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    Economia e Sociedade, Campinas, (7): 85-127, dez. 1996.

    Desequilbrios mundiais e instabilidade financeira.(A responsabilidade das polticas liberais:

    um ponto de vista keynesiano)1

    Dominique Plihon

    Introduo

    A evoluo recente dos pases industrializados marcada pelainstabilidade financeira e por uma diminuio do crescimento econmico. Ascrises se sucedem e se aceleram nos mercados cambiais e de capitais

    internacionais. Estas disfunes devem ser associadas s transformaes sofridaspela economia mundial, neste fim de sculo, que tem como uma de suasdimenses essenciais a globalizao financeira, isto : a criao de um mercadomundial do capital financeiro.

    A hiptese aqui adiantada que as polticas pblicas tm umaresponsabilidade, em primeiro plano, nas mutaes recentes que desestabilizarama economia mundial.

    Este artigo se inicia pela apresentao do movimento liberal que ps emprtica as novas polticas econmicas no final dos anos 70. Em seguida, analisa-secomo estas polticas, fundadas sobre o liberalismo e o monetarismo, so a origemdo crescimento dos desequilbrios internacionais e do processo de globalizaofinanceira. Em um terceiro momento, este artigo se preocupa em mostrar como aglobalizao financeira derivou, de uma maneira fatal, para um regime de capitalespeculativo, fonte da instabilidade. So, em seguida, estudadas as conseqnciasnefastas do capital liberalizado sobre a economia mundial, devidas especialmenteao fato da alta durvel do nvel das taxas de juros reais. Uma ltima parte propevias para a reorientao das polticas pblicas, de modo a libertar a economiamundial do impasse dentro do qual foi colocada pelas polticas liberais, cujofracasso atualmente patente.

    1. O movimento liberal dos anos 80

    Os pases industrializados conheceram um crescimento rpido e durveldurante trs decnios,2at o incio dos anos 70. Este regime de crescimento, comdesempenhos excepcionais, repousava sobre trs pilares:

    (1) Traduzido do francs por Sonia Terezinha Tomazini.(2) Esses trs decnios foram chamados por J. Fourasti de os trinta gloriosos.

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    a relao salarial fordista, que se traduziu por uma evoluo rpida e regular

    dos salrios, com base em um compromisso capital-trabalho, que articulou adiviso dos ganhos de produtividade provenientes da organizao cientfica dotrabalho (Boyer, 1987);3 as polticas de estabilizao macroeconmica de inspirao keynesianadestinadas a assegurar uma progresso regular da demanda direcionada sempresas; os sistemas financeiros administrados, que viabilizaram o financiamento daacumulao do capital por endividamento bancrio a taxas de juros baixas econtroladas pelas autoridades monetrias.

    Este meio institucional contribuiu para fundar um contexto econmico esocial de grande estabilidade, particularmente favorvel acumulao do capital

    industrial e ao crescimento da produo. O aumento da demanda direcionada sempresas era assegurado pelas polticas pblicas de estabilizao conjuntural e,sobretudo, pelo aumento do poder de compra dos salrios, decorrente daindexao dos mesmos aos ganhos de produtividade e aos preos. Enfim, afixao administrativa das taxas de juro garantiu s empresas um custo baixo eestvel do capital. Os agentes privados estavam fortemente endividados junto aosistema bancrio. Em troca, os dficits e as dvidas pblicas situavam-se em nveismoderados.4

    A crise estagflacionria pe em questo as polticas econmicas keynesianas

    O regime de crescimento rpido comeou a se desestruturar no incio dosanos 70 com o desmoronamento do sistema monetrio internacional de BrettonWoods, com o aquecimento inflacionrio nos Estados Unidos em 1972 e com ochoque do petrleo de 1973. O crescimento declinou enquanto que a inflao seacelerou: isto foi a emergncia de um processo estagflacionrio.

    Esta ruptura no funcionamento do regime de crescimento resultou daderrocada dos mecanismos de regulao das economias industriais (Dubois, 1987;Basle; Mazier & Vidal, 1993). Esta transformao tem causa, em grande medida,endgena s prprias economias industrializadas. Pode ser explicada a partir daanlise proposta por Minsky (1982): este enunciou o paradoxo da tranqilidade,segundo o qual as economias capitalistas acabam necessariamente por se auto-desregulamentar. Seu raciocnio o seguinte: seja uma economia em crescimento

    (3) Este conceito de relao salarial fordista (le rapport salarial fordiste - N. da T.)foi desenvolvidopela escola da Regulao (Boyer, 1987). Segundo esta escola, o regime de crescimento pode ser caracterizadopor cinco formas institucionais: o regime financeiro, a relao salarial, as formas de concorrncia, a naturezado Estado e a articulao com o regime internacional. Nossa apresentao do regime de crescimento dos trintagloriosos com seus trs pilares inspira-se nesta abordagem (Relao salarial fordista).

    (4) Deste modo, para a Europa dos 12 (Pases da Europa Ocidental que inicialmente constituram aUnio Europia - N. da T.), a relao dficit pblico/PIB era somente de 0,4% em mdia, de 1961 a 1973, contra5,1% no decurso dos anos recentes (1987/94), como indica a Tabela 4.

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    regular, taxa constante, cujas estruturas so coerentes; ela conhece um perodo

    de tranqilidade (esta a idade de ouro dos trinta gloriosos). medida que seavana neste caminho regular, os atores econmicos adquirem confiana; elesantecipam um crescimento regular que se produz efetivamente. A incertezadiminui; o futuro concebido como a extrapolao do passado. Esta certezacrescente leva as empresas a se endividarem e a investirem cada vez mais. Produz-se, inevitavelmente, um entusiasmo exagerado. Os preos sobem, o que permite sempresas continuarem a se endividar, graas ao efeito positivo de alavancagem,malgrado o aumento dos desequilbrios. A fragilidade financeira das empresascresce. A alta das taxas de juros, resultante do acrscimo das necessidades definanciamento, pe em dificuldades as empresas superendividadas. A intervenodas autoridades monetrias, como emprestadoras em ltima instncia, pode

    atenuar as tenses. Mas as avaliaes pessimistas acabam por voltar, as empresasreduzem suas atividades e o crescimento diminui. Assim, pode-se explicar aapario do processo estagflacionrio.

    Tabela 1Crescimento econmico e inflao nos principais pases industrializados.Taxa mdia de crescimento anual em % para a rea dos pases do G-7 (a)

    1970/79 1980/89 1990/94Crescimento do PIB 3,6 2,8 1,9Alta dos preos (b) 10,7 5,1 3,3

    (a)Estados Unidos, Japo, Alemanha, Frana, Itlia, Reino Unido, Canad

    (b)Deflatores do consumo familiar

    Fonte: Comptes Nationaux de lOCDE.

    O fim do regime de crescimento rpido e estvel fez com que serecolocasse em questo o meio institucional que funcionou desde a SegundaGuerra Mundial e que foi fundado sobre as polticas de estabilizao keynesianas,a relao salarial fordista e as finanas administradas.

    Observou-se, ento, uma radical virada na orientao das polticaspblicas adotadas at ento. O ano de 1979 marca uma virada determinante naconduo das polticas econmicas dos pases industrializados. Pela primeira vez,os dirigentes dos principais pases reunidos em Tquio, por ocasio da reunio decpula do G-5, decidem eleger como prioridade absoluta a luta contra a inflao.Esta mudana se traduz pelo abandono das prticas de inspirao keynesianafundadas sobre a arbitragem entre o pleno emprego e a estabilidade dos preos.Neste novo quadro de referncia, o pleno emprego e a desinflao soconsiderados como dois objetivos complementares, no sentido de que a baixa dodesemprego resulta, necessariamente, da estabilidade dos preos. Do ponto devista terico, esta nova concepo inspirada na crtica curva de Phillipsdesenvolvida pela escola novo-clssica. A estabilidade monetria , doravante, oobjetivo prioritrio, e a poltica monetria torna-se o principal instrumento de

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    regulao macroeconmica, conforme os preceitos monetaristas. Impe-se,

    igualmente, uma concepo liberal do papel do Estado que deve se desengajar dagesto econmica, o que leva contestao da eficcia da poltica oramentria.Monetarismo e liberalismo tornam-se, deste modo, os novos princpiosfundamentais da poltica econmica.

    A relao salarial fordista, outra forma institucional central do regimede crescimento do ps-guerra, foi sacrificada sobre o altar do rigor e daestabilidade monetria, para fazer face a um modo de regulao salarialconcorrencial. Com efeito, na maioria dos pases industrializados, a poltica derigor salarial tem jogado um papel central no processo de desinflao,notadamente nos Estados Unidos (Pisani-Ferry, 1988), na Frana e na Gr-Bretanha (Farnetti, 1995). Foi cortado o vnculo entre o aumento dos salrios, de

    um lado, e a evoluo da produtividade e dos preos, por outro lado.A virada de orientao nas polticas econmicas foi operada sob a direo

    de P. Volker, presidente do FED, de M. Tatcher e depois de R. Regan. Em certospases, constatou-se um forte descompasso entre a doutrina apregoada e aspolticas realmente levadas a cabo.5Paradoxalmente, nos Estados Unidos, origemda doutrina liberal do desengajamento do Estado, as autoridades praticaram umapoltica oramentria expansionista e, em seguida, fizeram importantes reduesfiscais, assim como aumentaram as despesas militares. E dentro da ComunidadeEuropia, conduzida por uma Alemanha obcecada pela inflao, que as polticasforam as mais restritivas.

    O questionamento das polticas macroeconmicas de inspiraokeynesiana e da relao salarial fordista teve importantes repercusses sobre adinmica macroeconmica das economias capitalistas. Em particular, o abandonodas polticas pblicas de estabilizao e das polticas de elevaes salariaisregulares e gerais reduziram a previsibilidade da demanda direcionada sempresas. As empresas e os assalariados encontraram-se em um contexto deincerteza crescente quanto aos seus rendimentos futuros. Isto resultou nainstabilidade do investimento e do crescimento (Billaudot, 1995).

    O surgimento de novos desequilbrios

    As polticas restritivas alcanaram seu principal objetivo: a inflao foifortemente diminuda, e o ritmo da alta dos preos ao consumidor, nos pases doG-7, passou de 10,7% por ano no decnio 1970/79 para somente 3,3% em

    (5) Esta idia da no-interveno do Estado nos negcios econmicos parte dos Estados Unidos, noincio dos anos 80, onde se constitui um dos temas centrais do governo de Reagan. Sabe-se, a posteriori, que,contrariamente ideologia dominante, a poltica oramentria teve um papel crescente nos Estados Unidosdurante este perodo, que viu aumentar o dficit pblico americano. Em sua fase atual, ao contrrio, a contra-revoluo conservadora americana pe, claramente, a nfase no rigor e equilbrio oramentrios.

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    1990/94. Mas as novas polticas tiveram um custo elevado, pois criaram novos

    desequilbrios, cujos efeitos vo ser considerveis.O endurecimento das polticas monetrias deslanchou uma alta brutal nas

    taxas de juros nominais em todo o mundo. Contrariamente ao previsto pela teoriaortodoxa, a desacelerao da inflao no produziu uma baixa paralela no nveldas taxas de juros nominais, nos pases industrializados.6 Isso resultou na altataxa de juros reais que se mantiveram em nveis recordes desde o incio dos anos80, contrastando fortemente com a situao dos decnios 60/70, como mostra aTabela 2.

    O nvel persistentemente elevado das taxas de juros reais um fenmenonovo que corresponde emergncia de um novo modo de regulao financeirainternacional. De um lado, passou-se de um regime dentro do qual as tenses

    macroeconmicas eram reabsorvidas em escala nacional pela emisso monetria einflao para um regime onde os ajustes passam, de preferncia, pelas taxas dejuros, cujo nvel e oscilao, a partir de ento, aumentaram. Por outro lado, a novaordem financeira internacional consagra o domnio do credor sobre o devedor,como se ver mais adiante. A alta das taxas de juro traduz a relao de forasdoravante favorveis aos detentores do capital financeiro.

    Tabela 2Evoluo das taxas de juros reais de longo prazo

    (Taxas anuais em %)

    1960/69 1970/79 1980/89 1990 1991 1992 1993 1994

    Frana 1,5 -0,5 6,8 8,2 7,1 7,6 5,2 5,7Estados Unidos 1,1 -0,3 6,5 5,8 5,7 5,0 3,4 3,9Alemanha 2,5 -3,2 4,9 3,3 4,6 5,6 4,5 4,7Itlia 0,4 -6,1 5,3 9,1 8,8 10,6 8,4 7,2Reino Unido 1,7 -3,0 5,8 7,5 6,7 6,9 5,1 5,6Japo 1,2 -0,1 5,2 5,4 5,4 4,7 3,7 3,8Membros do G-7 0,8 -0,5 6,0 6,2 6,1 5,9 4,3 4,6

    Definio: Taxa de juros reais ex post, obtida em funo da diferena entre as taxas de juro de longo prazosobre os ttulos pblicos e as antecipaes da inflao ex post, medida pela inflao observada a posteriori,sobre os dois anos seguintes.Fonte: OCDE. Statistiques financires.

    A virada de orientao das polticas econmicas foi acompanhada por umafrouxamento acentuado do crescimento econmico registrado nos principaispases industrializados. A taxa de crescimento mdio anual do PIB, nos pases darea do G-7, passou de 3,6% durante o decnio de 1970/79 para 2,8% em1980/89, para cair a somente 1,9% em 1990/94.

    (6) De acordo com a teoria ortodoxa, desenvolvida por I. Fisher, a taxa de juro real igual diferenaentre a taxa de juro nominal e a taxa de inflao antecipada independente do nvel da inflao e da

    produtividade do capital. Segundo esta anlise, quando as taxas de inflao descessem duradouramente, as taxasde juro nominais deveriam, ento, diminuir na mesma proporo, porque a inflao (antecipada) um dosdeterminantes do nvel das taxas nominais. A realidade contradiz, claramente, esta anlise.

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    A desacelerao do crescimento engendrou importantes tenses sobre o

    mercado de trabalho, levando a um crescimento irreversvel do desemprego.Como indica a Tabela 3, esta evoluo foi mais brutal na Comunidade Europia,onde as polticas econmicas foram as mais restritivas possveis.

    Tabela 3O crescimento do emprego em % da populao ativa

    1970/79 1980/89 1990/94Europa dos 12 3,8 9,4 9,6Estados Unidos 6,2 7,3 6,5Japo 1,7 2,5 2,4

    Fonte: Communauts Europennes.

    Diagrama 1A engrenagem infernal ou como as polticas liberais conduziram

    instabilidade e depresso financeiras

    Virada de direo nas polticas econmicas

    Rigor salarial Rigor monetrio

    Desaceleraodo consumo

    Desaceleraoda inflao

    Alta das taxasde juros nominais

    Desaceleraodo crescimento

    Alta das taxasde juros reais

    Crescimento dosdficits pblicos Crescimento da

    dvida pblica

    Manuteno de taxasde juros reais elevadas

    Amplificao daliberalizao financeira

    Crescimento dafinana especulativa

    Crescimento dainstabilidade financeira

    Desacelerao da acumulaodo capital produtivo

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    2. Crescimento dos dficits pblicos e globalizao financeira

    Aps o incio dos anos 80, a situao das finanas pblicas7 progressivamente deteriorada nos grandes pases industrializados. O dficit mdiodos pases do G-7 passou de -2,1% do PIB durante a dcada de 70 para -3,6% em1990/94; e, conseqentemente, o peso da dvida pblica tambm cresceufortemente, para atingir 64,3% do PIB, em mdia, em 1990/94. Esta evoluodesfavorvel das finanas pblicas foi muito mais brutal nos pases da UnioEuropia, como ilustra a Tabela 4.

    Tabela 4Evoluo das finanas pblicas nos pases da Unio Europia (a)

    1961/73 1987/94Em % do PIB:Dficit pblico -0,4 -5,1Juros sobre a dvida pblica 0,7 5,0Dvida pblica 32,0

    Em % anual mdia (b):Taxa de juro aparente sobre advida pblica 2,2 8,4Crescimento do PIB 10,2 6,7

    (a)Finanas pblicas.lato sensu incluindo as administraes locais e sociais. Europa dos 9, at 1973;

    Europa dos 12, aps 1973.(b)

    Taxa nominal, em francos correntes.

    Fonte: Economie Europenne.

    Os organismos internacionais (OCDE, FMI e Comisso Europia)consideram, em meados dos anos 90, que os dficits pblicos se tornaram umobstculo a uma boa ordem econmica mundial. Segundo a doutrina oficial, estesdesequilbrios so uma fonte de inquietude para os mercados e acarretamvariaes brutais da taxa de cmbio e da taxa de juro. As crises e as desordens queda decorrem perturbam o crescimento mundial, provocam importantesdeslocamentos do capital, diminuem o crescimento e, por isso, mantm umdesemprego elevado.

    A recuperao das finanas pblicas tornou-se o objetivo prioritrio da

    poltica econmica. Assim, o Tratado de Maastricht imps aos membros da UnioEuropia o respeito s regras estritas quanto a este ponto: representado comoporcentagem do PIB, o dficit pblico deve ser inferior a 3% e a dvida pblicano pode ultrapassar 60%, em cada pas membro.

    (7) Neste estudo, as finanas pblicas so entendidas lato sensu, isto , incluem o oramento noconjunto das administraes pblicas central, local e social.

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    2.1. As novas polticas econmicas responsveis pela degradao das finanas

    pblicas

    As autoridades pblicas dos pases industrializados enredaram-se em suasprprias contradies. Pois os desequilbrios recentes das finanas pblicas so aconseqncia direta das polticas macroeconmicas levadas a cabo depois doincio dos anos 80.

    Com efeito, diz-se que, para que a razo dvida/PIB se estabilize, preciso que a taxa de crescimento do PIB seja pelo menos igual taxa de jurosobre a dvida, pelas razes explicitadas no quadro seguinte, como as condiesde estabilidade da dvida pblica. Ou, como j se viu antes, a taxa de juroelevou-se brutalmente, tornando-se muito superior taxa de crescimento

    econmico, devido s prprias polticas econmicas recentes nos principais pasesindustrializados (veja, a esse respeito, a Tabela 15). O crescimento econmicotornou-se insuficiente para compensar o impacto das taxas de juro sobre asdvidas pblicas; os dficits e as dvidas pblicas comearam a crescer maisdepressa que o PIB. Assim se explica a alta quase contnua das taxas do dficit edo endividamento pblicos no decurso do perodo recente.

    As condies de estabilidade da dvida pblica

    O dficit oramentrio (d) descreve-se simplesmente:(1) dficit = receitas - despesas correntes - encargos de juros

    Chama-se saldo primrio (S) a diferena: receitas - despesas correntes.

    Os encargos de juro so iguais taxa de juros (i) multiplicada pelo estoque da dvida pblica (D). Ocrescimento da dvida pblica igual ao dficit pblico (d), se bem que a taxa de crescimento dadvida corresponda a (d/D).

    Da igualdade (1) acima, deduz-se que:

    (2) d/D = i - (S/D)

    Para que a razo dvida/PIB fique constante, preciso que o crescimento da dvida seja igual quelado PIB (g), isto :

    (3) g = d/D. Combinando-se as igualdades (2) e (3) obtm-se:

    (4) i - (S/D) = g, ou ainda: i - g = S/D

    A interpretao da igualdade (4) simples: a estabilidade da razo dvida/PIB pode ser obtida deduas maneiras:

    pela igualdade entre a taxa de juro e a taxa de crescimento do PIB (i = g), com um saldo primrionulo (S=0);

    ou, se a taxa de juro superior do crescimento econmico (i>g), a estabilidade da razodvida/PIB requer um saldo primrio positivo (S>O), isto , um excedente das receitas sobre asdespesas correntes.

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    Grfico 1

    Dficit pblico na Europa determinado pela diferenaentre a taxa de crescimento e a taxa de juro

    Os pases europeus encerrados dentro de um crculo vicioso

    nos pases da Unio Europia que o efeito de tesoura entrecrescimento e taxa de juro foi o mais espetacular: nos anos 60, a taxa decrescimento ultrapassou em grande medida a taxa de juro sobre a dvida pblica;em mdia os dficits pblicos estavam baixos, como se pode verificar pela Tabela4. Em contrapartida, no perodo recente, os dficits pblicos aprofundaram-seporque a taxa de juro da dvida se elevou, nitidamente, acima da taxa decrescimento econmico. O Grfico 1 ilustra a relao entre dficit pblico, de umlado, e o descompasso entre crescimento e taxa de juro, por outro lado.

    A anlise da evoluo dos principais componentes dos dficits pblicos esclarecedora a esse respeito. Tem-se a seguinte igualdade:

    saldo pblico global = saldo conjuntural + encargos de juros + saldo estrutural primrio.

    O saldo conjuntural corresponde aos estabilizadores oramentriosautomticos. Este saldo anticclico: ele se agrava porque o crescimentoeconmico diminui, e vice-versa. Os encargos de juros so a remunerao dadvida pblica; ela aumenta com o montante da dvida pblica e o nvel das taxas

    Dficit pblico em % do PIB.Taxa de juro real crescimento.

    Fonte: Eurostat.

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    de juro. Por fim, o saldo estrutural primrio o saldo oramentrio descontado

    do efeito conjuntural sem computar os encargos de juro; este saldo produz umamedida de orientao (expansiva ou restritiva) da poltica oramentria, no mdioprazo.

    Grfico 2Saldo pblico europeu e seus componentes

    em % do PIBFonte: OCDE et calculs CDC.

    Saldo conjuntural Saldo estrutural primrio

    !Encargos de juro Saldo total

    Fonte: Lettre conomique de la CDC, n.66, mai 1995.

    A anlise do Grfico 2, que descreve a evoluo dos componentes do

    dficit pblico global dos pases da Unio Europia, conduz s trs seguintesconstataes: o agravamento dos dficits pblicos na Europa no incio dos anos 80 explica-se, em primeiro lugar, pela diminuio do crescimento, que se traduz por umadegradao do saldo conjuntural via financiamento dos estabilizadoresautomticos; em contrapartida, osaldo estrutural primriomelhorou de 1979 a 1984, parapermanecer prximo do equilbrio; em outros termos, as polticas oramentriasde longo prazo so mais austeras e tornaram-se neutras em relao aocrescimento; por fim, v-se claramente que os encargos de juro se tornaram a causaessencial, e cada vez mais importante, dos dficits pblicos.

    O servio da dvida crescente a conseqncia direta do nveldemasiadamente elevado das taxas de juro. Ou, este nvel excessivo das taxas dejuro se deve combinao de polticas monetrias restritivas e de polticasoramentrias fortemente deficitrias. Assim, as polticas pblicas dos pasesindustrializados ficaram presas em uma armadilha formada pelos enormes dficitspblicos, de um lado, e pelas taxas de juros elevadas, por outro. Sair destaarmadilha implica um questionamento da policy-mix atual.

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    2.2. A liberalizao financeira imposta pela gesto da dvida pblica

    De um lado, existe uma ligao direta entre o crescimento potencial docapital globalizado e liberalizado e, por outro lado, o aumento dos dficitspblicos nos pases industrializados, depois do incio dos anos 80. Com o pesocrescente da dvida, os Tesouros Pblicos Nacionais no puderam mais contarexclusivamente com os investidores nacionais. Era necessrio apelar aosinvestidores internacionais, em particular aos investidores institucionais, paraadquirir os ttulos pblicos nacionais. desse modo que, no incio, as autoridadespblicas liberalizaram e modernizaram os sistemas financeiros para satisfazer suasprprias necessidades de financiamento. Este objetivo foi largamente atingido,visto que, entre os grandes pases industrializados, a parte dos ttulos pblicos

    detidos pelos estrangeiros aumentou no Canad, Reino Unido e, mais ainda, naFrana e na Alemanha, como mostra a Tabela 5.

    Tabela 5O recurso ao mercado internacional para o financiamento da dvida pblica.

    (% de ttulos detidos pelos investidores estrangeiros sobre o total da dvida pblica)

    1979 1992Estados Unidos 18,5 20,4Japo 2,3 5,6Alemanha 5,0 25,9Frana 0,0 31,8

    Itlia 1,2 6,1Reino Unido (1) 11,4 12,5Canad 15,0 27,7(1)1985 e 1991, respectivamente.Fonte: Bisignano. Internationalization of financial markets; IMF staff estimates.

    O dficit pblico americano, motor da globalizao financeira

    O encadeamento dficit pblico globalizao financeira comeou aestourar a partir dos Estados Unidos. Estes, com efeito, registraram umadegradao rpida de seu saldo oramentrio, que passou de uma situao de

    equilbrio, no fim dos anos 70, a um dficit estimado em 3,8% do PIB em 1983. Osaldo da balana de transaes correntes americana acusou uma evoluo paralela,passando igualmente do equilbrio ao dficit, como indica a Tabela 6. Istosignifica que os Estados Unidos comearam a apelar aos investidores estrangeirospara cobrir uma necessidade de financiamento exterior causada pelo aumento do

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    dficit oramentrio.8 Aps esta evoluo, os Estados Unidos tornaram-se o

    principal devedor internacional, depois de ter sido, at ento, o principal credor.

    Tabela 6Os dficits gmeos dos Estados Unidos em % do PIB

    1980 1985 1990 1994

    Dficit pblico -1,3 -3,3 -2,4 -2,0Transaes correntes 0,0 -3,0 -1,7 -2,3

    Fonte: OCDE. Perspectives Economiques.

    O recurso massivo dos Estados Unidos ao endividamento internacionalacarretou uma modificao profunda na reorientao dos movimentos

    internacionais do capital entre grandes regies da economia mundial. E precisamente a partir deste momento que se assistiu emergncia do processo deglobalizao financeira.

    Durante os anos 60/70, o essencial dos fluxos internacionais de capitalsegue o eixo Norte-Sul; os principais pases industriais (Estados Unidos, Japo,Europa) financiando, em grande parte, o dficit estrutural dos pases emdesenvolvimento (PED) (Oliveira-Martins & Plihon, 1990). Este movimento vaireforar-se, de 1974 a 1982, com os choques do petrleo: o sistema bancriointernacional garante o financiamento dos PED no-produtores de petrleo, graas reciclagem dos petrodlares acumulados pelos pases da OPEP. Osuperendividamento dos PED data deste perodo. A crise da dvida de 1982/83

    marca uma virada. Os PED endividados esto em situao de suspenso depagamento, em conseqncia da alta brutal das taxas de juro e do dlar que fazcrescer fortemente o servio de sua dvida.

    As transferncias internacionais de capital mudaram ento de orientao,para seguir uma lgica Norte-Norte: os excedentes do Japo e da Europafinanciam, doravante, o dficit massivo dos Estados Unidos, como ilustra oGrfico 3. Ao mesmo tempo, as polticas de ajuste impostas pelo FMI eliminam odficit global dos PED. A globalizao financeira caminha pari passu com estareorientao dos fluxos financeiros internacionais. Antes de 1982, o essencial dosfinanciamentos internacionais passava pela intermediao do sistema bancrio.Era a lgica do endividamento bancrio internacional. O crescimento dos dficits

    (8) Existe, para cada pas, uma relao direta entre os saldos externo e pblico e o equilbrio poupana-investimento. Esta decorre da seguinte identidade contbil bastante conhecida:

    (a) M - X = I - S = (G - T) + (D - R) = (G + D) - (R + T)onde,M=importaes; X=exportaes; I=investimento; S=poupana; G=gastos pblicos; T=impostos;

    D=despesas privadas; R=renda nacional lquida (subtrados os impostos).A identidade (a) significa que o dficit externo (M-X) igual diferena entre investimento e poupana

    domsticos (I-S); e soma do dficit pblico (G-T) e da diferena entre as despesas e rendas dos agentesprivados (D-R). Viu-se ento, atravs da relao (a), que um aumento do dficit pblico (G-T), tudo o maisconstante, por outro lado, conduz a uma degradao do saldo externo, isto , um apelo poupana estrangeira.

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    gmeos (oramentrios e externos) americanos, a crise da dvida e a reorientao

    Norte-Norte dos fluxos financeiros internacionais reorientam o sistema financeirointernacional em direo a uma lgica de financiamento direto (semintermedirio) e mundial. Os financiamentos e aplicaes de dinheirointernacionais so doravante diretos, sem passar pelos bancos.

    Grfico 3Dvidas externas acumuladas dos trs principais pases industrializados (1960/93)

    Japo, RFA, Estados Unidos(em bilhes de dlares)

    Fonte: Lettre du CEPII, oct. 1994.

    Esta nova organizao da finana responde demanda dos atoresdominantes do jogo financeiro: tanto os emprestadores quanto os tomadores deemprstimos. Investidores institucionais (companhias de seguro, fundos depenso, fundos de investimento), tesouros pblicos nacionais, tesoureiros dosbancos e das empresas multinacionais , todos preferem endividar-se ou aplicarno mercado dos ttulos; uma tcnica mais malevel e menos custosa, graas supresso do custo de intermediao.

    Doravante, aquele que investe (ou empresta) pesquisa o melhorrendimento, passando de um ttulo a outro, ou de uma moeda a outra, ou de umprocedimento de cobertura a outro, da dvida em franco dvida em dlar, da ao

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    opo, da opo ao futuro... No total, os mercados particulares (financeiro,

    cambial, opes, futuros, ...) tornaram-se um subconjunto de um mercadofinanceiro global, ele prprio tornado mundial. O sistema financeiro internacionalvirou um megamercado nico de moeda, que se caracteriza por uma duplaunidade: de lugar: as praas financeiras so cada vez mais interconectadas, graas aosrecursos modernos de comunicao; de tempo: funciona sem interrupo vinte e quatro horas por dia,sucessivamente, nas praas financeiras do Extremo Oriente, da Europa e daAmrica do Norte.

    Esta transformao profunda do sistema financeiro internacional foi aconseqncia da liberalizao financeira decidida pelos pases industrializados no

    decurso dos anos 80. Todas as formas de controle administrativo das taxas dejuro, do crdito e dos movimentos do capital foram progressivamente abolidas. Oobjetivo foi desenvolver o mercado financeiro. A desregulamentao foi um doselementos motores da globalizao financeira, pois acelerou a circulaointernacional do capital financeiro. A abertura do sistema financeiro japons em1983/84 foi, em grande medida imposta pelas autoridades monetrias americanas,depois do desmantelamento dos sistemas nacionais de controle cambiais naEuropa, com a criao de um mercado nico de capitais em 1990. Sob o impulsodos Estados Unidos e do FMI, os novos pases industriais seguiram o movimentoda liberalizao, o que gerou o nascimento dos mercados financeirosemergentes. E foi igualmente para poder financiar seus dficits pblicos que osNPI tiveram que proceder, por sua vez, a uma liberalizao financeira.

    3. A virada especulativa do capital internacional

    Mas, procedendo-se a uma liberalizao total das finanas, as autoridadesmonetrias dos pases industrializados abriram uma caixa de Pandora, fazendosurgir o capital especulativo. Uma tal evoluo no surpreendente. Foi previstapor Keynes: o risco de um predomnio da especulao tende a crescer, medidaque a organizao dos mercados financeiros progride(Keynes, 1936, cap. 12).

    No passado, a funo do sistema financeiro internacional foi assegurar ofinanciamento do comrcio mundial e dos balanos de pagamentos. De fato, nocomeo, o processo de globalizao mundial explica-se, em grande medida, pelanecessidade de financiar os desequilbrios mundiais dos balanos de pagamentos(Oliveira-Martins & Plihon, 1990). Em 1986 e 1987, os movimentosinternacionais brutos de capitais elevaram-se a 300 bilhes de dlares, o quecorresponde s necessidades de financiamentos mundiais medidas pela soma dosdficits correntes dos grandes pases industrializados.

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    3.1. Crescimento vertiginoso do capital internacional

    Em seqncia, os fluxos financeiros internacionais conheceram umaprogresso explosiva, sem possibilidade de comparao com as necessidades daeconomia mundial. (Chesnais, 1995). As cifras seguintes so eloqentes: de umlado, a soma dos dficits externos correntes mundiais estabilizaram em menos de300 bilhes de dlares por ano, no incio da dcada de 90. Por outro lado, duranteo mesmo perodo, aproximadamente 1 trilho de dlares foram trocadosdiariamente nos mercados cambiais das principais praas financeiras. Por outrolado, as transaes no mercado cambial para operaes financeiras so 50 vezesmais importantes que as articuladas com o comrcio internacional de bens eservios.9

    Tabela 7Evoluo do volume de transaes transnacionais com ttulos

    (como uma % do GDP)

    1980 1992Estados Unidos 9,3 109,4Japo 7,0 69,9Alemanha 7,5 91,2Frana 8,0 122,0Itlia 1,1 118,4Reino Unido 266,0 1015,8Canad 9,6 113,1Fonte: Bisignano. Internationalization of financial markets; IMF staff estimates.

    Um bom indicador da extenso do desenvolvimento do capitalinternacional, dado pela evoluo do volume das transaes transnacionais(entre residentes e no-residentes) com ttulos, expressas em porcentagem do PIB.Como se pode ver pela Tabela 7, o peso das transaes financeiras transnacionaispassou, em mdia, de 10% do PIB em 1980, nos pases industrializados, a mais de100% do PIB em 1992.

    A interpretao destas cifras simples: o capital internacionaldesenvolve-se, atualmente, segundo sua prpria lgica que nada mais que umarelao indireta com o financiamento do comrcio e dos investimentos produtivosna economia mundial. Pode-se ler a esse respeito no boletim do Banco deCompensao Internacional de 1994: No clima generalizado de

    desregulamentao, depois de uma dezena de anos, os movimentos internacionaisde capitais conheceram uma expanso to considervel que no presente astransaes ligadas aos pagamentos correntes parecem, comparativamente, bemmodestos. Doravante, o essencial das operaes financeiras internacionaisconsiste nos movimentos de vai-e-vem incessantes entre as moedas e os diferentesinstrumentos financeiros.

    (9) Estas estimativas so fornecidas pelo Banco de Compensao Internacional, com base nas pesquisasdos bancos.

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    Este crescimento vertiginoso da finana internacional corresponde a uma

    mudana sistmica, no sentido de que a prpria natureza do sistema financeirointernacional se transformou, sendo ele, doravante, dominado pela especulao(Bourguinat, 1995).

    conhecida a definio clssica da especulao feita em 1939 por N.Kaldor: compra ou venda de bens com inteno de revenda (ou de recompra) emuma data posterior, quando a ao motivada pela esperana de uma modificaodo preo em vigor e no por uma vantagem ligada ao uso do bem, umatransformao qualquer ou a transferncia de um mercado a outro. Em outrostermos, a especulao corresponde ao conjunto das operaes que so iniciadaspara realizar os ganhos de capital futuro e que no tm por objetivo contribuir,direta ou indiretamente, para o financiamento da produo e do comrcio.

    Atualmente, uma grande parte das transaes financeiras diretamenteimpulsionada pelas antecipaes de lucros futuros sobre o valor dos ttulos. Masdizer que os mercados se encontram naturalmente especulativos , igualmente,sublinhar dois outros aspectos (Cartapanis, 1994). De uma parte, os atores queraciocinam no curtssimo prazo so predominantes, atualmente. A miopiacrescente de todas as categorias de operadores unanimemente sublinhada(Goldstein et al. 1993). De outra parte, os operadores tendem a abstrair darealidade dos fundamentos, em proveito de uma pesquisa de opinio quanto tendncia do mercado. Esta vertente especulativa intervm porque os mercados seencontram mais volteis e, aos investidores, falta um ponto de partida paraancorar suas antecipaes.

    Os ttulos da dvida pblica: pilares da finana especulativa

    Os mercados de ttulos do Estado tornaram-se o segmento mais ativo domercado financeiro internacional (Montgomery, 1994). Observou-se umaprogresso extremamente rpida depois do incio dos anos 80. Atualmente, asoperaes com ttulos pblicos ultrapassam, em larga escala, aquelas operaes detodos os outros mercados financeiros, exceto os cambiais.

    Os dficits pblicos persistentes nos pases industrializados tmalimentado o mercado primrio dos ttulos pblicos. O crescimento foi, todavia,mais espetacular no mercado secundrio destes ttulos, onde o volume dasoperaes deslanchou, sob o efeito da especulao. Para os Estados Unidos, porexemplo, que a este respeito ocupa, de longe, o primeiro lugar no mercadomundial, o montante mdio destas transaes alcanaram 120 bilhes de dlaresno ano de 1993, contra 14 bilhes em 1980. Esta exploso do volume detransaes ocorre tambm com os ttulos pblicos dos principais pasesindustrializados, como indica a Tabela 8.

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    Tabela 8O impulso espetacular das operaes com ttulos da dvida pblica.

    Mdia anual em bilhes de dlares

    1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991

    Estados Unidos (1) 13,8 18,1 23,5 30,3 38,5 55,5 68,8 77,1 70,7 77,9 76,7 88,1

    JapoMercado de balco de

    Tquio

    1,4 1,6 1,8 2,3 4,8 17,2 29,1 73,9 62,1 49,5 44,1 38,5

    Transaes em bolsa 0,0 0,1 0,1 0,2 0,5 0,8 1,5 1,4 1,2 1,0 0,9 0,5

    Alemanha(2) -- -- -- -- -- -- -- 2,3 3,7 3,7 3,9 4,3

    Frana (3)

    Ttulos a curto e mdioprazo

    -- -- -- -- -- -- 0,2 1,2 2,1 2,5 2,9 3,7

    Bnus do Tesouro -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- --

    Reino Unido 1,4 1,2 1,4 1,3 1,4 1,3 2,5 7,4 7,9 6,3 6,8 7,8 (1)Transaes do operadores primrios com valores do Tesouro dos Estados Unidos.(2)Volume das operaes em bolsa com bnus federais emitidos pelo Tesouro, dos correios e das estradas de ferro.(3)Transaes do mercado secundrio com valores do Tesouro, abrangidas as penses.

    : dados no-disponveis.Fonte: FMI, International Capital Markets: Developments, Prospects, and Policy Issues, Sept. 1994.

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    Explica-se, facilmente o sucesso dos ttulos emitidos pelos Tesouros

    Pblicos dos pases industrializados: so os crditos negociveis menosarriscados, o aval dos Estados assegura a melhor qualidade possvel, j que estesno podem falir. Ademais, para realar o atrativo de seus ttulos aos olhos dosinvestidores internacionais, os pases industrializados empreenderam reformaspara aumentar a liquidez dos mercados. assim que, na maioria dos pases, oTesouro designou os operadores especialistas em valores do Tesouro que,proporcionando certas vantagens, so considerados como asseguradores de ummercado permanente, o que garante um certo grau de liquidez no mercadosecundrio da dvida pblica. Paralelamente, os fracassos se concentram sobre umpequeno nmero de emisses de referncia padronizadas.10Por fim, foram criadoscontratos a prazo sobre a dvida pblica;11 isto uma medida essencial, pois os

    produtos derivados entre os quais os contratos a prazo ou futuros so,atualmente, o principal canal da especulao financeira.

    3.2. A finana na Frana: um caso exemplar

    A evoluo recente da economia francesa uma excelente ilustrao dopapel das polticas pblicas no processo de financeirizao e no crescimentodos desequilbrios econmicos. A Frana , certamente, um dos pasesindustrializados que puseram em prtica as polticas econmicas mais restritivas,desde o incio dos anos 80, notadamente no mbito monetrio e salarial. 12 Adesinflao foi espetacular. Mas o custo desta poltica foi elevado em termos decrescimento e de desemprego, como indicam os dados da Tabela 9. As taxas dejuro reais cresceram fortemente, passando de um nvel mdio de 2% ao ano aquase 6%. Elas se tornaram superiores taxa de crescimento econmico.Verificou-se, inelutavelmente, um crescimento do peso dos dficits e da dvidapblica. a primeira vez que, em tempo de paz, a Frana registra relao dvidapblica/PIB to elevada (Daniel, 1994). O papel desempenhado pelo crescimentodas taxas de juro na degradao da situao das finanas pblicas ilustrado pelofato de que o dficit pblico equivale a um montante praticamente igual aoencargo da dvida pblica (Tabela 9).

    Para satisfazer o imperativo da gesto da dvida pblica, uma poltica demodernizao e de liberalizao financeira foi colocada em prtica a partir de1985. Pode-se, assim, ler nas notas azuis de Bercy (1994): ...o aumento do dficitpblico desde o incio dos anos 80 exigiu uma reforma profunda do financiamento

    (10) Na Frana, os ttulos pblicos padronizados so as Obrigaes Assimilveis do Tesouro (OAT).(11) Em fevereiro de 1986, o primeiro contrato a prazo criado na Frana no mbito do MATIF (Mercado

    Internacional da Frana) o nocional contrato a prazo sobre o Bnus do Tesouro.(12) As polticas de austeridade foram iniciadas no final dos anos 70 pelo governo Barre; elas tm sido

    retomadas e amplificadas por todos os governantes que se sucederam, a partir de 1983.

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    do Estado e da gesto da dvida pblica... Os meios tradicionais do Tesouro no

    podem mais fazer face s necessidades crescentes de longo prazo. O recurso aosfinanciamentos de mercado foi inelutvel, tanto mais que concorreu para osurgimento do mercado unificado e ampliado da moeda. Com efeito, aumentandoo papel dos ttulos do Tesouro, os poderes pblicos vo contribuir de formadecisiva para o ajustamento dos ttulos de crdito negociveis e, atravs dosvolumes emitidos, vo desempenhar um papel primordial na dinmica domercado.

    Tabela 9Principais indicadores macroeconmicos da Frana

    em % 1961/73 1974/86 1987/94

    Crescimento do PIB (a) 5,4 2,2 2,1Inflao(b) 4,8 9,9 2,6Taxa de desemprego(c) 6,7 10,0Saldo pblico (d)

    Servio da dvida0,4 -1,8

    -1,8-3,0-3,1

    Dvida pblica (e) 16,9 31,4 38,6Taxa de juro a longo prazo

    Taxa nominalTaxa real (f)

    6,92,1

    11,92,2

    8,66,0

    (a) Taxa de crescimento mdio anual; (b)Taxa de crescimento mdio anual do deflator do consumo privado; (c)Em % da populao ativa; (d)Capacidade ou necessidade de financiamento das administraes pblicas em %do PIB; (e)Em % do PIB;(f)Taxa nominal menos inflao.Fonte: conomie Europenne, Commission Europenne.

    A realidade talvez tenha ultrapassado os objetivos. Porque a Franaparticipa, doravante, plenamente da finana especulativa internacional. Aevoluo do balano de pagamentos francs, que descreve a insero da Frana naeconomia mundial, particularmente eloqente a este respeito (Plihon, 1994).

    Tabela 10Estrutura da balana de pagamentos francesa.

    (A diviso entre fluxos reais e financeiros em % dos fluxos totais)

    Participao do balano global(fluxo em %)

    1980 1986 1994

    Crdito Dbito Crdito Dbito Crdito DbitoTransaes correntes 71,1 72,5 56,7 56,2 23,5 23,1

    Movimentos de capitais (a) 28,8 27,5 43,3 43,8 76,5 76,9Investimentos de portflioInvestimentos diretos

    (8,0)(2,0)

    (7,9)(2,0)

    (34,5)(1,7)

    (29,1)(2,4)

    (69,9)(1,4)

    (72,7)(1,4)

    Movimentos de capitaisem % do PIB 14,3 13,8 26,5 27,1 113,4 114,0(a)VariaesFonte: Rapports Annuels de la Balance des Paiements. Banque de France.

    Constata-se, com efeito, um crescimento brutal dos movimentos decapitais. Em 1980, os fluxos registrados pelo balano de pagamentos repartiam-se

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    razo de 71% para as transaes correntes e de 29% para os movimentos de

    capitais (Tabela 9). Em 1994, esta estrutura se invertia j que as transaescorrentes no representam mais que 23% e os capitais 77% dos fluxos da balanade pagamentos da Frana. Os movimentos de capital ultrapassam, a partir da,100% do PIB, quando esta porcentagem no foi mais de 14% em 1989. interessante notar que este crescimento dos fluxos financeiros externos sobreveioquando a balana de transaes correntes da Frana esteve prxima do equilbrio,com um saldo mdio inferior a 1% do PIB, no curso do perodo recente!Reencontra-se, desse modo, a desconexo mencionada anteriormente, entre astrocas de bens e servios, de um lado, e as operaes financeiras internacionais,de outro.

    O predomnio dos fluxos financeiros foi devido, em grande medida, ao

    crescimento explosivo dos investimentos de portflio13 (superior a mais de 50%por ano, em mdia, desde 1990). Em contrapartida, a progresso dosinvestimentos diretos, cuja rentabilidade ligada esfera produtiva, foi muitomais lenta: em 1994, eles no representam mais que 1,4% dos fluxos registradosna balana de pagamentos.

    Tabela 11Evoluo da balana de capital francesa.Fluxos lquidos em bilhes de francos (a)

    1989 1990 1991 1992 1993 1994

    1. Investimentos diretos (saldo) -54,3 -98,3 -53,2 -16,8 -0,1 -6,22. Investimentos de portflioA. Investimento francs no exterior -42,3 -46,1 -84,2 -101,4 -171,7 -110,7B. Investimento externo na Frana +181,2 +234,1 +167,0 +282,9 +194,8 -160,0C. Investimento com ttulos pblicos (+106,5) (+142,0) (+46,1) (+183,9) (+90,2) (-178,5)

    Relao C/B (58,8%) (65,8%) (27,6%) (64,8%) (46,3%) (111,5%)D. Instrumentos condicionais -- -- -2,2 +5,5 -1,8 -0,8

    - Saldo: A + B + D +138,8 +188,0 +80,6 +187,0 +21,2 -271,73. Outros movimentos de capitais -49,0 -6,3 +10,3 -192,8 -80,0 +221,2Balano global dos capitais (b) 1 + 2 + 3 +35,5 +83,4 +37,7 -22,6 -58,9 -56,7(a)sinal +: entrada de capitais (aumento dos investimentos externos)

    sinal - :sada de capitais (aumento dos crditos externos)(b)Inclui o ajustamento, no inclui as transferncias em capital.

    Fonte: Publications de la Banque de France.

    A dvida pblica, suporte privilegiado da especulao

    O carter especulativo destas operaes ilustrado pela forte volatilidadedo saldo dos investimentos de portflio. Aps ter sido inflado no momento do

    (13) Os investimentos de portflio correspondem a transaes com ttulos estrangeiros efetuadas com oobjetivo de rentabilidade financeira. Os investimentos diretos correspondem aquisio de participaes nasempresas estrangeiras realizadas dentro de uma lgica industrial e comercial.

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    boom nos mercados de valores, no incio dos anos 90, o saldo retraiu-se

    violentamente aps a crise do mercado. Essas evolues atestam que osinvestidores estrangeiros negociam os ttulos franceses com uma viso largamenteespeculativa para realizar lucros no curto prazo.

    Constata-se, pela Tabela 11, que uma parte importante (mais de 50% emmdia) das compras de valores franceses pelos no-residentes se referem aosttulos da dvida pblica. O Tesouro francs, com efeito, foi um dos tomadorespblicos dos mais dinmicos nos mercados internacionais. Ele props ttulosparticularmente atrativos aos investidores, notadamente as ObrigaesAssimilveis do Tesouro (OAT). O carter especulativo desses investimentos evidenciado pelo fato de que uma parte importante das compras das OAT por no-residentes foi financiada por emprstimos em francos dos bancos franceses, como

    sugere o Grfico 4. Encontra-se aqui uma outra categoria de crditosespeculativos ofertados pelo sistema bancrio francs.

    Grfico 4Compras de OAT pelos investidores no-residentes financiadas pelos emprstimos

    dos bancos franceses

    Estes comportamentos especulativos constituem, doravante, umaverdadeira espada de Dmocles sobre a cabea das autoridades pblicasfrancesas. Estas caem na armadilha da famosa trindade impossvel, segundo oqual no se pode obter simultaneamente a estabilidade monetria, a mobilidadedos capitais e a autonomia da poltica monetria. A partir do momento, em que oprincpio da liberalizao da finana aceito, necessrio garantir a estabilidade

    Emprstimos de francos para no-residentes

    OAT em francos dos no-residentes

    Fonte: Plihon (1994).

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    monetria e assegurar a livre circulao dos capitais internacionais; logo, no h

    mais independncia da poltica monetria. Ela de agora em diante, largamenteditada pelos interesses dos investidores estrangeiros que detm, hoje, em torno deum tero da dvida pblica francesa (ver Tabela 5).

    4. A acumulao produtiva freada pela liberalizao da finana

    4.1. A finana liberalizada conduziu s taxas de juro elevadas

    As transformaes do sistema financeiro internacional e o nvel elevado

    das taxas de juro reais so dois fenmenos intimamente ligados. Viu-se que,inicialmente, a alta das taxas de juro foi desencadeada pelo endurecimento daspolticas monetrias. Em seguida, a manuteno das taxas de juros reais em umnvel elevado foi resultado do novo modo de regulao internacional imposto pelaliberalizao da finana.

    Nos anos 1960/70, as economias industrializadas conheceram, em geral,uma situao marcada pela inflao e um comportamento monoplico do sistemafinanceiro: este remunerou mal os depositantes e este resultado econmicorepercutiu sobre os emprestadores. As taxas de juros nominais e reais estavambaixas e as reais at mesmo negativas (Tabela 2). Esta poltica foi encorajadapelos governantes, que viam nela um meio de sustentar o investimento.

    Para as teorias liberais, essas polticas de baixa taxa de juros conduziam auma alocao de recursos ruim, permitindo o financiamento de investimentos debaixa rentabilidade. Ademais, o controle administrativo do crdito foi fonte derigidez e de desperdcio, em favor dos projetos pblicos e das empresas poucocompetitivas. Chegou-se a uma situao de represso financeira, segundo a tesedesenvolvida por McKinnon (1989), na qual a poupana e o investimento foramdesencorajados pelos sistemas financeiros administrados e pouco competitivos.14

    Segundo esta concepo, a liberalizao financeira deveria estimular apoupana e o investimento, permitindo a alta das taxas de juro. A poupana umafuno crescente da taxa de juro; quanto maior a taxa de juro, mais os agenteseconmicos admitem a hiptese de renunciar ao gasto imediato e optar em favorde um consumo futuro, cujo nvel ser aumentado pela alta das rendas financeiras.Por outro lado, a alta da taxa de juros deve conduzir a uma melhor alocao docapital, posto que os projetos de investimento menos rentveis so eliminados.

    As polticas liberais que foram postas em prtica nos pasesindustrializados, a partir do final dos anos 70, traduziram-se efetivamente por uma

    (14) Veja sobre este tema a contribuio de P. Salama Do capital financeiro financeirizao ou industrializao excludente.

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    alta das taxas de juro. Os monoplios bancrios foram quebrados; a concorrncia

    entre os intermedirios financeiros fez desaparecer os recursos baratos; e aconcorrncia entre pases obrigou cada um a alinhar-se maior taxa de juroofertada.

    A flexibilizao da finana criou uma relao de fora favorvel aoscredores. Certos autores no hesitam em falar de uma ditadura dos credores(Fitoussi, 1995). Esta uma das principais razes da manuteno das taxas de juroreais em um nvel elevado. Os credores pressionam constantemente para preservarsuas remuneraes e suas riquezas. Eles impuseram a estabilidade monetria econseguiram que as taxas de juro incluam os prmios de risco para cobrir o custoda instabilidade crescente dos mercados. Encontra-se aqui uma diferenaessencial com a finana monoplica e administrada, que funcionou at o final dos

    anos 70. Este ltimo sistema favoreceu, com efeito, ao tomador, que sebeneficiava das baixas taxas de juro reais graas ao prmio inflacionrio.

    O debate sobre o impacto das taxas de juro reais elevadas

    No obstante, a alta das taxas de juro no produziu os efeitos benficosesperados sobre a poupana e o investimento. a evoluo inversa que foiregistrada desde o incio dos anos 80, a alta das taxas de juro andou junto com atendncia baixa simultnea das taxas de poupana e de investimento nosprincipais pases industrializados, como descrito pela Tabela 12.15

    Tabela 12Evoluo da poupana e do investimento nos principais pases industrializadosem % do PIB

    1960/69 1970/79 1980/89 1990 1991 1992 1993 1994Taxa de investimento global

    Frana 23,4 24,1 20,6 21,4 21,1 20,0 18,9 19,1Estados Unidos 18,3 19,1 19,0 16,8 15,4 15,3 16,0 17,8Alemanha 24,8 22,6 20,3 20,9 23,9 23,2 21,5 21,6Itlia 24,8 24,0 21,3 20,3 19,7 19,1 17,1 16,7Reino Unido 18,0 19,2 17,5 19,5 17,0 15,7 15,0 15,3Japo 31,6 33,1 29,1 32,2 31,8 30,7 29,8 29,4Mdia do G-10 24,5 24,0 21,3 20,7 20,3 19,2 19,0 19,6

    Taxa de poupana global brutaFrana 26,3 25,9 20,7 21,5 20,9 19,8 18,6 18,8Estados Unidos 20,1 19,8 17,8 15,4 15,5 14,4 14,7 15,7

    Alemanha 27,3 24,4 22,4 24,9 22,8 22,1 20,4 20,4Itlia 28,3 26,0 21,8 19,6 18,6 17,2 18,0 18,2Reino Unido 18,5 17,9 16,5 14,3 13,5 12,8 12,7 13,9Japo 34,4 35,3 31,8 34,6 35,1 34,0 32,5 32,4Mdia do G-10 24,5 24,0 21,3 20,7 20,3 19,2 19,0 19,6

    Fonte: Comptes Nationaux de lOCDE.

    (15) Nota-se o caso particular da Alemanha que registrou uma alta significativa da sua taxa deinvestimento no decurso dos anos 90. Esta evoluo favorvel foi devida reunificao das duas Alemanhas, quese traduziu por um choque da demanda atravs das finanas pblicas; isto , por uma poltica keynesianaexpansionista.

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    Esta constatao contradiz a hiptese introduzida pelos economistas

    liberais, segundo a qual uma forte alta das taxas de juro reais, obtida graas liberalizao financeira, permite reforar a poupana e o investimento. Os fatosparecem, antes, dar razo anlise proposta por Keynes. Este tinha, precisamente,criticado a idia, segundo a qual um nvel elevado da taxa de juros era necessriopara induzir a uma poupana suficiente (Keynes, 1936, cap. 24). Ele apresentou apoupana como uma funo da renda e no da taxa de juro. Como a rendadepende do investimento via efeito multiplicador, a poupana , no final dascontas, determinada pelo investimento, que uma funo decrescente da taxa dejuro. Assim, taxas de juros elevadas conduzem, antes, a uma baixa doinvestimento e da poupana, entrando em conflito com o crescimento e oemprego. No final das contas, a represso financeira ser antes causada por um

    nvel elevado das taxas de juro reais, o que contradiz as concluses da visoliberal.

    Grfico 5O declnio da rentabilidade do investimento na Frana

    Pode-se explicar a baixa da taxa mdia de investimento pela diminuioda taxa de lucro, medida pela diferena entre a taxa de rentabilidade do capital eda taxa de juro real. O Grfico 5 mostra, assim, que no caso da Frana, a

    (**) Taxa de rentabilidade econmica

    (*) Taxa de juro real

    (*) Taxa de juro aparente da dvida das empresas deflacionada pelo ndice de preo ao consumidor. (**) Poupana lquida + dividendos + imposto sobre as empresas/estoque de capital lquido.Lucratividade: Diferena entre rendimento do capital e taxa de juro real. Constata-se que, at o incio dos anos80, a lucratividade foi fortemente positiva porque a rentabilidade do investimento foi superior taxa de juroreal. A lucratividade encontra-se prxima de zero, em seguida.Fonte: INSEE, calculs BNP-DEE.

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    recuperao da rentabilidade aparente do capital foi largamente atenuada pela alta

    da taxa de juro. Pode-se pensar que esta mesma evoluo se encontra na maioriados pases industrializados.

    Quanto baixa da taxa de poupana, o Fundo Monetrio Internacional(FMI) que representa a ortodoxia financeira internacional terminou, elemesmo, por reconhecer, no ltimo relatrio anual sobre a economia mundial(1995), que a maioria dos trabalhos indicam que liberalizao financeira teve umimpacto negativo sobre o comportamento da poupana nos pases industrializados,ainda que este efeito devesse ser temporrio (p. 81). O FMI admitiu igualmente ofundamental da anlise keynesiana, uma vez que publicou as seguintesobservaes: Os trabalhos, que abrangeram os testes de causalidade estatstica,levam cada vez mais concluso da existncia de um elo de causa e efeito que

    parte do crescimento (da renda) em direo poupana (p. 77).

    4.2. Os efeitos devastadores das taxas de juro elevadas

    O alto nvel das taxas de juro reais teve efeitos considerveis. Elecontribui para encurtar o horizonte dos agentes econmicos, posto que o preo dofuturo, medido pela taxa de juro, tem aumentado. Assim se explica que sejaprivilegiada a rentabilidade de curto prazo em detrimento dos projetos deinvestimento de prazo mais longo. Por outro lado, o nvel elevado das taxas dejuro reais conduz supremacia do capital financeiro sobre o capital produtivo(Guttmann, 1994).16 Neste contexto, com efeito, as empresas no so maisinduzidas a investir e a crescer, porque o custo do endividamento superior aorendimento prospectivo do capital produtivo (efeito de alavancagem negativo). Osinvestimentos financeiros, sob a forma de compra de ttulos, tornam-se maisrentveis. Para usar a expresso de Hicks (1974), passa-se de uma economia deendividamento (overdraft economy), orientada para os investimentos produtivosfinanciados pelo endividamento junto aos bancos, a uma economia de fundosprprios (autoeconomy), onde as empresas buscam maximizar seus lucros pelaspolticas de desendividamento e de aplicaes financeiras. exatamente o que seobservou na Frana desde o incio dos anos 90 (Plihon, 1995).

    dentro deste contexto que se desenvolveu o capital fictcio,17isto , osativos financeiros negociveis, cujo valor depende da situao do mercado e seencontra dissociado das vicissitudes do risco industrial. Como estes ativos so

    (16) Veja, igualmente, a contribuio de Guttmann (1996).(17) Marx, no Capital, v. 3 (1894), foi o primeiro a utilizar o conceito de capital fictcio, que ele

    opunha ao capital emprestado (para produzir) e que associava aos ttulos financeiros cujos valores no tinhamcontrapartida no nvel do capital produtivo. Recentemente, H. Bourguinat introduziu o conceito de finanavirtual para qualificar as transaes financeiras que proliferam margem da esfera produtiva e que se apiamem produtos imagens como os produtos derivativos.

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    negociveis no mercado, eles so mais lquidos que os crditos correspondentes

    aos do capital emprestado (os crditos dos bancos para com as empresas). Estaspropriedades encorajam que se assumam posies especulativas cujo objetivo ,como j se viu, a realizao do lucro nas operaes que no tm como objeto ofinanciamento do capital produtivo. A especulao no um fenmeno novo nahistria do capitalismo (Kindleberger, 1978; Galbraith, 1995). Mas as inovaesfinanceiras recentes deram-lhe uma importncia sem precedentes. Uma ilustraoeloqente desta constatao fornecida pelo funcionamento dos mercados deprodutos derivativos, nos quais 75% das operaes so de natureza especulativa eque tiveram um papel importante quando das crises monetrias e financeirasrecentes.

    A lgica da especulao prevalece sobre a lgica da produoCertas anlises atuais chegam a considerar que o nvel elevado das taxas

    de juro reais um fator de desestabilizao profunda para as economiascontemporneas, na medida em que se dissocia o interesse do empresrio ou dotrabalhador, de um lado, e dos detentores de ativos financeiros, de outro. Para osprimeiros, a taxa de crescimento da economia que importa; para os segundos, ataxa de juro real. No momento em que esta ultrapassa a taxa de crescimento, assolidariedades construdas em torno de uma projeo coletiva do futuro tendem ase dissolver (Fitoussi, 1995).

    De fato, as anlises modernas no fazem mais do que retomar as idiasque Keynes j tinha adiantado. Este indica, na Teoria geral (1936: cap.12) que,

    diante das incertezas do futuro, os agentes econmicos optam entre duas atitudes:empreender o que consiste em prever o rendimento descontado dosinvestimentos produtivos; ou especular, o que significa prever a psicologia domercado. A especulao definida como um comportamento de preferncia pelaliquidez e de proteo contra a incerteza. Quando a incerteza em relao ao futuro grande, a economia de empresa recua, cedendo espao ao esprito especulativo.A circulao financeira deve ser, ento, mais ativa que a circulao industrial.

    No tratado sobre a reforma monetria (1923), Keynes explica que osmercados financeiros no contribuem para o bom funcionamento da empresa; ano ser que haja uma separao das funes entre aquele que investe e aquele quepoupa. A confuso dessas funes significa que a moral do empreendedor recuae que, simetricamente, a especulao cresce.

    Os investidores internacionais frente do governo de empresa18

    Com o crescimento em potencial dos investidores institucionaisinternacionais, assiste-se, precisamente nos dias atuais, quela confuso dasfunes da poupana e do investimento, denunciada por Keynes. Os investidores

    (18) Governo de empresa a traduo do conceito americano de corporate governance.

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    institucionais dividem-se em duas categorias: eles so, em primeiro lugar, os

    fundos de penso, particularmente poderosos nos Estados Unidos e no ReinoUnido, que administram as aposentadorias pela capitalizao. Sua aplicaofinanceira passou de 3,9 trilhes de dlares, em 1988, para 6,9 trilhes, em 1993(3,6 trilhes nos Estados Unidos)). Existe igualmente os Organismos de AplicaoColetiva em Valores Mobilirios (OPCVM) ou mutual funds, cujos ativospassaram de US$1,8 trilhes em 1988 para US$3 trilhes em 1993 (2,1 nosEstados Unidos).

    Tabela 13Tamanho do portflio global dos fundos de investimento

    em bilhes de dlares1988 1993

    Fundos de penso 3 900 6 900OPCVM (mutual funds) 1 800 3 000Total 5 700 9 900

    Fonte: Presse Financire.

    Os gerentes destes fundos de investimentos so, sem dvida, atualmente,os atores mais poderosos do planeta. Fidelity, o primeiro fundo de investimentoamericano e do mundo, movimenta cerca de 330 bilhes de dlares (1,8 trilhesde francos). Uma categoria bem conhecida de investidores especializada nasoperaes puramente especulativas: so os hedge funds19 ou fundos de altodesempenho, dentre os quais o mais importante o Quantum Fund, dirigido por

    G. Soros.20

    Estes fundos de investimento esto na origem de uma parte importantedos movimentos internacionais de capitais; eles fazem ou desfazem as moedas.Com efeito, em mdia, 10% de suas aplicaes financeiras (aproximadamente 1trilho de dlares em 1993) foram investidas em ttulos estrangeiros. Detm umaparte importante da dvida pblica dos pases industrializados. O deslocamentodessas aplicaes de uma moeda para outra basta para desestabilizar as moedasem questo.

    Estes fundos de investimento impem seus critrios de gesto sempresas, cujo capital e dvida controlam: o sistema de corporate governanceou governo da empresa (Albert et al. 1994), que consagra a supremacia da

    lgica financeira nas empresas e nos bancos. Dentro deste sistema, que sedesenvolveu a partir dos Estados Unidos, o poder dentro da empresa est com osgerentes dos fundos de investimento, que so considerados como representantesdos acionistas. Esta redistribuio do poder se faz em detrimento dos executivos

    (19) Os hedge funds, que significam fundos de cobertura (hedge), representam bem mal seu nome, umavez que seu objetivo principal a especulao.

    (20) Este fundo parece ter tido um papel importante nos ataques especulativos de 1992/93, queexplodiram o sistema monetrio europeu. G. Soros teria ganho 1 bilho de dlares com aplicaes, quando da

    baixa da libra esterlina.

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    (a tecnoestrutura). A empresa deve ser gerenciada segundo critrios puramente

    financeiros: estes devem satisfazer os objetivos de rentabilidade financeira decurto prazo dos organismos de gesto coletiva da poupana.

    Uma das conseqncias dessa nova lgica o esprito de curto prazo,21isto , o encurtamento do horizonte temporal da empresa. Os acionistas (pequenose grandes) externos s empresas impelem os executivos a privilegiar os resultadosfinanceiros de curto prazo em detrimento do crescimento de longo prazo. Sob apresso dos mercados financeiros e dos fundos de investimento, os dirigentes dasempresas so conduzidos a privilegiar a satisfao dos impulsos imediatos de umconjunto de acionistas cada vez mais socializado.

    A crise dos sistemas bancrios

    Esta emergncia brutal da flexibilizao da finana tem igualmenteexercido um efeito desestabilizador sobre os sistemas bancrios dos pasesindustrializados. Os pases mais atingidos foram os Estados Unidos, no incio dosanos 80, seguidos do Japo e da Frana, no curso do perodo atual. A situaocrtica em que se encontram atualmente os bancos franceses descritos pelosindicadores da Tabela 14 ilustra, perfeitamente, a gravidade do choque. Aparticipao dos bancos no financiamento da economia, medida pela taxa deintermediao, diminuiu fortemente, passando de 64,6%, em 1985, para 22,6%,em 1993. Esta queda brutal teve duas causas principais:a concorrncia exercida pelo financiamento direto: as grandes empresaspreferem se endividar nos mercados, emitindo ttulos antes de tomar emprestadojunto aos bancos;o crescimento da economia de fundos prprios: em vista do nvel elevado dastaxas de juro, as empresas procuram se desendividar e financiar seusinvestimentos com sua poupana; desse modo que a taxa de autofinanciamentodas empresas passou de 83%, em 1985, para 105,7%, em 1993.

    A partir de 1992, o crdito bancrio, medido em termos reais, diminuiu eos resultados dos bancos tornaram-se negativos, o que no se via desde 1945.Estes maus resultados dos bancos trouxeram importantes conseqncias sobre oseu comportamento de financiamento da economia francesa. Em primeiro lugar,os bancos estavam duramente fragilizados, eles no podiam mais fazer o papel demotor do crescimento, que foi o seu objetivo no passado. Em segundo lugar, parapreservarem suas atividades e sobreviverem, os bancos so incitados a assumirriscos e a desenvolver operaes de natureza especulativa, o que aumenta suavulnerabilidade. Finalmente, os bancos so levados a destruir empregos pararealizar ganhos de produtividade: o nmero de assalariados diminui sem parar,desde 1987 (Tabela 14).

    (21) Esprito de curto prazo: court-termisme(N. da T.).

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    Tabela 14

    Alguns indicadores da crise do sistema bancrio francs1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993

    Taxa de autofinanciamento

    das empresas em % (1)83 93,5 95,9 103,1 98,1 90,6 93,7 101,1 105,7

    Taxa de intermediao em % (2) 64,6 45 62,8 66,1 56 58 52,5 36,1 22,6Evoluo dos crditos em francos

    constantes(3)+0,5 -5,7 -0,3 +11,5 +13,3 +6,8 +7,8 -0,3 +2,2

    Provises + perdas com crditos

    incobrveis em % (4)19,6 21,5 20,5 18 19,1 21,6 21,5 38,2 36,3

    Resultado lquido em % (4) 6,7 8,2 9,1 10,1 7,8 7,3 8,3 -0,9 -5,2

    Evoluo do nmero de assalariados +0,4 +0,7 -0,9 -1,2 -0,8 -1,6 -2,2 -2,3 -2,5(1)

    poupana bruta/investimento(2)

    crditos distribudos pelos bancos/conjunto dos crditos para a economia(3)

    taxa de crescimento anual dos crditos para a economia corrigidos da inflao(4)em % do produto lquido bancrio

    Fontes: Banque de France et INSEE.

    A fim de analisar o comportamento dos bancos diante da crise, tildistinguir trs categorias de crditos bancrios, segundo sua destinao (Pollin,1992). O primeiro tipo serve para financiar o aumento do capital produtivo(crdito produtivo); o segundo financia a aquisio dos ativos patrimoniaisefetuada com o intuito de realizar ganhos futuros (crdito especulativo); o terceirotipo de crdito permite financiar as despesas correntes dos agentes no-financeirosque no podem ser efetuadas com seus recursos prprios por causa de uma

    inflexo nas suas rendas reais (crditos substitutivos).No passado, no regime de economia de endividamento, os bancosdistribuam os crditos produtivos para financiar os investimentos. Por outrolado, estes desempenhavam o papel de amortecedor nas recesses e favoreciam aretomada do crescimento, oferecendo crditos substitutivos. No perodo atual,os bancos no mais parecem estar altura de desempenhar este papel, pois elesesto fragilizados pelas mutaes financeiras recentes. Esta mudana decomportamento certamente contribuiu para a recesso de 1992/93, a maisprofunda do ps-guerra, e para a fraqueza da retomada do crescimento registradadesde 1994.

    Para lutar contra a eroso de suas participaes no mercado, os bancos

    procuraram diversificar sua atividade. A fim de reconstituir rapidamente suasmargens de lucro, foram incitados a por em prtica uma verdadeira fuga adiante,levando, s vezes, a resultados catastrficos. Os bancos, desse modo,desenvolveram intensamente os crditos-promotores, a fim de lucrar com a bolhaespeculativa que ocorreu no setor imobilirio no final dos anos 80. Esses crditosespeculativos custaram caro aos bancos em seguida crise imobiliria quegrassou a partir de 1990. Em grande medida, por causa do desmoronamento dosetor imobilirio, a participao dos crditos incertos, no total dos crditos

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    distribudos pelos Bancos AFB,22mais que dobrou, passando de 1,8%, em 1989,

    para 4,2%, em 1993. As provises considerveis (estimadas em 100 bilhes defrancos), que os bancos deviam constituir para cobrir seus riscos so uma dascausas principais das perdas financeiras recentes (veja a Tabela 14).

    A atividade especulativa dos bancos orientou-se, a seguir, para osprodutos derivativos. Em 1993, a soma nocional destas operaes para os bancosAFB, arrolada fora do balano, foi cinco vezes superior ao seu tamanho. Nomesmo ano, ganhando com o boomespeculativo nos mercados de obrigaes, osbancos aplicaram seus ganhos nos mercados de derivativos, que representavammais de 40% de suas receitas lquidas globais, medidas pelo produto lquidobancrio.23 uma situao muito perigosa, quando se sabe que os bancosamericanos e ingleses (Barings) decretaram falncia especulando com os

    derivativos.

    5. Reorientar as polticas pblicas

    Em meados dos anos 90, as polticas liberais vivem um impasse, por duasrazes: em primeiro lugar, a flexibilizao financeira traduz-se por uma ditadurados mercados, diante da qual as autoridades nacionais se tornaram impotentes.Em segundo lugar, as polticas pblicas se apoiam em esquemas analticosinadequados, o que as conduz a erros de diagnstico.

    5.1. A impotncia das polticas monetrias diante dos mercados

    As autoridades monetrias das principais potncias financeirasencontram-se, doravante em uma situao de buscar l e sair tosquiado. De umlado, como se viu, os poderes pblicos nacionais desempenharam um papel decatalisadores, no crescimento explosivo da finana internacional. De outro, amassa de capitais, doravante suscetveis de se deslocar a todo momento entre aspraas financeiras, tornou-se uma ameaa permanente para as autoridadesmonetrias. Alguns no hesitam em considerar que os mercados exercem, ento,uma verdadeira tirania sobre as polticas econmicas (Bourguinat, 1995).

    De fato, a experincia recente sugere que os instrumentos tradicionais depoltica monetria perderam sua eficcia. Isto particularmente verdadeiro para as

    (22) Os bancos AFB so vinculados Associao Profissional dos Bancos. Eles constituem, ao lado darede mutualista, o principal componente do sistema bancrio francs. BNP, o Crdit Lyonnais e o SocietsGnrales, muitas vezes chamados os trs velhos so bancos AFB.

    (23) Bem claro que, as operaes com produtos derivativos no so todas de natureza especulativa eservem, em princpio, para cobrir os riscos da taxa. Considera-se, no obstante, que 75% destas operaes so denatureza especulativa, isto , tem como objetivo principal a realizao de ganhos antecipados.

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    polticas cambiais dos Bancos Centrais. No passado, as polticas repousavam

    sobre trs instrumentos principais: as intervenes esterilizadoras no mercadode divisas; a manipulao das taxas de juro; e do controle de divisas. Aliberalizao financeira conduziu suspenso direta de compra/venda desteltimo controle. Quanto aos outros dois instrumentos, sua eficcia tornou-se fracaem perodo de crise nos mercados.

    As reservas cambiais dos bancos centrais mesmo tendo sido aumentadasas facilidades oficiais de emprstimos, so doravante insuficientes para fazer faceaos ataques especulativos, que pem em jogo somas considerveis, a partir dasaplicaes relativamente fracas (em particular, para os produtos derivativos). Asreservas oficiais dos dez principais pases industrializados no se elevam a maisde 400 bilhes de dlares, o que pouco, diante dos movimentos de capitais

    suscetveis de se deslocarem. Dessa forma, poca da crise cambial, do SME, dejulho de 1993,24 o Banco da Frana perdeu a totalidade de suas reservas emdivisas. Do mesmo modo, a manipulao da taxa de juro no teve seno um efeitolimitado, diante de um movimento profundo de desconfiana com respeito moeda: a ttulo de ilustrao, para defender eficazmente uma moeda exposta aosataques especulativos fundados sobre uma depreciao antecipada de 10% nohorizonte de um ms, ser necessrio subir a mais de 120% o nvel das taxas decurto prazo, o que, evidentemente, incompatvel com os objetivos internos dapoltica monetria.

    Pode-se considerar que em meados dos anos 90, as polticas monetrias seacham no somente ineficazes mas igualmente contraprodutivas, por duas sriesde razes. H, em primeiro lugar, um argumento adiantado pelos prprioseconomistas liberais, conhecido sob o rtulo de aritmtica monetarista (Sargent& Wallace, 1981). A idia exposta que uma economia monetria restritiva queconduz as taxas de juros a um nvel superior ao do crescimento econmicoconduzir, necessariamente, no final, inflao e instabilidade financeira. Nestecontexto, os agentes econmicos racionais vo antecipar um aumento dosdficits pblicos. No modelo monetarista, a nica sada possvel , cedo ou tarde,inflao suplementar para diminuir o encargo real da dvida pblica. ,efetivamente, segundo este mecanismo inflacionrio que alguns pases regulamsua dvida pblica.25

    Mas um outro cenrio ainda mais perigoso, do tipo deflacionrio, queparece se desenrolar, desde que a estabilidade dos preos se tornou o objetivoprioritrio das polticas monetrias. Nesta situao, com efeito, os desequilbriosmacroeconmicos no podem mais se resolver pelas variaes da taxa da inflao.O endividamento torna-se, ento, insuportvel. Os agentes privados e pblicos

    (24) SME Sistema Monetrio Europeu (N. da T.)(25) Os economistas liberais denominam com a palavra francesa seigneuriage esta poltica de

    diminuio da dvida pblica atravs da inflao.

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    endividados so obrigados a sanear sua situao financeira, o que os conduz a

    reduzir suas despesas e a diminuir a atividade econmica. O comportamentoracional no nvel microeconmico vai, realmente, reforar a depresso econmica,segundo um processo cumulativo de deflao de dvidas, que Fisher (1933)trouxe baila para explicar a grande crise dos anos 30. O comportamento atual dereduo das despesas e de desendividamento das empresas e das administraespblicas nos pases industrializados inscreveu-se perfeitamente no processodeflacionrio.

    5.2. O erro de diagnstico

    A atual falta de eficcia das polticas pblicas provm, igualmente, de umerro de anlise quanto s causas de suas dificuldades. Em meados dos anos 90,admitiu-se, a justo ttulo, que a questo fundamental da poltica econmica,particularmente nos pases europeus, a sada do entrelaamento dos dficitspblicos crescentes, de um lado, e das taxas de juro elevadas, de outro. Diz-se quea situao das finanas pblicas se agravar tanto, que o nvel das taxas de juroreais permanecer superior ao do crescimento do PIB.

    Segundo a concepo dominante, os dficits pblicos so os principaisresponsveis pelo elevado nvel da taxa de juro, de modo que, uma reduo dosmesmos dever fazer baixar as taxas de juro. A hiptese bsica que a taxa dejuro real reflete as tenses nos mercados de bens: um nvel elevado destacorresponde a um excesso de demanda, isto , a uma insuficincia da poupana.Todo aumento da demanda devida a um aumento do dficit pblico provoca umaalta na taxa de juro real e uma queda na produo. Ento, a baixa das taxas de juroe o retorno a um crescimento equilibrado necessitam de uma poltica oramentriarestritiva. Esta no pode exercer seno um impacto positivo sobre o crescimentoeconmico, porque ela reduz a substituio das despesas privadas pelasdespesas pblicas. este quadro, inspirado no paradigma neoclssico, que orientaas recomendaes da OCDE e do FMI, e que constitui a doutrina oficial dosprincipais pases industrializados.

    Esta viso parece largamente ultrapassada pelos fatos. Existe umaabundante literatura sobre a relao entre a dvida pblica e a taxa de juro. Estano consegue estabelecer a existncia de um efeito de substituio das despesasprivadas pelas despesas pblicas atravs da alta das taxas de juro (Paraponaris,1994). Por outro lado, se fosse verdadeiro que o nvel das taxas de juro reais comandado pelas tenses dos mercados de bens, este nvel deveria se elevarquando a demanda fosse maior que a oferta nos perodos de inflao rpida e deforte utilizao da capacidade produtiva. Ora, essa assero no mais se verificou:deste modo, os pases da Unio Europia experimentaram uma alta espetacular

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    das taxas de juro reais nos anos 80, enquanto havia um nvel alto de margens de

    capacidades no-utilizadas (Crel & Sterdynick, 1995). A hiptese do excesso dedemanda ou da insuficincia de poupana, portanto, no tem fundamento.Assentar as polticas econmicas sobre um tal erro de diagnstico no pode senoconduzir a desiluses.

    Parece ento que o nvel elevado das taxas de juro reais no correspondemais a uma insuficincia da poupana ou a um excesso estrutural da demanda nomercado de bens, que seria causado pelos dficits pblicos. Como j foi mostrado,os dficits pblicos so o efeito do nvel elevado das taxas de juro. Estas tm umaorigem essencialmente financeira. Dois fatores explicativos foram postos emdiscusso: o endurecimento das polticas monetrias, de uma parte, e aflexibilizao financeira que deu um peso importante aos rentistas e

    especulao, de outra. trabalhando sobre essas causas que as polticas pblicasreencontraro sua eficcia e que as taxas de juros reais baixaro.

    5.3. Enquadrar os mercados financeiros

    A liberalizao financeira concedeu um poder exorbitante aos mercados ereduziu, consideravelmente, o papel das polticas monetrias. Muito se temdiscutido sobre a estratgia, por conseguinte para restaurar a eficcia da polticamonetria em face do capital internacional. Duas concepes se opem a esserespeito, a corrente do pensamento liberal acentua a credibilidade da polticamonetria. Segundo esta concepo, a impotncia das polticas monetrias dianteda especulao, em situao de mobilidade perfeita dos capitais, pode serexplicada a partir das antecipaes auto-realizadoras. Em outros termos, osmercados provocam as crises cambiais ao antecip-las. So os ataquesespeculativos que causam as modificaes da poltica econmica.

    Quando uma moeda atacada, podem ocorrer dois equilbrios de longoprazo, segundo a reao do Banco Central: ou o Banco Central reputado como fraco (wet central bank), caso em que oataque conduz a uma depreciao imediata da moeda; a depreciao provm deuma falta de credibilidade da poltica monetria; ou o Banco Central forte (dry central bank); e reage ao ataque atravs deuma poltica monetria restritiva. Esta reao, sendo antecipada, faz com que ataxa cambial se valorize imediatamente.

    Uma segunda concepo de poltica monetria, de inspirao keynesiana,considera que a credibilidade no um escudo suficiente contra a instabilidadecausada pela especulao. A idia central que os mercados financeiros nopodem mais se auto-regular e esto sujeitos ao risco sistmico(Aglietta et al.1990).

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    Por risco sistmico entende-se um risco de instabilidade global que

    resulta da propagao dos movimentos especulativos nos mercados, quando ainterao dos comportamentos individuais, longe de desembocar em ajustescorretivos, agrava os desequilbrios. A crise sistmica ligada aofuncionamento do prprio sistema e no pode ser resolvida por uma regulao, deorigem externa (extra-mercado), efetuada pelas autoridades monetrias.

    Coordenao internacional das polticas econmicas

    A ao reguladora realizada pelas autoridades pode tomar duas formasprincipais. Em primeiro lugar, trata-se de pr em prtica uma forte coordenaodas polticas econmicas entre as principais potncias econmicas e financeiras.O objetivo principal desta medida enviar os sinais coerentes aos mercados, de

    modo a prover uma ancoragem s antecipaes dos operadores. Como a finanaespeculativa se traduz por desequilbrios mltiplos correspondentes santecipaes diferentes, o nico meio de encontrar o bom equilbrio suscit-lopela fixao de objetivos articulados de poltica econmica. Tais tentativas decoordenao se manifestaram por ocasio dos encontros do G-7, mas malograramat aqui, pois os nacionalismos monetrios continuam muito fortes, at enquanto afinana se encontra universalizada. Pode-se constatar, no decurso do perodorecente, que as crises financeiras internacionais, freqentemente, tm por origemuma falha na coordenao das polticas nacionais. Desse modo, a crise da bolsa,de outubro de 1987, irrompeu por um desacordo pblico entre as autoridadesamericana e alem quanto poltica das taxas de juro; os alemes opondo-se

    poltica monetria americana frouxa. Do mesmo modo, a crise cambial quedesestabilizou o sistema monetrio europeu em 1992/93 foi provocada pelo fatode que a Alemanha, sob o choque expansionista da reunificao, imps polticasinadequadas a seus parceiros expostos recesso.

    Taxao e regulamentao das operaes especulativas

    A segunda srie de medidas que permitiram reduzir a especulaoconsistiu em proceder-se a uma taxao e a uma nova regulamentao dasoperaes financeiras. O objetivo o de frear a mobilidade do capital e limitar aao do risco nos mercados. Uma das razes da desconexo entre a economia reale o capital especulativo que este ltimo adquiriu uma velocidade de rotao

    rpida demais. Os preos e as transaes nos mercados financeiros desenvolvem-se velocidade da luz, graas liberalizao e as inovaes tecnolgicas,enquanto as trocas de bens e servios eram por natureza, muito mais lentas.Convm reduzir esta diferena, entre as velocidades de ajuste das esferas real efinanceira porque esta fonte de instabilidade, como foi mostrado, notadamentepor Dornbusch (1976), a propsito das taxas cambiais.

    Keynes j tinha sugerido, em 1936, que uma taxa sobre as transaesfinanceiras teria um peso crescente para os operadores fundamentalistas e

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    reduziria a importncia da especulao. Resgatando esta idia, Dornbusch e Tobin

    (1978; 1995) propuseram a imposio de uma taxa uniforme e universal sobre astransaes cambiais. Seria suficiente uma taxao fraca para desencorajar astransaes especulativas a curto prazo: uma taxa de 0,5% sobre as arbitragensinternacionais, que se traduzem por um vai-e-vem entre duas moedas, conduziria aum sobrecusto de 40% em ritmo anual, para operaes de trs meses, de 12% paraoperaes de um ms, ....Esta transao pesaria pouco sobre o setor produtivo e,em contrapartida, seria de natureza a desencorajar a maioria dos movimentosespeculativos.

    Esta proposio freqentemente criticada por sua falta de realismo. verdade que ela no seria eficaz, a no ser que todas as praas financeiras apusessem em prtica. Ou os interesses que seriam atingidos por esta medida so

    to importantes e poderosos que as autoridades pblicas ainda no ousaram passar ao.

    Hoje, admite-se consensualmente que se tornaram necessrias novaspolticas de regulamentao. A liberalizao financeira deve, com efeito, vir juntoa uma regulamentao preventiva rigorosa. Isto , a liberdade atual dos operadoresdeve ter, em contrapartida, respeito s normas estritas de boa gesto e deprudncia. O risco sistmico parece ainda mais importante, j que uma parteconsidervel das operaes escapam a toda forma de controle. Esta observao seaplica, particularmente, aos mercados de derivativos de balco, cujo crescimentoselvagem dos ltimos anos inquietante.

    Duas concepes de regulamentao preventivas se opem. Existe aconcepo liberal segundo a qual a disciplina do mercado suficiente paraeliminar os comportamentos errticos. Basta, ento incitar os operadores apraticar um controle interno rigoroso para evitar os excessos. Esta a posio doComit de Basilia, encarregado de propor medidas de fiscalizao dosmercados.

    Se se considera que os mercados no podem auto-regular-se, claramentenecessrio criar um controle e uma regulamentao preventiva mais restrita. Serianecessrio, sem dvida, que uma crise financeira grave se produzisse para que seimpusessem, verdadeiramente, esta concepo de regulao pblica dos mercadosfinanceiros.

    5.4. Abandonar o dogma do monetarismo

    As polticas econmicas recentes obedecem aos preceitos monetaristas,isto , prioridade dada estabilidade e poltica monetrias. O Tratado deMaastricht, que procura construir a Europa em torno do processo de integraomonetria, constitui a ilustrao mais espetacular desta concepo. A prioridade

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    dada poltica monetria, que se traduz no plano institucional pela independncia

    dos bancos centrais, foi um fator de desestabilizao. Porque ela levou coexistncia de uma poltica monetria restritiva e de uma poltica oramentriaexpansionista, na maioria dos pases industrializados. Ou, como se viu, esta

    policy-mix teve grande participao no desencadeamento da alta das taxas dejuro, o que detonou o crescimento dos dficits pblicos. Sair deste crculo viciosoimplica que esta policy-mixseja invertida, isto , que as polticas de saneamentodas finanas pblicas sejam associadas a uma flexibilizao das polticasmonetrias a fim de assegurar uma queda das taxas de juro.

    Pode-se recear que o contexto institucional no viabiliza esta reorient