante 8 anos. Quer dizer, agora eu

sou taxista. Foi em 93, em 94 eu fiz o curso de Táxi, e até 4 anos atrás eu

49 Júlio Régis Sobreiro, assumiu a presidência da Petroquímica em 1990, com o propósito de privatiza-la. (Rizek, 1994). 50 Refere-se ao acidente ocorrido em 1992, que provocou a morte de um trabalhador e a desativação parcial da empresa. Para mais detalhes, ver Rizek (1994)

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

108

era taxista também. Então, você via que as pessoas tavam mais preocupadas

em se manter do que em discutir.”

Embora a ameaça do desemprego se configurasse como uma questão

coletiva, dado que afetava os interesses de todos os funcionários, o

comportamento de Beto refletia o isolamento em torno da problemática do

desemprego. Mesmo em casa, ele evitava tocar no assunto, limitava-se a

falar o necessário. Seu comportamento confirma a ideia de Beck de que, no

momento atual, há uma tendência à individualização das perdas sociais.

Desemprego: peça-chave do sistema capitalista?

De acordo com o respondente, o desemprego deve ser visto como uma

peça de engrenagem do sistema capitalista. Ele serve como um mecanismo

de renovação dos empregos, de redução dos salários e como forma de

expansão do lucro das empresas51. Nesse sentido, é produzido pelo próprio

sistema, não é uma conseqüência de determinado contexto econômico. Beto

também assevera que a tecnologia gera desemprego. Por outro lado,

educação e qualificação provocam efeito inverso, podem ajudar uma pessoa

a se manter empregada ou faze-la crescer na carreira. Conforme segue:

“O desemprego sempre houve. No nosso sistema capitalista tem que

ter esse rodízio de emprego pra girar. Então você gera desemprego. O

pessoal novo entra e começa a trabalhar ganhando menos, e aí eles crescem

até um patamar. Aí ele é mandado embora. Aí aquela pessoa entra em outro

lugar, ganhando menos. Essa diferença faz aumentar o lucro. Isso aconteceu

comigo, quando eu tava no banco. Quando eu cheguei num patamar no

banco eu comecei tudo de novo em outra área. Isso vale também para a

tecnologia. A tecnologia desemprega. O estudo hoje é que empurra pra

cima.”

51 O fato de que o excedente de mão-de-obra provoca uma redução de seu valor e um aumento do lucro do empresário remete a um argumento utilizado por David Ricardo, quando discute que o emprego de máquinas produz excedente de mão-de-obra, e usado por Marx quando fala do prolongamento da jornada do trabalho. Marx afirma que a mão-de-obra excedente torna-se compelida a submeter-se à lei do capital. (Karl Marx, 1994). No exemplo acima, quem ingressa na empresa, para substituir a mão-de-obra dispensada, aceita uma remuneração inferior à que se pagava antes.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

109

Com base nas observações acima, meu interlocutor concluiu que o fato

de ter interrompido os estudos impediu seu progresso no campo profissional.

Mesmo assim, avalia que a distância entre o local de moradia, de trabalho e

a escola fora um empecilho para que levasse adiante os estudos. Era um

embuste.

“O mal da gente é que quando você tava crescendo no estudo você

parava, interrompia. Por que? Uma, é a própria idade que influencia. Seus

colegas chamam pra ir no bar, você sai, etc. Se quando eu tava no banco, eu

tivesse feito economia (o curso) eu teria ido para outro patamar. Parou de

estudar, aí caiu [ele se refere a si mesmo]. Fiz dois anos de um curso de

contabilidade e parei pela dificuldade. Eu trabalhava na Leopoldina, estudava

no Ipiranga e morava no Jabaquara. Não dava pra fazer, eu tava cansado.”

O entrevistado entende o desemprego como um problema natural, uma

vez que o considera peça de engrenagem do sistema capitalista. Quando

estimulado a avaliar as conseqüências do desemprego para a vida de uma

pessoa, ele destaca que atualmente o tempo foram da ativa se tem

alongado, podendo chegar a 3 anos, enquanto que o tempo que uma pessoa

desempregada tem de seguridade é muito curto (segundo afirma, é de

somente três meses)52. Essa discrepância entre o tempo de desemprego e o

de seguridade social, observada pelo entrevistado, está em consonância com

a tese, defendida por Guimarães (2002a), de que o aumento do tempo do

desemprego influencia a redistribuição dos empregos. Segundo a autora, no

contexto atual de flexibilidade das relações de trabalho, o surgimento da

categoria dos desempregados de longa duração indica mudança na forma de

conexão entre emprego e desemprego. Em países como o Brasil, a

recorrência do desemprego se apresenta como um dos principais problemas

que resulta, entre outras coisas, da escassez de empregos regulados, da

52 É importante destacar que as estimativas do entrevistado baseiam-se apenas em conclusões extraídas daquilo que observa da realidade cotidiana e não de estudos especializados. Ainda que seja impreciso, seu parecer informa sobre as evidências existentes, ou sobre o que se apresenta como real, a partir de notícias veiculadas sobre o assunto e da experiência do desemprego vivida por vizinhos, colegas e pessoas conhecidas.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

110

baixa formação dos profissionais e das novas figurações assumidas pelo

desemprego.

“Além de ser um problema natural do sistema né!, hoje em dia a

pessoa pode ficar 2, 3 anos desempregada e o seguro desemprego só

funciona por três meses. Aí é que tá o problema, isso é muito pouco! Às

vezes, você fica 30 anos trabalhando e aí o desemprego chega antes de se

aposentar. E aí você fica no vácuo. Você vai conseguir emprego onde? Então

aqui no Brasil você deixa de realimentar. Aí a pessoa não fica desempregada,

ela fica ociosa. É como se perdesse o sentido. Mesmo que você tenha

previdência privada, tudo pode mudar. Pra você ter uma aposentadoria de

R$ 10.000, você tem que poupar R$ 1.000,00 durante não sei quanto

tempo.”

Com base no exposto acima, talvez fosse possível substituir o que o

entrevistado entende como ‘natural’ por ‘estrutural’. Da perspectiva de Beto,

as principais vítimas do problema são as que, após longo tempo de

dedicação a uma empresa, ficam desempregadas. Isso porque, uma pessoa

que perde o emprego depois de incorporar hábitos culturais de uma

corporação, e já com idade superior à 40 anos (no auge de carreira),

provavelmente tem mais dificuldade de se recolocar do que outras mais

jovens e com tempo de empresa relativamente menor. Nesse sentido, são

eles fortes candidatos ao desemprego de longa duração.

Mostra que a perda do emprego, por um funcionário que tenha

dedicado boa parte de sua vida à uma empresa, resulta na perda de sentido

de sua existência. Não se trata apenas das dificuldades financeiras

decorrentes da falta do emprego, mas da ideia de que uma vida sem

trabalho fica desprovida de significado. É importante considerar que os

salários pagos aos trabalhadores da categoria petroquímica, frequentemente

permitem que mantenham um padrão de vida relativamente alto, se

comparado à média nacional. Esse fato também viabiliza que eles

redirecionem sua carreira, mediante o ingresso em outra profissão ou o

investimento em um negócio próprio.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

111

Assim, ocorreu-me discutir mais a fundo nas observações de Beto sobre

as conseqüências do desemprego para a vida de uma pessoa. Ele expõe sua

opinião a respeito:

“É, eu já vi pessoas saírem e arrumar emprego melhor. Mas, eu

também vi pessoas até morrerem, por causa de tarem desempregadas, ficar

depressivas. Mas não só porque ficaram ociosas, mas porque precisam. Uma

coisa é ficar desempregada quando tem vinte, vinte e poucos anos. Outra é

quando tem 40 anos. Pelo menos 10% de chance ele tem a menos. Além de

ser uma ingratidão do mercado, ele vai ter que começar tudo de novo, então

é muito mais difícil! A pessoa, às vezes não se prepara. Você se acomoda

num serviço porque acha que é bom. Mas, não tem garantia nenhuma,

porque o sistema capitalista precisa gerar lucro. O acionista pensa assim, ele

olha o gráfico. Se puder mandar 100, dos 500 que trabalham com ele,

embora, ele corta para aumentar o lucro.”

Ele percebe que as perspectivas de trabalho são menores para os que

passam dos 40 anos. O desemprego e a dificuldade de se recolocar são, aos

seus olhos, uma injustiça diante dos anos de dedicação à empresa, uma

“ingratidão!”.

Mas, para quem o desemprego é de fato um problema? Essa dúvida

persistia, queria saber seu ponto de vista, por isso interroguei meu

interlocutor sobre esse fato. A resposta:

“O desemprego é um problema para a família. Uma criança que tá

chorando em casa por leite, ela não quer saber se você tá desempregada,

ela quer o leite dela. Para um pai de família é problema! Aí o cara vai pra

bebida, e fica tudo perdido. O cara que ganha menos é mais prejudicado. Ele

não poupa, não tem um bem para vender. O cara que ganha bem tem uma

poupança, e quando sai de um emprego já tem outro.”

A explanação de Beto indica a percepção de que o desemprego afeta os

indivíduos de maneira desigual53. Ele aponta a renda como um diferencial

53 Conforme dito antes, Guimarães (2002a) argumenta que o desemprego atinge desigualmente os indivíduos segundo suas características de sexo, idade categoria sócio-profissional e escolaridade.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

112

importante entre os mais e menos vulneráveis ao desemprego, mas não

chega a indicar que os rendimentos superiores também podem estar

associados a uma melhor condição sócio-profissional e escolar.

Considerações gerais sobre os efetivos

Ao longo desse trabalho, algumas semelhanças entre as biografias dos

efetivos da Petroquímica se evidenciaram. A conformidade não se dá apenas

em determinadas fases da carreira deles, como por exemplo, a estréia no

âmbito do trabalho, mas em pontos de vista esboçados a respeito de

diferentes temas. Entre eles os mais freqüentes são: relações de trabalho,

importância da vida profissional, figurações do desemprego em seu

imaginário, papel do sindicato, mudanças do mercado de trabalho.

Trajetória de trabalho

Muitos dos entrevistados começarem a trabalhar cedo, ainda na

infância, mas o fato de serem temporãos nesse quesito não tornou negativa

a forma de verem o trabalho. Pelo contrário, muitos deles demonstraram

satisfação e orgulho ao falar de sua trajetória profissional e frequentemente

falam da carreira com positividade.

Vlad é um dos que começou a trabalhar ainda criança. Diz que tinha

apenas 9 anos quando inseriu-se numa atividade informal. No entanto, aos 7

já ganhava algum trocado, fazendo as camas e pequenas compras para a

pensão de dona Eulália, sua vizinha. O dinheiro adquirido servia para

comprar o pão de cada dia. Sua longa trajetória de trabalho é motivo de

orgulho, mesmo quando relata os sacrifícios que viveu. Fala abertamente

sobre isso:

“Isso, mas antes de vender essas cocadas, quando eu tinha 7 anos eu

trabalhava numa pensão. Então eu arrumava cama e ia no supermercado pra

ela. Então eu ganhava, naquela época, eu não lembro do dinheiro, mas era

tipo R$ 1 por dia, pra fazer esse serviço. Com esse dinheiro, a minha mãe já

ia na padaria e já contratava aqueles 10 pãezinhos por dia e 1 litro de leite,

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

113

pra todo mundo. Então já ficava pago. Já servia pra ajudar, e isso foi antes

de vender essas cocadas. Inclusive, se você perguntasse pra uma irmã

minha, essa dona Eulália não conseguia segurar um quilo de qualquer

produto. Dava um cansaço incrível nela. Só que eu não ficava direto com ela.

Cedo eu ia, arrumava as camas, depois quando ela precisava de mim –,

como a pensão era bem perto da minha casa, era um espaço de dois

terrenos entre a pensão e a minha casa, e era aberto – então ela só gritava:

“Vlad, ô Vlad”, parecia um miado, era tipo um código. Eu ficava sempre

atento. Aí, o meu pai conseguiu trabalho na prefeitura, nessa época. Aí, tipo

assim, em 75 eu tinha 12 anos. Aí meu pai conseguiu o emprego na

prefeitura e duas bolsas de estudos. Então, eu fui estudar na Continental.

Chama Instituto de Tecnologia Continental.”

Em quase todos os relatos dos efetivos, o trabalho figura como sendo

de grande importância, meio através do qual se relaciona com o mundo,

meio de realização profissional e pessoal, fonte de saber – já que

proporciona o conhecimento do mundo – e o aprendizado de uma profissão.

Ito indicou a percepção de que o trabalho proporcionou a estruturação

de sua vida, a aquisição de uma profissão e a constituição da própria família.

Mas mostrou também que sua família de origem também teve papel

importante nessa estruturação, influenciando gostos e escolhas pessoais.

Assim, os primos e o irmãos deram o caminho das pedras da escolha por um

curso técnico. Sobre isso ele fala:

“Seguir um caminho, escolher, sem pensar muito. Ai eu fiz um curso

gratuito, estadual, o curso da [ não compreensível ] em técnico

[laboratoristico] industrial. É um curso que mistura um pouco de química

com metalurgia. Ai depois eu acabei me virando sozinho, não precisei da

ajuda do meu primo. Ai eu acabei eu mesmo arrumando um estágio,

efetivação, depois entrei na petroquímica. Foi mais ou menos essa trajetória.

Ai quando eu entrei na PQU a gente tinha intenção de fazer faculdade aqui

na Oswaldo Cruz, um curso noturno ...//... que eu escolhi ...//... o curso de

química industrial. Eu me formei, continuei lá e esse ano eu resolvi voltar. Ai

nesse intervalo eu fiz o curso de pós-graduação, pra poder me aprimorar e

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

114

atualizar. E agora eu voltei esse ano pra fazer engenharia química, a

trajetória foi mais ou menos essa aí. Não sei se respondeu a sua pergunta

sobre o que significou, significou assim: eu preciso ter uma casa, uma família

bem, eu preciso ...//... ter uma profissão e estruturar a minha vida.”

Em outros momentos chega a reafirmar que o trabalho tem o papel de

estruturar a vida e de mostrar a importância (utilidade) de uma pessoa para

a sociedade. Nesse quesito, sua opinião conflui com a de Beto: “O trabalho

era estrutura de tudo isso, não só a estrutura financeira, não é só dinheiro,

como de organização. De organização de vida, de você fazer parte da

sociedade e você ser produtivo e falar “eu sou útil”.

A concepção de Ito sobre trabalho está em consonância a ideia de que ele

define a posição social das pessoas na sociedade. Nesse sentido determina

seu status. Conforme dito:

“(...) significa uma série de coisas. Não posso descartar o lado

financeiro que você precisa de dinheiro, você acaba se acostumando com

determinadas comodidades que o dinheiro te proporciona como automóveis,

viagens, passeios, restaurantes, investimento na carreira, estudar e se

aperfeiçoar. O lado disso que eu falei pra você de ser útil, de se realizar e de

você se sentir uma pessoa realizada, alguém olhar para você e falar “olha

que bacana” as pessoas te pedirem conselhos, venham conversar com você,

saber de você. É útil né? É uma referência. Concluiu (...) É, status. Isso.”

Alguns respondentes, como Vlad e Beto vêem no trabalho o sentido da

vida, disseram literalmente: O trabalho é tudo!

Vlad afirmou que o ingresso no mercado de trabalho proporcionou

mudanças positivas, significou tudo né! significou minha liberdade. Essa frase

me deixou inquieta. Liberdade em que sentido? Eis a resposta: “Eu acho que

a primeira coisa que o trabalho proporcionou foi liberdade em todos os

aspectos. Liberdade de consumo, liberdade de pensamento, liberdade de

angariar oportunidades, coisa desse tipo. Fora disso o mundinho era limitado

ao que o meu pai decidia.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

115

O trabalho aparece na fala de Vlad como meio de garantir liberdade de

pensamento, uma forma de competir no mercado de trabalho e de obtenção

de novas oportunidades. Quando se refere à liberdade de consumo faz

pensar que o trabalho lastreia sua inserção no mundo social, constituindo-se

em uma forma de mediação com outras esferas sociais. Mas quando passa a

consumir coisas que antes não lhes eram acessíveis ele se sente livre, livre

do mundo dos ‘excluídos’ do consumo, livre da insatisfação de querer o que

não pode possuir. O trabalho o retira da exclusão à qual estava confinado,

viabiliza seu ingresso ao mundo do consumo. Nesse sentido, consumir

ultrapassa o sentido de mera fruição da coisa, podendo ser entendido como

aquilo que viabiliza a existência social, a conexão com o mundo exterior.

Para Beto o ingresso no mundo do trabalho não significou apenas um

meio de satisfazer suas necessidades básicas. Passou a assumir

responsabilidades precocemente. A doença que acometeu seu pai durante a

infância o obrigou a, junto com a mãe, assumir a responsabilidade sobre a

família muito cedo. Como dito antes, da análise de sua entrevista percebi

que, para ele, o trabalho confere sentido à vida das pessoas, sobretudo

porque mostra a elas sua ‘utilidade’, ou seja, sua importância e lugar social.

Mas, além disso, o trabalho foi para ele um meio de conhecer o mundo:

as pessoas, o preconceito racial, a política – “Mas, pessoas mesmo, política...

Quando você sai, você conhece política, racismo, um monte de coisa!”

Foi na labuta diária pelo ganha pão que ele conheceu o mundo

concreto das relações sociais, aprendeu maneiras de lidar com os jogos de

interesses entre as pessoas, com a competição do mercado de trabalho e

compreendeu que nem sempre esses interesses resguardam valores morais

de justiça e igualdade social. Conforme relatou:

“(...) no serviço você vê as falsidades, você vê as coisas certas, as

coisas erradas, você tem toda uma linha de pensamento das pessoas. As

pessoas prejudicam as outras pra obter cargos, obter vantagens e, mesmo o

próprio sistema, ele é assim cruel mesmo! Principalmente nós né, pobres,

negros, sempre foi muito difícil conseguir, principalmente promoções.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

116

Beto indicou que a lógica de competitividade no mercado de trabalho

produz e reproduz desigualdades entre os que lutam por oportunidades para

crescer na carreira. Nesses termos a concorrência é predatória, uma vez que

os menos qualificados e com formação educacional precária têm

paulatinamente menos chances. Sua biografia é reveladora da existência

dessas desigualdades, que são reforçadas pela questão racial. De acordo

com o quadro por ele delineado, não teve as mesmas chances que outros

profissionais com formação semelhante ou inferior à sua. Por isso diz que

pobres, negros têm menos chances de serem promovidos.

Competição e as novas orientações de conduta

Entre os efetivos, uma das respostas consensuais foi a que concernia às

mudanças do mercado de trabalho. Todos afirmaram que desde quando

ingressaram até o momento atual, uma das principais mudanças é o

aumento significativo do grau de exigência dos empresários em relação aos

empregados. Cada um justifica esse fato de modo particular, no entanto a

percepção sobre o aumento do desemprego apareceu reiteradas vezes como

uma das importantes razões do aumento das expectativas e demandas no

âmbito profissional.

“O que mudou é ...//... o nível de exigência, de concorrência. Então

hoje você tem que ter o que? Empregabilidade. Você tem que ser uma

pessoa empregável, que que você tem para oferecer? “Você quer trabalhar

comigo?”, “sim eu quero” então que você tem para oferecer? Então hoje

você chega a um extremo “ah, eu quero ser analista químico, fazer analise

química. Eu sou formado em técnica com química, eu fiz faculdade, fiz pós-

graduação e estou fazendo mestrado”. Entenderam? É um extremo.

Neguinho pra fazer uma atividade que antes uma pessoa que às vezes sem

formação fazia, só com a prática, hoje se exige nível universitário.”

É interessante notar que Ito defende a ideia de que hoje em dia o

sujeito tem que ser ‘empregável’. Ou seja, é ele o responsável pelo próprio

destino profissional. Isso quer dizer que o trabalhador da atualidade tem que

se manter antenado às novas demandas do mercado, e ter condições para

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

117

zelar por seu aperfeiçoamento. Em nenhum momento de sua fala o

empresário aparece como co-responsável pela capacitação de pessoal. Outra

mudança percebida por eles, que está implícita no excerto acima, e que

apareceu em diversos relatos é que, devido à escassez de vagas, o

empregado deve se esforçar mais do que antes, para conquistar um

emprego; as empresas, pelo contrário, têm à sua mão um farto leque de

opções para encontrar profissionais, dado o excesso de oferta de mão-de-

obra. Tal disparidade entre as condições das partes (empregado e

empresário) também provoca o crescimento das exigências.

A partir da análise dos relatos percebi que ser empregável quer

dizer mais do que competência profissional. Isso porque a capacidade de

conquistar um emprego ou se manter nele está também em se fazer

parecer competente e saber procurar por oportunidades onde elas

estiverem54. O fato de que a responsabilização sobre o destino profissional

recai sobre o próprio trabalhador é um dos aspectos que evidenciam a

individualização no mercado de trabalho.

No entanto, me surpreendi quando Ito associou o refinamento dos

critérios de seleção e as expectativas sobre o perfil dos profissionais de hoje

em dia ao avanço tecnológico e modernização dos sistemas de trabalho.

Sobre o grau de exigências ele asseverou:

“Está muito maior, muito maior. Tanto é que os jovens hoje eles tem

que se dedicar mais para poder ter alguma coisa, do que antes. Eles têm que

estudar muito mais, se preparar muito mais. Por quê? Porque a evolução

tecnológica é muito rápida. Antes pra mudar de A para B levava 50

(cinqüenta) anos hoje muda de B para C em 10 (dez) anos e lá na frente de

C pra D em 5 (cinco). A velocidade com que as coisas tão mudando “são

muito rápido” e você passa a ficar dependente de determinadas mudanças

como telefone celular por exemplo, aposto que quando você perguntou meu

54 Tal configuração conflui com a ideia de Dubar, já citada no Capítulo I, de que “Saber, saber-fazer, e saber-estar tornaram-se os três pilares da competência, rapidamente ligados pelas qualidades a exigir e/ou desenvolver em todos os trabalhadores: iniciativa, responsabilidade e trabalho em equipe”.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

118

número, que eu falei pra você que eu não tinha você estranhou. “Como você

não tem celular?”.

Esse quadro mostra a tendência de que o homem moderno está

condenado à viver eternamente insatisfeito, uma vez que, sob a lógica da

competição, há sempre novas metas a alcançar. Por essa razão ele está

sempre distante da plenitude e deve se adaptar às mudanças que lhe são

demandadas. É como estivesse sempre devendo, porque as possibilidades de

aperfeiçoamento não têm fim, o que lhe impõe o aprimoramento contínuo.

Essa expectativa de que deve estar disposto a acompanhar as

transformações próprias das relações competitivas pode gerar ansiedade,

stress, insegurança.

Ao perguntar sobre o efeito da contínua modificação de parâmetros sobre as

competências profissionais, Ito respondeu: “Gera um stress. Que não

necessariamente é negativo e vai dar úlcera no estomago, nada disso. Pode

ser positivo e esse stress vai deixar a pessoa cada vez mais motivada, né?

Mas que gera um stress, gera.”

Diferente da maioria dos entrevistados, ele aponta para o fato de que

essas exigências e a concorrência do mercado de trabalho podem ser vistas

com positividade, mesmo considerando que a competição gera desemprego.

“Como as exigências são maiores, você tem que se preparar mais para poder

exercer determinadas funções que antes você não precisava se preparar

tanto.” Mas o que explica o crescimento das expectativas? Sua justificativa:

“Porque a tecnologia mudou, porque o mercado está mais competitivo,

tem mais gente querendo fazer a mesma coisa que antes tinha poucas

pessoas. Então a concorrência aumentou e você tem que ter um diferencial.

Então, tem pessoas que elas falam assim “eu estou desempregado”

[correção], você não está desempregado você é desempregado você não

consegue mais se colocar, ou você muda de profissão ou você não volta.”

Ito não chegou a aventar a possibilidade de que a responsabilização

pelos resultados profissionais poderia ser atribuída às empresas. Nas

relações do mercado de trabalho “cada um trata de si”.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

119

Aliás, nenhum dos entrevistados considerou que os organismos sociais

de solidariedade poderiam ter um papel na preparação dos trabalhadores

para essas exigências, ou na utilização de mecanismos que atenuassem o

efeito do contínuo aumento delas sobre seu desempenho no exercício de

suas funções. O que pode ser revelador de que as formas associativas têm

perdido força e legitimidade em sua atuação no campo de trabalho. Sobre

isso, falarei mais adiante quando será discutida a forma como os efetivos

vêem o papel do sindicato nas novas relações de trabalho.

Diferente dos demais entrevistados, Ito refere-se ao desemprego como

mais uma variável do mercado de trabalho e não como um problema grave

que pode afetar a vida de quem depende de trabalho para viver. Sua

experiência pessoal relativa ao desemprego durou pouco, não alterou seu

modo de viver, não foi propriamente um drama.

“(...) Bom, eu fui mandado embora em novembro de 88 (oitenta e oito)

e eu sou tão azarado que em janeiro de 89 (oitenta e nove) a PQU me

mandou uma carta me convidando pra participar do processo de seleção

(risos), ou seja, eu não procurei emprego, não deu tempo. Ai em janeiro eu

me inscrevi e em fevereiro eu comecei ...//... prestei o vestibular, um exame

de seleção. Passei, fiz o curso de operador por 3 (três) meses e em junho de

89 (oitenta e nove) eu já tava registrado de novo em carteira.”

Talvez, seu modo de pensar resulte do fato de ele não ter tido

obstáculos semelhantes em sua trajetória. Mesmo a longa experiência de

desemprego do irmão tendo sido marcante, ele vê tal controversa com certa

indiferença e não dimensiona as conseqüências para a vida dos

trabalhadores em geral. Ainda assim, considera que depois de ficar

desempregado, muitas vezes, a reconversão de um profissional ao mesmo

ramo em que atuava torna-se difícil, fazendo-se necessário, muitas vezes,

buscar novas oportunidades em outras carreiras. Vai dando sua receita,

como a tirar de um bloco de notas, os ingredientes dos ‘bem sucedidos’

nesse âmbito.

O ponto de vista acima delineado evidencia bem os resultados do

processo de individualização no campo profissional. O perfil do entrevistado é

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

120

um espelho de como, nas relações empregatícias, a compleição aos valores

individualistas pode moldar a identidade de um trabalhador. Ao longo de

toda entrevista, Ito dá indícios de sua tendência à adaptação às mudanças

implementadas pela empresa e à individualização. Não a individualização das

perdas, mas a dos ganhos, a das vitórias a dos que conquistam ‘liberdade’ de

escolher suas opções profissionais. De qualquer modo, esses resultados não

refletem a realidade da maioria dos empregados porque seguem a lógica

excludente da competitividade.

Sua maneira de se portar e de pensar as relações de trabalho reflete

apenas um modo de conformidade da índole dos empregados da

Petroquímica. Ele contrasta com perspectivas como a de Bira, que revela

uma preocupação maior com o desemprego, um problema que aflige a

categoria “trabalhadores”, em geral. Ele observa: “No mercado antes você

tinha mais emprego, hoje o emprego está escasso...” Mas, o que

exatamente isso tem a ver com a realidade de quem tem emprego fixo, faz

mudar as relações dentro da empresa? A resposta categórica do

entrevistado:

“Muda, muda, faz mudar, você tem que ser um bom funcionário para

você se manter empregado, vai, tá fazendo um bom trabalho você se

mantém empregado porque você sabe que se você sair da empresa hoje, se

eu sair da Petroquímica você não tem perspectiva de arrumar um outro

emprego no ramo petroquímico e até mesmo com o mesmo salário, então

hoje o emprego em si é escasso.” Mas minha suspeita de que a existência

do desemprego estrutural altera as relações dentro do trabalho e pode

moldar comportamentos parecia se confirmar. Conforme o relato de Bira: “as

empresas exigem hoje mais dos funcionários exatamente pela escassez.”

Entretanto, eu apenas suspeitava sobre o tipo de impacto dessa configuração

em relação ao emprego / desemprego podia gerar sobre os sentimentos e

comportamentos de pessoas que gozam de uma relação trabalhista estável.

Ele ilustra:

“Os impactos... é essa insegurança do dia-a-dia, a pessoa mesmo

desempenhando bem a sua função você tem aquela insegurança de

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

121

desemprego e até em relação com as outras pessoas a gente nota essa

insegurança, do stress no dia-a-dia com relação ao trabalho, com as

exigências de você estar desempenhando o dia-a-dia seu trabalho.”

Beto concorda com a opinião de Bira de que os empregos estão

escassos, mas assevera que desemprego sempre houve e que ele tem o

papel de fazer expandir os lucros no sistema capitalista. Diz que quando uma

pessoa é mandada embora, provavelmente seu substituto terá uma

remuneração remuneração menor. A partir da dissecação de sua biografia de

trabalho, mostra modificação do nexo entre emprego e desemprego:

“O desemprego sempre houve. No nosso sistema capitalista tem que

ter esse rodízio de emprego pra girar. Então você gera desemprego. O

pessoal novo entra e começa a trabalhar ganhando menos, e aí eles crescem

até um patamar. Aí ele é mandado embora. Aí aquela pessoa entra em outro

lugar, ganhando menos. Essa diferença faz aumentar o lucro. Isso aconteceu

comigo, quando eu tava no banco. Quando eu cheguei num patamar no

banco eu comecei tudo de novo em outra área. Isso vale também para a

tecnologia.

Mesmo assim, observa que houve uma mudança. Antes se sabia onde

procurar trabalho, hoje em dia não mais, as oportunidades rareiam. Além

disso, vê na tecnologia uma das causas do desemprego. Conforme se vê no

relato abaixo:

“A tecnologia desemprega. O estudo hoje é que empurra pra

cima.” (...) “Antes, no meu caso, você precisava de um emprego. Você

precisava, abria o jornal, você escolhia onde ia trabalhar. Tinha teste

vocacional e você via várias profissões que você nem sabia que existiam.

“Pizzaiolo, o que é isso?, ah, é de fazer pizza?”, então você decidia por isso.

Hoje você Não procura emprego, você manda currículo e aí, eles escolhem

ou não. Hoje a CUT – Central Única dos Trabalhadores dá uns cursos e eles

encaminham. O Estadão, antes, tinha 4, 5 páginas só de emprego. Hoje não

existe mais isso não. Hoje você tem que saber se existe o cargo, se informar,

saber que a empresa tá procurando e mandar currículo [quase adivinhar].

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

122

Antes, você tava andando na rua, tinha uma placa na firma, e você entrava,

fazia uma ficha e, lá mesmo, você ficava”.

Por outro lado, em alguns aspectos, os entrevistados demonstram

opiniões díspares. Os efeitos da reestruturação e da privatização sobre o

modo de viver e o quotidiano no trabalho são exemplos disso. Quando os

respondentes assumiam cargos de chefia, foi comum perceber uma

aceitação maior das regras e das mudanças estabelecidas pelos superiores

da empresa. Essa adaptabilidade explica, em parte, a posição que elas

ocupam, uma vez que o pessoal do comando deve fazer ressoar as decisões

da empresa, e buscar a inculcação, pelos empregados, de regras e

hábitosque reflitam a cultura da corporação.

De acordo com Ito, a privatização afetou de maneira contundente as

áreas administrativa e de manutenção e não o setor de produção. Alí houve

substituição do pessoal efetivo por terceirizados, o que, de sua perspectiva

era plenamente justificável. Fez questão de mostrar que o processo de

reestruturação não implica apenas tirar emprego, mas pode ser símbolo de

novas chances, oportunidades. Isso se evidenciou na seguinte fala:

“Não, nesse sentido não. Por outro lado na área administrativa e

manutenção foi um choque maior, eu não vou entrar nesse mérito porque eu

acho que você vai conversar com alguém de manutenção, mas foi um

choque maior na minha visão. Porque? Porque houve terceirização então

muitas atividades de caldeiraria, de instrumentação, de mecanização foram

terceirizadas. Muitos aposentados até abriram empreiteiras nessa época e

hoje estão lá como donos das empreiteiras, estão muito bem lá ganhando

não só lá dentro como em outras empresas químicas. Outros saíram foram

para outros ramos. Houve uma redução grande dentro da área de

manutenção e administrativa também: tinham muitos gerentes, muito chefe,

chefe do chefe, secretária do chefe e o setor de empilhar cadeira “pra que

que serve?”, “ah não sei, vamos inventar esse setor de por uma cadeira em

cima da outra a gente dá uma secretaria para o cara e ele faz isso daí”. Isso

tudo foi acabando, então acho que essa parte executiva tal isso ...//... foi um

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

123

choque muito maior do que pra nós da operação, porque eles estavam

sobrando.”

Não apenas para os empreiteiros, mas para alguns profissionais

efetivos, a privatização e a reestruturação tornaram-se oportunidades para a

conquista de avanço profissional. Ele é exemplo vivo disso, uma vez que foi

nessa fase que foi promovido.

“Era, era comentado: mudanças, “olha reestruturação”. Por exemplo,

operador 3 (três) tinham 4 (quatro) por turno e hoje só tem um. Inclusive

quando eu fui promovido de operador 2 (dois) para operador 3 (três) foi

quando ocorreu essa mudança, ou seja, antes eu era promovido para

operador 3 (três) para cuidar de uma unidade de processo, quando eu fui

promovido eu fui cuidar de ...//... 6 (seis) unidades de processo. É diferente.

Isso tudo foi mudando e ela deu uma estagnada no investimento em

tecnologia, não foi uma época boa para a empresa nem em resultado

financeiro nem em imagem.”

No entanto, o ponto de vista acima exposto se distancia de outras

interpretações acerca do processo de privatização. Muitos efetivos destacam

as tensões provocadas pela incerteza do destino profissional, devida às

mudanças. Reclamam que não houve clareza na condução dessas alterações.

Isso pode ser visto no relato de Beto, a seguir:

“Foi desgastante. O pessoal que dirigia não dava informação. A gente

mal sabia o que tava acontecendo. Foi incrível, que antes, eu tava numa boa

fase, o salário tava bom, o Banco do Brasil trouxe umas ações pra vender.

Aí, muita gente entrou né, aí acompanhando as ações, as ações sumiram,

foram pulverizadas.”

Além da falta de transparência do processo, Bira também falou da

insegurança que tais transformações geraram, uma vez que havia

expectativa de que provocariam desemprego. Sobre isso ele falou:

“Toda mudança sempre gera insegurança, porque as empresas elas,

esses processos que elas adotam, claro, é para se perpetuar, visa lucros,

porque ninguém...// o investimento vai tá melhorando a qualidade do

trabalho, sim, mas se não gerar lucro ela não faz esse investimento, e

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

124

quanto a esse investimento sempre reduz pessoas. Então sempre gera

insegurança com relação a todos, há esse comentário entre as pessoas..”

De maneira geral, a partir da análise das entrevistas, tudo leva a crer

que as transformações do trabalho que provocam desemprego tendem a

causar uma alteração no comportamento dos operários, segundo os relatos

dos entrevistados. É possível que o acirramento da concorrência, sobretudo

por efeito da escassez de emprego – no mercado em geral –, da

automatização de funções, entre outros tenha produzido esse resultado.

De fato, os relatos sobre as transformações de trabalho, entre meados

de 85 e fim dos 90, dão indicações de que há uma tendência ao

fortalecimento de comportamentos individualistas em detrimento dos valores

coletivos. Entretanto, não se deve com isso inferir que tenham sucumbido as

manifestações de comportamentos pautados na reciprocidade, apenas deve-

se ter claro o enfraquecimento desses valores. Parte dos entrevistados

conheceu de perto relações de trabalho baseadas em valores comuns,

percebiam semelhanças entre seus ideais e o dos outros trabalhadores. Isso

os unia e viabilizava a luta em prol de sua categoria.

Entretanto, valores individualistas, antes menos importantes, parecem

ter ganhado força. Isso talvez explique o fato de que, para a maioria dos

respondentes, as vitórias ou os problemas que obtiveram em sua carreira

são decorrentes de sua forma de agir, de sua postura. Dificilmente os

respondentes recorreram a alguma figura coletiva para justificarem a

situação em que se encontram no trabalho.

Isso confirma a tese de Beck e Beck-Gernsheime de que a

individualização é resultado da configuração do mercado do trabalho e que a

firma perde significação na formação da identidade coletiva.

Com base nessa ideia, algumas considerações parecem pertinentes.

Sobre a história do operariado55, alguns autores mostram que as

55 As lutas operárias germinaram com base em sentimentos de comunidade entre trabalhadores, que professavam a igualdade de condições entre todos, mediante a promoção da justiça social. Opunham-se radicalmente às ideias de concorrência e

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

125

representações coletivas ganharam espaço num contexto em que os

trabalhadores guiavam sua forma de julgar, pensar e sentir por meio de

valores de igualdade. Isso permitiu a constituição de uma identidade

comunitária, da identificação com o outro e da consolidação de um

pensamento comum entre trabalhadores.

É preciso atentar para a mudança de valores que se operou desde a

formação da classe operária até os dias de hoje. No contexto atual de

acirramento da competitividade, o anseio por autonomia, ou melhor, por

liberdade, parece orientar a conduta dos trabalhadores. Com isso,

comportamentos individualistas passam a prevalecer sobre os coletivos56 e

dão lugar a formação de identidades societárias que se configuram

mediante interesses provisórios e podem basear-se na formação de coletivos

múltiplos, que se alteram conforme o surgimento de novos interesses.

Nesse estudo sobre os trabalhadores do setor petroquímico, raramente

os entrevistados fazem menção a referências coletivas. O sindicato, que é a

principal organização coletiva de empregados, perdeu espaço como

representação da classe que trabalha. Grande parte dos entrevistados fala da

atuação dessa corporação com desconfiança. Mesmo assim, alguns deles

reconhecem que o sindicato tem o papel de defender os interesses dos

trabalhadores. Isso permite fazer uma digressão. Trata-se da análise do

evento da venda de 10% das ações da empresa aos empregados.

competição. Para mais detalhes, ver “A Formação da Classe Operária” (Thompson, 1987). Na medida em que a competição firmou-se como um valor entre os operários da atualidade, dá-se lugar aos valores individualistas. Com essa observação, não pretendo fazer parecer idênticas as histórias da classe operária inglesa e da brasileira, muito embora a primeira tenha influenciado a outra em sua constiruição. Em seu artigo “Por uma sociologia do desemprego”, Guimarães dá lições valiosas sobre a importância de se levar em consideração o contexto em que um fenômeno social se constitui. Ela refere-se à produção de informações e dados sobre o tema do desemprego, mas essas considerações são válidas para qualquer estudo sociológico. É necessário destacar as diferenças culturais, econômicas e sociais, e outros aspectos como base de dados e critérios utilizados na prospecção de informações, em determinado estudo. Como foi dito no Capítulo I, um dos problemas enfrentados pelo trabalhador brasileiro é a escassez de trabalho regulamentado e a ausência de programas sociais de proteção ao desempregado. Tais situações contrastam com as dos trabalhadores europeus, por exemplo. 56 Em A Formação da classe Operária Inglesa, Thompson mostra que “havia uma consciência da identidade de interesses entre os trabalhadores das diversas profissões e níveis de realização, encarnada em muitas formas institucionais e expressa numa escala sem precedentes, no sindicalismo geral de 1830-34,” (Thompson, 1987: )

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos

126

A forma como decorreu – com pouca transparência (segundo os

relatos) – o estilo de negociação – excludente para algumas categorias,

podem ser indicativos de que, a complexificação das relações de trabalho

tornam difícil a organização em torno de um interesse comum. Alia-se a isso

o fato de que, com a compra das ações, os empregados estavam motivados

a tornarem-se donos de parte da empresa (10%), o que os distanciava da

posição de empregados, podendo ter causado uma confusão na identidade

operária [trabalhador ou proprietário?]

Como se verá na avaliação sobre a situação dos desligados, os

trabalhadores não conseguiram se unir em torno de um objetivo que

expressasse a vontade de todos. Por isso mesmo, perderam a condução do

processo e , mesmo os que permaneceram com as ações, correm atualmente

o risco de perder todo seu investimento.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

Terceirizados da Petroquímica – abrindo diálogo

No primeiro momento, quando falava com os trabalhadores e os

convidava a contribuírem com depoimentos sobre sua experiência de

trabalho, frequentemente estranhavam o objetivo de investigação. Busquei

deixar claro que se tratava de um trabalho de pesquisa científica na área de

sociologia do trabalho, e que essa pesquisa não tinha nenhum vínculo com a

Platume, nem com a Petroquímica União.

Os trabalhadores queriam entender o que me motivava a fazer o

trabalho. Buscavam conhecer o meu interesse em compreender sua

percepção sobre as mudanças do mercado e em saber qual o porquê do

comportamento adotado a partir delas.

Muitos me perguntavam quem havia fornecido seus dados e, quando

eu esclarecia que havia entrado em contato com a Petroquímica e com a

Platume, muitas vezes ficavam ainda mais desconfiados de que eu poderia

ter vínculo com uma dessas empresas. A dúvida só se desfazia quando as

entrevistas aconteciam. O teor autobiográfico e a diversidade das perguntas

– que abordavam seu histórico de trabalho, as relações com familiares e

amigos, as mudanças no sistema de trabalho, a importância da religiosidade,

entre outros – dava indicações de que não se tratava de pesquisa para

qualquer das empresas (PQU ou Platume).

Após conversarmos por telefone, agendava as entrevistas com as

pessoas que se mostraram interessadas, nos lugares que lhes eram

convenientes. Em todos os casos, as entrevistas aconteceram na casa dos

entrevistados, preferencialmente à noite, período em que eles estavam fora

do trabalho.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

128

Perfil – conhecendo os terceirizados Como havia definido previamente, busquei entrevistar pessoas que

tivessem iniciado sua vida na empresa, pelo menos, a partir da década de

80. Isso me garantia que suas experiências pudessem dar testemunho sobre

as transformações do mercado petroquímico e do mercado de trabalho em

geral, dos últimos 15 anos.

Os entrevistados da Platume eram homens em sua totalidade e tinham

ingressado na empresa há mais de 15 anos. O fato de não ter mão-de-obra

feminina na Platume poderia ser indicativo de um perfil determinado de

trabalhadores. Não raro, esses homens – responsáveis sozinhos pelo

sustento da família – esboçaram pontos de vistas que refletem restrições ao

trabalho feminino. A argumentação se ancorava na defesa de uma educação

mais segura para os filhos, uma estrutura familiar mais sólida e o equilíbrio

no âmbito doméstico.

Quanto às funções que exerciam, quando eram efetivos na

Petroquímica, dois deles haviam trabalhado diretamente na produção, um

tinha a função de almoxarife, outro, de chefe de caldeiraria e o outro havia

atuado no setor de segurança do trabalho.

A ideia inicial era fazer entrevistas com pessoas cuja experiência

estivesse focada na área de produção. Como dito antes, a escolha

justificava-se por ser essa a área que sofria mais transformações na

empresa, em decorrência dos processos de modernização, automação e

redução do quadro de funcionários, entre outros.

No caso dos trabalhadores terceiros, tivemos de adequar-nos à

realidade da Platume. A maior parte dos funcionários não atuava na área de

produção, sem contar que muitos estavam em outra empresa, que não a

Petroquímica União, e algumas pessoas encontravam-se em período de

férias.

Assim, depois do sorteio tive de consultar a diretoria da empresa sobre

a validade de minha escolha, o que impôs, em alguns casos, a seleção de

outra pessoa para a entrevista.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

129

A pesquisa de campo abriu novas perspectivas, deu lugar a

interrogações diferentes das que tinha no começo da pesquisa. Desse modo,

foi a partir da prospecção dos relatos, que os fios do trabalho de campo

foram se deslindando. Passemos às entrevistas.

Análise das entrevistas

O trabalho como parte do ser

Chico: 53 anos, casado, aposentado, trabalha como empregado

terceiro na PQU

Chico é um dos entrevistados que mais se destacou no processo de

coleta das entrevistas. Cursou até o segundo grau na escola. Fala com

objetividade, clareza de ideias, além de ter uma excelente memória! É

sergipano, nascido em Salgado. Veio para São Paulo com a mãe. Fala

dramaticamente de seu passado e das influências do pai sobre sua vida

como pessoa e como trabalhador.

Seu pai nasceu em Frei Paulo (Se), em 1908. Era semi-analfabeto,

aprendeu a ler sozinho. Em termos profissionais, fazia peças e carroçaria de

caminhão. Chegou em São Paulo sozinho, em 1955, um ano antes da família,

em busca de oportunidades de emprego; em seguida trouxe a esposa e os

filhos. Nessa ocasião, Chico tinha apenas 3 anos. Antes de vir, o pai já não

morava junto com a família. Vivia em Aracaju, capital de seu estado natal,

pra garantir o sustento de todos. A ausência da figura paterna marca esse

depoimento. É uma ausência que se fez presente na reconstituição de sua

trajetória no trabalho. Durante sua fala, Chico refire-se a ele em momentos

diferentes.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

130

Mesmo em São Paulo, via seu pai raramente, uma vez que ele ficava

interno no trabalho, devido à distância de casa. Apesar da falta paterna,

guarda admiração pelo pai, por levar em consideração a causa de seu

esforço: tinha como objetivo proporcionar conforto à família. “Até os 18 anos

não trabalhava, porque a meta do meu pai era dar uma boa formação para

os filhos. Muitas vezes, os amigos dele falavam que ele era um louco. Como

ele podia, na idade que tinha (60 anos), sustentar a família inteira sozinho,

sem nenhum dos filhos trabalhando? Isso aí é uma coisa que me marcou!”

A despeito da ausência em seu cotidiano, seu pai parece ter sido a

medida exemplar que lhe serviu de parâmetro, tanto para a constituição da

figura paterna ideal como também para definir estratégias para sua carreira

profissional. Ele leva em conta o sofrimento e o esforço do pai para propiciar

conforto à família: “A única ambição que eu tinha era uma vida menos

sofrida do que meu pai. Eu pensava que eu ia lutar para dar condições para

meus filhos, sem precisar chegar à idade que meu pai chegou ........ Apesar

de que, eu acredito que meu pai era mais aguerrido que eu. Na idade que eu

tô foi praticamente a idade que meu pai tinha quando eu o conheci. Foi

quando eu comecei a reconhecer ele como meu pai. Até quando eu tinha

mais ou menos uns 8 anos, meu pai vinha em casa uma vez por semana.”

Trajetória de trabalho

Devido ao zelo paterna, buscando encaminhar o filho para boas

oportunidades profissionais, se considerarmos tratar-se de uma família

pobre, Chico ingressou tardiamente no mercado de trabalho já com 19 anos,

após prestar o serviço militar. Ao discorrer sobre o processo de escolha pela

carreira de técnico no setor químico, o entrevistado mostrou que sua escolha

tinha tido influência do pai. Além disso, deixou claro que, em sua época, era

relativamente fácil para um jovem conquistar uma vaga no mercado de

trabalho. “Meu pai trabalhava na Elcloro, aposentou por idade em setembro

de 1970, e no ano seguinte, em fevereiro de 1971, eu fui com meu primo lá.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

131

(...) eu tava na casa desse meu primo e eu falei: - Pedro, vamos lá na

Elcloro. E aí ele falou: - Vamos sim.

No meio disso ocorreu um fato curioso! Uns quatro cinco anos antes,

a Elcloro patrocinou uma banda de música na gravação de um LP. Aí aquilo

ficou na minha cabeça. Quando eu fui à empresa preencher a ficha, a pessoa

de RH nos deu um teste.

Na ficha nós poderíamos escolher a vaga para operador e a vaga para

instrumentista. Veja só como eu escolhi a vaga. A primeira coisa que me veio

à cabeça foi o seguinte: instrumentista? Deve ser pra tocar na banda de

música. Aí eu pensei, eu não sei tocar nada e não tem como eu concorrer a

essa vaga. Outra coisa, eu tinha os requisitos pra ser instrumentista, que era

ter o segundo grau completo. Enquanto para operador era necessário apenas

ter primeiro grau completo. Aí eu comecei a trabalhar como operador de

processo, não era nem operador de máquina. Aí trabalhei durante dois anos

e meio. Quando foi em 1974, teve um concurso para operador na

Petroquímica. Aí um colega que trabalhava lá me deu a dica, eu prestei o

concurso e passei. Eu tive até um probleminha lá na Elcloro. O pessoal

apostava muito em mim, eu já tinha sido promovido várias vezes, eu tive

destaque lá. Ficou um clima chato! Tanto é que quando eu saí de lá teve

gente que tomou um susto, não esperava a minha saída tão rápida assim.”

De fato, quem ingressa no mercado de trabalho hoje em dia, depara-se

com um sem-fim de exigências, difíceis de serem cumpridas por um

iniciante. A começar pela procura por jovens com experiência, o que parece

um contra-senso para quem faz sua primeira incursão no mercado de

trabalho, sem falar nas qualificações exigidas. Hoje, os critérios de escolha

diferem significativamente dos de 30 anos atrás.

Chico descreve com propriedade sua trajetória de trabalho, valorizando

cada momento de sua carreira no setor petroquímico. Demonstra que, antes,

era mais fácil tomar decisões “ousadas”, como, por exemplo, sair de um

emprego formal numa empresa para ser estagiário em outra do ramo, pelo

fato de ser de maior porte. Atualmente, antes da tomada de decisões, o

mercado de trabalho requer que se façam ponderações.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

132

“Na Elcloro foi a origem de tudo. Foi onde eu encontrei pessoas que fizeram

com que eu gostasse da profissão que eu escolhi e que eu exerci durante

tanto tempo. Lá, em menos de dois anos, eu tive quatro promoções porque

as pessoas apostaram em mim. Eu entrei como auxiliar de fabricação, depois

era operador de galeria, depois operador....... (esqueceu). Eu só sei que eu

saí de lá

como operador de fabricação; acima de mim era cargo de chefia, era meu

encarregado. Foi quando eu saí.

As variáveis e critérios utilizados para tomar a decisão de mudar de trabalho,

“trocando o certo pelo duvidoso”, foram, para ele, o porte da empresa, que

implica mais benefícios proporcionados aos empregados, e a menor distância

da empresa (e tempo de deslocamento) até sua casa.

“Monetariamente, não [não foi compensador]. Eu entrei ganhando metade

do que eu recebia no outro. Vamos supor, pra você ter uma ideia, em

moedas de hoje, na minha carteira eu era registrado com R$ 2.200,00 e eu

entrei na PQU ganhando R$ 1.400,00.

Mas, o que acontece. Eu era solteiro, eu tava trocando uma empresa menor

por uma empresa de ponta, era mais perto de casa, o horário de turno era

menos sacrificante porque lá eu trabalhava: de 2 às 10, de 10 às 6 e das 6

às 2 e isso era muito sacrificante pra mim. Quando entrava 6h, tinha que sair

de casa 4:15h. Acordava 4h da manhã, ia até a estação de Santo André,

pegava o fretado da empresa às 5h pra chegar 5:45h lá na PQU. Se eu tava

à noite eu saía 8 e pouco da noite. Então era sacrificante pra namorar, pra

passear, ...nossa, era difícil!

Então a troca valia a pena por causa do porte da empresa e das outras

vantagens. Por exemplo, era mais perto. E o destino da gente traça tantas

coisas... Eu entrei em 74, a empresa ainda não era estatal. Quando foi em

75, ela passou a ser estatal. Aliado a isso, a gente passou a ter a associação

da Petros que me permitiu ter aposentadoria com um bom salário. Ao passo

que lá na Solvey (antiga Elcloro) isso não aconteceria. Teve um final de ano

na década de 90, que coincidiu de, no mesmo restaurante, eu encontrar com

um grupo de pessoas da outra empresa. Quando eu cheguei encontrei

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

133

velhos amigos, que eu não via fazia 15 anos ou mais. Na hora que eles me

viram eles me perguntaram: - quem te convidou a vir aqui? E aí eles tavam

tudo reclamando porque já tavam na hora de aposentar, o salário de ativos

era x e eles iam se aposentar com 1/3 daquele salário x. Então a redução do

padrão de vida era considerável. Aí muitos deles lembraram: - Chico, na

época que você saiu de lá todo mundo pensou: Chico é louco, saiu daqui,

tava bem, tava na boca pra pegar um cargo de supervisão, roeu o osso e na

hora de pegar o filé mignon sai daqui, vai embora. Teve redução de função,

redução de salário. Pô rapaz, tanta gente queria estar no seu lugar, e você

foi embora.

Mas aí eles reconheceram: - hoje eu vejo que você estava certo. Deu

um passo atrás para dar um salto bem maior pra frente.”

Quando perguntado se ficou satisfeito com os resultados conquistados

na PQU, Chico avaliou positivamente sua trajetória de trabalho (carreira) e

tem convicção de que obteve bons frutos.

“Dentro das minhas limitações eu fui ao topo da minha carreira. Eu

entrei como operador 1 e cheguei à supervisão, enquanto eu tive colegas

que entraram como operador 1 e se aposentaram como operador 1. Eu

particularmente soube aproveitar as oportunidades que surgiram na época

certa.” As mudanças de função são esclarecedoras desse quadro. “Lá na

Solvey foram três ou quatro e aqui na PQU eu entrei como estagiário, depois

fui para operador 1, operador 2, operador 3 e supervisão.”

Transformações do mercado de trabalho

Uma das hipóteses deste trabalho era a de que o processo de

reestruturação produtiva e a automação do sistema de produção alteram e

conformam o modo dos trabalhadores se comportarem, podendo até gerar

desestabilização do caráter dos trabalhadores.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

134

Quando perguntado sobre o processo de reestruturação na PQU, esse

entrevistado fala de dois aspectos importantes na vida da empresa que

alteraram seu quadro de funcionários efetivos e as condições de trabalho:

“Com certeza! Lá nós passamos por um período crucial na época da

privatização (década de 90). Teve o fato desse pessoal, desse boom da

aposentadoria, motivada pelas mudanças nas leis trabalhistas. Teve o fato da

privatização, que [provocou] um enxugamento. Na fase áurea, na década de

80, a PQU tinha 1.600 funcionários. Hoje a Petroquímica tá com 500

(quinhentos e poucos funcionários) – uma diferença de 1.000 –, mas além

desses há os 1.000 que trabalham como terceiros (contratados). Antes,

desde a pessoa que fazia o cafezinho era funcionário. O quadro, em termos

numéricos, é parecido, mas o salário mudou muito né e o uniforme

também!”.

Chico avalia que a estrutura, em termos do pessoal da empresa, mudou

significativamente, uma vez que hoje em dia há mais terceiros do que

efetivos – o contrário de antes. Além disso, aborda a distinção entre o

uniforme dos efetivos e dos terceiros. Já na roupa se evidencia a diferença

de tratamento entre quem tem e quem não tem vínculo empregatício. O

uniforme simboliza a distinção entre os que pertencem e os que não

pertencem à empresa. Mais do que um modo de classificar trabalhadores, a

roupa utilizada pelos funcionários separa efetivos e terceiros, em termos de

funções e do valor de cada um na execução de tarefas. Por isso ela informa

sobre a posição de cada um na empresa e reflete um sistema de relações.

Conforme nos diz Chico:

“(..) tem pessoas lá que, vamos supor..., sem saber que você já foi

funcionário, mas só o fato de saber que você usa outro uniforme, a pessoa

te ignora. Até entre aqueles mais jovens. Eu não tenho tanto isso porque

80% dos funcionários da PQU me conheceram como funcionário da PQU.

Então não vai falar: - é o Chico da Platume. Não. É o Chico que trabalhou

aqui. Mas, a maioria das pessoas lhe ignoram. Mas não são todos.”

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

135

Sabe que há um tratamento distinto para cada uma dessas categorias,

muito embora pondere que, “no seu caso seja diferente” devido ao fato de

que seu longo período de experiência fez com que ele estabelecesse uma

boa rede de relações com os efetivos atualmente presentes no quadro da

PQU. Mesmo assim, avalia que, no geral, “Os colaboradores da PQU têm um

tipo de relação, quem é contratado tem outro tipo.”

Entretanto, Chico mostra que, quando era efetivo, sua percepção

sobre as coisas era diferente. Ele não notava o tratamento diferenciado para

os funcionários do quadro da empresa. Mesmo assim, evita se aprofundar no

assunto. Seu laconismo pode ser interpretado como certa dificuldade de

aceitar essa situação, uma crítica à diferença de status entre quem tem

vínculo empregatício e quem não tem, que aparece nas entrelinhas de seu

relato. Aparece no silêncio de seu depoimento.

“Quando eu era funcionário eu não percebia isso não. Primeiro, as

contratadas eram uma mixaria (poucas), eram temporárias. Não tinha uma

temporária que ficava com escritório lá dentro. Quando a empresa faz

paradas pra limpar todos os tubos é normal contratar mais gente. Ela tinha

lá, 2.000 ou 2.500 homens trabalhando e depois esse pessoal ia embora.

Quando eu entrei como terceiro, há quatro anos atrás, eu tomei um susto.

Não comigo pessoalmente, porque eu tinha um ciclo de amizade, eu conheço

a grande maioria.....Apesar de que, eu saí e fiquei dois anos fora dela. Eu saí

de lá no final de 97 e voltei praticamente em 2000.”

Ele reconhece que o trabalho significa mais do que um modo de

sustento. É uma forma de representação social, de estruturação das pessoas.

Isso talvez explique porque retardou ao máximo seu pedido de

aposentadoria, considerando, inclusive, que ainda se sentia capaz de

desempenhar sua função a contento. Aposentar-se era perder a importância

como chefe de família, como alguém que pode dar exemplo aos filhos. Nesse

sentido, se o trabalho dá significação social, a ausência de ocupação ou o

“não trabalho” produz a degradação do status. Isso aparece quando, em seu

relato sobre um dos momentos em que a empresa o incentivou a se

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

136

aposentar, ele emprega o termo “vagal” para referir-se a uma pessoa sem

trabalho:

“Naquela época, eu tinha 42 anos e meu filho mais velho tinha 14

anos. Que exemplo é que eu poderia dar para meu filho, se meu próprio pai

se aposentou com 65 anos? Com 42 anos meu pai não era nem casado, nem

pensava em se aposentar e como é que eu poderia me aposentar? Isso não

entrava na minha cabeça. Eu achava que ia me tornar um “vagal”. Eu ia

fazer o que? Ia jogar dominó no bar da esquina? Assinar a aposentadoria era

assinar uma carta em branco. Eu tava falando pra Petroquímica: - me mande

embora a hora que você quiser. Eu pensei não, não vou entrar com isso aí.

Mas, ao mesmo tempo, em Brasília tavam querendo acabar com a

aposentadoria especial. E aí o pessoal me pressionava, dizia: - olha, você tá

querendo muito, vai ficar sem nada. Você vai perder a aposentadoria

especial. E eu fiquei amarrando, amarrando, até que eu vi que o negócio ia

acabar, que o negócio ia estourar, então, quando foi em maio eu entrei com

o pedido porque eu vi que ia acabar.”

Depois de longos 26 anos de carreira, Chico teve de deparar-se com

uma nova realidade. Chegara o momento de desvincular-se da empresa, de

aposentar-se e interromper suas atividades. Nesse ponto, ele demonstra

claramente ter vivido um período dramático. A perda do trabalho como

referência identitária, a ausência dos laços sociais de trabalho e a falta de

função social causaram-lhe desânimo, desestímulo e vergonha. Foi assim que

ele descreveu o interregno, antes de voltar à PQU como terceiro:

“(...) O primeiro ano foi uma maravilha! Era 98, eu tava construindo

uma casinha na praia. Depois veio 99, que era curtição, ia pra praia, levava

um, levava outro. Virada do século, 2000, o mundo não acabou. Aí passou o

ano 2000. Não caiu nenhum cometa, a criançada voltou para a escola, e eu

fiquei aqui (momento de introspecção) aí eu falei: - e agora!.

Eu olhava pra ela (refere-se à esposa). O que aconteceu? Eu fui me enfiando

dentro dessa casa, fui me desanimando, já não ia mais nos lugares com ela:

banco, shopping, até isso eu deixei de fazer com ela! Porque você passa a se

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

137

sentir meio ocioso, meio “vagabundo”, porque eu trabalhei a vida inteira, e

me sentia jovem. Deixei de freqüentar o clube; ao mesmo tempo eu me

sentia até envergonhado de tá na rua.”

A saída da Petroquímica havia deixado um vazio e Chico sentia-se

desvalorizado, sem função social. Todo o processo mexeu com sua auto-

estima e fez com que revisse seu papel em casa, buscando assumir

atividades domésticas. Conforme descreveu: “Eu me fechava, ficava meio

isolado. Procurava ajudá-la nas tarefas de casa (refere-se à esposa. Ela faz

que sim com a cabeça), tentava compensar ajudando nos afazeres de casa.

Na limpeza de casa, muitas vezes até avançava o sinal e atrapalhava um

pouco.”

Sua tentativa de ocupar novo papel esbarrou no fato de, antes, nunca

ter assumido função nos afazeres domésticos, âmbito estritamente feminino

durante toda sua vida de casado. Era necessário, portanto, o aval de quem,

até então, assumira a responsabilidade pelas tarefas de casa: sua esposa.

Chico descreveu as dificuldades e conflitos que a mudança de seu

comportamento doméstico havia gerado.

“ Entrava em choque, em conflito (fala isso, olhando para a esposa e

rindo). Ela falava assim: - você era supervisor lá na PQU. Aqui sou eu. Aqui

quem manda sou eu!

Aí eu deixava um pouco de fazer. Eu dizia que não ia fazer mais nada,

depois voltava atrás. Aí passava um tempo e logo a gente tava em conflito

de novo.”

Como dito antes, a mudança na situação de trabalho de Chico alterou

seu comportamento em casa [que se abria como um novo espaço de

atuação, onde talvez pudesse desenvolver atividades de trabalho e sentir-se

útil]. Isso decorria do fato de sentir-se “manco”, “vazio”, sem função social.

A descrição feita pelo entrevistado revela a angústia que sentiu quando

estava aposentado e sem atividade fora de casa.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

138

“Na verdade, mesmo na condição de aposentado eu me sentia um

desempregado, mesmo sem faltar nada em casa. Não era uma questão

monetária. Eu me sentia vazio por não trabalhar e eu me sentia capacitado

pra trabalhar.”

Esse sentimento somente viria a mudar quando recebeu o convite

para retornar à Petroquímica como terceiro.

(..) “um dia, era umas 10h da manhã, eu recebi um telefonema do

meu chefe me perguntando se eu não tinha interesse em trabalhar. Aí eu

perguntei: - quando você quer que eu vá? É pra já!.

Ele falou: – dá pra você vir aqui às duas da tarde?

Eu respondi: – Claro que sim!

Parecia que eu tinha uns 18 anos e era meu primeiro emprego. Eu tremia.

Quando eu entrei na portaria daquela fábrica eu dizia: – não acredito que eu

tô aqui de volta!”

A euforia de Chico após o convite para retornar à PQU contrasta com

seu comportamento quando estava aposentado e afastado do trabalho.

Naquela fase sentia-se desanimado, tinha vergonha de estar aposentado

porque isso significava estar sem função, sem atividade (‘não tá fazendo

nada?’). As brincadeiras e piadas dos amigos sobre sua situação ocupacional

incomodavam-no, soavam discriminatórias. Elas eram o testemunho de sua

perda de status. Tanto assim que, quando indaguei se havia percebido

alguma mudança no comportamento dos vizinhos e amigos em conseqüência

das alterações em sua situação de trabalho, ele trouxe à baila justamente a

lembrança que tinha do tempo em que estava aposentado. Os amigos

interrogavam-no:

“- E aí, como é que tá a vida, não tá fazendo nada? Aquilo ali mexia

com a gente. Eu ia no clube, aí você tava lá jogando e aí passava uma

pessoa e dizia: - ê como é bom ser funcionário de estatal! Dava vontade de

pegar a raquete e as bolinhas e ir embora pra casa. Então, isso aí fez eu me

afastar. Antes mesmo de voltar a trabalhar eu já tinha deixado de ir para o

clube. Depois que comecei a trabalhar, dificilmente eu freqüentava o clube

no final de semana, mas meu prazer maior era ir durante a semana porque

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

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eu já tinha um grupo com quem eu praticava esporte. Quando eu me

aposentei eu continuei tendo essas atividades, e o pessoal sabia que eu tinha

me aposentado e ficava com essas brincadeiras. Aí eu já tava com aquele

negócio, as brincadeiras me feriam (fala emocionado) aí eu me afastei. Hoje,

às vezes, eu até penso em ir. Mas à noite eu prefiro ficar em casa, final de

semana é muito cheio (o comentário denota afastamento da vida social no

clube)

O trabalho aparece aqui como uma importante dimensão na vida de

nosso entrevistado, sendo visto como uma referência social para a

estruturação das pessoas e de suas relações sociais. Chico chega a dizer que

voltaria a trabalhar até de graça, caso não tivesse outra proposta, tal é a

importância do trabalho pra ele. “Engraçado, quando a gente tá trabalhando

a gente fala assim: Não vejo a hora de aposentar, passear... Aí quando

chega o momento, quando acontece antes da hora, você toma um choque.

Você pensa: - não era isso que eu queria.Tudo tem sua hora. Eu voltaria a

trabalhar até de graça!”

Exatamente por julgar que o trabalho representa uma dimensão

importante na vida das pessoas, Chico parece entender que a saída do

mercado de trabalho exige cautela. O empregado deve passar por um

período de “preparação emocional” e esse processo de saída do mercado de

trabalho precisa ser feito no tempo certo. Alem do mais, Chico considera

que, quando uma pessoa se torna egressa do mercado de trabalho, não

apenas sua vida, mas a de seus familiares e pessoas próximas são

impactadas. Por conseguinte, as relações com essas pessoas ficam abaladas.

Isso ficou claro quando falou do período em que os pedidos de

aposentadoria antecipada passaram a ser freqüentes, por sugestão e

incentivo da própria empresa, na década de 90.

“Teve muita gente que saiu na emoção e depois se arrependeu.

Primeiro porque não tava preparada pra aposentar. Teve pessoas que

chegaram às 8h na fábrica e às 17h já tavam aposentadas. A família nem

sabia. Então, quer dizer, não teve preparação emocional. Porque antes, a

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

140

PQU fazia um trabalho de preparação com psicólogos. Mas como o grupo foi

muito grande e ela tava incentivando de qualquer modo, isso foi muito

traumático”.

Novos significados do trabalho

Quanto ao significado do ingresso no mercado de trabalho, nosso

entrevistado afirmou:

“– Era tudo! era uma realização! Primeiro porque, por exemplo, eu

conquistei muita coisa no trabalho, em função de um salário que era acima

da média dos meus amigos. Quem ganhava mais entre meus amigos,

ganhava metade do meu salário. Eu até os dezoito anos não trabalhava,

porque a meta do meu pai era dar uma boa formação. Muitas vezes os

amigos dele falavam que ele era um louco. Como podia, na idade que tinha

(60 anos), sustentar a família inteira sozinho, sem nenhum dos filhos

trabalhando? Isso aí é uma coisa que me marcou muito. Quando ele se

aposentou, eu tinha 19 anos e só então comecei a trabalhar.”

Seu relato evidencia certo “orgulho” pela oportunidade inicial de um

trabalho bem remunerado, razão pela qual julga ter tido um destino

diferente do dos seus colegas. A boa remuneração seria resultado da “boa

formação” proporcionada por seu pai. De sua experiência no mercado de

trabalho e da oportunidade que o berço familiar lhe proporcionara, Chico

extraiu duas lições: a educação / formação seria o passo inicial para uma

trajetória bem sucedida no mercado de trabalho e, por isso mesmo, o

estudo, a melhor herança que um pai pode legar a um filho. Conforme seu

relato:“ eu trago isso aí até hoje e passo para os meus filhos. O estudo é a

maior herança que um pai pode oferecer para um filho. Não tem bem

material, dinheiro que supere isso.”

Sua análise sobre o mercado de trabalho enquadra-se no que Beck e Beck-

Gernsheim identificam como resultante do processo de individualização. Para

esses autores, a individualização é um produto do mercado de trabalho e

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

141

manifesta-se na aquisição, oferta e aplicação de determinadas habilidades de

trabalho, obtidas por meio de educação, mobilidade e competição. Segundo

o relato de Chico, seu destino profissional não foi outra coisa senão o

resultado de oportunidades individuais. Elas não se enquadram num

contexto de lutas operárias, não representam as conquistas, dificuldades, e

descobertas dos trabalhadores petroquímicos – em sua coletividade, mas,

sim, de uma pessoa, especificamente.

Com relação ao significado da atividade de trabalho, comentou: “Pra

mim, hoje, o trabalho é uma realização. Às vezes, nem sempre. Mas, na

maioria dos dias, a gente enfrenta desafios. Em compensação, são esses

desafios que me levam a incentivar os meus filhos, fazer com que eles

continuem, continuem sua trajetória na faculdade.. etc.”

O aprendizado, conhecimento e atualização contínuos são apontados pelo

entrevistado como estratégias para uma pessoa se manter no mercado de

trabalho. Esse processo de aprendizagem termina no âmbito profissional,

não se limita aos conhecimentos da escola / universidade. Suas

recomendações para a permanência no mercado de trabalho são: “Ética e

respeito pessoal, independente do nível, são importantes. Mesmo eles saindo

de uma faculdade não podem achar que sabem tudo. Eles não sabem nada.

A estratégia, em primeiro lugar, é o conhecimento, o conhecimento de várias

funções.”

Talvez quisesse referir-se à experiência profissional quando usa o termo

‘conhecimento de várias funções’. Além disso, a continuidade dos estudos é

importante. Chico chama atenção para a efemeridade de algumas profissões,

dada a mutabilidade do mercado, que produz novas demandas. Isso reforça

a necessidade de que os profissionais estejam atentos às transformações do

mercado.

“Hoje uma profissão é a mais solicitada no mercado, amanhã muda.

Tem tantas profissões que surgiram e acabaram. São efêmeras. Então tem

que ta sempre com a visão no futuro, porque se achar que já é suficiente....

Ninguém tem bola de cristal. Você faz um curso superior... aí tudo muda. Há

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

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uns tempos atrás essa parte de computação, quem dominasse... se dava

bem. Hoje não é nada. Tem dez profissionais da área disputando uma

mesma vaga. A concorrência é bem maior. Nós temos lá três escriturários.

Um deles é formado em informática e tava lá como digitador, ganhando R$

800.”

Crítica sobre as mudanças do mundo do trabalho

A competitividade é o que define o mercado de trabalho hoje em dia. “A

competitividade tá em tudo. A qualificação também. Você tem que se

preparar porque antigamente você saía da escola com um diploma e o

emprego tava garantido no dia seguinte. Hoje você tem que oferecer

conhecimento, qualidade do seu serviço. Hoje em dia não é assim, um

diploma não quer dizer nada.”

Ao dar sua definição sobre o mercado de trabalho, Chico faz a crítica:

“A palavra principal é competitividade. Isso acarreta stress, insegurança, fica

difícil você planejar a vida profissional, dar continuidade. Antigamente você

tinha um emprego, se fizesse o seu papel você não era mandado embora.”

Mesmo tendo uma história de mais de 25 anos na PQU, como efetivo,

ele percebe que os tempos são outros e as exigências do mercado também

se modificaram. “Antigamente o bom empregado era aquele que entrava e

se aposentava. Hoje em dia, a política de emprego diz o seguinte: o mau

empregado é aquele que quer se aposentar na mesma empresa.”

De seu ponto de vista, a mobilidade é, um dos aspectos fundamentais para o

crescimento de um profissional hoje em dia. Ela é também uma medida para

avaliar o ‘bom profissional’. Aqui, é como se nosso entrevistado tivesse

apontando um desencontro entre o seu perfil profissional e aquilo que o

mercado de trabalho espera dos profissionais. “aquele que quer crescer, ele

entra numa empresa, aprende e vai pra outra empresa. São quatro, cinco

anos, ele muda de empresa. É assim que ele cresce. Se ele ficar no mesmo

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

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emprego, ele fica estagnado, chega um outro de outra empresa, vem outro

de outra empresa, tem mais conhecimento, tem mais valor do que ele.”

A avaliação sobre as mudanças do mercado foi concluída quando

Chico comparou o modo como ingressou no mercado de trabalho com o dos

filhos. “Meu primeiro emprego eu praticamente cai de para-quedas e voltei

empregado. Hoje em dia, primeiro, você não arranja um emprego, você

arranja um estágio. E depois ninguém sabe como vai ficar.” De sua

perspectiva, tal quadro “se deve às conjunturas do mercado, à abertura do

mercado, às importações”.

Em outras palavras, a competitividade reforça a dificuldade de arranjar

um emprego. Não é preciso ir longe para chegar a essa conclusão. O

exemplo vem de sua própria casa.

“Hoje em dia a concorrência é muito maior. Meu filho participou de uma

seleção para estágio onde tinha 3.400 pessoas. Desse total, selecionaram 20.

Isso porque era pra estágio, imagine um emprego. O anseio é começar a

trabalhar numa empresa grande, que dê perspectivas de crescimento

profissional.”

Ao fazer comparações entre seu modo de encarar o mercado de

trabalho e a vigente, o entrevistado cruzou três perspectivas: a sua, a de seu

pai e a de seus filhos. Para dar um retrato dos tempos atuais, recorreu a

comparações entre as três gerações. “Eles (os filhos) já têm uma visão

diferenciada em relação à minha época. O meu pai, por exemplo, dizia que,

além do conhecimento, quanto mais a pessoa estudasse, maiores as chances

de conquistar um trabalho.”

Chico indica que, o excesso de competitividade deixa poucas

possibilidades de escolha para quem quer fazer parte do mercado de

trabalho. Assim conclui: “Hoje, com bastante empenho você poderá ser

escolhido e não escolher”.

A experiência de seus filhos contribui para que Chico refine sua

interpretação sobre a situação do mercado de trabalho. Ele destaca as

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

144

angústias de quem procura uma vaga de emprego. “Eu vejo uma coisa muito

estressante porque tem muita incerteza no futuro. Eles se perguntam: ‘Eu tô

estudando pra que?’ É tudo muito incerto e difícil, e, além disso, o

investimento tem que ser grande, sem garantia nenhuma.”

Chico completa o panorama: “Eu, na minha época, pra escolher um

emprego usei como critério o fator distância (escolhi a empresa mais

próxima). Hoje, meu filho pega 4 ônibus pra se manter em um estágio.”

Reinventando o trabalho

“Eu vejo aquele rio a deslizar

O tempo a atravessar meu vilarejo

E às vezes largo o afazer

Me pego em sonho a navegar

Com o nome paciência

Vai a minha embarcação

Pendulando com o tempo

E tendo igual destinação

Para quem anda na barcaça

Tudo, tudo passa

Só o tempo não...”

Chico Buarque,

Xote de navegação/ As cidades

Cadu: 50 anos, casado, vive em Santo André com a mulher e seus três

filhos. Tem segundo grau completo e curso técnico, chancelado pelo Senai e

em diversas áreas: caldeiraria, encanador, curso de mecânica geral. É

aposentado da Petroquímica União e como terceirizado, atua na Platume na

função de encarregado de manutenção.

Cadu é um homem de estatura média, pele clara e tipo magro. Tem

cabelos levemente enrolados, olhos amendoados e sobre seus lábios cai um

bigode fino, que encobre um pouco o movimento da boca. Fala com sotaque

que às vezes parece paulista e às vezes mineiro. Filho de pai baiano e mãe

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

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mineira, Cadu nasceu em Santo André e tem mais dois irmãos. De seus pais

recebeu a influência do trabalho em fábrica.

Do mesmo modo que para grande parte dos entrevistados, sua

incursão no mundo do trabalho realizou-se bem cedo, aos 13 anos, motivada

pela necessidade de ajudar seus familiares. Mesmo assim, considera que o

ingresso no mundo do trabalho representou uma mudança pra melhor:

“ Eu acho que teve mudança pra melhor. Porque eu comecei a

aprender o porque de trabalhar, a necessidade de trabalhar. Na época era

pra ajudar os pais. Eu estudava à noite e, ao mesmo tempo, trabalhava de

dia. Comecei fazendo meio período em farmácia. Nessa época eu estudava

de dia. Mas trabalhava meio período. Aí com 15 anos eu comecei a trabalhar

em loja, em Santo André, registrado em carteira e, deu seqüência, aí

começou minha vida profissional.”

Foi em 1979 que Cadu entrou na Petroquímica União, como

auxiliar de almoxarifado. Saiu dessa área para atuar como encarregado

de tubulação e montagem, de onde saiu como mestre de tubulação e

manutenção. Conforme diz:

“Eu comecei a trabalhar como auxiliar de almoxarifado, aí passei

pra manutenção como encanador industrial. Aí eu fui fazendo os cursos

e tal, aí passei pra encarregado de tubulação e montagem e saí como

mestre de tubulação e montagem. Essa função eles extinguiram, mas

seria como um técnico em manutenção.

Ele explicitou a divisão de funções no setor em que trabalhava:

É assim, vem os engenheiros, depois os técnicos, o mestre e depois os

encarregados. Depois vêm os oficiais. Os oficiais, o mestre e depois os

ajudantes.

Depois, em 92, eu saí da PQU e fui trabalhar pra Rhodia, em Santo

André. Lá eu fiquei contratado pela Montecalme, como terceiro, prestando

serviço. Fiquei dois anos como encarregado de tubulação e montagem. Aí eu

saí e mandei currículo para a Fundação Antonio Prudente, não sei se você

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

146

conhece o Hospital do Câncer. Lá eu fiquei oito anos. Lá eu era supervisor de

tubulação e montagem. Era mecânica hidráulica. O nome muda porque cada

empresa classifica duma forma.”

Como dito antes, o setor de manutenção foi um dos que mais sofreu

com a reestruturação, uma vez que foi lá que os cortes se concentraram.

Ali os funcionários trabalhavam cotidianamente na expectativa de que

podiam ser desligados. Daí a tensão e o stress diários. Cadu fala sobre a

forma como se sentiu durante o processo de reestruturação.

“Você balança né, quer queira ou não você fica balançado! Eu ficava

inseguro né! É bem difícil, porque você precisa do emprego. Então, de

repente você acha que tá bem empregado, aí de repente começa a surgir

boatos: Vai reestruturar, vai ampliar, vai ter uma mudança. Aí você

não sabe se, nessa mudança, eles tão contando com aquele total de

funcionários ou não. Então você fica naquela expectativa né! Não tão boa

né. Depois que passa, aí você já percebe alguma coisa de melhora, mas às

vezes não. É bem complicado, principalmente quando tem uma redução de

quadro. Quando aparece um processo de redução, o clima de expectativa e

tensão é geral e é ruim pra o trabalhador.

A anisedade e insegurança devido à reestruturação acirram a

competitividade no ambiente de trabalho, resultando em maior exigência

por parte da empresa e empenho dos funcionários. Assim, eles buscam se

aperfeiçoar e implementar melhorias em seu trabalho, na esperança de se

manterem na empresa. Na corrida pela manutenção de uma vaga ganha

quem se mostrar mais preparado, do ponto de vista técnico. O relato de

Cadu indicou isso:

Então, sempre há aquele clima de..., por exemplo, vão reestruturar, vão

mexer com alguma coisa, todo mundo comenta sobre o assunto. As

pessoas falam, todo mundo comenta sobre a grande dúvida: se vai diminuir

o número de funcionários, se vai aumentar, então gera aquele clima de

insegurança né! Vc não sabe se vai continuar com os mesmos funcionários,

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

147

se eles vão querer continuar com os mesmos funcionários, se eles vão

querer trocar.. Por exemplo, o funcionário hoje tem que tá qualificado, tem

que tá procurando o aperfeiçoamento, melhorias contínuas, se não ele tá

fora do mercado. Então, a preocupação é essa. O pessoal que não se

prepara acaba ficando preocupado, aí saem aqueles comentários: será que

fulano vai ser cortado?

Mas eu acho que quem procura tá sempre melhorando, fazendo

cursos específicos da função. Esse tá mais sossegado. A empresa hoje quer

isso né!

Nesse quesito, ele discorda de Bira, entrevistado da categoria dos

efetivos, que aponta que além da qualificação e do aperfeiçoamento,

muitas vezes ter bom relacionamento com o chefe torna as coisas mais

fáceis.

Cadu explicou em detalhes como era trabalhar, no período de cortes,

no setor de manutenção, onde atuava. Diferente de parte dos operadores,

que afirmaram que em seu setor o enxugamento funcionou mediante o

Plano de Demissão Voluntária e de aposentadoria, ele deixou claro que na

manutenção houve um processo de terceirização. Por isso, ele percebeu

que o comportamento dos funcionários mudou, a relação entre eles tornou-

se mais competitiva. Conforme a fala a seguir:

“Ah, muda sim! Por exemplo, você tem sua rotina de trabalho, mas

quando se fala em corte de funcionários, em redução, você fica

preocupado. Com isso, talvez você queira fazer mais que aquilo que

você faz, que eu acho que talvez nem seja o correto. Mas, todo

mundo sai correndo. A expectativa é essa. E eu acho até errado, porque

você começa a atropelar, pode nem fazer sua função corretamente.”

Meu interlocutor deu indicações de que a competitividade favorece

comportamentos mais individualistas, criando-se um clima de “salve-se

quem puder”. Evidenciou que não havia espaço para a condução de

propósitos comunitários. Pelo contrário, a concorrência entre trabalhadores,

motivada pelo medo do desemprego, coibia condutas tradicionais

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

148

ancoradas na reciprocidade entre eles. Cadu revelou como a reestruturação

influenciou a conduta incorporada pelos trabalhadores, ao longo de anos de

carreira:

“Por exemplo, você tem 20 anos numa empresa. Você tem uma rotina

e um comportamento. Se você vai mudar tem que ser num comportamento

normal, de acordo com o que você tem no dia-a-dia. Não é achar que em

um dia você pode fazer o trabalho de 20 anos em um mês. Então gera uma

certa ansiedade em todo mundo. Todo mundo fica querendo fazer a mais,

mas é loucura. Cada um individualmente pensa em mostrar mais

trabalho. Fica meio corrida, uma loucura! O funcionário querendo fazer

um monte de coisa que talvez não leve a nada. Isso por causa da

insegurança de perder o emprego. Hoje vive muito isso né! Qualquer

coisa, a pessoa pensa que pode perder o emprego. Já fica o comentário,

ah, não posso perder o emprego, coisa e tal. Mas, vai fazer o que né? você

é empregado e a empresa precisa mexer em alguma coisa pra diminuir,

porque de repente tem funcionário a mais. Então todo mundo tem que tá

preparado.”

Contudo, é curioso que, conforme o relato acima, a ameaça do

desemprego induza a comportamentos mais competitivos e individualistas e

não resulte na agregação dos trabalhadores em torno de ideais comuns e

em defesa de causas como maior segurança nas relações trabalhistas57,

57 Em A Formação da classe operária, Thompson mostra que “Os valores coletivistas eram defendidos conscientemente, sendo propagados na teoria política, no cerimonial dos sindicatos e na retórica moral. Esta autoconsciência coletiva, associada a teorias, instituições, normas disciplinares e valores comunitários correspondentes, é o que distingue a classe operária do século 19 da plebe do século 18.”(Thomson, 1987:317). Ou seja, no século XIX, a precedência dos valores coletivos sobre os individuais se deu em um contexto que favorecia ações comunitárias e rituais de reciprocidade, ao contrário do que ocorreu no século anterior, quando ainda não tinham adquirido consciência coletiva. No XIX, os operários agiam conscientemente em defesa de interesses comuns e as corporações de ofício, os sindicatos, entre outros, eram os organismos em que esses valores se propagavam. Naquele momento agiam motivados pelo ideal de igualdade entre trabalhadores. No período atual, o excesso de competitividade, as configurações sociais que provocam insegurança, como desemprego, a recomposição dos ciclos de vida profissional ou crises econômicas, combinados com a luta por autonomia, propiciam a adoção de comportamentos individualistas. As pessoas agem tendo como motivação não mais os princípios de igualdade, mas tudo leva a crer que a liberdade é por elas tida como um valor máximo. Por essa razão atualmente, torna-se difícil discernir uma ética operária

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

149

que com pouco esforço poderiam ser partilhadas, se não por todos, pela

maioria.

Na Inglaterra do século XIX, o desemprego também se constituía em

ameaça aos trabalhadores, no entanto o contexto social de formação da

classe operária favorecia a incorporação de hábitos baseados em regras de

comportamento que tinham como orientação a força da tradição. A

disciplina e o atocontrole moldavam a conduta dos trabalhadores e os

valores formados eram transmitidos mediante a atuação dos organismos

sociais como as sociedades de auxílio mútuo, que posteriormente

transformaram-se nos sindicatos. Propósitos comunitários floresciam em

contraposição à racionalidade capitalista do puro lucro.

Na conjuntura atual, em que grassam os interesses do capital sobre os

da vida social, a competitividade direciona o comportamento dos indivíduos.

A busca por espaço no mercado de trabalho e o aumento do volume de

desempregados reforçam a tendência à individualização ao mesmo tempo

em que inviabilizam a propagação de condutas corporativas, baseadas em

valores coletivos. Ademais, a redução progressiva de postos de trabalho e a

precarização das condições de trabalho limitam o espectro de atuação do

sindicato em defesa dos interesses dos empregados. Até porque esses

interesses tornam-se diversos entre eles.

Nesse contexto, em vez de lutarem pela igualdade de condições, os

trabalhadores lutam para garantirem sua autonomia, ou seja, lutam pela

liberdade de ação e escolha de uma carreira satisfatória, e essa luta é cada

vez mais individualizada, uma vez que delineia a consecução da biografia, e

destino profissional de cada um. A fala de Cadu expressa bem essa situação

“Cada um individualmente pensa em mostrar mais trabalho. Fica

meio corrida, uma loucura! O funcionário querendo fazer um monte de

coisa que talvez não leve a nada.”

Uma hipótese levantada nesse trabalho é de que a ampliação e

diversificação do desemprego tornaram a categoria dos desempregados

que discipline suas ações, uma vez que os trabalhadores agem movidos por interesses provisórios.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

150

determinante na adoção de condutas dos trabalhadores nos ambientes de

trabalho. Ou seja, mesmo que estejam trabalhando as pessoas são

influenciadas pela presença do desemprego. Tornam-se mais competitivos,

mais individualistas simplesmente pela expectativa de que o desemprego

tende a crescer continuamente. Muitas vezes, a experiêcia de desemprego

de amigos, parentes, colegas e vizinhos são determinantes para esta

configuração.

Quando estimulado a refletir e dar sua opinião sobre a situação do

mercado de trabalho, meu interlocutor indicou como a experiência de

desemprego vivida por colegas e conhecidos marcou sua forma de pensar o

trabalho. “Eu acho que hoje tá muito difícil né. Hoje a gente encontra

colegas que ficam muitos tempos, anos e anos sem trabalhar, parado.

Em geral isso traz um monte de coisa negativa.”

Interessante notar que a falta de emprego indique para ele o

engessamento da vida, a falta de movimento, por isso a imagem que ele

constrói do colega desempregado é de alguém que está “parado”. Ao

discorrer sobre a experiência de seu colega dispensado por uma empresa

automobilística, mostrou como a crise em um setor da economia pode

causar insegurança nos demais, de maneira generalizada. Os cortes no

setor automobilístico, que nada tinha a ver com aquele em que atuava,

provocaram-lhe insegurança, devido a ameaça do desemprego.

“Eu acho que em 2002 teve uma crise das empresas automobilísticas

como a Wolksvagen, GM, Fiat, elas demitiam até pelo correio, por

carta. Acho que foi em 2000, um amigo meu, que trabalhava na

Wolksvagen, foi demitido assim. Ele recebeu uma cartinha dizendo que ele

tava desligado da empresa. Então foi um negócio estranho, brusco. Isso

mudou o pensamento do trabalhador, em geral. Aquilo mexeu com

todo mundo! Quando tem uma crise num setor, não é só naquele

setor, é geral, é uma cadeia, uma corrente. Então começa a pesar pra

todo mundo. Quando você ouve falar que a Fiat, a Wolksvagen, que essas

grandes empresas multinacionais tão demitindo, tão em crise, começa a

pesar pra todo mundo, todo mundo sofre com isso porque é geral.”

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

151

Outro aspecto curioso é a percepção, por parte dos trabalhadores, de

que há um elo entre todos os setores de atividade. Por isso, a atenção se

volta para o desempenho da economia, como um todo. A crise em um

ramo, os cortes de emprego, podem ser o prenúncio de problemas nos

demais. A decorrência de um quadro assim é a insegurança em relação ao

futuro. Mesmo as pessoas ocupadas, vivem em estado de tensão, atentas

para a dinâmica da economia. No trecho abaixo, meu interlocutor deixa isso

evidente:

“Isso gera insegurança pra todos. Mesmo pra quem tá trabalhando. Se

você ouve falar que um setor não tá bem, isso altera de algum modo o

desempenho das outras empresas, e é preocupante pra todos. Qualquer

coisinha você já fica assustado. Sempre o funcionário é o que fica mais

preocupado né! Hoje quem tá empregado, qualquer coisinha fica

preocupado. Então, o desemprego deixa você com uma “má

impressão né!”. Hoje você tá empregado, amanhã você não sabe se você

vai ta empregado ou não. Você pode ser um desses que pode ficar

desempregado.”

Cadu observa que o mercado de trabalho mudou muito. Isso fica claro

pela dificuldade de se encontrar emprego, ainda que seja em empresas de

pequeno porte. É como se o fato da expansão e diversificação do

desemprego transformasse a paisagem, demarcando o lugar dos “com

emprego” e do “sem emprego”. No dia-a-dia é com essa imagem, com as

impressões que ela produz, que as pessoas – mesmo que tenham uma

ocupação – dialogam. As impressões sobre o desemprego marcam o

imaginário de quem depende de salário para viver e moldam seu

comportamento.

A insegurança e o medo do desemprego são a conseqüência desse

quadro, por isso, confessou buscar recursos fora do ambiente de trabalho

para reaver a confiança. Nesse caso, em um cenário de mudanças, a

religião cumpre o papel de aliviar as tensões, propicia mais auto-confiança.

“É, nas horas mais difíceis do trabalho a igreja te alivia, ajuda

bastante. Já aconteceu de eu buscar apoio na religião. Foi mais quando

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

152

teve as mudanças. Quando teve a reestruturação, que ninguém sabia o que

ia acontecer, nessa hora foi importante. Sempre nessa hora é importante

buscar o apoio da igreja.”

Revelou também que, na dinâmica das transformações do mercado de

trabalho, a diversificação das opções de carreira dificulta a escolha por uma

profissão. Em pouco tempo, uma ocupação valorizada, em alta, deixa de

existir. Segundo ele, quanto mais possibilidades mais confuso é escolher

um ofício. Apesar de dispor de menos opções quando ingressou no

mercado, acha que era mais fácil. Talvez tenha a ver com o fato de

perceber a recomposição dos ciclos de vida profissional e tendência de

indefinição do statuto de trabalho. Tudo isso torna obscuros os

mecanismos de escolha. Por isso, não arrisca dar conselhos aos filhos,

preferindo deixá-los livres para que utilizem os próprios critérios de seleção.

Ele asseverou:

“Na minha época eu acho que tinha menos profissões, mas você

conseguia se sair melhor. Hoje não, hoje você tem muito mais funções,

profissões, mas eles têm dificuldades. Mesmo tendo conhecimento dentro

das exigências do mercado, é diferente. É muito difícil fazer uma escolha

porque tem mais profissões e funções. Parece que fica confuso porque tem

mais funções. Por exemplo, hoje tem uma função que é a que remunera

melhor, daqui a pouco é outra, e isso não para. Tem muita mudança e isso

dificulta que o jovem faça uma escolha. Eu prefiro não interferir na escolha

deles, mas eu fico preocupado com a escolha deles.”

Exigências do mercado e individualização de

responsabilidades

Cadu, conforme a maioria dos entrevistados, considera o nível de

escolaridade um critério importante na seleção de profissionais, além disso,

pode ser determinante para a manutenção ou a dispensa de pessoal, hoje

em dia. Sua explicação mostra que, de certo modo, os trabalhadores

perfilham a ideia de que eles próprios são os responsáveis por sua

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

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empregabilidade no mercado de trabalho. Eles introjetam essa

responsabilização, como se estivessem em estado de vigília, atentos para

as exigências de quem lhes contratou. É sua incumbência ter escolaridade e

qualificação compatíveis com as expectativas da empresa. Por esse

raciocínio, uma pessoa somente é dispensada quando não se empenha o

suficiente no desempenho de sua função. É curioso notar como quase não

aparecem referências de reciprocidade com os colegas.

Em meio a diversificação das formas de emprego, cada um está

sozinho em defesa de seu lugar no trabalho, e a escolaridade e a

qualificação são como escudos contra o desemprego. Tal configuração

indica a mudança das fontes identitárias, conforme Dubar teoriza, havendo

predominância das identificações ‘para si’ em detrimento das identificações

‘para o outro´. É o que se evidenciou no excerto abaixo:

“ (...) na PQU mesmo eu sei todas as normas e procedimentos de

trabalho, quero ver as rotinas estabelecidas pra aquele tipo de serviço que

eu vou fazer através de papel impresso. O que eu preciso fazer, qual o

procedimento correto. Então, se você não tem escolaridade você não

tem acesso a nada hoje. Mesmo você sendo um bom profissional, mas

se você não tem nível de escolaridade, você fica de lado. Não é porque a

empresa não dá oportunidade à pessoa, mas é porque a pessoa não se

esforça, não procura acompanhar as exigências da empresa. Você não

consegue interpretar um desenho, e não sabe outras coisas.”

Contudo, após argumentar que as oportunidades são para poucos, o

entrevistado pontuou que a escassez é tanta que até os jovens e quem tem

alta escolaridade podem ficar sem trabalho. Ou seja, o âmbito profissional é

o das incertezas, não há mais balizas em que se aprumar e aquilo que

antes garantia ao ingresso ou a manutenção no mercado de trabalho, hoje

não é mais. Depois de delinear esse quadro, ele arrematou com o

diagnóstico de que o país passa por uma crise de emprego. Conforme o

trecho a seguir:

“Hoje em dia é bem mais difícil. Antes, você ia em qualquer esquina

e conseguia um trabalho. Nem que não fosse um bom emprego, mesmo

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

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que fosse numa empresa fundo de quintal. Mas, hoje, nem isso você

consegue. Hoje você vê muito jovem parado, com nível superior já, e

desempregado. Tá cada vez mais difícil. O país passa por uma crise

de emprego. A gente vê falar em investimento, mas é um processo lento.

É a longo prazo, não é imediato.”

Além da escolaridade e qualificação, o acirramento da

competitividade no mercado exige mais autonomia dos profissionais. Depois

de criticar os empregados que demonstram menos diligência no exercício

de suas atividades, o entrevistado fez ponderações ao considerar que a

empresa poderia investir mais nos funcionários. Destaca que as

oportunidades são desiguais também dentro das corporações, nem todos

desfrutam do benefício dos investimentos da empresa em sua carreira. Por

fim, concluiu que, muitas vezes, os funcionários não investem mais em sua

carreira devido a restrições de renda.

(...) “A pessoa sabe fazer, mas hoje você percebe que muita gente

só consegue trabalhar se você chegar e passar pra ele a atividade que tem

que fazer, se você disser: Faz isso! Se não tiver a pessoa pra fazer a função

de dar as ordens, as rotinas, ele fica parado, não consegue sair dali e fazer

o que tem que fazer. Então, falta o que? Falta investir no funcionário,

eu acho. Eles fazem isso, mas eu acho que é limitado. Nem toda

empresa tem condição de pegar cem funcionários, que seja até menos que

isso: vinte, trinta funcionários e oferecer curso pra eles. E, por outro lado,

às vezes o funcionário também tem vontade, mas ele tem uma

família pra sustentar, um monte de coisa pra pagar, e às vezes, ele

só não tem condições de pagar, não tem condições de patrocinar

isso né! Por isso, a minha escolaridade influencia minha situação de

trabalho.”

Outro tema que se destacou nessa entrevista foi o das relações

associativas. O aumento da responsabilização dos indivíduos por seu

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

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destino profissional e do desemprego tendem a limitar o espectro de

atuação do sindicato, dado que a lógica que permeia os comportamentos é

a da individualização. Antes, as organizações tinham o papel claro na luta

pelos direitos do trabalhador. Segundo Cadu, era:

“Mostrar pra o funcionário o que ele tem de direito, como funcionário.

Esclarecer os interesses de cada um: a empresa é isso, o patrão é isso e o

empregado é isso. Cada um defende um interesse.”

E hoje em dia, coom isso se dá? Qual o principal papel do sindicato na vida

dos trabalhadores? Em outras entrevistas, alguns respondentes sugeriram

que em de vez oposição o sindicato deve adotar uma postura conciliadora

com os empresários. Cadu limitou-se a falar que, de sua perspectiva, houve

uma diminuição da participação do sindicato no cotidiano do trabalhador.

“ Eu acho que o sindicato deixou de participar mais. Antes, o sindicato

dava muitas palestras, hoje eles deixaram de fazer, a participação é menor.

Na verdade eu não sou sindicalizado, então eu não sei direito, eu posso ter

uma impressão errada, como eu não acompanho passo a passo, né. Mas,

eu vejo dessa forma.”

Considerações gerais sobre os terceirizados

Coforme dito antes, entre as três categorias, as primeiras entrevistas

ocorreram com os terceirizados. Ao longo do processo de coleta de

informações percebi que a maioria dos funcionários era egressa da

Petroquímica. Frequentemente, tinham tido uma longa experiência como

funcionários da empresa, retornando a ela, numa condição diferente,

mudara portanto o estatuto. A maioria voltou depois de se aposentar, outro

depois de ser dispensado, e de atuar em outras empresas. Esse aspecto

propiciou que as pessoas falassem da carreira considerando as

transformações porque passaram, inclusive o fato de atuarem na mesma

empresa em condições diferentes; Sua condição de ex-efetivos também

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

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permitia discutir os processos de mudança como reestruturação,

privatização de maneira acurada.

Dois dos respondentes atuavam na área de produção, dois na

manutenção e um na de segurança do trabalho. Essas pessoas estão na

faixa dos 50 anos, ficaram entre 13 e 25 anos na empresa como efetivas e

todas elas estavam lá quando do processo de privatização.

Mesmo atuando em àreas diferentes, há semelhanças entre seus

pontos de vista, sobre diversos aspectos relativos à recomposição das

relações de trabalho. O fato de terem cerca de 50 anos de vida e longa

experiência profissional permitiu uma discussão mais madura, baseada em

comparações entre as diferentes fases de mudança do mercado de

trabalho.

Eles falam dos temas propostos, sobre o mercado de trabalho, em

geral, e também especificamente sobre o setor petroquímico, de maneira

aprofundada. A conformação de opiniões se dá na discussão a respeito de

diferentes assuntos. Entre eles os mais freqüentes são: novos sentidos do

trabalho, figurações do desemprego, recomposição dos ciclos profissionais,

conseqüências da privatização, papel do sindicato, entre outros. Há outras

questões em que discordam, como na forma de discutir a autonomia.

Recomposição dos ciclos profissionais

Um dos temas caros, que motivaram esse estudo é como se dá e

como é vista a transformação das formas de emprego e a recomposição

dos ciclos de vida profissional. Como foi argumentado, o desemprego e

formas híbridas entre ele e o emprego tiveram papel fundamental na

reorganização do campo de trabalho. Por isso, a longa experiência dos

entrevistados no mercado de emprego confere respaldo à consecução

dessa pesquisa. Foi com base na visão constituída ao longo dos mais de 15

anos de vivência no mercado de trabalho que essas pessoas foram

estimuladas a refletir sobre a recomposição dos ciclos profissionais. Elas

puxam da memória o que viveram nas relações de trabalho e fazem uma

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

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retrospectiva de como essas relações foram se modificando ao longo do

tempo. Sobre isso, Cadu dá o quadro geral, destacando a diferença entre

como era antes e como ficou:

“Ah tem. Eu acho que antes era mais fácil pra você escolher, definir a

empresa em que você iria trabalhar. Hoje é muito competitivo o

mercado. Então, você sabe que tem uma empresa que é boa, tem porte, te

dá condições de trabalho e tudo que você precisa, mas entrar numa

empresa assim é muito difícil. Antes era mais fácil entrar e tinha mais, se

você não tivesse contente com a função você ia pra outra função.

Hoje já não é assim. Hoje você define a sua função, e, de repente,

aquela função não tá bem. Aí você entra em crise, fica

desempregado porque a função ou área já não é mais necessária. É

preciso estar sempre atento. Por isso que eu acho que sempre tem que

procurar tá atualizado, fazer curso, estudar, tá atento às mudanças de

mercado. Sempre tiveram vantagem aquelas pessoas que se saiam melhor,

as pessoas que procuravam ta atualizadas. Mas, hoje a necessidade de

atualização é ainda maior.”

Já de início ele apontou a competitividade como um importante

catalisador dessas inflexões. É isso que explica a dificuldade de ingressar e

se manter em uma empresa de porte, hoje em dia. Além do mais, a

complexificação do mercado e o aumento das exigências profissionais

obstaculizam a mobilidade de carreira e de funções. Ele diz isso claramente

“Hoje você define a sua função, e, de repente, aquela função não tá bem.

Aí você entra em crise, fica desempregado porque a função ou área já não

é mais necessária”. Além do mais, a dinâmica do mercado pode provocar

extinção de funções, gerando a redundância58.

O entrevistado percebe essa mudança no dia-a-dia dentro e fora da

empresa. Conforme explicitou:

58 Guimarães (1998) afirma que, a modificação do setor petroquímico resultou entre outras coisas, no enxugamento de funções, e conseqüente desvalorização do capital profissional de parte dos empregados.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

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“Por exemplo. Hoje a procura por trabalho é muito grande né!. Então

no Pólo Petroquímico é a mesma coisa que acontece com as outras

empresas. Então tem muita competitividade. Você sai de um setor e depois

pra retornar pra mesma função fica muito difícil! Tem muita gente

procurando vaga. Então quando surge vaga, você percebe que tem muita

gente. Eu mesmo, quando saio à trabalho, ou mesmo no sábado ou

domingo, você encontra uma pessoa na rua, que trabalhou comigo lá, às

vezes ta desempregado ou ta em outro lugar, e ele ta, às vezes querendo

voltar ou ganhar um pouco mais, sei lá. Mas, a procura é muito grande.”

Uma vez desempregada, o reingresso de uma pessoa ao mercado fica

mais difícil. Os complicadores são de natureza diversa. Hoje, quem sai da

situação de emprego regulado, pode encontrar dificuldade de reingressar

ao mercado, mantendo o mesmo padrão de antes. Guimarães (2002a)

considera a tendência de haver degradação das condições contratuais para

quem passa pela situação de desemprego. Alguns respondentes concordam

com essa perspectiva, indicando como se dá anova configuração. Segundo

Cadu:

“Não, não é fácil! São poucas empresas aqui no ABC que faz o que faz

o Pólo Petroquímico. Então, se você tem carteira assinada numa

empresa do pólo, ganha um salário, talvez se você chegar em

outra empresa, talvez ela não queira pagar o mesmo salário. Hoje,

ninguém quer rebaixar, e nem a empresa quer rebaixar também.”

Esse quadro se completa com otros aspectos apontados por Nuno. Ele

explicita, pontuando os períodos em que percebeu as principais inflexões na

qualidade do emprego:

“É tinha bastante emprego, aí depois caiu, acho que durante uns 10

anos. (...) acho que ficou difícil pro pessoal que dependia de trabalho né.

Tanto é que começou a ter muito emprego sem registro. Faltou trabalho e

as pessoas aceitavam fazer bicos. (...) Eu acho que até 78 era bom. O que

salta aos olhos entre aquele período e o momento atual é que antes a

ampla oferta de vagas viabilizava a mudança de um emprego para o outro.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

159

Hoje, isso não ocorre mais. “Ah, então, antigamente você saia de uma firma

e entrava na outra com tranquilidade. Eu por exemplo saí da Ford e fui para

a Wolks sem nenhuma dificuldade. Dessa época até 96 ficou muito difícil,

muito difícil. Nessa época, se você saía de uma firma era muito difícil achar

outro emprego. Mesmo o salário ruim você tinha que aceitar, tinha que se

sujeitar a ficar lá.”

Repensando o papel do Sindicato como espaço de

representação

A forma como vêem o papel do sindicato é um dos aspectos em que

os terceirizados concordam. De maneira geral, embora reconheçam que

este organismo social tem a função de representar os trabalhadores,

entendem que mudou a forma de atuação e isso trouxe perdas para os

empregados. Para Cadu, o sindicato tinha um papel de “Mostrar pra o

funcionário o que ele tem de direito, como funcionário. Esclarecer os

interesses de cada um: a empresa é isso, o patrão é isso e o empregado é

isso. Cada um defende um interesse.”

No entanto, considera que a participação está mais tímida, notou uma

redução de atividades promovidas como as de orientação: palestras,

seminários, etc. “Eu acho que o sindicato deixou de participar mais. Antes,

o sindicato dava muitas palestras, hoje eles deixaram de fazer, a

participação é menor. Na verdade eu não sou sindicalizado, então eu não

sei direito, eu posso ter uma impressão errada, como eu não acompanho

passo a passo, né. Mas, eu vejo dessa forma.”

Ainda que ele esteja equivocado em relação à atuação do sindicato,

sua opinião retrata a imagem que se cristalizou sobre o modo de

desempenhar seu papel.

Zeca também indicou que não aprova o modo de atuação do sindicato,

sua relação com as empresas. Ele separa em três momentos a forma de

inserção da organização. O primeiro em que predominava a preocupação

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

160

com os benefícios como “colônia de férias”, serviços odontológicos, etc, que

ele parece julgar periféricos; depois o momento em que era mais combativo

em relação aos empresários e o terceiro de esvaziamento dessa estrutura

de representação devido à perda de credibilidade junto aos trabalhadores,

devida, entre outras coisas, ao aumento do desemprego.

“(...) E depois justamente daquele período de 83 pra cá, mudou muita

a ação de sindicato e empresa. Ah! sim antigamente tinha colônia de férias

né? Venha a colônia de férias, ainda hoje tem a colônia de férias. Mas

antigamente o que o sindicato ia oferecer era isso, era esse serviço, não

tinha aquelas brigas que tem hoje, ou tiveram a um tempo atrás.”

“(...) Houve, justamente porque, eu não sei se o povo trabalhador né?

Trabalhador abriu os olhos e não procura mais o sindicato. Ou se

desvinculou do sindicato tá? Então o próprio sindicato dos trabalhadores, o

que é.”

Ele chegou a atribuir às greves a causa do desemprego de alguns

profissionais. “Porque eu escuto varias pessoas, ‘Ah! eu to assim eu to aqui

nessa empresa, fazendo um bico aqui, por causa que eu fui demitido por

causa do sindicato daquela greve que teve, lembra?’ É comum ouvir isso.”

Por outro lado, Tico adota uma posição que se alinha à concepção que

a empresa tem sobre as formas de representação do trabalhador. O

sindicato está muito político e pouco atento a realidade do custo da mão-

de-obra, fator essencial a ser levado em conta no custo da propdução.

Como pode se ver no trecho abaixo:

“Eu acho que ele tá muito político hoje e cuidando muito pouco do

próprio trabalhador. Acho que não é exigindo muito por exemplo, onerando

a indústria ou onerando o empresário que eles vão chegar em algum lugar.

Por exemplo, eu sou bastante relutante quando tem que colocar uma

pessoa pra dentro pra trabalhar na minha equipe . São tamanhas as taxas

cobradas, as exigências cobradas, e na realidade o empresário brasileiro

hoje é tratado como bandido. Ele já entra numa pendência judicial como

culpado. Ele nunca entra pra tentar ganhar uma solução e infelizmente essa

é a verdade. E em função disso tem menos gente empregando.”

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

161

Ele explicita melhor seu ponto de vista. Para se discutir a relação de

trabalho traz à tona a competitividade do mercado. Assim, reúne os

elementos essenciais para a composiçãop do custo de produção – a carga

tributária, o custo da mão-de-obra (taxas e direiros sociais), mostrando que

tudo isso inviabiliza a contratação de empregados:

“Eu acho que o sindicato, ele deveria pensar bem, que nós estamos

sendo engolidos aí pela China e tudo mais. Por outros países por aí, que

tem uma carga tributária, muito menor e o governo [brasileiro] onera muito

com carga tributária. Onera as industrias e as empresas com carga

tributária enorme. Exige mil e uma coisa, para o funcionário, e o funcionário

mesmo não recebe nada de volta. Você paga aí sobre o salário 120% de

taxa e tudo mais. O quê que esse funcionário recebe sobre isso? Era melhor

que ele não onerasse 120% do empresário e o empresário pudesse dar

50% de salário á mais pra ele.”

Na argumentação de Tico, a mão-de-obra aparece como simples custo

de produção. Sua abordagem não traz nem resquícios da ideia de que o

trabalho tem significação social e que o sindicato surgiu como resultado da

cristalização dos valores de reciprocidade germinados nas relações entre

trabalhadores. Pelo contrário, está distante de qualquer tipo de raciocínio

que tenha como orientação outra coisa que não o lucro.

Vale a pena o esforço de elencar os aspectos que contribuiram para a

construção dessa imagem. Conforme dito na análise da fala de Cadu, a

expansão e a diversificação do desemprego influenciam o modo de encarar

a recomposição das profissões e outros elementos que se relacionam ao

mundo do trabalho. Se o sindicato é um organismo de representação dos

trabalhadores, é natural que a modificação das organizações de trabalho a

diversificação e ruptura das formas de emprego alterem seu papel. No

entanto, as formas de interpretação dessa mudança são as mais variadas.

Alguns respondentes consideram que a diminuição do número de

vagas disponíveis exige uma alteração no modo de o sindicato se inserir.

Entre os desligados, alguns entendem que agora as organizações sindicais

devem adotar uma postura mais conciliadora do que de oposição.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

162

Consideram sem sentido o antagonismo de classes que motivavam parte

das discussões entre sindicato e patrão no passado recente.

Autonomia x Insegurança

Os pontos de vista esboçados por Tico, muitas vezes, pareceram mais

com os dos empresários do que aos interesses precípuos dos empregados.

Isso ficou claro quando relatou sua opinião a respeito das medidas de

reestruturação e sobre o grau de competição dentro das empresas no

contexto atual. Uma das observações de Tico a esse respeito é que ele

considera que o cenário de incertezas e competitividade no mercado de

trabalho gera pessoas mais adaptadas a essas situações. Por isso, ele não

vê de forma negativa tal contexto. Ele compara seu perfil com o dos filhos:

“ Olha a mudança que houve. Eu nunca tive como meta minha

alguma coisa que não fosse tá trabalhando em alguma empresa. Eles,

nenhum deles tem como meta trabalhar em nenhuma empresa. Todos eles

querem ser empresários. Entendeu a modificação? Enquanto eu me

sujeitava a entrar nessa empresa com melhor segurança. Eles, nenhum

deles pensaram nisso. Então, Betinho já partiu pra ter a empresa dele. A

Judy já quer ser autônoma, é, como juiz, promotor. E o Peter tá

caminhando pra isso.” (...).

Continuou suas comparações, pontuando a diferença de

comportamento entre seus contemporâneos e a geração seguinte. A

autonomia, segundo o quadro que ele esboça, é um valor entre os que ele

destaca na geração de seus filhos. Nesse sentido, a segurança não lhe

parece um quesito tão importante para os profissionais que estão surgindo:

“A filosofia deles é diferente. Eu acho que eles estão muito

mais ajustados nos tempos de hoje do que.....// Eles já foram

criados nesse ambiente né! Que seria um negócio conflitante pra

mim. Eu não saberia....//Não vale pra todos, tanto que você vê que o

Helio [refere-se ao diretor da Platume] é empresário né! Ele já partiu

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

163

naquela, eu não vou fazer, eu posso aplicar, eu posso ser um

empresário, eu posso montar e ele é capaz, e ele montou. È uma

coisa particular minha, eu não tô preparado pra ser autônomo

assim.... ter uma empresa, pensava de forma diferente. (... )

O depoimento de Tico me surpreendeu. Com muita freqüência, a

literatura que versa sobre as mudanças nas relações de trabalho aponta

para os problemas que o acirramento da competitividade, a flexibilização

das relações empregatícias, a falta de segurança e a dificuldade de traçar

perspectivas futuras geram ao trabalhador. Bem assim foi a maioria dos

relatos recolhidos. Eles refletem certa dificuldade de adaptação e

sofrimento, por parte dos que dependem de salário para viver devido às

mudanças no contexto profissional. Alguns podem até mostrar-se mais

aptos aos ajustes, mais competitivos. Contudo não estão nesse contexto

por escolha, apenas adaptam-se às circunstâncias59.

É plausível supor que, provavelmente, as gerações futuras se

ajustarão a essas transformações com mais facilidade do que as que

experimentaram relações de trabalho regulamentadas, porque já

conviveram com valores diferentes daqueles, durante sua formação.

Entretanto, algumas observações se fazem necessárias.

Quando Tico discutiu o tema da insegurança das pessoas em relação

às novas configurações do emprego, à ausência de seguridade e ao

desemprego, fez menção ao comportamento de apenas parte da geração

posterior à sua. Restringiu-se a tratar da situação de profissionais que

tiveram acesso à educação, que possuem alto grau de qualificação, além do

fato de já terem crescido num contexto de flexibilização das relações, em

59 No início desse trabalho, defini como um dos critérios importantes para a escolha do objeto de pesquisa entrevistar pessoas que tivessem vivenciado mudanças nas relações de trabalho. Preocupei-me em estudar os que tinham cerca de 15 anos no setor petroquímico, sobretudo que tivessem atuado entre meados dos anos 80 e fim dos 90. Como eu queria compreender de que modo se processava e como era vista pelos trabalhadores a inflexão de seus padrões de comportamento, pareceu-me essencial analisar um período definido, entender o presente à luz do passado. Pensar como as gerações subseqüentes vêem essas mudanças é outro aspecto importante, que decorre do anterior, mas não pretendo me deter a ele, ainda que o considere importante.

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Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados

164

que a recorrência ao desemprego ou aos momentos de interrupção da

atividade tornou-se relativamente comum. No entanto, ele não faz menção

aos trabalhadores de baixa escolaridade / qualificação. Com isso ignora dois

aspectos fundamentais presentes no debate de Beck e Beck-Gernsheim

sobre as transformações nas condições de emprego: a desigualdade de

oportunidades no processo de aquisição de educação e qualificação e no

mercado de trabalho e o fato de que o contexto em que se dá a primeira

influencia o decurso da segunda.

O fato de Tico referir-se às gerações posteriores à sua, em vez de

discutir sua realidade faz suspeitar de que tenta esconder algo. Essa

digressão pode ser interpretada como uma crítica à forma como seus

comparsas lidam com o novo. Ou seja, ela contrasta com a dos

profissionais atuais. Provavelmente a alteração de hábitos nas relações de

trabalho de seus contemporâneos teve por base a transformação de seus

valores, embora nem sempre os trabalhadores tenham consciência disso.

Por outro lado, é possível inferir que as dificuldades de adaptação ao novo

contexto de trabalho podem significar resistência ao ajuste de valores,

consolidados ao longo de anos, às demandas de comportamentos

diferenciados dos das novas gerações60. 60 Nesse sentido, muitas das críticas feitas pelos entrevistados ao novo contexto se devem ao fato de haver dissonância entre as concepções que ordenaram sua vida no trabalho, durante a consecução de sua carreira, e as exigências que lhe são feitas no presente.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

Despedidos da Petroquímica – falando sobre

as entrevistas

Entre as categorias escolhidas, foi mais difícil estabelecer o primeiro

contato com os desligados pela empresa. A ideia preliminar era entrevistar

pessoas desempregadas, que tivessem saído da Petroquímica. Como me

interessava falar com as que tivessem atuado na empresa entre a década

de 80 e meados de 90, o pessoal que eu contatei, ainda que tivesse

permanecido sem emprego por um certo período, tinha tido oportunidade

de reprogramar sua vida profissional. Algumas pessoas conseguiram fazer

isso antes de sair da PQU, de modo a atenuar sua situação de insegurança.

Ter alguma ocupação, mesmo que em situação mais precária do que a

anterior, era melhor do que não ter nenhuma. Assim, sua saída não fora

tão traumática. Isso não impediu que eu recolhesse as impressões dessas

pessoas sobre os processos de transformação por que passou a empresa,

um dos aspectos fundamentais da pesquisa.

No contato inicial, mesmo sendo indicado por colegas que

permaneceram na Petroquímica, era comum eles fazerem uma avalanche

de perguntas. “Como você encontrou meu telefone, foi ‘fulano de tal’ que te

passou?”, “pra que vai servir a pesquisa?”, “foi o pessoal da Petroquímica

que me indicou?”, “quem está por trás da pesquisa?”. Depois dos

esclarecimentos e justificativas preliminares, da explicação de que se

tratava de uma pesquisa de mestrado de sociologia da USP, a maioria

concordou em participar da pesquisa, ficou mais fácil conseguir o aceite

deles, sobretudo porque eu tentava dirimir, de pronto, as suspeitas de que

se tratava de uma pesquisa encomendada pela Petroquímica União.

As entrevistas aconteceram ou na casa ou no ambiente de trabalho

dos entrevistados. Durante o processo de prospecção de informações com

esse grupo, deparei-me com realidades muito diversas. Em alguns

momentos, isso provocou-me certo estranhamento, pelo tipo de resposta

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

166

que vinha recolhendo. Minha resistência parecia indicar que eu talvez

tivesse noções preconcebidas em relação à realidade de pessoas

dispensadas de suas funções em uma empresa.

Foi, então, inevitável rever o método de produção do estudo a que me

propus. As questões com as quais eu não contava nesse processo, o

contingencial, os diferentes pontos de vistas e percepções dos

entrevistados sobre sua realidade abriam novas possibilidades de

interpretação e de construção do conhecimento sobre a questão do

emprego, do desemprego e suas conseqüências. O que me impunha fazer e

refazer continuamente o trabalho de pesquisa.

Diferente do que acontecia com as outras categorias, que falavam do

desemprego como hipótese, o trabalho com esse grupo impunha discutir a

condição de desemprego vivida no momento ou no passado, o que exigia

lembrar ou reviver situações desagradáveis, incômodas e desconfortos da

vida profissional que conheceram de perto. Nesse caso, esforcei-me para

compreender os tempos de silêncio e as falas lacônicas, tentando reunir os

diferentes depoimentos e dar sentido ao material que recolhera61.

Talvez esperasse ver um quadro geral crônico, de pessoas fortemente

afetadas pelo desemprego, frágeis do ponto de vista emocional, vitimizadas

por sua situação de desemprego. No entanto, as entrevistas exigiram que

eu buscasse compreender o processo que me propus a analisar, despida de

noções preconcebidas.

Era importante olhar a fundo a crise porque cada um tinha passado

devido a situações de insegurança no emprego e ao desemprego, mas

também considerar sua capacidade de reagir às dificuldades e obstáculos e

de encontrar soluções para seus problemas, ainda que fossem soluções

provisórias, como empregos temporários, “bicos”, ou arranjos provisórios.

61 Aqui é importante destacar a delicada e ambígua relação entre pesquisador e objeto de pesquisa no campo das ciências humanas. É necessário que se estabeleçam vínculos de confiança entre ambos, no entanto, o esforço do pesquisador de se aproximar do pesquisado deve ser acompanhado de cautela e distância em relação ao objeto de pesquisado. A identificação com o outro, com seus dilemas e dramas deve ser combinada com um olhar de estranhamento em relação ao que se estuda, como um escafandrista a descobrir novos tesouros.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

167

Foi necessário compreender que, apesar das dificuldades de encontrar

emprego, depois de atuarem em um setor restrito como o petroquímico,

essas pessoas continuavam sua vida, lutando por novas oportunidades,

com a ajuda ou não de centros de solidariedade, sindicatos e entidades

afins. Ou seja, a situação em que essas pessoas se encontravam era

resultado da sua luta e das circunstâncias em que se encontravam.

As biografias aqui relatadas descrevem o percurso singular de cada

um na luta diária pela sobrevivência, mas, ao mesmo tempo, elas se

entrelaçam num eixo comum qual seja, o de pessoas que conhecem de

perto o trabalho no setor petroquímico e sua transformação.

Meu estranhamento com relação a certos tipos de resposta obrigou-

me a repensar o meu papel de maneira crítica, fez-me entender que as

biografias contavam sua história, por si mesmas, a partir de um contexto

específico, e que minha tarefa era interpretá-las. O fato de surpreender-me

com algumas respostas inesperadas exigia um esforço maior para desnudar

o contingencial, trazendo à tona resultados não esperados.

Os questionamentos em relação aos trabalhadores despedidos, após

uma longa experiência na Petroquímica União, baseavam-se em três

pilares: o impacto do desemprego na vida dessas pessoas, considerando os

âmbitos profissional e pessoal; a capacidade de adaptação à situação de

instabilidade devida às transformações do mercado de trabalho, nelas

incluídas a deterioração salarial e das condições de trabalho e o

comportamento diante do aumento da concorrência e das exigências

profissionais.

Contextualizando a situação dos despedidos

À semelhança da Indústria Química, sobretudo entre o final de 80 e

meados de 1990, a Petroquímica renovou seu quadro de funcionários,

motivada, entre outras coisas, pela contratação de jovens operadores com

níveis mais altos de instrução.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

168

Conforme Guimarães, o processo de enxugamento promovido não

afetou igualmente todas as áreas. “Enquanto alguns setores, como os

departamentos Contábil/Fiscal e de Relações Industriais e a Brigada de

Combate a Incêndios foram reduzidos praticamente a um terço do que

eram, outros” (...) “Aliás, as diferenças em termos de enxugamento entre

os departamentos industriais são notáveis e estão ligadas à diferença dos

processos de reorganização do trabalho.” (Guimarães, 1998: 146)

O Programa de Demissões Voluntárias – PDV foi um outro instrumento

utilizado para a renovação do quadro e, posteriormente, o Programa de

Demissões Orientadas – PDO voltado para aqueles trabalhadores cujo

desempenho era considerado insatisfatório62.

Perfil dos entrevistados Foram feitas sete entrevistas, sendo cinco consideradas válidas, uma

vez que dois dos entrevistados haviam sido readmitidos pela empresa

depois de se aposentarem. Tal circunstância colocava-os numa condição

diferente da das pessoas que viveram o desemprego ou as instabilidades de

mercado sem dispor de outra fonte de renda ou de quaisquer garantias.

Do mesmo modo que os terceirizados, os entrevistados dessa

categoria eram todos homens, casados e tinham filhos, com apenas uma

exceção. Três respondentes têm curso universitário completo, um possui

curso superior incompleto, outro tem curso de tecnólogo e um não tem o

segundo grau completo.

Essas pessoas trabalharam como efetivas na Petroquímica União por

períodos que variam de 7 a 20 anos. Todas estavam lá no processo de

privatização e puderam discorrer sobre esse período de transição da

empresa. Considerei essa uma fase importante para efeito de análise, uma

vez que mostra bem o processo de reestruturação no interior da

62 Esses programas de desligamento, desenvolvidos entre 1991 e 1992, produziram a redução de mais de 36% no total de empregados em relação a 1989. (Guimarães, 1998: 150)

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

169

corporação, de mudança do modo de gestão e transformação da

cultura da empresa.

Se considerarmos a relação desses trabalhadores com a empresa,

podemos dividi-los em dois grupos. O dos que não tinham o objetivo de

permanecer na empresa e planejavam uma vida profissional fora dela, e os

que pretendiam manter-se e desenvolver um plano de carreira lá dentro. É

possível também pontuar aspectos que favorecem ou desfavorecem a

reinserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Passemos às

entrevistas.

Análise das Entrevistas

O universo numa casca de noz

“Eu poderia viver recluso numa casca

de noz e me considerar rei do espaço

infinito...”

Shakespeare,

Hamlet, Ato 2, Cena 2

Pepeu: 47 anos, casado, sem filhos. Dos 14 aos 27 anos, o histórico

profissional de Pepeu ajuda a compor a realidade amargada por boa parte

dos brasileiros, que exercem atividades intermitentes, sem dispor de salário

estável. Depois de longo período inserido em atividade de economia familiar

e de trabalhar em atividades informais, viveu a situação do desemprego por

desalento, num interregno de dois anos. Aos 29 anos, deu os primeiros

passos para voltar à atividade, germinando a ideia de montar o próprio

negócio. No mesmo período ingressou na Petroquímica, onde atuou por

quase nove anos, quando saiu para assumir seu empreendimento.

Atualmente é proprietário de uma loja de molduras e objetos de decoração.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

170

A autonomia e realização do ser

Pepeu é o primeiro entrevistado que apresento neste bloco. Antes de

mostrar seu rosto, é preciso falar de sua voz. Sussurrante, macia, plácida,

preguiçosa de sair. Ela é pensativa, se é que se pode dar essa qualidade à

voz de alguém. O “Dono da Voz” é elegante, tem estatura média e silhueta

fina. Os cabelos grisalhos enfeitam o rosto bem cortado, coberto com pele

clara e barba por fazer. Seus olhos esverdeados são duas lanternas

alumiantes. Um deles, levemente baixo, como quem olha pra dentro de si,

parece buscar a fonte de suas riquezas. Pepeu, com olhar profundo e seus

lábios finos, diz aquilo que pretende que seja a verdade das coisas, da vida

e do mundo. É um homem de convicções.

Seu depoimento foi o tempo inteiro inquietante. Se, por um lado,

elucidou muitas dúvidas, por outro, acarretou diversas interrogações. É um

dos poucos entrevistados que discute a questão do caráter, sem que eu

faça, sequer, menção ao tema. Tem concepções próprias sobre o assunto.

Um dos aspectos mais importantes dessa biografia é que ela conta a

trajetória profissional de uma pessoa que vivenciou diversas situações de

trabalho. Desde as mais precárias – onde se incluem atividade familiar sem

regras firmadas, subemprego, inatividade – até o emprego registrado, com

relações formais estabelecidas. Os quase 9 anos em um emprego formal na

Petroquímica viabilizaram seu projeto de ser dono do próprio negócio.

Durante a entrevista sua fala aparece como um sussurro. A voz quase

inaudível revela momentos difíceis de uma trajetória de trabalho turbulenta,

tortuosa, dramática. Atuou na cadeia da informalidade dos 14 aos 27 anos,

quando experimentou o jejum do mercado de trabalho e conheceu de

perto o degredo, a reclusão. Aos 29 anos, reencontrou a vontade de lutar e

voltou ao mundo do trabalho. Depois de iniciar uma atividade informal e

familiar nos porões de casa, ingressou na Petroquímica União. Só então

passou a desfrutar do trabalho formal, com direitos sociais assegurados.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

171

Filho de descendente italiano, 9 irmãos, sua história reproduz o

exemplo de diversas famílias dessa origem, que se abastecem da economia

familiar. No entanto, esse modelo de sobrevivência deixou cicatrizes fundas

em sua vida. Marcas que ele carrega consigo. Elas também contribuíram

para que Pepeu construísse sua forma particular de ver a vida, bem como

de ver o trabalho e o modo de as pessoas se comportarem.

Entre uma descoberta e outra, meu interlocutor avança pontuando o

itinerário surpreendente de alguém que afirma ter conhecido a escravidão

e, depois de superadas as mazelas desse período, construído o percurso de

uma pessoa que conquistou o que ele próprio denomina autonomia.

Trajetória profissional

Logo de início, quando perguntado sobre sua trajetória profissional, o

entrevistado afirma: “No meu primeiro trabalho eu fui escravo63”. Eu

continuo a entrevista. “Não, eu falo sério”. A resposta vem como um refrão:

“Mas, é verdade, se você trabalha e não tem remuneração, então você é

escravo. Meu pai era o senhor da senzala. É, são coisas que acontecem. Se

você trabalha, você tem só alimentação, você não tem roupa, não tem

nada, é escravidão, não é?”

Por insistência minha, aos poucos, ele explicou melhor sua situação.

Era ajudante de motorista do caminhão de seu pai. “Eu era. Então meu

início profissional foi esse. Com 14 anos comecei a trabalhar assim, fiquei

63 A escravidão, no sentido original, refere-se à situação de pessoas que, privadas da liberdade, estão submetidas à vontade absoluta de um senhor, a quem pertencem como propriedade. No entanto, a escravidão no mundo moderno adquire outros sentidos / O Relatório da OIT – Organização Internacional do Trabalho “Não ao Trabalho Forçado” – 89ª reunião/2001 condena categoricamente o trabalho forçado, mas revela que ele permanece sendo um problema difícil de ser enfrentado em diversas nações do mundo. “O trabalho forçado é universalmente condenado. A eliminação, porém, de suas múltiplas formas - das ancestrais até as mais recentes, que vão da escravidão e do trabalho em regime de servidão ao tráfico de seres humanos continua sendo um dos problemas mais complexos que enfrentam as comunidades locais, governos nacionais, organizações de empregadores e de trabalhadores e a comunidade internacional. Buscar uma forma de pôr fim a essa negação da liberdade humana supõe a aplicação de soluções multidimensionais para combater as diferentes formas que assume o trabalho forçado”. (O Relatório da OIT – Organização Internacional do Trabalho “Não ao Trabalho Forçado” – 89ª reunião/2001).

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

172

oito anos nesse trabalho...”(...) “Burro de carga! Então foram oito anos

como escravo.”

Eu procurei esclarecer as dúvidas sobre sua condição de trabalho,

perguntando se de fato ele trabalhou sem ser remunerado durante os oito

anos: “Sem remuneração, só tinha comida.” Era natural meu

estranhamento diante de alguém que, no século XXI, afirma ter trabalhado

como escravo64 no negócio da família, durante tanto tempo de sua vida.

Mesmo quando eu argumentava que, muitas vezes, em atividades de

economia familiar as regras, nem sempre, são claras, Pepeu foi persistente

em sua afirmação. Ele explicou que não se trata do fato de nunca ter sido

remunerado durante esse período. O problema ganha outra dimensão na

medida em que um dos pares da relação – seu pai – incorporou a prática

de vilipendiá-lo, de rebaixá-lo reiteradamente, de tratá-lo como coisa, a

ponto de convencê-lo de que não seria capaz de fazer alguma atividade em

64 Martins (1996, 2000) discute e explicita, utilizando Lefebvre, que “a noção de formação econômico-social retomada e aprofundada por Lênin engloba a de desenvolvimento desigual, como engloba a de sobrevivências na estrutura capitalista de formações e estruturas anteriores”. Com isso, o autor mostra que o capitalismo produz e faz coabitar relações datadas em períodos diferentes, como a contraditória coexistência entre relações escravista e assalariada. Mesmo conhecendo esse aspecto do desenvolvimento do capital e sabendo que a escravidão foi incorporada como uma forma de produção em diferentes regiões do mundo, inclusive o Brasil, eu estranhava a afirmativa de meu interlocutor. Sobre a escravidão nos tempos atuais, Martins mostra que “a escravidão de que se fala é completamente diferente das duas modalidades de escravidão que já tivemos ao longo de nossa história, a escravidão indígena e a escravidão negra, cada qual regulada por um estatuto jurídico diferente. Raramente se trata do escravo-coisa, o escravo-mercadoria, como foi próprio da escravidão negra”. Trata-se, segundo o autor, de “servidão por dívida, na maioria dos casos, o trabalhador subjugado por um endividamento manipulado pelo traficante de mão-de-obra e pelo patrão. Uma dívida artificialmente acrescida para pagamento da alimentação de que o trabalhador precisa. Não se trata de uma sobrevivência do passado. Mas de uma invenção do moderno sistema econômico. Por isso mesmo, podemos encontrar trabalhadores em regime de servidão não só no campo, mas também nas grandes cidades. É o caso freqüente de imigrantes bolivianos clandestinos trabalhando na indústria de confecção em São Paulo. Ou, no limite, dos motoristas de táxi que trabalham em carro alheio, condenados a viver com o que sobra da renda e das despesas que pagam ao proprietário do veículo. Algo muito próximo da situação do chamado escravo de ganho que havia no século 19”. (Martins, Família Cristã, ano 70, nº 821, maio de 2004, p. 64-65). Ainda que a situação de Pepeu se aproximasse da situação denominada de ‘escravo de ganho’, é necessário considerar que ele não recebia por seu trabalho e que sua relação se estabelece no seio familiar, o que revela outras implicações, problemas na base da família.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

173

qualquer outro lugar. Foi nessa condição de humilhado que meu

interlocutor se colocou. Por isso ele ratificou sua afirmação.

Isso ficou claro quando eu pedi que ele explicasse como se sentia

quando ficou desempregado. Na Petroquímica, Pepeu não chegou a ficar

desempregado, porque pediu para ser desligado. Quando saiu da empresa,

já foi direto para seu estabelecimento. Perguntei se, em algum momento de

sua trajetória, ele se viu na situação de desempregado. Respondeu sim e

contou sua experiência de trabalho com o pai mostrando que as

humilhações que sofrera arrancaram-lhe a autoconfiança e a coragem de

lutar por um emprego: “A única coisa que eu lembro é que eu fui criado

como capacho, como um pedaço de lixo. Eu tive um pai que, durante toda

a vida, afirmou sempre que eu não prestava pra nada. Então, o fato de eu

tá desempregado....// eu nem tinha confiança em mim pra procurar alguma

coisa. Como é que eu posso oferecer algo a alguém se eu achava que eu

não tinha nada pra oferecer? (fala isso, com uma certa placidez, mas sua

voz declina).”

A descrição feita pelo entrevistado revela um problema familiar mais

grave. O alcoolismo do pai e as complicações no relacionamento entre eles

também deixaram marcas em sua trajetória de trabalho. “Eu sou filho de

um pai que era motorista de caminhão, alcoólatra, com 9 filhos. Quer

miséria maior, ou quer mais?”. Tudo isso fez com que Pepeu perdesse a

autoconfiança e a força para lutar pela própria sobrevivência. Como

explicou: “Eu ficava largado por aí, não conseguia encontrar o rumo de

onde conseguir emprego, de onde pedir emprego.”

Meu entrevistado mostra o quanto foi difícil superar essa situação e

recuperar a autoconfiança. Mas, nesse caso, não se tratava apenas de estar

sem emprego e dos problemas econômicos que dele decorrem, mas de

estar em posição social degradante, nos termos ditos por Ledrut, agravada

por problemas na relação familiar.

Pepeu permaneceu por dois anos sem procurar emprego, na condição

de desalento. Nesse sentido, quando lhe perguntei se no período que

estava sem ocupação ele tinha buscado fazer cursos de aperfeiçoamento,

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

174

mostrou que o quadro em que se encontrava era muito grave. Parecia

sentir-se humilhado, sem necessariamente viver uma situação de

humilhação, tal qual define Ledrut. Procurei saber se durante o período em

que ficou sem trabalho remunerado, ele fez cursos, estudou. Sua resposta:

“Eu era um zero mesmo, eu já tinha largado o estudo. Como eu era um

nada mesmo, pra que eu ia estudar?” (...) “Eu já tinha abandonado os

estudos. Então, nós somos em nove irmãos, todos os irmãos têm curso

superior, o único que não tem sou eu.”

Sua fala está carregada de um tom queixoso. Não sabia como tinha

sido com os outros irmãos, e sobre isso ele falou: “Com todos nós, mas

como eu trabalhava, eu ajudei eles a fazerem faculdade. Todos se

formaram e eu acabei sempre ajudando um ou outro.”

Nesse momento, ele demonstrou assumir a postura de um pai de

família, provedor, e que encaminha seus filhos. Mesmo assim, eu perguntei

se os outros irmãos não trabalharam com ele: “Não, só um irmão, que é

esse que tá comigo na loja até hoje.” (...) “Os demais, cada um foi

seguindo seu rumo, se formaram. Tem dois engenheiros, tem um designer

na GM (General Motors), então cada um teve seu rumo.”

O fato de ele não ter feito curso universitário aparece como queixa e

como crítica. Faltara-lhe ocasião, o momento adequado? Ao trabalhar para

ajudar seus irmãos a concluírem o curso superior, Pepeu perdia a

oportunidade de seguir o mesmo caminho e se distanciava de cumprir o

perfil exigido pelo mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, criticou o fato

de as oportunidades de trabalho serem escassas para os que não dispõem

de curso superior.

Por ser um dos mais importantes, o tema do desemprego permeia

toda a entrevista. Era fundamental compreender o modo como nosso

entrevistado se sentiu na situação de desempregado e sua forma de

superar o problema. Estava interessada em conhecer o limite entre a

situação em que a pessoa se sente humilhada por sua condição de

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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desempregado65 e o momento em que consegue reagir e buscar soluções

para o desemprego. Sua resposta foi a seguinte: “Só que teve um momento

que eu pensei, ‘eu não posso ficar assim, eu tenho que fazer alguma

coisa!’. Eu procurei saber quanto tempo durou esse estado, em que ele não

conseguia reagir. “Durou uns dois anos66.”

Mesmo assim, a dúvida de como se deu o registro da mudança

permanecia. Passados os dois anos, o que aconteceu, para que ele

mudasse de atitude? Ele explicou como se deu o início da nova fase: “Aí

começamos a trabalhar aqui na loja, tinha um porãozinho, começamos a

cortar umas madeirinhas, uma coisa assim.”

A única resposta plausível para minha dúvida é que o fim da fase de

reclusão e desalento coincide com o início da descoberta do novo ofício. A

transição se dá em meio a uma crise e as duas situações se confundem.

Não há como usar precisão para tratar do assunto. Mas em sua

argumentação, ele escolheu discorrer sobre a oportunidade que se

apresentava, e abordou como se deu a retomada ao trabalho. Explicou que

um de seus irmãos tinha ganho o material, uns pedaços de barra de

moldura. “Aí, nós cortamos com um serrotinho, lixamos, pintamos, ele fazia

faculdade, e nós vendemos pra o pessoal que estudava com ele.”

Depois do trabalho feito em família, eles já dispunham de recursos pra

dar início ao seu negócio. “Aí depois daquilo, tínhamos algum dinheiro, eu

fui em São Paulo, numa distribuidora, comprei 3, 4 barras de moldura,

trouxe nas costas, aí nós cortamos, aí fizemos tudo de novo.”

Ainda que pareça ter sido fruto do acaso, algo mudou. Pepeu livrou-se

da compleição depressiva, recobrando a vontade de lutar. Aproveitou a

primeira ocasião que lhe apareceu para retomar a vida econômica ativa, por

meio de um trabalho que realizava com as próprias mãos: a confecção de

molduras para telas. Ao insistir em saber os momentos que ele julga os 65 Refiro-me ao conceito de Ledrut (1966) sobre desemprego. 66 Na realidade, dois anos sem procurar trabalho caracteriza a situação de pessoas desempregadas por desalento – que significa a suspensão da procura ativa de trabalho. Mesmo sem ter consciência disso, Pepeu se enquadrava na situação de pessoas que, cansadas de procurarem emprego sem sucesso, desistiram de faze-lo, desistiram da luta por emprego.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

176

mais difíceis do período em que ficou desempregado, ele falou o seguinte:

“Quando a pessoa tá deprimida ela não consegue ter momento bom, não

tem pior ou melhor. Você fica desmotivado, você não tem esperança.

Aliás, é uma coisa que afeta a maioria de nós hoje. Você pode tá

empregado ou não, a desesperança é o que afeta a maioria de nós,

humanos, hoje. Isso eu noto até na loja. Eu virei um terapeuta. As pessoas

choram aqui....”

Mesmo assim, eu interroguei sobre os momentos mas difíceis,

demandando que o meu interlocutor estabelecesse comparações entre as

diferentes fases de sua vida. Buscava entender o modo como ele se sentia

diante dos obstáculos no âmbito profissional e saber como usava os

recursos de que dispunha para resolver seus problemas. Conforme mostro

a seguir: “Não, você não liga né, você fica num estado de inércia. Você não

ta nem aí.”

Depois dessa resposta, busquei entender outras questões relacionadas

à trajetória profissional. Assim, pedi que comparasse o período em que

ficou desempregado com aquele em que tinha atividade remunerada. “Eu

não conseguiria fazer comparações porque os meus ganhos com trabalho,

antes de trabalhar na Petroquímica eram tão irrisórios que não tinha muito

o que comparar.” Nesse caso, resolvi pensar o contrário do que me propus

inicialmente. Me interessei por saber como se deu a adaptação ao trabalho

regular na Petroquímica, depois do interregno em que ele vivera recluso e

sem atividade. “Eu nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida, quando

eu ganhei o meu salário!”

A trajetória de Pepeu também aponta outras questões importantes.

Depois de ter trabalhado na informalidade, fazendo bicos, ele viveu a

experiência de atuar num trabalho formal, desfrutando de boa

remuneração, e tendo assegurados direitos básicos, como assistência

médica, FGTS etc. Pepeu viveu realidades contrastantes e conseguiu

distinguir as oportunidades que cada situação lhe proporcionou. Ele

afirmou: “Tudo muda, porque você tem dinheiro, você pode ter coisas que

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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nunca comprou na vida, você pode comprar roupas, você pode ter coisas

que não tinha antes.”

Diferente dos demais entrevistados dessa categoria, ele estava

desempregado antes de entrar na Petroquímica, o que me obrigou a

inverter as perguntas relativas ao desemprego. Isso porque a situação de

Pepeu me obrigava a questiona-lo, de maneira inversa, “de trás pra frente”,

em relação ao modelo de perguntas que eu tinha preparado. Em vez de

perguntar como se sentiu desempregado, depois de ter trabalhado na

Petroquímica, eu lhe perguntei o que significou ingressar na empresa após

anos de desemprego.

A distinção entre esses dois momentos contrastantes se evidenciou

quando lhe pedi para diferenciar o trabalho formal do informal. Como pode

ser visto a seguir: “Num trabalho registrado você tem uma retirada mensal,

e essa retirada permite que você compre uma casa, um carro, tudo que

você não obteve antes.” Na perspectiva do entrevistado o trabalho regulado

produz resultados materiais que a inserção na informalidade não permite,

uma vez que a remuneração regular possibilita que a pessoa planeje a vida,

já os os bicos, “Tem dias que você tem, tem dias que não. A não ser que

você monte uma estrutura como essa que a gente tem aqui hoje. Depois de

um tempo você já tem clientela, você sempre vai ter trabalho. Mas, pra

viver como pintor, pedreiro, não dá. Esses tão “arrombados!”. Eu não

entendi a expressão: “Porque não tem como organizar a vida. A própria

cabeça da pessoa é desorganizada!”

De seu ponto de vista, a situação de trabalho e de vida das pessoas

que trabalham de maneira informal expressa a desorganização de sua

cabeça. Ele confirmou essa ideia com uma assertiva: “Totalmente!”

Mesmo assim, resta a dúvida se ele considera que isso se aplica a

qualquer situação de trabalho. “Informal sim. Quando você consegue

alguma organização, você monta uma estrutura como a gente montou aqui.

Se eu fosse desorganizado, não conseguiria ter montado uma estrutura do

nada. Era um porão. De um porão se criou um meio de sobrevivência.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

178

Os argumentos de Pepeu indicam certa culpabilização dos que se

encontram em atividades intermitentes. Toda a desorganização presente na

vida das pessoas que se ocupam de bicos e trabalhos informais reflete a

própria desordem de ideias, do modo de condução de projetos pessoais.

Mais adiante, meu interlocutor matizou a discussão, quando mencionou a

ausência de políticas públicas voltadas para a orientação dessas pessoas.

As atividades informais que ele citou são as que teve oportunidade de

realizar, quando trabalhava fazendo bicos. Por isso, fala com conhecimento

de causa.

Mesmo depois de ter conquistado um trabalho formal, que lhe

proporcionou segurança e estabilidade, e uma remuneração constante, o

entrevistado olha o trabalho de maneira crítica. Segundo crê, no ambiente

profissional, cada pessoa adota um comportamento peculiar, calcado em

valores apreendidos ao longo da vida. As assimetrias entre esses valores

podem gerar conflitos nas relações sociais, que tornam a convivência difícil.

Interessante notar como ele atenta para o fato de que os valores que

norteiam as condutas das pessoas no ambiente de trabalho são recolhidos

ao longo de toda a vida e em outros campos sociais como a família e a

escola, por exemplo.

Comparando o período em que estava desempregado com o momento

em que ingressou na Petroquímica, disse: “Pelo lado financeiro é muito

legal, você ter um bom salário, todo mês aquele salário, aquela coisa toda.

Mas, aí eu comecei a esbarrar na convivência.” (...)“Primeiro, quando você

vai trabalhar num local, você não sabe o tipo de pessoa com quem você vai

conviver. Então, isso torna difícil a convivência. Tem jogo de egos, falha

de caráter”.

Meu interlocutor me surpreendeu ao enveredar para a discussão sobre

caráter, sem que eu mencionasse o assunto. Esforcei-me para compreender

em que sentido ele empregava o termo. Falando sobre o ambiente de

trabalho, ele disse que tinha briga de egos: “Ah, uma série de intrigas.

Aquelas intrigas....// entra ano, sai ano, pressões, são as falhas de caráter,

a coisa de passar a perna, ‘puxar o tapete’.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

179

Quando lhe pedi para explicar a que se deve a falha de caráter das

pessoas, ele afirmou o seguinte: “À falta de cultura, à falta de valores! Aí já

entra o Estado, a TV. Eu assisti uma propaganda na TV, onde o sujeito

pede pra o vizinho receber a encomenda que tá pra chegar. Aí esse vizinho

recebe a encomenda, abre o pacote, é uma TV de plasma, tela plana. Ele

abre o pacote, usa durante dias a TV do cara, aí quando o vizinho vai lá pra

ver se ele havia recebido um pacote, aí ele se pergunta “recebi?”. Quer

dizer, ele nem tá questionando se vai devolver o que é do outro. Olha só,

que propaganda canalha! Que valor que eles tão querendo passar, quando

tem milhões de pessoas assistindo? Então nosso sistema de vida é muito

canalha.”

A explicação dada por meu interlocutor deixou-me um pouco confusa,

o que fez com que eu questionasse a qual sistema ele estava se referindo.

Eis a resposta: “ Eu me refiro às empresas de propaganda. Eu também não

consigo avaliar tudo.” O simples raciocínio de que as empresas de

propaganda servem a quem lhes encomenda o serviço fez com que Pepeu

reformulasse sua crítica, agora conferindo valor moral às ações dos que

figuram no exemplo escolhido. Seu comentário trouxe à tona um outro

tema: o poder da televisão como formadora de opinião e indutora de

comportamentos. Também, tanto a empresa, quanto a contratada são

canalhas. Aquele que fez a propaganda e aquele que aceitou. Quer dizer, se

sou eu que to contratando a propaganda e o cara faz uma propaganda

canalha dessas, eu despeço ele na hora!”

Em sua fala o respondente também mostrou a importância que julga

que os valores têm na formação das pessoas e que eles são moldados por

meio da experiência de cada um nos diversos ambientes sociais em que

vive. Pepeu ratificou a ideia de que a conduta de uma pessoa no âmbito

profissional seria resultante da confluência de sua experiência nos

diferentes espaços sociais. “Você lembra de uma propaganda de uma

senhora varrendo a calçada, aí vem um moleque correndo e mete o pé na

lata de lixo. Olhe que propaganda canalha! Isso reflete no futuro, o valor do

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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trabalho. E outra coisa, vem o fator humano. Você só pode dar o que tem.

Se eu sou um canalha, o que eu posso passar pra você? Os valores que eu

tenho. Se eu tenho problemas familiares, formação, tudo vai refletir no

ambiente de trabalho.”

Ele tentou mostrar que a formação do caráter resulta da imbricação

de influências dos diversos âmbitos sociais na constituição de valores.

Família, escola e trabalho são os campos que julga importantes na

formação dos princípios. Conforme indicou: “O Estado deveria ensinar

caráter para as pessoas. A nossa mãe, que é responsável por nossa

educação, desde criança falava: “– viver na miséria é uma coisa, viver na

imundície é outra“. São esses valores que os pais não tentam passar pra

um filho porque o Estado também não passou pra os pais. A família foi

denegrida.”

Segundo o comentário de meu interlocutor, a formação de princípios

morais se daria por meio de relações estabelecidas no seio das instituições.

Caráter aparece aqui como algo que se ensina, a partir de critérios morais

determinados. Pepeu parece fazer distinções entre o grau de

responsabilidade que cada uma das instituições teria nesse processo de

estruturação dos princípios das pessoas. Por ordem de importância viria:

primeiro o Estado, depois a família (representada pelo papel da mãe) e

depois a escola. Por outro lado, ele desmonta a possibilidade de se fazer

associação entre pobreza falha de índole. O poder público teria o papel de

equalizar oportunidades e de inculcar os mesmos valores morais a todos.

Uma vez que o Estado não cumpre esse papel, põe-se a perder a

formação de toda uma geração.

Competição x Caráter

De acordo com o depoimento de meu interlocutor, a competição

acirrada no mercado de trabalho pode induzir uma pessoa a cometer erros

que denunciam ausência de princípios morais e defeito de índole;

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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entretanto, também afirma que “quando o caráter é bem formado” a

pessoa tende a preservar a relação de confiança com o outro. Desse modo,

dá uma conotação moral a esse conceito. Sua explicação parece estar em

consonância com a noção de Sennet sobre caráter. As falhas tornam-se

evidentes na medida em que as ações de uma pessoa ferem princípios

morais de lealdade e de confiança em relação às outras com quem convive.

Isso é o que ele revela quando discute o comportamento de pessoas que

trapaceiam as outras no trabalho. “Às vezes é o cargo que tá sendo

concorrido ali, mas pra ganhar porcaria de R$ 300,00 a mais no salário. É a

competição que impulsiona, mas se a pessoa tem caráter bem formado, ele

vai dizer: “certas coisas eu não faço pra atingir aquela pessoa”.

Mesmo aceitando a competição, própria do regime capitalista, Pepeu

considera essencial que se adotem ações que preservem a relação com o

outro. Fazendo isso, olha com desconfiança para a pressa e a voracidade

das relações capitalistas, reclamando que os limites sociais freiem a

imposição da racionalidade capitalista67. Tenta destacar a importância de

outros valores, moralmente louváveis, como ‘lealdade’, ‘compromisso’,

‘honestidade’, na composição do caráter. Isso é o que vemos nas próximas

falas: “Eu to num regime competitivo aqui, mas eu não dou propina pra

ninguém. Se vem uma empresa me contratar pra fazer os trabalhos, não

tem propina pra ninguém, eu prefiro nem pegar o trabalho. O que eu posso

fazer é, depois do trabalho concluído, eu posso dar um presente, e não

subornar essa pessoa.”

67 Em A Sociabilidade do homem simples, Martins comenta que “Thompson, na Inglaterra, chamou a atenção para a importância que tiveram as condutas corporativas e a economia moral, a tradição portanto, para pôr limites sociais à imposição da racionalidade capitalista e à precedência do lucro a todos os níveis da vida social. E mostrou que nessa resistência estava a origem dos direitos sociais e não na universalização e na imposição unilateral dos interesses do capital, sobrepostos aos interesses propriamente sociais. Essa imposição significava a conversão do ser humano de sujeito em objeto, em vítima da racionalidade modernizante.” (Martins, 2000: 23). De certo modo, a fala de Pepeu indica a falta de valores morais e da tradição nas relações que se guiam pela pura competitividade. Esta racionalidade, levada às últimas consequências, produz a subsunção do sujeito ao objeto, a suplantação do social pelo econômico. É ela que orquestra a reorganização do mundo do trabalho, viabilizando a coexistência entre formas híbridas de emprego, subemprego e outras figurações das relações precárias de emprego.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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Pedi-lhe pra dar exemplos do que considerava falha de índole no

comportamento de seus colegas na empresa. “Mas, eu não sei explicar

direito. Você quer esmiuçar a coisa?” (...) “Você tem o bajulador, você tem

o traiçoeiro. Eu cheguei a ver casos lá de caras que....//, não, porque tem

uma válvula que, se você abrir um pouquinho a válvula na reação, isso vai

dar reflexo no processo três horas após. (...) “É, ele mexeu ali uma micro-

volta, aumentou a vazão do produto, deu uma reação, que você fica horas

pra fazer uma manobra68.”

Tentei esclarecer se, de fato, ele testemunhou esse tipo de ação, que

um trabalhador efetua pra prejudicar o outro. E Pepeu me respondeu:

“Isso. Ele tinha birra do outro, que ia entrar e, aí, pra atingir o outro ele foi

lá e fez isso.”

Perguntei o que ele julgava ser um comportamento moralmente

adequado para uma pessoa que comete falhas técnicas no âmbito do

trabalho, a ponto de correr o risco de perder o emprego. Ele respondeu

mostrando que, mesmo quando cometeu falhas, teve a coragem de assumi-

las perante a chefia. Deu indicações de que certos comportamentos geram

insegurança para o grupo. Em suas palavras: “Sim. Qual é a falha de

caráter? Eu vi cara cometer um monte de erro lá, e morrer jurando que não

foi ele. Isso, eu sabendo quem tinha sido. Quer dizer, é o tipo de falha de

caráter que vai minando todo o grupo.”

Depois de me explicar que não achava o trabalho na Petroquímica

ruim, que o trabalho em turno não o incomodava, e que era bem avaliado

pelos chefes, perguntei se o fator que mais o estimulou a sair da empresa

tinha sido a competição entre as pessoas e ele me respondeu: “Não, o

problema maior era a falha de caráter.” “Uma vez nós pegamos um cara

lavando o carro de um chefe, do supervisor, na madrugada”(..) É, mas ele

já tinha fama de bajulador, aí quando pegamos fazendo aquilo...,// não é

assim que você conquista um cargo! Então eu acho que esse é um exemplo

de falha de caráter. Vou te dar outro exemplo. Um cara teve uma ideia e aí

68 Manobra é uma medida de urgência adotada em situações de risco. Elas são provocadas por procedimentos inadequados ou falhas no sistema de produção.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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ele queria opinar sobre mudança do processo. Tava sendo solicitada uma

mudança de projeto, que você bolasse uma tubulação instalada pra

melhorar o projeto, o processo. Então, você pedia a mudança do projeto,

fazia o fluxograma e mandava o projeto. Os engenheiros analisavam, se

fosse viável, aquilo era implantado.”

A chefia queria ideias pra serem incorporadas no processo da

Petroquímica. E ele explica que um dos funcionários se apropriou da ideia

do outro como se fosse sua: “Isso. Aí, o cara teve uma ideia, tava lá

fazendo o seu desenho, o outro viu, foi lá, desenhou primeiro e entregou

como se fosse dele. (risos..)”

Eu perguntei se ele tinha visto aquilo, se tinha sido testemunha de tal

situação e ele respondeu que sim. No final das contas revelou: “Fui eu que

tava fazendo o desenho.” (...) “O cara me viu desenhando, eu expliquei a

ideia e aí, ele apresentou primeiro!”. Ele faz uma assertiva sobre o tema: “É

isso que eu chamo de falha de caráter. Isso ocorre, em toda relação que

você viver vai ter isso.”

Aos poucos, meu entrevistado vai mostrando que, do seu ponto de

vista, as ‘falhas de índole’ minam os laços de confiança, tornando as

relações sociais vulneráveis, o que inviabiliza a convivência em grupo. “Ah,

você tá num ambiente que você não pode confiar em ninguém. Você pode

confiar em raras pessoas. Não é muito legal viver assim, onde você não

pode confiar em ninguém.”

Ao afirmar que quando as pessoas têm valores bem formados,

independente das circunstâncias, mesmo havendo competição, elas tendem

a preservar os laços de confiança nas relações, Pepeu colocou sobre o

indivíduo a responsabilidade pela preservação da relação social. Ele não pôs

em questão o fato de que as falhas de temperamento podem resultar de

circunstâncias, ou de situações de insegurança, em que as pessoas tendem

a preservar-se, e não às relações nas quais estão envolvidas.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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Processo de privatização e insegurança

De início, Pepeu diz que, em si, a privatização não gera insegurança e

competição. Apesar disso, quando discutimos mais a fundo esse tema,

admitiu, com certa resistência, que o clima de competição entre os

trabalhadores favorece a emergência das falhas de caráter.

No desenrolar da discussão, digo que ele chamou atenção para

comportamentos que denotam falha de caráter, acontecidos durante o

processo de privatização. Ele corrigiu minha interpretação: “Não, nós

estávamos falando de relacionamento nos ambientes de trabalho. Quanto à

privatização, não cabe isso. Aquilo é um processo acima de nosso controle”.

E completa falando que a insegurança é provocada pela mudança.

Perguntei então, se, ao sentirem-se inseguras, as pessoas mudavam seus

comportamentos. “Acho que não. Quem é bajulador, continua, quem é

canalha continua, e daí por diante.”

Questionei se esse quadro havia se acirrado quando aumentou a

competição: “Como eu não participava da competição, eu procurava me

manter na minha. Não era meu objetivo ficar ali.” Sua postura,

desinteressada da empresa, era diferente da de seus colegas. Sobre o

comportamento deles Pepeu afirmou: “Parecia um fosso de jacaré, eu até

usava esse termo.” Ele declinou de sua afirmativa inicial agora

corroborando a tese de que as falhas de caráter ficam mais presentes:

“Ficam.”

Autonomia e realização no trabalho

Um outro tema que apareceu na entrevista, sem que fosse buscado,

foi o da autonomia. O mais intrigante é que, justamente, o entrevistado

que diz ter conhecido a escravidão, foi quem introduziu o assunto. Para

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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discutir de maneira apropriada tal matéria é necessário considerar a

ambivalência que o termo autonomia69 carrega.

Por um lado, por oposição à escravidão, autonomia indica liberdade de

pensamento e de ação, capacidade que uma pessoa tem de fazer escolhas

e de guiar-se por sua vontade.

De outro modo, no contexto atual, é necessário pensar em outros

sentidos que o termo autonomia foi incorporando, sobretudo no âmbito

profissional. Embora o trabalho autônomo possa indicar um tipo de

atividade cujas regras são estabelecidas pelo própria pessoa, também pode

ser indicativo de condições precárias de trabalho e de oportunidades

limitadas. Essa limitação tem a ver com o capital intelectual e profissional

incorporados ao longo da carreira que cada pessoa constitui. A

desigualdade de oportunidades desfavorece os que dispõem de menos

recursos. Isso porque parte dos que se consideram autônomos são

trabalhadores que não dispõem de garantias e direitos sociais, e de

organismos coletivos que representem sua categoria de trabalho. Ou seja,

nesse caso não há instituição que defenda os direitos trabalhistas, como,

por exemplo, o sindicato ou o Estado, entre outros.

69De acordo com o dicionário Houaiss, Autonomia quer dizer: 1 – “capacidade de se autogovernar. 1.1 – Rubrica: termo jurídico. Direito reconhecido a um país de se dirigir segundo suas próprias leis; soberania. 1.2 – faculdade que possui determinada instituição de traçar as normas de sua conduta, sem que sinta imposições restritivas de ordem estranha. 1.3 – Rubrica: administração. Direito de se administrar livremente, dentro de uma organização mais vasta, regida por um poder central. 1.4 – direito de um indivíduo tomar decisões livremente; liberdade, independência moral ou intelectual”; 2 – “Rubrica: filosofia. Segundo Kant (1724-1804), capacidade apresentada pela vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação afetiva incoercível Obs.: p.opos. a heteronomia” ;3 – “Rubrica: psicologia. Preservação da integridade do eu”; 4 – “distância máxima percorrível por um veículo, sem que haja necessidade de reabastecimento de combustível. 4.1 – Rubrica: termo aeronáutico. Espaço de tempo em que uma aeronave permanece no ar, em dada velocidade, até consumir quase todo o combustível [Uma parte pequena é deixada por segurança, para algum imprevisto.] 4.2 Rubrica: termo de marinha.

período em que um navio de guerra pode permanecer no mar, sem necessidade de ser abastecido [São levados em conta alguns fatores, como raio de ação, capacidade de transporte de suprimentos e aguada e capacidade das câmaras frigoríficas.]”; 5 – “Rubrica: tecnologia. período de tempo em que um equipamento ou sistema pode manter suas características de funcionamento, sem a ação de agentes externos.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

186

Para Pepeu, ser autônomo é “Você não tá enquadrado naquelas leis

trabalhistas, aquela coisa toda”. Perguntei-lhe se autonomia pressupunha

um modo singular e próprio de cada pessoa trabalhar, em que acordos

particulares são estabelecidos, sua resposta: “Eu até acho, hoje, que as leis

trabalhistas são maléficas pra quem trabalha empregado! Pense bem: pra o

patrão, um empregado... o custo dele é até muito pouco. Agora, o que

empregado tem de retorno dessa segunda metade, que o empregador

paga? Você concorda que se o empregador dobrasse o salário das pessoas,

automaticamente, isso dobraria o salário daquele indivíduo? Ele teria maior

poder de consumo, e isso iria ativar a economia e, tudo o mais. E se ele

fizesse um contrato particular, ele seria obrigado a pagar a assistência

médica dele, pagar previdência privada, porque se ele não fizesse, não ia

pagar imposto no futuro, então isso também é ser autônomo!”

Meu entrevistado pôs à mesa o modelo de autonomia que considerava

adequado. Nele, o trabalhador deve arcar com as custas de sua

sobrevivência e com o ‘vir a ser’, com o seu futuro, o que implica ter renda

que lhe permita assumir responsabilidades como assistência médica e

previdência privada, considerados direitos nos países em que o Estado de

Bem-Estar Social se consolidou. Mas também um modo de sobrevivência

que perdure no tempo.

Essa valorização do indivíduo autônomo, dono de si, que aparece no

discurso de Pepeu, resulta e é resultado do processo de individualização,

para o qual Beck e Beck-Gernsheim chamam atenção. Não se trata apenas

de um processo de individualização das perdas sociais, que inviabiliza ou

torna difusa a pertença a um coletivo de trabalho, mas de um contexto em

que a ideia de que cada um é dono de seu nariz, capaz de dar contar de

tudo que lhe diz respeito, sem interferência de outrem assume bastante

importância. No limite, essa ideia implica o isolamento das experiências

individuais e a concomitante perda ou o enfraquecimento do sentido das

lutas coletivas.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

187

Ele seguiu criticando a visão que as pessoas têm sobre o contrato de

trabalho. “Eu acho que as pessoas têm uma visão meio errada contra o

contrato de trabalho. O contrato de trabalho nada mais é do que a venda

de sua mão-de-obra. Você fez um contrato com o outro e você vai prestar

tal trabalho a ele, não é isso?”. E afirma que as pessoas têm uma maneira

emocional de encarar o contrato de trabalho “O patrão é canalha, ele tá me

explorando, e tal....Na verdade, você aceitou aquele contrato, as pessoas

são muito emocionais. Eu aceitei aquele tipo de contrato, o dia que eu

achei que não era mais conveniente aquele tipo de contrato eu pedi o

término do contrato. É uma relação perfeitamente normal”.

No entanto, essa forma de pensar contradiz a crítica que Pepeu fez à

atuação do Estado brasileiro no atendimento das necessidades básicas da

população. Ele critica o poder público por não garantir educação de

qualidade aos cidadãos, por não oferecer cursos profissionalizantes, e não

cumprir seu papel na equalização de oportunidades no mercado de

trabalho. Nesse caso, considerou a desigualdade de oportunidades entre os

trabalhadores, assunto que esquecera de abordar quando fez referência ao

contrato de trabalho. Mesmo porque, somente os trabalhadores bem

posicionados e bem remunerados dispõem de condições para enfrentar o

jejum da vida profissional. Os demais, submetem-se a atividades informais,

subemprego, bicos entre outros. Ou seja, não gozam de fato da liberdade

de escolha.

Durante toda a entrevista, nosso respondente falou, à farta, sobre as

falhas do Estado em seu papel de dar formação educacional e profissional

ao povo e a incapacidade de cumprir seu papel no suprimento do que julga

serem as garantias básicas aos cidadãos. Por essa razão, eu procurei

esclarecer.

O discurso de Pepeu transitava entre a ideia de que somos

autônomos, que cada um tem suas potencialidades e que nós não somos

iguais, e uma outra que assevera ser o Estado o responsável pelo bem-

estar dos cidadãos. Não conseguia entender como a autonomia, nos termos

que ele definia, se harmonizava com a ideia de que o Estado tinha

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

188

responsabilidade sobre o bem-estar dos cidadãos. Se as pessoas são livres,

gozam de liberdade de escolha, por que se faz necessária a atuação do

Estado? Em resposta à dúvida, falou: “O Estado é responsável pelas

premissas básicas. É necessário que desde a idade escolar, os pais passem

essa segurança pras crianças. Por na escola, incentivar a criação, procurar

as coisas por si próprias. Aqui a gente tem pessoas que são dependentes

do Estado. Você vê exemplo da pessoa pedir blocos de construção para os

políticos pra eles poderem construir os barracos deles. Como é que o

coronel manda no seu pequeno império, só manda porque encontra

pessoas dependentes.”

Em seguida, esclareceu o que quer dizer quando se refere a premissas

básicas: “Educação! Se você educar, sem ideologia, isenta. Porque esse pai

que já tá estourado, que é alcoólatra, ele não tem jeito. Você não vai

conseguir recuperar esse cara.”

A educação é vista por ele como um elemento fundamental para a

conquista de um espaço no mercado de trabalho70. Além disso, é um meio

mediante o qual garante dignidade aos cidadãos, e dá condições para que

lutem por condições de vida distintas.

Um dos aspectos marcantes da entrevista é que Pepeu viveu duas

experiências distintas do que denomina autonomia. Vivenciou o papel do

trabalhador que se enreda em condições precárias de trabalho e de vida,

durante um período, e o de uma pessoa que idealiza um projeto pessoal de

vida e realiza esse plano, tornando-se ‘dono do seu nariz’, quer dizer, do

próprio negócio. Mais do que isso, passou da condição que ele julga ser de

nulidade pessoal, para a de uma pessoa que comanda sua vida, vivendo

daquilo que ele próprio produz e cria. Está se preparando para lançar um

produto cuja patente está sendo licenciada.

70 Claramente, nesse ponto o discurso de Pepeu se afina com os principais argumentos que constituem o arcabouço teórico de Beck e Beck-Gernsheim sobre individualização: ‘produto do mercado de trabalho, que se manifesta na aquisição, oferta e aplicação de habilidades’. Os autores citados consideram educação, mobilidade e competição o tripé que dá sustentação à busca de oportunidades no mercado.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

189

Quando eu pedi para que avaliasse sua trajetória ele me respondeu o

seguinte: “Eu me vejo como um vencedor!......Porque um cara que

começou como, ponha aspas nisso, “escravo” e chega a ser dono de algo,

ter seu próprio negócio, isso é uma vitória! Não é fácil! A maior parte das

pessoas não tem determinação suficiente pra crescer. Não foi ensinado pra

essas pessoas... //, aí volta o Estado, o grande crime do Estado, o grande

crime dos pais. Não ensinam as crianças a ter determinação, a crerem em

si, e produzir a criatividade. Esse potencial ela tem, todos nós humanos

temos”.

Essa é, sem dúvida, a trajetória de um trabalhador que se colocou

como senhor de sua determinação. Sem contar com recursos de bases

societárias como sindicatos, ou agências de apoio a pessoas sem emprego,

Pepeu se amparou em outro tipo de apoio, de cunho pessoal – a ajuda de

um conhecido – para complementar seus estudos e entrar na Petroquímica.

Para conquistar mobilidade, saindo da condição de desempregado para a

de um empregado do setor petroquímico, ele delineou um percurso alçado

em valores que podem ser considerados mais individualistas do que

coletivistas.

Trabalho e status afinidades eletivas?

“Os Homens fazem sua própria

história, mas não a fazem como querem e sim

sob as circunstâncias que encontram, legadas

e transmitidas pelo passado ...”

Karl Marx,

“O 18 Brumário de Luís

Bonaparte”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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Tião: 45 anos, casado, tem uma filha. Ingressou em um curso técnico na

área de análises patológicas, mas, por falta de recursos desistiu de atuar

nessa área. Lamenta a desistência. Após ser admitido no departamento de

contabilidade de uma metalúrgica, decidiu fazer contabilidade. Trabalhou

na Petroquímica por 15 anos consecutivos e atualmente trabalha como

analista contábil em uma indústria do ramo metalúrgico.

Tião atuou no administrativo da Petroquímica União e não no setor de

produção. Inicialmente ponderei se valia a pena realizar essa entrevista,

uma vez que ele desconhece o trabalho de produção do setor

petroquímico. No entanto, considerei que seria interessante ouvir seu

depoimento devido ao fato de ele ter permanecido na empresa por longo

período, por ser testemunha do processo de privatização na corporação e

por ter tido a vivência do desemprego71, ainda que por um período muito

curto – um mês e meio, quase dois.

Esse entrevistado faz afirmações muito claras sobre sua condição de

trabalhador e sobre a vivência do desemprego. Depois de passar 15 anos

na Petroquímica União, numa posição já consolidada, foi grande o susto de

ter sido dispensado pela empresa.

Adaptação ao desemprego – a reintegração ao novo mundo

do trabalho

Para Tião, fora da empresa, o mais difícil foi a adaptação ao novo

contexto, à rotina de permanecer em casa, sem ter alguma perspectiva de

71 Nadya Guimarães mostra que, as dispensas no setor petroquímico em São Paulo ocorreram entre o final da década de 80 e começo dos 90. “Numa primeira, entre 1986 e 1989, vemos uma razoável ampliação de quadros. Numa segunda, entre 1990 e 1991, assistimos a um grande e agudo enxugamento de pessoal. E, finalmente, numa terceira, entre 1992 e 1996, vemos uma lenta e persistente erosão dos empregos.” (Guimarães, 1998)

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

191

futuro. No início, a situação de não-ativo não o incomodou porque estava

confiante de que não iria demorar pra conseguir outro emprego.

No entanto, logo percebeu que as coisas eram diferentes do que

pensava. O estranhamento de Tião se evidencia, quando perguntei se ele

refletia sobre a situação de desemprego: “Sim, mas quando eu saí da

Petroquímica eu achei que ia arrumar emprego fácil, logo! Eu achei que

como eu tinha 15 anos de empresa, eu achei que ia ser mais fácil. Então,

realmente de início eu não me preocupei muito não. Tanto é que eu

arrumei esse emprego de autônomo, aí eu me programei pra pensar nisso

mais pra frente. Mas, aí, quando eu comecei a colocar currículo, a sair em

busca de emprego. Quer dizer, hoje você não tem mais onde é que tá, você

não sabe onde que ta o emprego! Eu não sei onde é que ta o emprego, eu

não sei em que porta eu posso bater.”

Tião comentou que o salário se desvalorizou no setor petroquímico72

durante o período em que atuou na empresa. Mesmo ciente disso, o

entrevistado supunha que um trabalhador petroquímico tinha salário

superior ao da média nacional.

Muita coisa havia mudado no mercado de trabalho desde quando

entrou na Petroquímica até o momento em que foi dispensado,. Os

mecanismos utilizados para ter acesso às vagas disponíveis no mercado, em

sua maioria, eram indiretos, seguiam o princípio da virtualidade: internet,

agências de recolocação, que cuidavam, elas próprias, do reecaminhamento

do profissional. Nesse processo, os rostos dos profissionais especializados

em contratar funcionários e, mesmo, as empresas para as quais o currículo

estava sendo encaminhado não eram conhecidos, o que contrastava com a

72 Em seu estudo comparativo do complexo químico brasileiro, Guimarães mostra que “Em toda a década de 80, os químicos assistiram à deterioração permanente de seu salário médio real. No início da década de 90, esta deterioração alcançou seu limite (em 1990, o valor recebido pela categoria química representava apenas 35% do valor recebido em dezembro de 1981). E, desde então, o salário médio real tem ensaiado uma lenta e parcial recuperação (em 1994, o valor recebido pela categoria química representava 53% do valor recebido em dezembro de 1981).”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

192

forma que Tião conhecera antes, quando o candidato à vaga interagia em

boa parte do processo e tinha contato, desde o início, com os atores em

jogo: a empresa que contratava, o profissional que preparava a seleção.

“É, eu não vou num lugar e pergunto: “olha, tão precisando de gente

aí?” Não existe mais isso. Aí eu comecei a me preocupar. Eu comecei a me

preocupar, porque eu comecei a jogar currículo na internet, deixar currículo

em um monte de agência, que também não te atende, que também não

fazem nada. Eles dizem: “– deixe o papel aí e vá embora.” Aí eu comecei a

ver que a coisa ia ficar complicada, mas não cheguei a me preocupar.”

No novo contexto, para participar de uma pré-seleção, era necessário

enviar currículo pela internet, para um especialista em RH cujo rosto era

desconhecido. Tudo isso o incomodava. Sempre havia conseguido trabalho

indo à própria empresa, “batendo à porta”, como ele mesmo diz,

identificando se desejava ou não atuar naquele ambiente.

A maneira de concorrer a uma vaga, a forma de procurar emprego, o

modo de preparar um currículo e de se portar nas entrevistas, enfim, tudo

era diferente. Tião teve de reaprender a busca por um emprego. Mais do

que isso, necessitava estar inteirado sobre a nova realidade e dialogar com

ela, em um mundo do trabalho mais complexo e diferenciado.

Nosso entrevistado passou a contar com os serviços de uma empresa

de recolocação. Mesmo assim, percebeu que as oportunidades estavam

escassas e que o salário da categoria à qual pertencia havia sofrido

desvalorização, o que o obrigava a rever suas expectativas de conquistar

um emprego que proporcionasse boa remuneração. Quando lhe perguntei

sobre os momentos mais difíceis do período em que ficou desempregado,

ele afirmou: “No final, eu fiquei pouco tempo, eu fiquei quase dois meses.

Um mês e meio. Eu comecei realmente a ficar preocupado porque

realmente eu vi que o emprego tava difícil, porque não tava me surgindo

nada mais.”

Mesmo usando a empresa de recolocação, percebeu que não havia

muitas propostas no mercado: (...) “Mas começou a não vir mais proposta

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

193

boa. Quando surgiam propostas não queriam....//, pagavam menos do que

eu ganhava e não queriam me contratar. Surgiu bastante emprego, mas

tudo nessa linha: “– oh, você quer R$ 3.000, mas não dá, tão pagando R$

1.500”. Eu decidi: “não quero”. Minha preocupação foi essa, “vou ter que

aceitar R$ 1.500, não tem jeito, vou pegar qualquer coisa”. “

A percepção de uma certa degradação das condições de trabalho

implicou a revisão de suas exigências e expectativas. Tinha que buscar o

que fosse alcançável.

“Exatamente! Eu já tava percebendo que não podia exigir mais. Já

não tava procurando mais em multinacionais, que, mesmo eu sabendo que

precisava do inglês, mas eu queria. Então eu pensava: “de repente eu dou

uma enrolada lá, a gente fazendo uma boa entrevista, um bom teste, eles

dão uma chance”. Mas aí eu vi que não, que não ia dar. Mas aí tive que

baixar a bola e aceitar o que me aparecesse. Eu já tava assim.”

Não se tratava apenas de rever expectativas, mas de renegociar com

o mercado de trabalho e, de certa forma, com sua família os critérios de

escolha para a nova oportunidade de emprego. Por isso, a preferência por

atividades bem remuneradas em multinacionais dava lugar a escolhas “mais

realistas”. Era necessário ceder e aceitar o que estivesse a seu alcance,

inclusive um emprego que propiciasse salário inferior ao que recebia na

Petroquímica, o que implicaria readequação do orçamento familiar.

Ao contrário do que ele pensava, os 15 anos que Tião permaneceu na

Petroquímica não serviram de lastro para a conquista de um emprego

seguro, com boa remuneração, nos moldes que imaginava. Era necessário

adaptar-se à nova forma de organização do mercado de trabalho73.

Tião também percebeu que, mesmo para quem se dispunha a fazer

concessões, o mercado de trabalho impunha restrições. O rebaixamento

73 Conforme Nadya Guimarães esclarece, já nos países capitalistas desenvolvidos, as evidências empíricas, sobretudo a partir dos 90, indicavam um aumento do fluxo de entrada concomitante à redução da saída das pessoas da condição de desempregadas, e, além disso, a tendência à fragilização dos vínculos subseqüentes de trabalho, tornando-os candidatos potenciais a novas situações de desemprego. (Guimarães, 2002a).

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

194

salarial em carteira é um expediente que esbarra na proibição legal74. Por

esse mecanismo, não depende apenas do profissional que concorre a uma

vaga aceitar a redução da renda:

“(...) Ninguém quer rebaixar o salário, mas se for preciso, por que

não? Ela se recusa, ela não quer empregado pra pagar menos do que

pagavam em seu emprego anterior. Mesmo que você diga: “– não, sabe o

que é que é, eu tiro outra carteira... Com a carteira limpa, quem vai saber

que eu ganhava mais?” Mas, eu não sei porque eles não aceitam isso. Não

sei se elas acham o seguinte: ele vai ganhar R$ 2.000, de repente, daqui a

três meses vai achar um que pague R$ 5.000, e aí vai embora, porque se

ele ganhava R$ 5.000 ele tinha condição de ganhar R$ 5.000. Eu acho que

é mais ou menos assim que uma empresa pensa. “Eu vou pagar R$ 2.000,

mas ele não vai ficar contente, ele vai ficar insatisfeito e daqui a dois meses

vai procurar um outro emprego”. Então é um jogo. Então eu tava partindo

pra isso. Já tava na semana assim, a primeira coisa que aparecer eu vou

pegar.”

Veremos que, para reingressar no mercado de trabalho, Tião teve de

ser flexível em relação às suas exigências e expectativas iniciais, aceitando

um emprego abaixo do que estimava adequado.

A partir da própria experiência de trabalho, o entrevistado pontua

algumas transformações geradas pela flexibilização das relações de

trabalho, comparando diferentes situações que conheceu de perto. De um

lado, as incertezas do mundo das relações flexíveis – que ele chama de

trabalho – e, de outro, as do trabalho regulado – que, do seu ponto de

vista, é emprego:

74 O princípio da irredutibilidade de salário é garantido pelo artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal e pelo artigo 468 da CLT. Há que se levar em conta que, além de a redução salarial em carteira ser vedada, por lei, há um entendimento geral no mercado de trabalho de que tal rebaixamento gera desmotivação ao trabalhador. Trabalhar recebendo X, quando a remuneração deveria ser 2X é desestimulante. Por isso, se um profissional, experiente numa área de trabalho, aceitar remuneração inferior ao que seria o valor de mercado, ele provavelmente encontra resistência do próprio empregador. Isso não impede de haver casos em que esse expediente seja usado. Apesar disso, sabe-se que há pressões para que ocorra o achatamento salarial devido ao aumento do volume de desemprego .

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

195

Uma vez eu fui procurar trabalho, emprego, aí um rapaz perguntou:

“– você tá procurando emprego ou trabalho?”, aí eu respondi: “eu to

procurando emprego”. Ele falou: “– mas você não tem que procurar

emprego, você tem que procurar trabalho, porque emprego, esse emprego

que você tá acostumado aí vai acabar. Você quer estabilidade, cesta básica,

você quer dentista, isso aí é emprego. Não vai ter mais emprego, daqui a

algum tempo você tem que procurar trabalho”. Então, é isso, eu acho que

quando você é autônomo, que você tá fazendo bico, você tá trabalhando,

você não tem uma garantia de nada, né? E a gente é muito assim, gosta

desse sistema paternalista, que impõe essa situação de ficar muito

dependente. Porque você não ganha tão bem, você quer alguém que

te dê assistência médica, que te dê cesta básica, que te dê vale

transporte pra ir trabalhar, né? e, às vezes, como bico, você não

tem isso. Você praticamente trabalha, você é pago pelo seu

trabalho, só ali e acabou né? Você nem sabe se quando acabar seu

trabalho de um mês, dois, três, você vai tá empregado ou não. Eu acho isso

daí.”

O primeiro aspecto que chama atenção nesse depoimento é a

percepção de que a estabilidade no âmbito do trabalho tende a acabar. As

garantias sociais e direitos, próprios do trabalho regulado, dão lugar às

incertezas do trabalho flexível, visto em atividades de autônomos, ou de

pessoas que vivem de “bicos”. Mas, o que surpreende é que Tião reproduz

o discurso empresarial, ao considerar que essas garantias conformam um

sistema em que pessoas “dependentes” se apóiam em um sistema

“paternalista”. De sua perspectiva, esse sistema só existe porque os salários

são baixos.

Seu discurso transita entre o do trabalhador que, espera ter segurança

e garantias sociais num emprego, e o do empregador, que enseja aumentar

a margem de lucro mediante a redução dos custos com seguridade social75.

75 Conforme Thompson (1987) mostra, no século XIX, havia um forte antagonismo entre a posição de operários e empresários. Entre os primeiros, o anseio pelo controle social sobre as condições de vida do trabalhador se configurava numa posição política clara que,

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

196

Quando eu pedi pra ele caracterizar a situação de quem faz bicos ele

respondeu:

“Você fica inseguro. Gera insegurança, você não sabe como é que vai

estar daqui a um mês, dois, três meses”. E a remuneração? “É, a

remuneração não é a mesma se você tivesse num emprego, não é

compensatória. Por que? Eu acho assim, existem os dois lados. A empresa

que emprega o bico, ela sabe que aquele profissional ali, ele não vai ficar

muito tempo na empresa. Porque a gente não quer isso”.

Mesmo fazendo essas observações, O entrevistado mostra que o que

o trabalhador almeja é outra coisa:

“A gente quer emprego mesmo, estabilidade, empresa que nos dê

toda aquela condição de trabalho. O bico não faz isso. O bico, você vai

fazer um bico, no meu caso, um bico de contabilidade. Você sabe que vai

fazer um bico de contabilidade, você vai fazer só aquilo, porque não tem

mais pra onde ir, porque ninguém vai te dar chance pra isso, porque você

foi contratado pra fazer só aquilo, ninguém vai te dar chance pra fazer mais

nada. Um empregado também pensa assim “eu trabalhando como bico,

bico eu faço em qualquer lugar”. Então, de repente eu to fazendo um bico

numa empresa aqui, não gostei da cara do chefe, aconteceu uma coisa que

eu não gostei, eu vou embora e arrumo um outro. Bico eu arrumo em

qualquer lugar.”

Tião identifica um sistema de reciprocidade na relação trabalhador-

empregado. Considera que a flexibilização das relações contratuais tanto

oferece insegurança para o trabalhador, que não dispõe de garantias

sociais e se insere precariamente ao mundo do trabalho, como para o

empregador, que não pode se acercar de um trabalho de qualidade e se baseada na viabilidade de uma experiência comum, norteava as ações operárias. A classe de empresários defendia interesses próprios e se opunha às mobilizações da classe laboral. Esses posicionamentos se alteraram ao longo dos séculos. No contexto atual de flexibilização da mão-de-obra, escassez de emprego, aumento do desemprego e forte tendência de afirmação das individualidades, o modo de pensar e o discurso dos trabalhadores se modifica. Eles tendem a adotar uma posição mais conciliadora do que antagônica em relação aos empresários, com o objetivo de preservar o número de empregos, a qualidade do emprego, ou mesmo as condições sociais em que se encontram.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

197

expõe mais à rotatividade, uma vez que o trabalhador sem vínculo

empregatício pode interromper sua atividade a qualquer momento.

Apesar de considerar que o “descompromisso” é de ambas as partes,

fica patente que nesse jogo, o trabalhador está em desvantagem. Mesmo

que tenha bom desempenho, que se esforce, o seu trabalho não é tão

valorizado como poderia ser se dispusesse de vínculo empregatício. Além

disso, a escassez de emprego faz com que a qualidade do serviço seja, ela

mesma, a moeda de troca para a manutenção do trabalho. Assim, todos os

trabalhadores esforçam-se para mostrar seu valor profissional, mesmo os

que atuam sob regime flexível. O depoimento dele indica isso:

“O empregador também vê assim, ele fala: “– por que que eu vou

pagar bem o funcionário, se amanhã ou depois ele vai embora? Um

funcionário desse eu encontro em qualquer lugar, qualquer hora”. Um

empregado também pensa assim: “bico eu faço em qualquer lugar”. Então

não há compromisso nem de uma parte nem de outra. A não ser assim,

quando eu fui trabalhar na Monsanto, eu tinha esperança. Eu vi o que? Eu

vi que a empresa era boa, eu vi o funcionário. A Monsanto é uma

multinacional de grande porte, no mundo, ela faz grãos e sementes. É um

dos maiores produtores de soja transgênica. Eu procurei fazer um trabalho

bom, eu deixei currículo lá, conversei com muita gente de lá. O trabalho é

diferente, mas o bico mesmo, trabalhar assim, o descompromisso é muito

grande”.

A seletividade das novas relações de trabalho

Sobre o que identifica como sendo as maiores dificuldades para quem

está sem emprego fala o seguinte: “Pra mim, o mais difícil é a qualificação.

Hoje tão exigindo //, ...um exemplo, hoje eu não tô num emprego melhor

porque não tenho um bom inglês. O meu inglês é fraco. Se eu tivesse um

bom inglês, com certeza, eu estaria em outro lugar. Eu não tive boas

oportunidades por falta do inglês.”

Com essa assertiva, mostra que há seletividade na reinserção dos

desempregados no mercado de trabalho. Ele próprio esbarra na questão da

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

198

formação para conquistar a vaga que deseja. Sua experiência indica que as

chances de emprego são desiguais entre os diferentes grupos sociais76:

“(...) Em uma multinacional eu vou ter que ter contato com pessoas

de outros países, entendeu? O balanço vai ter que ser em outra língua,

principalmente inglês. Hoje, do jeito que tá assim, com esse aporte de

investimento estrangeiro no país, é importante de fato! Já não é mais a

diferença. Ou melhor, hoje já é a diferença. Antes não, era uma opção.

Hoje você tem que ter inglês bem fluente. Hoje a entrevista é em inglês.

Bons empregos em empresas multinacionais, o inglês é essencial mesmo.”

No entanto, se a exigência de inglês parece justificável em sua

profissão, em outras áreas de atuação, parte dos requisitos de qualificação

exigidos dos que concorrem a uma vaga no mercado operam dentro do

princípio de seletividade77. Importa notar que, na fala do entrevistado, o

trabalhador figura, sozinho, como o responsável por essa qualificação, que

é moeda de troca de empregabilidade78; em nenhum momento atribui às

empresas ou corporações a responsabilidade pelo treinamento e

profissionalização de seus empregados:

“Hoje pra ser um gari você já tem que ter um segundo grau, que é

uma qualificação que tem que ser fornecida pela rede pública. É uma coisa

que você tem que buscar sozinho. Fazer uma escola de segundo grau taí, é

só se matricular. Mas, é você tem que ter isso. Agora, fora isso, você tem

que fazer um cursinho, pra conhecer Recursos Humanos um pouco, um

76 Conforme Guimarães, citando Demazière, esclarece: ‘Tudo se passa como se o desemprego contribuísse para redistribuir os empregos’ (Demazière, 1995, p.52), na medida em que a degradação das condições contratuais revela-se uma característica comum a uma parte significativa dos desempregados que se reinseriam” (Guimarães, 2002a: 8). 77 Guimarães mostra que o desemprego afeta os indivíduos de maneira desigual, de acordo com suas características de sexo, idade, categoria socioprofissional e escolaridade. São essas características que determinam, em grande parte, as chances de uma pessoa ser selecionada ou não pelo mercado de trabalho. (Guimarães, 2002a). Nesse sentido, quanto mais recursos a pessoa tiver, principalmente em termos de qualificação e profissionalização, maiores as chances de se manter em um emprego ou de reingressar no mercado de trabalho em condições satisfatórias. 78 Conforme Ledrut, o termo empregabilidade indica as chances de um indivíduo conquistar um emprego ou se manter nele. (Ledrut, 1966)

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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curso de contabilidade, cursos rápidos de três, seis meses. São cursos

rápidos pra atualizar.”

Aqui há uma evidente responsabilização dos indivíduos por seu

destino profissional, por suas competências, tal qual Beck e Beck-

Gernsheim apontam. Um aspecto que já havia aparecido no primeiro

depoimento apresentado na categoria desempregados e que está na

maioria das falas dos entrevistados quando discutimos o tema do

desemprego. O excesso de mão-de-obra à procura de trabalho, a expansão

do desemprego e a ruptura das formas de emprego contribuem para que as

empresas se desincumbam da profissionalização de seus empregados.

O conhecimento sobre recursos humanos, junto com as qualificações

profissionais, aparece como uma competência individual e torna-se

requisito necessário para quem está concorrendo a uma vaga. Ou seja, não

basta “ser competente”, é essencial “parecer competente”, partilhar códigos

para concorrer a uma vaga no mercado.

Trabalho x status, duas faces de uma moeda

A reinserção de Tião no mercado de trabalho não se deu a contento. Ele

reclama, sobretudo, a perda do status. Importa destacar que o tema status

perpassa toda entrevista e é um aspecto fundamental para a compreensão

dessa trajetória de trabalho. O fato de ele abordar reiteradas vezes, e de

maneiras diferentes, a questão do status exigiu que eu me detivesse sobre

ela. Percebi que esse tema apareceu mais claramente quando abordei três

campos da vida de meu respondente: escolhas profissionais, trajetória e

origem social. Mais adiante, veremos como isso reaparece.

Tião passou do ramo petroquímico para o metalúrgico, onde, segundo

ele, o “pião” é o perfil de trabalhador característico. Um perfil com o qual

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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ele não se identifica79. Ou seja, a figura do metalúrgico não serve a ele

como referência coletiva para a construção de sua identidade:

“(...) metalúrgico é pião. A cabeça, o perfil dele é totalmente

diferente! São pessoas muito difíceis de trabalhar. Eles não vêem as coisas

de uma maneira muito profissional, apesar de que lá...//, isso não é

desmérito, eu não tô querendo diminuir ninguém! Tanto é que eu tô lá há

três, dois anos e meio e eu não faço isso com ninguém! Mas é difícil lidar.

São pessoas que, como eu te falei, ninguém tem nível superior, a maioria

trabalha, tá lá na empresa há muito tempo também. São pessoas que

servem pra alguma coisa, fazem alguma coisa. Tem gente que tá lá há 20

anos, 10 anos é porque elas servem pra alguma coisa. Mas, elas não têm

“nível”. É como eu costumo falar com elas, “Vocês só fazem as coisas,

vocês são fazedores de coisas, vocês precisam abrir um pouco mais a

cabeça”. Não podem ser só ‘fazedores de coisas’. Fazer as coisas

qualquer um faz. O que eu faço qualquer um pode fazer. Meu gerente tá

ali, quem falou que eu não posso fazer o que ele faz? Claro que eu posso!”

Aqui existe uma crítica à reprodução do trabalho, à automatização do

comportamento do trabalhador, que se apóia na ausência de criatividade.

Os “fazedores de coisas”, a que ele se refere, são os trabalhadores que

tendem a atuar como se apartados de sua capacidade de reflexão. No fazer

diário, suas ações estão desprovidas do sentido de realização, ou seja, o

trabalho não se apresenta como fonte de satisfação pessoal ou profissional.

A ausência de liames entre seu modo de ser e o de seus colegas na

empresa metalúrgica faz com que busque em sua experiência anterior, fora

da empresa e do setor em que atua, as referências identitárias que

ancoram o reconhecimento de si próprio. Por isso, é na memória do

79Sobre a questão de identidade, Dubar afirma que, no processo de expansão capitalista, formas coletivas diversas e provisórias influenciam a constituição de identidades individuais, o que resulta na proeminência da forma identitária societária sobre a comunitária. Nesse contexto, as identidades formam-se com base em múltiplas pertenças e refletem interesses passageiros e não formas comunitárias duradouras.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

201

trabalho na Petroquímica que encontra sua fonte de identificação, sua

identidade profissional:

“O ramo metalúrgico é complicado. Eu já tinha trabalhado em

metalúrgica e eu não gosto! No início eu fazia, ainda hoje eu faço, diminuiu

um pouco, mas faço comparação com a PQU. É tão bom trabalhar na PQU,

o ambiente é tão bom, as pessoas são tão legais! Claro que nem todos! Por

exemplo, com a chefia da PQU tinha um mal estar. Ele tinha comigo e eu

tinha com ele. E nessa empresa é assim, o relacionamento com as pessoas

é difícil! Metalúrgico é assim, ele entra naquela empresa, ele acha que vai

trabalhar só naquela empresa. Eu acho que você tem que ser profissional

em todas as empresas, tem que ta pronto pra trabalhar em todas as

empresas. Se você ficar muito ligado, ficar num lugar só, as pessoas vão te

dominar, você fica na mão de alguém. Eu sempre procuro passar pra eles,

porque eu trabalho lá e tem uma pessoa que tem 25 anos de empresa, mas

ela não tem cabeça de contador, ela não pensa como contador.”

Tião segue mostrando outros aspectos relacionados à questão do

status. Sua fala expressa bem a ideia de que o trabalho determina a

posição das pessoas na sociedade. Nesse sentido, trabalhar numa empresa

consolidada, competitiva, bem vista no mercado e que oferece boa

remuneração e benefícios sociais contribui para elevação do status social.

Por outro lado, ficar desempregado, depois de ter passado por uma

experiência de sucesso, pelo contrário. “A queda é mais impactante quanto

maior a altura de onde se cai”.

A perda do emprego, além de gerar insegurança e instabilidade para a

própria pessoa e para sua família, também afeta sua imagem diante dos

outros. A desvalorização de sua posição social fica evidente, uma vez que o

desemprego é visto como fracasso. Isso fica claro quando mostra o

comportamento dos vizinhos, ao saberem que ele havia perdido o emprego

e quando ele se põe a interpretar o modo como os “outros” o viam:

“Como eu te falei, eu acho que se surgir uma vaga na Petroquímica

União, eu acho que qualquer pessoa corre lá e vai querer trabalhar nela. É

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

202

uma empresa muito bem vista na região, todo mundo sabe dos benefícios,

de tudo que ela oferece né! Então, eu era uma pessoa que trabalhava lá e

não sei se existia inveja, não vou falar isso. Eu acho que as pessoas têm

uma visão diferente de você. Aí quando eu saí, que comecei a ficar mais

tempo aqui, eu sei que os vizinhos comentam “– o cara foi mandado

embora, o que é que o cara tá fazendo aí, ele tava trabalhando”. Aí eu tive

que vender o carro também, e eles vinham comentar “– tá com um carro

mais velho também”.”

Sentidos da vida sem emprego

Quando perguntado sobre o impacto do desemprego em sua vida,

Tião expressa bem sua opinião: a experiência do desemprego traz

conseqüências dramáticas para a vida das pessoas. Resulta na perda da

auto-estima e gera sentimento de inferioridade:

“A conseqüência é a baixa da auto-estima que você vê que não é

dono de seu destino. Igual a eu te falei, eu tava na Petroquímica União, eu

achava que tinha alguma coisa. Você, quando tem, você nunca pensa que

vai perder. Você pensa que pode conseguir mais, você nunca pensa que vai

perder alguma coisa. Eu pensava “se eu tiver que sair daqui eu vou

conseguir coisa melhor”. E no final eu tava sem PQU, e sem nada. Eu não

tinha conseguido nada. Então, sua auto-estima vai lá pra baixo! Você se

sente muito lá embaixo, você se senta no meio de pessoas que não têm o

mesmo nível que você, mas você é igual a elas. Você tá procurando

emprego do mesmo jeito, correndo de manhã, às vezes saindo de manhã

sem tomar café, correndo atrás disso, atrás daquilo, você é igualzinho a

elas. Igualzinho a qualquer pessoa que vai procurar emprego de ajudante,

de auxiliar, que não tenha qualificação, que não tenha escolaridade. Você

tá do mesmo jeito. Você não diz o que você quer, você não escolhe, vão te

dar o caminho pra você.”

Meu entrevistado demonstrou certo sentimento de frustração ao

relembrar a situação de insegurança provocada pelo desemprego. Nela, as

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

203

pessoas não têm domínio sobre seu destino “você vê que não é dono do

próprio destino”. Talvez porque seu empenho em se preparar para as

exigências do mercado de trabalho – estudar, se qualificar – não lhe tenha

dado a contrapartida esperada: manutenção do emprego e satisfação com

a situação profissional e as condições de vida.

Outro aspecto importante de sua fala é a percepção de que o

desemprego, embora seletivo, operando mediante princípios de

diferenciação, coloca os profissionais na mesma condição – a maratona de

procurar emprego.

“Você se sente muito lá embaixo, você se senta no meio de pessoas

que não têm o mesmo nível que você, mas você é igual a elas. Você tá

procurando emprego do mesmo jeito, correndo de manhã, às vezes saindo

de manhã sem tomar café, correndo atrás disso, atrás daquilo, você é

igualzinho a elas”.

Mais ainda, na medida em que o desemprego se expande e abarca

diferentes categorias de trabalho, as opções e possibilidades de escolha,

por parte dos que procuram um emprego, ficam mais restritas. Por isso ele

entende que os desempregados estão sujeitos às determinações do

mercado, não são donos de seu destino. “Você não escolhe, vão te dar o

caminho a você”. De sua perspectiva, o mundo dos desempregados é o das

vulnerabilidades num sentido amplo: a emocional, a que se relaciona à

saúde e a que diz respeito às relações sociais. Por isso, ele diz: “Eu achei

que a auto-estima vai lá embaixo, a saúde fica vulnerável, sua resistência

muda, a saúde muda, o relacionamento muda também, em casa ou com os

amigos também muda”.

O entrevistado mostra que, entre os diversos âmbitos da vida, o das

relações familiares é fortemente afetado pelo desemprego. A queda da

renda e de status social do “provedor” resulta em cobranças e pressões no

sentido de se restabelecer o equilíbrio, de encontrar uma solução para que

a vida seja retomada e de entender o que gerou a situação de fragilidade

econômica e social. Tião mostrou que o desemprego afeta a todos da

família:

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

204

“(...) Antes, a preocupação de trabalho é só sua. Você chega, aquilo

que acontece no trabalho é só seu, você administra o dinheiro das coisas

que tem pra pagar. Mas depois não, não é só isso mais. Não é só

simplesmente trazer o dinheiro pra casa, você não tem mais de onde trazer

o dinheiro. Aí vira uma preocupação de todo mundo! No meu caso, “será

que minha filha vai continuar estudando, “será que eu vou conseguir pagar

escola pra ela”, “vou ter que tirar do banco?”.

As ponderações sobre a família evidenciaram a abrangência dos

problemas provocados por sua posição de desempregado, uma vez que ele

não responde somente por si. A tomada de decisões no que se refere às

estratégias para retornar ao mercado de trabalho é feita com base não só

no bem-estar individual, mas no de toda a família. Além disso, a posição de

provedor torna-o mais vulnerável às cobranças e faz mais urgente ainda a

necessidade de encontrar emprego. Sobre isso ele falou:

“A família cobra porque, afinal de contas, ela não sabe o que está

acontecendo. Ela não sabe o que se passa no serviço. Se você trouxer

todos os problemas do serviço pra casa, você não vive em casa. Então, às

vezes, você toma certas decisões que a família não entende. “não dava pra

você ser mais tolerante, pensar assim, pensar assado?”. É como hoje, eu tô

numa empresa onde eu não me sinto bem. Mas eu tô há dois anos e meio

não me sentindo bem. Vamos ver até onde vai, uma hora eu vou ter que

tomar uma decisão, né! ‘Tá ruim, mas tá bom!’ (risos...).”

Aqui também apareceu a necessidade de distinção entre os diversos

âmbitos da vida. A vida no trabalho “idealmente” não deve se misturar com

o âmbito familiar. Em cada uma dessas esferas as relações sociais operam

por mecanismos identitários distintos: no trabalho, o funcionário

petroquímico, em casa, o provedor. E é exatamente em defesa de seu

papel de pai de família e provedor que Tião permanece em um trabalho

que não lhe propicia satisfação pessoal e profissional, numa posição de

status abaixo do que julga apropriado.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

205

Chances de emprego, realização no trabalho e status

Quando lhe perguntei a respeito de sua realização do ponto de vista

profissional, vieram à tona outros aspectos de sua trajetória de trabalho

que ainda não tinham sido abordados. Ele falou que, antes de iniciar sua

carreira, gostava do ramo de patologia, de biologia e química:“Eu gostava

do ramo de patologia. Eu queria ser médico, médico assim não né! Podia

até ser, mas eu queria biologia, química. Eu gostava de células, de falar do

sangue, dos órgãos, essas coisas.”

Justamente por eu ter estranhado sua afirmação, perguntei sobre

suas metas. Ele respondeu: “mudaram totalmente!”. Depois ele explicou de

que modo foi trabalhar no ramo de contabilidade. De fato, não era um

projeto seu ingressar na área de contabilidade. Foi resultado das

circunstâncias.

“Ah, as circunstâncias levam a isso. Você sabe, você tá numa situação,

que você tem que se agarrar à primeira chance que aparece. Uma porta se

abriu ali, você vai, tem que encarar! Quando eu voltei a trabalhar nessa

empresa aí, que eu me iniciei lá. Eu considero que foi na Limasa que eu

comecei minha carreira. Porque antes, com 17, 18 anos eu não sabia o que

queria, na verdade. Quer dizer, eu até sabia, mas era difícil. O ramo de

patologia, mas não deu certo! Aí eu pensei assim “vou começar a trabalhar

aqui, mas vou voltar pra fazer o meu curso lá. Começar a patologia de

novo!” Mas, aí não deu certo. Começaram a falar: “– você tá aqui na

contabilidade, faz contabilidade”. As pessoas começam a falar pra você. Aí

eu gostei né, se eu não tivesse gostado, aí tudo bem! Mas acontece que eu

gostei, me adaptei, aprendi fácil! Porque contabilidade todo mundo fala que

é difícil né!”

A rápida adaptação à área de contabilidade desestimulou-o a voltar

para o ramo que realmente queria, fez com que se distanciasse de seu

sonho profissional – atuar como especialista em patologia. “É, mesmo meus

amigos da época, falavam: “– pô, você parece que nasceu contador”. Mas,

hoje eu sei que não gosto tanto assim como devia gostar. Hoje eu sei que

eu não gosto como eu gostava de patologia, por exemplo.”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

206

Hoje, parece sentir uma certa frustração por ter escolhido sua

segunda opção. Mas não só porque teria mais satisfação realizando outro

tipo de atividade. De sua perspectiva, o meio de convivência seria outro, ele

conviveria com pessoas de “nível”:

“Eu acho que eu tô no lugar errado. Faço coisas que, às vezes, eu não

gosto. Ter que passar por essa situação, que nem hoje, que eu tô nessa

empresa. Eu acho que se eu tivesse feito o ramo de biomédicas talvez eu

tivesse trabalhando em um ramo diferente, pessoas diferentes. De repente,

eu tô nessa área aqui, eu vou ter que tá sempre nesse meio. Eu acho um

meio hostil, eu não concordo com esse modo, e isso me deixa bem

chateado.”

Como eu havia dito antes, o tema do status é recorrente. A frustração

de Tião por não ter seguido na área de patologia, naquela época, e por

trabalhar no setor de metalurgia, hoje em dia, contrasta com a satisfação

que experimentou quando ingressou no setor petroquímico, ramo bem visto

pelas pessoas. Ele supõe que seria melhor se tivesse seguido o ramo de

patologia “Melhor pra mim mesmo. Eu estaria fazendo o que eu gosto,

vendo um outro tipo de pessoa, estaria num outro ambiente.” Ou então se

tivesse permanecido no ramo petroquímico, uma vez que foi lá que ele

viveu seu melhor momento profissional: “Foi quando eu entrei na PQU, em

88”. (...) “Primeiro, aquilo que eu te falei né, meu salário praticamente

dobrou; segundo, você participava de um concurso pra entrar numa

empresa pública. Então, isso dá satisfação, você saber que tinha

participado de um concurso, ter passado, entrado na Petroquímica União.

Tanto é que quando eu entrei na Petroquímica as pessoas me olhavam de

forma diferente.”

No entanto, ainda não estava claro o porquê de ele se sentir tão

insatisfeito, por atuar no ramo de metalurgia. Quando falou da trajetória de

sua família, as peças se encaixaram. “É assim, eu vou contar a verdade pra

você: minha mãe é solteira né, então eu fui criado por meus avós. Então,

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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quando eu chamo de irmãos, são meus tios que são meus irmãos. Mas, na

verdade eles são meus tios.”

Essa fala aparece depois que ele revela porque resolveu atuar na área

de contabilidade. Foi justamente a história profissional de seu “tio-irmão”

que influenciou sua escolha. Ele queria ter distinção, destacar-se. Assim,

adotou como referência o seu “Outro” importante, conforme nos falam

Gerth e Mills, para fazer sua escolha profissional.

“Quando eu resolvi partir mesmo pra contabilidade, eu lembrei de um

tio meu que sempre trabalhou nessa área. Eu gostava de ver ele falar sobre

como se trabalhava num escritório. Porque minha família é mais ou menos

grande né! Então, a maioria das pessoas eram metalúrgicos. Torneiro

mecânico, ajustador, essas áreas. E tinha um que foi pra essa área. E a

trinta anos atrás, falar que era contador, que trabalhava em escritório dava

status. Então ele fez curso superior, então ele era diferente. Eu achava isso

legal nele. Quando surgiu a oportunidade de ir pra contabilidade eu falei

“pôxa que legal, tô no mesmo ramo que esse meu tio!” Mas, como todo

mundo sempre trabalhou em casa...”

Apesar de não lhe trazer a satisfação profissional esperada, estar na

área de contabilidade significava estar em um nível melhor do que se

estivesse no ramo de metalurgia, onde grande parte de seus tios atuaram.

O mais curioso é que, para sair da situação de desemprego, ele aceitou

atuar em metalurgia, embora permanecesse na função de contador.

O trabalho dignifica o homem?

Depois de conversarmos sobre diversos temas relacionados à

trajetória de trabalho, escolha profissional, conseqüência do desemprego,

enveredamos pelo tema ‘significado do trabalho’. Tião tenta esboçar uma

ideia do que seria o valor moral do trabalho. Fez comparações, tentando

conciliar as ideias aprendidas na escola sobre o significado e importância

moral do trabalho, com o mundo do trabalho na cidade grande. “O trabalho

dignifica o homem?”.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

208

“Trabalho? Ah, uma coisa que eu achava, sempre falavam esse negócio: “o trabalho dignifica o homem” né! Eu não sei, porque tem muita gente que trabalha e não é digno não! Acho que não é bem por aí. Todo mundo trabalha. Político trabalha, ou diz que trabalha, e rouba, faz um monte de coisa; o empresário trabalha, vai saber como é que ele conseguiu ser empresário, como a empresa dele subsiste, às vezes não é de uma forma legal. Então só o fato de trabalhar não quer dizer muito. Hoje você trabalha porque você precisa trabalhar mesmo! Se não você morre de fome! O trabalho tá ligado à subsistência, sobrevivência. Por exemplo, lá em Pernambuco é pobre, não tem tanta indústria como aqui. Mas as pessoas se ajudam porque as pessoas têm terra, elas têm condições de plantar alguma coisa, então as pessoas não morrem de fome, porque plantam alguma coisa no quintal delas. Elas criam galinha, porco, então de fome elas não morrem. Aqui é diferente, se eu não tiver o que comer, quem vai me dar o que comer? Eu não tenho onde plantar, eu não tenho uma galinha pra matar. A gente não tem isso aqui.

O trabalho lá sim, é digno. Porque você não sai da sua casa pra ir trabalhar, você planta, tem galinha em casa. Que nem eu te falei, você sai dali vai pra uma empresa, pra um banco trabalhar, é um trabalho diferente. Aqui não, isso já tá na nossa vida. O trabalho aqui é pra você sobreviver, é como a comida, é como o ar. Você tem que trabalhar! Se não não sobrevive. Então, eu vejo o trabalho dessa forma”

É interessante notar que os exemplos utilizados para ilustrar a

realidade de trabalho na cidade grande, são moralmente duvidosos: O

político, que rouba; o empresário, que constrói um patrimônio lançando

mão de artimanhas, nem sempre aceitas no âmbito legal. Já o trabalho que

se desenvolve nas regiões mais simples, voltado para a sobrevivência, esse

sim é digno, sobretudo porque tem concretude e por se basear em laços de

confiança, lealdade e solidariedade.

Em seu imaginário, o tipo de trabalho que figura como digno é esse:

um trabalho, cujo resultado seja visível. O produto do trabalho realizado

pelo pequeno proprietário de terra está no plantio que cresce, nos animais

que se desenvolvem: é visível e o trabalhador é o proprietário da “coisa que

ele produz”. Muito diferente dos grandes centros industriais onde o

trabalhador não tem relação com a coisa produzida. Ele trabalha somente

para garantir sua subsistência.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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Apesar de sua crítica ao mundo do trabalho, é trabalhando que uma

pessoa obtém existência social. O desemprego, pelo contrário, é o mundo

dos invisíveis, dos que não têm existência social. É assim que ele diz: “O

desemprego, pra mim é, sei lá, é você tá fora da vida. Sabe, parece que

você não é ninguém mais. Você ta desempregado, você não é ninguém, né

verdade? Isso é bem complicado. Eu posso ter uma casa e, se tiver

desempregado, é como se ela não fosse minha.”

Peço que explicite suas ideias; para ele, o desemprego é uma situação

que embota a vida, impede as pessoas de terem acesso às coisas, impede

de terem suas necessidades básicas satisfeitas. Faltando trabalho, falta

tudo!

“Porque eu acho que eu vou tá aqui dentro, desempregado, e

precisando das coisas. Precisando de remédio, precisando comer,

precisando vestir, precisando ir ao médico. Não sei parece que falta tudo e

a casa não vai me completar. É como estar desempregado e ter um

guarda-roupa cheio de roupa bonita. Que que adianta? É como sair pelado.

Isso é ruim, eu penso assim, eu me sentia, me sinto assim.”

Diante das dificuldades e embaraços provocados pelo desemprego,

perguntei-lhe quais os mecanismos para evitar o desemprego e ele

respondeu: “É se qualificar sempre, tá sempre estudando. Esse é o

principal, se manter atualizado. Arrumar um jeito de não chegar nos

40.”

Tião indica que, a idade pode se tornar um embuste a quem busca

chances de reingressar no mercado80. “Não sei, arrumar um jeito de parar

80 Guimarães apontava, já em 1998, os principais critérios de seletividade utilizados no complexo químico-petroquímico que tendiam a “moldar a mão-de-obra dos anos subseqüentes”. Entre o final da década de 80 e começo dos 90, características adscritivas - como sexo e idade sobrepunham-se a outras, de natureza aquisitiva - como a escolaridade, muitas vezes com a clara prevalência das primeiras. Ou seja, atributos (como sexo e/ou idade), que são características sobre as quais a vontade e o desempenho individual não interferem, eram usados como critérios de escolha do perfil profissional naquele setor, em detrimento de características adquiridas, como a escolaridade ou a experiência de trabalho, ligadas ao esforço e ao desempenho dos indivíduos. (Guimarães, 1998: 48).

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

210

no tempo, porque se você chegou nos 35, 36 anos, ficou desempregado é

complicado. Eu fiquei desempregado, tô com 45. Eu fiquei desempregado

com 42 anos. É difícil!”

Considerações gerais sobre os despedidos da

Petroquímica

Como havia dito, antes de realizar as entrevistas, sem perceber tinha

formado, previamente, um perfil dos despedidos pela empresa. Supunha

que encontraria pessoas vitimizadas pelo fato de terem sido desligadas. Ao

longo do processo de prospecção de informações com essa categoria, as

pré-concepções foram, aos poucos, se desfazendo. Em alguns casos, a

forma como cada qual saiu da empresa se diferenciou. Há os que foram

dispensados, de fato; os que saíram mediante acordo com a empresa e

uma pessoa que saiu via PDV – Plano de Demissão de Voluntários.

As entrevistas revelaram semelhanças e distinções entre as biografias

aqui expostas. Dois dos respondentes atuavam na área administrativa e os

demais na produção. Parte deles planejava uma carreira fora da empresa e

a outra preferia permanecer nela. Após a saída, eles tiveram destinos

profissionais bastante diversos. Alguns buscaram montar o próprio negócio,

na área industrial ou comercial; um tornou-se vendedor; outro foi para o

ramo de metalurgia, permanecendo na área de cotabilidade, onde já atuava

na Petroquímica; e apenas um deles estava, de fato, desempregado quando

fiz a entrevista.

Essas pessoas têm faixa etária entre 40 a 50 anos, ficaram entre 7 e

20 anos na empresa e todas elas testemunharam o processo de

privatização – período fundamental, para efeito de análise, dado ser uma

das fases de maior instabilidade e transição na empresa.

Apesar de terem seguido carreiras diferentes, percebi semelhanças

entre os pontos de vista por ele esboçados, sobre diversos aspectos

relativos às mudanças das relações de trabalho. O fato de terem mais de 40

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

211

anos de vida e longa experiência de trabalho permitiu uma discussão mais

madura, ancorada em comparações entre as diferentes fases de mudança

do mercado de trabalho. Experiência e maturidade são as carcaterísticas

que chancelam as falas aqui analisadas. Eles discutem, com propriedade, os

temas propostos, tanto especificamente sobre o setor petroquímico, quanto

sobre o mercado de trabalho em geral. A conformação de opiniões se dá na

discussão a respeito de diferentes temas. Entre eles os mais freqüentes

são: figurações do desemprego em seu imaginário, novas exigências no

mercado de trabalho, conseqüências da privatização, papel do sindicato,

efeitos da perda do status, entre outros.

O desemprego como anulação do ser

Entre os entrevistados, foi consensual a opinião a respeito do

desemprego. Frequentemente eles argumentam que o desemprego resulta

na anulação do ser, uma vez que consideram que o trabalho é o que permite

a relação com outros campos sociais, e que dá às pessoas lugar social. A fala

de Tião evidenciou isso:

“O desemprego, pra mim é, sei lá, é você tá fora da vida. Sabe, parece

que você não é ninguém mais. Você tá desempregado, você não é ninguém.

Né verdade? Isso é bem complicado. Eu posso ter uma casa e tiver

desempregado é como se ela não fosse minha.”

Seu raciocínio se completa: o desemprego é o lugar do “reino das

necessidades”, enquanto o trabalho é o que viabiliza a satisfação, a

realização dos desejos do homem. Ele tentou explicar melhor sua afirmação.

“Porque eu acho que eu vou tá aqui dentro, desempregado, e precisando das

coisas. Precisando de remédio, precisando comer, precisando vestir,

precisando ir ao médico. Não sei parece que falta tudo e a casa não vai me

completar. É como estar desempregado e ter um guarda-roupa cheio de

roupa bonita. Que que adianta? É como sair pelado. Isso é ruim, eu penso

Assim, eu me sentia, me sinto assim”. Interessante perceber que a gravidade

do desemprego é sempre justificada pela importância do emprego na vidas

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

212

das pessoas, como numa relação entre côncavo e cônvexo, o que demonstra

a correlação entre ambos. Segundo ele, seu ponto de vista coincide com o

das pessoas com quem conviveu:

(...) “as pessoas com as quais eu convivi sempre, elas vêem o trabalho,

eu acho que quase da mesma forma que eu vejo. Precisa trabalhar, é

fundamental ter um trabalho, é o trabalho que vai alavancar todas as fontes

de meus desejos, você vai ter seus desejos realizados através do trabalho.”

No excerto acima, o que chancela e ancora a existência de uma pessoa

é o trabalho. A ausência de trabalho, pelo contrário indica a falta de prumo,

de balizas sociais. Essa ideia se alinha à tese de Cabanes de que o trabalho é

um elemento essencial na estruturação das pessoas, é o que define a

posição social delas, ou seja, determina seu status.

O relato de Pepeu a esse respeito também foi revelador de quão

importante é o trabalho na determinação do lugar social de uma pessoa. O

desemprego, pelo contrário, produz a perda do significado da vida. Tanto

que ele tornou-se recluso, por dois anos, em casa, restringindo suas relações

apenas ao seio familiar, devido à falta de chances de emprego. Havia

perdido a auto-confiança, o sentido de viver. “ (...) Então, o fato de eu tá

desempregado....// eu nem tinha confiança em mim pra procurar alguma

coisa. Como é que eu posso oferecer algo a alguém se eu achava que eu não

tinha nada pra oferecer? (fala isso, com uma certa placidez, mas sua voz

declina).”

Ele tenta dimensionar a gravidade do problema do desemprego, com

base na própria experiência. O alongamento do tempo em que permaneceu

desempregado gerou desestímulo. A falta de esperanças de encontrar

oportunidades de trabalho provocou certa compleição melancólica, e isso fez

com que se enredasse na condição dos desempregados por desalento. “Eu

ficava largado por aí, não conseguia encontrar o rumo de onde

conseguir emprego, de onde pedir emprego.”

Outro aspecto importante a esse respeito, que se destacou nas

entrevistas é que o desemprego – apesar de, em alguns casos converter-se

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

213

em oportunidade – via de regra, gera insegurança, incerteza em relação ao

futuro, falta de perspectivas. Sobre isso, Guga, um dos entrevistados do

grupo dos desligados pela PQU, falou:

“Eu te falei. Eu te dei duas vertentes. O desemprego, o lado ruim, e o

desemprego lado bom. Tem aquele camarada, que você fala assim: “–

aquele cara pediu a conta, foi mandado embora”. Mas pra ele até foi bom,

ele tem uma especialidade, o que não falta é serviço. Você pega um

eletricista, por exemplo, o cara não fica dois meses desempregado! Vive

mudando de emprego. Agora, na essência da palavra “desemprego”, ou seja,

o cara necessitado, eu nunca me senti assim, de fato. Eu tenho ameaça, mas

só pela ameaças, eu vou falar pra você: é um negócio terrível, a incerteza

que gera. Desempregado eu acho que o duro é a incerteza do amanhã.”

Guga saiu da Petroquímica através do Plano de Demissão Voluntária –

PDV, e, com o dinheiro da indenização montou o próprio negócio. Primeiro

atuou no Setor de Comércio, transitando posteriormente para o Industrial.

No momento em que a entrevista foi realizada, já tinham decorridos 9 anos

de desligado. De lá pra cá, viu seu padrão de vida decair paulatinamente. Ao

contrário do que se pode pensar, na condição de empresário, os recursos

ficaram progressivamente mais escassos, uma vez que seu negócio revelou-

se pouco rentável. Alguns benefícios de que dispunha quando empregado,

como plano de assistência médica e odontológica, tornaram-se despesas. Os

rendimentos inferiores aos ganhos mensais auferidos na PQU o obrigaram a

cortar gastos e reprogramar elementos do orçamento como os estudos de

um dos filhos. Atualmente vive angustiado devido às incertezas do futuro.

Sem contar com garantias sociais, sente-se em condição semelhante à de

uma pessoa que vive na informalidade.

Ao resumir sua condição sócio-econômica, deu indicações de ter

experimentado algo que Beck denomina como sendo situações híbridas entre

desemprego e emprego. No caso deste respondente seria entre a condição

de desempregado e a de empresário, mas nem por isso, deixou de vivenciar

a precarização das condições de vida. Conforme pode ser visto no relato que

segue:

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

214

“(...) acho que é complicado quando você passa momentos de escassez

de recursos. Você pergunta: “e agora, pra onde eu vou?” Desde Fernando

Henrique nós fomos cortando [os gastos]. Por exemplo, Plano de Saúde, a

gente cortou. A gente tinha Plano de Saúde Sul América, eu cheguei a pagar

R$ 700,00 (setescentos reais). Hoje a gente tem um que paga R$ 200,00

(duzentos reais). E só eu e minha esposa. Eu não posso pagar pra nenhum

de meus filhos, se pagar falta. Aí tem educação, você paga educação, eu to

andando com um carro já velhinho, porque eu não pegaria uma reserva pra

comprar carro. Pra mim o importante é ter liquidez. A gente não liga muito

pra status. As pessoas não se conformam em perder, e perder, nesse tipo de

situação faz parte. Uma coisa que eu falo pra você, eu tenho uma irmã que é

psicóloga e ela falou um negócio que eu concordei na hora, e penso assim

também: “– eu imagino o que você ta passando porque eu nunca tive o que

você teve”. Porque a minha irmã, embora psicóloga, sempre trabalhando em

empregos melhores, ela nunca conseguiu ter um salário de padrão bom,

como eu tive. Aí ela falou assim: “– perder é pior do que nunca ter

tido”. E é verdade, porque depois que você se acostuma com um padrão

alto, o medo de todo mundo é perder. Porque o pobre não tem muita coisa

além do máximo que ele conseguiu. Ou seja, ele não tem nada a perder. Aí é

que tá a diferença, porque eu não perdi isso numa queda só, aliás, perder

não é privilégio meu. A gente vem perdendo algumas conquistas que você

leva anos pra ter. E você vem perdendo devagarinho.”

A percepção de que o desemprego afeta a vida das pessoas de maneira

desigual, que situações prolongadas de desemprego interferem nas relações

sociais e podem provocar desestruturação da identidade da pessoa também

é partilhada por outros entevistados da categoria dos desligados e dos

efetivos da empresa. Segundo Guga, os profissionais de baixa qualificação

estão em desvantagem e podem permanecer mais tempo desempregados:

“Olha, as conseqüências são as piores possíveis. Se uma pessoa tá

preparada o desemprego é passageiro, é uma questão de tempo. Agora, pra

uma pessoa despreparada, quando eu falo despreparada é desqualificada,

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

215

não é questão de tempo não, é questão de realidade mesmo. O duro é

quando você não tem como enfrentar isso. Se você já não tem a

qualificação, não tá preparado, então fica difícil.”

O emprego e as situações estáveis de trabalho, pelo contrário,

contribuem para a estruturação das pessoas. Segundo Beto, do grupo dos

efetivos:“O trabalho ajuda a nortear, tirar da ociosidade, ocupar a mente da

pessoa.”

Outro assunto sobressalente nas entrevistas são as novas formas de

seleção para uma vaga de emprego. Quem foi dispensado, depois de ter

ficado por determinado período empregado, é obrigado a encarar de frente

as novas demandas do mercado. Normalmente, eles demonstraram um

estranhamento acerca da duração do período de procura, uma vez que, em

seu tempo, era comum o trabalho “cair do céu”, existia abundância de

oferta. Mas além disso, no momemto atual, as formas de procurar, seguem a

lógica da virtualidade.

Não se vê o rosto de quem procura um empregado, nem as antigas

placas de informações sobre vagas, nem mesmo os jornais anunciam a

existência do emprego. Do ponto de vista simbólico, a presença marcante

do desemprego, a diversificação de sua manifestação: desemprego de

longa duração, recorrência do desemprego e as formas precárias de

trabalho, como o subemprego denunciam um fato que é a escassez e, por

isso mesmo, indica a invisibilidade do trabalho. Isso torna-se patente na

procura por uma nova chance. Alguns relatos dão conta da falta de trabalho

exatamente pelo fato de que o método de procurar emprego mudou, está

cada vez menos paupável, tornou-se virtual. Não se vê o rosto de quem

escolhe e pouco se conhece da empresa contratante, até que se tenha a

sorte ou o revés de ser escolhido. Conforme destacou Tião:

“Sim, mas quando eu saí da Petroquímica eu achei que ia arrumar

emprego fácil, logo! Eu achei que como eu tinha 15 anos de empresa, eu

achei que ia ser mais fácil. Então, realmente de início eu não me preocupei

muito não. Tanto é que eu arrumei esse emprego de autônomo, aí eu me

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

216

programei pra pensar nisso mais pra frente. Mas, aí, quando eu comecei a

colocar currículo, a sair em busca de emprego....// Quer dizer, hoje você

não tem mais onde é que tá, você não sabe onde que tá o emprego!

Eu não sei onde é que tá o emprego, eu não sei em que porta eu

posso bater.” Ele percebe a escassez de emprego porque não sabe o lugar

onde estão as novas oportunidades. Sente falta da marcação espacial, de

procurar com as próprias pernas, tem a sensação de que está desterrado.

Como pode ser visto no relato abaixo:

“ É, eu não vou num lugar e pergunto: “olha, tão precisando de gente

aí?” Não existe mais isso. Aí eu comecei a me preocupar. Eu comecei a me

preocupar, porque eu comecei a jogar currículo na internet, deixar currículo

em um monte de agência, que também não te atende, que também não

fazem nada. Eles dizem: “– deixe o papel aí e vá embora.” Aí eu comecei a

ver que a coisa ia ficar complicada, mas não cheguei a me preocupar.” Seu

estranhamento decorria do fato de perceber que em 15 anos tudo mudou: o

volume de oferta de trabalho, o método de procurar, e também a presença

do desemprego ficou mais evidente.

“É, eu comecei a perceber que tava muito diferente de 15 anos atrás,

quando eu comecei era mais ou menos assim: A gente tava empregado,

passava numa firma e tinha a paca “precisa-se não sei do que”. Você ia lá,

conversava, de repente, eu tava saindo de uma empresa pra ir pra outra. Eu

sempre saí de uma empresa pra ir pra outra. Eu nunca fiquei desempregado!

Eu tive a profissão de técnico, quando eu me firmei mesmo eu nunca fiquei

desempregado. Eu sempre saí de um emprego pra ir pra outro. Aí dessa vez

eu também pensei que ia ser assim. Então eu não comecei a procurar antes.

Então eu achava que ia ser fácil. Eu acho que, igual eu falei pra você, mais

ou menos um mês e meio eu joguei os currículos, eu comecei a sair de

manhã, aí eu vi que a coisa ia ficar complicada. Eu percebi que não

adiantava bater de porta em porta que eu não ia conseguir emprego mesmo,

já não era esse o método.”

Essa reclamação se fez presente também na fala dos efetivos. Como

mostrei na análise dessa categoria, Beto é um dos que dão conta das

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

217

mudanças, da pouca oferta de vagas e do desparecimento do lugar do

emprego. Falta fixidez no processo de procura.

“Antes, no meu caso, você precisava de um emprego. Você precisava,

abria o jornal, você escolhia onde ia trabalhar. Tinha teste vocacional e você

via várias profissões que você nem sabia que existiam. “Pizzaiolo, o que é

isso?, ah, é de fazer pizza?”, então você decidia por isso. Hoje você não

procura emprego, você manda currículo e aí, eles escolhem ou não. Hoje a

CUT – Central Única dos Trabalhadores dá uns cursos e eles encaminham. O

Estadão, antes, tinha 4, 5 páginas só de emprego. Hoje não existe mais isso

não. Hoje você tem que saber se existe o cargo, se informar, saber que a

empresa tá procurando e mandar currículo [quase adivinhar]. Antes, você

tava andando na rua, tinha uma placa na firma, e você entrava, fazia uma

ficha e, lá mesmo, você ficava.”

Entre os terceirizados também apareceu essa reclamação. Chico

mostrou, que a experiência de seus filhos em relação a trabalho difere

claramente da sua. Ele entrou no ramo petroquímico com baixa escolaridade

e sem ter experiência ou preparação, enquanto que os filhos, mesmo com

curso universitário em andamento têm que concorrer com milhares de

pessoas e se deslocar longas distâncias por uma oportunidade de estágio.

Quando pedi para explicarem em que consistem as modificações do

mercado e o que as provoca, os respondentes frequentemente citaram o

aumento do desemprego como um aspecto que chama sua atenção e

associam esse fenômeno a outras alterações. Nas explicações dadas por

eles, entre as causas do desemprego, a modernização e a automação do

sistema de produção foram citadas reiteradas vezes. Como é sabido, a

tecnologia desemprega, o volume do desemprego faz variar a qualidade do

emprego e produz um crescimento das exigências no campo profissional.

Isso teve destaque nos relatos dos desligados, dos terceirizados e dos

efetivos. Como se pode ver a seguir:

Vlad observou que as exigências hoje são maiores no mercado de

trabalho. A escassez de oferta contrasta com o excesso de mão-de-obra

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

218

disponível e, muitas vezes, percebe-se que os critérios de escolha de

profissionais não são compatíveis com o exercício da função. O avanço da

tecnologia também contribuiu para a nova configuração do mercado. Isso

pode ser visto na seqüência de falas abaixo:

O mercado mudou bastante. Hoje o mercado é muito mais seletivo.

Hoje, uma pessoa no caixa do Carrefour com formação de terceiro grau.

Então, hoje se tem muita mão-de-obra e pouco emprego. Antigamente era

diferente, a demanda era ao contrário, você tinha muito emprego.”

O aumento da competitividade é apontado como um dos efeitos

decorrentes do avanço da tecnologia e do aumento do volume e diversidade

do desemprego. Por isso, na corrida por um emprego, as pessoas se

esforçam para se adequar às exigências do mercado, buscando melhor

qualificação profissional e escolar, embora, em muitos casos não se tenha

condições para isso. O relato de Vlad indica isso: “A conseqüência é o

seguinte, a pessoa tem que tá se atualizando pra não ficar atrás no tempo,

porque daquela época pra cá, o que o avanço tecnológico pôs de gente na

rua é muito.”

A percepção de que há excesso de exigências nos critérios de seleção

de candidatos ao ingresso no mercado de trabalho, por efeito do avanço do

uso de tecnologia, leva a crer na subversão da premissa de que o trabalho é

social, ou seja, de que é produto das relações sociais. Trocando em miúdos,

a lógica da racionalidade capitalista – da precedência do lucro sobre o bem-

estar social –, levada às últimas conseqüências, não só produz desemprego,

como tende a anular a participação do homem nas relações de trabalho. O

entrevistado chegou a afirmar que o trabalho é feito para a máquina e não

para os homens. A explanação de Vlad é reveladora:

“Sempre tem alguém que vai ficar na rua, porque tem-se a concepção

de que trabalho é pra máquina né! Máquina não cansa, não faz hora-

extra, não se acidenta, e o ser humano tem todos esses problemas.

Então cada vez mais vai entrar máquina. Só que se a pessoa tiver se

atualizando, com a visão lá na frente – do que possa tá acontecendo –, ela

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

219

já começa se preparar pra que sobre pelo menos alguma coisa pra ela; pra

que ela consiga ficar posicionada.”

A crítica às conseqüências da racionalidade capitalista sobre as relações

de trabalho também apareceu no relato dos desligados da Petroquímica.

Guga, que entrou na empresa na década de 70, falou a esse respeito:

“Olha tem um termo que antigamente se usava muito que era “empresa

paternalista”. Eu vim de uma empresa pública e o pessoal usava esse termo

pejorativamente. Agora, se você prestar atenção, no meu modo de pensar,

as empresas obrigatoriamente têm que ter cunho social. A empresa

Ela não está alí somente pra dar lucro. O lucro é uma conseqüência

de um trabalho maior, social. Ou seja, você tem que dar resultados

econômicos por causa do dono, que é o acionista. Você tem que ter

responsabilidade social não pela obrigação. Quando eu falo obrigação

através de lei, que obriga a ter um ou dois funcionários, a pagar imposto,

não é nada disso! Responsabilidade Social.”

Citou a privatização como um divisor de águas no processo de

modernização das empresas e na mudança da cultura empresarial. Segundo

ele, antes, as decisões não se baseavam apenas na obtenção de lucros, os

empresários tinham “Responsabilidade Social” no sentido de levar em

consideração a geração de empregos. A modernização é tida por ele como

um marco a partir do qual a lógica do puro lucro suplanta a importância da

preservação das relações sociais.

“O que eu quero dizer é o seguinte: até a época pré Collor, antes de se

falar em privatização, em queda de emprego, as empresas no Brasil, não só

estatais, como as multinacionais também, principalmente as alemãs, tinham

um caráter altamente paternalista. As empresas alemães não mandavam

ninguém embora. Até hoje, ainda tem isso aí. Então, essa parte que as

pessoas chamam paternalistas, relativamente, na verdade é a parte social.

Você tinha gente lá dentro que talvez não fosse o melhor operador de

telefone, talvez tivesse gente melhor! Mas, e socialmente, aquele indivíduo,

vale à pena você expô-lo ao mercado? Qual é o custo social disso? Quando

resolveram mudar esse estado de coisas, resolveram transferir pra iniciativa

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

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privada um ônus de caráter social. Ou seja, tiraram essa parte social do

negócio e enxugaram, enxugaram, “vamos tirar o social, vamos pensar só o

econômico!”. Então, esse social foi tirado. Tiraram o social, focaram no

econômico, como é até hoje, e ta aí o resultado: o país cada vez recolhendo

mais impostos, tá cada vez mais rico e a população, o lado social, cada vez

mais necessitado.”

Ao descreverem o processo de Privatização os entrevistados expuseram

como o cenário de incertezas alterou o comportamento dos trabalhadores,

seu modo de trabalhar e mesmo sua forma de pensar. Conforme Guga

explicitou: “É um ambiente terrível a pré-privatização!”

Depois de resumir o clima dentro da empresa no período em que se

deu a privatização, deu a entender que havia jogo de interesses e que, no

período anterior à desestatização, houve um processo de desqualificação da

empresa para que fosse subavaliada. Segundo ele, tal desqualificação se

estendeu aos funcionários da empresa, o que mexeu com sua auto-estima,

sua auto-concepção. Sobre os petroquímicos sucedeu-se uma série de

pressões e demandas por mudanças que ele qualifica como perversas.

“Como eu tava te colocando o seguinte: primeiro houve uma fase de

desqualificação, desqualificação pública. Isso não aconteceu através de uma

chefe, até porque a PQU não é uma empresa muito conhecida. O Banco do

Brasil tem nome como banco, mas a PQU nunca teve. Hoje ela é a primeira

central de matérias-primas. O povo conhece mais uma Copene, uma Copesul

do que a PQU, embora a PQU seja suprimentos. Mas, a desqualificação do

funcionalismo público, em geral, embora a gente não fosse funcionário

público, foi evidente! Veio uma pressão interna de desqualificação.

Agora eu quero te dar um exemplo de um seminário do que vinha depois.”

Mesmo indicando que a mudança se deu de maneira gradual, afirmando

que houve um período pré-privatização, a alteração da cultura da empresa

causou-lhe estranhamento, instabilidade emocional, modificou o modo de

encarar o trabalho:

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

221

“A gente só sabe o que vai ser depois que foi. Então na fase preparativa

tinha um camarada que dizia o seguinte “– vocês precisam se preparar pra

ter valor como um jogador de futebol tem”. Começou aí o comparativo com

o seguinte significado “se segura porque você vai valer o que o mercado te

pagar!”. Isso foi antes da privatização, antes de 94. Era a preparação para

a privatização. Deve ter sido 91, 92. Então, você vê que é um esquema

perverso né! as mudanças vão sendo implantadas devagarinho, aí depois

começaram com a tal da reengenharia que ia culminar no processo de

privatização. Só que o processo de reengenharia, quem passou, tem várias

empresas que passaram por isso, é um processo de cunho dramático pra

algumas pessoas. É um processo onde alguns profissionais passam por

pressões terríveis!”

Além de abordar as conseqüências da privatização para as relações

entre os trabalhadores, citou o processo de venda de parte das ações aos

funcionários, afirmando que foi um engodo, conforme foi relatado por Beto e

exposto na análise dos efetivos. Também reclamou da falta de transparência

do processo. Sobre isso, falaremos mais adiante. Sentiu-se ludibriado:

“Ta cheirando a golpe, ta cheirando a um golpe de inteligência, é um

golpe intelectual. (...) Eu fico com pena desse país, por ter dado a

Petroquímica União e ter tirado o direito dos funcionários terem uma

partezinha dela, que não é muito. A mágoa não é pelas falta das ações,

tanto é que eu acho justo o seguinte: seguir as regras do jogo. A minha

inconformidade é com a mudança das regras do jogo.”

Asseverou que o tratamento dispensado aos empregados mudou da

água para o vinho e caracteriza aquelas ações como sendo “assédio moral81”.

Seu relato leva a crer que, por efeito da privatização, as relações entre os

empregados foram desfiguradas. Depois de lhe pedir mais detalhes tive a

seguinte resposta:

81 O primeiro trabalho acadêmico sobre o assunto no Brasil é de Margarida Barreto, que defendeu uma dissertação de Mestrado em Psicologia Social, em 22 de maio de 2000, na PUC/ SP, sob o título "Uma jornada de humilhações".

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

222

“São pressões, que, como eu falei por telefone quando você falou

comigo a primeira vez, podem ser qualificados como assédio moral. Hoje eu

considero como sendo assédio moral, na época não se falava nesse termo.

Mas, o negócio ficou tão evidente depois, tomou tanto corpo que aí criaram

esse termo.” De acordo com sua argumentação é possível inferir que as

mudanças causaram mal estar, as novas regras adotadas pela empresa não

se harmonizavam com os padrões de comportamento adotados por ele, ao

logo de seus 20 anos de carreira ali dentro. Falou que passou a ver

deformidade nas próprias ações, ou seja, um desajuste entre o modo de ser

apreendido por ele, na empresa, e as novas exigências trazidas pelo

processo de modernização. O excerto abaixo explicita a forma como se

sentiu com a mudança de contexto: “Eu acho que não são ideologias, acho que é uma forma ‘canalhesca’ de

tratar o ser humano! O gado! Então você conduz o gado de acordo

com suas conveniências. Com isso a nação fica a Deus dará. O Brasil

hoje, infelizmente...//, eu to com 50 anos, eu peguei uma fase, aquela fase

típica em que as pessoas respeitam o próximo, que pedem a benção ao pai e

à mãe. Não é a benção em si que é importante, mas o respeito à

família, à instituição família. Isso acabou!, mas voltando à questão

do assédio, então, isso pra mim, é uma forma de assédio, é uma

forma velada de assédio. Quando você começa a se sentir com

defeito, até propositalmente. O objetivo é te fazer sentir inadequado,

incompetente, “você não vai sobreviver aqui!”, “é melhor você pedir pra ir

embora ou aceitar um acordo!”. Então aquilo é conduzido de uma maneira

tão sutil, ou seja, você pode até sair. “Saia agora, numa boa”. Então, esse

tipo de condução, muito competente, muito hábil, você nunca vai encontrar,

com raríssimas exceções – e eu não conheço nenhuma –, alguém que meteu

o pé na porta, “não, não quero!” E se tiver, esse camarada vai ser crucificado

porque você, estatisticamente você vai pegar...// estatísticamente você pega

lá 300, 500, 800 que sairam com o Sopão, aí você pega um que reclamou.

Que moral vai ter aquele camarada pra combater estatisticamente um fato?”

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

223

Um dos aspectos que julgo importante no relato desse interlocutor foi a

forma como a implementação das modificações trazidas pela privatização e

pela reestruturação foram apresentadas. Chamou-me atenção o modo como

foram percebidas e a forma de os empregados lidarem com ela. Primeiro ele

mostrou que a empresa realizou seminários e programas que tinham o papel

de introduzir inflexões no modo de assimilação das mudanças. Isso revela

uma alteração da cultura da empresa. O passo seguinte foi a implantação

das novas regras, já nas seções da produção. Guga qualificou como ações

terroristas as mudanças implantadas repentinamente. Conforme se pode ver

na fala a seguir:

“Mudar de paradigma. Qualquer seminário que tivesse, a primeira

palavra que tinha lá era mudança. Como tá hoje na moda, você não viu

quando o Lula se elegeu? “Mudança”. A mudança é boa? Não

necessariamente, que mudança? Só que na época se vendia o seguinte:

“Mudança, temos que mudar!” Então tem funcionário que sai repetindo igual

a papagaio. Teve chefe que pegou o setor assim e pá! Mudança. Tinha

chefe que, de um dia, pra o outro fazia assim: pegava e tirava todas as

divisórias. Tinha chefe que botava a mesa pra fora, falava que o cara ia

trabalhar ali. Isso não é assédio moral? Houve isso, isso aconteceu. Esse

cara foi mandado embora depois, não por isso, por outros motivos, foi por

causa de briga com outro pessoal. Mas esse camarada fazia isso, isso é

terrorismo!”

Segundo seu depoimento, os valores aprendidos na educação, em

família, também são incorporados nas relações de trabalho. Depois de

formada a personalidade de uma pessoa, é difícil abrir mão desses valores.

“Isso aí faz parte da formação da personalidade ou do caráter.”

Ele deu as razões para o estranhamento e até mesmo para o sofrimento

que essas transformações, vistas da perspectiva de uma pessoa que

testemunhou a fundação da empresa, causaram. Para Guga, o trabalho era o

espaço em que prevaleciam aqueles valores ensinados por sua mãe, como o

respeito às hierarquias, a honradez, a honestidade. Também aqui a família

aparece como basilar na formação dos princípios e valores de caráter. Por

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

224

isso, as modificações foram um choque, contrastavam com tudo que

aprendera ao longo da vida. Conforme pode ser visto:

“Minha mãe sempre foi uma pessoa que dizia o seguinte: ‘respeitar,

olha a cultura, que tinha que trabalhar direitinho’. São valores dela, valores

de honestidade, essas coisas, sempre foi passado isso daí. Pra nós sempre

foi importante pra formar valores. Quando você forma valores é terrível

qualquer choque com qualquer um desses valores que você formou.”

Depois dessa declaração perguntei-lhe o que, de seu ponto de vista,

tais mudanças causavam aos empregados. Provocariamalgum tipo de

sofrimento? Sua resposta:

“Sofre e outra coisa, valor você não muda! Valor é valor, você vai

carregar pra o resto da vida. O que você pode fazer é minimizar o

sofrimento e aprender a conviver com isso. Então, quando você tá lá, você

aprende a conviver com isso. Porque não muda, não muda. Você pode

aceitar, enxergar a vida de forma diferente. Então quando você vem de uma

cultura daquela, o chefe é um Deus. Você respeita, porque na época que se

falava, eu acho que foi a época antes de tesourar mesmo, quem se dava

bem com o chefe subia. Era aquela cultura da década de 50 e 60. Então isso

é um choque, hoje não tem nada disso! Eu trabalhei....hoje é pouco, é bem

menos isso aí.”

O sofrimento e a angústia que viveu durante a implementação das

mudanças decorrentes das pressões sobre os empregados e da ameaça do

desemprego, do conflito entre as novas regras definidas pela empresa e seus

valores, impuseram que Guga buscasse solucionar seu problema. Todo esse

quadro alterou sua forma de se relacionar com o trabalho. Já não tinha mais

o mesmo comprometimento, dadas as ameaças que sofria e a angústia

cotidiana de ser dispensado. O acirramento da competição dentro da

empresa exigiu-lhe adaptabilidade às normas recém implantadas.

Finalmente, resolveu entrar na lista do Plano de Demissões Voluntárias,

famoso sopão e com isso estabeleceu novos planos profissionais. Foi ser

dono do próprio negócio.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

225

Retomo o tema da privatização, agora mais focada nos desdobramentos

da venda das ações da Petroquímica a seus empregados. Chamou-me

atenção o depoimento de Dida. Foi desligado por acordo de conveniência

entre ele e seu chefe, uma vez que, devido à exposição e aos conflitos de

interesses decorrentes do processo de priatização e venda das ações da

empresa, sua imagem estava desgastada. O primeiro aspecto a ser

destacado é a desilusão com o fato de que os empregados criam que seriam

“donos” da empresa. Não foi o que ocorreu, o resultado causou frustração e

ele deu a entender que a empresa usou esse ardil para criar a ilusão de que

a privatização não traria insegurança. Conforme a fala de Dida:

“Nós fomos iludidos. Primeiro, achando que íamos ser donos de 10%

da Petroquímica. Então, primeiro o pessoal não viu com maus olhos, a

gente ia ser dono, não vai mandar o dono embora. Então não

achamos que a estabilidade ia terminar nada. Ia comprar 10% das

ações, eu ia ser dono, está entendendo? eu ia trabalhar com mais vontade a

firma é minha. Na época da privatização, então os funcionários não viam a

hora de privatizar. Para você ter uma ideia, era a época em que eu estava

casando. Eu ia viajar em lua de mel eu adiei 10 dias por causa da merda da

privatização. Que iam sair as ações, eu tinha que pagar o lote. Eu casei não

fui viajar nada, só depois. A expectativa era muito grande. A gente ia ser

dono pô da PQU! Ainda aquele pessoal que mora lá perto, nossa que aquilo

para eles é o céu, “eu vou ser dono disso aqui!?””

Explicou como se deu o processo de venda das ações da empresa aos

empregados. As ações da PQU, que os funcionários compraram foram

transformadas em ações Sociedade dos Empregados da Petroquímica – SEP

– que não podiam ser negociadas em bolsa. Uma vez impedidos de negociar,

os empregados tinham em mãos papéis sem valor nominal.

“Na época da privatização era assim: 10% da privatização era pra os

empregados. A gente tinha que comprar.Só que ninguém comprou. Cada um

teve que arrumar US$ 1.500 pra pagar as ações. Eu arrumei o dinheiro

emprestado, e pagamos. Só que, eu vou ser meio grosso porque eu sou

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

226

assim. Os safados converteram a ação de PQU em ação de SEP, que é

Sociedade dos Empregados da Petroquímica. Existe até hoje. As ações da

SEP, não são negociadas em bolsa, não valem nada! Então, uma ação da

PQU valia uma ação da SEP, quer dizer, eu não tinha nada em mãos. Eu não

tinha absolutamente nada. Usaram meu nome pra comprar, usaram U$S

1.500 meus, porque eu paguei, e mais dinheiro que foi no meio do caminho.

Documento disso, o cacete, um monte! Hoje seria como uns cinco ou dez

paus, gastamos bem! E eu não tinha nada na mão. Então eu comecei a

bater de frente com a SEP. Arrumei uma firma que me bancou, cheguei lá e

comprei sei lá, 50 mil ações da PQU, quitei. Eu tinha que quitar a dívida.

Quitei a dívida de 50 mil [ações] e fui negociar as ações na bolsa. Só que os

sem vergonha da SEP entravam e brecavam minha negociação. Na época,

isso era uma jogada. Eu não entendia de ações, eu arrumei uma corretora, o

cara falou: “– vamos comprar!”. Eu disse: E tem como? . Ele falou: “– tem,

tem como comprar.” “

Dida contou em detalhes o conflito de interesses entre as partes:

empregados e empresa e o desgaste que sofreu devido ao confronto direto,

em defesa de seus interesses e do que julgava justo para a classe de

trabalhadores, agora com 10% das ações da empresa. A coragem de falar e

expor seu ponto de vista foi um chamariz para o sindicato, que passou a

convidá-lo para as reuniões com a empresa. Conforme discorreu:

“Nunca me arrependi. Na época que eu saí de lá, foi o seguinte: eu já

vinha muito desgastado com esse negócio de SEP, me expondo muito. Como

eu me expus muito, o sindicato começou a me rodear porque eu falava, eu

não queria saber. Aí começaram a me chamar pras reuniões de sindicato. Eu

acabei indo. Eu nunca fui ativo, mas acabei indo nas reuniões. Aí ia ter uma

reunião com a diretoria de Participação do lucros e Resultados – PLR. O que

era combinado na época? Fazer uma comissão de empregados pra se discutir

com a PQU quanto seria essa participação, em porcentagem, quanto seria

esse valor pra nós. Nós íamos votar em funcionários [empregado que

pudesse defender seus interesses, como parte dos acionistas da empresa],

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

227

eu acho que uma semana antes da votação veio uma circular dizendo que o

pessoal que era operador não podia votar. Só podia votar operador 3 e

supervisor. Aí eu meti a boca! “Eu voto em quem eu quero!””

As reuniões foram desgastantes e, segundo ele, não houve

transparência no processo decisório. A pauta das reuniões mudava,

conforme a conveniência dos outros participantes (empresa e sindicato) e ele

queria ir até as últimas conseqüências em defesa do que considerava ser

justo. Queria garantir que qualquer um pudesse ser candidato a

representante dos empregados e que não fosse uma decisão da empresa e

sim do conjunto. As evasivas dos participantes da mesa o irritaram e ele

ficou irredutível.

“Ninguém iria falar um ‘A’ para eles. Se 90% do pessoal de lá é “caxias”

é “pelegão”, se você pegar, operador 3 é 100%. É um pessoal que não tem

estudo, poucos fizeram faculdade, já estão há 20, 30 anos lá, mas não vão

falar um ‘A’ lá. Então eu não admiti isso e fui à reunião. O presidente da PQU

na época estava bem na minha frente. Daí o pessoal do sindicato começou a

falar de acordo coletivo, 1 hora de conversa que não tinha nada a ver, aí eu

interrompi. (...) Eu falei espera aí eu não vim aqui falar de final de ano de

acordo coletivo, estou aqui para falar da PLR, é para isso que nós viemos

aqui. Aí o diretor [PQU] começou a discussão e eu falei “Não, eu quero votar

em quem eu quiser”. Ele falou: “Você não entende, se eu abrir para votar em

qualquer um vocês mesmos vão votar em operador 3. Eu só estou poupando

vocês do trabalho.” Aí eu levantei e disse: “Será que está escrito besta aqui?

Não sou besta! Você está me chamando de besta de babaca. Não, eu voto

em quem eu quero! Pode ganhar operador 3, mas eu não vou votar. Eu vou

votar no operador 1. Eu quero ser livre para votar. Eu quero votar no

operador da China. Não interessa! Mas eu não vou votar em quem você

quer!” Aí o homem ficou louco, mudou o assunto, não discutiram mais, eu

voltei o assunto, o próprio sindicato não falou mais nada. Então eu fui

embora.”

Depois disso, sentiu que ficaria difícil se manter na empresa, dada a

divergência e o desgaste com o diretor-presidente durante a reunião. Supôs

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

228

que corria riscos de ser mandado embora por justa causa, podendo ser

vítima de uma silada. Conforme afirmou:

“Eu acho que uns dois dias depois o chefe do meu supervisor me

chamou e falou que minha cabeça estava a prêmio e que mais cedo ou mais

tarde eu ia ser demitido. Eles não demitiam operador 1 lá, muito difícil,

porque eles investem muito em operador 1, é um poço de conhecimento,

você conhece tudo, e eu, profissionalmente, não era um mau operador. Era

operador 1 de dois setores e operava tanto o painel quanto a área (quanto o

campo). Eu ultimamente só estava no painel. (...) Sempre reclamei, sempre

fui bocudo. Depois desta reunião, começaram a arrumar negócio do

sindicato, que eu era do sindicato e eu não era sindicalizado, nada! Não

queria nem saber do sindicato. E começou um ou dois supervisores a

arrumar a minha cama. Aí eu pensei, eu vou embora senão eles vão tipo

estourar um vaso aí fora e falar que fui eu. Ele vão arrumar para mim. Aí eu

conversei com o Joel, cara 10! [chefe de setor] ele foi conseguiu uma

transferência e o pacotão já no dia seguinte. Eu trabalhei no meu setor

normal. Fui transferido no dia seguinte e peguei todos os meus direitos.”

A descrição feita por Dida sobre o processo de privatização e a venda

das ações da empresa aos empregados mostra certo descrédito em relação a

atuação do sindicato. Um aspecto que deve ser levado em conta é que,

naquela situação, a posição dos trabalhadores foi dúbia, uma vez que sua

reivindicação não concernia a qualquer elemento da relação social de

trabalho em si e sim ao direito de serem proprietários de parte da

empresa.

Nesse sentido, embora na posição de empregados, eles reivindicavam o

direito de propriedade, tido historicamente como o direito da classe

burguesa. Esse exemplo remete à tese defendida por Beck sobre conflito de

classe e relações de trabalho. Segundo ele, o conflito de classe já não explica

situações híbridas vividas pelos empregados. Beck refere-se às condições

ambíguas de transitoriedade entre emprego, desemprego, subemprego e

atividades informais, em geral. No entanto, no exemplo aqui mencionado

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

229

trata-se de outro tipo de dubiedade, aquela entre trabalhadores e

proprietários.

Mesmo considerando-se que a venda das ações pode ter sido usada

pela empresa como artifício para desmobilizar os trabalhadores, deve-se

também admitir que os empregados, ainda que por meio de ação sindical,

não foram capazes de se articular em torno de uma posição que

representasse a vontade e o interesse comuns. Concretamente, não

souberam explicitar sob qual tutela ficaram as ações. Além disso, nos relatos

recolhidos, muitos entrevistados referem-se ao sindicato com desconfiança e

frequentemente fazem colocações dúbias em relação a essa organização

social. Ora se vêem ora não se vêem representados por ela. O próprio Dida

disse: “o sindicato eu acho age em proveito próprio. Ele não está preocupado

com o empregado. O meu sindicato de petroquímico, não ponho os outros.

Fazia assembléias, fazia aquele auê, de repente não falava mais nada.”

Ora, pensar que o sindicato age em proveito próprio é admitir que além

de empresários e empregados existe uma terceira força. Mas ela existe em

defesa de quem, de quais interesses? Essa ideia parece um contra-senso,

uma vez que o sindicato sempre atuou representando os trabalhadores.

De fato, Beck teria razão ao asseverar que a firma já não seria mais o

espaço do conflito entre proprietários e não proprietários?

O exemplo acima exposto põe em questão a contradição básica do

capital, qual seja: de que nas relações capitalistas, embora o trabalho seja

social, a propriedade é privada. De fato, a complexidade das relações de

trabalho exige que sejam feitas outras considerações sobre a realidade dos

empregados. O excesso de competitividade provoca o enfraquecimento de

relações coletivas – pautadas na luta pela igualdade entre os trabalhadores –

e a tendência ao fortalecimento de atitudes individualistas. A diferenciação

das condições entre os trabalhadores dificulta pensá-los dentro de uma única

condição. Assim, cada vez mais as negociações entre empresa e empregado

tendem a se dar de maneira individualizada.

No caso estudado, provavelmente não chegue a se configurar a

dessocialização conforme Touraine prenuncia, mas se trata de uma situação

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

230

em que as ações dos trabalhadores tendem a ser pautadas em

comportamentos individualistas. Nesse sentido, há cada vez menos espaço

para a partilha de valores comuns. No entanto, nada impede que, de acordo

com interesses momentâneos, eles se orientem por meio de valores de

reciprocidade.

O papel do trabalho feminino

Antes de encerrar esta análise, gostaria de tecer breves comentários

sobre a forma como o trabalho feminino figura nas falas da maioria dos

entrevistados, e, de forma quase unânime, na dos efetivos da Petroquímica

União. O fato de os empregados terem uma remuneração82 média alta,

superior à média nacional, conforme já comentado, implica um modo

peculiar de os trabalhadores petroquímicos enxergarem a mão-de-obra

feminina.

É importante lembrar que o trabalho petroquímico é essencialmente

masculino e que a atividade de turno limita a participação dos homens na

organização do âmbito familiar-doméstico. Isso induz a uma divisão de

tarefas na família em que o homem é provedor e a mulher, a dona de casa.

Além disso, sobrecarrega a importância do papel das mulheres nas decisões

familiares. Nesse sentido, frequentemente, os efetivos da Petroquímica

referem-se à mão-de-obra feminina como suplementar à masculina, nos

rendimentos familiares. Isso também se repete, “como dobram os sinos”, em

quase todas as entrevistas feitas, considerando todas as categorias

pesquisadas.

No caso dos efetivos na petroquímica, a visão do trabalho feminino é

semelhante. Ele é complementar, variando em grau o peso dessa

complementaridade. Isso pode ser vista na fala de Bira: “Vai, até um tempo

atrás o homem, ele seria o que teria que manter a casa, hoje não, a mulher

ajuda muito.”

82 De acordo com Guimarães (1998), a remuneração no setor petroquímico se constitui de três segmentos: remuneração direta fixa, remuneração direta variável e remuneração indireta.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

231

Mesmo reconhecendo sua importância no rendimento doméstico, o

trabalho feminino, segundo o que ele indica, é menos importante no

orçamento familiar. Por isso afirma que, hoje em dia, o trabalho da mulher é

‘fundamental’’, mas como ‘ajuda’ e não como determinação: “Na renda

familiar a mulher trabalhando também. Então eu acho fundamental também

que hoje a mulher trabalhe para ajudar,....// até no relacionamento acho que

melhora.”

O trabalho feminino83 parece ser importante pelo fato de “E a mulher

fica com uma outra visão do mundo lá fora tando trabalhando.”

Bira encontra no trabalho de sua esposa uma importância maior do que

a maioria dos outros entrevistados da mesma categoria vê no das suas. Na

entrevista de Beto, o trabalho feminino figura como ainda menos importante,

se considerado o benefício da boa educação dos filhos conquistados pela

presença da mãe/mulher no lar. No entanto, esse sacrifício gera um outro

drama que é o da insatisfação da mulher no âmbito profissional, campo esse

que ganha cada vez mais importância nas relações e que dá visibilidade

social às pessoas.

Segundo Bira, o fato de sua esposa trabalhar torna mais rica a relação

do casal. No entanto, o trabalho de sua companheira tem importância

relativa menor que o seu, inclusive em termos de rendimento.

O contexto de trabalho de Bira, Beto e dos demais efetivos,

eminentemente masculino e organizado em turno, de certa forma, molda sua

percepção sobre o papel da mulher e do homem no mercado de trabalho. A

remuneração que recebem é superior à da média nacional, mais é ainda

83 Embora não seja esse meu escopo, é fundamental destacar que, diferentes situações de inatividade retiram as mulheres do mercado de trabalho. Frequentemente, as responsabilidades pela família motivam sua ausência: maternidade e outros fatores que decorrem dela. No entanto, nem sempre elas figuram na categoria dos desempregados. Isso faz com que, muitas vezes, o desemprego feminino seja invisível para as instituições que se responsabilizam pelo registro do desemprego. Para saber mais sobre os problemas decorrentes do desemprego feminino ver Hirata (2002) e Maruani (2002). Nesta pesquisa, quase todos os participantes da categoria efetivos da petroquímica identificam suas esposas como “do lar”, exceção feita à esposa de Donizete, que é professora do colegial e à de Rogério de Souza, que atua numa multinacional. Via de regra, elas estão envolvidas em trabalhos sem registro em carteira, figurando como autônomas, e seus rendimentos têm a função de complementar a renda familiar.

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

232

maior se comparada aos salários médios pagos às mulheres. Nessa

perspectiva, longe de se equivalerem, a mão-de-obra feminina e masculina

são tratadas de maneira distinta. O entendimento de que o trabalho feminino

é complementar ao do homem e não essencial para o mercado, faz com que

as oportunidades de galgar melhores posições na carreira sejam direcionadas

a eles. Conforme Hirata(2002) e Maruani (2002) as razões que retiram as

mulheres do mercado de trabalho são diversas, mas frequentemente, têm

origem nos problemas familiares. Além disso, no senso comum, é mais

aceitável que a mulher abra mão da vida profissional do que o homem.

A história de Beto é reveladora desse fato. Quando lhe perguntei qual

era a profissão de sua esposa, disse “do lar”. Nesse momento, ela

interrompe a entrevista e mostra sua frustração: “eu fiz técnico em

contabilidade, mas não exerci”. Ele completa, justificando a opção mais

conveniente para a “família”: “eu prefiro, eu falei pra ela que era melhor ela

ficar, porque se não você tem que pagar babá, cozinheira, e fica mais caro”.

Ela continua o diálogo: “então, mas só que agora eu sou frustrada por isso.

Ele sabe disso. Só isso!”

A dedicação de Rosa para garantir uma educação segura aos filhos e

dar aporte à família não a impediu de amargar a frustração de ter

interrompido seu desenvolvimento profissional.

De maneira geral, ainda que se considere que as mulheres avançaram

em sua luta por um lugar digno no mercado de trabalho, ainda há muito por

fazer. A maneira como o trabalho feminino é encarado, resulta em um

conjunto de controvérsias para homens e mulheres, podendo gerar

desconforto a toda uma estrutura familiar. O curioso é que a

profissionalização da mão-de-obra feminina esbarra em diversos embustes

que geram outros problemas, em cascata, e, quando nos detemos na análise

deles, vemos que se organizam de maneira circular.

No mercado de trabalho, a mão-de-obra da mulher não é vista com a

mesma importância que a do homem, isso faz com que, mais

frequentemente que eles, as mulheres abandonem sua carreira para cuidar

da vida doméstica, o que, paulatinamente, as distancia da vida profissional e

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

233

reduz suas chances de sucesso nesse âmbito. Muitas vezes, além de gerar

frustração à mulher, o sacrifício de abrir mão de uma carreira profissional

traz mais insegurança não só para ela, mas para seu companheiro, que se vê

sozinho com a responsabilidade pelo provimento das necessidades da

família. E a ciranda começa outra vez!

Nos casos em que o trabalho se apresenta como eminentemente

masculino esse quadro se reforça.

Entre os efetivos, quando argumenta que o trabalho dá sentido à vida

das pessoas, Ito também mostra que, de seu ponto de vista, os homens são

mais exigidos do que as mulheres. Mesmo tendo uma esposa que trabalha

fora, assevera que somos uma sociedade machista e que sobre as mulheres

não recai a cobrança de que o trabalho também é um dever e a ele cabe o

papel de garantir a subsistência da família. A fala a seguir é reveladora dessa

tese:

“Eu ainda sou da geração em que o papai trabalha fora para cuidar da

família e a mamãe fica em casa cuidando dos filhos. Se você fizer essa

pergunta hoje para um adolescente a resposta é completamente diferente,

né? Ele vive uma outra realidade. Até pro meu futuro filho, se a gente tiver,

vai ser uma reposta diferente.

O que que era? Você, no caso do homem, não era uma opção tipo:

“Ah, eu sou mulher eu quero trabalhar” ou “eu casei, vou parar de trabalhar

e vou cuidar dos filhos”. O mundo é machista, o Brasil principalmente, então

é lógico ninguém vai ver isso com maus olhos: ela parou de trabalhar e cuida

da casa. Agora como homem não, eu tenho que começar a trabalhar e tenho

que continuar até me aposentar e vou ter que cuidar de uma família, se eu

casar, da minha nova família e senão dos meus pais. Era isso que

representava; eu tenho que cuidar e não vou ter opção de falar assim: “eu

vou parar um dia, porque eu vou casar” não tinha isso, não tem como

pensar nisso. Até hoje não tem ...//... não tinha essa alternativa. Era uma

coisa ...//... uma conseqüência natural. Você tem que estudar, estudar bem,

não pode repetir de ano nem ficar de recuperação nem pegar DP na

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Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica

234

faculdade. Você tem que arrumar um emprego, você tem que trabalhar, você

tem que montar uma família..”

Considerações finais

A dinâmica das transformações do mercado de

trabalho e a alteração do caráter

Antes de tecer as considerações finais, é necessário atentar para o fato

de que dar o último aceno é comumente muito difícil. É sempre assim, no

fim queremos dizer tudo, o que se torna tarefa impossível. O fim é quando

se encerra a porta, quando se fecha a cortina e quando se vira a derradeira

página de um livro. No entanto, também nos permite a conclusão de algo:

de um fato, de uma história, de um trabalho, de uma etapa da vida,

prenunciando o novo.

Aqui trata-se do fecho de um trabalho de dissertação. Por isso mesmo,

implica uma grande responsabilidade, qual seja, a de delinear um eixo

comum por onde perpassem os principais temas abordados em todo o

trabalho. Essa tarefa implica, portanto, a costura cuidadosa das partes que

compõem o todo, conferindo-lhe sentido. É necessário um olhar panorâmico

pelos temas abordados de modo que seja possível delinear um fio condutor,

em torno do qual esses assuntos gravitem.

Com base nos pressupostos teóricos, debrucei-me sobre o material de

campo. Após a colheita dos relatos, tinha em mãos 596 páginas de material

bruto. Via de regra, as entrevistas se estendiam e, ao longo do processo,

não havia me dado conta do volume desse instrumental. Sem muito esforço,

pode-se supor que a dimensão do material que eu recolhera causou um

certo medo pela tarefa que me propus a realizar e sabia que era impossível

explorar tudo. Aos poucos, consegui esquadrinhar as entrevistas, separando

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Considerações finais

235

o joio do trigo, até que, de fato, se constituísse uma análise acurada das

falas recolhidas.

De antemão, é necessário dizer que as biografias aqui contadas, em

muitos aspectos, são singulares, o que, de certa forma quer dizer que podem

ser vistas como realidades distintas, particulares. No entanto, me interessava

compreender, sob que prisma, era possível enxergar suas semelhanças. Em

que pontos essas trajetórias se cruzam, onde se identificam.

Para analisar os efeitos das transformações do mundo do trabalho

sobre o caráter do homem nas relações de trabalho, propus-me a estudar a

realidade de três categorias distintas: os trabalhadores efetivos da

Petroquímica União, os trabalhadores terceirizados que atuam naquela

empresa e os trabalhadores dispensados por ela. Foi sobre essas três

realidades particulares que me debrucei, tentando compreender se a

reconfiguração da esfera do trabalho – onde se incluem processos de

reestruturação produtiva, transformações relativas a padrões tecnológicos –

poderia provocar uma tendência à desestabilização do caráter dos

trabalhadores. Isso porque, ordinariamente, essas alterações têm resultado

na flexibilização dos contratos de trabalho e na precarização das relações

sociais, entre outros, produzindo instabilidades e desconfortos na vida dessas

pessoas. Trocando em miúdos, busquei interpretar como essas pessoas

interagem com as mudanças, como se comportam e como as compreendem,

levando em conta a redefinição das regras anteriormente incorporadas ou as

novas regras introduzidas no contexto do trabalho.

A análise das falas dos entrevistados, constituiu-se numa das formas

possíveis de compreender sua realidade e a forma como a interpretam. Ou

seja, a maneira como se vêem e como pensam que são vistos pelos outros.

Nesse sentido, o modo como cada um vê o mercado de trabalho e o seu

papel nele está determinado pelas circunstâncias que encontram, tal qual

Marx afirma84. Por isso mesmo, o trabalhador efetivo, o terceirizado e o

pessoal desligado da Petroquímica União indicaram perspectivas próprias. No

84 “Os Homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem e sim sob as circunstâncias que encontram, legadas e transmitidas pelo passado.” ( Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte).

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Considerações finais

236

entanto, eles também revelaram aspectos em que seus pontos de vistas

confluem.

Atenta para o impacto das referidas inflexões no modo de ser do

trabalhador, busquei compreender se havia uma nova identidade operária85,

que surge a partir das tensões entre os trabalhadores, devidas ao aumento

das exigências decorrentes do acirramento da competição. A esse respeito,

dois elementos, ligados entre si, apareceramm com mais freqüência na fala

dos entrevistados. Um é a percepção da mudança do papel e da perda de

espaço do sindicato nas lutas trabalhistas, ao longo dos últimos anos, e o

outro é a individualização como forma de assentamento no âmbito

profissional. Independente de aprovarem ou não a inflexão da posição do

sindicato – de combativo a mediador entre patrão e empregado – o

fundamental é que ela decorre da transfiguração do emprego e do aumento

do desemprego e reflete o enfraquecimento dos valores de reciprocidade e

concomitante fortalecimento da individualização ou de formas coletivas

provisórias.

Guga vê no papel do sindicato, algo mais do que a representação dos

trabalhadores. Seria um mecanismo de poder e controle dos empresários

sobre os operários e uma forma tangível de estabelecer diálogo com a massa

trabalhadora. O curioso é que ele entende que o sindicato tornou-se peça-

chave no sistema [capitalista].

“Você congregar a classe..// bom, se você pensar porque existe

sindicato e porque esses grupos foram formados, eles foram formados pra

85 Conforme apontado ao longo do texto, o termo identidade é tomado no sentido de pertença coletiva, ou pertença comum a um grupo social. Assim, entre outras coisas, examinei se havia indícios de valores coletivos, formados a partir da experiência comum dos operários petroquímicos ou se o aguçamento da competição entre os trabalhadores os impelia a comportamentos mais individualistas. A pergunta central aqui era se a realidade operária, vista nos dias de hoje, admite analisar o modo de ser coletivista – advindo da experiência comum dos operários – de maneira diametralmente oposta ao modo individualista da classe média, conforme visto por Thompson em sua discussão sobre o surgimento da classe operária inglesa. Admitir a tendência à adoção de comportamentos mais individualistas em detrimento dos coletivistas é, de certa forma, pensar que a individualização dá as bases para que se processe a mudança da cultura da classe operária na atualidade. Já Beck e Beck-Gernsheim pensam a individualização como a experiência comum possível entre os trabalhadores do final do século XX e início do XXI.

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Considerações finais

237

que você tenha controle. A mesma coisa é a religião. Como é que você

controla 40 mil funcionários numa fábrica da Volkswagen? Não tem como! É

o caos total, ninguém se entende. Um fala que sim o outro que não, aí sai

briga e aí vai cada um pra um lado. Então, você elege um líder, o próprio

governo, a própria estrutura governamental criou um líder. “Vou conversar

com esse intermediário”. É muito mais fácil você cooptar esse intermediário,

fazendo o jogo que você quer. Então, a posição do sindicato, pra mim,

é essa. Ela é útil para o trabalhador e é útil para o sistema. (...) . Ele

dá seu diagnóstico a respeito da função do sindicato. “É bom pra os dois

lados. Ele é necessário ao sistema, e é necessário ou útil aos empregados.”

A foma como Guga e outros entrevistados, não só desligados, mas os

trabalhadores também, vêem as organizações sindicais indica como cada vez

se tem menos espaço para uma atuação combativa, de confronto entre as

partes. Ante a reconfiguração do campo do trabalho e do surgimento de

formas híbridas entre emprego e desemprego, há uma multiplicidade das

situações de trabalho e o que se busca são ações mais conciliadoras, e cada

vez mais distantes do antagonismo entre proprietários e não-proprietários.

As três categorias pesquisadas citam o desemprego como um elemento

que causa insegurança no âmbito do trabalho. O crescimento da massa

desempregada gera um aumento das exigências feitas aos que dependem de

salário para viver e quem trabalha convive com isso continuamente. Nem

mesmo a percepção de que o desemprego se ampliou a ponto de se tornar

um fenômeno que se generaliza, produz o sentimento de identidade entre

eles, por se sentirem em condições semelhantes. Faltaram menções a

sentimentos coletivos, ações de solidariedade entre mesmo quando

relatavam situações de trabalho semelhantes.

No contexto de escassez das oportunidades profissionais, conforme

Tião explicitou, os trabalhadores têm cada vez menos chances de escolher o

emprego que desejam. “Por mais que você se qualifique, como eu te falei, a

qualificação é importante, mas isso não te garante nada! Só te deixa mais à

mostra na vitrine, você sai mais à mostra do que outros, você sai um pouco

na frente! Só isso, mas não te dá garantia de nada.” Os empresários, pelo

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Considerações finais

238

contrário, escolhem como querem seus empregados. Sobre isso, o mesmo

Tião afirmou: “há um rigor excessivo. Eu acho que como a demanda de

gente é muito grande, eles estão selecionando o que querem.” (...) “Eu acho

que hoje, a empresa, ela tem o empregado do jeito que ela quer. Uma loira

do olho azul, uma morena do olho verde, um cara alto. Ele seleciona a

pessoa do jeito que ele quer, até fisicamente. Então, do jeito que ele quer,

ele vai achar essa pessoa pra trabalhar.”

A percepção de que há excesso de exigências sobre as pessoas que

vivem de salário também é um elemento comum entre as três categorias que

participaram da pesquisa. Os respondentes do grupo dos terceirizados vão

além do fato de que as exigências são exageradas. Para eles, há

incongruências no rol dos critérios requeridos aos trabalhadores, por

exemplo, quando se exige anos de experiência a quem está ingressando pela

primeira vez no mercado de trabalho. Esse foi um aspecto salientado por

Chico e Cadu, ambos atuando como terceiros na Petroquímica União. Eles

mostraram também que o excesso de desempregados faz com que, mesmo

um profissional bastante competitivo fique à mercê dos critérios do mercado,

ele não tem condições de escolher. Chico explicitou seu ponto de vista: “O

meu pai, por exemplo, dizia que além do conhecimento, quanto mais a

pessoa estudasse, maiores as chances de conquistar um trabalho. Hoje em

dia, com bastante empenho, você poderá ser escolhido e não escolher.”

Cadu destacou como a competitividade limita as chances de ingressar

no mercado e gera insegurança ao trabalhador:

“Hoje é muito competitivo o mercado. Então, você sabe que tem uma

empresa que é boa, tem porte, te dá condições de trabalho e tudo que você

precisa, mas entrar numa empresa assim é muito difícil. Antes era mais fácil

entrar e tinha mais, se você não tivesse contente com a função você ia pra

outra função. Hoje já não é assim. Hoje você define a sua função, e, de

repente, aquela função não tá bem. Aí você entra em crise, fica

desempregado porque a função ou área já não é mais necessária. É preciso

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Considerações finais

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estar sempre atento. Por isso que eu acho que sempre tem que procurar tá

atualizado, fazer curso, estudar, tá atento às mudanças de mercado.”

Sempre tiveram vantagem aquelas pessoas que se saíam melhor, as

pessoas que procuravam tá atualizadas. Mas, hoje a necessidade de

atualização é ainda maior.”

O rigor dos critérios adotados para empregar as pessoas dificulta o

reingresso de certos grupos ao mercado de trabalho. Nesse sentido, os

menos abstados e menos escolarizados, segundo os pesquisados, têm menos

chances. A seletividade do mercado opera por diferenciação, mediante

princípios de exclusão, que acentuam as diferenças existentes entre as

pessoas que competem no mercado. Nesse processo, fatores como idade e

sexo (características sobre as quais o desempenho individual não interfere) e

escolaridade e qualificação determinam, de maneira variável e conforme o

contexto – cultura, região, nação – a permanência ou não de uma pessoa em

um emprego, ou definem limites ao seu reingresso ao mercado de trabalho.

Dado esse contexto, Tião deu sua receita para evitar o desemprego:

“É se qualificar sempre, tá sempre estudando. Esse é o principal, se

manter atualizado. Arrumar um jeito de não chegar nos 40.” Ele afirma

que a idade pode embotar as chances de reingresso ao mercado. “Não sei,

arrumar um jeito de parar no tempo, porque se você chegou nos 35, 36

anos, ficou desempregado é complicado. Eu fiquei desempregado, to com

45. Eu fiquei desempregado com 42 anos. É difícil!”

As garantias sociais e direitos, próprios do trabalho regulado, dão lugar

às incertezas do trabalho flexível, visto em atividades de autônomos, ou de

pessoas que vivem de “bicos”. Depois de passar por trabalhos precários, pela

experiência do desemprego por desalento, Pepeu traçou comparações entre

as diferentes realidades – o mundo das relações flexíveis de trabalho e o

trabalho formal:

“Num trabalho registrado você tem uma retirada mensal, e essa

retirada permite que você compre uma casa, um carro, tudo que você não

obteve antes.” Ele explicitou que a remuneração regular permite que a

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Considerações finais

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pessoa planeje a vida, já os os bicos, “Tem dias que você tem, tem dias que

não.

Ele também falou, com base na própria experiência, sobre as

conseqüências que a situação de desemprego acarreta: as instabilidades do

mercado, que geram insegurança à vida das pessoas que dependem de

salário para viver. O Desemprego afeta a vida das pessoas, de maneira

ampla:

“Quando a pessoa tá deprimida ela não consegue ter momento bom,

não tem pior ou melhor. Você fica desmotivado, você não tem esperança.

Aliás, é uma coisa que afeta a maioria de nós hoje. Você pode tá empregado

ou não, a desesperança é o que afeta a maioria de nós, humanos, hoje. Isso

eu noto até na loja. Eu virei um terapeuta. As pessoas choram aqui....”

No conjunto de entrevistas examinadas, percebi formas diferenciadas

de lidar com essa realidade de mutação das relações de trabalho e de novas

exigências do mercado, em que a insegurança e a ameaça do desemprego

estão sempre presentes. Alguns entrevistados, como Ito e Tico, se

mostraram mais em conformidade com elas. Se identificam com modelos

mais competitivos e com a ideia de que o trabalho regulado está destinado a

um grupo cada vez mais seleto. As exigências do mercado não são por eles

estranhadas e não lhes ocorre o fato da desigualdade de oportunidades

entre os que competem por trabalho.

Conforme dito antes, a idade tem sido um critério determinante na

seleção de pessoas ao ingresso ou permanência num posto de trabalho,

tanto no setor petroquímico como no mercado em geral. Isso é o que alguns

estudiosos que discutem o tema do trabalho apontam (Guimarães, 1998) e

que é percebido pela maioria dos respondentes, de todas as categorias,

nessa pesquisa.

No momento contemporâneo, é como se o trabalhador vivesse em um

estado de vigília constante, aprendendo a lidar com as novas demandas do

mercado, sempre buscando se adaptar às exigências e satisfazer às

necessidades de quem lhes emprega. Essas variam a cada dia conforme a

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Considerações finais

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conjuntura do mercado. No entanto, o fato de estarem empregados não

resulta em segurança e estabilidade, uma vez que manter-se no emprego

constitui uma luta diária. Tudo se passa como se fosse necessário “matar um

leão a cada dia”. Isso porque o desemprego se tornou forma de mediação

das relações entre quem trabalha e quem não trabalha. Está presente nas

negociações sindicais, condiciona a forma de pensar e de agir dos

trabalhadores e dos que pleiteiam uma chance de emprego.

A ameaça à integridade do caráter pode ser apontada como uma

experiência possível, entre os trabalhadores e não como determinação nos

padrões de comportamento. No âmbito profissional, é possível pensar a

desestabilização como resultado das mudanças de identidade dos que

dependem de trabalho para viver. Em vez de se pautarem por relações de

reciprocidade, lutando pela igualdade entre trabalhadores, como ocorreu

historicamente, parecem guiados pela competitividade do mercado,

competitividade essa que delineia suas trajetórias profissionais e condiciona

a busca por autonomia profissional. É assim que a liberdade se erige

como um valor máximo entre essas pessoas. Liberdade de pensamento, de

escolha por um destino profissional singular. Nesse sentido, os acordos

comuns se dissolvem com mais facilidade, em nome de interesses pessoais.

É preciso considerar que, assim como os recursos com que contam para

se manterem no mercado de trabalho, o modo de enfrentamento dos

problemas também é diferenciado. Alguns sentem-se mais estimulados em

ambientes mais competitivos e outros mais fragilizados. O conhecimento

dessa desigualdade reforça a necessidade do desenvolvimento de políticas

sociais equalizadoras no âmbito do trabalho e de um sistema que permita o

esquadrinhamento do fenômeno do desemprego nos lugares em que se

manifesta.

No caso estudado, se confirmaram as suspeitas de que as

metamorfoses do mundo do trabalho no setor petroquímico têm provocado,

mais frequentemente, perda de status e queda do padrão de vida do que

geram propriamente desemprego. Isso foi visto na experiência de

terceirizados como Tião, Nuno e Chico e de desligados como Guga e Jota.

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Considerações finais

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Esse quadro se deve ao fato de que o setor petroquímico ainda propicia

remuneração acima da média nacional, o que viabiliza o redirecionamento

dos profissionais, ainda que em carreiras diferentes ou fora do setor

petroquímico.

Talvez seja possível pensar o desemprego como um dos principais

elementos que definem padrões socializadores entre as pessoas que

dependem de trabalho para viver – tanto dentro como fora das empresas. É

como se desse a chave das novas concepções que ordenam a vida social no

trabalho, indicando as novas formas de pensar, sentir e julgar.

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Anexos

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Anexos Entrevista com Heli Vieira Alves

Diretor do Sindicato dos Químicos e Petroquímicos do ABCDM. 1 - De maneira geral, como você caracteriza as mudanças ocorridas no setor petroquímico entre as décadas de 90 a 2000? R. Houve grandes investimentos no setor principalmente, quanto a ampliação produtiva e melhorias nos sistemas de controle do processo, porém para os trabalhadores com a implantação do PND (Programa nacional de desestatização) houve vários retrocessos. No caso de São Paulo, houve diminuição dos postos de trabalho. Interessante constar que em 1.989 (Levantamento para a desestatização) a PETROQUÍMICA UNIÃO possuía cerca de 1200 trabalhadores diretos e cerca de 200 trabalhadores terceirizados, hoje contamos com cerca de 550 trabalhadores diretos e 600 terceirizados. É possível constatar que houve uma diminuição dos postos de trabalho, principalmente no setor produtivo devido a melhorias nos sistemas de controle, porém é também uma verdade que quase a totalidade dos trabalhadores de manutenção, o total da segurança e refeitório e outros foram terceirizados. 2 – Considerando os processos de reestruturação produtiva, de acirramento da tendência à internacionalização das estratégias de negócios das empresas, quais as principais tendências no sistema produtivo e nas relações de trabalho neste setor (Petroquímico)? Há um aumento da pressão sobre os trabalhadores? R. Está em moda a integração das gerações da cadeia termo-plástico, é uma vontade deste setor redefinir a produção, integrando-a desde o refino até a fabricação dos polímeros. Para tanto, estão em movimento constante na troca de ativos e aquisições de controles acionários, a primeira a obter sucesso no caso brasileiro é a BRASKEM (Odebrecht), mas os demais grupos seguem o mesmo caminho. Nesta conjuntura é possível vislumbrar o potencial de desemprego que isto gerará. Pois unificando os processos, seguem também as unificações administrativas e de apoios, e consequentemente desemprego. È óbvio que com a integração dos processos, os trabalhadores terão que assumir maiores responsabilidades e tarefas, com maior cobrança das responsabilidades. 3 – O aumento da tensão e da cobrança sobre resultados tem acarretado algum problema de saúde para os trabalhadores? Quais? R. Não possuímos nenhum estudo a respeito, mas há uma sensação de que todos estamos mais impacientes, mais tensos, dois trabalhadores de turno estão fazendo terapia pela pressão que sofrem com a chefia imediata (sei somente de dois casos, pois os trabalhadores tendem a envergonhar-se a tratar destes assuntos, ou acham que é um problema deles (síndrome de

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Anexos

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Gabriela)) e também é impressionante o número de separação de casais (não estou sendo puritano nesta observação), o nível de tensão é tamanho, que várias empresas tem adotado programas de ginástica laboral, palestras sobre stress, promovido atividades festivas com as famílias (também para a cooptação dos demais membros da família). 4 – Em termos salariais, houve mudanças significativas para os trabalhadores petroquímicos? R. Houve uma mudança significativa, no caso da PETROQUÍMICA UNIÃO, enquanto era uma empresa de economia mista com controle acionário majoritário pela Petroquisa, havia plano de cargos e salários, melhor tratamento social e benefícios, houve estamos em luta para recuperarmos os valores perdidos. 5 – O que a sobreposição de funções, apontada como uma das tendências às mudanças das relações de trabalho no chão de fábrica, acarreta em termos das condições de trabalho e em termos de articulação política para o trabalhador? R. Há um acúmulo de tarefas para os trabalhadores, antes éramos responsáveis por determinadas tarefas, hoje além destas passamos a assumir tarefas de outras atividades. Exemplo: Antes o operador de processo era responsável pela manutenção do processo (Temperatura, Pressão e Vazão) , hoje além destas variáveis ele ainda tem que fazer alguns serviços de manutenção e também da administração da produção, preenchendo relatórios (partes gerenciais) e participando muitas vezes de tarefas de planejamentos estratégicos de manutenção. Entendemos ser uma sobrecarga nas tarefas, que dificulta muitas vezes a articulação política com os trabalhadores, pois os dirigentes sindicais ficam desatualizados quanto ao mundo do dia-a-dia “chão de fábrica”. Melhor dizendo, os trabalhadores tem um linguajar próprio, baseado no seu dia-a-dia, se o dirigente sindical não está em sintonia com as transformações específicas é difícil acompanhar o raciocínio dos trabalhadores e estabelecer um diálogo construtivo. São Paulo, 08 de março de 2004

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Anexos

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Roteiro de perguntas - Trabalhadores da

Petroquímica União Data: _ / _ / 05 Perfil 1 – Nome, idade, local de nascimento, profissão, estado civil e local de residência, nº de filhos, religião 2 – Qual o seu nível de escolaridade? (Considere o curso de nível mais elevado que freqüentou ou está freqüentando, em que tenha concluído pelo menos uma série) 2.1 – Você conclui esse curso? a) � Sim b) � Não 2.2 – Concluiu algum curso técnico? (equivalente ao 2º grau) Sim. Qual? _____________________________________ Não 3 – Situação do cônjuge: idade, local de nascimento, escolaridade, profissão e ocupação, religião. 4 – Dados dos pais: idade, local de nascimento, escolaridade, profissão e ocupação, estado civil, nº de filhos, religião. Trajetória de trabalho 5 – Com quantos anos você começou a trabalhar? 6 – O que significou para sua vida ter começado a trabalhar? 7 – O que você esperava para sua vida profissional, o que sonhava ser? 8 – Suas expectativas profissionais, antes de ingressar no mercado de trabalho, correspondem aos resultados conquistados na PQU? 9 – Fale sobre sua trajetória no ramo petroquímico, mostrando as passagens por outras empresas e as mudanças de cargo dentro da PQU 10 – Ao longo de sua carreira, quantas vezes você mudou de função na empresa? Quantas vezes?

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Anexos

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11 – Houve alguma mudança no espaço de trabalho? Mudança de Lay out, de setor, de cidade, etc.? 12 – Em sua trajetória na empresa, você vivenciou a situação de reestruturação produtiva? Conte quantas vezes ocorreu e como foi o processo. 13 – Como você se sentiu com as mudanças implementadas na PQU, no campo profissional e pessoal? Mudou a forma como você passou a se ver ou como passou a ser visto na empresa e fora dela? 14 – Você assumiu um novo cargo, devido ao fato de sua função na empresa ser extinta? 15 – As mudanças de função pelas quais você passou se converteram em ganho ou em perda para sua carreira? 16 – O que essas mudanças significaram para as condições de trabalho na empresa, para a vida pessoal, nas relações de família e com amigos? 17 – Percebeu alguma mudança na atitude dos vizinhos, ou de parentes devido a alteração de cargo ou função pela qual você passou? 18 – Você se sente realizado profissionalmente, ou ainda há metas por alcançar (dentro ou fora do setor onde atua no momento)? Emprego na PQU 19 – Há quanto tempo você trabalha na Petroquímica União? _ anos e _ _ meses 20 – Quantas vezes você já foi demitido (a) e readimitido(a) pela PQU? 21 – Você trabalha em regime CLT, pela PQU? 22 – Qual o mês de sua última admissão na PQU? Ao retornar à empresa mudou a relação empregatícia? 23 – Qual o seu turno de trabalho? 24 – Seu salário mensal é de : 25 – Houve mudança de patamar salarial (valorização ou desvalorização salarial)? De quanto foi a valorização e desvalorização ao longo de sua carreira na empresa?

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Anexos

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26 – Quantas horas extras, remuneradas ou não, você trabalho no mês passado? (inclui compensação de horas e/ou banco de horas) 27 – Caso você tenha trabalhado horas extras, responda: 28 – As horas extras trabalhadas foram: Remuneradas Não remuneradas e não compensadas Não remuneradas, mas compensadas Valores e Percepção sobre o trabalho 29 – Está satisfeito com a profissão que exerce ou gostaria de exercer outra? O que faltou fazer? A que atribui o sucesso ou o insucesso na carreira, o que você mudaria em sua trajetória profissional? 30 – Gostaria de ter feito outras escolhas em sua trajetória profissional? Quais? O que isso teria acarretado para sua vida? 31 – Qual a importância de sua formação profissional para o trabalho que executa? Você considera que sua escolaridade influencia sua situação de trabalho, sua posição na empresa? 32 – Lembra-se do que costumava ouvir sobre trabalho quando era criança? 33 – E hoje em dia, o que o trabalho significa pra você? 34 – O que diria a seus filhos sobre o significado do trabalho?Que conselhos daria a eles sobre as estratégias importantes para ingressar no mercado de trabalho e para se manter nele? 35 – O que é trabalho e o que é emprego? Há diferenças entre um e outro? 36 – Há diferenças entre quando você ingressou no mercado de trabalho e o momento atual? O que mudou significativamente? 37 – Identifica algum momento, na história recente, em que as coisas começaram a mudar em relação à questão do emprego e desemprego? Acha que antigamente as coisas eram diferentes? 38 – Como você definiria o mercado de trabalho hoje? O que esse quadro acarreta para a vida do trabalhador? 39 – Sua rotina de vida é influenciada pela condição de trabalho? Como você organiza sua vida, a partir de sua situação de trabalho (em turnos)?

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40 – Trabalhar é mais importante para o homem ou para a mulher? Por que? Relações com amigos 41 – Mantém um grupo de amigos no trabalho? 42 – Fora do trabalho, desenvolve atividades com essas pessoas? Que tipo de atividade? 43 – O que faz nas horas de descanso? Família 44 – A sua relação com a família (esposa, filhos, etc.) se altera em função de mudanças na realidade de trabalho? Como isso se evidencia? 45 – Quais são suas preocupações em relação ao futuro profissional de seus filhos? 46 – Em comparação com o momento em que você começou sua carreira, hoje em dia, para os jovens, é mais fácil ou mais difícil encontrar trabalho? 47 – Há diferença no modo como você e seus filhos encaram o trabalho? A que isso se deve? 48 – Como a geração de seus filhos se relaciona (ou como acha que vai se relacionar com o trabalho)? 49 – O que é importante transmitir / ensinar a seus filhos, sobre a vida profissional? 50 – Se pudesse escolher ou influenciar a escolha, faria algo para que seus filhos ingressassem no mesmo setor profissional que você escolheu? 51 – Qual a idade ideal para ingressar no mercado de trabalho? 52 – Seu (sua) companheiro (a) trabalha atualmente? Já ficou sem trabalhar, o que muda na relação quando um dos parceiros não trabalha? Religião 53 – Você tem religião? Qual o papel dela na sua vida? Existe alguma relação entre a fé e a situação de vida e de trabalho das pessoas? 54 – Quando há o apoio da religião, é mais difícil ou mais fácil enfrentar as dificuldades no mundo do trabalho?

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55 – Houve mudança no papel da religião ao longo de sua vida? Como se deu essa mudança? 56 – Em algum momento do seu percurso na PQU, as dificuldades profissionais contribuíram para que você buscasse apoio na religião? RELAÇÕES ASSOCIATIVAS Sindicato 57 – Você é sindicalizado (a)? Participa de alguma atividade no sindicato? 58 – Se sim, de que tipo de atividade você participa? 59 – Se não, quais os motivos que o (a) levam a não participar das reuniões de sindicato? 60 – Em sua opinião, qual o principal papel do sindicato na vida dos trabalhadores? 61 – Qual era o papel do sindicato quando você entrou na empresa? Esse papel se mantém ainda hoje ou mudou? SIGNIFICADO DO DESEMPREGO 62 – Como vê a questão do desemprego? 63 – Acha possível solucionar a questão do desemprego? De que modo? 64 – Pensando nos exemplos que você conhece, quais são as conseqüências do desemprego na vida das pessoas? 65 – O setor petroquímico sofre as mesmas influências do desemprego que os demais setores ou não? Destaque as diferenças 66 – Você identifica algum momento em que o desemprego passou a ser mais presente na vida das pessoas em geral? E na das que estão no setor petroquímico? 67 – Para quem o desemprego é um problema? (pessoas em geral, juventude, país, mundo?) O desemprego afeta todas as pessoas do mesmo modo ou existem certos segmentos ou grupos mais vulneráveis a ele (homens, das mulheres, dos jovens e adultos)? 68 – Quais as dificuldades típicas dos desempregados saídos do setor petroquímico? Quais os maiores desafios a enfrentar?Que estratégias uma

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pessoa do ramo petroquímico deve adotar pra sair da situação de desemprego? 69– Como seus colegas vêem o desemprego, já conversou sobre isso?

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Roteiro de perguntas – Trabalhadores terceiros Data: Entrevistado: Perfil

1 – Nome, idade, local de nascimento, profissão, estado civil e local de residência, nº de filhos, religião 2 – Qual o seu nível de escolaridade? (Considere o curso de nível mais elevado que freqüentou ou está freqüentando, em que tenha concluído pelo menos uma série) 2.1 – Você conclui esse curso? 2.2 – Concluiu algum curso técnico? (equivalente ao 2º grau)

3 – Situação do cônjuge: idade, local de nascimento, escolaridade, profissão e ocupação, religião. 4 – Dados dos pais: idade, local de nascimento, escolaridade, profissão e ocupação, estado civil, nº de filhos, religião. Trajetória de trabalho 5 – Com quantos anos você começou a trabalhar? 6 – O que significou para sua vida ter começado a trabalhar? 7 – O que você esperava para sua vida profissional, o que sonhava ser? 8 – Suas expectativas profissionais antes de ingressar no mercado de trabalho correspondem aos resultados conquistados na PQU? 9 – Fale sobre sua trajetória no ramo petroquímico, mostrando as passagens por outras empresas e as mudanças de cargo dentro da PQU.

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10 – Ao longo de sua carreira, quantas vezes você mudou de função na empresa? Quantas vezes? 11 – Houve alguma mudança no espaço de trabalho? Mudança de Lay out, de setor, de cidade, etc.? 12 – Em sua trajetória na empresa, você vivenciou a situação de reestruturação produtiva? Conte quantas vezes ocorreu e como foi o processo. 13 – Como você se sentiu com as mudanças implementadas na PQU, no campo profissional e pessoal? Mudou a forma como você passou a se ver ou como passou a ser visto na empresa e fora dela? 14 – Você assumiu um novo cargo, devido ao fato de sua função na empresa ser extinta? 15 – As mudanças de função pelas quais você passou se converteram em ganho ou em perda para sua carreira? 16 – O que essas mudanças significaram para as condições de trabalho na empresa, para a vida pessoal, nas relações de família e com amigos? 17 – Percebeu alguma mudança na atitude dos vizinhos, ou de parentes devido a alteração de cargo ou função pela qual você passou? Nesse processo em que o senhor saiu (se aposentou) e ficou sem trabalhar, sentiu diferença no comportamento das pessoas? 18 – Você se sente realizado profissionalmente, ou ainda há metas por alcançar (dentro ou fora do setor onde atua no momento)? Emprego na PQU 19 – Há quanto tempo você trabalha na Petroquímica União? 20 – Quantas vezes você já foi demitido (a) e readimitido(a) pela PQU?

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21 – O Sr. trabalhava em regime CLT, pela PQU e agora como terceiro?Qual a diferença entre uma situação e outra, como o sr compara as duas situações que vivenciou na mesma empresa? 22 – Qual o seu turno de trabalho? 23 – Houve mudança de patamar salarial (valorização ou desvalorização salarial)? De quanto foi a valorização e desvalorização ao longo de sua carreira na empresa? 24 – Seu salário mensal é de : 25 – Quantas horas extras, remuneradas ou não, você trabalho no mês passado? (inclui compensação de horas e/ou banco de horas) 26 – Caso você tenha trabalhado horas extras, responda: 27 – As horas extras trabalhadas foram: Remuneradas Não remuneradas e não compensadas Não remuneradas, mas compensadas Valores e Percepção sobre o trabalho 28 – Está satisfeito com a profissão que exerce ou gostaria de exercer outra? O que faltou fazer? A que atribui o sucesso ou o insucesso na carreira, o que você mudaria em sua trajetória profissional? 29 – Gostaria de ter feito outras escolhas em sua trajetória profissional? Quais? O que isso teria acarretado para sua vida? 30 – Qual a importância de sua formação profissional para o trabalho que executa? Você considera que sua escolaridade influencia sua situação de trabalho, sua posição na empresa? 31 – Lembra-se do que costumava ouvir sobre trabalho quando era criança? 32 – E hoje em dia, o que o trabalho significa pra você?

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33 – O que é trabalho e o que é emprego? Há diferenças entre um e outro? 34 – O que diria a seus filhos sobre o significado do trabalho?Que conselhos daria a eles sobre as estratégias importantes para ingressar no mercado de trabalho e para se manter nele? 35 – Como você definiria o mercado de trabalho hoje? O que esse quadro acarreta para a vida do trabalhador? 36 – Há diferenças entre quando você ingressou no mercado de trabalho e o momento atual? O que mudou significativamente? 37 – Identifica algum momento, na história recente, em que as coisas começaram a mudar em relação à questão do emprego e desemprego? Acha que antigamente as coisas eram diferentes? 38 – Sua rotina de vida é influenciada pela condição de trabalho? Como você organiza sua vida, a partir de sua situação de trabalho (em turnos)? 39 – Trabalhar é mais importante para o homem ou para a mulher? Por que? Relações com amigos 40 – Mantém um grupo de amigos no trabalho? 41 – Fora do trabalho, desenvolve atividades com essas pessoas? Que tipo de atividade? O que faz nas horas de descanso? Família 42 – A sua relação com a família (esposa, filhos, etc.) se altera em função de mudanças na realidade de trabalho? Como isso se evidencia? 43 – Quais são suas preocupações em relação ao futuro profissional de seus filhos?

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44 – Em comparação com o momento em que você começou sua carreira, hoje em dia, para os jovens, é mais fácil ou mais difícil encontrar trabalho? 45 – Há diferença no modo como você e seus filhos encaram o trabalho? A que isso se deve? 46 – Como a geração de seus filhos se relaciona (ou como acha que vai se relacionar com o trabalho)? 47 – O que é importante transmitir / ensinar a seus filhos, sobre a vida profissional? 48 – Se pudesse escolher ou influenciar a escolha, faria algo para que seus filhos ingressassem no mesmo setor profissional que você escolheu? 49 – Qual a idade ideal para ingressar no mercado de trabalho? 50 – Seu (sua) companheiro (a) trabalha atualmente? Já ficou sem trabalhar, o que muda na relação quando um dos parceiros não trabalha? Religião 51 – Você tem religião? Qual o papel dela na sua vida? Existe alguma relação entre a fé e a situação de vida e de trabalho das pessoas? 52 – Quando há o apoio da religião, é mais difícil ou mais fácil enfrentar as dificuldades no mundo do trabalho?

RELAÇÕES ASSOCIATIVAS Sindicato 54 – Você é sindicalizado (a)? Participa de alguma atividade no sindicato? 55 – Se sim, de que tipo de atividade você participa? 56 – Se não, quais os motivos que o (a) levam a não participar das reuniões de sindicato? 57 – Qual era o papel do sindicato quando você entrou na empresa? Esse papel se mantém ainda hoje ou mudou?

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58 – E hoje em dia, qual o principal papel do sindicato na vida dos trabalhadores? SIGNIFICADO DO DESEMPREGO 59 – Como vê a questão do desemprego? 60 – Para quem o desemprego é um problema? (pessoas em geral, juventude, país, mundo?) 61 – O desemprego afeta todas as pessoas do mesmo modo ou existem certos segmentos ou grupos mais vulneráveis a ele? 62 – Acha possível solucionar a questão do desemprego? De que modo? 63 – Pensando nos exemplos que você conhece, quais são as conseqüências do desemprego na vida das pessoas? 64 – Você acha que o desemprego afeta de maneira diferente a vida dos homens, das mulheres, dos jovens e adultos? 65 – O setor petroquímico sofre as mesmas influências do desemprego que os demais setores ou não? Quais as dificuldades típicas dos desempregados saídos do setor petroquímico e quais os maiores desafios a enfrentar? 66 – Você identifica algum momento em que o desemprego passou a ser mais presente na vida das pessoas em geral? E na das que estão no setor petroquímico? 67 – Que estratégias uma pessoa do ramo petroquímico deve adotar pra sair da situação de desemprego? Um desempregado do setor petroquímico é diferente de uma pessoa egressa de outro setor da indústria? 68 – Como seus colegas vêem o desemprego?

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Roteiros de Entrevistas – Desempregados

Roteiro básico para a primeira entrevista Objetivo Geral: Identificar se o entrevistado tem disponibilidade para participar da pesquisa e se sua trajetória de trabalho se coaduna com os objetivos da mesma Objetivos específicos: •Identificar o tempo fora da PQU •Identificar o tempo de desemprego •Identificar profissão e formação (início da vida profissional, ocupações ao longo da vida, expectativas quando do início da vida profissional) •Identificar situação familiar (estado civil, número de filhos) •Identificar pretensões de recolocação •Descobrir as primeiras estratégias declaradas de desemprego •Identificar as representações sobre o contexto do próprio desemprego (como a pessoa se vê, como acha que os outros a vêem, etc, quais os fatores que interferem, quais as conseqüências sociais) •Saber se buscou apoio numa Instituição de apoio e Solidariedade e o caminho ou a rede de informações que o levou a essa Instituição ROTEIRO DE PERGUNTAS Identificação 1 – Nome, idade, profissão, estado civil e local de residência, religião escolaridade, local de nascimento, quanto tempo trabalho na PQU? Caracterização da situação de desemprego 2 – Como e porque decidiu trabalhar no setor petroquímico? Você sempre trabalhou registrado? Fale sobre sua trajetória profissional, desde o início até o momento atual. 3 – Há quanto tempo você está desempregado? 4 – A que atribui a situação do desemprego (condições da empresa, conjuntura econômica, situação do setor, etc.)? 5 – Descrever a situação de perda do emprego. Os fatos e situações que resultaram em desemprego, como se sentia, se houve pressão dos

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superiores ou algum tipo de mudança em relação à área em que atuava, ou mudança de função, antes de sair da empresa. 6 – Buscou suporte de Instituição de Apoio e Solidariedade? Como chegou a ela? 7 – Ingressou em outro emprego na área petroquímica? E em outra área? Quanto tempo permaneceu na função? 8 – Como se vê, como se sente na situação de desemprego? 9 – Faz ou fez bicos? Quais? 10 – Qual a diferença entre fazer bicos e ter um trabalho registrado em carteira? Como se sente numa situação e na outra? Percepção sobre a situação de desemprego e sobre a experiência pessoal 11– O que identifica como sendo as maiores dificuldades para quem está sem emprego? 12 – Você poderia descrever os momentos mais difíceis que enfrentou dentro da situação de desemprego? 13 – Quais as mudanças que sente em relação à época em que trabalhava? O que é mais difícil enfrentar atualmente? 14 – Percebeu alguma mudança na atitude dos vizinhos, a partir do momento em que ficou desempregado, sente-se mais observado? 15 – Quando alguém pergunta qual a sua atividade, o que responde e como se sente? 16 – Como acha que seria possível resolver a questão do desemprego? 17 – Pensando nos exemplos que você conhece, quais são as conseqüências do desemprego para a vida de uma pessoa? 18 – Com que idade começou a trabalhar? Alguma vez imaginou que ficaria desempregado? 19 – Antes de começar a trabalhar, o que sonhava fazer? Como avalia sua trajetória profissional? Você alcançou suas metas? Cometeu falhas? 20 – Gostaria de ter feito outras escolhas em sua trajetória profissional? Quais? O que isso teria acarretado à sua vida pessoal e profissional?

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21 – Qual o seu melhor momento profissional, aquele em que se sentiu realizado e porque? 22 – Qual é a profissão dos seus pais? 23 – Se lembra do que costumava ouvir sobre trabalho quando era criança? 24 – E hoje em dia, o que significa e qual sua percepção sobre o trabalho e sobre o desemprego? Qual a concepção das pessoas sobre trabalho? 25 – Acha que existem diferenças entre trabalho e emprego? 26 – Acha que antigamente as coisas eram diferentes? Identifica algum momento, na história recente, em que as coisas começaram a mudar com relação à questão do emprego e do desemprego, especialmente no setor petroquímico? 27 – Quais as especificidades do desemprego no setor petroquímico? O mercado petroquímico é mais fácil para trabalho ou mais difícil? 28 – O desemprego afeta homens e mulheres de maneira diferente? No que? 29 – Há grupos de pessoas ou setores mais afetados pelo desemprego do que outros? Quem são e porque? Planos e perspectivas futuras 30 – Quais os seus planos ou projetos profissionais de agora em diante? 31 – Já ficou desempregado (a) por um longo tempo antes? Como se sentiu? 32 – já pensou em se mudar de cidade, ir para outro município onde tem empresas do ramo petroquímico? 33 – Pretende se manter no mesmo setor de trabalho ou mudar? Quais suas perspectivas e porque? 34 – Já ficou mais de um mês sem procurar emprego? 35 – Se sim, quais foram os motivos que o (a) levaram a parar de procurar por um tempo? 36 – Após ficar desempregado você procurou fazer um curso de aperfeiçoamento, especialização ou algo semelhante? Como se sentiu, mudou a forma como se vê?

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37 – Após ficar desempregado, chegou a assumir provisoriamente funções diferentes ou exercer atividades distintas das que teve na PQU? Relação com a família e mudanças geracionais 38 – Mudou a relação com a família? Como está a relação com o (a) companheiro (a) e com os filhos? A situação de desemprego gerou algum desconforto, ou crise? 39 – Costumava passar bastante tempo em casa antes de sair do último emprego? Qual a relação com a casa (vida doméstica), suas obrigações e funções? O que é prazeroso em casa e o que é difícil ou delicado? 40 – Qual era sua rotina em casa, antes de sair da PQU? Como é sua rotina agora que está procurando emprego? Tem horários definidos para os compromissos que assume? 41 - Você conversa sobre as dificuldades com os familiares ou pessoas próximas? 42 – E hoje em dia? Qual sua rotina, como é sua vida em casa, como é sua relação com as pessoas? Seus hábitos mudaram? 43 – Identifica alguma diferença entre o modo como você encara o desemprego e o modo de seus filhos encararem? A que se deve isso? 44 – Como a geração de seus filhos se relaciona ou como acha que vai se relacionar com a questão do emprego? Você pretende que seus filhos atuem no setor petroquímico? Por quais razões?

45 – Tem parentes que moram na mesma cidade? Recorre a eles, conta com a ajuda de alguém pra enfrentar a situação de desemprego? 46 – O que é importante transmitir / ensinar para seus filhos, sobre a vida profissional e sobre a experiência do desemprego? Existem modos ou mecanismos para evitar o desemprego?

47 – É mais fácil ou mais difícil encontrar trabalho para os jovens hoje em dia em comparação com o momento em que você começou sua carreira? 48 – Se pudesse escolher ou influenciar a escolha, faria algo para que seus filhos ingressassem no mesmo setor profissional que você escolheu? Sociabilidade 49 – Quais as pessoas que mais encontra? Você participa de algum grupo de apoio, na igreja, no sindicato, ou rede social que auxilia a procura de emprego através de oportunidades e contatos?

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50 – Matem contato com as pessoas que continuaram trabalhando na PQU? Nota alguma diferença entre o comportamento delas e o seu? Com que freqüência fala com elas? Faz comparações com relação a sua situação agora e quando estava na PQU? 51 – Você tem religião? Isso ajuda a enfrentar a questão do desemprego? Você conversa sobre essa situação com as pessoas da igreja, ou templo? 52 – O que faz nas horas de lazer? Pratica esportes ou participa de alguma atividade em grupo

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Comentários preliminares sobre as impressões de campo Nereu– 05/08/05 Quando chegava à metade do questionário, Nereu contou que antes de ser

desligado da PQU já havia se aposentado, o que alterava consideravelmente sua condição de vida. Para a pesquisa, era necessário que o funcionário tivesse ficado sem trabalho, depois de ter sido desligado da empresa. É essa situação que caracteriza a situação de uma pessoa desempregada.

Tião – 06/08/05 45 anos, casado e tem uma filha. Ingressou em um curso técnico na área de análises patológicas, mas por falta de recursos desistiu. Após ser admitido no departamento de contabilidade de uma metalúrgica, decidiu fazer contabilidade. Trabalhou na Petroquímica por 15 anos consecutivos e atua como analista contábil. Atualmente é funcionário de uma indústria do ramo metalúrgico. A entrevista com Tião propiciou uma discussão mais aprofundada sobre o tema do desemprego. Isso porque, a maior dificuldade desse trabalho tem sido encontrar pessoas que foram desligadas da PQU. No entanto, Tião não trabalhava no setor de produção e sim no quadro administrativo da empresa. De qualquer modo, pôde falar o que a situação de desemprego significou para sua vida, considerando que vinha de uma experiência de cerca de 15 anos numa empresa que lhe proporcionava estabilidade financeira. Ele pontua bem as dificuldades de se adequar ao novo modo de procurar emprego – pelo meio virtual. Reclama que não há mais lugar onde se possa procurar emprego. Nesse caso, refere-se ao espaço, lugar de luta por oportunidade de trabalho, uma vez que as empresas utilizam mecanismos virtuais de recrutamento. Até determinada altura da seleção, os profissionais não conhecem de perto a empresa e as pessoas que organizam o processo seletivo, o que, de sua perspectiva, faz com que os candidatos às vagas se submetam a critérios de escolhas desconhecidos. Além disso, comenta sobre a tensão no ambiente de trabalho, o excesso de exigências e a mudança de comportamento dos colegas, no período dos cortes, em decorrência da privatização.

Jota – 19/08/05 Jota foi o entrevistado que se enquadrou perfeitamente na categoria dos desempregados. É ex-funcionário da PQU, e está desempregado desde janeiro de 2005. No entanto, sua entrevista foi bastante tensa. Pelo que percebi havia uma relutância em responder as perguntas e discutir abertamente as dificuldades de sua condição de desempregado. Parece ser uma pessoa fechada, mas tive a

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impressão de que, admitir a condição de desempregado era difícil, seria como admitir as fragilidades de sua situação de vida no momento atual. Por isso, evitou discutir profundamente o assunto, sobretudo quando me referia ao modo como se sentia na situação recente. Está buscando recolocação no mercado e, embora pareça um pouco desanimado, esforçou-se no sentido de transparecer confiança de que irá encontrar um novo espaço no mercado de trabalho. Em sua fala o desemprego não parece uma ameaça, mas algo com que temos que conviver com tranqüilidade.

Zinho –1/09/05 Zinho foi indicado por um funcionário efetivo da PQU. Já de cara, estava disponível pra falar. Assim, no primeiro contato, por telefone, marcamos a entrevista para o dia seguinte. Mora em Ribeirão Pires, cidade em que reside boa parte de seus parentes. Não demonstra pesar por ter saído da PQU. Pelo contrário, embora tenha saído de uma situação de estabilidade para outra que não lhe oferece garantias, sente-se feliz, confortável, e, em certa medida, realizado em termos pessoais e profissionais. A saída da PQU foi condição sine qua non, um importante impulso para que ele enveredasse no campo profissional em que desejava atuar. Conta que sua experiência na situação de desemprego foi extremamente difícil. Diz que foi como um abismo, como um “branco” que dá em nossa mente, ausência de soluções, de norte, de respostas. “Você não consegue imaginar nenhuma saída, não consegue traçar metas para enfrentar as dificuldades”. Ele diz que só sentia vontade de dormir. Mal conversava com sua esposa sobre assuntos ordinários. Encerrou-se em seu quarto por um pouco mais que quatro semanas. Depois disso, resolveu pedir uma oportunidade na vaga de vendedor, na concessionária de carros de seu primo em Ribeirão mesmo. Daí em diante, não deixou mais o ramo de vendas, de onde não pretende sair mais.

Dida – 2/09/05 Dida foi muito contundente em seu depoimento. Vê a Petroquímica de forma peculiar, da perspectiva de uma pessoa que tem mais autonomia pra pensar a empresa, tem seus próprios conceitos sobre o modo de funcionamento da PQU e, desde o começo, não reconhecia de boom status trabalhar lá. Descreve com desprendimento o cotidiano do trabalho na PQU e as relações de trabalho ali envolvidas. Avalia que o trabalho na empresa envolve responsabilidade e tensão, dados os riscos concernentes à atividade petroquímica. São reatores, sistemas de alta tensão, reações químicas em cadeia de toneladas de substâncias e o sistema de trabalho em turnos. Descreve os momentos de algazarra que os

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funcionários tinham, como uma forma de amenizar o clima de tensão. Afirma que foi literalmente ‘roubado’ pela empresa, uma vez que comprou ações da PQU, no período de privatização, e essas ações foram transformadas em ações sem valor nominal em bolsa – ou seja, não negociáveis em bolsa. Considera que o trabalho do sindicato beneficia alguns dirigentes e não a classe trabalhadora em geral. Tem capacidade empresarial, está despido da postura de um trabalhador, fala da perspectiva de um empresário, uma vez que atua no setor empresarial.

Pepeu – 21/09/05 A entrevista com Pepeu foi emblemática, talvez, pudesse dizer chocante mesmo. Sobretudo porque ele começa dizendo que trabalhou por 8 anos como escravo. Eu sinalizei pensar que era força de expressão, no entanto, Pepeu explicou que havia trabalhado dos 14 aos 22 anos com seu pai, numa condição que considera ser a de um escravo. Ele não recebia salário ou qualquer tipo de remuneração pelas horas trabalhadas, o pai o tratava como capacho e fazia com que se sentisse incapaz, incompetente. A partir dos 23 anos trabalhou fazendo bicos, trabalhos temporários, tendo ficado 2 anos sem ocupação alguma. Descreve esses dois anos como sendo extremamente difíceis para ele, “não tinha vontade de acordar, de levantar, muito menos sentia força pra buscar soluções”. O mais impressionante é entender como foi possível transitar da situação que caracteriza como sendo a de escravo, dependente, situação em que sua auto-estima estava ferida, para a de pessoa autônoma, capaz de encontrar seu próprio caminho, de ser senhor de seus desejos e de sua vontade. Aos 29 anos ele ingressou na Petroquímica, período em que foi possível estruturar sua vida, do ponto de vista material. Comprou casa, carro e começou a investir no sonho de ter seu próprio negócio. Outro aspecto curioso e que surgiu para mim como um desafio foi conciliar o que o entrevistado entende com autonomia com a situação de desemprego, desesperança e desesperança, condição pela qual passam diversos trabalhadores e assalariados no Brasil e no mundo. O mesmo sistema que gera desemprego, concentração de renda, desigualdade é o que permitiria a cada um uma vida livre e autônoma. Como conciliar esses dois universos que parecem tão díspares e que foi delineado pelo depoimento do entrevistado sobre sua experiência pessoal de trabalho e de vida?

Guga – 17/10/05 Guga foi indicado por outro colega dos tempos da PQU. Sua entrevista é pontuada por uma análise crítica ao processo de privatização feito no Brasil. Mas

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não só, ele fala também das exigências do mercado, que ora vão pra um lado ora vão pra outro diametralmente oposto. Discute a confusão que essas tendências diversas geram aos perfis de trabalhadores e trata da angústia que foi o processo imediatamente anterior à privatização. A dificuldade em jogar fora, em se despir da cultura adquiria na empresa ao longo de 20 anos e adotar a avalanche de novos códigos sociais que invadem a empresa. A cultura do funcionário MBA, fluente em inglês e francês não se coaduna com a do funcionário que dá a vida á empresa. Para ele, a princípio, parecem dois mundos inconciliáveis. Ele utiliza o termo ‘assédio moral’ pra explicar o trauma que as mudanças de condução, que exigem novos comportamentos, que obrigam as pessoas a se desimcumbirem de tudo o que aprenderam ao longo de anos, de uma hora pra outra como se fosse uma tarefa simples. A indenização que recebeu pelos tempos de casa não lhe garantiu tranqüilidade emocional. Vivendo como pequeno empresário, sem condições de capitalizar seu negócio, sofre com as incertezas e afirma que passa por momentos de insegurança que diz serem semelhantes às de uma pessoa desempregada ou que faz bicos. Sua renda caiu consideravelmente e não tira férias desde que saiu da PQU.

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Theo – 15/06/05.

Casado, tem uma filha e mora em São Bernardo Antes de ser entrevistado Theo entrou em contato com a PQU para ter

certeza se eu havia entrado em contato com a empresa antes de abordá-lo. O fato de eu ligar para ele durante o período de férias, em sua casa, levantava a suspeita de que eu poderia estar blefando. A entrevista decorreu com tranqüilidade, mas fiquei um pouco desconfiada pelo fato de Theo sempre se colocar com um otimismo inabalável, como se não corresse nenhum tipo de risco, como trabalhador. Suas colocações sobre o mercado de trabalho dão a ideia de pouca reflexão sobre a realidade do mercado de trabalho brasileiro: instável e inseguro. Em todas as colocações ele foi sempre otimista, tem uma visão ‘pouco realista’ sobre o desemprego.Talvez isso se explique pelo fato de o mercado petroquímico ser uma exceção, em comparação com os demais setores da indústria mas, de todo modo, as reflexões sobre o mercado de trabalho parecem superficiais. Não se sente pertencente à classe trabalhadora.

Beto – 28/07/05 Casado, tem 3 filhos, vive em São Paulo

Beto destacou-se entre os entrevistados que expressam com clareza sua crítica ao mundo do trabalho. Antes de ingressar na PQU tinha passado pelo setor bancário, onde percebeu que as escassas oportunidades de crescer em sua carreira - apesar da dedicação às atividades - poderiam ter correlação com o fato de ser negro. Desde 1988 na PQU, atua no setor de Utilidades depois de ter passado por outras funções, mas permanece no cargo de operador I desde quando ingressou na empresa. Embora se considere um funcionário dedicado, afirma que não expandiu seus estudos por causa que a vida em família não admite mais ausências além das que sua vida de trabalhador de turno lhe impõem.

Vlad –1/08/05 Casado, tem três filhos e vive em Santo André

Vlad começou a trabalhar muito cedo, aos 9 anos, e tem uma visão bastante otimista sobre o trabalho. Demonstra ter ideias próprias não somente em relação ao campo de trabalho, mas em relação à situação econômica do País. Faz análises peculiares sobre a conjuntura, com base no conhecimento que adquiriu por meio da experiência de vida. Antes de começarmos a entrevista ele já começou a discutir política e economia, lançando teses bem argumentadas. Sua fala mostra lucidez em relação ao mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que o entrevistado tem muita confiança em relação ao seu futuro. Confia que o trabalho que desenvolve seja bem avaliado pela empresa. De sua perspectiva, sua trajetória profissional se constitui a partir de diversas experiências bem

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sucedidas que teve. Bira – 04/08/05

Casado, tem dois filhos e vive em Ribeirão Pires Coerência e equilíbrio marcam essa entrevista em que o respondente avalia

as limitações que têm num trabalho de turno. João demonstra que sua ida para o mercado petroquímico foi a realização de um sonho. Mesmo assim, sabe que o trabalho em turno limita sua vida social, tanto com a família quanto com os amigos, mas considera que é uma característica intrínseca ao trabalho, por isso não reclama. Demonstra segurança na atividade que desenvolve e confiança no futuro. É um dos poucos entrevistados que tem uma visão de que o sindicato é importante na luta pelos direitos dos trabalhadores. Mesmo estando conciliado com sua escolha profissional, consegue analisar o processo de reestruturação e o de privatização com crítica e lucidez. Considera que o desemprego é uma variável que desorganiza a vida do trabalhador.

Ito – 13/08/05 Casado, não tem filhos, mora em São Bernardo

A única das entrevistas feita fora do ambiente doméstico – na Faculdade Osvaldo Cruz, onde Itoestuda engenharia química. Ele é, talvez, o mais bem sucedido entre os entrevistados efetivos na PQU. Galgou posições de comando na hierarquia da empresa, com relativa rapidez – média de três anos entre um posto e outro – e tem um discurso bem alinhado ao empresariado sobre o destino profissional dos trabalhadores. Atribui aos trabalhadores a responsabilidade sobre seu próprio destino – tanto o sucesso quanto o insucesso e não considera importante a atuação do sindicato na vida dos trabalhadores. Rogério, mais claramente que os demais, demonstra não se sentir pertencendo à classe trabalhadora, não demonstra se identificar com a classe.

Cacá – 26/08/05 Casado pela segunda vez, tem filhos e enteados, mora em Santo André

Embora não tenha se dedicado aos estudos formais, Roberto galgou posições de comando devido à sua dedicação e habilidade manual e atua como supervisor da manutenção – setor que mais sofreu com o processo de reestruturação da empresa. Apesar disso, defende os interesses da empresa e não tem uma visão crítica do processo de reestruturação. Considera tudo “natural” e conseqüência da conjuntura global. Em sua opinião, o desemprego é decorrência do comportamento de cada trabalhador, mesmo ponderando que não tem espaço pra todo mundo no mercado, garante a vaga quem trabalha conforme as regras da empresa. Não tem uma reflexão sobre as lutas dos trabalhadores e acha que o sindicato atrapalha a vida do trabalhador.

Doda – 20/08/05 Casado, tem dois filhos e mora entre Mauá, Santo André e São Paulo

Doda é funcionário da PQU há 30 anos. Sua história na empresa está marcada por uma atuação bem-sucedida como funcionário. Tem orgulho de estar na

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empresa por três décadas e sente-se colaborador. Acha que a empresa valoriza seu capital humano, pondera que a privatização e os processos de mudança eram necessários para que a empresa se mantivesse de pé. As crises pelas quais a empresa passou são lembradas como momentos difíceis, mas superáveis. Doda considera que faz parte de uma empresa de grande valor e, junto com sua esposa, afirma que a PQU foi pra ele uma mãe. Algumas razões citadas por ele são: boa remuneração, pelo fato de receber cursos de especialização e a outra por ter o direito de se aposentar por período indeterminado por problema de saúde, recebendo remuneração integral. “Que empresa é que hoje em dia faz isso?”. Ele se aposentou, mas continua no quadro da empresa como funcionário.

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