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des l o c amentos e refúgios

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deslocamentos e refúgios

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caderno

conSeLHo edITorIaLdjamILa rIbeIro, filósofa edna PaLaTnIk, gerente de desenvolvimento de dramaturgia da Globo Fernanda TorreS, atriz e escritora GabrIeLa moura, relações-públicas e escritoraGeorGe moura, autor e roteirista ILona Szabó, cientista políticajaILSon de Souza e SILva, geógrafo e professor Lázaro ramoS, ator e escritor marcuS barão, presidente do Fórum da juventude da cPLP mônIca WaLdvoGeL, jornalista

coordenaÇão edITorIaLbeaTrIz azeredo vIrIdIana berToLInI GISeLe GomeS

curadoreS deSTa edIÇãomarIa beaTrIz noGueIra, chefe do escritório do acnur em São Paulo

maHa mamo, palestrante e porta-voz da campanha I belong

coLaboradoreS deSTa edIÇãoana PauLa braSIL cíLIa monTeIromILana bernarTT

edITora-cHeFeGrazIeLLa beTInG

edIToreSmurILo roncoLaTo PauLo jebaILI

revISãorIcardo jenSen de oLIveIra

ProjeTo GráFIco e verSão dIGITaLcaSa 36

FoToGraFIaFeLIPe FITTIPaLdI

ProduÇão GráFIcaTonInHo amorIm

GLobo

comunIcaÇãoSérGIo vaLenTe, diretor

reSPonSabILIdade SocIaLbeaTrIz azeredo, diretora

GLobo unIverSIdadevIrIdIana berToLInI, gerentevIvIane Tanner, supervisora

equIPeFaTIma GonÇaLveS GISeLe GomeS HeLena kLanGISabeLLa SaLLeSjuan crISaFuLLI mILana bernarTT

sumário

edITorIaL vidas em movimento 4

arTIGo Fora do lugar, por maurício Santoro 8

GLoSSárIo certo sentido 14

InFoGráFIco deslocamentos em números 18

arTIGo Parâmetros de inclusão, por josé egas e William Laureano 24

arTIGo crise de acolhida, por Liliana Lyra jubilut 32

arTIGo a dor de não pertencer, por Helena celestino 38

enTrevISTa Linha divisória, com rosana baeninger 44

enSaIo a coisa mais importante, por brian Sokol 56

InFoGráFIco realidade brasileira 60

arTIGo movimentos globais, desafios locais, por carolina moulin 64

arTIGo ainda não é amanhã, por vivianne reis 70

crônIca amanheceu em São Paulo, por dione Fonseca 76

arTIGo Tensões no trânsito, por joão carlos jarochinski Silva 82

enTrevISTa no lugar do outro com duca rachid e Thelma Guedes 88

crônIca os outros de nós mesmos, por eliane caffé 98

eXPedIÇão olhar na fronteira 104 Histórias partidas, por victor Sá 106 ritos da passagem, por joy ernanny 110 carrego comigo, por ricardo calil 112

arTIGo a complexidade da inclusão, por Paolo Parise 116

arTIGo Integração pelo trabalho, por Paulo Sérgio de almeida e joão marques da Fonseca 122

ServIÇo a quem recorrer 128

crônIca diferenças em conexão, por Yousef Saif 132

Para Saber maIS cultura além das fronteiras 136

caderno GLobo 16São Paulo, agosto 2019 Tema: deslocamentos e refúgiosISSn 2357-8572

editor: Globo comunicação e Participações S. a. Globo universidade endereço: rua evandro carlos de andrade, 160 São Paulo – SP ceP 04583-115

edIÇão dIGITaL e PodcaST o caderno está disponível em versão digital e em podcast no link: aPP.cadernoSGLobo.com.br e nos principais tocadores de sua preferência

Talal 6

Bestalia 12

Leona 16

Maria José 22

José 30

Emmanuel 36

Ahmad 42

Flor 54

Deivys 58

Adriana 62

Euligio 68

Kelvin 74

Humberto 80

Ottoniel 86

Kaysar 96

Ruber 102

Prudence 114

Maha 120

Nathalie 126

Nidelvis 130

Yousef 134

ensaio fotográfico por FeLIPe FITTIPaLdI

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editorial

Talal, Leona, Maria José, Emmanuel, Ahmad, Maha, Adriana, Yousef e tantos outros. Eles vêm da Palestina, da República Democrática do Con-go, da Venezuela, da Síria e hoje vivem no Bra-sil. Fazem parte de um contingente de dezenas de milhões de pessoas que atualmente se des-locam pelo mundo em busca de refúgio. São migrantes, apátridas, refugiados, exilados, gen-te que só encontrou no abandono da terra natal a saída para se proteger de crises, guerras, per-seguições (políticas, religiosas, étnicas e sociais) e demais violações de seus direitos.

O Brasil, constituído por uma mistura de po-vos, entre imigrantes, colonizados, forçados, escravizados, hoje manda mais gente para fora do que recebe. Mesmo assim, e embora dis-tante das principais regiões de conflito no mundo, é atualmente o sexto país que mais recebe pedidos de refúgio no planeta.

Esta edição do Caderno Globo é dedicada a essas pessoas que escolheram o Brasil como refúgio. Fomos ouvir suas histórias, conversar sobre seus planos e projetos para o futuro para aprender, a partir de seus olhares estrangeiros, novos jeitos de conhecer a nossa sociedade e discutir os nossos sistemas de acolhimento e proteção a essa crescente população. Con-vidamos também especialistas em direitos humanos, relações internacionais, legislação, estudos demográficos e populacionais para discutirem o atual panorama, tanto do ponto

de vista internacional, com o crescente fluxo de pessoas deslocadas no mundo, como es-pecificamente centrado na situação brasileira. Maha Mamo, ex-apátrida, ex-refugiada e hoje naturalizada brasileira, foi uma das curadoras da edição ao lado de Maria Beatriz Nogueira, do Acnur, a Agência da ONU para Refugiados.

o tema na globoO Caderno visitou locais de abrigo mantidos pela instituição em Roraima, atualmente uma das principais portas de entrada de venezue-lanos no Brasil. A expedição, relatada em tex-tos e fotos nesta edição, rendeu também ma-térias e edições dos programas Sem Fronteiras, da GloboNews, Conversa com Bial e Mais Você, da Globo. Entrevistou as autoras da novela Órfãos da Terra, que aborda essa temática na novela das 18h da Globo, assim como outros roteiristas, músicos e artistas que abordam a representação do tema na literatura, na mú-sica e no audiovisual. Na versão digital do Caderno, estão disponíveis links para esses programas, assim como os vídeos da plata-forma REP – Repercutindo Histórias, que em sua 10ª edição colheu depoimentos de refu-giados contando como estão reconstruindo suas vidas no Brasil. Trazemos também o fil-me realizado pela Globo em parceria com o Acnur e veiculado na plataforma Tudo Come-ça pelo Respeito, que apresenta um coral de refugiados de Angola, Moçambique, Palestina, República Democrática do Congo e Síria.

vidas emmovimento

o ensaio fotográfico

Nas páginas a seguir, entremeados aos artigos, aos infográficos e às entrevistas, estão os perfis de 21 estrangeiros, recentemente deslocados de suas casas em diversos cantos do mundo, que vieram começar uma nova etapa de suas vidas no Brasil. Eles foram retratados pelo fotógrafo Felipe Fittipaldi, nos estados de Roraima, São Paulo e Rio de Janeiro, para compor o ensaio visual que

ilustra a publicação.

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Talal Talal Altinawi nasceu em Damasco, na Síria, mas abandonou seu país sob conflito rumo ao Líbano e, de lá, como refugiado ao Brasil. Veio em 2013 com a esposa e os dois filhos. Já em terras brasileiras, nasceu a terceira filha do casal. Aqui abriu loja de roupa infantil e, mais recentemente, um restaurante. Mas nenhum dos negócios vingou. Talal hoje vende comida só por encomenda e trabalha como motorista de aplicativo, enquanto ainda tenta revalidar seu diploma de engenheiro mecânico. “Tem gente que acha que você deixou a sua terra para ganhar mais dinheiro em outro lugar. Eu já tinha a minha vida feita lá. Fomos obrigados a sair, não foi uma escolha.”

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ensaio

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egundo a ONU, 70,8 milhões de pessoas tiveram de deixar suas casas por causa de guerras

ou perseguições políticas em 2018. É o maior número desde o fim da Segunda Guerra Mun-dial. Destas, cerca de 25,9 milhões estão clas-sificadas como refugiadas. De onde, de quê, para onde foge tanta gente? São imigrantes econômicos ou refugiados políticos? Como lidar com esse desafio humanitário?

Guerras contemporâneas: civis como alvosDesde o fim da Guerra Fria (1991), houve uma mudança na estrutura dos conflitos bélicos que explica por que estes geram mais refugia-dos do que no passado. Mais de 90% dos que ocorreram nos últimos 20 anos não foram entre Estados, mas dentro deles, entre grupos

ApesAr de existir desde A AntiGuidAde, condição de refuGiAdo só foi formAlizAdA Após A primeirA GuerrA e hoje AbrAnGe milhões de pessoAs que cruzAm fronteirAs Ao redor do mundo

dolugarpor Maurício Santoro

ArtiGo

S

armados que disputam o controle do governo, com frequência com apoio de vários aliados internacionais. Nesses confrontos, a violência contra populações civis não é acidental, é tá-tica planejada dos diversos participantes. Or-ganizações como Estado Islâmico, Boko Haram ou Talibã a usam para expulsar determinados grupos étnicos e religiosos de territórios que querem dominar. Isso leva muitas pessoas a fugir, pois sabem que são alvos prioritários.

Cerca de dois terços das pessoas que se torna-ram refugiadas em 2018 vêm de cinco países: Afeganistão, Síria, Somália, Sudão do Sul e Mianmar. Os quatro primeiros vivem guerras civis como as descritas no parágrafo interior. A última nação é a exceção: lá a campanha de perseguição violenta contra uma minoria ét-nica e religiosa (os rohingyas) é conduzida pelo próprio governo, no contexto de décadas de confrontos raciais desde a independência e de uma disputa feroz sobre quem deve ou não ser considerado cidadão.

Além das mudanças na natureza da guerra, há transformações na tecnologia de comunicações que tornaram mais fácil sair de seus países de origem. Celulares, internet, aplicativos de mensagens aumentam o acesso à informação e a dados sobre como alcançar outras nações, manter contatos com amigos e parentes no exterior e saber o necessário para a travessia.

fora

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artigo

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Há um imaginário de que a maioria dos refu-giados vai para países ricos, como os Estados Unidos e os membros da União Europeia. Isso não é verdade: 80% escolhem países vizinhos, mais fáceis de serem alcançados. As nações que mais os acolhem são Turquia, Paquistão, Uganda e Sudão. Entre as ricas, apenas a Ale-manha recebeu mais de 1 milhão, ocupando a quinta posição desse ranking.

quem é refugiado?Refugiados existem desde a Antiguidade, mas o estabelecimento de um sistema internacional de proteção, com tratados diplomáticos criados para proteger quem solicita refúgio, começou apenas com a Primeira Guerra Mundial e se expandiu após o conflito global seguinte.

A Convenção da ONU sobre refúgio é de 1951. Ela define o refugiado como alguém que teve de sair de seu país devido ao medo bem fun-damentado de perseguição por razões de opi-nião política ou pertencimento a um grupo étnico, religioso ou social. No início, ela res-tringia a definição apenas a quem escapava dos acontecimentos da Europa até a Segunda Guerra Mundial. Foi só em 1967, por meio de um novo protocolo diplomático, que foi uni-versalizada no tempo e na geografia.

A distinção entre refugiados e outros migrantes internacionais importa porque o primeiro gru-

A situação no brasilEm 2018 o Brasil foi o sexto país que mais re-cebeu pedidos de refúgio: 80 mil, três quartos deles de venezuelanos. Em anos recentes, o país acolheu também número significativo de angolanos, congoleses, haitianos e sírios. A legislação brasileira acompanha a tradição latino-americana de definição mais abrangen-te de quem é refugiado – o critério é sofrer violação maciça de seus direitos humanos – mas, na prática, o Brasil tem usado o escopo mais limitado do tratado da ONU, recusando a con-cessão de refúgio a venezuelanos.

No Brasil, os refugiados podem trabalhar e utilizar serviços públicos como escolas e hos-pitais. Podem, também, receber benefícios sociais como o Bolsa Família. O país não tem campos de refugiados, mas há alguns abrigos específicos para eles no estado de Roraima, que mais sente o impacto da chegada de milhares de venezuelanos. Há escassez de políticas pú-blicas, recursos financeiros e de pessoal qua-lificado na área, e muitas ações em prol dos refugiados são feitas pela sociedade civil, so-bretudo por igrejas, escolas e universidades.

O Brasil está distante geograficamente das principais regiões de conflito do mundo, na África e na Ásia. Por causa disso, o perfil dos refugiados que recebe também é diferente. Como é caro ir dessas zonas ao território bra-sileiro, em geral quem consegue fazer esse percurso são pessoas com mais recursos eco-nômicos, parte da classe média ou alta em seu país origem. Têm boa formação educacional: um terço possui nível superior, o dobro do percentual do Brasil. Trazem conhecimentos e saberes que podem ser úteis para o país, ain-da que sua integração ao mercado de trabalho seja dificultada pelo quadro de crise econômi-ca e alto desemprego. Cabe à sociedade bra-sileira enfrentar esse desafio e debater propos-tas para lidar com o tema.

po recebe mais proteção. Quem tem seu pedi-do de refúgio aceito por um governo estrangei-ro não pode ser deportado de volta a seu país de origem, ou a outra nação onde corra risco. Essa garantia, chamada de “princípio de non

-refoulement”, é um dos pilares do sistema in-ternacional de proteção aos refugiados.

Os tratados diplomáticos dão aos governos na-cionais a prerrogativa de decidir muitas coisas com relação a refugiados, como se poderão ou não trabalhar no país de acolhida, se poderão viver onde quiserem ou se deverão ficar restri-tos a campos especiais, ou se receberão algum tipo de auxílio econômico para se manter. Atual-mente, a maioria dos refugiados vive em cida-des e é parte do mercado de trabalho, ainda que com frequência dispute os empregos em con-dições desvantajosas com a população local, por falta de domínio do idioma ou não reco-nhecimento de seus diplomas educacionais.

A definição de quem é refugiado reflete as preocupações da década de 1950 e está ultra-passada para o cenário atual. A Venezuela é o exemplo mais dramático. Mais de 4 milhões deixaram o país desde 2015 – o maior fluxo populacional da história da América Latina. Poucos deles são reconhecidos como refugia-dos, a maioria tem sido tratada apenas como migrantes econômicos. Contudo, o colapso do país não é uma crise comum, assemelha-se mais a uma catástrofe humanitária como a que assola países devastados pela guerra.

Outro exemplo da inadequação do sistema de proteção internacional são as mulheres que deixam seus países por situações de violência de gênero, fugindo de agressões brutais, mas cotidianas – maridos e namorados violentos, negligência das autoridades. É um cenário comum entre as mulheres que deixam a Amé-rica Central, mas dificilmente essa situação leva à concessão do refúgio. Problemas seme-lhantes ocorrem com quem tenta escapar de perseguições motivadas por orientação sexual.

Em 2018, o Brasil foi o sexto país que mais recebeu pedidos de refúgio: 80 mil, três quartos deles de venezuelanos

Maurício Santoroé doutor em ciência Política pelo iuperj, professor do Departamento de relações internacionais da universidade do Estado do rio de Janeiro (uerj)

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BestaliaBestalia tem 49 anos, é venezuelana, mãe de seis filhos – três estão com ela no abrigo Rondon 3 e os demais ficaram no seu país de origem. No abrigo Rondon 3, em Boa Vista (RR), luta para conseguir algum dinheiro e reunir a família. Para o Brasil, trouxe sua máquina de costura, ferramenta de trabalho e com a qual espera dar novo rumo à sua vida por aqui.

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ensaio

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ApátridATrata-se da pessoa que não tem uma nacionalidade reconhecida pelo Estado de nenhum país, o que traz consequências graves à garantia de seus direitos básicos. Uma situação de apatridia pode ocorrer, por exemplo, em países com legislações discriminatórias sobre minorias (caso dos rohingyas, em Mianmar). Como o refugiado, o apátrida pode buscar ser reconhecido pela autoridade nacional de um país e, assim, solicitar a sua nacionalidade. A erradicação da apatridia até 2024 é um dos objetivos da ONU, que atualmente estima o número de apátridas em 10 milhões.

reAssentAmentoTrata-se da realocação de um refugiado do país que o recebeu de modo provisório para um terceiro, cujo Estado concordou em acolhê-los garantindo diversos direitos, bem como proteção legal e física. O reassentamento compõe o conjunto de programas que o Acnur chama de “soluções duradouras”, ao lado da integração local (no primeiro país anfitrião) e da repatriação voluntária (no seu país de origem).

AsiloAsilo ou, ainda, asilo político é um instrumento internacional legal que garante proteção ao indivíduo perseguido de modo injustificado em seu Estado de origem. O pedido de asilo pode ser feito por ele do exterior (asilo diplomático) ou já no país onde busca proteção (asilo territorial). As avaliações são caso a caso. No Brasil, depende de aval do presidente da República e é concedido apenas à pessoa “perseguida em um Estado por suas crenças, opiniões e filiação política ou por atos que possam ser considerados delitos políticos”.

repAtriAção voluntáriAÉ a solução esperada pelas entidades internacionais para todos os refugiados, que eles possam retornar voluntariamente aos seus países de origem com condições asseguradas de proteção pelo Estado local.

deslocAdo internoRefere-se à pessoa que foi obrigada a deixar sua casa, a região onde reside, em busca de proteção ou segurança em outro local dentro do seu próprio país. Os motivos podem envolver conflitos, perseguições locais ou, ainda, desastres naturais. Os deslocados internos (IDP, na sigla em inglês) representam o maior grupo de migrantes forçados sob atenção do Acnur no mundo (cerca de 58%), e a eles são garantidos direitos previstos em tratados internacionais.

refugiAdoPessoa que sai forçada de seu país de origem em busca de proteção internacional. As razões podem envolver perseguição política, religiosa, racial, social etc.; existência de conflito armado, violações de direitos humanos ou situações de violência generalizada que colocam em risco sua integridade no país. O refúgio é previsto em instrumentos legais internacionais (Convenção de Pessoas Refugiadas de 1951, Protocolo de 1967 e Declaração de Cartagena), que determinam que Estados são obrigados a acolher tais pessoas, cabendo-

-lhes apenas reconhecer ou não sua condição de refugiadas. No Brasil, a Lei nº 9.474/97 regula a proteção às pessoas refugiadas no país.

solicitAntes de refúgioAntes de ser classificado como refugiada, é preciso que a pessoa solicite o reconhecimento à autoridade nacional competente. No caso do Brasil, os pedidos devem ser feitos na Polícia Federal e são avaliados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Enquanto aguarda avaliação pelo sistema nacional de proteção e refúgio, a pessoa não pode ser “devolvida” e é entendida como uma

“solicitante de reconhecimento da condição de refugiado”. Nos casos em que um país reconhece haver uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos em outro (como aconteceu com o Brasil em relação à Venezuela em junho de 2019), o atendimento às solicitações tende a ser mais célere.

migrAnteO termo abrange genericamente a pessoa que se desloca voluntariamente e por motivações diversas de uma região a outra, seja dentro do seu país (onde conta com proteção do seu Estado) ou indo além fronteiras. Ao migrante, podem-se aplicar os termos “imigrante”, para se referir a um indivíduo que chega a outro país, e

“emigrante”, ao que deixa o país de origem. Um emigrante é um imigrante no país de destino.

convenção de genebrA (1951)Três anos depois de assinarem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os países membros da ONU aprovam a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, definindo o termo “refugiado” e os seus direitos, como o de asilo e o que impede um Estado de expulsá-lo ou devolvê-lo ao país de origem. A definição, porém, mirava a população afetada pelas guerras na Europa e se restringiu aos que se tornaram refugiados em razão de acontecimentos anteriores a 1951.

protocolo de 1967Protocolo Relativo ao Estatuto do Refugiado, assinado em 1967, amplia o conceito de refugiado eliminando as barreiras temporais e geográficas previstas na Convenção de 1951.

sentidoCertoglossário

Quando se trata de grupos vulneráveis, uma ideia mal com-preendida pode gerar consequências à segurança dessas pessoas. Daí a preocupação de especialistas em direitos humanos quanto à compreensão ampla e geral sobre termos como “refugiado” e “migrante”, por exemplo. Saber dife-renciar essas condições pode ser crucial no difícil processo de desestigmatização, quebra de preconceitos, intolerância e práticas discriminatórias sobre aqueles que vêm “de fora”.

Neste Caderno, você vai se deparar com termos comuns ao tema da migração e do refúgio. Como nossa expectati-va é que os textos aqui presentes não confundam, mas tragam clareza ao debate, preparamos um breve glossário com definições sobre alguns deles, todas derivadas de cartilhas e manuais oficiais distribuídos por entidades como a Agência da ONU para Refugiados.

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Leona

Leona Mantilla, de 77 anos, era bailarina e professora na Venezuela. Chegou em Pacaraima (RR) desnutrida e com problemas de locomoção. No abrigo temporário, ao qual veio com a sobrinha (ao lado, de verde) fugindo das condições insustentáveis no seu país de origem, passou a se alimentar e a cuidar da perna. Enquanto melhora, dá aulas de dança para as crianças do abrigo interessadas em aprender. Como fonte de renda, Leona ainda faz bolsas e decorações para vender.

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PoPulação de migrantes forçados e refugiados atinge nível recorde. saiba quais os Países que lideram saídas e entradas desses fluxos

D

turquia 3.681.685

311.719

mianmar 1.145.154 370.305

colômbia 138.586

7.816.472

etiópia 903.226

2.615.800

alemanha 1.063.837 369.284

república democrática do

congo 529.061

4.516.865

somália 949.652

2.648.000

estados unidos 313.241 718.994

afeganistão 2.681.269 310.120

iraque 372.342 256.725venezuela

21.046 464.229

Peru 230.871

4.905

sudão do sul 2.285.316 1.878.153

ucrânia 93.263

1.500.000

frança 368.352 89.074

brasil 152.690

8.574 Fonte: UNHCR - Global Trends: Forced Displacement in 2018

númerosemDeslocamentos

síria 6.654.386 6.183.920

em 2018, de...

13,6 milhões de novos deslocados (1,1 milhão deles refugiados) apenas 2,9 milhões retornaram às suas regiões ou aos países de origem

do total de 25,9 milhões de refugiados

593,8 mil retornaram para o país de origem92,4 mil refugiados foram reassentados (aceitos por um terceiro país) – menos de 7% da demanda62,6 mil se naturalizaram no país onde buscaram refúgio

segundo o acnur, há registro hoje de...

25,9 milhões de refugiados41,3 milhões de deslocados internos3,5 milhões em busca de asilo

70,8 milhões de pessoas forçadamente deslocadas no mundo

esde que a Agência da ONU para Refugiados passou a registrar o volume de pessoas que são obrigadas a abandonar seus lares, buscando melhorar sua condição de vida ou mesmo preservá-la, a popu-lação mundial nunca esteve tão deslocada dos seus locais de origem. De acordo com o relatório Global Trends 2018, publicação do Acnur lançada em junho

em 2019, são mais de 70 milhões de pessoas deslocadas no mun-do – em 2008, eram 34 milhões; e em 1998, 19 milhões.

Atualmente, quase um terço desse total vive em países diferen-tes do seu de origem sob a condição de refugiado, enquanto outros 41 milhões são deslocados internos: vivem fora de suas casas (fugindo de conflitos, desastres ambientais etc.), dentro dos seus próprios países. Afora dessa conta, há ainda outros 10 milhões (uma estimativa) de apátridas, pessoas que não são reconhecidas como cidadãos por nenhum Estado nacional.

A agência declara que a alta recente dos números se deve ao crescimento de deslocados internos na Etiópia, aos venezue-lanos em busca de asilo (direito dado a pessoas perseguidas por suas opiniões políticas, raça/etnia ou religião) além de suas fronteiras, aos conflitos e perseguições na Síria, no Iraque, Iêmen, Sudão do Sul e em Mianmar. Embora haja países com números notáveis de acolhimento, concessão de asilo e reas-sentamento de refugiados, os números crescentes da popula-ção deslocada mostram que ainda há um longo caminho até um lugar para chamar de casa.

infográfico

18 19

número de refugiados recebidos número de refugiados que deixaram o país pedidos de asilo recebidos número de habitantes que pediram asilo em outro país número de deslocados internamente

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infográfico

21

Partidas e acolhida

Mais de 2/3 dos refugiados saíram de:

1º Síria2º Afeganistão3º Sudão do Sul4º Mianmar5º Somália

Países que mais receberam refugiados:

1º Turquia2º Paquistão3º Uganda4º Sudão5º Alemanha

Países com maior volume de solicitações de refúgio (acnur 2018)

venezuela

O caso da Venezuela se tornou objeto de atenção para a agência da ONU, sendo considerado por ela “uma das mais recentes e maiores crises de deslocamento forçado do planeta”. Desde 2015, o número de pessoas que deixaram o país é de cerca de 4 milhões (junho de 2019), a maioria rumo a países próximos na América do Sul e no Caribe em busca de proteção como refugiado – atualmente, um quinto das solicitações de reconhecimento da condição de refugiado é feito por venezuelanos. Só ao Brasil, foram 80 mil pedidos.

Perfil dos refugiadosDados demográficos disponíveis cobrem 68% do total da população sob atenção do Acnur

0-4 anos 17%

0-4 anos

5-11 anos

12-17 anos

18-59 anos

Estados Unidos

Peru Alemanha França Turquia Brasil Grécia Espanha Canadá Itália

50%5-11 anos

21%

12-17 anos 14%

52% 48%

18-59 anos 46%

49%51%

>60 anos 3%

>60 anos

52%48%

idade sexo idade/sexo

série histórica

pessoas em alguma condição de deslocamento (refugiado, deslocado interno, solicitante de asilo, apátrida, outros)

refugiados apenas

1958

1,691,69

2,492,46

5,335,06

14,5814,34

19,1511,48

34,4610,48

74,7920,36

1968 1978 1988 1998 2008 2018

homens 17%

mulheres 21%

138,6 mil é o número registrado de crianças (menores de 18 anos) separadas dos pais ou desacompanhadas em 2018

2018 2017

050

100

150

200

250

300

350

254.268

192.501 16

1.931

114.519

79.997*

64.985

55.667

55.385

48.451

México 4.700 42.100 5.500 Costa Rica

300 5.400

Equador 256.300

6.300

Peru 700

428.200 227.300

Chile 285.100

3.100

Argentina 127.200 1.000

Brasil 39.800 81.000

Colômbia 100

1.171.600 2.700

Trinidad e Tobago

500 31.800 7.700

venezuelanos recebidos

refugiados

solicitantes asilo

*Dados do relatório Global Trends 2018 do Acnur (ONU). Segundo o Conare, esse número foi de 80.057

83.818

50% 50%

50%

mulhereshomens

20

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Maria José Maria José Antonio tem 42 anos. Nasceu e viveu toda a sua vida em Luanda, Angola. Lá se casou e tinha o sonho de ser mãe. Sem conseguir o feito, juntou capital e veio ao Brasil buscar tratamento de fertilização in vitro em 2011. Em 2012, ficou grávida e, no ano seguinte, deu à luz o menino Messias ainda no Brasil. De volta a Angola, anos se passaram e o casal queria mais um filho. Em 2018, Maria José veio novamente ao Brasil, deixando o marido e o filho na sua cidade natal. Foi então que soube que o marido havia morrido. Familiares e vizinhos diziam que a morte ocorrera “por fome” e culparam Maria José. “Fiquei com medo de que nos matassem e fugi”, disse. Hoje, com documentação de residência, os dois moram em um quarto alugado em São Paulo e Maria José aguarda mais um filho, fruto do seu tratamento. “Vem mais um aí, se Deus quiser, para preencher o vazio que está no coração”.

22 23

ensaio

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m dos temas mais caros ao pensamento ocidental sobre as relações entre nações é o da solidariedade e hospitalidade internacionais em contraposição ao movimento bélico que normalmente permeia o pen-

samento tradicional desse campo epistêmico. A despeito das divisões entre nações que imperam nesse sistema pelo menos desde o século 17,1 há momentos de solidariedade que tentam de alguma forma trans-formar as bases da política mundial em favor da proteção dos mais desfavorecidos. Nesse sentido, Kant já havia descrito em um de seus trabalhos que as condições para a paz perpétua seria que “o direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal”,2 com o objetivo de que uma pessoa, qualquer que seja a sua condição jurídica, jamais seja hostilizada devido ao seu ato de migrar. Esse prin-cípio, que no fim do século 18 aparece nos debates filosóficos, é de alguma forma traduzido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, que torna um direito humano a locomoção no inte-rior do território estatal e para além dele,3 ampliando a solidariedade e hospitalidade kantiana, ao declarar o direito de pedir e de poder usufruir do asilo em qualquer país em casos de perseguição.4

1 A partir do desenvolvimento do conceito de Estado- -nação na Paz de Westfália (1648).

2 I. Kant, A paz perpétua: um projeto filosófico. Trad. Artur Morão, Covilhã, Portugal: Universidade da Beira Interior, 2008. Disponível em: http://bit.ly/2H74dOK, p. 20.

3 ONU, Declaração Universal dos Direitos Humanos, res. 217 (III), A. Paris, 1948, art. 13.

4 Idem, art. 14.

Um panorama histórico da solidariedade entre países e proteção de direitos hUmanos na formUlação do direito internacional dos refUgiados

parâmetros de

por JOsé EgAs e WIllIAM lAUrEANOartigo

Uinclusão

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artigo

A referência à DUDH não é por acaso. São jus-tamente os momentos de crise que ecoam essa necessidade de solidariedade internacio-nal para a proteção de pessoas que são vítimas de violações de direitos humanos. Essas res-postas são, assim, cristalizadas em processos normativos e outros documentos que perduram no tempo. Assim ocorreu com a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (ou simplesmente Estatuto dos Refugiados) e ou-tras normativas que fazem parte do Direito Internacional dos Refugiados, culminando com o atual Pacto Global sobre Refugiados, publicado em 2018. Entender essas crises e seus desenvolvimentos nos ajuda a compreen-der qual o caminho que essa solidariedade internacional está trilhando na proteção de milhares de pessoas.

No pós-Segunda Guerra Mundial, a situação de emergência gerada pelo conflito europeu era inegável e levou os Estados a negociar formas de resposta aos milhares que foram forçados a se deslocar. Com o fim da guerra, foram encontrados entre 10 milhões e 15 milhões de nacionais de países aliados em território alemão. Muitos deles foram forçados pela má-quina de guerra nazista a trabalhar em suas indústrias armamentistas, eram prisioneiros de guerra ou foram encontrados em campos de concentração.5 Naquele momento, houve um esforço inimaginável de realocação e re-patriação, o que fez com que o número total em situação de refúgio em 1951 caísse para aproximadamente 2,1 milhões de indivíduos.6

5 J. A. Berger, “Displaced persons: a

human tragedy of World War II”. Social Research,

v. 14, n. 1, 1947, p. 45–58. JSTOR, http://bit.

ly/2Z7ckoH.

6 Dados disponíveis em: http://bit.

ly/2Z8sZIg.

O fim da Segunda Guerra Mundial significou também um importante momento do otimis-mo e de construção da “paz perpétua”,10 que culminou com a decisão de criar barreiras temporais e geográficas para esse empreendi-mento com refugiados. Esse sistema interna-cional de solidariedade criado para a proteção de pessoas refugiadas estaria, então, adstrito às vítimas do conflito europeu e para aquelas cujo fundado temor de perseguição seja ante-rior a janeiro de 1951.11

ondas de deslocamentos forçadosA realidade, entretanto, não permitiu que o movimento idealista da criação da ONU se concretizasse. Mesmo após as negociações que deram origem à organização, são conhecidos os diversos conflitos que, durante todo o sé-culo 20 e início do século 21, violaram direitos humanos e geraram novas ondas de desloca-mentos forçados. Em outubro de 1956, por exemplo, ocorreu um grande êxodo de hún-garos para a Áustria, totalizando um desloca-mento de 153 mil pessoas, no final daquele ano, devido às manifestações populares contra o regime e a sua relação com a União Soviética. Os relatos indicam que, em um único dia, 8 mil húngaros cruzaram a fronteira com a Áus-tria. Nesse mesmo período, outros 20 mil fu-giram para a antiga Iugoslávia. O Leste Europeu também foi protagonista de outra onda de deslocamento forçado em 1968, quan-do forças soviéticas e aliados do Pacto de Var-sóvia ocuparam a Tchecoslováquia. Durante esse evento, 80 mil tchecos foram para a Áus-tria ou se encontravam na situação de turistas e se recusaram a retornar para o seu país.12

10 M. Herz, “O Brasil e a reforma da ONU”. Lua Nova, são Paulo, n. 46, 1999, p. 77-98.

11 Convenção relativa ao Estatuto dos refugiados de 1951, art. 1º, B(2).

12 J. l. Carlin, “significant refugee crises since World War II and the response of the international community”, Michigan Journal of International Law, 3(1), 1982, p. 9-11.

A despeito de um histórico de solidariedade internacional anterior ao período da Segunda Guerra Mundial, a grandeza do número de deslocados e perseguidos em decorrência do conflito europeu foi tamanha que exigiu a re-pactuação das normas internacionais. Assim, os diversos governos sistematizaram a defini-ção da pessoa refugiada a partir das experiên-cias anteriores e prometeram proteger todo indivíduo que “temendo perseguição por mo-tivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política, esteja fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção do país no qual tinha sua residência habitual [...] ou [...] não quer voltar a ele”.7

Os Estados se comprometem, também, a não devolver esses nacionais a seu país de origem em hipótese nenhuma, garantindo que eles não sofram novas perseguições.8 Nesse espí-rito de solidariedade, cerca de 1 milhão de pessoas foram reassentadas até o final daque-le ano, muitas das quais foram para países como EUA, Canadá, Austrália e Brasil, que tomaram posturas de “portas abertas” para essas vítimas de direitos humanos. Ainda as-sim, 1,25 milhão de pessoas permaneceram sem uma solução duradoura para suas vidas (repatriação voluntária, reassentamento e in-tegração local são alguns exemplos de soluções duradouras trabalhadas ainda hoje pelo Acnur

– Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados).9

7 Convenção relativa ao Estatuto dos

refugiados de 1951, art. 1º, A(2).

8 Esse direito é conhecido como o de

non-refoulement.

9 J. l. Carlin, “significant refugee crises

since World War II and the response of the

international community”, Michigan

Journal of International Law, 3(1), 1982, p. 3-6.

Saindo do contexto europeu, a descolonização dos continentes africano e asiático foi fonte de um movimento que, mais tarde, contribuiu para a ampliação do conceito internacional de pessoa refugiada. A independência dos Estados da Índia e do Paquistão gerou o deslocamento forçado de aproximadamente 14 milhões de pessoas. Esse foi um movimento de hindus e sikhs para a Índia e de muçulmanos para o Paquistão ainda durante o período da Segun-da Guerra Mundial. Essas pessoas, com medo de sofrerem perseguições, viviam com recur-sos próprios e não tiveram ajuda internacional.13

Tanto nas questões húngaras e tchecas quanto na independência indiana, a atuação do Acnur era limitada pelas barreiras temporais e geo-gráficas impostas pelo Estatuto dos Refugiados. Novas violações de direitos humanos pelo mun-do obrigaram os Estados a ampliar o conceito de refugiado a ponto de permitir que essa pro-teção fosse aplicada também aos novos fluxos de deslocados que estavam surgindo. Assim, foi necessário estabelecer um protocolo adi-cional em 1967,14 removendo essas barreiras. A partir de então, qualquer pessoa que solicitas-se refúgio por fundado temor de perseguição com base em qualquer um dos critérios do Estatuto de 1951 passava a ter garantida a pos-sibilidade de ser reconhecida como refugiado e obter proteção internacional e o direito de não ser devolvida para o país de origem.

13 J. l. Carlin, “significant refugee crises since World War II and the response of the international community”, Michigan Journal of International Law, 3(1), 1982, p. 12-13.

14 Protocolo relativo ao Estatuto dos refugiados, 1967.

JOsé EgAs é representante do Acnur no Brasil

WIllIAM lAUrEANO é assistente sênior de elegibilidade do Acnur

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artigo

Assim como na situação indiana, a luta pela independência da Rodésia do Sul (atual Zim-bábue) também não teve a mesma solidarie-dade internacional que os fluxos europeus, ainda que sob a égide de um novo conceito de refugiado. Isso resultou em um gerenciamen-to menos eficiente das soluções duradouras. Nesse contexto, operações militares causadas por grupos de libertação nacional que ocorriam nas fronteiras do país fizeram com que 250 mil pessoas se mudassem para Moçambique, Zâm-bia e Botsuana entre os anos de 1975 e 1979. A despeito da falta de atenção dos Estados, o Acnur foi capaz de auxiliar essas pessoas por meio de assistência material (alimentos e abri-gos). As dificuldades em encontrar soluções definitivas foram muitas, uma vez que a maior parte dessa população era de mulheres e crian-ças, enquanto os homens das famílias se en-contravam nas lutas pela independência.15

15 J. l. Carlin, “significant refugee

crises since World War II and the response of the

international community”, Michigan

Journal of International Law, v. 3, n. 1, 1982, p.

14-15; UN general Assembly, Question of southern rhodesia, 17

November 1966, A/rEs/2151.

não abandonar ninguém; trabalhar de dife-rentes formas para eliminar carências; e in-vestir na humanidade.22 Como resposta a essa agenda, a Declaração de Nova York, de setem-bro de 2016, reconhece os problemas atuais e pretende repactuar o investimento na huma-nidade e na solidariedade no campo da prote-ção de pessoas refugiadas.23 De fato, os dados anuais do Acnur sobre refúgio no mundo, cha-mado de Global Trends, mostram que em 2018 70,8 milhões de pessoas sofreram deslocamen-tos forçados, representando um aumento de aproximadamente 2,3 milhões de pessoas se comparados com os dados de 2017.24 Conflitos mundiais como os que ocorrem na Síria, Afe-ganistão e Sudão do Sul, além da situação de emergência na Venezuela, impactaram a ma-nutenção e o aumento desse número.

O resultado da preocupação com a situação mundial pode ser encontrado no Pacto Global sobre Refugiados, documento acordado após dois anos de consulta com uma ampla gama de atores, como Estados membros da ONU, organizações internacionais, especialistas no assunto, sociedade civil e pessoas refugiadas. O tema da solidariedade é aqui traduzido na ideia de compartilhamento internacional da responsabilidade de receber e proteger refu-giados, o que atualmente exerce grande pres-são sobre países em desenvolvimento, com um terço da população refugiada presente nas regiões mais pobres do globo. Dessa forma, espera-se que as comunidades que os recebem possam ter melhores condições de responder a situações de grande fluxo de refugiados que entram em suas fronteiras. Se na década de 1960 a resposta dependia de atuação exclusiva de alguns países com base em uma solidarie-dade ad hoc, ou seja, que dependia muito da situação de cada país e de seus governos, com o Pacto Global sobre Refugiados o comparti-

22 Cf. http://bit.ly/2TEljsA.

23 Cf. http://bit.ly/2HaeMAB.

24 Os dados do global Trends podem ser encontrados em: http://bit.ly/2Z8bgkw.

Da mesma forma, conflitos nas antigas colônias portuguesas na África geraram um movimento de 600 mil refugiados rumo aos países vizinhos. Nesse momento, surgiram oportunidades de reassentamento e a solidariedade internacional foi no sentido de prover cuidados essenciais de sobrevivência.16 A situação de refugiados na África perdurou durante muitos anos, com re-flexos e situações que ainda hoje geram novos refugiados. Houve um reconhecimento de que a solidariedade para com o continente não foi suficiente.17 Estima-se que, em 1979, 50% da população da Somália fosse constituída por refugiados18 e era esperado que a comunidade internacional compartilhasse das dificuldades sofridas por esse país.19 Na América Central, especialmente em El Salvador, Nicarágua e Honduras, inúmeros refugiados relatavam a repressão indiscriminada pelo aparelho estatal20 e situações de violência com a organização de grupos pandilleros que passaram a perseguir a população.21 A realidade da África e das Amé-ricas permitiu a ampliação do escopo da soli-dariedade internacional e da proteção. Para tanto, permitiu-se a expansão dos direitos pre-sentes no Estatuto dos Refugiados a pessoas que sofreram deslocamento forçado por questões comumente conhecidas como de grave e gene-ralizada violação de direitos humanos. Nesse sentido, a Convenção da União Africana de 1968 e a Declaração de Cartagena de 1984 vieram para cristalizar esse novo acordo.

solidariedade internacionalHoje, nos encontramos em um momento de violações sistemáticas de direitos humanos que está, consequentemente, gerando novos fluxos de refugiados pelo mundo. Em uma nova tentativa de restabelecer as bases da so-lidariedade internacional, o antigo secretário-

-geral da ONU Ban Ki-moon convocou a Cúpula Mundial Humanitária, que ocorreu em Istambul em 2016. Nesse encontro, focou-se em cinco responsabilidades cruciais: prevenir e resolver conflitos; respeitar regras de guerra;

16 l. sousa; P. Costa, “The development of the asylum law and refugee

protection regimes in Portugal, 1975-2017”, Refuge, n. 34, 2018, p.

28-37.

17 UN general Assembly, situation on

African refugees, resolution 34/61, de 29

de novembro de 1979. Disponível em: http://bit.

ly/2H4VQ6r.

18 J. l. Carlin, “significant refugee

crises since World War II and the response of the

international community”, Michigan

Journal of International Law, v. 3, n. 1, 1982, p. 15.

19 UN general Assembly, Assistance to refugees in somalia, de

15 de dezembro de 1980, A/rEs/35/180.

20 UN Commission on Human rights, “The situation of human

rights in Nicaragua”, 13 March 1979, E/CN.4/

rEs/14(XXXV); UN security Council, security Council

resolution 530 (1983) [Honduras-Nicaragua], 19 May 1983, s/rEs/530

(1983).

21 UN High Commissioner for

refugees (UNHCr), “UNHCr eligibility

guidelines for assessing the international

protection needs of asylum-seekers from

Honduras”, 27 de julho de 2016, HCr/Eg/

HND/16/03; UN High Commissioner for

refugees (UNHCr), “UNHCr eligibility

guidelines for assessing the international

protection needs of asylum-seekers from El salvador”, 15 de março

de 2016, HCr/Eg/slV/16/01.

lhamento de responsabilidades pretende di-minuir as pressões nos países de destino, expandir o acesso dos refugiados a outros paí-ses por meio de novos programas de reassen-tamento ou, ainda, apoiar formas que permitam que os refugiados retornem volun-tariamente para seus países de origem, desde que cessadas as causas da perseguição.25

Os Estados são, então, chamados a um novo tipo de solidariedade, uma que permita que os refugiados reconstruam sua vida de forma independente nos países de acolhida, incluin-do possibilidades de acesso à educação e à saúde e de inserção laboral desde a chegada. Inclusão, portanto, é o novo norte e o ideal de solidariedade cristalizados nas declarações e pactos internacionais atuais que precisamos implementar no nosso país.

25 Cf. os documentos em http://bit.ly/2P0o48H.

Hoje, nos encontramos em um momento de violações sistemáticas de direitos humanos que está, consequentemente, gerando novos fluxos de refugiados pelo mundo

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José José Chinel Jiménez está há cerca de dois anos com a família no abrigo indígena de Pintolândia, em Boa Vista (RR). Na Venezuela, trabalhava como funcionário público, mas a instabilidade no país tornou seu salário insuficiente para colocar comida na mesa de casa. Na capital de Roraima, tenta dar novo rumo à vida. Há três meses, passou a fazer bicos pela cidade para pagar seu curso de técnico de enfermagem. Na foto, à frente das redes onde dormem ele, a mulher e os filhos, todos indígenas Warao, José exibe o jaleco símbolo do novo capítulo da sua jornada no Brasil.

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ensaio

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Com fluxo CresCente de pessoas desloCadas que preCisam de asilo e medidas que difiCultam a proteção de seus direitos, o mundo vive não uma “Crise de refugiados”, mas uma Crise para pessoas refugiadas

crisepor LiLiana Lyra JubiLut

artigo

Oacolhida ano de 2018 registrou 70,8 milhões de pessoas des-locadas em função de per-

seguição, conflito, violência ou violações de direitos humanos. Desde 2012 esses números estão em crescimento e, desde 2015, são con-siderados recordes históricos; com o número de refugiados chegando a 25,9 milhões em 2018, no quinto recorde seguido1 e atrás apenas dos contingentes da Segunda Guerra Mundial.

Refugiados são migrantes forçados que se des-locam devido a um bem fundado temor de perseguição em razão de raça, religião, nacio-nalidade, opinião política ou pertencimento a um grupo social de acordo com a Convenção de 1951. Ou ainda, no contexto da América La-tina, por causa de graves e generalizadas vio-lações de direitos humanos.6 Trata-se de um conceito técnico-jurídico “universal” adotado pela comunidade internacional após a Segunda Guerra Mundial para consolidar um regime de proteção por meio do refúgio, o qual imple-menta o direito de asilo e surge no início do século 20, sobretudo como efeito dos desloca-mentos forçados em massa a partir da Revolu-ção Russa. Esse conceito “universal” pode ser complementado regionalmente, o que foi feito pela América Latina na década de 1980, per-mitindo o reconhecimento do status de refu-giado nessa última hipótese.2

1 Cf. http://bit.ly/2yuiycj.

2 tal hipótese foi adotada pelo brasil, no artigo 1º, iii da Lei 9.474/97, que estabelece o regime de proteção a pessoas refugiadas no país. Disponível em: http://bit.ly/2Z9jkkW.

3 Em 2017, de acordo com a Organização internacional para Migrações, 258 milhões de pessoas no mundo poderiam ser consideradas migrantes. Cf. OiM. Global Migration indicators2018. berlim, 2018. Disponível em: http://bit.ly/2Z9ja3o.

O regime internacional de proteção às pessoas refugiadas traz obrigações para os países e para a comunidade internacional como um todo a partir do Direito Internacional dos Refugiados. Ele foi construído coletivamente, e os Estados aderiram a ele voluntariamente. Trata-se de uma das vertentes de proteção internacional da pessoa humana e busca equilibrar as von-tades estatais com as necessidades das pessoas que precisam de asilo.

Tal equilíbrio, contudo, tem sido desafiado nos últimos anos. Ao mesmo tempo que os números de migrantes,3 migrantes forçados e refugiados sobem, práticas de fechamento de fronteiras, securitização das migrações, xenofobia, racismo, exclusão e adoção de retóricas anti-migrantes têm sido adotadas por vários países. Muitas vezes tem-se tentado justificar tais con-dutas pelo aumento do número de migrantes; mas, além desse fator, deve-se observar que a migração e, consequentemente, os migrantes passaram a fazer parte de discursos políticos, sendo alvos em posicionamentos de parcela da classe política, e escolhidos como os “outros” em retomadas de narrativas de “nós” contra “eles”. Esse cenário resultou em, e é fortalecido por, uma retórica de “crise de refugiados”.

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de

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artigo

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Sobretudo desde 2015, a temática migratória ganhou espaço no dia a dia de quem não tra-balha diretamente com ela; a cobertura na mí-dia de temas ligados às migrações cresceu ex-ponencialmente, menções a migrantes se tornaram lugar-comum em alguns discursos políticos (como, por exemplo, no brexit, na campanha eleitoral americana e em campanhas eleitorais estaduais no Brasil em 2018), e práti-cas de revisão de legislação migratória com violações de direitos humanos (como nos Es-tados Unidos, Hungria e Itália, por exemplo) foram implementadas. As migrações passaram a ser um tema mais acessível e mais debatido, mas, em função das opções por uma governan-ça restritiva das mesmas por muitos países, a estruturação e a concepção das narrativas sobre a temática têm sido no sentido de exaltar uma “crise de refugiados”. Na verdade, em todo esse cenário, o que se verifica é uma crise para pes-soas refugiadas, com desafios reais de proteção.

vez que se chega ao país de asilo. Aqui se des-tacam violações ao princípio do non-refoulement (da não devolução). Esse princípio é a base do Direito Internacional dos Refugiados e, conse-quentemente, da proteção às pessoas refugia-das, e impõe aos Estados a obrigação de não retornar pessoas refugiadas para situações em que suas vida, liberdade ou segurança estejam ameaçadas. Ou seja, impõe uma obrigação de permitir a entrada de pessoas refugiadas em seus territórios e analisar suas solicitações de refúgio. Isso porque, o que torna uma pessoa um refugiado não é o reconhecimento desse status por um Estado, mas sim a condição ob-jetiva de seu país de origem: se esta permitir a percepção de que existe um bem fundado temor de perseguição em função de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou pertenci-mento a um grupo social, a pessoa é tecnica-mente um refugiado e deve ser protegida como tal. E isso só pode ser verificado se a pessoa puder ter sua solicitação analisada.

Na prática recente, contudo, ocorreram até mesmo tentativas de Estados de evitarem que as pessoas refugiadas entrassem em seus ter-ritórios. São exemplos disso as práticas de fechamento de fronteiras, de push-backs (re-torno de pessoas refugiadas nas fronteiras) e de acordos de transferência. Todas evitando efetivo acesso a territórios seguros.

Nessa fase também se notam outras violações que tornariam um território não seguro, tais como detenção de migrantes, falta de acesso a procedimentos para solicitação de refúgio e falta de respeito a outras vulnerabilidades es-pecíficas (como por gênero e questões etárias).

Por fim, na fase final do deslocamento, isto é, uma vez que se está em um território seguro, no que se poderia chamar de integração local, observam-se vários obstáculos de acesso a di-reitos, tais como à documentação, à saúde, à educação, a trabalho e renda e à moradia; com a possibilidade, também, de se somar a todos eles a questão de dificuldades com o idioma.4

4 Sobre essas dificuldades de acesso a direito e serviços no brasil, cf. Liliana L. Jubilut et al. “Migrantes, apátridas e refugiados: subsídios para o aperfeiçoamento de acesso a serviços, direitos e políticas públicas no brasil”. brasília: Ministério da Justiça; ipea, 2015. Disponível em: http://bit.ly/2Z1qGbf.

Isso, pois, por um lado, ainda que o número de pessoas refugiadas tenha aumentado, é preci-so olhar não apenas para os dados brutos, mas também contextualizá-los. Nesse sentido, é possível verificar a existência de interpretações dos números a fim de servir à retórica da crise, como, por exemplo, no caso da União Europeia, uma vez que, apesar de se falar da “crise de refugiados” nessa região, verifica-se que na década de 1990, sobretudo em decorrência da crise dos Bálcãs (em função dos conflitos na ex-Iugoslávia), os países do bloco receberam muito mais pessoas refugiadas em média por Estado do que na “crise” em 2015. Os números brutos são maiores recentemente, mas também é maior o número de países que compõem o bloco. O uso dos números, então, pode auxiliar na percepção de uma “crise de refugiados”, contudo é importante lembrar que, por trás de cada número, há uma pessoa com necessidade de proteção internacional. Por outro lado, a própria retórica de “crise de refugiados” cola-bora para a percepção de que medidas extraor-dinárias podem ser adotadas. E a combinação desses aspectos é utilizada para tentar justificar medidas de violações de direitos que geram uma crise para pessoas refugiadas.

Essa crise para pessoas refugiadas tem afetado sua proteção nas três fases mais latentes do deslocamento forçado. Inicialmente se tem verificado dificuldades para acesso seguro a territórios, ou seja, durante o percurso do país de origem para o país em que se buscará asilo. O aumento do número de mortes durante deslocamentos, o crescimento de redes de contrabando e tráfico de migrantes, o recru-descimento de práticas de escravidão de migrantes e o aumento do número de migran-tes vítimas de tráfico de órgãos exemplificam violações de direitos nessa etapa.

Além disso, na segunda fase do processo mi-gratório das pessoas refugiadas, verificam-se violações de direitos para acesso a territórios seguros, ou seja, para ter acesso à proteção uma

Uma vez em território seguro, no que se poderia chamar de integração local, observam-se vários obstáculos de acesso a direitos

LiLiana Lyra JubiLut é professora universitária na unisantos, doutora em Direito internacional, e trabalha com a temática das pessoas refugiadas desde 1999

Em todas essas fases deve-se também destacar a falta de recursos (financeiros, de pessoal e de vontade política) necessários para a proteção adequada às pessoas refugiadas, como, por exem-plo, a diminuição de vagas para reassentamen-to e de falta de políticas públicas que beneficiem as populações locais e as pessoas refugiadas.

Pelo exposto, percebe-se que há, sim, uma crise envolvendo pessoas refugiadas atualmen-te, mas que se trata não de uma “crise de re-fugiados”, e sim de uma crise para pessoas refugiadas, que impõe diversos desafios de proteção. E, nesse sentido, as pessoas refugia-das não são os responsáveis pela crise, mas sim quem sofre as consequências de um cenário de falta de vontade política para protegê-las e de diminuição do espaço humanitário. Alterar a retórica empregada até aqui na delimitação e caracterização da crise é um passo inicial para transformar esse cenário e garantir que as pessoas refugiadas tenham proteção ade-quada, com respeito a seus direitos enquanto refugiados e, também, a todos os seus direitos enquanto seres humanos.5

5 tal proteção pode ser chamada de “proteção integral”. Cf. Liliana L. Jubilut; Silvia M. O. S. apolinário, “a população refugiada no brasil: em busca da proteção integral”. universitas relações internacionais (uniceub), n. 6, v. 2, p. 9-38, 2008.

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EmmanuelEmmanuel Gonzalez é venezuelano e tem apenas 9 anos. No abrigo Rondon 3, em Boa Vista (RR), ele vive com o pai, a mãe e quatro irmãos. A convivência com militares despertou em Emmanuel o desejo de seguir carreira, daí sua preferência por roupas camufladas. Na camiseta da foto consta seu nome gravado, com alguns brevês colados, dados de presente ao menino por membros do Exército. Ao lado dele, o major André Mesquita Albuquerque, há 20 anos nas Forças Armadas, de quem é amigo. O oficial é o coordenador do Abrigo Rondon 3, o maior do Brasil, e diz ser essa a missão mais desafiadora de sua carreira.

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ntes de ser catapultado para a França, Gael Faye era um menino com um bando de amigos que roubava mangas da casa da vizinha, tomava banho de rio,

fumava escondido dentro de um carro abandonado na rua sem saída onde todos moravam em Bjumbura, a capital do Burundi. Filho de pai francês e mãe nascida em Ruanda – país colado àquele em que viviam –, ele tem a pele cor de doce de leite e uma irmã mais nova e vivia entre os colegas da escola e os filhos dos expatriados na África. Era só um menino que às vezes se entediava nas tardes calorentas sem aula.

Até que a vida mudou brutalmente. A guerra explodiu no seu país e, na terra da sua mãe, o genocídio deixou 1 milhão de mortos, entre eles primos e tias de Gael. Na viagem em busca dos parentes, a mãe viu os horrores do ódio étnico e jamais se recuperou. Repatriado de urgência junto com a irmã para a França, ele desembarcou nos subúrbios de Paris e tudo se transformou mais uma vez. As meninas agora pergun-tavam a ele sobre baobás e girafas, mas Gael crescera numa cultura dominada pela Nike e Michael Jackson. Ele irritava-se com essa nova identidade que insistiam em colar nele e o reduzia a imagens exóticas.

Cada trajetória de uma pessoa que deixa seu loCal de origem Conta uma história diferente, mas um pedaço da identidade de todos fiCa perdido nessa grande travessia

de não

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pertencer

por Helena Celestinoartigo

Ador

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“Não era mais um garoto que chegou ao país do seu pai. Branco na África, passei a ser negro, imigrante, africano num país europeu que me olhava com desconfiança”, contou o agora escritor e músico, numa das mesas da Festa Literária de Paraty (Flip), em 2019.

Foi do trânsito entre culturas e identidades, entre a escrita e a música, que nasceu a lite-ratura de Gael. Já um jovem adulto, ele teve certo sucesso na cena musical ao contar em forma de rap as etapas e as emoções da sua vida. Mas estourou mesmo foi com O pequeno país, livro traduzido em 20 nações antes até de ser publicado em francês, a língua em que foi originalmente escrito. Em meio à montanha de lançamentos do outono parisiense de 2016, ele ganhou vários prêmios literários da tem-porada com a história de seu Gabi, um meni-no meio africano e meio europeu, levado pela fúria do destino. Na cena inicial, o narrador vê na televisão as imagens dos imigrantes que chegavam em massa à Europa, fugidos da guerra, da fome e da violência. O ano era 2015, eles vinham em busca de refúgio e encontra-vam a maioria das fronteiras fechada.

“A que mundo nós pertencemos? Ao das nossas origens ou ao que o destino nos impõe? Ninguém pergunta sobre o país que essas pessoas trazem dentro delas”, diz o alter ego de Gael, obser-vando esses grupos de refugiados desesperados.

Um exemplo extremo é o da psicanalista e es-critora Julia Kristeva, búlgara de nascença com nacionalidade francesa. Autora de 30 livros, entre romances e ensaios, ela é professora emé-rita da Universidade de Paris VII e professora honoris causa de universidades no Canadá, Estados Unidos e Europa. É casada com o tam-bém celebrado escritor Philippe Sollers; os dois com intensa participação na vida cultural e reconhecimento internacional.

“Viajo o mundo dando aulas, recebendo prêmios e participando de conferências e congressos. Aonde vou sou tratada como uma glória da França. Mas aqui sempre reconhecem um so-taque ou uma estrangeiridade em mim”, dis-se-me, com amargor, numa entrevista.

O professor ElHajji explica que numa das cons-truções discursivas da identidade há o que chamamos de filiação e afiliação, ou seja, o que nos é dado ao nascer e o que escolhemos ao longo da vida. É uma espécie de grade, que fica esburacada com o esquecimento inevitá-vel de pedaços do passado com o passar dos anos. Isso é particularmente dramático com os imigrantes idosos: com a idade avançada, começam a perder a memória mais recente e a desaprender a língua do país onde estão; tentam falar a língua de origem, mas tornam-

-se incompreensíveis em todos os idiomas.

Na narrativa das sociedades tradicionais, em que a existência é regulada pela tradição ou perten-cimentos tribais e étnicos, a individualidade não é um valor e, muito menos, a liberdade de es-colha. “Troca-se segurança por liberdade”, diz o filósofo Zygmunt Bauman. Não por acaso, para muitas mulheres vivendo em sociedades forte-mente patriarcais, a consciência da liberdade obtida com a imigração é uma conquista na chegada às grandes cidades ocidentais.

Talvez pela facilidade de identificação com Gabi/Gael, o livro tenha se transformado em um fe-nômeno de vendas. Cada um dos 70 milhões de imigrantes recenseados pelo Acnur em 2018 vive um drama parecido ao do garoto: a perda do chão, das raízes, das redes de solidariedade. Cada trajetória conta uma história diferente, mas um pedaço da identidade de todos fica perdido nessa grande travessia. Na nova vida, a ignorância e a indiferença em relação ao pas-sado dos recém-chegados são uma dor que demora a passar ou não passa nunca.

“Essa perda de referencial, esse vazio no olhar do outro quando vê você ou a construção excessi-va que ele tem de você é altamente impactante na vida de uma pessoa”, diz o especialista em migrações internacionais e comunicação inter-cultural Mohamed ElHajji, professor da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e ele mesmo um imigrante que saiu do Marrocos e chegou há cerca de 30 anos ao Brasil.

estrangeiridadeClaro que não existe o imigrante universal. Existe o imigrante rico e o pobre, o africano e o europeu, o homem, a mulher, o gay; o imi-grante de sucesso profissional e o imigrante totalmente pauperizado que depende da be-nevolência de quem o está acolhendo. Exis-tencialmente há um vazio, mas é diferente se ele tem um trabalho, se é ou não marcado pela cor da pele, a forma dos olhos e o tipo de cabelo, se maneja ou não os códigos sociais e domina a língua do país onde passará a vi-ver. Mas todos vivem o sentimento de não pertencimento.

“A situação de estrangeiridade impacta o olhar do outro. Pode ser profissional de sucesso, ter conseguido a ascensão social, mas o drama existencial está subjacente, às vezes aparece no sotaque, no erro do uso de uma palavra, às vezes pelo esquecimento de uma palavra que usava no país de origem”, diz ElHajji.

Helena Celestinoé jornalista e roteirista

“Ao mesmo tempo em que ela sofre a opressão enquanto imigrante – numa posição de assu-jeitamento em termos sociais, culturais e de classe –, na sua dimensão existencial ela ex-perimenta uma libertação, permite-se usar a feminilidade como força e torna-se um sujei-to atuante”, diz ElHajji. “Ao descobrirem que têm mais direitos, separam-se dos maridos porque é normal querer mais direitos, cons-tataram antropólogos, em diversos estudos sobre a imigração feminina.”

A profunda mudança no cenário internacional, criada pela globalização, conduziu ao popu-lismo em muitos países ao redor do mundo, levando à repulsa ao estrangeiro, transforma-do em vilão, acusado de roubar empregos e desfigurar as identidades nacionais. É falso: a imigração cresceu porque a população mundial chegou a 1,6 bilhão, mas o fluxo de pessoas em busca de nova vida jamais passou de 3% nos últimos 50 anos. “É preciso raciocinar, é mais humano abrir as fronteiras do que fechar, o medo foi estimulado por partidos de extrema direita que queriam recuperar a atenção e bo-tam a culpa no outro pelo que vai mal no país”, diz Michel Agier, antropólogo e professor da École des Sciences de l’Homme, em Paris.

“Racismo e xenofobia são inaceitáveis”, refor-ça ElHajji.

Ou, em outras palavras, todos os seres huma-nos são iguais e têm direito a ter direitos.

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AhmadAhmad Hasan nasceu em 1982 em Alepo, na Síria. Vivia bem na cidade chamada por ele de “linda e maravilhosa”. Tinha trabalho e estava sempre rodeado da família. Com seu amigo “irmão” Mohammed, abriu uma oficina de costura e lavanderia. Os negócios iam bem até a guerra. Desde 2011, com a escalada da violência, a vida lá se tornou insuportável. Os pais foram para o Líbano e, em 2015, Ahmad os seguiu. De lá, por meio de um amigo, decidiu vir como refugiado para o Brasil – país que só conhecia pelo futebol. Com Mohammed, abriu sua própria oficina e lavanderia em São Paulo, chamada Aleppo. “Os negócios estão indo devagar, mas vamos um dia após o outro”, diz.

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s fluxos migratórios nas primeiras duas décadas deste século guardam características próprias em relação ao histórico da mobilidade humana. Com

políticas restritivas dos países do Norte global, as movimentações se concentram no eixo sul do planeta, com migrantes oriundos, sobretu-do, da América Latina e Caribe, África e Ásia.

São as chamadas “migrações Sul-Sul”, como explica a socióloga Ro-sana Baeninger. Ela conta que o Brasil aparece nesse contexto como um país possível, e não necessariamente um destino desejado pelos imigrantes. Coordenadora do Observatório das Migrações em São Pau-lo e de publicações sobre o tema, Migrações Sul-Sul, Migrações Frontei-riças e o Atlas Temático Observatório das Migrações, Rosana fala, na entrevista a seguir, sobre as diferenças entre o fluxo atual e o ocorrido entre os séculos 19 e 20, o fenômeno da interiorização, no Brasil, das migrações internacionais e as demandas de políticas sociais e de direi-tos humanos.

Questões geopolíticas caracterizam as migrações no século 21 pela intensificação dos deslocamentos no hemisfério sul por paulo jebaili

com Rosana baeningeRentrevista

Odivis ória Rosana

baeningeRé professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e pesquisadora do Núcleo de Estudos da População Elza Berquó (Nepo)

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A possibilidade de documentação reforça a entrada de imigrantes com outra conotação: o Brasil é o país possível, não o país desejado

entrevista

Que fatores distinguem o fenômeno atual das migrações no Brasil dos fluxos obser-vados nos dois séculos anteriores? Nas migrações do século 19 para o 20, havia todo um programa do Estado-nação de bran-queamento da raça. Foi subsidiado pelo go-verno brasileiro e por governos estaduais paulistas e da região Sul para trazer os migran-tes europeus. Havia um contingente muito maior de população africana, pela produção de cana-de-açúcar e pelo tráfico de escravos. A transição do trabalho escravo para o trabalho livre teve esse componente da mão de obra europeia. Esse fenômeno criou um imaginário para o Brasil de uma migração internacional europeia e branca. Do século 20 para o 21, a partir do final dos anos 1980, o país começou a conviver com a migração latino-americana, particularmente de bolivianos. Isso foi se acen-tuando no século 21 com as migrações do Hai-ti, as migrações refugiadas, os deslocamentos internos da migração internacional a partir das fronteiras, as migrações forçadas. São mo-dalidades migratórias dentro desse contexto maior das migrações internacionais. Entender essa migração no século 21 passa necessaria-mente pelo contexto das migrações Sul-Sul. Porque os países do Norte, cada vez mais, fe-cham as fronteiras, limitam a entrada de imi-grantes do Sul; então, essa migração internacional passa a ser entre os países do Sul.

Do ponto de vista da possibilidade de docu-mentação e permanência de imigrantes e re-fugiados no Brasil, até 2017 a legislação migratória no Brasil era regida pelo Estatuto do Estrangeiro, criado em 1980, em plena di-tadura, baseado na segurança nacional, por-tanto, desatualizado e anacrônico em relação às migrações do século 21, em especial às mi-grações Sul-Sul. Em 2010, quando chegaram os imigrantes haitianos, iniciativas do gover-no federal, dos estados e dos municípios foram abrindo brechas para que essa migração se tornasse documentada. Essa possibilidade de documentação é muito importante para que possamos diminuir a discriminação e a xeno-fobia no nosso país. Porque não teremos a carga que outros países denominam “clandes-tinidade” da imigração. Essa possibilidade da documentação reforça a entrada de imigrantes com outra conotação: o Brasil é o país possível, não é o país desejado. Possível pela nova Lei de Migração, de 2017, com o visto de residên-cia temporária, ou pelo visto de residência dos países latino-americanos do Mercosul e asso-ciados por meio do acordo de residência do Mercosul, ou ainda do Estatuto do Refugiado, de 1997, com a solicitação de refúgio. A per-manência documentada no Brasil, muitas ve-zes, é transitória na trajetória do imigrante e refugiado que depois se torna um caminho para o Norte global.

No caso dos haitianos, o projeto migra-tório era ir para a Guiana Francesa, e posteriormente, muitos deles foram para o Chile e tentaram os EUA. No caso dos venezuelanos, muitos deles passam pelo Brasil, mas vão para Argentina e Uruguai. Essa possibilidade da docu-mentação abre um caminho para as migrações internacionais que não ne-cessariamente vão aumentar em volu-me no Brasil – claro que sim, em situações pontuais, como a da Vene-zuela –, mas o que ampliará essa nova configuração migratória no âmbito Sul-

como o Brasil se insere nesse contexto das migrações sul-sul? O Brasil se insere nesse contexto das migrações internacionais com a entrada de imigrantes latino-americanos no final do século 20, refor-çando essa tendência no século 21, a partir de 2011, com a chegada de imigrantes do Haiti, com a migração refugiada síria a partir de 2013, por acordos bilaterais e, recentemente, pela posição do Brasil nas questões da geopolítica interna-cional, com a intensificação de imigrantes da África e da Ásia. É de se ressaltar que as migra-ções internacionais do século 21 trazem hete-rogeneidades na composição de cada um dos fluxos migratórios: de um lado, com a presença de imigrantes altamente qualificados – vindos pelas empresas transnacionais – e, de outro lado, imigrantes com menor qualificação profissional. Na virada do século 20 para o 21, tivemos en-tradas de capitais internacionais e de empresas transnacionais, que podem ser do Norte global e de empresas do próprio Sul global adentrando no Brasil, caso da China. E uma das “respostas” dessa mobilidade do capital é a mobilidade da força de trabalho, como afirma [a socióloga holandesa] Saskia Sassen. No caso dessa migra-ção Sul-Sul, nota-se que assistiremos tanto a uma migração qualificada quanto a uma migra-ção de menor qualificação ocupacional. Sendo que, neste último caso, muitas vezes imigrantes com nível de escolaridade elevado acabam se inserindo em ocupações desiguais à sua forma-ção profissional no lugar de destino.

Sul é justamente as muitas nacionalidades de imigrantes e refugiados com as quais não tive-mos raízes históricas.

há diferenças na receptividade entre os fluxos do final do século 19 e este atual? Há, sim, uma diferença nessa receptividade, porque nós temos uma questão estrutural que tem a ver com a raça. As migrações europeias do final do século 19 e início do século 20 eram brancas. As migrações do século 21 são marca-das pela presença não branca: negros, latino-

-americanos – incluindo povos indígenas – e asiáticos. Esse componente é importante nas migrações Sul-Sul. Isso fica mais evidente no Brasil com a entrada da imigração haitiana a partir de 2010. No caso dos sírios, eles são bran-cos e “não nos incomodam” – diferentemente de outros países – mesmo que tenham outros costumes e vestimentas etc., porque não temos um Estado baseado na religião. Mas temos for-temente um Estado-nação que se construiu com a questão da raça.

O Estatuto do Refugiado, baseado na Conven-ção Internacional das Nações Unidas, é de 1951, então, houve acordos bilaterais para trazer es-ses imigrantes. Como era uma mobilização mundial, havia outros mecanismos. Hoje vemos uma reconfiguração histórica. Os sírios chega-ram também no começo do século 20; temos

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raízes históricas, proximidade com a gastro-nomia, que não vamos ver com a República Democrática do Congo, por exemplo. Os sírios vão se reconfigurar com uma imigração refu-giada. Hoje, no Brasil, temos um fluxo impor-tante de alemães altamente qualificados, que é também uma reconfiguração, porque os do século 19 para o 20 não tinham essa condição.

com que desdobramentos? A primeira lição, com a migração haitiana, foi uma pressão para que pudesse caminhar mais rapidamente com a nova Lei de Migração e mostrar como o Estatuto do Estrangeiro esta-va desatualizado. A segunda é que tivemos de rever a nossa posição como um país construí-do, do século 19 para o 20, com o mito da re-ceptividade migratória. Porque mesmo os migrantes desse período eram os brancos eu-ropeus, católicos, desejados e assimiláveis. Dos que não eram assimiláveis, muitos retornaram. Se esse mito da receptividade já não existia entre os séculos 19 e 20, mesmo com a cons-trução da imagem de um país acolhedor, ele se desconstrói nesses últimos 15 anos do sé-culo 21, justamente porque lidamos com uma migração não branca.

Qual a proporção dos refugiados nessa migração para o Brasil? O Estatuto do Refugiado de 1997 no Brasil é baseado na Convenção Internacional das Na-ções Unidas de 1951, que considera, na con-

para o Paraguai já havia sido de 400 mil brasileiros. O Atlas traz que, no século 21, o Brasil é um país de trânsito migratório. Há em torno de 3,5 milhões de brasileiros lá fora. Nesses últimos 20 anos, houve uma entrada de quase 1,5 milhão de migrantes internacionais e, agora, com solicitantes de refúgio, vai dar 1,7 milhão. A documentação permite ao imi-grante, ao solicitante de refúgio ou ao refugia-do uma mobilidade interna no Brasil. O Atlas mostra uma migração interna de uma migração internacional. Isso vai trazer uma outra questão, que desemboca no nosso preconceito e xenofo-bia, que são uma presença e uma visibilidade de migrantes não brancos internacionais em luga-res onde não houve nenhum processo histórico de migração internacional e agora começa a ter a presença de haitianos, de bengaleses etc.

Quais os preconceitos mais recorrentes que os refugiados enfrentam? Teremos uma sobreposição de discriminação no Brasil. Primeiro, não são brancos; segundo, em muitos casos, a própria condição migra-tória já discrimina; terceiro, os imigrantes e refugiados qualificados têm dificuldade na revalidação do diploma; quarto, o Brasil não tem a experiência da multiculturalidade.

essa dificuldade gera uma perda de capi-tal intelectual para o país? Essa é uma questão importante. A migração síria tem alta escolaridade, bem como há uma elite da República Democrática do Congo e de venezuelanos das primeiras ondas migratórias. Então, é uma oportunidade de um capital hu-mano e cultural. O país deveria ter condições de promover a inserção laboral de imigrantes. Algumas universidades fazem provas para re-validarem esses diplomas e, às vezes, existem

cessão do refúgio, as situações de perseguições políticas, de guerra, religiosas ou com graves violações de direitos humanos. Isso restringe muito a concessão do refúgio jurídico. Em 2018, tivemos no Brasil, segundo os dados do Con-selho Nacional para Refugiados (Conare - Mi-nistério da Justiça), 80.057 solicitações de refúgio, mas só foram concedidas 777, das quais 476 para imigrantes da Síria.

Muitos imigrantes, para terem a permanência documentada, CPF e carteira de trabalho, op-tam pela solicitação de refúgio, uma vez que a solicitação de visto de residência temporária, pela Lei de Migração temporária, tem uma taxa, que o documento de refúgio não exige.

O total acumulado de concessões de refúgio no Brasil até 2018 era de 11.231 refugiados, porém somente 6.554 ainda mantêm o status de refu-giados – podem ter saído do Brasil, alterado o tipo de visto, falecido –, segundo os dados do Ministério da Justiça. No Atlas da Migração Re-fugiada, os dados do tráfego internacional nos aeroportos, com base em dados da Polícia Fe-deral, Ministério da Justiça, mostram essa mo-bilidade intensa de entradas e saídas de solicitantes de refúgio e de refugiados nesses últimos 15 anos. Mesmo tendo refúgio conce-dido, estar no Brasil não é o destino final. Mui-tos sírios já foram para o Canadá. É uma etapa migratória, em que estar documentado aqui é importante para eles adentrarem outro país.

no material apurado para a confecção do Atlas e do livro Migrações Sul-Sul, apare-ceram aspectos que driblam a percepção comum?Pelo imaginário migratório do século 19 para o 20, sempre líamos o Brasil como um país de imigração. Em meados dos anos 1980, surge uma rota da emigração, pela saída de brasilei-ros para os EUA e para o Japão. Só passamos a nos enxergar como país de emigração quando esse movimento é feito em direção ao Primei-ro Mundo. Porque nos anos 1970 a emigração

matérias que são de segurança brasileira no trabalho, legislação, e o refugiado ainda não está apto com a língua portuguesa. Isso difi-culta mesmo e, nesses casos, acabamos tendo um desperdício de cérebros. O Alto Comissa-riado das Nações Unidas para os Refugiados [Acnur], por meio da cátedra Sérgio Vieira de Mello, tem ampliado a parceria com as univer-sidades brasileiras para a facilitação da revali-dação de diplomas para refugiados.

estudos do nepo apontam uma interiori-zação dos imigrantes, sobretudo no estado de são paulo. como esse fenômeno se dá? São Paulo tem uma intensificação dessa inte-riorização das migrações internacionais pela presença e instalação de empresas transna-cionais. O capital internacional traz um fluxo que vem com as empresas e depois pode ali-mentar uma corrente migratória que não tem nada a ver com esse fluxo. Isso tem aconteci-do no Brasil, principalmente em São Paulo. Pessoas de Bangladesh vieram trabalhar em frigoríficos no interior, por causa do corte halal de carne para países muçulmanos, com visto de trabalho, e, depois, essas empresas foram vendidas para outros grupos interna-cionais. Estamos fazendo uma pesquisa com iranianos num frigorífico em Santa Fé [do Sul], na divisa com o Mato Grosso. Essa interiori-zação é um fato novo. As nossas explicações teóricas para a chegada das migrações inter-nacionais para as cidades pequenas e médias

O Brasil é um país de trânsito migratório. Há em torno de 3,5 milhões de brasileiros lá fora. Nos últimos 20 anos, houve uma entrada de quase 1,5 milhão de migrantes internacionais

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estão no âmbito global, mas a política e o de-safio são do âmbito local. E o âmbito local muitas vezes não tem estrutura para receber essa população. Isso vai recair na assistência social. É necessário conhecer essa migração, de onde são esses migrantes. Dos 5,5 mil mu-nicípios no Brasil, 4,5 mil têm pelo menos um migrante internacional vindo nos últimos 20 anos. Isso traz uma nova configuração.

esses fluxos recentes coincidem com um período de crise econômica e alta taxa de desemprego. esse quadro aumenta a rejei-ção aos estrangeiros? O Brasil, entre 2011 e 2014, estava no auge da dinâmica econômica e da migração. A migra-ção haitiana chegou num momento de acele-ração econômica. E os haitianos, que vieram para São Paulo para a construção civil, cobri-ram uma lacuna que a migração nordestina preenchia há décadas, que era o trabalho na construção civil. Porque os fluxos migratórios do Nordeste para São Paulo diminuíram. Não só as mulheres tiveram menos filhos, como houve uma aceleração econômica no Nordes-te, que gerou empregos. Na migração interna, começamos a visualizar a rotatividade migra-tória, pessoas que vêm e vão com muito mais frequência do que antes. No caso dos haitianos que chegaram para a construção civil, não vimos essa disputa entre mão de obra local e estrangeira, porque havia um boom econômi-co. Pelos dados da Rais [Relações Anuais de Informações Sociais, do Ministério do Traba-

do trabalho imigrante, como define [Luis E.] Guarnizo, da Universidade da Califórnia. Por exemplo, as imigrantes filipinas em São Paulo não competem com as babás brasileiras, porque elas vêm por empresas e vão trabalhar em casas em que as pessoas querem que os filhos falem em inglês. Esse é um ponto importante para desconstruirmos essa visão de competitivida-de e disputa no mercado de trabalho brasileiro.

A bibliografia internacional e um estudo da OIT [Organização Internacional do Trabalho] que fizemos em 2017-2018 mostram como nos nichos econômicos é difícil entender essas cadeias da inserção laboral, porque muitas delas estão fora do país.

essa dificuldade gera que tipo de conse-quência? Esses nichos econômicos tendem a uma baixa interação social dos migrantes com a comu-nidade local. A discriminação e o pre-conceito só diminuirão se houver um brasileiro e um de outra nacionalidade trabalhando no mesmo lugar. Como acon-teceu com os haitianos, porque tinha uma presença do Estado.

temos visto matérias sobre a partici-pação do exército e de instituições religiosas na chegada de migrantes. como analisa o papel dessas entida-des no contexto das migrações?O Exército entra na migração venezue-lana, em área de fronteira, onde já tem um papel importante de levar vacina e

lho], eles entraram para o mercado de trabalho formal. Isso vai se modificando à medida que a crise econômica vai se acirrando. Os dados mostram imigrantes internacionais e traba-lhadores nacionais entrando para a informa-lidade. E vemos esse acirramento em locais onde o emprego diminui e há a presença do imigrante internacional. Esse ponto é impor-tante, porque temos de preparar a sociedade para esse contexto da migração global.

de que forma? Em relação aos migrantes internacionais no Brasil, sempre houve a discussão se eles ocu-pariam os postos de trabalho, tal como os brasileiros nos EUA e na Europa, o que o [so-ciólogo Alejandro] Portes chama de mercado secundário de trabalho – o do trabalho domés-tico, de serviços etc. Ocorre que aquilo que nos EUA é o mercado secundário de trabalho, aqui no Brasil é o próprio mercado de trabalho. Numa leitura muito simplista, essa disputa pode ficar mais acirrada, mas, por outro lado, esse migrante internacional contribui se soma ao trabalhador nacional, para a geração de novos empregos.

Outra questão é que a inserção do imigrante na estrutura ocupacional do mercado de tra-balho brasileiro é muito limitada. Os haitianos e os venezuelanos entram porque existe uma forte presença do Estado. Os demais imigran-tes não competem no mercado de trabalho brasileiro porque, mesmo aqui, eles fazem parte de uma cadeia global de produção. Os senegaleses vendendo produtos eletrônicos na avenida Paulista compõem a mesma cadeia global dos que estão na França. Não consegui-mos enxergar a cadeia inteira no contexto nacional. Não há essa competição direta entre o migrante internacional e o nacional porque aquele faz parte do chamado mercado global

outros bens para populações mais distantes etc. Nesse contexto, a Operação Acolhida tem um outro papel importante, que é o da docu-mentação, da orientação com a presença da Polícia Federal, da área da saúde e das agências das Nações Unidas. Houve a renovação dos recursos para a Acolhida pelo governo atual. Provavelmente, essa situação de fronteira com a Venezuela é bastante particular, tanto pelo volume do fluxo migratório quanto pela ques-tão geopolítica, que é muito complexa agora, e temos de fazer uma leitura que extrapola o entendimento das migrações Sul-Sul.

As instituições religiosas sempre tiveram papel na acolhida de imigrantes no Brasil. A Cáritas é uma instituição internacional da Igreja Cató-lica para ajudar os refugiados. Em São Paulo, por exemplo, a Missão Paz atendeu cerca de 11 mil haitianos entre 2012 e 2014, fazendo o papel que o Estado brasileiro não estava fazendo. De-pois disso, houve pressões dessas instituições locais, e o município de São Paulo passou a ter um Conselho Municipal de Imigrantes em 2016.

No caso das mesquitas, a raiz histórica ajuda a entender, no caso dos sírios, porque já existiam no Brasil. Na migração venezuelana, outras religiões entram também, particularmente na interiorização. Porque são dois modelos de in-teriorização que às vezes se confundem.

A discriminação e o preconceito só diminuirão se houver um brasileiro e um de outra nacionalidade trabalhando no mesmo lugar

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Um modelo que o governo brasileiro propõe, envolve o Exército, a Casa Civil e as prefeituras. Há localidades muito pequenas, em Pernam-buco, no Paraná, que receberam esses migran-tes. O outro caminho de interiorização passa pela Casa Civil também, mas não pelas prefei-turas, e vem, com instituições religiosas pen-tecostais, mórmons etc., para cidades que querem receber esses migrantes, como Mato Grosso e São Paulo. Vários migrantes, parti-cularmente no interior de São Paulo, podem ter vindo por meio de instituições religiosas, e a prefeitura não sabe da chegada deles.

São novos atores, em parceria com o Estado, acolhendo essa migração, mas sem uma polí-tica migratória, com políticas sociais que pos-sam dar um acompanhamento para essa população. A migração que saiu da fronteira do Brasil com a Venezuela se interioriza e, na inserção laboral, necessita de um acompanha-mento no local de destino, pois gera, como temos visto, casos de trabalho análogo à es-

movimentar dentro de seus países. Contudo, há migrantes forçados dentro de seus próprios países; no caso da Colômbia, são 6,5 milhões de deslocados internos, que saíram por guerrilhas etc. Mas a Declaração Universal dos Direitos Humanos silencia no caso em que as pessoas podem ser imigrantes e terem sua permanência garantida em ou-tros países. Outro ponto: pensar em direitos humanos é pensar em políticas sociais, políticas públicas, acolhimento, hospitalidade que não se pautem pela assimilação. A migração do século 19 para o 20 foi absolutamente assimilacionista. Nós, descendentes de europeus, ficamos aqui porque tivemos as características assimilacionistas que o governo brasileiro pedia. Se continuarmos pensando assim, estaremos dizendo que o imi-grante é economicamente importante para o Brasil. Ou ele vai ter o diploma revalidado, ou vai trabalhar bastante, ou vai cobrir a lacuna que o migrante interno não faz mais. Esse viés de que o imigrante sempre vai ser um bom trabalhador tem de ser desconstruído para mostrar que ele é um sujeito de direitos. Imi-grantes precisam ter o direito de ser imigran-te, de trabalhar, de estar no Brasil, de ter suas escolhas, de ter autonomia. Pensar em direitos humanos é, antes de tudo, pensar no direito à dignidade. O [sociólogo Abdelmalek] Sayad ressalta que o imigrante e o emigrante são a mesma pessoa. É emigrante porque deixou um país e é imigrante e traz toda a sua reconfigu-ração ao país em que chega.

um sujeito em trânsito?É um sujeito em trânsito. E vai reconfigurar essa sua identidade migratória a partir dos seus projetos migratórios nesse país. Para entender esses projetos migratórios, é preciso dar voz a esses migrantes. Precisamos conversar, ouvir, entender, fazer parte dessa política – ou local ou nos conselhos. E as demandas são transi-tórias; então, as políticas não podem ser assi-

cravidão. Mesmo que eles tenham CPF e car-teira de trabalho, há casos em que ficam em situação extremamente vulnerável frente à ausência de políticas sociais adequadas e têm de ser dirigidos a fluxos diferenciados.

Qual a participação do terceiro setor nes-se contexto? Pela própria condição histórica, São Paulo con-centra mais instituições. Têm um papel impor-tante, que vai cobrir uma lacuna que não é só um acolhimento do ponto de vista assistencia-lista. Há um encaminhamento e uma questão que vão dar um sentido maior de comunidade. A migração haitiana é uma das que mais con-seguiu criar associações no Brasil. Eles mesmos se associaram, e isso dá um lugar político na comunidade muito diferenciado de outra que ainda não tem essa articulação entre os seus membros. Por exemplo, os bolivianos só con-seguiram consolidar suas associações quando estiveram documentados. Como a [filósofa política] Hannah Arendt argumenta, essa ca-pacidade de associação traz uma questão polí-tica importante para a visibilidade do grupo.

Que demandas de políticas públicas e de direitos humanos surgem com os atuais fenômenos migratórios? A questão principal é a de direitos humanos. O direito de ser imigrante. A Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos preconiza que todo mundo tem o direito de sair do seu país e de se

milacionistas, porque eles não estarão aqui o tempo todo. Nós entrevistamos haitianos, logo no começo, e eles falavam: “Não quero apren-der português, eu não vou ficar aqui”. É claro que o português é importante, senão não tem a inserção social e laboral, mas precisamos saber quais as demandas e as políticas para que eles se tornem sujeitos de direito. E isso passa também pela sociedade, que precisa estar pre-parada para a migração que vai se acirrar cada vez mais como uma migração não branca e de países com os quais não temos nenhuma raiz histórica. E temos de aprender a conviver den-tro dessa nova realidade multicultural e global.

existe um caminho para isso? Vejo dois caminhos, além da questão da docu-mentação, de que já falamos. Não ter o rótulo de “clandestino” diminui muito a xenofobia. Outra questão é que as políticas sociais precisam ser levadas em consideração com políticas que deem acesso à população nacional e a imigran-tes nos mesmos espaços públicos. À medida que, na fila de vacinação do posto de saúde, há imigrantes e brasileiros, começamos a romper esse distanciamento entre o “nós” e “o outro”. Outro ponto, que Hannah Arendt discute, é a visibilidade nos espaços públicos, que é a ga-rantia que temos do encontro com o “outro”. Este é o desafio do século 21: a garantia de uma sociedade baseada nos direitos humanos, nos direitos dos imigrantes e na vivência da mul-ticulturalidade a partir do “outro”.

Imigrantes precisam ter o direito de ser imigrante, de trabalhar, de estar no Brasil, de ter suas escolhas, de ter autonomia. Pensar em direitos humanos é, antes de tudo, pensar no direito à dignidade

entrevista

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Flor Flor Ángela Durán tem 45 anos, veio da Venezuela com o marido e a filha, e no abrigo Rondon 3 atua como auxiliar técnica de enfermagem. Do seu país, trouxe uma antiga rede com listras brancas, azuis e vermelhas, que a faz lembrar do pai, morto há pouco tempo. “Ele me ensinou a dormir em rede, porque é mais fresco, mais confortável.” Flor conta que, apesar da vida dura de refugiada, sempre dorme bem na rede que montou em seu abrigo: “É como se eu estivesse dormindo numa nuvem”.

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De utensílios para ajuDar na sobrevivência a itens De valor sentimental, objetos escolhiDos por pessoas em fuga De seus locais De origem compõem o projeto a coisa mais importante, realizaDo pelo acnur com o fotógrafo brian sokol importante

por Brian Sokol

©fo

toS:

Br

ian

So

kol

ensaio

a coisa mais

DowlaDe: sudãopara: sudão

Um suporte de madeira para levar nos ombros e equilibrar dois ces-tos foi o que Dowla resolveu levar para ajudá-la na jornada de dez dias rumo a um campo de refu-giados no sul do país africano. Ela fugiu com seis filhos dos bombar-deios em sua região. Quando as crianças se cansavam de caminhar, ela chegava a equilibrar duas de cada lado para conseguir concluir a viagem.

Magboola De: sudãopara: sudão do sul

Aos ataques aéreos, Magboola con-seguiu resistir. Mas, certa noite, quando soldados abriram fogo por terra, ela decidiu deixar a aldeia onde morava. Empreendeu uma viagem de 12 dias para o Sudão do Sul. Escolheu uma panela que era possível carregar na jornada e, ao mesmo tempo, garantir o preparo de alimentos para as três filhas que a acompanhavam.

AbdouDe: malipara: burkina faso

Quando a mãe de Abdou foi se-questrada e morta no deserto com outras quatro mulheres, ele decidiu deixar o Mali. O objeto escolhido foi justamente a motocicleta que o auxiliou a cruzar a fronteira de Burkina Faso. Após colocar os filhos e a esposa num automóvel, Abdou e o pai seguiram viagem de moto até o país vizinho. Essa foto foi tirada em 2013, do lado de fora do campo de refugiados.

FidelineDe: rep. centro-africanapara: rep. Democrática do congo

Quando entrou no barco com os familiares, a adolescente Fideline carregava os livros escolares que escolheu salvar em sua fuga. “Não podia levar minha mochila escolar, meus sapatos ou as fitas coloridas para os meus cabelos, mas trouxe meus cadernos e minha caneta.” Na travessia do rio Outbangi, carregava uma convicção: “Que-ro estudar para que possa me tor-nar alguém”.

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DeivysDeivys Tenias Sequera era homem de circo antes de vir sozinho para o Brasil e se abrigar no Rondon 3, em Boa Vista (RR). Ele caiu do trapézio a 33 metros de altura e, desde então, anda acompanhado de suas muletas. De lá para cá, dedicou-se às marionetes. Ele se apresentava nas ruas de Caracas e também dava aulas dessa antiga arte. Tinha 120 bonecos, mas só conseguiu trazer dois ao Brasil: Shakira, de papel machê, e Michael, de madeira. Ele quer se apresentar pelo Brasil, mas precisa juntar dinheiro para comprar um aparelho de som e animar suas apresentações. “Seguir o ritmo da música é o grande segredo das marionetes”, ele diz, enquanto mostra a dança silenciosa de Shakira.

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pesar da fama de hospitaleiro, o Brasil têm nú-meros proporcionalmente baixos de imigrantes e refugiados na sua população. Dados da Polícia Federal indicam menos de 1% de imigrantes em território brasileiro. O número de refugiados, segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), é ainda menor. São cerca de 6,5 mil

vivendo por aqui, de um total de 11,2 mil reconhecidos desde que o Brasil regulamentou o procedimento de concessão em 1997. O dado coloca o Brasil na 139ª posição (de um total de 187) no ranking da ONU dos países que abrigam mais refugiados.Já quando o assunto é o número de pessoas buscando reco-

nhecimento da condição de refúgio, o quadro muda. A re-cente crise na Venezuela e a onda emigratória do país para vizinhos, entre eles o Brasil, fez quase dobrar a fila de ava-liação de pedidos por reconhecimento – saltando de 86 mil em 2017 para 161 mil em 2018. Do total de novos pedidos, 77% são de autoria de venezuelanos.

De acordo com o Acnur (Agência da ONU para Refugiados), em 2018 o Brasil é o sexto país com maior número de novas solicitações de reconhecimento da condição de refugiado, abaixo de EUA, Peru, Alemanha, França e Turquia.Veja abaixo esses e outros dados sobre refúgio no Brasil:

Realidade brasileira

A

Soli

cit

õeS

de

ref

úg

io

r efu

gia

do

S re

co

nh

ecid

oS

Roraima......................................................50.770 (63%)Amazonas..................................................10.500 (13%)São Paulo........................................................9.977 (12%)

Santa Catarina................................................1.894 (2%)Paraná..............................................................1.408 (2%)Rio Grande do Sul...........................................1.223 (2%)

Solicitações de reconhecimento da condição de refugiado feitas no Brasil, por estado (2018)

Novas solicitações de reconhecimento da condição de refugiado ao Brasil em 2018, por país

Dados do Conare indicam que 6.554 refugiados possuem registro ativo no Brasil, ou seja, efetivamente vivem no Brasil sob essa condição.

Refugiados reconhecidos (total acumulado de deferimentos)

Solicitações de refúgio ao Brasil em trâmite (acumulado)

Novas solicitações de reconhecimento da condição de refugiado ao Brasil

86.0072017

161.0572018

3.538 28.3854.2

82

17.631

28.670

10.30833.8

66

80.057

20112012

20132014

20152016

20172018

4.035

7.262

4.284

4.975 8.4

939.5

5210.145

11.231

20112012

20132014

20152016

20172018

Total 80.057

Venezuela 61.681 (77%)

Haiti 7.030 (9%)

Cuba 2.749 (3%)

China 1.450 (2%)

Bangladesh 947 (1%)

Angola 675 (1%)

Senegal 462 (1%) Síria

409 (1%)

Índia 370 (1%)

Outros 4.284 (5%)

Colômbia 324 (4%)

Palestina 350 (4%)

Paquistão 306 (4%)

Mali 129 (2%)

Iraque 110 (1%)

Angola 96 (1%)

Afeganistão 86 (1%)

Camarões 54 (1%)

Síria 3.326 (40%)

Outros 2.278 (28%)

Rep. Dem. do Congo 1.137 (14%)

Guiné 81 (1%)

Refugiados reconhecidos no Brasil entre 2011-2018, por país de origem

Perfil demográfico dos refugiados reconhecidos no Brasil em 2018*

Fonte: Polícia FederalFonte: Conare/UNHCR – Global Trends:Forced Displacement in 2018

INFOGRÁFICO

*Total de 1.086 pessoas (compreende novas solicitações e solicitações de extensão da condição de refugiado deferidas)

0,37%

0,64%

4,79%

3,59%

3,41%

3,04%

27,99%

10,59%

27,35%

14,64%

1,84%

1,75%

> 60 anos

30-59 anos

18-29 anos

12-17 anos

5-11 anos

0-4 anos

8,38% 6,45% 38,58% 41,99% 3,59%1,01%

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Adriana Adriana Camargo Ibarra deixou a Venezuela quando as coisas começaram a apertar por lá. Faltavam produtos, remédios, a criminalidade a assustava. Passou pela Colômbia e, por fim, veio ao Brasil. Sem conseguir revalidar seu diploma em Administração, por aqui trabalhou como diarista, cuidadora de crianças e, por fim, em restaurantes. “Não sabia que eu gostava tanto de cozinha, embora as pessoas sempre elogiassem a minha comida”, diz. Em São Paulo, fez cursos e hoje tem seu próprio estabelecimento, um café, onde trabalha com a mãe e vende seus bolos.

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m 2004, o movimento em de-fesa de migrantes e refugiados No One Is Illegal (Nenhuma Pes-

soa É Ilegal, em tradução livre), baseado na cidade de Toronto, Canadá, iniciou uma cam-panha de ativismo em prol de uma política de don’t ask, don’t tell (DADT) (Não pergunte, não conte, em tradução livre). A ideia básica era impedir agentes públicos, basicamente atre-lados aos serviços e garantias básicas ao cida-dão (polícia, escolas, hospitais), de perguntar sobre o status migratório dos indivíduos e de reportar esse status às autoridades migratórias do país. A medida era vista como necessária para garantir que qualquer pessoa pudesse matricular seus filhos na escola, obter aten-dimento médico, reportar um crime ou vio-lação às autoridades policiais, sem que isso

Políticas e estratégias de recePção, acolhimento e integração de imigrantes e refugiados se traduzem no cotidiano das cidades

locais

por Carolina Moulinartigo

E

implicasse ampliar sua vulnerabilidade mi-gratória, particularmente de acesso e perma-nência no território. Em 2017, a Secretaria de Educação do município passou a adotar a po-lítica, e a polícia local de Toronto é hoje impe-dida de perguntar a condição migratória a vítimas e testemunhas de crimes ou violações (embora sem obrigatoriedade de não reportar às autoridades federais). A despeito das resis-tências e dos problemas de implementação, o DADT se converteu em uma pauta aglutina-dora dos movimentos de defesa de migrantes e refugiados, particularmente voltado para a centralidade da cidade como espaço de con-vivência, de acesso a direitos e de envolvimen-to em dinâmicas de pertencimento social.

Dois processos importantes parecem marcar a questão da mobilidade de pessoas no plano global hoje. A primeira diz respeito à crescen-te incapacidade de encaixe das múltiplas e heterogêneas trajetórias e projetos migratórios em categorias jurídicas estanques e pensadas do ponto de vista, majoritariamente, dos Es-tados nacionais. Quem é refugiado e quem é imigrante? Como diferenciar experiências que hoje são atravessadas concomitantemente por crises ambientais, pobreza, violência e expro-priação dos mais diversos matizes e origens? Em todo refugiado há algo de migrante e em todo migrante, algo de refugiado. Essa confu-são que marca a mobilidade como experiência cotidiana de luta tensiona de modo muito veemente os arranjos institucionais e norma-

globais,desafios

movimentos

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artigo

tivos que atualmente temos para lidar com o fenômeno da circulação internacional de pes-soas e, por conseguinte, seus processos de recepção, acolhida e integração. Derivam daí os esforços de reforma e ajuste da regulamen-tação internacional, evidenciados na discussão do Pacto Global das Migrações e de Refugiados no âmbito da ONU, aprovados em 2018, e os embates políticos, em diversos rincões do mundo, sobre como responder aos chamados

“fluxos mistos”. No Brasil, a Lei nº 13.445/2017 responde, ainda que parcialmente, a essa de-manda ao incorporar a imigração por razões humanitárias, numa lógica que permitiu re-gularizar contingentes de haitianos e vene-zuelanos no país.

Ao mesmo tempo, a proliferação de categorias evidencia a emergência de uma nova chave de organização desse movimento, marcada ago-ra pela ideia de legalidade e regularidade, ou seja, interessam menos as causas do desloca-mento e mais se podem os indivíduos ser re-gularizados no país de recepção. Eclodem assim as narrativas sobre migrantes ilegais, indocumentados, irregulares, em frequente processo de associação desses fluxos a questões de segurança nacional e internacional. Acopla-

-se à ilegalidade a concepção de que migrantes e refugiados (nos seus atravessamentos com cortes de gênero, raça e origem nacional e étnica) constituem pessoas perigosas e inde-

com novas regras sociais, do tornar o estranho familiar) de vidas possíveis. E o espaço do cotidiano é o da vizinhança, do bairro, da co-munidade do entorno, cada vez mais urbana. Dados mostram que, por exemplo, mais da metade dos refugiados e solicitantes de refúgio no mundo vivem em contextos urbanos. A imagem do campo, tão emblemática, precisa ser deslocada para uma reflexão cada vez mais incisiva sobre como lidar com essa diversida-de nas ruas e esquinas, na proximidade, e não na distância espacialmente contida.

Voltamos a Toronto, cidade em que metade da população nasceu em outro país. Em bairros com forte presença de migrantes de origem africana, escolas e professores vêm adaptando o currículo para ensinar história, arte, música dos países de origem dos seus alunos, num hibridismo que respeite e fortaleça a integra-ção como movimento bidirecional – dos que chegam e dos que aqui já estão. No Brasil, São Paulo emergiu, na última década, como exem-plo de política municipal mais inclusiva e aten-ta à presença migrante com estabelecimento do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (Crai), com participação política local forte dos grupos auto-organizados de refugiados e migrantes (há o Conselho Muni-cipal de Migrantes, que funciona como órgão consultivo da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania) e de valorização do intercâmbio cultural, com feiras artísticas e gastronômicas. O município abraçou a questão, instituindo normativa local (a Lei nº 16.478/2015), esti-mulando a formação e sensibilização de ser-vidores da rede municipal para o tema e crian-do espaços públicos seguros para acolhida e atendimento de migrantes. Outras cidades, como Rio de Janeiro, têm tentado avançar em estratégias semelhantes. Há enormes desafios

sejadas. Talvez o mais substantivo efeito polí-tico dessa narrativa seja reduzir o espaço de debate sobre formas de integrar e acolher, e sobre a necessidade de respostas humanas (não humanitárias) que ampliem o espaço de escu-ta a essas populações e abram caminho para o reconhecimento da mobilidade como direito fundamental e condição inescapável de um mundo globalizado e absolutamente interco-nectado. Cria-se um caldo cultural e institu-cional de hostilidade ao imigrante que legitima políticas de expulsão, segregação e morte.

tratativas e arranjosA segunda questão evoca a tensão entre o local, o nacional e o global no campo da circulação de pessoas. As esferas federais costumam de-ter a autoridade sobre o tema migratório. No Brasil, compete a órgãos do Executivo federal regulamentar e implementar a política e as normativas de refúgio e migração. Ao mesmo tempo, é notório que respostas adequadas aos desafios e potencialidades que a mobilidade apresenta demandam cooperação regional e global, entre governos e atores não governa-mentais, obedecendo a uma série de tratativas e arranjos já consolidados desde meados do século 20 sobre o tema (por exemplo, a Con-venção da ONU sobre Refugiados de 1951). Migrantes e refugiados têm de negociar essas esferas ao atravessar fronteiras, buscar documentos, solicitar permissões de viagem e residência, entre tantos outros trâmites burocráticos que marcam seus ritos de passa-gem e permanência. Mas é na cidade, no espaço local, que se desenrolam suas vidas, que se negociam as demandas de inclusão, a bus-ca por direitos e pela oportunidade de refazer vidas. É preciso que os filhos possam ir à es-cola, que as doenças sejam tratadas, que a música, a dança e a arte sejam mostradas e compartilhadas. Que as violências e crimes de que são vítimas sejam denunciados e investi-gados e suas vidas, protegidas. Nesse vai e vem do dia a dia é que se tecem os laços, se desatam os nós (do aprendizado da língua, do trânsito

É na cidade, no espaço local, que se desenrolam suas vidas, que se negociam as demandas de inclusão, a busca por direitos e pela oportunidade de refazer vidas

Carolina Mouliné professora adjunta no Centro de Desenvolvimento e Planejamento regional da universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/uFMG) e professora colaboradora no instituto de relações internacionais da Pontifícia universidade Católica do rio de Janeiro (PuC-rio)

no apoio a essas políticas, com resistência à alo-cação de recursos e pouco apoio da população e de políticos locais. O Crai de Florianópolis, por exemplo, durou pouco mais de um ano, fechando as portas por falta de suporte político e financei-ro. Entre avanços e retrocessos, vamos, enquan-to sociedade, paulatinamente compreendendo que somos nós também migrantes e refugiados (há mais brasileiros morando fora do país do que estrangeiros morando no Brasil hoje) e que é na troca e no envolvimento com a riqueza e o poten-cial que esses grupos trazem ao nosso cotidiano que poderemos avançar e enfrentar os desafios que a nova ordem globalizada nos coloca. Dife-rentes, mas com alguma coisa em comum.

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Euligio Euligio Jonan Baez, de 33 anos, chegou com seus quatro filhos ao abrigo de Pintolândia, em Boa Vista (RR), há cerca de um ano. Na Venezuela, vivia na cidade de Tucupita, a mais de 700 km de distância da fronteira com o Brasil, em uma residência cedida pelo governo à família indígena. Com a turbulência vivida no seu país, as políticas que garantiam benefícios (como bolsa alimentícia) a Euligio e sua família deixaram de existir e ele, então, decidiu buscar refúgio em terras brasileiras.

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mundo está cada vez mais frá-gil, os conflitos se espalham de forma imprevisível e estão le-vando milhões de pessoas ao

limite da sobrevivência. Vivemos tempos dramáticos e perigosos, que exigem da comunidade internacio-nal uma mobilização de forças para tratar a crise dos refugiados em sua dimensão humana. Hoje, mais do que nunca, trata-se de uma crise relacionada à in-fância. As crianças já representam mais da metade da população mundial refugiada e, sem dúvida al-guma, são as que pagam o preço mais alto.

A violênciA, o cAos e o sofrimento vividos pelA criAnçA refugiAdA não só estão dilAcerAndo suA vidA como moldAndo o nosso futuro

não é

por ViVianne ReisArtigo

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aindaamanhã

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Os impactos destrutivos das crises humanitá-rias atingem de forma devastadora as crianças em deslocamento. As ameaças e os perigos que elas enfrentam diariamente nos caminhos envolvem atrocidades como sequestros, tráfico humano, escravidão sexual, recrutamento forçado, casamento precoce e trabalho infantil. Quando capturadas em um sistema perverso de exploração e extrema crueldade, são sub-metidas a espancamentos, mutilações, tortu-ras, usadas como escudos humanos, moeda de troca, para fabricar bombas, trabalhar em campos minados e fazer ataques suicidas.

Os riscos são ainda maiores quando se trata de crianças que estão desacompanhadas. A crian-ça desacompanhada é aquela que foi separada dos pais e de qualquer outro parente e ingres-sa em outro país sem a custódia de nenhum responsável legal. Em qualquer contexto, ela está entre as mais vulneráveis. Além de en-frentarem os perigos nas travessias, meninos e meninas nessas circunstâncias estão mais suscetíveis de sofrer exploração, violência e abuso nos países de asilo.

números abaixo da realidadeJá no Brasil, não há registros consolidados de crianças que tenham cruzado as fronteiras brasileiras desacompanhadas. Embora existam casos atualmente no país, sobretudo no con-texto dos venezuelanos que entram pela fron-teira norte, uma das dificuldades enfrentadas pelos órgãos responsáveis é identificar e quan-tificar essas situações.

A Agência da ONU para Refugiados estima que 483,2 mil crianças tenham cruzado as frontei-ras de 80 países nessas condições, no período de 2015-2018, e admite que esses números estão significativamente abaixo da realidade.

Crianças em deslocamento forçado, mesmo quando acompanhadas, se transformam em alvos e arriscam suas vidas em jornadas que podem ser tão fatais quanto permanecer em seus próprios países. Acabar com a violação de direitos humanos que afeta crianças em tempos de catástrofe deve ser uma prioridade. A busca por refúgio é um direito que precisa ser protegido com medidas que garantam a segurança dessa população que já ultrapassa 70 milhões de pessoas ao redor do mundo.Este é um momento decisivo. Crises sem pre-cedentes demandam respostas sem preceden-tes também. Precisamos nos comprometer como nações e como indivíduos em defesa da dignidade humana. Uma civilização que não é capaz de proteger as suas crianças já falhou.

A Europa tem testemunhado um número alar-mante de menores desacompanhados que desaparecem logo após solicitar refúgio. Se-gundo o Serviço Europeu de Polícia (Europol), somente em 2016 pelo menos 10 mil crianças refugiadas sumiram depois de chegar ao con-tinente. Cerca de metade desapareceu na Ale-manha, o mesmo número na Itália, e mil casos foram registrados na Suécia. A Europol acre-dita que muitas podem ter sido capturadas pelo crime organizado, para exploração sexual, tráfico de drogas, mendicância, trabalho es-cravo e outras atividades ilegais. Na maioria das ocorrências, não é possível obter informa-ções sobre o seu paradeiro, mas supõe-se que uma parte esteja reunida com seus familiares ou se mantém incomunicável por medo de deportação. Outro dado importante levantado pela Missing Children Europe considera que as condições desumanas de muitos albergues na Itália e na Grécia, que se assemelham a centros de detenção, fazem com que elas saiam sem deixar rastros.

Foi a primeira vez que as autoridades europeias se manifestaram sobre o número de crianças refugiadas desaparecidas na União Europeia. No decorrer dos anos esse número caiu, mas a situação continua preocupante. No início de 2019, houve 3,2 mil casos.

ViVianne Reisé fundadora da iKMR (i Know My Rights), organização humanitária que se dedica às crianças em situação de refúgio

Crianças em deslocamento forçado se transformam em alvos. Acabar com a violação de direitos humanos que as afeta em tempos de catástrofe deve ser uma prioridade

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Kelvin

Kelvin Alvare veio da Venezuela com sua mulher e sua filha pequena, Anny, e passaram cerca de um ano acolhidos no abrigo Rondon 3, em Boa Vista (RR). Na nova cidade, ele queria trabalho, juntar renda e se mudar para alguma outra cidade Brasil adentro. Na capital roraimense, no entanto, as oportunidades estavam escassas. Kelvin fez o que pôde. De bicicleta, circulou por Boa Vista vendendo vassouras. Em junho, conseguiu ajuda para comprar uma passagem e ir morar com o irmão em Porto Velho (RO), a quase 1,7 mil km dali. Para Kelvin, é o começo da jornada rumo a uma nova vida no Brasil.

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por dione fonsecacrônica

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inas Gerais, Montes Claros. O ano era 1978, eu tinha 2 anos. Morava em uma pequena casa com meu pai e minha mãe, que estava grávida da minha irmã.

Um dia, parecido com os outros, ouviam-se gritos, móveis jogados, copos quebrados. Meu pai estava bêbado. Eu chora-va e, para me calar, pegou uma faca… Medo, pânico do que estava por vir, minha mãe conseguiu tirar a faca dele. Ela estava no limite, apavorada! Mas tinha uma voz dentro dela que ecoava para todos os seus sentidos! E no meio da noite resolveu fugir, enquanto meu pai dormia. Deixou tudo o que tinha e conhecia: a casa, a cidade, a família, aquela história.

Viemos para São Paulo, fugimos da violência doméstica. Cidade grande, que, apesar de tantos desafios, nos acolheu.

Resolvi compartilhar um pouco da minha história com o ob-jetivo de contar que milhares de pessoas ao redor do mundo sofrem algum tipo de deslocamento forçado. Atualmente, trabalho e convivo com crianças que também sofreram.

amanheceu na cidade de São Paulo, mais um dia de trabalho na Escola Municipal de Educação Infantil João Mendonça Falcão, no Brás, região central. Nenhum dia é comum. Com as crianças, cada amanhecer é sempre diferente.

São sete da manhã, ouvimos um choro que ressoou por toda a escola. Avistamos uma menina de 4 ou 5 anos que se agar-rava ao seu pai, ele a trazia para o primeiro dia na escola. Eles não eram brasileiros, haviam chegado da Síria.

cada dia oferece um aPrendizado no convívio com criançaS vindaS de outroS PaíSeS, com outroS idiomaS e culturaS diverSaS

amanheceuSão Pauloem

M O pai quase não conseguia caminhar. Ela se jogou no chão e com toda a força do mundo segurou a barra de sua calça. Nunca tínhamos escutado um choro tão sofrido! A escola parou, todos silencia-ram para tentar compreender aquele momento.

A menina se chama Lâmia, não queria ficar na-quele lugar, nunca tinha tido a experiência de ir à escola. Tudo lhe era estranho, outro país, outro idioma, outra cultura. Trazia em seu choro, além do medo do desconhecido, as marcas da guerra.

O pai estava preocupado, e sentia-se inseguro em deixar sua pequena conosco. A despedida foi dolorosa naquele dia e em muitos outros.

amanheceu na cidade de São Paulo, passos tímidos e olhar atento, mais uma criança chega-va, era um menino. Ele veio acompanhado pela família, vinda de Bangladesh. Parecia encantado, observava atentamente todos os detalhes, ficou admirado com o parque. Ele se chama Ridoy. A despedida foi tranquila, mas, quando se deu conta de que estava sozinho, com pessoas que nunca tinha visto, começou a chorar, jogou as cadeiras, seus gritos repercutiram por todos os cantos. Outro idioma. Outra cultura. Outro país.

amanheceu na cidade de São Paulo, o dia estava lindo, quente, ideal para alguma vivência ao ar livre. De repente, outro menino chegava para o primeiro dia na escola. Tinha 4 anos, ob-

servava curioso o espaço escolar. Hamzi veio da Palestina com sua família.

Quando chegou à porta da sala, seus olhos en-cheram-se de lágrimas, veio o choro e toda a emoção que sentia naquele momento. Reconhe-ceu a menina síria, que segurou sua mão e co-chichou ao seu ouvido. Despediu-se do pai. Poucos instantes depois, seu corpo demonstrava muito do que estava sentindo. Não conseguiu chegar até o banheiro. Outro idioma. Outra cul-tura. Outro país.

amanheceu na cidade de São Paulo, outra chegada, mais um menino. Lesli Pedro veio do Haiti com sua família. Sua fisionomia era de me-do, não chorava, nada falava, nenhuma reação, mas percebíamos o corpo todo contraído. Abra-çava com tamanha força sua mãe. Ela, toda sor-ridente, olhava para ele querendo passar confiança. Era visível a preparação para aquele momento, o tinha vestido com calça e camisa brancas, seus sapatos brilhavam. Entrou na sala, manteve-se enrijecido por muito tempo, em silêncio absoluto. Outro idioma. Outra cultura. Outro país.

E os dias são assim na Emei João Mendonça Fal-cão. Recebemos crianças e famílias de diferentes partes do mundo, muitas vivenciaram os horro-res de uma guerra, outras sentiram na pele a fome ou viram seu país destruído pelos desastres

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crônica

naturais. São muitas tragédias, e a busca pela sobrevivência é o maior desafio. Lutar pela vida!

Refleti muito sobre o que essas famílias passaram e, ao mesmo tempo, como foram corajosas e resilientes. Mudar de país, que difícil travessia!

São vários sentimentos que emergem aqui den-tro, são muitas perguntas e dúvidas e a impor-tante missão: o acolhimento dessas crianças e suas famílias se torna fundamental.

De que maneira não excluí-las? Como respeitar suas origens? Como inseri-las no ambiente es-colar? Como superar a barreira do idioma? Como olhar para cada criança individualmente?

Nossa escola se reuniu para discutir essas questões, principalmente porque é um direito da criança, de todas elas, o acesso à educação. Estudamos o tema, as leis que garantem esses direitos. Conhe-cemos as famílias, nos aproximamos das dife-rentes culturas. Tivemos de ampliar nossos olhares, sensibilizar nossos pares, os funcionários da escola, as crianças brasileiras e suas famílias.

E não foi fácil, porque, além das demandas que toda escola pública tem, teríamos de repensar nossa prática, garantir o atendimento das crian-ças em situação de refúgio e todas as outras imi-

toda reflexão acerca do tema fosse construída. Discutimos a necessidade de respeitar o tempo da criança para aquisição da segunda língua. E buscaríamos formas de nos comunicar com ela.

A música e a brincadeira foram fundamentais nesse processo. De repente, as crianças canta-rolavam, sorriam e se divertiam na brincadeira.

As famílias trouxeram algumas inquietações re-lacionadas ao idioma, porque as crianças estavam deixando de falar a sua língua materna em casa. Surpreenderam-se positivamente quando orien-tamos para que isso não acontecesse. Era impor-tantíssimo manter a cultura da família, e a língua fazia parte disso.

Deparamo-nos com questões alimentares, crian-ças que não comiam carne ou para as quais a preparação de determinado alimento era vista como “pecado”. Nossas cozinheiras prontamen-te nos ajudaram a garantir que essas demandas fossem respeitadas.

Estamos buscando formas de aprimorar o aten-dimento na secretaria porque a burocracia é grande, mas a matrícula de forma alguma pode ser negada.

Convidamos as famílias para contarem um pou-co da sua história e da infância delas. Cada mãe ou pai que vinha, trazia uma música e uma brin-cadeira de que gostava quando era criança e compartilhava com a turma.

Foi importante trazer as famílias para dentro da escola. Sentiram-se valorizadas, reconhecidas, e foi riquíssima essa aproximação. Aprendemos muito a cada visita. Era como trazer cada país para perto de nós.

Outro ponto interessante foi como as crianças entendiam os idiomas, achavam que quem não falasse português falava inglês. Por meio do con-tato com diferentes culturas, começaram a des-construir aquela ideia e se encantaram com a sonoridade de cada língua e muitas queriam aprender árabe, francês, espanhol, crioulo.

Também incentivávamos as crianças a nos ensi-nar palavras e frases nos idiomas diferentes do nosso. Muitas vezes as soluções para uma bar-reira linguística ou cultural vinham delas.

Procuramos oferecer um espaço lúdico, intera-tivo, prazeroso, seguro, criativo, espontâneo e inclusivo, a fim de proporcionar um acolhimen-to significativo e estabelecer vínculos saudáveis.

E tem sido muito bom observar nossa escola se mobilizando, buscando soluções no dia a dia. Todos os funcionários, professoras, a gestão, as famílias participando do projeto.

Sabemos que podemos afinar nossos olhares, aprender cada dia mais sobre o tema refúgio. É fundamental levar a discussão para as escolas e toda a sociedade. Para que possamos encontrar bons caminhos para o acolhimento. Necessitamos de políticas inclusivas para que o acesso aos ser-viços públicos seja realmente garantido!

Lâmia, Ridoy, Hamzi, Lesli Pedro demonstram alegria! Posso afirmar que estão felizes! Apren-deram facilmente a nossa língua, gritam de ale-gria durante as brincadeiras, as risadas ecoam pela escola. Correm, se divertem, cantam, apren-dem e ensinam!

grantes vindas principalmente da América Latina e de alguns países da África.

E assim nasceu nosso projeto A Música e o Brin-car na Educação Infantil, duas linguagens que dialogam facilmente com a infância.

Durante a construção do projeto, percebemos que a música e a brincadeira favoreciam o aco-lhimento. E a escola foi descobrindo a sua função social dentro da comunidade na qual está inse-rida. As crianças em situação de refúgio e imi-grantes fazem parte da cultura intrínseca da nossa unidade.

Nossa proposta era acolher as crianças de uma maneira mais humanizada, que fizesse sentido, que fosse um trabalho construído no coletivo.Que, em toda trajetória do projeto, as crianças tivessem a oportunidade de ampliar o repertório musical dos nossos cantos brasileiros e os cantos do mundo, que tivessem contato com diferentes instrumentos musicais, que participassem da construção de objetos sonoros. Que a pesquisa das brincadeiras fosse feita pelas crianças.

Durante o processo de sensibilização sobre o refúgio e o fluxo migratório mundial, ficou claro que era fundamental valorizar e respeitar cada cultura. Que era importante conscientizar as famílias migrantes dos direitos à educação e à saúde e que, no momento em que as crianças eram matriculadas, pertenciam à comunidade escolar. Observamos a importância de dialogar com as famílias brasileiras e sensibilizá-las para também participarem de toda acolhida. E que

* os nomes das crianças neste texto são fictícios

Foi importante trazer as famílias para dentro da escola. Sentiram-se valorizadas e foi riquíssima essa aproximação. Foi como trazer cada país para perto de nós

dione fonseca é pedagoga na emei João Mendonça falcão, em são Paulo

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HumbertoHumberto Guevara é um artista plástico venezuelano que veio ao Brasil com sua esposa, Cristina, e os filhos Adrián e Anaya, ambos albinos. “A Venezuela tomou um rumo equivocado. Perdemos nossas propriedades e pertences. Minha família quase morreu de fome. Durante muito dias comíamos só manga, no café da manhã, no almoço e no jantar”, lembra. No abrigo temporário de Pacaraima (RR), na fronteira com o Brasil, Humberto chegou trazendo alguns exemplos do seu talento debaixo do braço. Ele espera poder trabalhar com artes plásticas no Brasil e, assim, voltar a sonhar em expor suas obras em um lugar onde elas possam ser devidamente apreciadas.

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ensaio

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mobilidade humana é uma das características mais marcantes da contemporaneidade, o avanço tecnológico permitiu que os custos para circulação se tornassem mais acessíveis, assim como

a possibilidade de obtenção de informações sobre os mais variados destinos. Viajar, conhecer outros lugares e até morar em outros países tornaram-se ações comuns para uma boa parcela dos habitantes do planeta e para a quase totalidade dos países.

Entre os que circulam, estabeleceram-se categorizações sobre o tipo de movimen-tação que as pessoas realizam, as quais vão desde o turista, passando pelo chama-do migrante, que pode ser interno ou internacional, chegando ao refugiado.1 Cada uma dessas categorizações guarda uma forma na qual os destinos e as origens re-lacionam-se com essas pessoas circulantes, existindo grupos que são valorizados e outros, rechaçados. Quando essas movimentações ocorrem entre diferentes paí-ses, aumenta-se a complexidade, pois mais fatores interferem nessa circulação, tais como passaportes, vistos, carteiras de vacinação, entre outros. Mesmo com essa maior complexidade, dados da Organização Mundial de Turismo (UNWTO) demonstram que só em 2015 ocorreu quase 1,2 bilhão de chegadas de turistas in-ternacionais pelo mundo.

A circulação de turistas normalmente é celebrada pelas localidades que os recebem, pois sua vinda é associada com a ideia de pessoas que possuem recursos para gas-tar em suas viagens, gerando oportunidades e renda para os locais. Entretanto, outras categorias de circulantes não são valorizadas como os turistas, como é o caso dos migrantes internacionais. Nas mais diversas partes do mundo, há a ocorrência de eventos que corroboram essa afirmação, pois os imigrantes,2 isto é, aqueles que chegam a um país diferente daquele de que são naturais ou do qual possuem cida-dania, são, muitas vezes, atingidos por manifestações de preconceito e de xenofo-bia, as quais acontecem até para com os que se movem em função de serem vítimas de perseguições injustas, como os refugiados.

A 1. Todo refugiado é um migrante internacional, o qual realiza o movimento em função de um fundado temor de perseguição devido a sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo ou opinião política. Há casos de ampliação das hipóteses, como a contemplada na lei brasileira, a qual traz a possibilidade de reconhecimento de refúgio em função de grave e generalizada violação de direitos humanos. As pessoas refugiadas possuem proteção de diversos

documentos internacionais.

2. Há que se destacar que todo imigrante é um emigrante (aquele que deixa o seu país), sendo tal distinção apenas para fins de facilitação de compreensão da categorização que os Estados fazem do movimento desses migrantes internacionais.

Falta de inFormação e preconceito são Fatores que atrapalham laços e trocas entre quem está e quem chega

notensõestrânsito

artigopor João CArlos JAroCHinski silvA

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artigo

A argumentação contra a chegada dessas pes-soas é pautada na defesa do emprego dos na-cionais; na ameaça que esses indivíduos representam em termos de segurança, a qual chega ao ponto extremo de associar certos grupos com o terrorismo; no risco de que es-sas pessoas estejam trazendo doenças que possam ser transmitidas aos habitantes de uma localidade; até na suposta proteção das iden-tidades características de determinado povo ou nação. Esses argumentos, invariavelmente, não possuem base científica e se pautam em lógicas de preconceito, racismo e xenofobia, que servem para justificar opções políticas e estabelecer redutos em favor de certos ele-mentos que conferem “segurança” às pessoas. Em um mundo em transformação constante, a insegurança e a ansiedade das pessoas jus-tificam a opção por manifestações que visem a preservar, ainda que sem uma análise por-menorizada da realidade, um estado de coisas que garanta as dinâmicas com as quais se se habituou, repelindo o que se interpreta como diferente e capaz de alterar a realidade reinante.

Tal conduta impede o estabelecimento de uma relação entre os que já se encontram em uma localidade com os que chegam, inviabilizando a concretização dos potenciais ganhos oferta-dos por esses movimentos, pois, conforme apontam os estudos, os fluxos migratórios possuem a capacidade de gerar, principalmen-te no destino, novas dinâmicas que vão desde

caráter humanitárioDentre as ações estatais, destacam-se as diver-sas medidas tomadas no sentido de conferir regularização documental aos imigrantes, a criação de políticas específicas para essas pes-soas nos mais variados níveis federativos, a aprovação da nova lei de migração e a criação de uma força-tarefa de caráter humanitário para a recepção dos migrantes da Venezuela. São medidas que representam avanços, prin-cipalmente em relação à recepção desses mi-grantes, além de significarem a concretização de compromissos internacionais e constitucio-nais. Porém, algumas dessas medidas criaram tensões entre grupos migrantes por serem es-pecíficas para certas nacionalidades – embora atentem a um contexto especial em que estão inseridas. Isso porque, quando algum grupo nacional é beneficiado com alguma política pública, como ocorreu com haitianos e vene-zuelanos, as demais comunidades migrantes, além de parte da sociedade brasileira, acabam se voltando contra essas medidas e contra seus beneficiários, gerando reações de estranha-mento e rivalidade entre pessoas que experi-mentam realidades muito próximas.

Mesmo assim, há que se destacar o caráter positivo de muitas dessas ações, as quais foram influenciadas e continuam acompanhadas pela sociedade civil organizada com atuação na temática. Entretanto, a recente saída do Brasil do Pacto da Migração da ONU3 pode significar o início de um retrocesso que pode fazer com que se perca a estrutura desenvolvida e não se obtenham os avanços que beneficiariam tan-to o país como os que nele se encontram, sejam nacionais ou imigrantes.

A sociedade brasileira também deve estar mais bem informada sobre os fluxos migratórios e a presença dos imigrantes no Brasil, pois, con-forme pesquisa realizada pela Ipsos (2018), os

entrevistados acreditavam que a presença deles era muito mais efetiva do que a realida-de, confusão essa que se repete em relação aos conceitos legais, como o comum equívoco sobre o que é o refúgio e sobre quem é reco-nhecido como refugiado, além da associação da imigração com temas negativos, como é recorrente em outras partes do mundo. No caso brasileiro, há um aspecto que merece ser destacado na construção de uma imagem ne-gativa sobre a imigração, que atinge, princi-palmente, os imigrantes pobres no território nacional, pois se argumenta que esses indiví-duos desejam estar no país para se aproveitar e em nada contribuir, realçando a presença da aporofobia,4 com um forte viés de classe, em relação a esses indivíduos.

Atitudes assim criam um cenário em que, ape-sar da melhoria de algumas normas e práticas brasileiras, os imigrantes encontram dificul-dade em sua integração, gerando um cenário de exclusão que faz com que muitos deles tornem-se reclusos, evitando contatos fora de sua comunidade migrante, já que estão inse-guros para se sentirem pertencentes ao local onde vivem, tornando-se, assim, estranhos em sua própria casa.

a prática da solidariedade e das trocas culturais que possibilitam novos conhecimentos até formas de compreender a realidade, além do desenvolvimento econômico propriamente dito.

O Brasil também está inserido nessa dinâmica das mobilidades humanas, com movimenta-ções internas, assim como de pessoas oriundas de outros países e a saída de brasileiros por todo o globo. E, assim como vem ocorrendo nas mais diversas localidades, também tem encontrado resistências aos que chegam. Nos últimos anos, o tema da migração voltou a ganhar maior visibilidade no cotidiano dos brasileiros, mesmo o número de imigrantes no Brasil sendo bem menor do que a média mundial. O país possui, segundo as estimati-vas mais ousadas, aproximadamente 1% de sua população formada por imigrantes, en-quanto 3,4% da população mundial é forma-da por imigrantes. Afora o fato de haver muito mais brasileiros no exterior do que imi-grantes no Brasil.

O fato de ocorrerem fluxos mais volumosos de certas nacionalidades para o território brasi-leiro foi o principal responsável por essa aten-ção ao tema, como a entrada de haitianos e venezuelanos pelas fronteiras da região Norte em um número expressivo para a realidade local. Essa circulação de pessoas entrou no debate público e permitiu a concretização de uma série de ações, tais como a alteração de marcos reguladores das migrações, a criação de ações governamentais referentes ao tema, manifestações preciosas de solidariedade por parte de setores populares, mas, também, even-tos de caráter eminentemente xenofóbico, que muitas vezes aconteceram, por mais contra-ditório que pareça, em localidades em que os migrantes, sejam eles nacionais ou internacio-nais, marcaram a trajetória e têm seus feitos valorizados na memória coletiva do lugar.

1.

3. Pacto Global para Migração, segura, ordenada e regular, da organização das nações

Unidas (onU).

4. A palavra “aporofobia” foi cunhada pela filósofa espanhola Adela Cortina. Trata-se de um termo que, emprestado do grego, identifica um medo, uma patologia social, que se manifesta por meio da aversão aos que são percebidos como diferentes, como os imigrantes, os praticantes de outras religiões ou pertencentes a outra etnia (Cantini, 2018).

João CArlos JAroCHinski silvA

é professor do curso de relações internacionais e do Programa de Pós-Graduação em sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de roraima (UFrr) e pós- -doutorando na Unicamp

RefeRências

l. Cantini, “o que é ‘aporofobia’? Uma reflexão útil e atual”. Revista IHU On-Line. 2018. Disponível em: http://bit.ly/2Yv31ZJ.

ipsos. “Perigos da percepção”. 2018. Disponível em: http://bit.ly/2Ho58e3.

UnWTo. Tourism highlights. 2016. Disponível em: http://bit.ly/308Wltv.

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Ottoniel Ottoniel Ortiz é um jovem venezuelano que, após a morte da mãe em 2018 na Venezuela, veio para o Brasil com o pai, Olimpo. No abrigo temporário de Pacaraima (RR), quando sente falta da mãe, o menino de expressão séria costuma sentar em um canto do acampamento com vegetação, sozinho, para pensar. Além disso, é um dedicado cantor do coral de refugiados do abrigo.

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lugar

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com Duca RachiD e Thelma GueDesentrevista

outroE

do

no

ao tratar de dramas reais na ficção, Órfãos da Terra propõe reflexão sobre a situação dos refugiados por PaulO JeBaili

mpatia e compaixão. Caminhos possíveis para se colocar no lugar do outro. Foi a partir des-sa premissa que as autoras Thelma Guedes e

Duca Rachid conduziram a trama de Órfãos da Terra, nove-la das 18h da Globo. O enredo começou a ser construído inspirado no tema dos refugiados, recorrente na mídia do mundo todo, com reflexos no cotidiano de cidades brasileiras.

Na conversa a seguir, ocorrida nos Estúdios Globo (RJ), as autoras contam as etapas de concepção da obra, as prepa-rações da equipe de escritores e do elenco e os desdobra-mentos da novela além do campo da ficção.

Thelma e Duca mencionam a parceria estabelecida com a direção da novela e o suporte do departamento de Responsabilidade Social da Globo. Citam a plataforma Repercutindo histórias (REP) no lançamento da novela, quando os refugiados Prudence, Maha, Kaysar, Whissam e Popole e a fundadora da ONG I Know My Rights Vi-vianne Reis contaram suas histórias. Esses depoimentos podem ser vistos nos perfis da Globo nas redes sociais e em app.cadernosglobo.com.br

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que seus países de origem fiquem pacificados para poderem voltar para casa. A história da chave, né?

d: Que é real. Essa história de que todo refugiado guarda a chave da sua casa. Mesmo sabendo que talvez ela não exista mais, ele guarda a chave, com a esperança de um dia voltar.

t: Que é o valor simbólico do que sobrou da minha história. Porque é muito duro você deixar a sua história pessoal e cultural. Claro que essas pessoas, depois de esta-belecidas, vão ter filhos e netos, e possivelmente algumas vão até ficar – como nossos antepassados ficaram, e nós estamos aqui por isso –, mas falamos com algumas que gostariam de voltar, porque é uma ruptura muito grande. Nós ten-tamos, dia a dia, alimentar essa per-cepção, colocando dentro da novela relatos reais. Recentemente, convidamos um farmacêutico sírio que conseguiu validar o diploma. Como já houve congoleses falando, uma série de relatos reais. É impor-tante dar voz às pessoas.

no contato com essas pessoas, desde a preparação, que histó-rias foram mais inspiradoras? d: A doutora Ayla [Zinou], síria. No primeiro ano, ela aprendeu portu-guês, prestou os exames e conseguiu revalidar o diploma de médica. Ago-ra ela trabalha em três hospitais pú-blicos na região de Campinas [SP].

a propósito, como surgiu a ideia de aproveitar o sírio Kaysar dadour, do bbb, à trama?t: Eu não vi o Big Brother. Mas, no Twitter, as pessoas escreviam:

“Põe o Kaysar na novela”. Ele tinha fãs nas redes sociais e soube usar En

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como foi a preparação de vocês, autoras, e da equipe de escrito-res para encarar a empreitada? d: Nós mergulhamos nesse uni-verso. Muitos filmes e documen-tários, lemos muito a respeito, conversamos muito com as pes-soas. Isso foi muito importante. Fomos até a Missão Paz. Antes mesmo da novela, nós já colabo-rávamos com o Instituto Adus, trabalhávamos como conselheiras nessa ONG. E como é rico isso. Porque tem gente das mais diver-sas nacionalidades e culturas.

t: E é até um pouco frustrante não podermos colocar na história todo esse universo.

como vocês perceberam a aco-lhida que essas pessoas esta-vam tendo aqui no brasil? t: Em termos de acolhimento da sociedade, parece que quem tem dificuldade de entender, de rece-ber, parece falar mais alto e dá a impressão de que é mais gente. Quando a novela foi ao ar – e nós devemos muito à Globo por ter bancado esse projeto –, havia um receio de como seria essa recepção. E foi a melhor possível. Ouvimos relatos que nos alegraram muito, de pessoas que tinham uma certa resistência, uma certa dificuldade, e começaram, pelo menos, a re-fletir sobre essa questão de uma maneira diferente. Nós percebe-mos que falta informação e, às vezes, falta informação afetiva. É uma informação emocional, não aquela informação dos números, estatística, mas perceber que essas pessoas querem a mesma coisa que nós: ter casa, comida, criar seus filhos, ser felizes. Por elas, elas estariam lá no lugar de onde vieram. Muitas estão aguardando

o tema dos refugiados surge já na concepção de Órfãos da Terra? thelma: Sim. O tema foi o que nos levou a escrever a novela.

duca: E o fato de vermos várias pessoas de lugares diferentes – afri-canos, bolivianos, venezuelanos, sírios –, de sentirmos a presença deles. Aquilo era um assunto, além de todo o noticiário, de todos os filmes, de todos os documentários que vimos. Foi realmente o que nos inspirou.

t: Todos os dias nós víamos nos jor-nais, nos emocionávamos, havia uma comoção geral a respeito do tema. Começamos a pesquisar sobre isso e a pensar em como abordar esse tema dentro de uma novela. Era um desafio. E vermos essas pessoas de um outro ponto de vista, não só como imagens de uma tragédia.

d: Ou só como estatística, número. A grande inspiração veio quando as-sistimos a uma matéria sobre meni-nas que viviam em campos de refugiados e que eram compradas por homens mais velhos para se ca-

sarem. Identificamos aí uma história, um potencial de narrativa folheti-nesca. Foi a partir daí e com essa vivência de sentir próxima a presen-ça dessas pessoas que nós achamos essa história.

t: Nós víamos aquelas imagens das pessoas no mar ou daquelas traves-sias por terra e começamos a ver os nossos personagens. De todos esses lugares, mas a Síria, sobretudo, era uma sociedade organizada, como nós aqui, com uma classe média, vivendo. De repente, cai uma bom-ba na sua casa, na do vizinho, des-trói o bairro, a cidade. Essas pessoas são empurradas. Porque é fácil dizer

“eles não são refugiados porque que-rem”. Mas nós pensamos em mos-trar como isso é possível de acontecer. E fazer as pessoas se co-locarem naquele lugar.

o tema da migração já foi trata-do na teledramaturgia em obras como os Imigrantes, Terra Nostra e mesmo em Gabriela, em que os protagonistas são uma retiran-te e um imigrante. mas eram novelas de época. Órfãos da

Terra aborda uma tragédia da nossa contemporaneidade. essa atualidade também ajudou a aproximar a obra do público? d: Eu acho que sim. E a nossa vi-vência mesmo, de brasileiros, que somos todos descendentes de imi-grantes também. Na verdade, esse é um novo tipo de migração, os re-fugiados são os novos imigrantes.

t: Achamos importante que as pes-soas percebessem que nós somos frutos disso, os nossos pais, os nos-sos avós vieram numa situação mui-to parecida. Porque, às vezes, há uma rejeição pelo novo, pelo dife-rente e por aquele que “parece que vem tomar o meu lugar”. É ver com outros olhos. Essas pessoas vêm por-que necessitam, não estão tomando o lugar de ninguém. Ao contrário, elas vêm numa contribuição, somos frutos disso. Não teríamos a nossa culinária, a nossa arte, a nossa cul-tura, se não fossem esses imigrantes.

d: Até mesmo economicamente. Eles são empreendedores, resilien-tes. Os árabes, os judeus, os japo-neses, a economia cresce com essas pessoas. Eles vêm, montam negócios, contratam outras pessoas, vêm somar, não tirar. Eles vêm somar à nossa cultura.

t: Às vezes, pessoas superprepa-radas aceitam trabalhar em coisas que estão muito abaixo de sua ca-pacidade. A gente coloca histórias, por exemplo, de um médico, o Fa-ruq, que tenta validar o diploma dele, e tem toda uma trajetória di-fícil, que é baseada em casos reais.

92% consideram o tema extramamente relevante

do total da amostra: 72%

76% passaram a se interessar mais pelo assunto

57% mudaram a visão que tinha

41% ampliaram o conhecimento sobre o tema

88% se sensibilizaram com o tema

do total da amostra: 78%

entrevista

Duca RachiD e Thelma GueDessão autoras da novela Órfãos da Terra

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entrevista

muito bem essa ferramenta. Aí fomos ver quem era o Kaysar. Vi-mos vídeos dele no BBB, e era uma figura. Ele tem carisma. Falamos com o Gustavo [Fernández, dire-tor artístico da novela]: “Vamos fazer um teste?”. Ele achou legal. Porque o Kaysar passou por uma história triste, e depois ele conse-guiu trazer a família para cá. Ele está indo superbem.

d: O papel dele era pequeno e a gente aumentou porque ele deu con-ta, surpreendeu. Ele é um exemplo de superação.

t: Foi bem legal ter dois atores refu-giados [Kaysar e o congolês Blaise Musipere].

d: Quando têm uma oportunida-de, os refugiados fazem figuração. Foi importante para os atores essa conexão com refugiados reais.

t: Na cena em que o barco é ata-cado, as pessoas começaram a re-zar de verdade e a chorar porque viveram aquilo. O diretor relatou que aquilo emocionou todo mun-do, os atores, então, ficou de ver-

bancaram: “Vamos falar também de uma maneira forte com esse público das seis”. Tem esse encanto, tem o casamento, como se fosse a She-razade, presa pelo sultão, triste. Tem uma coisa fabular, mas tem também a trajetória realista, a cena do barco. Uns desafios eram incríveis. Conver-sando, lá no comecinho, com os diretores, falávamos daquela cena do menininho morto na praia na Turquia [Alan Kurdi, sírio, de 3 anos], que arrasou todo mundo. Nós queríamos tanto falar daqui-lo, mas como pôr nesse horário? Os diretores solucionaram de uma maneira maravilhosa. Na cena, tí-nhamos colocado uma menina no barco, mas não havia a boneca. O barco vira e é a boneca que apa-rece na mesma posição do meni-no. Remeteu a ele imediatamente. Emocionante, choramos. Eram muitos desafios. Só mesmo con-tando com uma direção que tives-se essa sensibilidade criativa.

dade. A gente deve à direção, que teve essa sensibilidade, ao Gusta-vo, ao André [Câmara, diretor ge-ral] e a toda a equipe deles. Isso é legal, porque é uma parceria.

d: Porque é quase como defender uma causa. Você tem de abraçar essa causa de falar de refúgio.

de que forma administraram o desafio de abordar um tema duro em um horário tido como o mais leve da teledramaturgia? d: Sempre achamos que essa é uma história que renderia uma trama das 23 horas. Mas não teria esse tom. Foi uma opção, porque ela tem um tom também de fábula de As mil e uma noites, essa coisa de sheik.

t: Quando apresentamos uma pro-posta, [falaram]: “Vamos fazer às seis?”. Ok, então, aí começou um desafio. Como tornar esse tema tão duro, tão sofrido, em alguma coisa palatável para esse horário, em que a pessoa quer sonhar? E a direção nos ajudou muito, para que a novela também tivesse essa força. Quando vimos o primeiro capítulo, falamos: “Será?”. E eles

além das situações de conflito, da travessia, a novela tem uma preocupação de abordar as-pectos práticos do cotidiano desses refugiados: revalida [exame de revalidação de di-ploma estrangeiro], papel do acnur, inserção no mercado de trabalho. d: Tentamos de alguma forma abordar algumas dificuldades que eles encontram. Mercado de traba-lho, reconhecimento de documen-tos, porque muita gente não reconhece o protocolo de imigrante. E é um documento válido, emiti-do pela Polícia Federal.

t: A gente tem a personagem da menina que veio com uma tutora, que depois desaparece, e ela che-ga ao Instituto Boas-Vindas. Ela tem um apadrinhamento afetivo de um casal e vai com o documen-to à escola. A gente ouviu uma diretora de escola dizendo que acolhe muitas crianças refugiadas. Algumas escolas – por desconhe-cimento, não por maldade – não sabem que aquele documento seja válido. Fizemos uma cena com ela na escola, e o padre e o advogado do instituto foram lá: “Olha, esse documento é real”. Então, nós agregamos à trama esses temas, que, de fato, ocorrem. E digo mais: às vezes até nos arrependemos de

não termos ido mais fundo, porque tínhamos um pouco de receio, também, de como esse tema seria recebido. Talvez se fôssemos es-crever hoje, sabendo que seria bem recebido...

d: Nós estamos ampliando tam-bém o sentido da palavra “refúgio” na novela. Diante desse mundo de intolerância que estamos vivendo, se você não se adequar a certos padrões – se não é magro, se não é consumidor, se não é heteronor-mativo –, é um refugiado dentro de uma sociedade.

t: Estamos inserindo a história de uma nordestina que veio para cá expulsa de sua terra pela fome. É um refúgio interno. Essa perso-nagem vem trazida por um casal que faz promessas e, no final, a escraviza. São histórias reais, que também ouvimos. Aí ela fugiu, foi para a rua, sem dinheiro, sem do-cumento. É uma personagem que está empregada numa casa, mas ninguém sabe a história dela. Fo-mos ampliando aos pouquinhos.

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Não sei se é uma coincidência ou não. Tem dois momentos legais. Quando fizemos um grupo de dis-cussão, muitas das mulheres dis-seram: “Poxa, a gente via aqueles refugiados, aquelas mulheres de lenço no centro, aqueles africanos e tal, não entendia muito bem. Agora a gente está entendendo melhor essas pessoas”. E ontem a minha tia me ligou e contou que uma amiga dela, professora que acabou de se aposentar, por cau-sa da novela teve a ideia de se ofe-recer como voluntária na Missão Paz para dar aula de português para refugiados.

t: Ela estava deprimida porque foram 40 anos trabalhando. Para mim, esses depoimentos que já

tínhamos ouvido no grupo de discussão, dessa mulher que fa-lou que via os africa-nos e achava tudo vagabundo e que hoje ela já olha com os ou-tros olhos. E aí a outra que falou que no me-trô via as mulheres com aqueles véus e

que achava que eram terroristas e que hoje, não mais. Só essas duas pessoas já terem mudado seus pon-tos de vista, para mim, já valeu a pena. Em todas as nossas novelas, a nossa premissa sempre foi em-patia e compaixão. É se colocar no lugar do outro. Quando vemos esses relatos, é missão cumprida. Porque desejamos realmente que as pessoas consigam ver de outra maneira essa questão, no caso do refugiado, que consigam se colo-car no lugar daquela pessoa. “E se caísse uma bomba na minha casa? E se eu perdesse meus avós, meus tios, meus pais, meus filhos?”

d: Tudo, né? Você perde memória, perde fotos. Você sai com a roupa do corpo, sem escolher para onde

em termos de preparação do elenco, que ações foram feitas com os atores para um enten-dimento mais amplo da questão dos refugiados, para uma apro-ximação com a cultura árabe?t: Primeiro foram coisas básicas, contato com a língua, houve um consultor – até para nós – sobre dança, culinária. Mas, a partir do workshop, eles começaram a ou-vir relatos. Teve ator que foi à Mis-são Paz, do padre Paolo Parise, conviveu, dormiu lá. Até hoje vai.

d: Trabalhou como voluntário. Começou essa preparação com o workshop, em que trouxemos o padre Paolo, o pessoal do Acnur e os depoimentos de refugiados. Foi uma comoção muito forte. O ator que fez o Faruq [Eduardo Mossri] chegou a ter aulas de por-tuguês na Compassiva, ONG que cuida de revalidação de diploma. Ele foi ter aula de português como se fosse um refugiado sírio que estivesse ali participando do pro-cesso. Eles mergulharam mesmo nesse universo.

t: Isso foi fundamental. Essa pre-paração, esse mergulho anterior nas questões viscerais, essenciais, da novela. Foi muito importante, também, termos esse contato com a Responsabilidade Social da Glo-bo. Por exemplo, no Repercutindo histórias [REP], alguns atores fo-ram, nós conhecemos pessoas.

d: A Vivianne Reis [fundadora da organização humanitária IKMR], algumas entidades que não co-nhecíamos e alguns refugiados com depoimentos que até incor-poramos à novela.

t: Nós falamos de muitos temas pulsantes, a novela tem uma ati-vista feminista, gordinha e que não está nem aí.

d: Falamos de gordofobia.

t: E de uma maneira não negativa. Ela não sofre mais por isso, já passou por essa fase. Tem um ponto de vis-ta de mostrar que, quanto mais você gostar de você, mais poderosa vai ser, menos problema isso vai ser. São muitos temas de “refúgios”.

além da questão do entreteni-mento, que está no próprio cerne da novela, vocês, como autoras, se sentiriam realizadas se Órfãos da Terra desse que tipo de con-tribuição à sociedade? d: Se for pensar bem, desde que Órfãos da Terra estreou, tem-se ouvido falar muito menos em ca-sos de xenofobia. Pelo menos isso tem saído muito menos na mídia.

vai. Você vai para onde te acolhe-rem. É terrível. Você começa tudo de novo, em uma língua comple-tamente diferente da sua.

t: A nossa proposta, o nosso de-sejo, é que as pessoas pudessem se sentir na pele desses refugiados. E aí vai para a novela, para o fo-lhetim. Também é nosso objetivo que as pessoas se divirtam, se en-tretenham. Mas por isso que a gente fala que é mais do que o fun-do da história, é a presença do tema na premissa.

d: E a ONU diz que há alguns mi-tos sobre os refugiados, de que eles são bandidos, de que vêm fugidos, de que são gente despreparada. E isso é tudo um mito. Estamos jus-tamente querendo quebrar esses mitos. E foi muito importante o apoio do Acnur para esse projeto nosso.

t: Até para o conhecimento maior dessa questão.

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entrevista

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Kaysar Kaysar Dadour nasceu em Alepo, na Síria. Teve uma vida feliz até estourar a guerra civil no país em 2011. Saiu em busca de refúgio na Ucrânia. Certo dia, soube de um parente que morava no Brasil. Decidiu vir, pediu refúgio e obteve documentação. Viveu de bicos até ser apresentado ao programa Big Brother Brasil. Bastou a ele saber que o prêmio era de R$ 1,5 milhão e que a casa tinha comida e água. Foi aceito, ganhou carros e ficou em segundo lugar. “Não ganhei R$ 1,5 milhão, mas consegui trazer a minha família, o meu maior prêmio.” Kaysar conseguiu ainda um papel na novela Órfãos da Terra. “Não é objetivo do refugiado estragar o país dos outros, mas encontrar paz, amor e felicidade”, diz.

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ensaio

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por ElianE Caffécrônica

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vitória não será na geo-grafia; será na história” – a sentença atingiu-me di-

reto no peito e me lançou em um silêncio fecun-do, visionário. Lembro da força desse momento, mas já não saberia reconstituir os argumentos que levaram meu amigo, Isam Ahmad Issa, a formular essa frase dentro da longa conversa que nos entretinha havia horas, sobre a história da Palestina e o genocídio de seu povo. Conheci Isam na época das pesquisas para a realização do filme Era o Hotel Cambridge, no qual a questão dos refugiados tornou-se um dos temas centrais da narrativa. Isam é um dos principais protago-nistas e, logo nos primeiros dias de ensaio, nos inundou com sua sabedoria conquistada em anos de provações, ao atravessar inúmeros desertos e sobreviver a múltiplas guerras, sem, entretanto, jamais perder a esperança na humanidade e o amor à poesia. Aliás, a vida e a poesia nele se misturam de tal modo que o fazem um dos ho-mens mais livres que já conheci. Foi ele também quem nos ensinou que os palestinos não são, de fato, refugiados na acepção em que as Nações Unidas os definem. Eles não optaram por refu-giar-se ou migrar. Tampouco podem fazer valer o direito assegurado pela ONU de retorno à pátria mãe, pois esta lhes foi arrancada sem que nem tivessem tido tempo de fechar a porta da casa. Como Isam, também conhecemos dentro das oficinas de dramaturgia que antecederam as filmagens outras pessoas brilhantes que aporta-

as tantas histórias trazidas pelos amigos refugiados me ajudam a iluminar e amplificar novas leituras de um mundo global que, a cada dia, figura mais ameaçador, sombrio e até sinistro

outrosnósmesmosde

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ram aqui apenas na última década, vindas da Síria, Haiti, Venezuela, Angola, República De-mocrática do Congo e de tantos outros universos culturais, linguísticos, históricos e políticos. Ca-da uma delas trazendo uma bagagem existencial capaz de incendiar qualquer sala de estar prote-gida, qualquer lugar de conforto presumido, qual-quer ilusão de autossegurança, tão logo nos disponhamos a ouvi-las.

A sombra que esses relatos projetaram em nossas vidas aparentemente normais levantou tamanha inquietação que, muitas vezes, via-me comple-tamente perdida no set de filmagem, em meio a reflexões que não faziam parte do enredo. Como, por exemplo, entender que na maior parte do tempo estamos submergidos no mundo das coi-sas, no mundo das aparências, das relações in-terpessoais que imaginamos serem as únicas que realmente importam para estarmos vivos. Quan-do tiramos o leite da geladeira ou o pão do forno, nunca pensamos que se não fosse por aqueles outros indivíduos – também de carne e osso – que ordenham a vaca, semeiam o trigo, carregaram as caçambas das transportadoras, dispõem o leite e o pão nas prateleiras do supermercado; enfim, que sem eles também não sobrevivemos, não podemos ingerir o leite da geladeira, manter o sangue circulando, oxigenando o cérebro e fortalecendo os músculos. Do mesmo modo co-mo quando estamos teclando o celular, e sem o qual já não conseguimos mais viver, também nunca pensamos (ou não nos deixam pensar?) que na genética de cada componente digital ne-cessário para o celular funcionar estão os “mine-rais de sangue” – a cassiterite e o coltan – que são extraídos pelas mãos de crianças e adultos escra-vizados e torturados nas minas congolesas para proverem o mercado negro das grandes corpo-rações fabricantes de celulares. Os computa-dores e celulares que usamos como próteses já mataram e seguem matando milhares de con-goleses numa cifra maior do que de pessoas que morreram na Segunda Guerra Mundial.

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crônica

Obviamente, tal informação não aparece em nenhuma descrição dos produtos e, se hoje pos-so escrever sobre isso, foi graças aos amigos re-fugiados congoleses que nos contaram durante os intervalos dos ensaios, entre um cigarro e outro, os fatos que os trouxeram até aqui. Hoje, quando saio ao centro da cidade e me deparo com tantos negros africanos tentando integrarem-se a qualquer custo à nova vida que lhes foi impos-ta, sempre lembro do celular que carrego comi-go todo o tempo. E, no entanto, sigo comprando e usando o celular, assim como os refugiados também compram e usam o celular para saber se seus parentes seguem vivos no Congo e para matar as saudades dos amigos que ficaram. Por outro lado, também usamos os aplicativos do celular para organizar os inúmeros grupos de resistência, inclusive dos que lutam contra a guerra no Congo. O celular nos permite também ver o que a mídia oficial não quer que vejamos e, ao mesmo tempo, nos cega quando os algoritmos

nos manipulam na dis-puta dos mercados de consumo neoliberal ou, ainda pior, nos induzem a eleger quem irá nos governar contra nós mesmos. Eis que a pre-sença dos refugiados nos desnuda nossa grande contradição; uma con-tradição sistêmica que nos ultrapassa como in-divíduos. Se fosse pos-sível estarmos todo o tempo olhando o mun-do com lentes quânticas,

sacrifica-se e ajuda a promover, sem sequer sus-peitar de que sua imensa dor é razão direta do modo de vida dos poucos milionários do mundo.

doença socialExistem hoje imensos bolsões de refugiados por-que existem pouquíssimos, porém gigantes e poderosos grupos financeiros que especulam não mais apenas com mercadorias, mas com algo-ritmos virtuais; números abstratos que colapsam a economia e a biosfera global e nos empurram tão rápido para o abismo da autodestruição de nossa espécie – arrastando conosco milhares de outras formas de vida que povoam o planeta há muitos anos. Às vezes creio que, até certo ponto, a natureza do nosso próprio aparato psíquico nos impede de dimensionar o grau real da gravidade que todos – ricos e pobres – estamos prestes a experimentar na própria carne. Mesmo os mais conscientes, ilustrados e informados sobre a real situação que provoca tamanha doença social, tamanho aumento vertiginoso do fluxo de refu-giados pelo mundo inteiro, não conseguem de fato apreender o que está já anunciado pelos cientistas e prestes a vir – não daqui a 50 anos, mas em pouco mais de uma década. Nada pare-ce nos tirar da mínima e finíssima bolha de con-forto. Sabemos e sentimos o colapso que se aproxima, mas, ao mesmo tempo, não acredita-mos no que sabemos. Não queremos crer. O corpo físico ainda acolhido e protegido no co-modismo diário dos nossos lares, em nossos dilemas pessoais, na privacidade hackeada pelas teclas que digitamos, na sensação de que tudo segue bem pelas inúmeras vitrines e anúncios impertinentes que não param de invadir nossas telas todos os minutos; enfim, todas as camadas midiáticas que se interpõem entre nós e nós mesmos, tudo isso parece fazer com que o nosso corpo encapsulado se recuse a entender os sinais que nos chegam de todos os lados, nos avisando que precisamos acordar e agir. No outro extremo da polaridade social, no alto dos seus castelos turbinados e com todos os recursos disponíveis,

também os ricos, mais que todo mundo, se re-cusam a ver o que eles mesmos provocam. Quem são, afinal, esses ultramultibilionários que estão na gerência desse colapso global e não se atinam que, se o mundo acabar para a maioria, eles tam-bém não sobreviverão um dia sequer? Quem irá trazer-lhes o leite? De onde vão retirar a água que a natureza deixar de produzir? Sob qual sol irão suportar o calor de suas praias particulares?

Talvez por tudo isso e muito mais, na maioria das vezes, as notícias sobre o destino trágico dos re-fugiados nos chegam como algo que lamentamos e com o qual nos deixamos ocupar-nos por um tempo; para alguns, até como episódios de uma série televisiva; como algo que distrai e faz co-mover. Quase nunca supomos que um dia sere-mos nós que poderemos estar nesse lugar do refúgio. Pois, entre a pele do refugiado e a nossa, existe um lapso de tempo histórico que imagi-namos não nos pertencer. A vida é deles. Não é o nosso caso. Até certo ponto, é isso mesmo. O outro sempre nos é intransponível. Mas até cer-to ponto. A presença dos refugiados, de qualquer nacionalidade, pode nos revelar e nos ensinar muito sobre nós mesmos – mas apenas para quem quiser ou conseguir se dispor a ir, de fato, co-nhecer, no corpo a corpo, no vínculo real com essas pessoas, e não apenas pelos filtros da mídia. Se daí nascer uma verdadeira amizade, ou algo que nos aproxime dos afetos que são comuns a todos, independentemente de lugar ou língua, aí começaremos a entender, com a verdade tangí-vel que só o corpo físico traz, que, no mundo de hoje, quando menos esperarmos, todos nós, de repente, do dia para a noite, podemos estar vulneráveis, queiramos ou não, a sermos obri-gados a entrar na mais odiosa guerra, a ver, de repente, tudo virar do avesso, a não nos reco-nhecer mais, a ir aonde jamais sonhamos chegar e a saber na própria carne até onde somos capa-zes de ir para sobreviver. Suportar essa verdade é o primeiro passo para começarmos a transfor-mar essa realidade que nos é insuportável.

não suportaríamos o peso de nossos próprios objetos cotidianos mais banais; não suportaría-mos saber o quão violenta tem sido nossa traje-tória até aqui e o quanto estamos misturados e participando ativamente das ações mais bárba-ras que nossa ética pessoal condena com tamanho fervor e convicção. Por isso, para sobrevivermos, também é preciso esquecer, livrar-nos do mal dos pensamentos nos encontros lúdicos, nos passeios de compras pelos shoppings, nos feste-jos, no cinema, na música e no alimento espiritual que a vida traz, sensorialmente, a cada dia que amanhece. E foi desse modo que, durante a rea-lização do filme junto com os refugiados, os mo-mentos lúdicos, as brincadeiras, o humor e as piadas que compartilhamos com cada um deles trouxeram o melhor de nós e nos ajudaram a

“esquecermos” juntos, mesmo que por breves momentos. Foi assim, na criação coletiva, des-possuída da individualidade temporária, que caminhamos unidos para o mesmo objetivo: fazer o filme acontecer, da melhor forma possí-vel, apesar de todas as adversidades e diferenças que nos separavam. A arte existe para que a rea-lidade não nos mate, já dizia Nietzsche; ou, ain-da, viver é perigoso, como dizia Guimarães Rosa.

Hoje, alguns anos após o término do filme, as tantas histórias trazidas pelos amigos refugiados, de inúmeras nacionalidades, com jeitos e costu-mes tão diferentes, não só persistem na memória como vão fincando raízes mais profundas. São esses relatos que me ajudam a iluminar e ampli-ficar novas leituras de um mundo global que a cada dia, como nunca antes, se afigura mais ameaçador, sombrio e até sinistro. O maior e talvez o mais fundamental potencial que esses amigos de outros mundos me trouxeram foi po-der perceber claramente a relação direta entre o sofrimento humano e a privatização e exploração total do planeta levadas ao expoente máximo e sem freio do neoliberalismo. Tanto sofrimento, tanta violência, tantas famílias destruídas apenas para servir ao regozijo de uma parcela mínima da pirâmide social, e pela qual a grande maioria

A presença dos refugiados, de qualquer nacionalidade, pode nos revelar e nos ensinar muito sobre nós mesmos

ElianE Caffé é cineasta, diretora dos filmes Narradores de Javé e Era o Hotel Cambridge

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RuberRuber Maneiro é mecânico de carros e viveu com a esposa e quatro filhos no abrigo Rondon 3 por cerca de nove meses. Da Venezuela trouxe uma Bíblia encapada. Na parte da frente, seu nome e o de sua mulher, Yenny. Na de trás, a frase “Raquel está nas mãos de Deus”. Ele explica que sua filha Raquel tem um tumor na coluna e está à espera de uma cirurgia. “Quando estou triste, a Bíblia me conforta e me diz o que fazer. Ela me trouxe ao Brasil, de carona em carona. E agora ela vai ajudar minha filha.” Atualmente vive no Rio de Janeiro, onde arrumou emprego e uma casa para sua família.

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expedição

a chegada de venezuelanos que buscam refúgio no brasil e o acolhimento nos abrigos de roraima

fronteiraOlhar na

m junho de 2019, a Agência da ONU para Refugiados (Acnur) reportava 4 milhões de venezuelanos em busca de refúgio, a maioria em países vizinhos como o Brasil. Só o estado de Roraima registrou 50 mil dos

novos pedidos de reconhecimento por refugiados; 63% do total recebido pelo país em 2018.

Naquele mês, a equipe de Responsabilidade Social da Globo em parceria com o Acnur, visitou uma série de abrigos na região de Boa Vista (RR) com produtores, jornalistas, fotógrafos e cinegra-fistas dos programas Sem Fronteiras (GloboNews), Conversa com Bial e Mais Você, e deste Caderno. O objetivo foi ver de perto o trâmite da chegada, o caminho até o acolhimento e os primeiros passos na retomada de vida pelos venezuelanos no território brasileiro.

Durante três dias, a equipe conheceu os abrigos Rondon 1, 2 e 3, Pintolândia (de maioria indígena) e Tancredo Neves, todos em Boa Vista e com capacidade para acolher de 300 a mil pessoas cada um. O roteiro incluiu uma viagem até Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, a três horas de carro da capital, onde operam o abrigo de passagem BV-8 e o Janokoida, des-tinado a indígenas, em geral das etnias Eñepa e Warao.

Na fronteira, a estrutura tem como foco o atendimento emergencial: a rede de profissionais e o Exército brasileiro recebem os venezuelanos, providenciam a documentação necessária e os encaminham para abrigos maiores, com alojamentos preparados para receber quem chega sozinho, casais, crianças ou famílias inteiras.

Nesses espaços, são oferecidas refeições diárias, servidas em horários rigidamente estabelecidos. De lá, partem ônibus com destino a diferentes cidades do país, como Manaus, São Pau-lo e Rio de Janeiro. A ideia da chamada “interiorização” é diminuir o impacto do contingente de pessoas no Norte do país e permitir que refugiados e migrantes busquem oportu-nidades de emprego e retomem suas vidas nesses novos locais.

Os jornalistas Ricardo Calil e Victor Sá (Conversa com Bial) trazem relatos de refugiados e migrantes venezuelanos recém-chegados ao Brasil; a produtora Joy Ernnany relata o cotidia-no da (até então) pacata cidade de Pacaraima (RR); e o fotógrafo Felipe Fittipaldi compartilha os rostos e as histórias que viu e ouviu com sua câmera na fronteira do país.

abrigo rondon 3, com capacidade para até mil pessoas, em boa vista (rr)

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que hugo Chávez ainda está vivo, escondido e com o rosto alterado por plásticas, em algum lugar da argentina. Me pediu para anotar seu nome,

“para quando a verdade vier à tona, você lembrar de quem te contou primeiro”. ao lado, dois rapazes riam discretamente. O papel onde escrevi seu nome se dissolveu com a água da chuva.nossa presença, quatro homens vestindo capas de chuva coloridas, chamava atenção. Éramos abordados com pedidos de esmola, mas a maioria buscava informações, pensando que éramos da operação. O clima era de desamparo. a rodoviária virou uma espécie de ponto de encontro para os recém-

-chegados. Muitos que não conseguem uma vaga no abrigo acabam se instalando por ali mesmo, na rua. atrás da rodoviária existe um alojamento

“O tempo aqui é outro”, disse Aline pelo telefone quando marcávamos o horário de nosso primeiro encontro. “Aqui, nós trabalhamos quase sem parar. Estou há quatro meses, mas parecem anos. É tudo muito intenso. Mesmo. Vocês vão entender quando chegarem aqui.” Aline Maccari é uma das mais de mil pessoas que trabalham na Operação Acolhida. Ela integra o time do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. O Acnur, as Forças Armadas, a sociedade civil e o governo brasileiro são os responsáveis pela operação que recebe atualmente uma média de 550 venezuelanos por dia. A operação, montada em 2018, é a maior do tipo já realizada em solo nacional.

A ação conjunta entre a Globo e o Acnur viabilizou essa expedição para Boa Vista e Pacaraima (fronteira Brasil/Venezuela). Mais Você, Sem Fronteiras (GloboNews) e Conversa com Bial foram os programas convidados. Como cada atração tem a própria linha editorial e inte-resses, nos dividimos. Aline foi a encarregada de nos receber. Nós, a

“equipe do Bial”, tínhamos poucos dias e sabíamos que não seria pos-sível entender, em tão pouco tempo, toda a complexidade daquele fluxo migratório de proporções gigantescas. Mas poderíamos ouvir algumas histórias dos verdadeiros protagonistas daquela tragédia, as pessoas. Foi o que fizemos.

onde as pessoas podem pernoitar e deixar seus pertences, mas não há vagas para todos. Uma fila indicava um pronto atendimento emergencial, muitas mulheres grávidas e com filhos buscavam algum medicamento.Esse cartão de visitas impressionou. Muitas histórias tristes, a maioria envolvendo famílias separadas. Todos falavam sobre os que tiveram de deixar para trás e sobre a insegurança em relação ao futuro. apesar das incertezas, todos com quem conversei foram unânimes: não pretendiam voltar tão cedo.

primeiro dia, tarde. abrigo rondon 3O caos da rodoviária deu lugar a uma paisagem mais organizada. as famílias já alojadas desfrutavam de alguma rotina. no lugar de

desespero e insegurança, fomos recebidos por sorrisos. Tivemos um anfitrião inusitado. Moisés Flores, de 10 anos, cujo sonho é ser repórter, assumiu a tarefa de apresentar o local. Com um microfone de brinquedo e uma câmera de papelão, recrutou seu amigo, Marco herrera, para ser seu cinegrafista. Embarcamos na onda, e eles apresentaram seus locais favoritos: o parquinho do lado de fora do alojamento, o campo de vôlei e a tenda onde a mãe de Marco, pedagoga, dá aula aos pequenos. Conhecemos também uma barbearia a céu aberto. Um jovem cortava o cabelo de alguns senhores em uma cadeira improvisada ao som de reggaeton. Uma senhora vendia café por 50 centavos o copo. Em volta dela, pessoas conversavam, como se ali fosse uma pracinha de interior.

primeiro dia, manhã. rodoviária de boa vistaDemos uma volta para reconhecimento local. a ideia era conhecermos alguns pontos, uma prévia antes de gravarmos. a chuva atrapalhou um pouco nossos planos, mas pudemos conhecer a rodoviária de Boa Vista.Um senhor de cabelos brancos chamou minha atenção pelo contraste entre seu semblante cansado e sua agilidade em cima de uma bicicleta. Ele vendia “geladinhos” para as crianças por r$ 1 e maços de cigarros para os adultos por r$ 10. Com a desculpa de puxar conversa, comprei um maço de uma marca que nunca tinha visto antes. Ele contou que desde o primeiro dia em que chegou ao Brasil trabalha com esse tipo de comércio. Muito falante, pinta de bom vendedor. Entre outras coisas, me jurou

entre o que ficou para trás da fronteira e as incertezas em relação ao futuro, jornalista capta relatos de venezuelanos recém-chegados por ViCTOr Sá, jornalista e pesquisador de conteúdo do programa Conversa com Bial

Histórias partidas

expedição

venezuelanos chegam ao abrigo temporário de pacaraima (rr) e podem, depois, seguir de ônibus para boa vista

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nossa presença parecia bem- -vinda, exceto por um homem que me chamou de canto: “O que vocês esperam encontrar de diferente aqui? Somos pessoas iguais a vocês. Vocês, jornalistas, pensam que vão encontrar coisas exóticas, mas somos iguais a qualquer pessoa. nosso país está passando por um momento difícil. apenas isso”. Conversamos. a animosidade inicial logo deu lugar à vontade de ser escutado. Contou que era escritor e estava registrando os últimos anos em um diário, que me mostrou, mas não quis gravar entrevista.São mais de mil pessoas morando provisoriamente no rondon 3. Elas esperam a oportunidade de serem interiorizadas para alguma cidade do país e, enfim, recomeçarem suas vidas. Muitas crianças brincam por todo canto

e camuflam a triste realidade. Percebi que, sempre que uma sensação de conforto surgia, uma nova situação rompia aquela momentânea ilusão.Depois de guardar os equipamentos e me despedir, ouvi meu nome gritado. Marco, o “cinegrafista”, veio correndo, se atirou em meus braços e perguntou: “Você vai voltar amanhã?”.

segundo dia, pacaraima. fronteira com a venezuela

“Onde os primeiros passos dessa dura e penosa jornada se iniciam. Onde o desespero e a esperança se encontram.” Foi mais ou menos como aline definiu. Pacaraima, pequeno município no extremo norte do país, é a porta de entrada para os venezuelanos. aline explicou que “em tese, a fuga para a Colômbia talvez fosse mais fácil, por causa do idioma e da

proximidade geográfica. Mas aqui no Brasil a resposta que eles encontram é muito mais estruturada”. logo após a fronteira, o Posto de recepção e identificação (Pri) e o Posto de Triagem (PTriG) são os responsáveis por iniciar o processo de retirada de carteira de trabalho e CPF. Os documentos ficam prontos em, no máximo, uma semana. Durante esse tempo, as pessoas esperam no BV-8, um alojamento similar aos abrigos de Boa Vista.Uma tenda enorme, com um ar condicionado congelante e ares meio sci-fi, chama atenção. lá, um pronto atendimento cuida das emergências médicas. O médico do Exército explicou que é normal as pessoas chegarem fracas e subnutridas. a travessia não costuma ser fácil. Santa helena, a cidade venezuelana mais próxima de Pacaraima, fica

a 15 km de distância. Muitas vezes esse trajeto é feito a pé, sob sol forte e clima seco. “É comum chegarem com pés e joelhos machucados.” as vacinas exigidas pela legislação brasileira também são dadas ali.

terceiro dia, alojamento tancredo neves, boa vistairmã Clara Santos, missionária da OnG Fraternidade, contou sobre o abrigo Tancredo neves:

“É destinado aos casais e homens sozinhos. Muitos homens deixaram suas famílias na Venezuela e vieram na frente. Temos também pessoas da comunidade lGBT. Diferentemente dos demais abrigos, aqui não há crianças. Por isso, pensei que seria um abrigo triste”. Essa impressão mudou no dia em que Carlos rodríguez e outros amigos pediram para realizar um “show de calouros” no local.

Em um camarim improvisado, Carlos se transforma em antonella. Outros rapazes, inspirados por divas pop como lady Gaga e Beyoncé, se maquiam cuidadosamente. Uma atmosfera bem-humorada e de certa expectativa. ao som de Crazy in love, antonella, com passos decididos, entra no palco para uma plateia de cerca de 100 pessoas. alguns números cômicos, outros mais dramáticos. Quase todas as canções dubladas são em inglês. novamente, quando o clima era divertido e leve, a realidade veio nos chamar. Depois do show, Carlos, que integrava a seleção venezuelana de judô, contou que teve de abandonar a carreira para fugir da fome. Sua irmã foi obrigada a se prostituir por comida, disse. Com lágrimas nos olhos, falou sobre sua filha de 1 ano. “a mãe dela morreu no parto e hoje quem cuida é

minha mãe. Tudo que estou fazendo aqui é por ela.” O sonho de Carlos é trazer a filha,

“mas não agora, só quando conseguir me estabilizar minimamente para poder dar tudo o que ela merece.”ainda revimos “Carlos antonella” em uma academia de judô. Um amigo do Exército conseguiu o espaço para ele treinar de graça. Carlos atravessa a cidade, duas horas caminhando, para seguir com os treinos. Foi a última pessoa que entrevistamos: “não considero aqui um refúgio. aqui é uma escola. Me sinto mais livre aqui no Brasil. Minha mãe me ensinou que, mesmo que as coisas estejam muito difíceis, sempre temos que encarar com positividade. É assim que sou. É assim que antonella é”. Quatro dias após nosso encontro, ele foi interiorizado para Campina Grande, Paraíba.

expedição

abrigo de pintolândia, em boa vista (rr), recebe exclusivamente indígenas

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A pequena e pacata Pacaraima, cidade roraimense que faz fronteira com a Venezuela, nunca imaginou que um dia seria conhecida como um polo de assistência humanitária. Mas esta virou a realidade da cidade que chegou a receber 1.180 venezuelanos em um só dia. De acordo com a ONU, o agravamento da crise na Venezuela fez com que 4 milhões de pessoas deixassem o país desde 2014. Hoje, em média, 500 pessoas cruzam dia-riamente a nossa fronteira, e muitas querem fazer do Brasil o seu refúgio.

“Saí de Caracas para oferecer uma vida melhor para ela”, conta Karin Martínez, engenheira de sistemas de 39 anos, olhando para a sua filha. Como muitas famílias, elas pegaram um ônibus de Caracas até Puerto Ordaz e, de lá, contrataram um motorista por cerca de US$ 200 – o equivalente a 25 salários mínimos na Venezuela – para cruzar a frontei-ra. Depois de passar pelas bandeiras do Brasil e da Venezuela que sina-lizam a fronteira entre os países, Karin avistou a sinalização da Operação Acolhida. Logo foi encaminhada com outros recém-chegados ao Posto de Recepção e Identificação. É lá que os venezuelanos recebem a permis-são de entrada no país, são vacinados e tiram documentos brasileiros, como o CPF. É também onde eles dão entrada na solicitação de refúgio, que é analisada pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare), um pro-cesso demorado: hoje apenas 63 venezuelanos tiveram seu status de re-

fugiado regularizado e cerca de 99 mil aguardam revisão.

A Operação Acolhida tem como ob-jetivo ordenar a fronteira e abrigar e interiorizar os venezuelanos que decidiram recomeçar a vida no Bra-sil. É uma força-tarefa das agências das Nações Unidas com as Forças Armadas e 11 ministérios. O custo para o Estado brasileiro é de cerca de R$ 263 milhões por ano. Por se tratar de uma missão humanitária, nenhum dos 500 militares que in-tegram a operação trabalha armado.

“No meu país não há pessoas uni-formizadas que tenham educação. Lá, eles nos insultam, nos tratam mal”, declara Karin.

Após passarem o dia inteiro regu-larizando a entrada, Karin e sua filha, exaustas, são levadas para um dos dois abrigos de Pacaraima, onde aguardam a transferência para Boa Vista. “Muito obrigada, Brasil!”, exclama a mãe, emocionada.

Estimativas da Operação Acolhida indicam que dos 168 mil venezue-lanos que estão no Brasil, 60 mil vivem em Roraima. Deles, 6,5 mil estão em abrigos temporários man-tidos pela Operação Acolhida. No entanto, 1,3 mil vivem em ocupa-ções irregulares e 1,5 mil se encon-tram em situação de rua. Em Boa Vista, onde há cerca de 32 mil ve-nezuelanos, é longa a fila de espe-ra para entrar nos 11 abrigos – que operam em sua capacidade máxima.

Felipe Mejías, de 43 anos, está no Brasil há quase um ano com sua esposa, filhos e neto aguardando a interiorização. Atualmente no abri-go Rondon 2, em Boa Vista, ele es-pera chegar até a capital do Paraná, onde a família de sua irmã já se es-tabeleceu. “Eu quis tirar a minha família da Venezuela, e isso já con-segui. Agora preciso continuar ba-talhando. Quero ser caminhoneiro e comprar uma casa no Brasil”, re-vela ele. “Somos gratos por receber

dos 168 mil venezuelanos que vivem hoje no brasil, 60 mil estão em roraima. pacaraima é a principal porta de entrada

abrigo rondon 3, o maior de boa vista (rr), tem estrutura para acolher famílias inteiras e por mais tempo que os demais

Ritos da passagem

expedição

ajuda, mas nós, venezuelanos, somos acostumados a comprar as coisas com o nosso próprio dinheiro.”

Até o momento, 7 mil venezuela-nos já foram deslocados para ou-tros estados brasileiros por meio do Programa de Interiorização, do governo federal. O objetivo é re-duzir o impacto da chegada de refugiados e migrantes em Rorai-ma, identificando outros locais de acolhida no país. Há, ainda, uma base de dados que mapeia vagas de trabalho e identifica perfis de refugiados adequados para elas.

“Já fizemos 923 interiorizações por vagas de emprego e esses vene-zuelanos estão hoje trabalhando bem e integrados com a socieda-de brasileira”, explica o coronel Alexandre Carvalhaes, responsá-vel pela Célula de Interiorização da Operação Acolhida.

Enquanto a maioria dos venezue-lanos que chegam a Roraima dese-

ja ser deslocada para outros estados do país, há também quem não pos-sa ficar muito longe da fronteira. É o caso de María Celeste Gutiérrez, de 34 anos, que se estabeleceu com o marido e três filhos em Pacaraima em 2016, deixando sua mãe e uma avó doente na Venezuela. “A gente não compra só 1 quilo de arroz para a nossa casa, compramos 2 – para guardar um e enviar o outro para a Venezuela. Por mais dinheiro que a gente mande, eles não têm o sufi-ciente para as necessidades de lá”, explica ela, que trabalha como as-sistente do Centro Pastoral para Migrantes de Pacaraima. Apesar de já estar integrada à sociedade ro-raimense, com amigos, emprego estável e laços afetivos, María Ce-leste sonha em voltar para casa.

“Mas, quando penso nos meus filhos, sei que aqui no Brasil eles terão opor-tunidades, e na Venezuela não.”

por JOy Ernanny, jornalista e produtora de documentários da GloboNews

o programa sem fronteiras sobre a expedição foi exibido no dia 20 de junho de 2019. veja mais em app.cadernosglobo.com.br.

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Quando uma pessoa chega à situação extrema de ser obrigada a deixar às pressas o seu país e buscar refúgio em outro, carregando o mínimo possí-vel de sua vida pregressa, quais pertences ela faz questão de levar consigo?

Movida por essa inquietação, uma equipe do Conversa com Bial, da Globo, abordou em junho passado dezenas de venezuelanos com mo-radia provisória no abrigo Rondon 3, em Boa Vista, Roraima.

A princípio, os refugiados estranhavam a pergunta. A primeira respos-ta de vários foi: “Meus filhos”. Parecia um ruído de comunicação, mas logo ficou claro que trazê-los era uma vitória pessoal que precisava ser afirmada. Muitos refugiados tiveram de deixar os filhos com parentes na Venezuela, até juntar o dinheiro para bancar sua viagem ao Brasil. Outra resposta comum era: “Vim apenas com a roupa do corpo”. A ideia de trazer qualquer coisa a mais soava como uma extravagância.

Aos poucos, porém, alguns começaram a revelar seus pertences de estimação – ponto de partida para que eles contassem suas histórias pessoais. A maioria dos objetos lembrados misturava valor sentimen-tal e utilidade econômica. Funcionavam, ao mesmo tempo, como uma maneira de recordar o passado e de ajudar no futuro.

dulce Dulce González, costureira, tirou do próprio cabelo uma agulha de crochê antiga, feita de um metal já oxidado, com cerca de duas décadas de uso. Em seguida, retirou de um saco delicados sapatinhos infantis de crochê que ela fazia na Venezuela. Contou que pretendia voltar a fazê-los para vender no Brasil, assim que conseguisse dinheiro para comprar as linhas e outros materiais. “Foi minha mãe quem me ensinou a costurar. Usar essa agulha é uma maneira de ter minha velha por perto e ajudar a criar minha filha e minhas netas.”

laila laila Carrillo, professora e confeiteira, trouxe uma forma de bolo de metal, dada por uma amiga, “quase uma irmã”. Mostrou também uma batedeira e formas variadas para fazer

bombons e outros doces. Ela conta que é da segunda geração de refugiados. Seu pai veio da Palestina para a Venezuela, fugido da guerra. Diferentemente de Dulce, laila conseguiu começar a trabalhar no Brasil. Uma igreja cedeu a cozinha, laila faz lá seus doces e os vende no abrigo. Também ganhou o primeiro lugar num concurso de empreendedores com sua receita especial de alfajores. “Meu sonho agora é ter uma loja de doces, trazer o resto da minha família e aprender português.”

richard O barbeiro richard Jesús rodríguez também já conseguiu ganhar algum dinheiro com seu objeto preferido: uma máquina para aparar cabelos. Ele trouxe também outros apetrechos da profissão: tesoura, navalha, secador etc. Desde que chegou

ao abrigo, richard oferece seus serviços aos refugiados. São cinco a seis cabelos cortados por dia. richard apareceu para conversar de muletas. Ele perdeu a perna esquerda num acidente de carro, um ano antes. indagado como sua vida mudou de lá para cá, ele respondeu com convicção: “O acidente não me afetou em nada. levo a minha vida igual. Sou um guerreiro”. Questionado por que não escolheu as muletas como objeto mais importante, ele foi categórico novamente: “a máquina de cabelo é tão importante quanto as muletas. Ela também me ajuda a seguir adiante”.

lérida nem todos os refugiados apareceram com objetos

utilitários. lerida Pérez, que vendia comida nas ruas, veio protegida pelas pulseiras e colares da santería, religião de origem africana como o nosso candomblé. Ela cita os santos representados nos colares: Oxum, iemanjá, Xangô, Obatalá, Oyá, Orula. “Eles me protegeram na vinda ao Brasil. Pedi para nunca dormir na rua. E encontrei abrigo desde o primeiro dia aqui. agora vou pedir para trazer meus filhos e meu marido, que ficaram na Venezuela.”

dianaO objeto mais singelo foi trazido por Diana Estanga: um cachorro de pelúcia batizado de Fofo. “Foi minha avó quem me deu. não consigo dormir se não for abraçada com ele. Talvez seja saudade da minha infância”, diz a contadora de 18 anos.

refugiados venezuelanos revelam quais são os objetos mais importantes que trouxeram para o brasil. por riCarDO Calil, jornalista, roteirista do Conversa com Bial e codiretor do documentário Uma noite em 67

Carrego comigo

expedição

trazer a família é uma grande vitória para boa parte dos refugiados. nesta página, os pertences de laila, dulce, richard, lérida e diana

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Prudence Prudence Libonza deixou seu país, a República Democrática do Congo, sob guerra. “As mulheres estão sendo usadas como armas de guerra. E as crianças, que poderiam estar na escola, estão sendo usadas como trabalho escravo”, ela diz. Assistindo a novelas brasileiras, aprendeu português e decidiu vir para o Brasil. “Não foi fácil”, lembra. Na Cáritas, soube do projeto Empoderando Refugiadas. “Antes, eu pensava que ser refugiada, ser estrangeira, fecharia as portas. Eu comecei a ver que eu poderia ir atrás dos meus sonhos”, lembra. Passou a trabalhar como modelo e a levar a “bandeira” da sua origem com orgulho. “Por onde eu passo, falo: ‘Sou Prudence, África, refugiada, mãe de cinco filhos’. Sorrio para as pessoas e digo: ‘Eu posso’.”

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o fim de uma tarde como muitas outras. Toc toc, se escuta na por-ta da Casa do Migrante. Ao abri-

-la, o agente educacional se depara com um casal, duas crianças pequenas e algumas malas. A mulher, com um papel amassado na mão, pergunta: “Es la Casa del Migrante?”. A respos-ta é positiva. “En una iglesia del centro dieron esta dirección diciendo que ustedes acogem refu-giados. Nosotros somos de Cuba. No tenemos donde dormir”. É uma cena que se repete cons-tantemente. Chegam aqui por indicação de outras pessoas e por instituições parceiras ou até mesmo de forma espontânea. Ante toda a

asua diversidade, todas têm em comum a busca por um abrigo para recobrar as forças e reco-meçar a vida em uma nova terra.

Ao chegar a um novo país, o migrante encon-tra uma série de desafios: achar abrigo, con-seguir trabalho, regularizar documentação, aprender um novo idioma, entender a cultura, lidar com a saudade da vida que teve de deixar para trás, cuidar dos traumas advindos da saída forçada e da própria travessia. No caso do Brasil, o desafio de maior urgência encarado pelos migrantes assim que chegam é conseguir vaga em uma casa de acolhida para, em segui-da, buscar um lugar fixo para morar.

Essa realidade não é estática, mas evoluiu nos últimos anos, principalmente a partir do flu-xo haitiano que se intensificou em 2014 e, mais recentemente, com a chegada mais maciça de venezuelanos. A cidade de São Paulo, por exem-plo, contava somente com a Casa do Migran-te, dos missionários scalabrinianos, e a Casa das Mulheres, das irmãs palotinas. Quando as duas instituições estavam sem vagas, o poder público encaminhava os migrantes para abri-gos destinados à população em situação de rua. Muitos problemas surgiam pelo fato de mi-grantes e pessoas em situação de rua terem características distintas. A necessidade de abrigos específicos é exigida pelo perfil dessas pessoas que falam idiomas variados, têm ou-tras tradições culturais e religiosas, possuem traumas decorrentes da própria situação mi-gratória, em especial no caso do refúgio. Com o crescimento do número de imigrantes hai-tianos e a cobrança pela sociedade civil, a prefeitura de São Paulo estabeleceu convênios com entidades da sociedade civil, disponibi-lizando 540 vagas para imigrantes e refugiados.

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além das questões de ordem prática, acolher imigrantes e refugiados requer a compreensão de que são indivíduos com históricos e necessidades diferentes

da

acomplexidadeinclus ão

por Paolo Pariseartigo

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artigo

Paolo Parise é padre e um dos coordenadores da Missão Paz, instituição que acolhe imigrantes e refugiados

A intensificação da imigração venezuelana no estado de Roraima desafiou a realidade e a in-fraestrutura local, especialmente Boa Vista e Pacaraima. Diante da situação, o governo fe-deral criou o Comitê Federal de Assistência Emergencial e desenvolveu a Operação Aco-lhida, com três áreas de atuação: fronteira, abrigamento e programa de interiorização. Dessa forma, os abrigos no estado de Roraima começaram a acolher um número crescente de venezuelanos. E, apesar desse grande esforço, milhares de pessoas continuam na rua. Outros ainda participam de maneira voluntária do programa de interiorização e são transferidos para cidades como Manaus, Brasília, Cuiabá, São Paulo e Porto Alegre. Num segundo mo-mento, o governo federal, em conjunto com agências da ONU e a Confederação Nacional dos Municípios, apresentou o programa Inte-riorização + Humana, incluindo municípios com população inferior a 300 mil habitantes.

Diante da crescente demanda de abrigamento, em uma trajetória que envolve tanto o poder público quanto a sociedade civil, é necessário compreender a acolhida como um processo, e não como um ato pontual. A acolhida não se limita a dar um lugar para dormir, se alimen-tar e ter aulas de português. A acolhida é um processo complexo que passa por várias etapas e que continua também na hora da saída das casas de acolhida. Conta com a participação

imobiliária, como também com as dificuldades para preencher exigências das imobiliárias para firmar o contrato, como a necessidade de fiador ou adiantamento de pagamentos. Outro problema é o desconhecimento do Protocolo de Permanência Provisória, documento seme-lhante a uma filipeta de papel, que muitos agentes públicos e privados pensam não ser válido. A tudo isso acrescentam-se baixos salários e a necessidade de enviar remessas para as famílias no país de origem. Com isso, os refugiados são forçados a morar em situações precárias, como ocupações ou pequenos quar-tos lotados de pensões. Vale pontuar que, em-bora existam programas importantes de abrigamento, cursos de português e inserção laboral, ainda faltam ações voltadas para a desburocratização dos processos de moradia para migrantes – essencial para a sua fixação e integração em um novo país.

Esses são alguns desafios que podemos men-cionar de forma geral para a acolhida de mi-grantes. Para observar a complexidade da situação, é necessário lembrar que os migran-tes também são sujeitos individuais e únicos, com diferentes históricos e necessidades. Os grupos ainda mais vulneráveis que demandam atenção especial são mães solo com crianças pequenas, pessoas acima de 60 anos, menores desacompanhados, mulheres vítimas de vio-lência sexual, pessoas LGBTI e vítimas de trá-

fico humano e de trabalho análogo ao escravo. Essa complexidade no acolhimento de pessoas tão diversas requer uma estrutura de atuação intersetorial e transversal que esteja articula-da a outros projetos da sociedade civil e do poder público.

Por fim, vale a pena observar que o “abrigo é abrigo”: um espaço coletivo compartilhado. As pessoas acolhidas se adequam aos horários e às regras da estrutura e não escolhem as pessoas com quem moram na casa, o que cau-sa certo estranhamento. Porém o desafio tam-bém se volta para as instituições, que devem tentar amenizar a situação, na medida do pos-sível. Esse quadro provoca e convida a trans-formar esse obstáculo em oportunidade de tecer relações interpessoais e interculturais para o firmamento de bases para uma socie-dade mais aberta ao outro.

de vários atores, seja da sociedade civil, seja das instituições públicas, como também dos próprios imigrantes e refugiados.

atenção específicaMesmo entre os migrantes, distingue-se um grupo específico que são os refugiados, ou se-ja, pessoas que estão fora de seu país de origem, devido à perseguição por questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a de-terminado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos arma-dos. É uma situação ainda mais delicada, uma vez que, em muitos casos, são pessoas que não tiveram tempo de programar sua saída e, às vezes, sequer podem escolher seu destino. São pessoas que encontram ainda mais dificuldades na procura por um abrigo e necessitam de atenção específica, em uma ação de acolhida multidisciplinar, na qual profissionais de di-versas atuações trabalhem em sinergia.

É chamado de primeira acolhida esse processo que envolve a busca por um lugar onde morar, se alimentar, lavar as roupas e se recompor, para seguir a jornada. Também é essencial, nessa etapa, o oferecimento de aulas de língua portuguesa, atendimento médico, apoio psi-cológico e assistência documental.

Já a segunda etapa trata do momento de saída dos abrigos em busca de um lugar a ser aluga-do, na qual os refugiados se deparam com o alto preço do aluguel, fruto da especulação

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Diante da crescente demanda de abrigamento, é necessário compreender a acolhida como um processo, e não como um ato pontual

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MahaMaha Mamo nasceu no Líbano, mas não é libanesa. Isso porque o pai é sírio, mas o casamento entre ele e a mãe de Maha não é reconhecido por lá por ser interreligioso – ela é muçulmana; ele, cristão. Assim, Maha também não é síria. Durante 30 anos, Maha viveu como apátrida, nome que se dá às pessoas que não são reconhecidas como cidadão em lugar algum. Sem documento ou nacionalidade, ser aceita em uma escola ou conseguir trabalho formal foi um desafio. Maha estudou, fez faculdade e mestrado. Em 2014, foi recebida no Brasil, onde ficou como refugiada e, depois, pleiteou uma nacionalidade. Virou brasileira. “Descobri que no mundo são 10 milhões de pessoas apátridas. Falei: ‘Isso vai ser a missão da minha vida’.”

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deslocamento de pessoas refugiadas é, hoje, uma

das principais pautas globais, incluindo a Amé-rica Latina e o Brasil.

Na América do Sul, presenciamos o maior des-locamento de pessoas da história da região, com o fluxo de mais de 4 milhões de venezuelanos, a maioria cruzando a fronteira para os países vizinhos. O Brasil não é o país mais afetado pelo deslocamento da população venezuelana, mas tem recebido um número crescente de pedidos de refúgio, de pessoas em estado de vulnera-bilidade e que requerem tratamentos específi-cos e acompanhamentos individuais por parte do Acnur e de seus parceiros.

Falta de inFormações e diFiculdades em revalidar diploma são desaFios dos reFugiados que buscam recomeçar suas vidas com dignidade

trabalho

por Paulo SÉrgio de almeida e João marqueS da FonSeca

artigo

O

Sabemos que muitos refugiados regressarão aos seus países de origem quando a situação assim permitir, mas também que outros per-manecerão nos países de acolhida. Uma das soluções de longo prazo para os refugiados é a integração local, sendo, até, uma oportuni-dade ao país de acolhida pelas diferentes for-mas de agregar conhecimentos, experiências profissionais e a determinação evidente de quem busca uma chance de recomeçar as suas vidas com dignidade, em face das crises hu-manitárias.

O Brasil tem uma longa história de acolhimen-to a populações com necessidade de proteção internacional, sendo formado por pessoas que vieram de todas as partes do mundo e aqui se estabeleceram e contribuíram para o desen-volvimento social, econômico e cultural do país. Atualmente, entre solicitantes de refúgio e refugiados já reconhecidos, são pouco mais de 200 mil pessoas, o que corresponde a me-nos de 0,1% da população brasileira. Entre os 11.231 refugiados já reconhecidos pelo Conare, a maioria é proveniente da Síria, da República Democrática do Congo e da Colômbia.

A legislação brasileira garante o acesso das pessoas refugiadas ao mercado de trabalho. Tanto solicitantes de refúgio quanto refugiados têm acesso à Carteira de Trabalho e Previdên-cia Social e podem ser contratados sem quais-quer restrições, como todo cidadão brasileiro. Os solicitantes de refúgio têm o Protocolo de Pedido de Refúgio, enquanto não lhes é emi-tido o Documento Provisório da Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), que é o equivalente à sua Cédula de Identidade no

integraçãopelo

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Brasil. Já os refugiados reconhecidos possuem carteira do CRNM (que substituiu a cédula de identidade do estrangeiro). Em ambos os casos, não há impedimentos para o registro das con-tratações no e-Social e os refugiados podem ainda se estabelecer como microempreende-dores individuais (MEI).

Recentemente o Acnur realizou uma pesquisa, por meio de oito universidades brasileiras con-veniadas à cátedra Sérgio Vieira de Mello, para identificar o perfil socioeconômico das pessoas refugiadas no Brasil, com vistas a entender como vivem, levantando informações sobre suas ca-racterísticas demográficas, seu nível de inserção social, acesso ao trabalho, renda familiar e suas potencialidades. Foram feitas cerca de 500 en-trevistas, em 14 cidades brasileiras, de oito estados. Os dados que emergem dessa pesqui-sa, que constituem o perfil socioeconômico dos refugiados no Brasil, apontam um enorme po-tencial produtivo dessa população, mas também mapeiam os desafios atuais. Ao final, indica um cenário em que o processo de inserção social e econômica no Brasil está em marcha, mas ain-da são necessários esforços do setor privado, das diferentes instâncias do governo, da aca-demia e da sociedade civil organizada para enfrentar os obstáculos presentes.

Evidencia-se que a população refugiada pos-sui nível escolar acima da média brasileira. Aproximadamente 34,4% dos entrevistados

reconhecimento de diplomasEmbora a população refugiada no Brasil tenha um perfil qualificado, a sua inserção no mer-cado de trabalho é insuficiente, com alta taxa de desemprego. A falta de reconhecimento de seus diplomas e certificados profissionais con-tribui para que a inserção ocorra abaixo de sua qualificação e, em sua maioria, com baixos salários. É grande a falta de conhecimento so-bre essa população e seu direito a trabalhar plenamente no Brasil, especialmente por par-te das empresas. Por isso, é fundamental o engajamento do setor privado na inclusão de pessoas refugiadas em seus processos de recru-tamento para as vagas de trabalho em aberto.

Uma das iniciativas que visam a apoiar em-presas e refugiados nesse processo é o Progra-ma de Apoio para a Recolocação dos Refugia-dos (PARR). O PARR (refugiadosnobrasil.org) é o primeiro projeto criado no Brasil voltado para a inserção de pessoas em situação de re-fúgio no mercado de trabalho nacional. Em parceria com o Acnur, o programa foi ideali-zado pela EMDOC, consultoria especializada em serviços de mobilidade global, sendo um projeto social criado e subsidiado inteiramen-te por uma empresa privada.

Considerado um dos maiores bancos de dados de refugiados do Brasil, o PARR tem hoje mais de 2.700 currículos cadastrados. Ao longo de seus quase oito anos de existência, foram 1.223 encaminhamentos para entrevistas, 298 con-tratações efetivas e 240 empresas parceiras cadastradas.

fizeram o ensino superior – muitos concluíram curso de pós-graduação. Além disso, após alguns meses no Brasil, 92% dos entrevistados adquiriram fluência na língua portuguesa. En-tretanto, apenas 14 refugiados conseguiram revalidar seus diplomas (em todos os níveis de ensino e em formações profissionais diversas) no Brasil, contra 133 que não. Esse dado ajuda a explicar por que a inserção dessa população no mercado de trabalho está abaixo de sua qualificação profissional. Além disso, 79% dos entrevistados têm renda inferior a R$ 3 mil.

A maior parte dos entrevistados está trabalhan-do (57%), entretanto 19% estão procurando por trabalho, o que revela uma alta taxa de desem-prego. Por outro lado, 79% dos entrevistados afirmam ter disposição para empreender, sendo que 22% já estão desenvolvendo ativi-dades empresariais.

A falta de informação sobre essa população ainda é considerável, refletindo em precon-ceito e xenofobia. Na pesquisa realizada, 41% admitiram ter sofrido algum tipo de discrimi-nação. Destes, 73% citaram o fato de ser es-trangeiro como motivo de discriminação.

Por isso, o Acnur, em parceria com o Pacto Global, lançou este ano uma plataforma digi-tal, objetivando divulgar empresas e organi-zações com boas práticas de contratação ou inserção da população refugiada no mercado de trabalho, mostrando casos de sucesso que beneficiaram pessoas refugiadas, mas também trouxeram ganhos para as empresas. Esses casos podem ser vistos no site www.empre-sascomrefugiados.com.br, e novas parcerias são muito bem-vindas.

Embora a população refugiada no Brasil tenha um perfil qualificado, a sua inserção no mercado de trabalho é insuficiente, com alta taxa de desemprego

Paulo SÉrgio de almeida

é oficial de meios de vida do acnur;

João marqueS da FonSeca é presidente da emdoc, consultoria especializada em mobilidade global

Refugiados das mais diversas nacionalidades já solicitaram o auxílio do programa. No pri-meiro semestre de 2019, os venezuelanos lideraram a busca por oportunidades de traba-lho, representando 53% dos 339 atendimentos realizados. Os venezuelanos correspondem a 15% dos cadastrados, já sendo a terceira maior nacionalidade cadastrada.

O PARR acumula uma série de casos de sucesso. Com refugiados inseridos no quadro de colabo-radores de uma empresa, a diversidade cultural desse ambiente é expandida e o ganho empre-sarial é exponencial. Além disso, abrir as portas para os refugiados constitui um excelente exem-plo de responsabilidade social e representa uma efetiva relação de ganha-ganha entre as pessoas refugiadas e o setor privado, sendo um exemplar caso de diferencial competitivo.

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NathalieNathalie Kankolongo é uma congolesa de 39 anos, casada, mãe de dois filhos. Na República Democrática do Congo, nasceu e viveu na capital Kinshasa, cursou programação na Líbia até que, em 2013, a situação de trabalho ficou complicada para o marido e a família decidiu migrar para o Brasil. Chegaram em 2013 na capital paulista, enquanto Nathalie ainda carregava o filho Davi no ventre. Com auxílio do Cáritas, Nathalie conseguiu documentação e atendimento médico. Davi nasceu e cresceu saudável e hoje mora e estuda no Brás, em São Paulo. “Ele quer vir sempre, tenho que convencê-lo de que tem dia que não tem aula”, diz a mãe.

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Missão Paz Tradicional instituição de acolhimento e apoio a imigrantes na cidade de São Paulo. Desde 1939, a entidade ligada à Igreja Católica oferece desde abrigo a apoio jurídico. missaonspaz.org.

Cátedra sérgio Vieira de Mello (CsVM) Instituída em 2003, é uma parceria entre Acnur, Conare e centros universitários. Promove a formação acadêmica e a capacitação sobre temas relacionados ao refúgio. Uma frente de atuação envolve facilitar o acesso ao ensino e a revalidação de diplomas. acnur.org/portugues/catedra-sergio-vieira-de-mello.

Carolina Bori O Ministério da Educação criou em 2017 a plataforma Carolina Bori, sistema informatizado para os processos de revalidação e reconhecimento de diplomas estrangeiros no Brasil. plataformacarolinabori.mec.gov.br.

reValida É o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos, do Ministério da Educação. Permite que médicos diplomados no exterior (incluindo brasileiros) exerçam a atividade no Brasil. As provas são aplicadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). revalida.inep.gov.br/revalida/inscricao

instituto adus Fundado em 2010, o Instituto de Reintegração do Refugiado atua na cidade de São Paulo. O Adus oferece aulas de português, cursos de qualificação profissional, apoio psicológico, entre outras ações. Os refugiados atuam também em uma escola de idiomas do Adus e em workshops de gastronomia. adus.org.br.

Parr Criado em 2011, o Programa de Apoio à Recolocação de Refugiados tem foco na inserção no mercado de trabalho. A entidade tem um banco de dados com os perfis pessoais, acadêmicos e profissionais de refugiados e solicitantes de refúgio. refugiadosnobrasil.org.

CoMPassiVaInstituição que atende também mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo. Para os refugiados, há o programa LAR (Levando Ajuda ao Refugiado), que contempla assistência jurídica, aulas de português, apoio na revalidação de diplomas e ajuda na inserção no mercado de trabalho. compassiva.org.br

iKMr Sigla de I know my rights (Eu conheço meus direitos), essa ONG brasileira cuida especificamente de crianças refugiadas. Criada em 2012, a entidade oferece suporte para assegurar a proteção dos direitos desse público de até 12 anos de idade. ikmr.org.br

aCnurAlto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Criado em 1950, após a Segunda Guerra, o órgão da ONU ajuda a garantir os direitos de refugiados. (acnur.org). Informações básicas aos refugiados podem ser acessadas em help.unhcr.org/brazil.

ConareComitê Nacional para Refugiados. Criado em 1997, é um órgão colegiado vinculado ao Ministério da Justiça. Entre outras atribuições, decide sobre as solicitações de refúgio. As solicitações são feitas pelo link sisconare.mj.gov.br.

PolíCia Federal Órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública que emite a documentação necessária para o refugiado permanecer no Brasil. pf.gov.br/servicos-pf/imigracao/refugio/refugio-termo-solicitacao

CraiO Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes é um órgão da prefeitura de São Paulo. Oferece suporte jurídico, apoio psicológico e oficinas de qualificação profissional. prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/migrantes/crai.

CáritasEntidade da Igreja Católica voltada para a proteção de excluídos. Em São Paulo, a instituição conta com o Centro de Referência para Refugiados, que oferece assistências jurídica, social e psicológica (caritassp.org.br/centro-de-referencia-para-refugiados).No Rio de Janeiro, há o Pares (Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio). A Cáritas RJ atua em três frentes: acolhimento, proteção legal e integração local (caritas-rj.org.br). Em Manaus, a Cáritas, além de apoiar a acolhida, atua em parceria com entidades para oferecer cursos profissionalizantes a refugiados. arquidiocesedemanaus.org.br.

aVsi Brasil A ONG Associação de Voluntários para o Serviço Internacional atua em Roraima em ações para acolher venezuelanos. Integra o projeto Centro de Recepção e Assistência de Venezuelanos, que faz parte da Operação Acolhida. Junto com o Acnur e o Exército brasileiro, ajuda na gestão dos abrigos para as pessoas do país vizinho. avsibrasil.org.br.

sJMrO Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados tem origem na década de 1980. Atualmente, com o programa Acolhe Brasil (RR) empreende ações de apoio à acolhida e à interiorização de migrantes venezuelanos.sjmrbrasil.org.

iMdH Fundado em 1999, o Instituto Migrações e Direitos Humanos é vinculado à Congregação das Irmãs Scalabrinianas, em Brasília. Oferece atendimento jurídico e ações para integração social e laboral de migrantes, solicitantes de refúgio, refugiados e apátridas. migrante.org.br.

oKa App do Instituto Igarapé com informações geolocalizadas sobre serviços públicos que podem auxiliar migrantes. O conteúdo é dividido por temas como saúde, moradia, assistência social e contatos emergenciais, entre outros. A ferramenta funciona nos municípios do Rio de Janeiro (RJ) e Boa Vista (RR). Em breve abrangerá São Paulo. igarape.org.br/oka.

sesC Além de proporcionar acesso gratuito ou com baixo custo à cultura e ao lazer, o Serviço Social do Comércio tem um histórico de atividades de apoio a refugiados, como oficinas e aulas de português, além de debates frequentes sobre o tema. sescsp.org.br.

quementidades PúBliCas e não goVernaMentais oFereCeM diVersos tiPos de aPoio a Migrantes e reFugiados

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NidelvisNidelvis José Centeno é um jovem de 16 anos, indígena da etnia Warao, a maioria oriundo da região nordeste da Venezuela. É apaixonado pelo futebol brasileiro e, pelo seu corte de cabelo, já foi comparado pelos amigos ao ídolo Neymar. Além da língua warao, fala um pouco de espanhol e, assim, se comunica com quem passa pelo abrigo indígena de Pintolândia, onde mora com a família em uma tenda.

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por Yousef saifcrônica

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Nasci em Jeddah, na Arábia Sau-dita, em 1994, período em que meu pai trabalhava lá. Aos 3

anos, minha família se mudou para a Palestina, onde cresci. Tenho dupla nacionalidade: jorda-niana e palestina.

Estudei música na Jordânia por três anos, até que o curso foi interrompido na universidade. Voltei para a Palestina e trabalhei em restauran-tes por um ano e meio. Por causa dos conflitos com Israel, existe um controle da mídia, das artes e não havia espaço para o tipo de música que eu faço, que não é comercial. Toco buzuq, um instrumento cuja origem tem 3 mil anos.

Vivi próximo a um campo de refugiados na Pa-lestina. Perdi vários amigos, outros foram presos.

Diante Dos problemas, é preciso manter a tranquiliDaDe, não no sentiDo De se conformar, mas De lutar para melhorar. essa é uma obrigação que temos como seres humanos

diferençasconexãoem

N

O primeiro show em que me apresentei aqui foi com músicos africanos. Depois, toquei em bandas de música árabe. Até que, com dois meses no Brasil, conheci Carlinhos Antunes, no Sesc Consolação, que estava começando o projeto da Orquestra Mundana Refugi.

O convite veio por intermédio da minha ami-ga Ouila – cantora síria que vem a ser irmã da minha amiga que me ajudou a vir para o Brasil. Eu já tinha tocado com ela, que me apresentou ao Carlinhos. Ele me viu tocar e me chamou para integrar o projeto.

A orquestra reúne músicos de Cuba, Congo, Palestina, Síria, Tunísia e Irã. Os músicos da orquestra são profissionais extremamente com-petentes e experientes. Nunca me imaginei tocando ao lado deles, nem esse tipo de músi-ca, o que para mim é uma experiência muito rica. É um repertório que exige muita precisão na execução, muita atenção nos andamentos. Os demais músicos me ajudaram muito nesse aspecto. E o Carlinhos Antunes é um cara mui-to inteligente, uma pessoa muito importante para mim. Ele sabe conduzir essas várias ver-tentes musicais e me colocou em um outro patamar como músico.

A música e a arte têm esse poder de conectar as pessoas. Cada pessoa tem uma mensagem para passar para as outras. E a arte é uma for-ma de expressar essas mensagens. Eu, como um músico palestino, vindo de uma situação de guerra, busco passar a mensagem de que cada pessoa tem de lutar. Precisamos ser guer-reiros nesta vida.

Existem problemas políticos no Brasil e mui-tas pessoas em dificuldades financeiras. É preciso manter a tranquilidade, não no sen-tido de se conformar, mas de lutar para me-lhorar. Essa é uma obrigação que temos como seres humanos.

Em relação à Palestina, existem várias diferen-ças culturais, que eu procuro compreender e respeitar. Por ser estrangeiro, eu vivi alguns episódios de preconceito, mas não digo que sofri preconceito, porque preciso acreditar em mim e me manter fortalecido. Eu sigo na luta.

Mas, de maneira geral, as pessoas aqui são tranquilas e gentis. Encontrei muitas pessoas dispostas a ajudar e que me inspiram a ser mais calmo, porque sou palestino, sou acostumado a lutar, a ter o sangue quente. Mesmo sendo uma cidade frenética, com aspectos compli-cados, São Paulo ainda tem muitas pessoas gentis. Por causa dos shows, tenho viajado para outras cidades no Brasil, Ubatuba, Paraty, Curitiba, e encontrado pessoas muito amáveis. É uma energia boa.

Quando não estou envolvido com música, tra-balho como barman às sextas e sábados. Vim para cá para viver meu sonho, continuar meus estudos na música. Também planejo ir para a Espanha estudar flamenco, que é um tipo de música que eu amo. E, claro, um dia eu quero voltar à Palestina, porque lá é minha terra.

Yousef saif é músico, integrante da orquestra Mundana Refugi

Depois disso, decidi vir para o Brasil. Uma amiga sírio-palestina, que vive aqui desde 2015, me ajudou. Decidi vir para trabalhar e continuar meus estudos. Precisava ter o meu espaço.

Cheguei em São Paulo em maio de 2017. Para mim foi um choque, porque sempre vivi em cidades pequenas e cheguei nessa imensidão, com muitos prédios, várias culturas, diversas línguas, uau!

Vim com a intenção de viver como músico. Com menos de uma semana na cidade, assis-ti a um show e foi a primeira vez que tive contato com o samba. Não conhecia a história, o significado que tem. Procurei conhecer mais da música brasileira.

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Yousef

Sem espaço para desenvolver a sua arte na Palestina, e com amigos sendo mortos ou presos, o músico Yousef Saif decidiu vir para o Brasil em 2017. Conhecia uma amiga síria- -palestina que havia chegado dois anos antes. Desembarcou com o objetivo de exercer sua profissão e continuar estudando música. No segundo mês na cidade de São Paulo, conheceu Carlinhos Antunes, que estava montando o projeto que deu origem à Orquestra Mundana Refugi, com músicos vindos de locais de conflito no mundo. Yousef, que toca buzuq, instrumento milenar próximo ao alaúde, entrou em contato com várias vertentes musicais. “A música e a arte têm esse poder de conectar as pessoas”, diz. Quando não está tocando, trabalha como barman nos finais de semana.

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cultura além das fronteiras

para saber mais

Em meados da década de 1990, o regente Carlinhos Antunes notou que havia músicos de várias partes do mundo que viviam em São Paulo, mas não se reuniam para tocar. Decidiu empreender o projeto São Pau-lo de Todos os Povos, que jun-tou músicos estrangeiros e brasileiros para tocar por qua-tro dias. A partir desse encon-tro, Antunes viu a possibilida-de de formar um grupo. Em 2002 estava formada a Orques-tra Mundana, com um núcleo fixo e músicos convidados.

Em 2017, para comemorar 15 anos de atividade, agregou mú-sicos refugiados. Com a histo-riadora e assistente social Cleo Miranda, idealizou o Refugi, com oficinas de música e dan-ça e debates. A Orquestra Mun-dana passou de dez para 21 in-tegrantes, com músicos refugiados, imigrantes e bra-sileiros de várias regiões.

“Foi uma química tão boa que se constituiu a Orquestra Mun-dana Refugi. São músicos que vieram não só pela expertise

musical, mas pela causa e re-gião que representam, em si-tuações de conflito”, observa Antunes. “Todos aprenderam a cantar em diversas línguas, trazem proposições, estão compondo para a orquestra. O importante tem sido notar o processo de troca de culturas e escolas musicais. Há discor-dâncias, mas o que se percebe no dia a dia é que não se trata de uma questão de tolerância, mas de convivência e respeito, de enxergar o outro como ele é”, afirma o regente.

Zaatari – memórias do labirintoDir. Paschoal Samora (Brasil | Alemanha. 2018. 90 min.)O documentário foi rodado em um campo de refugiados na fronteira da Síria com a Jordânia. O assentamento brotou no deserto de Mafrak em 2012 e tornou-se, em quatro anos, a terceira cidade da Jordânia, com cerca de 80 mil pessoas. Sem saber quando (e se) poderão voltar aos seus locais de origem, seus habitantes dão indícios de como superar traumas e reconstruir os laços de convívio.

Guia de cinema e miGrações transnacionaisEditora UFRR (2018. Org. Denise Cogo e Rafael T. Teixeira, 292 p.)A obra traz uma seleção de filmes sobre migrações contemporâneas a partir de um recorte transnacional, sobretudo nos anos 1990. A compilação reúne 42 filmes comentados por pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Ao final, há outras 29 obras citadas. O livro pode ser baixado gratuitamente em http://ufrr.br/editora/index.php/ebook.

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na prateleira

A balada do cálamo, de Atiq Rahimi (franco-afegão)

Estação Liberdade, 2018, 200 p.

A memória do mar, de Khaled Hosseini (afegão)

Globo Livros, 2018, 64 p.

Estranhos à nossa porta, de Zygmunt Bauman (polonês)

Zahar, 2017, 120 p.

orquestra mundana refugi no programa Conversa com Bial

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