Desencontros Entre Aprender e Ensinar

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Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE CEPPAS, Filipe. Desencontros entre ensinar e aprender filosofia. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 15, nov/2010-abr/2011, p. 44-54. DESENCONTROS ENTRE ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA Filipe Ceppas 1 RESUMO: Uma apresentação sumária de possíveis definições de ensinar e aprender filosofia e seus desencontros, com ênfase nas ideias de transmissão, orientação, encenação e "falar em nome próprio". PALAVRAS-CHAVE: ensino de filosofia, transmissão, aprendizagem, falar em nome próprio. RESUMEN: Una presentación sumaria de posibles definiciones de enseñar y aprender filosofía, y de sus desencuentros, con énfasis en las ideas de transmisión, orientación, encenación y «hablar en nombre propio». PALABRAS CLAVE: enseñanza de filosofía, transmisión, aprendizaje, hablar en nombre propio. 1. Ensinar O professor, o único digno desse nome, o bom professor, segundo os alunos, seria aquele que sabe passar a matéria, aquele que passa bem a matéria. O professor, aquele que supostamente sabe como fazer e como fazer bem. A verdadeira transmissão do professor não é uma mera transmissão, é uma boa transmissão. Ele passa bem e ele passa bem alguma coisa, a matéria. Não é só esse "passar bem" que é misterioso na definição comum, mas também "a matéria". Há, sem dúvida, algo de material em ação na transmissão do professor: uma voz, os gestos, o corpo mesmo do emissor-professor e o do receptor-aluno, o quadro, o livro… Mas a matéria que o professor passa ou transmite não é, propriamente, matéria: são ideias, conteúdos, modos de resolver problemas, de falar apropriadamente, de como se deve ou não se deve falar sobre determinado assunto, modos de escrever, de pensar. O "conteúdo" de um curso não é nunca algo que cabe inteiramente num texto ou numa fala autônoma. Ele é também (e 1 UFRJ FE / PPGF – [email protected]

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Desencontros Entre Aprender e Ensinar Filosofia

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  • Revista Sul-Americana de Filosofia e Educao RESAFE

    CEPPAS, Filipe. Desencontros entre ensinar e aprender filosofia. Revista Sul-Americana de

    Filosofia e Educao. Nmero 15, nov/2010-abr/2011, p. 44-54.

    DESENCONTROS ENTRE ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA

    Filipe Ceppas1

    RESUMO: Uma apresentao sumria de possveis definies de ensinar e

    aprender filosofia e seus desencontros, com nfase nas ideias de transmisso,

    orientao, encenao e "falar em nome prprio".

    PALAVRAS-CHAVE: ensino de filosofia, transmisso, aprendizagem, falar em

    nome prprio.

    RESUMEN: Una presentacin sumaria de posibles definiciones de ensear y

    aprender filosofa, y de sus desencuentros, con nfasis en las ideas de transmisin,

    orientacin, encenacin y hablar en nombre propio.

    PALABRAS CLAVE: enseanza de filosofa, transmisin, aprendizaje, hablar en

    nombre propio.

    1. Ensinar

    O professor, o nico digno desse nome, o bom professor, segundo os

    alunos, seria aquele que sabe passar a matria, aquele que passa bem a matria. O

    professor, aquele que supostamente sabe como fazer e como fazer bem. A

    verdadeira transmisso do professor no uma mera transmisso, uma boa

    transmisso. Ele passa bem e ele passa bem alguma coisa, a matria. No s esse

    "passar bem" que misterioso na definio comum, mas tambm "a matria". H,

    sem dvida, algo de material em ao na transmisso do professor: uma voz, os

    gestos, o corpo mesmo do emissor-professor e o do receptor-aluno, o quadro, o

    livro Mas a matria que o professor passa ou transmite no , propriamente,

    matria: so ideias, contedos, modos de resolver problemas, de falar

    apropriadamente, de como se deve ou no se deve falar sobre determinado

    assunto, modos de escrever, de pensar. O "contedo" de um curso no nunca

    algo que cabe inteiramente num texto ou numa fala autnoma. Ele tambm (e

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    UFRJ FE / PPGF [email protected]

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    talvez naquilo que ele tem de mais essencial) performativo. O que significa dizer

    que o professor o transmite?

    Segundo o antigo dicionrio da lngua portuguesa, imprenso em Lisboa em

    1849, de autoria de Eduardo de Faria, "transmitir" definido, muito simplesmente,

    como "deixar passar alm" ("o vidro e os corpos transparentes transmitem a luz").

    Essa singela definio, colada que est etimologia da palavra,2

    reinando

    soberana no velho dicionrio,3

    diz que transmitir no passar, mas deixar

    ultrapassar (deixar passar alm). Todo o mistrio do ensino pode ser explorado a

    partir dessa definio.

    H, na transmisso, uma travessia a ser percorrida, um trans, um mais alm

    a ser alcanado, uma ultrapassagem. Em que direo segue essa ultrapassagem?

    comum pensar que o professor deve ajudar os alunos a passarem de um "estado

    de no saber", relativo a determinado assunto, a um "saber", "matria". Pensamos

    a transmisso do saber como sendo um ir mais alm do no saber. Mas, se

    traduzimos a expresso "transmisso do saber" de modo mais preciso, apenas

    substituindo "transmitir" por "deixar passar mais alm", transmitir o saber deixar

    passar mais alm do saber ele mesmo, e no mais alm do "no saber", ou da

    ignorncia. Ensinar sempre caminhar em direo a um desconhecido.

    Essas ideias encontram eco na tradio da filosofia. Uma das virtudes

    atribudas ao mtodo socrtico a de mostrar que no sabemos verdadeiramente

    aquilo que acreditamos saber. Neste sentido, o bom professor aquele que nos

    faria ir mais alm de um "suposto saber", coincidindo com nossa definio inicial

    de transmisso. Tambm para Hannah Arendt, a transmisso da cultura s

    geraes mais novas, a preservao do velho mundo que a est, se d

    essencialmente em funo da possibilidade do surgimento do novo. Este seria

    outro modo de pensar a transmisso como um ir mais alm do saber. Por fim,

    Nietzsche toma a divisa de Emerson para ilustrar outra ideia prxima da

    educao como sendo uma ultrapassagem do saber: "um homem nunca se eleva

    2

    "Transmitir" deriva de transmittere, um composto do verbo latino mittere, cujo significado

    originrio remete ideia de "deixar ir", "lanar" e, a partir da, "enviar". Por associao com a

    preposio trans, que indica "mais alm", adquire o sentido de fazer chegar um contedo,

    basicamente lingstico, a outro." (CASTELLO & MRSICO, 2005, pp.39-40) 3

    Apenas sucedida pelos verbos enviar e participar: ordens ou despachos.

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    mais alto seno quando desconhece para onde seu caminho poderia lev-lo"

    (Emerson, apud NIETZSCHE, 2003, p. 141).

    estranho pensar a transmisso como uma espcie de salto no escuro, um

    "deixar passar mais alm do saber". Os alunos falam de passar a matria, e ns

    somos forados a traduzir isso, a partir de nossa definio inical, como "deixar

    passar mais alm da matria", isto , fazer o aluno ultrapassar a matria.

    Ultrapassar a matria, elevar-se, superar obstculos: um curso no vai bem, os

    alunos no aprendem. O professor deixa passar: ajuda a passar mais alm. O

    professor deixa passar, ele mesmo no passa: so os alunos que vo alm, "passam

    de ano" e ultrapassam o professor, uma vez que aprender no repetir exatamente

    aquilo que o professor diz, ou fazer exatamente o que professor faz. O corpo

    docente em sua materialidade o prprio obstculo. Mas o corpo do professor

    um corpo transparente, que deixa passar a luz. Todos conhecemos a falsa

    etimologia da palavra "aluno": o "sem-luz". Seguindo nossa definio, o aluno , ao

    contrrio, luz, e uma luz que ultrapassa o corpo transparente do professor, seu

    corpo de vidro. s vezes o professor no est passando bem. Mas o professor que

    passa bem a matria o professor que deixa que o aluno o ultrapasse. O professor

    um pouco suicida.4

    Ele morre para que o aluno nasa, para que o aluno

    ultrapasse a matria em direo ao que no matria.5

    Mas por que deveramos nos apegar a essa definio, mais originria,

    etimolgica, de um velho dicionrio? Os dicionrios atuais, como o Houaiss,

    registram muitos outros sentidos para o verbete transmitir: conduzir e propagar (o

    metal transmite calor); emitir ou exalar (o jasmim transmite um agradvel aroma);

    dar posse de algo a algum (transmitir um cargo ou uma herana); fazer herdar

    algo que se tem (transmitir os gens ou o amor pela arte); destinar ou enviar

    (transmitir uma ordem ou uma mensagem); comunicar (transmitir uma notcia);

    fazer sentir (a sua presena me transmite calma), e, por fim, contagiar (transmitir

    4

    Ver MERON, 2009. 5

    E o que seria a morte do professor, a morte em geral, segundo as mais diversas tradies,

    sobretudo a platnica e a crist, seno uma asceno e libertao com relao matria, "infecta

    carne humana", nas palavras de Scrates, ao final do Banquete?

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    uma doena). Muitos desses sentidos podem ser igualmente boas metforas para o

    ensino como transmisso, em especial a propagao, o fazer sentir e o contagiar.

    No raro pensar o ensino de filosofia no registro da propagao, do fazer

    sentir e do contgio. Se o tomamos como a transmisso de uma relao com o

    saber, mais do que de qualquer contedo especfico, o professor algum que

    propaga uma certa ateno, uma certa postura investigativa, de modo semelhante

    ao metal transmitindo calor. O professor contagia o aluno. De Scrates a

    Wittgenstein, a filosofia e sua transmisso so pensadas sob a forma de contgio,

    seja pela mania, pela interveno de um daimon, seja mesmo como uma doena

    da qual devemos nos curar. E se a relao com o saber prpria filosofia , por

    definio, uma relao fraterna, amorosa, neste sentido, transmitir a filosofia

    tambm, necessariamente, fazer sentir. No nunca uma relao apenas

    intelectual, cognitiva.

    At aqui, estivemos apenas seguindo aquilo que os alunos dizem que

    ensinar, a ideia do professor-transmissor: o professor que "sabe passar a matria",

    que "passa bem a matria". Mas a transmisso ela mesma um sentido derivado

    de ensinar. Porque o sentido mais originrio de ensinar , antes, "colocar um signo

    de orientao":

    "Ensinar" vem de insignare, literalmente "colocar um signo",

    "colocar um exemplo". A base do termo a raiz indo-europia

    *sekw, cujo significado "seguir", de modo que signum, o

    principal formador de insignare, remete ao sentido de "sinal",

    "signo", "marca" que preciso seguir para alcanar algo. O "signo"

    , ento, "o que se segue", e "ensinar" colocar sinais para que

    outros possam orientar-se (Castello & Mrsico, 2005, p. 37)

    Os professores costumam sentir-se mais confortveis aqui: nada de corpo de

    vidro, de luzes atravessando e misteriosas ultrapassagens. Aqui, ao contrrio, o

    professor um pouco como o guarda de trnsito. Sobretudo, nada de

    ultrapassagens perigosas! O professor d signos, indica caminhos, controla o

    trfego. Ponto final.

    Mas "colocar um signo", "dar sinais", tambm no algo assim to

    protocolar. Quem est autorizado a dar sinais? O bom professor seria aquele capaz

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    de orientar bem, sinalizar bem o caminho. Mas o que o bom professor, que ensina,

    sabe de sua arte de ensinar, de sua arte de dar sinais? Ao final do Mnon, Scrates

    afirma que aquele que tem apenas uma opinio correta do caminho no pior

    guia do aquele que tem cincia, que conhece o caminho. Num determinado

    momento, Scrates sugere que a cincia no mais do que o encadeamento de

    opinies verdadeiras, que se consegue atravs da rememorao. Mas a opinio

    verdadeira no , inicialmente, da ordem da cincia. Os homens bons, que

    administram corretamente a cidade, tm opinies verdadeiras, mas no tm

    cincia, no as compreendem, eles no so "em nada diferentes, em relao ao

    compreender, dos pronunciadores de orculos e dos advinhos inspirados" (99c).

    Por esta via, retomamos o sentido do contgio.

    O Mnon um dilogo centrado na questo da possibilidade de se ensinar

    a virtude. Trata-se de um dilogo aportico, de tal modo que no encontramos

    uma resposta definitiva questo. Mas h uma conjectura que Scrates no

    abandona, de que os homens bons no podem ser mestres da virtude, porque eles

    no possuem uma cincia. Ainda assim, tal como aquele que capaz de guiar os

    outros corretamente pelo caminho a Larissa, tendo apenas uma opinio correta

    acerca deste caminho, mas sem conhec-lo, sem nunca ter ido a Larissa, os

    homens bons parecem ser bons guias, porque agem de modo virtuoso e tm uma

    opinio correta acerca da virtude. Eles do sinal. Mas Scrates nega que eles

    possam ensinar a virtude.6

    6

    Scrates, no Mnon, avana a hiptese de que s seria possvel ensinar a virtude caso esta fosse

    uma cincia (episteme). Mas, procurando responder pergunta acerca da possibilidade de ensinar a

    virtude, ele perfaz um longo caminho para demonstrar que o seu conhecimento s seria possvel

    caso admitssimos que no sabemos o que a virtude, que no temos essa cincia. "acreditando que preciso procurar as coisas que no se sabem, seramos melhores, bem como mais corajosos e

    menos preguiosos do que se acreditssemos que, as coisas que no conhecemos, nem possvel

    encontrar nem preciso procurar" (86b-c) Neste passo, Scrates foge da aporia de Mnon, quando este diz que s poderamos procurar conhecer algo que j conhecamos. ("de que modo procurars, Scrates, aquilo que no sabes absolutamente o que ? Pois procurars propondo-te

    que tipo de coisa, entre as coisas que no conheces? Ou, ainda que, no melhor dos

    casos, a encontres, como sabers que isto aquilo que no conhecias?" 80d). A

    passagem do escravo de Mnon demonstra que este j conhecia como calcular o dobro do

    quadrado, mas que no sabia que tinha esse saber. Ningum ensinou nada ao escravo. E Scrates

    tampouco o faz. Assim, se conhecemos a virtude, do mesmo modo que o escravo conhece o dobro

    do quadrado, ningum ser capaz de ensin-la a ns. Podemos apenas nos colocar no movimento

    de conhecer-rememorar aquilo que sabemos, mas que no sabemos que sabemos. Mas esse saber

    ele mesmo no parece ser ensinvel.

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    Scrates faz intervir a questo da verdade, da opinio verdadeira, na

    pergunta pela condio para ensinar a virtude, e, como vimos, ele mesmo

    relaciona aquele que possui uma opinio verdadeira aos orculos e advinhos.

    Ensinar, neste caso, seria dar sinal, num sentido prximo s investigaes de

    Heidegger respeito da verdade, o desvelado. Ao contrrio da ideia de ensinar

    como transmitir, como "deixar passar mais alm do saber" ou "mais alm da

    matria", o caminho do desvelamento , antes, uma imerso no saber e na

    matria, na physis. Em Os conceitos fundamentais da metafsica, Heidegger

    apresenta o fragmento 93 de Herclito ("O senhor [Anx], cujo orculo est em

    Delfos, no enuncia, nem esconde, mas d um sinal") e afirma:

    O que h de mais elevado em todas as coisas, de cujo homem

    senhor, dizer o desvelado, e, juntamente com isso, agir kat

    physis; isto , inserir-se e apresentar-se na vigncia total e no

    destino do mundo em geral. (p.35)

    Ensinar, dar sinais, neste sentido, buscar a compreenso do homem como

    o ser-a da natureza, da physis, que Heidegger traduz como vigncia auto-

    instauradora do ente na totalidade; nada mais distante disso do que a imagem do

    professor como aquele que apenas bem orienta o caminho a seguir.

    H uma ltima concepo de ensinar que seria preciso apresentar aqui,

    contrapondo-a s outras quatro que acabamos de ver (deixar ultrapassar,

    contagiar, orientar, desvelar): ensinar pode ser, tambm, uma encenao, um

    compartilhar signos, um exerccio simultneo, tambm, de eventual propagao e

    contgio, mas sobretudo de criao e desconstruo. Ensinar pode ser abrir um

    dilogo livre com os saberes, com a tradio, o convite para um exerccio de

    pensamento o mais livre possvel de qualquer amarra institucional. Aqui, a figura

    do professor no a daquele que professa, que proclama, e no tem como

    finalidade a ultrapassagem dos alunos, ou sua orientao, nem mesmo o desvelar

    do sentido do ser. Mais prximo fbula, o ensino aqui uma encenao coletiva,

    onde as funes de ator e plateia so a todo momento trocadas, no apenas entre

    professor e alunos, mas tambm entre o estudante e o estudado.

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    Quando lemos um autor, por exemplo, partimos geralmente do princpio de

    que iremos entend-lo segundo sua ordem das razes, isto , que, aps algum

    esforo, seremos capazes de julgar seus textos, encontrar suas lacunas e suas

    virtudes, reconhecer o que o autor quis dizer, ainda que ele no o tenha dito, etc.

    Sobretudo na tradio da histria da filosofia e do comentrio do texto, dominante

    entre ns, a filosofia , em grande medida, essa arena em torno do juzo correto,

    por mais que sejamos modestos, cticos ou precavidos, e o professor o guardio

    da chave desse juzo correto. Mais prximo imagem de uma arte adivinhatria

    (sem nenhum compromisso programtico com a verdade, seja entendida como

    correspondncia, seja como o desvelado), o ensino como encenao poderia

    explorar, antes, a pergunta sobre como os textos nos compreendem; quais os

    signos que eles nos do para nos lermos a ns mesmos e o mundo, um pouco

    como as cartas de um tarot.

    2. Aprender7

    Aprender filosofia. Como comear a pensar em tema to genrico sem, por

    um lado, cair nos insuportveis lugares comuns ou, por outro, fazer um mero

    inventrio de idiossincrasias de um percurso pessoal? Na verdade, o principal lugar

    comum sobre o aprendizado da filosofia nos arremessa imediatamente no

    inventrio pessoal: a ideia de que cada perspectiva filosfica engendra sua prpria

    concepo do que seja aprender filosofia faz com que falar sobre o aprendizado da

    filosofia seja falar desde uma determinada perspectiva, com a qual nos

    identificamos: hermenutica, analtica, frankfurtiana, deleuziana etc. Para

    tentarmos escapar a essa delimitao, via de regra recamos em outros lugares

    comuns: no possvel seno aprender a filosofar, ou no se aprende filosofia na

    universidade. E acabamos convocando os autores para falar por ns, para dizer o

    impossvel: aquilo que seria, para ns, o aprendizado da filosofia.

    7

    Algo do que aqui se diz sobre aprender filosofia poderia ser posto em dilogo com (ou em parte

    inspirado por) aquilo que Julio Cabrera desenvolve acerca da produo filosfica em nosso pas,

    em seu livro Dirio de um filsofo no Brasil (Cabrera, 2010).

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    No tenho nenhuma ideia grandiloquente relativa ao aprendizado da

    filosofia. Ou, melhor, tenho um quase nada, provavelmente decepcionante:

    aprendemos filosofia a cada filosofema sobre o qual nos debruamos, a cada

    pensamento que cultivamos sobre a vida, as coisas, o ser, o no-ser, a morte, etc,

    independente de perspectivas, critrios e parmetros comumente identificados com

    "a filosofia". "O professor" pode dizer que isso no basta, que a filosofia exige rigor;

    que a filosofia isso e a filosofia aquilo; que um pensamento s no faz vero. Pode

    ser. Mas, francamente, isso no me interessa. No que ela tem de melhor, a filosofia

    , sobretudo, uma ateno, um exerccio que se d a cada um segundo o acaso de

    seus encontros, com um pensamento, um livro, um amor. um exerccio varivel,

    que gira em torno da verdade como um incessante jogo de velamento e

    desvelamento, e de resistncia a uma vida que nos amesquinha. E o prprio jogo

    da filosofia s vezes nos amesquinha, como Nietzsche e outros no cansaram de

    denunciar.

    Esse quase nada j muita coisa. No sei se sou capaz de dizer muito mais

    do que isso sobre essa questo to difcil: girar em torno da verdade, resistir

    cretinizao geral da vida. Seria mais fcil se nos apoissemos diretamente em um

    autor, em um pensador: Herclito, Scrates, Descartes, Rousseau, Foucault, Quine,

    qualquer um Deix-los falar e, como de praxe, pontuar essas falas com o

    intuito de aprender alguma coisa. Mas aprender filosofia talvez seja tambm, e

    sobretudo, aprender a "falar em nome prprio" e isso, de fato, ns no

    aprendemos a fazer: enfrentar a verdade desarmados, despojados da erudio.

    Impossvel despojar-se totalmente, claro. Nesta rpida e superficial caracterizao

    do que seja, para mim, aprender filosofia, por exemplo, no consegui deixar de

    fazer referncias a Heidegger e a Foucault. E o que eu sei de Heidegger? Pouco,

    muito pouco. E, ainda assim, no imagino ser possvel pensar o conceito de

    verdade sem levar em conta a ideia de um jogo de velamento e desvelamento. O

    que eu sei de Foucault? Pouco, muito pouco. Mas, ainda assim, parece impossvel

    deixar de pensar que esse enfrentamento da verdade um exerccio de resistncia,

    de compreenso das formas de subjetivao que nos constituem e nos assujeitam.

    Etc. Aprender filosofia no tem como finalidade saber repetir o que se sabe e o que

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    no se sabe, nem mesmo saber, enfim, "apresentar uma questo original", mas

    estar alerta, atento, capaz de avanar o pensamento uma vez que uma questo

    esteja posta.8

    A questo que nos propusemos trabalhar, aqui, foi a dos desencontros entre

    ensinar e aprender filosofia e para isso foi preciso qualificar, de algum modo,

    ensinar e aprender filosofia. Consideremos, agora, brevemente, essa ideia de que

    aprender filosofia , naquilo que ela tem de mais essencial, aprender a falar em

    nome prprio, girando em torno da verdade e resistindo ao que nos amesquinha.

    Mas que definio mais iluminista! poder-se-ia retrucar: O que "falar em nome

    prprio"? Como, depois de ler Derrida, por exemplo, sustentar uma ideia to

    problemtica? E o que significa "girar em torno da verdade"? E o que voc quer

    dizer quando afirma que a vida nos amesquinha? J vemos onde esse quase

    nada nos leva.

    Sem dvida, o nome prprio, a noo mesma de propriedade um

    conceito antinmico. Um nome sempre dado por algum, nunca prprio. Ou,

    segundo Lvi-Strauss, "nunca se d um nome: classifica-se o outro ou classifica-

    se a si mesmo" (Pensamento Selvagem, apud DERRIDA, 1973, p. 135). Como

    ressaltou Derrida na Gramatologia, apesar de ter formulado esse princpio

    fundamental para a antropologia, Lvi-Strauss acaba por ignor-lo em sua anlise

    dos Nhambiquaras, em Tristes Trpicos, ao sugerir que a proibio, que os ndios

    se impem com extremo rigor, de revelar seus nomes prprios ao antroplogo,

    fornecendo a ele apenas apelidos ou "nomes fantasias", uma estratgia de

    preservao de uma inocncia original, mais prxima natureza e distante da

    banalizao dos signos, comum s sociedades com escrita.

    A crtica a Lvi-Strauss, na Gramatologia, gira em torno da ideia de que a

    escrita, para o antroplogo, um instrumento de dominao, perigoso,

    responsvel, nas civilizaes ocidentais, pelo apagamento daquilo que seria prprio

    do humano que seria, paradoxalmente, uma certa bondade (Rousseau) que o

    homem comparte com os animais (a piedade), e que encontrar-se-ia ainda em

    8

    Essa seria uma concepo "desconstrutiva" de aprender filosofia, que pe em questo no apenas

    suas pretenses grandiloquentes, mas tambm a prpria "filosofia" como um campo fechado, saber

    sistemtico e "me" ou "rainha" das cincias.

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    estado relativamente puro nas sociedades sem escrita . Segundo Derrida, sob

    pretexto de crtica ao etnocentrismo, Lvi-Strauss pratica um etnocentrismo s

    avessas, pressupondo a pureza do prprio, uma essncia humana que , afinal, a

    projeo de um esquema conceitual metafsico sobre o perspectivismo do povos

    amerndios.

    Supor que a escrita, a disseminao "annima" de obras e ideias, apaga o

    nome prprio apenas o reverso de supor que falar em nome prprio significa

    apagar aquilo que aprendemos com outrem, dando lugar a uma fala mais original.

    "Falar em nome prprio", a originalidade, a genialidade ou a autonomia do

    pensamento so mitos de um aprendizado da filosofia que sacraliza o texto dos

    pensadores como acesso a um significado transcendente, de difcil acesso,

    impedindo, paradoxalmente, que o estudante possa ensaiar ter um pensamento

    prprio. Portanto, quando penso, aqui, no aprendizado da filosofia como um

    "aprender a falar em nome prprio", no penso em nenhuma pureza ou

    originalidade, em nenhuma proibio de falar a partir da tradio, a partir do que

    outros j disseram.

    3. Desencontros

    A ultrapassagem, o salto no escuro, a propagao, o contgio e o

    desvelamento, ainda que fosse necessrio pensar mais cuidadosamente sobre suas

    diversas implicaes e contraindicaes, so imagens interessantes para se

    conceber um ensino e um aprendizado da filosofia sob os signos da encenao e

    da disseminao, da busca de uma voz que prpria, mas que no se quer pura,

    nem refm de um significado transcendente, por si mesmo engendrado ou

    estabelecido a priori. Contudo, o ensino de filosofia raramente abandona o

    princpio da orientao, da orthots. E, tal como este majoritariamente praticado

    entre ns, seria ainda mais difcil conceber um exerccio de aprendizagem autoral

    de filosofia a partir daquela proposta mais radical de uma encenao coletiva, de

    um teatro filosfico a vrias vozes e sem nenhum maestro.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CABRERA, Julio. Dirio de um filsofo no Brasil. Iju: Ed. Uniju, 2010.

    CASTELLO, Luis A.; MRSICO, Claudia T. Oculto nas palavras. Dicionrio

    etimolgico para ensinar e aprender, Belo Horizonte, Autntica. Trad. Ingrid

    M. Xavier, 2005, pp.39-40

    DERRIDA, Jacques. Gramatologia, So Paulo: Perspectiva. Trad. Renato Janine

    Ribeiro, 1973.

    HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafsica. Mundo, finitude,

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    Recebido em 13/10/2010.

    Aprovado em 21/01/2011.