Desobediencia epistêmica.Mignolo

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 287-324, 2008 287 DESOBEDIÊNCIA EPISTÊMICA: A OPÇÃO DESCOLONIAL E O SIGNIFICADO DE IDENTIDADE EM POLÍTICA * Walter D. Mignolo (Duke University, Universidad Andina Simón Bolivar) Traduzido por: Ângela Lopes Norte RESUMO O argumento deste artigo se baseia em duas teses inter- relacionadas. A primeira tese, a identidade NA políti- ca (melhor do que política de identidade), é um movi- mento necessário de pensamento e ação no sentido de romper as grades da moderna teoria política (na Euro- pa desde Maquiavel), que é _ mesmo que não se perce- ba _ racista e patriarcal por negar o agenciamento po- lítico às pessoas classificadas como inferiores (em ter- mos de gênero, raça, sexualidade, etc). A segunda tese se fundamenta no fato de que essas pessoas, considera- das inferiores, tiveram negado o agenciamento epistêmico pela mesma razão. Assim, toda mudança de descolonização política (não-racistas, não heterossexualmente patriarcal) deve suscitar uma de- sobediência política e epistêmica. A desobediência ci- vil pregada por Mahatma Ghandi e Martin Luther King Jr. foram de fato grandes mudanças, porém, a desobe- diência civil sem desobediência epistêmica permane- cerá presa em jogos controlados pela teoria política e pela economia política eurocêntricas. As duas teses são os pilares da opção descolonial, que nos permite pen- sar em termos do diversificado espectro da esquerda marxista e, de outro lado, do diversificado espectro da esquerda descolonial. PALAVRAS-CHAVE: Opção descolonial; desobe- diência epistêmica; desobediência política. * Artigo originalmente publicado na Revista Gragoatá, n. 22, p. 11-41, 1º sem. 2007 e traduzido por Ângela Lopes Norte.

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    DESOBEDINCIA EPISTMICA:A OPO DESCOLONIAL E O SIGNIFICADO DE

    IDENTIDADE EM POLTICA*

    Walter D. Mignolo(Duke University, Universidad Andina Simn Bolivar)

    Traduzido por: ngela Lopes Norte

    RESUMO

    O argumento deste artigo se baseia em duas teses inter-relacionadas. A primeira tese, a identidade NA polti-ca (melhor do que poltica de identidade), um movi-mento necessrio de pensamento e ao no sentido deromper as grades da moderna teoria poltica (na Euro-pa desde Maquiavel), que _ mesmo que no se perce-ba _ racista e patriarcal por negar o agenciamento po-ltico s pessoas classificadas como inferiores (em ter-mos de gnero, raa, sexualidade, etc). A segunda tesese fundamenta no fato de que essas pessoas, considera-das inferiores, tiveram negado o agenciamentoepistmico pela mesma razo. Assim, toda mudanade descolonizao poltica (no-racistas, noheterossexualmente patriarcal) deve suscitar uma de-sobedincia poltica e epistmica. A desobedincia ci-vil pregada por Mahatma Ghandi e Martin Luther KingJr. foram de fato grandes mudanas, porm, a desobe-dincia civil sem desobedincia epistmica permane-cer presa em jogos controlados pela teoria poltica epela economia poltica eurocntricas. As duas teses soos pilares da opo descolonial, que nos permite pen-sar em termos do diversificado espectro da esquerdamarxista e, de outro lado, do diversificado espectro daesquerda descolonial.

    PALAVRAS-CHAVE: Opo descolonial; desobe-dincia epistmica; desobedincia poltica.

    * Artigo originalmente publicado na Revista Gragoat, n. 22, p. 11-41, 1 sem. 2007 etraduzido por ngela Lopes Norte.

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    Os leitores podem no estar familiarizados com um pargrafo fundamental por Anibal Quijano1 em seu artigo de quebra-de-basesColonialidad y Modernidad/Racionalidad (1990, 1992):La crtica del paradigma europeo de la racionalidad/modernidad es indispensable. Ms an, urgente. Pero es dudosoque el camino consista en la negacin simple de todas suscategorias; en la disolucin de la realidad en el discurso; en lapura negacin de la idea y de la perspectiva de totalidad en elconocimiento. Lejos de esto, es necesario desprenderse de lasvinculaciones de la racionalidad-modernidad con la colonialidad, en primertrmino, y en definitiva con todo poder no constituido en la decision librede gentes libres. Es la instrumentalizacin de la razn por el podercolonial, en primer lugar, lo que produjo paradigmasdistorsionados de conocimiento y malogr las promesasliberadoras de la modernidad. La alternativa en consecuenciaes clara: la destruccin de la colonialidad del poder mundial(Destaque nosso).

    O que Quijano est propondo aqui nada mais que desobedinciaepistmica. Sem tomar essa medida e iniciar esse movimento, no serpossvel o desencadeamento epistmico e, portanto, permaneceremos no do-mnio da oposio interna aos conceitos modernos e eurocentrados,enraizados nas categorias de conceitos gregos e latinos e nas experinci-as e subjetividades formadas dessas bases, tanto teolgicas quanto secu-lares. No seremos capazes de ultrapassar os limites do Marxismo, oslimites do Freudismo e Lacanismo, os limites do Foucauldianismo; ouos limites da Escola de Frankfurt, incluindo um pensador fundamenta-do na histria dos judeus e da lngua alem to esplndido quanto WalterBenjamin. Creio que ficar claro para leitores razoveis que afirmar aco-existncia do conceito descolonial no ser tomado comodeslegitimar as idias crticas europias ou as idias ps-coloniais fun-damentadas em Lacan, Foucault e Derrida. Tenho a impresso de queos intelectuais da ps-modernidade e os com tendncias marxistas to-mam como ofensa quando o autor mencionado acima, e outros seme-

    1 QUIJANO, Anibal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. En Los conquistados. 1492y la poblacin indgena de las Amrica. In: BONILLA, Heraclio (compilador). Quito: TercerMundo-Libri Mundi Editors, 1992. p. 447.

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    lhantes, no so venerados como os religiosos o fazem com os textossagrados. Eis exatamente por que estou argumentando aqui a favor da opo descolonialcomo desobedincia epistmica.

    I.

    No, no estou falando de poltica de identidade, mas de identi-dade em poltica. No h, pois, necessidade de argumentar que a polticade identidade se baseia na suposio de que as identidades so aspectosessenciais dos indivduos, que podem levar intolerncia, e de que naspolticas identitrias posies fundamentalistas so sempre um perigo.Uma vez que concordo parcialmente com tal viso de poltica de identi-dade da qual nada isento, j que h polticas identitrias baseadas nascondies de ser negro ou branco, mulher ou homem, em homossexuali-dade e tambm em heterossexualidade , que construo meu argumentona relevncia extrema da identidade em poltica. E a identidade em pol-tica relevante no somente porque a poltica de identidade permeia,como acabei de sugerir, todo o espectro das identidades sociais, mas por-que o controle da poltica de identidade reside, principalmente, na cons-truo de uma identidade que no se parece como tal, mas como a apa-rncia natural do mundo. Ou seja, ser branco, heterossexual e do sexomasculino so as principais caractersticas de uma poltica de identidadeque denota identidades tanto similares quanto opostas como essencialistase fundamentalistas. No entanto, a poltica identitria dominante no semanifesta como tal, mas atravs de conceitos universais abstratos comocincia, filosofia, Cristianismo, liberalismo, Marxismo e assim por diante.

    Irei argumentar que a identidade em poltica crucial para a op-o descolonial, uma vez que, sem a construo de teorias polticas e aorganizao de aes polticas fundamentadas em identidades que fo-ram alocadas (por exemplo, no havia ndios nos continentes america-nos at a chegada dos espanhis; e no havia negros at o comeo docomrcio massivo de escravos no Atlntico) por discursos imperiais(nas seis lnguas da modernidade europia ingls, francs e alemoaps o Iluminismo; e italiano, espanhol e portugus durante oRenascimento), pode no ser possvel desnaturalizar a construo racial eimperial da identidade no mundo moderno em uma economia capita-lista. As identidades construdas pelos discursos europeus modernos eram

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    raciais (isto , a matriz racial colonial) e patriarcais. Fausto Reinaga (oaymara intelectual e ativista) afirmou claramente nos anos 60: Da-nem-se, eu no sou um ndio, sou um aymara. Mas voc me fez umndio e como ndio lutarei pela libertao. A identidade em poltica,em suma, a nica maneira de pensar descolonialmente (o que significapensar politicamente em termos e projetos de descolonizao). Todasas outras formas de pensar (ou seja, que interferem com a organizaodo conhecimento e da compreenso) e de agir politicamente, ou seja,formas que no so descoloniais, significam permanecer na razo impe-rial; ou seja, dentro da poltica imperial de identidades.

    A opo descolonial epistmica, ou seja, ela se desvincula dosfundamentos genunos dos conceitos ocidentais e da acumulao de co-nhecimento. Por desvinculamento epistmico no quero dizer abando-no ou ignorncia do que j foi institucionalizado por todo o planeta(por exemplo, veja o que acontece agora nas universidades chinesas e nainstitucionalizao do conhecimento). Pretendo substituir a geo- e apoltica de Estado de conhecimento de seu fundamento na histriaimperial do Ocidente dos ltimos cinco sculos, pela geo-poltica e apoltica de Estado de pessoas, lnguas, religies, conceitos polticos eeconmicos, subjetividades, etc., que foram racializadas (ou seja, suabvia humanidade foi negada). Dessa maneira, por Ocidente eu noquero me referir geografia por si s, mas geopoltica do conheci-mento. Conseqentemente, a opo descolonial significa, entre outrascoisas, aprender a desaprender (como tem sido claramente articulado noprojeto de aprendizagem Amawtay Wasi, voltarei a isso), j que nossos(um vasto nmero de pessoas ao redor do planeta) crebros tinhamsido programados pela razo imperial/ colonial. Assim, por conheci-mento ocidental e razo imperial/ colonial compreendo o conhecimentoque foi construdo nos fundamentos das lnguas grega e latina e das seislnguas imperiais europias (tambm chamadas de vernculas) e no orabe, o mandarim, o aymara ou bengali, por exemplo. Voc pode ar-gumentar que razo e racionalidade ocidentais no so totalmente im-periais, mas tambm crticas como Las Casas, Marx, Freud, Nietzche,etc. Certamente, mas crtica dentro das regras dos jogos impostos porrazes imperiais nos seus fundamentos categoriais gregos e latinos. Hmuitas opes alm da bolha do Show de Truman. E dessas opes queemergiu o pensamento descolonial. Pensamento descolonial significa

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    tambm o fazer descolonial, j que a distino moderna entre teoria eprtica no se aplica quando voc entra no campo do pensamento dafronteira e nos projetos descoloniais; quando voc entra no campo doquichua e quechua, aymara e tojolabal, rabe e bengali, etc. categoriasde pensamento confrontadas, claro, com a expanso implacvel dos fun-damentos do conhecimento do Ocidente (ou seja latim, grego, etc.),digamos, epistemologia. Uma das realizaes da razo imperial foi a deafirmar-se como uma identidade superior ao construir construtos infe-riores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gnero), e de expeli-lospara fora da esfera normativa do real. Concordo que hoje no h algofora do sistema; mas h muitas exterioridades, quer dizer, o exterior construdoa partir do interior para limpar e manter seu espao imperial. da exterioridade,das exterioridades pluriversais que circundam a modernidade imperialocidental (quer dizer, grego, latino, etc.), que as opes descoloniais sereposicionaram e emergiram com fora. Os eventos no Equador nosltimos 10 anos, assim como os da Bolvia que culminaram na eleiode Evo Morales como presidente da Bolvia, so alguns dos sinais maisvisveis da atualidade de opo descolonial, embora as foras descoloniaise o pensamento descolonial existam nos Andes e no sul do Mxico porquinhentos anos.

    Na Amrica do Sul2, na Amrica Central e no Caribe, o pensamentodescolonial vive nas mentes e corpos de indgenas bem como nas de afro-descendentes. As memrias gravadas em seus corpos por geraes e amarginalizao scio-poltica a qual foram sujeitos por instituies imperi-ais diretas, bem como por instituies republicanas controladas pela popu-lao crioula dos descendentes europeus, alimentaram uma mudana nageo- e na poltica de Estado de conhecimento. O pensamento descolonialcastanho construdo nos Palenques nos Andes e nos quilombos no Brasil,por exemplo, complementou o pensamento indgena descolonial traba-lhando como respostas imediatas invaso progressiva das naes imperiais

    2 Uso Amrica do Sul em um sentido bem geral que inclui Amrica Central e o Caribe,sul do Rio Grande em um sentido nico; e o Caribe que, apesar de ser ingls oufrancs, tem mais em comum com o sul do que com o norte, ou seja, Amrica do Norte(EUA e Canad). Resumidamente, a histria imperial/colonial o que est em ques-to mais que livros didticos de geografia europeus ou norte-americanos.

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    europias (Espanha, Portugal, Inglaterra, Frana, Holanda).3 As opesdescoloniais e o pensamento descolonial tm uma genealogia de pensamen-to que no fundamentada no grego e no latim, mas no quechua e noaymara, nos nahuatls e tojolabal, nas lnguas dos povos africanos escraviza-dos que foram agrupadas na lngua imperial da regio (cfr. espanhol, portu-gus, francs, ingls, holands), e que reemergiram no pensamento e nofazer descolonial verdadeiro: Candombls, Santera, Vud, Rastafarianismo,Capoeira, etc. Aps o fim do sculo XVIII, as opes descoloniais se esten-deram para vrios locais na sia (do Sul, do Leste e Central) at a Inglaterrae a Frana, principalmente, e assumiram a liderana da Espanha e de Portu-gal dos sculos XVI ao XVIII.

    Mas, voltemos aos Andes e Amrica do Sul, pausando e pensandoa respeito da opo descolonial (ou opes descoloniais, se preferirem).H uma srie de palavras-chave explcitas e implcitas nesse meu artigo(desenvolvimento, interculturalidade, imaginrio da nao, descolonial).Essas palavras-chave no esto no mesmo universo do discurso. Ou me-lhor, ainda no, no mesmo campo epistemolgico. Na verdade, temosdois grupos de palavras-chave aqui: desenvolvimento, diferena e nao einterculturalidade e descolonialidade. O primeiro grupo pertence ao ima-

    3 Waman Puma de Ayala, Nueva cornica y buen govierno (1516) [ Publicado por JohnMurra e Rolena Adorno, Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1982] uma dasprimeiras obras indgenas polticas descoloniais que permaneceu em formato ma-nuscrito at 1936. Quobna Ottobah Cugoano, que foi transportado da Jamaica paraa Inglaterra l pela segunda metade do sculo XVII, publicou um outro tratadopoltico descolonial em 1786, em Londres: Thoughs and sentiments of the evil of slavery(publicado com uma introduo e notas de Vicent Carreta. London: Penguin Books,1999). Mais recentemente, a erudita e ativista Maori, Linda Tuhiwai Smith, publi-cou uma proposta descolonial de quebra de fundamentos: Decolonizing methodologies.Research and indigenous peoples (London and New York: Zed Books Ltd., 1999). Veja ascrticas extensivas de trs livros publicadas por Heather Howard-Bobiwash; porJohn Ortley e por Monica Buttler et al., in The American Indian Quarterly, http://muse.jhu.edu/journals/american_indian_quarterly/toc/aiq29.1.html (29/1-2, 2005).A obra pioneira e de quebra de fundamentos de Fausto Reinaga est sendo revistahoje na Bolivia; Frantz Fanon (Les damns de la terre. Paris: Maspro, 1961) est sendorelido, alm do mercado ps-colonial, pelos intelectuais e ativistas descoloniais. NosEUA, os americanos nativos esto reavaliando o trabalho pioneiro do intelectual eativista Vine Deloria, Jr., erudito legal de Sioux. Veja-se, por exemplo, MIHESUAH,Devon Abbot. Indigenous American Women: decolonization, empowerment andactivism.Tucson: Bison Books, 2003.

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    ginrio da modernidade ocidental (nao, desenvolvimento) e ps-modernidade (diferena), enquanto o segundo pertence ao imaginriodescolonial. Deixem-me explicar. Desenvolvimento foi como sabe-mos na Amrica do Sul e no Caribe, a palavra-chave da terceira ondados planos globais do aps 2 Guerra Mundial, quando os EUA toma-ram a liderana que era da Inglaterra e da Frana, e substituram a missode civilizao dessas pela sua prpria verso de modernizao e desenvol-vimento. Ficou aparente, l pelo fim dos anos sessenta e incio dos seten-ta com a crise do Estado do Bem-estar (Welfare State) , que desenvolvi-mento era um outro termo na retrica da modernidade para esconder areorganizao da lgica da colonialidade: as novas formas de controle eexplorao do setor do mundo rotulado como Terceiro Mundo e pasessubdesenvolvidos. A matriz racial de poder um mecanismo pelo qualno somente as pessoas, mas as lnguas e as religies, conhecimentos eregies do planeta so racializados. Ser subdesenvolvido no como serum indgena das Amricas, Austrlia e Nova Zelndia? Ou um negro dafrica? Ou muulmanos do mundo rabe? Ser das colnias do SegundoMundo (ex., sia Central e Cucaso)4no era, de uma certa forma, ser toinvisvel como as colnias do imprio de segunda classe, uma racializaoescondida sob a expresso Segundo Mundo?

    A retrica da modernidade (da misso crist desde o sculo XVI, misso secular de Civilizao, para desenvolvimento e modernizao apsa 2 Guerra Mundial) obstruiu sob sua retrica triunfante de salvao eboa vida para todos a perpetuao da lgica da colonialidade, ou seja,da apropriao massiva da terra (e hoje dos recursos naturais), a massivaexplorao do trabalho (da escravido aberta do sculo dezesseis at osculo dezoito, para a escravido disfarada at o sculo vinte e um) e adispensabilidade de vidas humanas desde a matana massiva de pessoasnos domnios Inca e Asteca at as mais de vinte milhes de pessoas de SoPetersburgo Ucrnia durante a 2 Guerra Mundial, mortos na chamada

    4 Veja-se TLOSTANOVA, Madina. Imperial discourse and post-utopian peripheries:suspended indigenous epistemologies in the Soviet non-European (ex) colonies. In:Desarollo e interculturalidad, imaginario y diferencia: la nacin en el mundo andino, 14 Conferen-cia Internacional de LAcademie de la Latinit, Quito, Ecuador, (Textos de referncia,2006. p. 296-332).

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    Fronteira do Leste.5 Infelizmente, nem todos os assassinatos massivosforam registrados com o mesmo valor e a mesma visibilidade. Os critri-os no mencionados para o valor das vidas humanas so um bvio sinal(de uma interpretao descolonial) de poltica escondida de identidadeimperial: quer dizer, o valor de vidas humanas a qual pertence a vida doenunciador, se torna uma vara de medida para avaliar outras vidas huma-nas que no tm opo intelectual e poder institucional para contar ahistria e classificar os eventos de acordo com uma classificao de vidashumanas: ou seja, de acordo com uma classificao racista.6

    verdade, como mencionei antes e como todos sabem, que na mes-ma civilizao de morte e terror, vozes crticas se levantaram para mapearas brutalidades de uma civilizao construda sobre a retrica da salvaoe do bem-estar para todos. Eric Hobsbawm7 escreveu um fragmento po-deroso intitulado Barbarism: a users guide [Barbarismo: Um guia dousurio], no qual reconheceu, descreveu e condenou o registro brbaroda civilizao ocidental moderna (como um bom intelectual britnico, ohorizonte de Hobsbawm foi o Iluminismo). E tambm com humor in-gls, esclareceu que seu artigo no pretendia ser um guia para a prtica dobarbarismo mas, ao invs, um guia dos momentos de barbarismo da civi-lizao ocidental (ex., modernidade e capitalismo). Ele enfatizou o

    5 A Fronteira do Leste foi incomparvel por sua alta intensidade, ferocidade e brutali-dade. A luta envolveu milhes de tropas alemes e soviticas ao longo de uma extensalinha de frente. Foi de longe o mais mortal e singular teatro de guerra da 2 GuerraMundial, com mais de 5 milhes de mortes nas Foras do Eixo, mortes dos militaressoviticos foram cerca de 10.6 milhes (dos quais 2.6 milhes de soviticos morreramem cativeiro alemo, com cerca de 14 a 17 milhes de mortes de civis). Se for acrescidoa isso os seis milhes de judeus mortos no regime de Hitler (o Holocausto Judeu); e,ao Iraque e Lbano, onde o Estado de Israel decreta populao do Lbano o queaconteceu ao seus prprios ancestrais judeus na Europa Central e Ocidental h meiosculo atrs; e, assim tambm, o valor das mercadorias com base no qual os escraviza-dos africanos foram sujeitos ao trfico atual de mulheres e crianas bem como dergos humanos, a retrica da modernidade continuou forte.

    6 The maquila, a comercializao de rgos e corpos humanos (por exemplo, mulheresjovens nas regies da sia, da sia Central, Rssia) capturou e vendeu muito maisafricanos escravizados nos sculos XVI e XVII, so todos exemplos da mesma histriado barbarismo ocidental escondido sob os esplendores retricos da civilizao ociden-tal. O mundo plano, como comemora Thomas Friedman (The world is flat. A briefhistory of the twentieth first century. New York: Farrar, Strauss and Giroux, 2006),mas tambm muito, muito espesso!

    7 HOBSBAWM, Eric. Barbarism: a users guide. New Left Review, I/206, 1994.

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    Holocausto Judeu, mas se esqueceu dos africanos escravizados antes doIluminismo da mesma forma que das mortes das vidas dos no-ocidentais,como dos 25 milhes de Escravos que morreram na fronteira leste daEuropa, como mencionei antes, de So Petersburgo Belarussia e Ucrnia.

    II.

    Mas voltemos ao conceito de desenvolvimento durante a GuerraFria que foi o nome do projeto global dos EUA no seu estgio inauguralde dominao global. Na Amrica do Sul, a poltica de desenvolvimentofoi denunciada pela prpria CEPAL [Comisin Econmica para Amri-ca Latina] (por seu prprio presidente, o economista argentino RalPrebisch), e pelos outros socilogos e economistas com tendncia de es-querda que levaram adiante a bem conhecida teoria da dependncia.Desenvolvimento tambm foi criticado na Amrica do Sul pela funda-o da Teologia da Libertao e da Filosofia da Libertao.

    Se durante a Guerra Fria o conceito liberal de desenvolvimentocorporificou a reorganizao da lgica da colonialidade como foi lideradapelos EUA, e encontrou a Teoria da Dependncia e a Teologia/Filosofiada Libertao como seu oponente, aps o fim da Guerra Fria, novos pro-jetos desenvolvimentistas (nesse momento em termos de Acordo de Li-vre Comrcio [FTA] ou outro tipo diferente) encontraram uma resistn-cia violenta pelos projetos polticos e econmicos emanados das NaesIndgenas, principalmente na regio andina da Amrica do Sul. Global-mente, Acordos de Livre Comrcio tiveram a oposio de vrios movi-mentos sociais sob a bandeira do sim vida como resposta aos projetosde morte incorporados nos FTA.

    Hoje, a opo descolonial opera pelo mundo, alm das crticas queavanam diariamente, na civilizao capitalista e neoliberal. Em Israel enos EUA, assim como na Europa, a oposio invaso do Iraque e doLbano vem crescendo. Crticas internas (liberais, marxistas, judeus e cris-tos) so necessrias, mas pouco suficientes. Opes descoloniais estomostrando que o caminho para o futuro no pode ser construdo dasrunas e memrias da civilizao ocidental e de seus aliados internos. Umacivilizao que comemora e preza a vida ao invs de tornar certas vidasdispensveis para acumular riqueza e acumular morte, dificilmente podeser construda a partir das runas da civilizao ocidental, mesmo com

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    suas boas promessas como Hobsbawn gostaria que tivesse sido. Recen-temente, por exemplo, Via Campesina, o Frum Mundial de Pescadores,Amigos Internacionais da Terra, e outros movimentos sociais, vm seimpondo como lderes de um mundo no-capitalista, ao forar o colapsode Doha Round. Pascal Lamy, o secretrio da OMC, oficialmente anun-ciando a suspenso das negociaes de Doha Round. Projetos de No-desenvolvimento, como os projetos para a reproduo da vida e no paraa reproduo da morte (como Via Campesina, o Frum Mundial de Pes-cadores, Amigos Internacionais da Terra, as Naes de Indgenas do Equa-dor, etc.) esto ganhando terreno.

    Uma nota de advertncia est na ordem. Quando falo aqui sobrereproduo da vida no estou aderindo ao vitalismo de Henry Brgsone a sua re-inscrio nos debates contemporneos. O vitalismo ou a filoso-fia de vida de Deleuzeor, por exemplo, tem suas razes na obra de HenriBergson8 (1911) e sua concepo de elan vital (fora vital) e moldadana filosofia da evoluo e do desenvolvimento do organismo. Fora vi-tal foi um conceito, um conceito importante na obra de Adolf Hitler,Mein Kampf.9 Se fssemos apenas pensar nos limites da razo moderna eimperial, ento toda referncia reproduo da vida seria interpretada natrajetria de Bergson a Hitler. Felizmente, a opo descolonial concede concepo da reproduo da vida que vem de damns, na terminologia deFrantz Fanon, ou seja, da perspectiva da maioria das pessoas do planetacujas vidas foram declaradas dispensveis, cuja dignidade foi humilhada,cujos corpos foram usados como fora de trabalho: reproduo de vidaaqui um conceito que emerge dos afros escravizados e dos indgenas naformao de uma economia capitalista, e que se estende reproduo damorte atravs da expanso imperial do ocidente e do crescimento da eco-nomia capitalista. Essa a opo descolonial que alimenta o pensamentodescolonial ao imaginar um mundo no qual muitos mundos podem co-existir.

    Hoje, uma forma de pensamento descolonial que no confesse sujei-o s categorias gregas de pensamento j uma opo existente: re-ins-

    8 BERGSON, Henri. Creative evolution, traduzido por Arthur Mitchell, Ph.D. New York:Henry Holt and Company, 1911.

    9 HITLER, Adolf. Mein Kampf. Veja-se, por exemplo, a edio na web, http://www.crusader.net/texts/mk/; um site chamado The Occidental Pan-Aryan Crusade, ondeh uma lista de outros textos brancos nacionalistas.

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    crever os legados dos ayllu nos Andes e dos altepetl no Mxico e Guatemala. possvel imaginar que movimentos similares descoloniais estejam acon-tecendo no mundo islmico, na ndia, na frica do Norte e na fricasubsariana. Lnguas marginalizadas e denegridas, religies e formas depensar esto sendo re-inscritas em confrontao com as categorias de pen-samento do ocidente. Pensamento de fronteira ou epistmologia de fron-teira uma das conseqncias e a sada para evitar tanto o fundamentalismoocidental quanto o no-ocidental.10

    A reproduo da vida de que estou falando (no sentido que a univer-sidade Amawtay Wasi compreende buen vivir ao invs de professionalexcellence, o mantra da universidade moderna e corporativa dos EUA eEuropa, mas tambm em outras partes do mundo graas dimenso im-perial da aprendizagem nivelando o mundo, como comemoraria ThomasFriedman) vem, ento, das longas memrias dos ayllu e altepetl, sem os quaisseria difcil compreender a fora das naes indgenas do Equador, a elei-o de Evo Morales na Bolivia e os zapatistas ascendendo no sul do Mxi-co. a re-articulao das naes indgenas e a recesso dos mono-tpicos(ou seja, classificao tnica mono-lingstica e religiosa da elite crioula-mestia da Amrica do Sul, equivalente elite nacional branca da Europaocidental e dos EUA) forando uma transformao radical da equao deuma Nao - um Estado. O Estado pluri-nacional que j est bem avana-do na Bolvia e no Equador uma das conseqncias da identidade em polticafraturando a teoria poltica na qual o Estado moderno e mono-tpico foi fun-dado e perpetuado sob a iluso de que era um estado neutro, objetivo edemocrtico separado da identidade em poltica. Brancura e teoria pol-tica, em outras palavras, so transparentes, neutras e objetivas, enquantoque Cores e teoria poltica so essencialistas e fundamentalistas. A opodescolonial desqualifica essa interpretao. Ao ligar a descolonialidade coma identidade em poltica, a opo descolonial revela a identidade escondi-da sob a pretenso de teorias democrticas universais ao mesmo tempoque constri identidades racializadas que foram erigidas pela hegemoniadas categorias de pensamento, histrias e experincias do ocidente (maisuma vez, fundamentos gregos e latinos de razo moderna/ imperial).

    10 A respeito de pensamento de fronteira ou epistemologia de fronteira (tambm Gnose),veja-se MIGNOLO, Walter D.; TLOSTANOVA, Madina V. Thinking from theborders; shifting to the Geo- and Body-Politics of knowledge. European Journal of SocialTheory, v. 9, n. 2, p. 205-222, 2006.

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    Desta forma, se no mundo moderno/colonial, a filosofia fez parteda formao e da transformao da histria europia desde oRenascimento europeu por sua populao indgena descrita como oscristos ocidentais, tal conceito de filosofia (e teologia) foi a arma quemutilou e silenciou raciocnios similares da frica e da populao ind-gena do Novo Mundo. Por filosofia aqui eu entendo no apenas a for-mao disciplinar e normativa de uma dada prtica, mas a cosmologiaque a reala. O que os pensadores gregos chamaram de filosofia (amor sabedoria) e os pensadores aymara, de tlamachilia (pensar bem) so ex-presses locais e particulares de uma tendncia comum e uma energiaem seres humanos. O fato de que a filosofia se tornou global nosignifica que tambm uni-versal. Simplesmente significa que o con-ceito grego de filosofia foi assimilado pela intelligentsia ligada expansoimperial/colonial, aos fundamentos do capitalismo e da modernidadeocidental.

    Trago esses exemplos porque estou interessado em trs (entre ou-tros) tipos de projetos que confrontam a globalizao neoliberal e, noentanto, ao mesmo tempo trabalham em direo a uma organizao s-cio-poltica, em escala global, baseada na desfetichizao do poder polti-co e em uma organizao econmica que visa reproduo da vida aoinvs da reproduo da morte e visa reciprocidade e distribuio justada riqueza entre muitos, e no acumulao de riqueza entre poucos. esta a ltima meta econmica que precisa de explorao e dominao,corrupo e trabalho voltado para interesses prprios. Uma economiaorientada em direo reproduo da vida e ao bem- estar de muitosincorpora uma poltica de representao na qual o poder est na comunida-de e no no Estado ou em qualquer outra instituio administrativa equi-valente.

    Uma verso simplificada de quatrocentos a quinhentos anos de his-tria da Amrica do Sul e do Caribe (dependendo da localizao e dascomunidades, indgenas ou afro) teria esses elementos em comum:

    a) uma organizao interna das comunidades indgenas e afro (intra-cultural) como uma matria de sobrevivncia confrontada com a in-vaso de europeus (projetos imperiais espanhis, portugueses, ho-landeses, franceses e ingleses), em diferentes locais das Amricas edo Caribe.

  • Cadernos de Letras da UFF Dossi: Literatura, lngua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008 299

    b) Uma organizao externa para lutar contra as infiltraes imperiais/coloniais nas suas cidades, na organizao econmica e social, nasculturas, nas terras e nas organizao econmica. Primeiro, em con-fronto com autoridades imperiais/ coloniais; em segundo plano, apsa independncia do estado-nao controlado pelos Creoles de des-cendncia europia e mestios com sonhos europeus; finalmente, emais recentemente, em confronto com as corporaes transnacionaisque dilapidam as florestas, as praias e as reas ricas em recursos natu-rais; e tambm em confronto com os estados-nacionais que defen-dem o Livre Comrcio de acordo com os desgnios de Washington.

    A conseqncia de trezentos anos (aproximadamente) de regras colo-niais diretas e de duzentos anos (aproximadamente) de colonialismo inter-no (ou seja, da elite crioula/ mestia da ps-independncia) foi o crescimen-to da fora das naes (indgenas e afros) dentro da nao onde a mestiagemse tornou a ideologia da homogeneidade nacional, um oximoro que retrataa realidade dos estados coloniais da Amrica do Sul e do Caribe. Nos EUA(como na Inglaterra, Alemanha ou Frana), a mestiagem no era um proble-ma at o recente fluxo de imigraes. Por sculos, a Europa moderna/ im-perial viveu sob uma ideologia nacional sustentada por uma populao bran-ca e crist (ou catlica ou protestante). As naes indgenas dentro da naocrioula/mestia esto em risco hoje nos Andes, no sul do Mxico e naGuatemala. De fato, o que est em recesso a classificao tnica sobre aqual os estados-nao foram imaginados, desde o incio do sculo XIX atrecentemente. O que est em recesso a etnia latina e o que est acelerandoe aumentando o espectro variado dos projetos indgenas e afros, em suasdimenses polticas e epistmicas.

    O que est em risco, portanto, em identidade em poltica e epistemologia?No estamos apenas encarando demandas de comunidades indgenas eafros ao estado nacional e ao grupo tnico latino que controla a poltica ea economia. Estamos encarando uma mudana radical na qual indgenas ecomunidades afro deixam claro dois princpios bsicos:

    (a) Os direitos epistmicos das comunidades afro e indgenas sobreos quais os projetos polticos e econmicos descoloniais esto sendoconstrudos e um tpico descolonial afirmado como diferena emsimilaridade humana (por exemplo, porque somos todos iguais te-mos o direito diferenas, como reivindicaram os Zapatistas ) e

  • 300Mignolo, Walter D.; Traduzido por: Norte, ngela Lopes

    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    (b) sem o controle dos fundamentos epistmicos da epistemologiaafro e indgena, ou seja, de teoria poltica e economia poltica, qual-quer reivindicao do Estado marxista ou liberal se limitar a oferecerliberdade e impedir que indgenas e afros exeram suas liberdades.

    O pensamento descolonial a estrado para a pluri-versalidade comoum projeto universal. O Estado pluri-nacional que os indgenas e os afrosreivindicam fica nos Andes, uma manifestao particular do maior hori-zonte de pluri-versalidade e o colapso de qualquer universal abstrato apre-sentado como bom para a humanidade inteira, sua prpria similaridade.Isto significa que a defesa da similaridade humana sobre as diferenas hu-manas sempre uma reivindicao feita pela posio privilegiada da pol-tica de identidade no poder.

    III.

    Fizeram-me perguntas do tipo: Oh, ento voc quer dizer que paratrocar a geo-grafia da razo ou trocar de poltica do ego para geo-poltica do conhecimento voc tem que ser um ndio e que s ndiospodem faz-lo? Assim, e eu, que no sou ndio, mas branco, o que possofazer? Estou sendo deixado para fora do jogo?. Da ltima vez que mefizeram tais perguntas, no sem fria, foi um jovem espanhol marxista,durante um dos seminrios de vero, organizado pela Universidad Complutense.Este seminrio era a respeito do Pensamento descolonial e Nina Pacarifoi uma das palestrantes e participantes durante o seminrio de uma se-mana de durao. A pergunta trouxe para o primeiro plano a cumplici-dade entre a geopoltica e a poltica de Estado de conhecimento disfaradade identidade disciplinar. Um dos argumentos que avanou durante osdebates, naquela longa semana de seminrio, foi que, no final, o assuntosobre o pensamento descolonial no pode ser levado a srio; que os argu-mentos descoloniais no eram argumentos baseados nas cincias sociais(e no estou fazendo graa aqui). Um outro socilogo da platia pergun-tou, com a certeza que ser um socilogo lhe dava, Voc podia definirpensamento descolonial? Voc nos deu uma histria, usou-o metaforica-mente, mas voc nunca nos deu uma definio. Eles estavam pedindoobedincia epistmica. No lhes ofereci, claro, uma definio porque isso teriasignificado jogar de acordo com as regras que ele estava me pedindo parajogar que era identidade disciplinar. E ele se recusava a jogar com as

  • Cadernos de Letras da UFF Dossi: Literatura, lngua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008 301

    regras que eu estava jogando, que era a racializao dos corpos e das loca-lidades geo-histricas. Ou seja, eu no estava jogando o jogo da identida-de disciplinar, mas o da identificao geo- e do Estado como foi forma-da e moldada, no mundo moderno/ colonial, pela retrica da modernidadejustificando a economia capitalista. Em outras palavras, eu estava ofere-cendo aos marxistas e socilogos interlocutores a possibilidade de consi-derar a opo descolonial; e eles recusaram, claro, me convidando parajogar de acordo com as normas disciplinares das cincias sociais e as con-vices marxistas. No era fcil para meus interlocutores ver que elesestavam jogando um jogo de poltica de identidade e que fingiam, ouacreditavam, que suas posies ocupavam uma localizao alm da iden-tidade; alm das geo-configuraes polticas e de Estado. Eu estava, emoutras palavras, me desconectando do eurocentrismo no sentido particu-lar que o conceito de eurocentrismo tinha para ns, no projetomodernidade/colonialidade. Eurocentrismo no d nome a um local ge-ogrfico, mas hegemonia de uma forma de pensar fundamentada nogrego e no latim e nas seis lnguas europias e imperiais da modernidade;ou seja, modernidade/ colonialidade.

    E como se desconectar do eurocentrismo se voc , como eu, umargentino com descendncia europia e no um ndio da regio andinaou um equatoriano, algum de Barbados ou da Martinica de descendn-cia africana? Certamente, voc pode ter descendncia africana e abraar atradio dos pensadores brancos europeus, judeus ou no; ou voc podeser um branco da Frana ou dos EUA e ter abraado a tradio dos pen-sadores radicais africanos ou afro-caribenhos, etc. Estou desunindo a for-mao e a transmisso de regies epistmicas, ligadas a corpos e regiesdo mundo moderno/colonial e a seus movimentos atravs do tempo e doespao. Eles se movem mas no desaparecem: v dizer a um pensadorps-moderno ou a um filsofo europeu conservador que no h tal con-cepo como a filosofia europia ou histria europia de idias, e vocpode ter a confirmao de que entidades ficcionais tambm existem; eque os pensadores europeus j esclareceram que h uma co-relao entrecertas idias, certas regies do mundo e certos tipos de pessoas. Eis por-que os intelectuais indgenas e afros tm dificuldades em transformar suasidias em idias competitivas como, vamos dizer, as de Martin Heideggerou Samuel Huntington, para dar exemplos diferentes.

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    Voltemos agora pergunta inicial do pargrafo anterior e tomemoso exemplo do filsofo argentino de descendncia alem, Gunther RodolfoKusch (1922-1979), cuja obra foi escrita e publicada entre 1953 e 1980.Entre muitas das contribuies originais de Kusch, e seu isolamento prin-cipalmente em funo de sua originalidade, est o conceito de conscin-cia mestia que ele introduziu no final dos anos cinqenta. Conscinciamestia nos anos cinqenta, na Argentina e na caneta de um filsofo dedescendncia alem era um conceito que ainda no estava pronto para servisto.11 Aqui temos, na obra de Rodolfo Kusch, um esforo sustentado de vinte ecinco anos de desobedincia epistmica. Cumpriu com suas obrigaes, e foi isolado.

    A conscincia mestia para Kusch no tinha nada a ver com biolo-gia e mistura de sangue, o que era a compreenso cannica da mestiagem:sangue misturado de espanhol e portugus (geralmente o pai) e ndio (ge-ralmente a me). Devemos tambm lembrar que espanhis e portuguesesmisturados com africanos eram chamados de mulatos. Embora Kuschse refira somente incidentalmente aos negros da Amrica, a conscinciamestia um conceito aberto o suficiente para incorporar tambm aconscincia mulata. O que ento a conscincia mestia para Kusch?

    Tem sido uma preocupao dos pensadores e filsofos de descen-dncia europia, particularmente na Argentina, l sendo deslocado de sereuropeus; ou seja, europeus, mas no o bastante. A distino em castelhanoentre ser e estar, adquiriu uma dimenso filosfica que explicava asfraturas e os sentimentos existenciais de europeus que se achavam deslo-cados nas Amricas.

    Importante: Kusch no fala de Amrica Latina, mas de Amrica.Para um filsofo da Amrica, uma conscincia mestia, era difcil pensarem Ser ou Existncia, ou Histria ou Economia daHumanidade...etc., etc. Somente aquelas entidades universais poderiam/ podem serconcebidas, exploradas, desdobradas, conceitualizadas da perspectiva deuma conscincia pura, de uma conscincia onde no h diferena entre

    11 A obra de Gunther Rodolfo Kusch se estende de 1952 (La seduccin de la barbarie) a 78(Geocultural del hombre Americano,1976, e Esbozo de una antropologa Filosfica Americana, 1978).Nesse intervalo ele publicou seus trs maiores livros: Amrica profunda (1963), Pensamientoindgena y pensamiento popular en Amrica (1973). O que se segue um resumo das idias queocorrem na obra de Kusch, aqui e assim tambm como em artigos e entrevistas que eledeu na Argentina e na Bolvia, principalmente.

  • Cadernos de Letras da UFF Dossi: Literatura, lngua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008 303

    ser e estar; para uma conscincia na qual algum es donde est e est donde es.Quer dizer, para algum que pode sentir/ estar onde ela est e estar ondeela deveria estar. Se voc no est, voc no se sente como uma conscin-cia pura, voc pode sentir que no pertence esfera do Ser, da Histria,da Economia, da Poltica, etc. Ao contrrio, voc sente que pertence categoria de conscincia pura que voc pode at no saber e no fazertais perguntas, porque simplesmente voc sente que est e, naturalmente,todos os outros devem sentir o mesmo e se no sentem, bem, no culpasua; deve haver algo errado com eles. No entanto, a categoria de consci-ncia pura s concebvel da perspectiva da conscincia mestia, que uma forma de substituir a geografia da razo e de revelar a regionalidadeda conscincia sem qualificao porque se assume que uni-versal.

    Assim, a conscincia mestia para um filsofo argentino de descen-dncia alem, bem versado em Kant, Hegel, Niestzche, Husserl,Heidegger, no uma questo de sangue, mas uma questo de sentir afratura entre ser e estar; uma sensao de estar fora do lugar, de sentirquando ir teorizar durante os anos cinqenta como a fora natural daAmrica e, nos anos sessenta e setenta, se mover para um entendimentoda filosofia aymara ou do pensamento aymara. Mas tambm ligandoambos, a correlao entre espao e a densidade da vida orgnica (pampas,montanhas, selvas, florestas, rios, etc.) com cidades espalhadas e baixadensidade demogrfica. Em outras palavras, Grcia e Roma (ou Jerusa-lm para Levinas) esto longe, muito longe, para a conscincia mestia daAmrica. Ao contrrio, a vida orgnica exuberante (alguns diriam natu-reza) e a densa memria das civilizaes e cosmologias indgenas (aoinvs de gregas, romanas ou hebraicas) e lnguas (aymara e quechua, aoinvs de grego, latim e hebraico) ofereceram na Amrica o lugar e a me-mria de quem se (ser) e onde se est (estar). Assim, conscincia mestia um conceito filosfico e no biolgico. Um conceito filosfico que impensvel na histria da filosofia europia, de Tales de Mileto a Heideggerda Floresta Negra em Messkirch.

    A conscincia mestia um conceito filosfico aberto ao pluri-versal,como a conscincia dupla em Du Bois, a conscincia mestia em Anzaldua;a conscincia mestia/mulata do pensador, escritor e mdico colombia-no, Manuel Zapata Olivella. Os conceitos na histria da filosofia euro-pia so mono-tpicos e uni-versais, no pluri-tpicos e pluri-versais. E

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    por que os conceitos que so elaborados nos projetos descoloniais e emprocesso de pensamento descolonial so pluritpicos e pluri-versais? Por-que a ferida colonial foi diversificada, empregando linguagem de WallStreet, por todo o mundo: ndios da Amrica, Austrlia e Nova Zelndia;os negros da frica subsariana e das Amricas; rabes e berbers da frica doNorte e no Oriente Mdio; Indianos na ps-separao da ndia e at chi-neses, japoneses e russos e suas colnias tiveram que lidar, de uma formaou de outra, com a cosmoviso mono-tpica da civilizao ocidentalencapsulada no grego e no latim, nas seis lnguas modernas imperiais daEuropa, e na subjetividade correspondente registrada na e atravs da ex-presso artstica, na cultura popular, na comunicao de massa, etc. Eisporque a conscincia mestia diversa e diversificada. E tambm eis por-que qualquer projeto descolonial e qualquer opo descolonial precisoulidar com a epistemologia de fronteira e o pensamento de fronteira e du-plas tradues como uma linha metodolgica (peo desculpas pelopleonasmo e pela expresso redundante caminho metodolgico.

    A mudana da conscincia mestia vivida e experimentada na cons-cincia crtica das pessoas com descendncia europia tem algo em co-mum com a mudana de conscincia dos indgenas da Amrica e dosafros tambm de l. Se ter conscincia de que se tem descendncia euro-pia, e, portanto, no de africano ou de original (ou seja aborgene) terconscincia de uma mudana na conscincia mestia, tal conscientizaotem a ver com a dupla conscincia de W.E. B. Du Bois ou a conscinciamestia de Gloria Anzalda. O que eles tm em comum a ferida coloni-al; sentido de coloniatura com frao moderna/colonial; do deslocamen-to racial moderno/colonial. Certamente, h uma questo de escala, e aferida colonial em uma argentina de descendncia europia no a mes-ma ferida colonial de um aymara de descendncia aborgene. Os trs ti-pos de experincia, no entanto, so sentidos em relao presena daausncia: a conscincia pura da expanso europia imperial/colonial eo convite forado para assimilar ou para sentir a diferena, a diferenacolonial.

    Assim, preciso que a opo descolonial fique clara neste contexto.Descolonial significa pensar a partir da exterioridade e em uma posioepistmica subalterna vis--vis hegemonia epistmica que cria, constri,erege um exterior a fim de assegurar sua interioridade. No ouvimos to-

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    dos os dias nos discursos do Presidente Bush, um discurso que era comumentre os cristos ocidentais do ocidente nos sculos XVI e XVII, liberaisseculares dos sculos XIX e XX, neoliberais e marxistas? Descolonial im-plica pensar a partir das lnguas e das categorias de pensamento no inclu-das nos fundamentos dos pensamentos ocidentais. Novamente, grego elatim e (por favor repitam comigo!).

    Mas a questo aqui era, o que pode um argentino de descendnciaeuropia fazer se a lngua da sua famlia a alem e a lngua oficial do pas,Argentina, o espanhol? Ele no nem negro nem ndio, ento comopensar em categorias de pensamento de Exterioridade (ao invs do gregoe do latim) que no esto incrustadas na histria imperial dos pensamen-tos ocidentais? H algumas formas de responder a essas perguntas. Massejam pacientes, por favor. Precisamos desatar o n, aprender adesaprender, e aprender a reaprender a cada passo.

    Kusch se comprometeu em trs de seus livros, tanto com o arquivocolonial a respeito de filosofia indgena quanto com os pensamentos filo-sficos atuais entre os dos aymara. Na primeira dimenso, ele se envolveucom Waman Puma de Ayala12 e o Warochiri Manuscript, bem como com osdicionrios de quchua e aymara de Gonzlez Holguin e LudovicoBertonio. No prefcio de um de seus livros de base, El Pensamiento Indgenay Popular en Amrica (1963), Kusch observa, no incio

    La bsqueda de un pensamiento indgena no se debe slo aldeseo de exhumarlo cientficamente, sino a la necesidad derescatar un estilo de pensar que, segn creo, se da en el fondode Amrica y que mantiene cierta vigencia en las poblacionescriollas (Prologo).

    Certas palavras como recuperar e el fondo de America (deepAmerica) no soam bem quarenta anos mais tarde. Poder-se-ia dizer re-escrever e talvez na memria aborgena da Amrica. Mas no o pon-to. O ponto a clareza do projeto e a necessidade de torn-lo explcitodesde o seu incio, desde a primeira sentena do prlogo. Dois bons livrosforam escritos, mais recentemente, nos quais uma anlise cientfica (umafilosfica e outro antropolgica; Josef Estermann e Fernando Martinez

    12 PUMA DE AYALA, Waman. Nueva cornica y buen govierno [1516]. Editado por JohnMurra e Rolena Adorno, Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1982.

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    Enriquez) avanou. Kusch segue os passos do historiador nahuatl MiguelLeon Portilla e tenta tomar um outro passo. E esse passo mover-se daanlise do pensamento aymara de forma a lev-lo de forma sria paraentender os problemas sociais, histricos e sujetivos da Amrica. Maisainda, um terceiro passo oferecer o esboo de um modo de pensar ame-ricano (paralelo, co-existente e sobreposto), e obviamente diferenciado do modode pensar do ocidente. O conceito chave aqui estar ao invs de ser.

    Isto no nada menos que a meta principal de El pensamiento indigena ypopular en America. Deixem-me oferecer a vocs um destaque do que foiempreendido por Kusch no captulo 10 de Salvation and Economy.Selecionei esse captulo porque pode ser um dilogo com Felix Patzi eNina Pacari, j mencionados antes.

    Kusch comeou o captulo, como sempre faz, com uma histria quedetermina o palco da questo a ser explorada. Nesse caso, ele recorda que, emToledo, uma pequena cidade da Bolvia, um residente muito bem educado eque se auto identifica como indgena, confessou a Kusch que, para ele, osindgenas eram analfabetos e que, portanto, no poderiam se acostumar a umsistema cooperativo. H algumas semanas atrs, uma luta entre os pr-prios indgenas aconteceu na caldeira de cobre de Huanuni. O trgicocaso das ltimas semanas retoma a privatizao neoliberal da indstriamineira. A estratgia neoliberal era a de criar uma elite indgena decooperativistas que fossem os patres dos outros indgenas assalariados.Ou seja, indgenas explorando outros indgenas. A mesma estratgia acon-teceu antes do neoliberalismo, durante a Guerra Fria e os projetos norte-americanos de modernizao e desenvolvimento da Amrica do Sul. Kuschrelata a respeito de um caso especfico que ajuda a entender os desgniosimperiais globais e os impactos nas relaes pessoais e sociais. O casorelatado por Kusch no um caso isolado. Na verdade, Kusch mostra asligaes de uma longa cadeia de eventos que vm do sculo XVI, a apro-priao massiva da terra e a transformao da existncia em trabalho assa-lariado. Kusch agora, no captulo, fala de uma das histrias contadas emuma das muitas narrativas de Visitas (visitas administrativas espanholas adiferentes cidades para colher informaes a serem usadas pela Coroanos seus planos de gesto).

    Este o boto linha. Garci Diez, o pai dominicano que relata avisita regio de Lupaca, relata com indignao o fato de que as mulheres

  • Cadernos de Letras da UFF Dossi: Literatura, lngua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008 307

    iro produzir tejidos, costurando a pedido de Mallku (a autoridade supremada regio), sem receber, aos seus olhos, nada mais do que um pouco decomida e outros pequenos reconhecimentos. Garci Diez acredita que asmulheres devam receber um salrio pelo seu trabalho e isso que os espa-nhis vo lhes dar, ao invs de apenas comida e outros pequenos reconhe-cimentos variados. Mas, infelicidade, as mulheres se recusaram a lidarcom os espanhis, no esto interessadas em salrio, e somente faro otrabalho para e quando Malku as pedir para faz-lo.

    Obviamente, o que Garci Diez relata aquilo que v de acordo com algica de uma economia capitalista emergente. Ele no foi capaz de ver quea outra lgica, a de sistema de prestaciones, ou seja, a de reprocidade comunalque governa uma economia da qual ele s era capaz de ver o objeto, otecido; os trabalhadores e o tempo empregado para produzir o objeto; efinalmente o receptor do objeto, o Mallku, que no estava recompensandode forma adequada o tempo empregado para produzir o objeto. O Mallku,aos olhos de Garci Diez, estava explorando as mulheres enquanto ele estavatentando tir-las daquele sistema desumano ao oferecer-lhes um salrio porseus trabalhos, de forma a no serem exploradas. E, no entanto, as mulhe-res aparentemente preferiram ser exploradas pelo Mallku ao invs de seremexploradas pelos espanhis. Falando seriamente, elas optaram por uma eco-nomia qualitativa de reciprocidade comuna, ao invs de uma economiaquantitativa na qual o produto do trabalho recompensado por um salrio;uma economia na qual o foco no objeto e no tempo de trabalho e no emum sistema econmico que funciona de acordo com outra lgica, que pro-duz diferentes subjetividades, e que foca no bem estar da comunidade aoinvs de acumulao privada e pessoal.

    O que aconteceu em Huanuni que a viso de Garci Diez se tornounaturalizada e aquelas comunidades nativas em particular, indgenascooperativistas e assalariados, foram capturadas pela lgica de Garci Diez.E o residente da pequena cidade de Toledo, que disse a Kusch que osndios que se recusaram a fazer parte do sistema cooperativista eram anal-fabetos, tambm j havia sido capturado pela lgica nica da economiacapitalista.

    No entanto, o fato de que comunidades indgenas e nativas foramconvertidas ao sistema capitalista no significa que todo indgena dasAmricas tenha sido convertido. E, ao contrrio: o fato de que os indge-

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    nas, no governo de Evo Morales, o apiam assim como no Equador e nosEUA, que mantm uma organizao social com base na reciprocidadecomunal e na economia qualitativa, no significa que cada um que se con-sidere um indgena, como o residente de Toledo, tenha que aceitar a reci-procidade comunal como uma forma de vida. Precisamos separar a orga-nizao scio-econmica das qualidades essencialistas dos agentes: a eco-nomia capitalista pode ser apoiada pelos indgenas ou pelos afros, pormeio de trabalhadores assalariados ou com pagamento independente. Deforma oposta, uma economia de reciprocidade comunal poderia ser apoi-ada pelos bolivianos mestios e crioulos e pelos brancos norte-america-nos ou os membros franceses das classes mdia ou mdia alta (duvido quequalquer outra mais alta possa defender a economia de reciprocidadecomunal).

    Mas o captulo de Kusch no pra no estgio descritivo einterpretativo dos sistemas econmicos que, mesmo que infectados atra-vs dos sculos, ainda tm alguma coisa que os distingue. Poderia ser,por exemplo, como olhar o Islamismo e o Cristianismo em suas interaesmtuas atravs dos sculos. Pode-se dizer que seja muito binrio para ogosto ps-moderno; ou muito simplista e dicotmico, para o mesmo gos-to ps-moderno. Mas, vejam bem, j estamos falando de dois sistemasbinrios: as economias capitalista e de reciprocidade comunal, por umlado, e o Cristianismo e o Islamismo no outro. Assim, as dicotomias noso ontolticas mas hermenuticas. Seja como for, no este o ponto a quequero chegar apenas um preparo para ele.

    Kusch toma o passo seguinte quando faz uma pergunta de atualida-de surpreendente, levando em conta a situao da Venezuela e da Bolvia,e o resultado da eleio no Equador h dois dias. Kusch pergunta: o siste-ma indgena de prestaciones, de economia de reciprocidade, tem alguma in-cidncia hoje na Amrica do Sul? O que seria o impacto de uma econo-mia qualitativa sobre uma economia quantitativa? E mais adiante ele per-gunta, em 1963, Qual o real significado da agitao revolucionria cor-rente por toda a Amrica. Ser apenas um caso de infiltrao estrangei-ra? (p. 435). Ele se referia aos boatos de que a agitao revolucionria eradevida influncia cubana e sovitica na Amrica Latina, e ele sabia queesse no era o caso. No entanto, intelectuais como Nina Pacari e FelizPatzi Paco seguem, a partir de suas prprias experincias indgenas, um

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    caminho que Kusch descobriu como filsofo fora do local, ao descobrir aconscincia mestia entre os europeus deslocados de sua origem na hist-ria da Amrica.

    Ento, esta a resposta para a pergunta que formulei no incio destaseo: como pode um europeu para quem sua lngua no aymara e cujapele no negra e cujos ancestrais no so da frica, se comprometercom o pensamento descolonial e avanar na opo descolonial? Bem, Kischoferece um bom exemplo

    IV.

    Os tnico-latinos (ou seja, pessoas com descendncia europia na Am-rica do Sul e no Caribe) so capturados na epistemologia da modernidade.A teoria da dependncia como dito antes, assim como a filosofia e a teolo-gia da libertao, foram manifestos fortes para fraturar a homogeneidade deuma economia poltica controlada telogos e instituies liberais (estoufalando dos anos 60), que eram ou muito ingnuos para acreditar no desen-volvimento dos ento designados subdesenvolvidos (ou Terceiro Mundo)ou perfeitos hipcritas que vendiam o ingresso do desenvolvimento e damodernizao, sabendo perfeitamente que era um caminho legalmente or-ganizado para continuar a pilhagem das regies ao redor do mundo, fora daEuropa e dos EUA, e que no estavam sob o controle da Unio Sovitica.Agora, durante a primeira dcada do sculo XXI, as estradas para o futuropodem ser analisadas em quatro direes.

    Uma a que vem sendo livremente chamada de uma virada para aesquerda (pela extrema direita e pela esquerda entusistica), ou como umre-torno ao populismo (pelos lderes neoliberias associados como FernandoHenrique Cardoso).13 Em primeira posio os nomes de Inacio Lula noBrasil, Nestor Kirchner na Argentina e Michele Bachelet no Chile podemser livremente descritos como tal, apesar de suas diferenas e de suas liga-es soltas (se quaisquer em algum caso), ligaes com a esquerda, nosentido marxista da palavra. Em geral, esquerda significa que esses gover-nos no so sempre entusiastas e seguidores do que ditado por Washing-ton como fizeram Carlos Menem na Argentina, Snchez de Losada na Bolivia

    13 More than ideology. The conflation of populism with the Left in Latin America, emHarvard International Review, XXVIII/2., p. 14-18, July 2006.

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    e, antes deles, Augusto Pinochet no Chile. Esquerda significa nesse con-texto que o que os neoliberais e a extrema direita ditam no est sendoseguido pelos planos globais que so emanados de Washington D.C.

    A segunda o re-torno direita. A atual conversa a respeito deestender o corredor Puebla-Panama (iniciado por Vicente Fox) a Bogotagora que Alvaro Uribe foi confirmado para seu segundo mandato nocargo:

    De julho em diante, a Colmbia far parte de um dos ladosde um mega-projeto geopoltico que busca consolidar omodelo neoliberal na Amrica Latina ocidental com oobjetivo de privatizar a infra-estrutura de estradas e recursosnaturais. Esta estratgia econmica e poltica promovidapor Washington via o Presidente do Mxico, Vicente Fox,e conta com o apoio financeiro do Banco deDesenvolvimento Inter-Americano e o Banco Mundial,enquanto vrias companhias multinacionais estocomprometidas com a sua implementao. Entretanto, oimpacto do anncio do Presidente Alvaro Uribe, de queem seu segundo mandato na Colmbia, vai se unir ao PlanPuebla Panama, ter no pas em cada nvel no futuroimediato passou despercebido pela opinio pblica,provavelmente atravs da ignorncia quanto s causas e asconseqncias do Plan Puebla Panama.14

    Pode-se imaginar que, se Bogot se unir ao corredor Puebla-Panama,ento o corredor poderia se estender at Santa Cruz, Bolvia, onde ser bemrecebida pela Nacin Camba e a Unin Radical Nacional Socialista da Bolvia.

    O objetivo do plano muito claro: ajudar as companhiasmultinacionais a privatizar portos e aeroportos, estradas, energia eltrica,gua, gs, petrleo, e, acima de tudo,a possuir controle irrestrito dos imen-sos recursos de biodiversidade da floresta Lacandona (2), e dos Chimalapasem Oaxaca (3) no Mxico e do Corredor Biolgico Mesoamericano quealcana todo o caminho at o Panam. Tem um custo planejado de 25bilhes de dlares norte-americanos e busca abrir a Amrica Central e a

    14 Fernando Orellano Ortiz, Plan Puebla Panam, p. 14-15. Disponvel em: .

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    Colmbia ao livre comrcio.15 Nacin Camba o nome de um movi-mento de ala de direita que levou o nome Camba das populaes ind-genas e de camponeses. conhecido como o Movimento Separatista daBolvia e feito de pessoas brancas e ricas os URNSB (Unio RadicalNacional Socialista da Bolvia) e uma das organizaes que protege osdesejos dos brancos da Bolvia. Os dois grupos, com diferentes graus devcios, usam uma linguagem de libertao e soberania com refernciasdiretas e indiretas ao Nazismo e ao Kux Klux Klan.16

    A terceira orientao ou direo foi traada com golpes distintos deHugo Chvez, na Venezuela. Para muitos, Fernando Henrique Cardosodentre eles, Chvez um populista; o retorno do populismo da GuerraFria. Demandar um extensivo e detalhado argumento mostrar que estepode no ser o caso. Apenas, como hiptese, considerem o seguinte: Huma diferena significante e radical entre Juan Domingo Pern e HugoChvez. Pern foi um populista seguidor da conceitualizao recentede populismo.17 Entretanto, ser um populista no necessariamenteto mau quanto os intelectuais da ala liberal e de direita gostariam deretrat-lo. Pois, um presidente democrtico como Alvaro Uribe ouGeorge W. Bush era prefervel a um populista como Pern? Sim e no. Jque as duas opes esto dentro do sistema, ou seja, o sistema poltico-econmico da modernidade/colonialidade, onde nenhuma das opes temcontorno definido.

    Mas o ponto aqui no discutir os prs e os contras do populismo.Melhor, apresentar a idia (sem espao para argumentos) de que HugoChvez no somente diferente de Pern, e, sim, bem oposto. Pernoperou na fetichizao do Estado para manipular uma multido (thepopulus), a qual ele oferecia benefcios significativos (formao de sindicatos,frias, diminuio da jornada de trabalho, seguro sade, 13 salrio, etc.). To-das essas compensaes se baseavam na poltica de classe social ntida.Quer dizer, baseado em benefcios materiais, que, obviamente, eram muitobem recebidos pelos trabalhadores. Hugo Chvez opera com base na iden-

    15 Veja Fernando Aellano Ortiz, http://www.scoop.co.nz/stories/HL0607/S00341.htm.16 Veja relatrio sobre Neo-Nazistas, http://www.scoop.co.nz/stories/HL0511/

    S00064.htm.17 Veja LACLAU, Ernesto. La razn populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica,

    2005.

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    tidade em poltica. A auto-descrio de Chvez como um mestio nodeve ser ligeiramente levada em considerao. Ele est se estabelecendosobre a grande populao de mestios e mulatos da Venezuela, que, nopor acaso, so da classe baixa. A poltica da identidade opera na suposiode que identidades essenciais entre as comunidades marginalizadas (porrazes raciais, de gnero e sexuais) so as que merecem reconhecimento.Em geral, poltica de identidades no se compromete em nvel de Estadoe permanece na esfera da sociedade civil. Identidade em poltica, ao con-trrio, desliga-se da jaula de ferro dos partidos polticos como tem sidoestabelecido pela teoria poltica moderna/colonial e eurocentrada. LaRevolucin Boliviariana, assim como a MAS (Marcha hacia el Socialis-mo) so ambas projetos polticos que se desvinculam do quadroeurocntrico da teoria poltica e da economia poltica, ao mesmo tempoque autorizam/conferem poderes a descolonizao das subjetividades ra-ciais colonizadas. Ambos projetos so, claro, diferentes, mas eles tam-bm diferem do projeto de Fidel Castro em Cuba. Enquanto o projetosocialista de Castro em Cuba permanece dentro das regras do jogo (quer di-zer, mudando o contedo, mas permanecendo dentro da mesma lgica damodernidade ocidental), Chvez retarda ao re-inscrever a luta por indepen-dncia carregada por Simn Bolvar. Embora para muitos Bolvar no seja omodelo ideal, no sentido de que ele contribuiu para a afirmao da eliteCreole, elite de descendncia espanhola que virou suas costas aos indgenas,afros, mestios e mulatos, uma histria com a qual Chvez e Venezuela tmmais em comum do que com Vladimir Lenin e a Revoluo Sovitica. Nessesentido, as conexes que Chvez procura com os populus que o apiam e como slogan de Revoluo Bolivariana no so baseadas na melhoria das classessem uma subjetividade comum para se trabalhar (como no caso de Pern).Seguramente, ainda no h uma formulao clara do projeto, mas h sinaissuficientes para acreditar que o que Chvez procura corre paralelo ao projetoepistmico e poltico descolonial que j tinha sido avanado, nos ltimos 10anos, por uma comunidade de eruditos, intelectuais e ativistas.18

    Enquanto possvel ver na gesto poltica e econmica de Chvez(tanto na polcia interna quanto nas relaes internacionais) as sobras da

    18 Veja Arturo Escobar, Beyond the Third World, Third World Quarterly, v. 25, n. 1, p. 207-230, Fev. 2004. Disponvel em: http://www.nd.edu/~druccio Escobar.pdf#search=%22escobar%20worlds%20and%20knowledges%20otherwise%22.

  • Cadernos de Letras da UFF Dossi: Literatura, lngua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008 313

    fetichizao do poder do Estado, Evo Morales ainda fornece um caminhodiferente. A quinta trilha que estou descrevendo aqui. A histria da Bol-via, nos ltimos quinze anos, a fora crescente da nao indgena (na suadiversidade ou, se preferirem, as naes indgenas), estabeleceu um mododistinto e um modelo poltico que eu descreverei como o movimentodescolonial. A conscincia entre os lderes e participantes de questes ind-genas que clama por uma mobilizao que determina que o poder no podeser tomado (como nos lembra Enrique Dussel)19, porque o poder no estno Estado, mas nas pessoas politicamente organizadas, alta e clara na Bo-lvia. Por isso quero dizer que, na Bolvia, como em qualquer outro lugarhoje da Amrica do Sul e do Caribe, mesmo com a possibilidade de queEvo Morales no termine seu perodo como presidente, no se mudar deforma alguma a organizao poltica e a mobilizao da populao indge-na. O que conta no que Evo Morales tenha sido eleito presidente (embo-ra, claro, isso seja importante) como a mdia internacional comemorou,ainda ancorada no velho modelo de fetichizao do poder, mas a mudanaradical que est tomando lugar pela inscrio da identidade em poltica.

    Identidade em poltica, na Bolvia, tambm deixou clara a fenda en-tre as verses diferentes da esquerda marxista e os projetos descoloniaisindgenas. E isso basicamente o que est em risco no leve thnique:descolonizao (uma palavra que tem uso corrente nos Andes) no signi-fica mais que o Estado estar nas mos da elite local (que terminou nocolonialismo interno da Amrica do Sul durante o sculo XIX, e nasia e na frica aps a 2 Guerra Mundial). Descolonizao, ou melhor,descolonialidade, significa ao mesmo tempo: a) desvelar a lgica dacolonialidade e da reproduo da matriz colonial do poder (que, claro,significa uma economia capitalista); e b) desconectar-se dos efeitos totali-trios das subjetividades e categorias de pensamento ocidentais (por exem-plo, o bem sucedido e progressivo sujeito e prisioneiro cego doconsumismo). Por desconectar como descolonialidade, comeo e me afas-to da introduo de Samir Amin do termo dentro da viso marxista deum mundo policntrico. No entanto, a ateno e a homenagem dada porAmin ao trabalho e viso de Sayyid Qutb uma indicao que nos alertapara os projetos divergentes e soberanos do marxismo e do islamismo, como

    19 DUSSEL, Enrique. 20 tesis de poltica, Mexico: Siglo VXI, 2006. Introduo e notas deVicent Carreta. London: Penguin Books, 1999.

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    o filsofo iraniano Ali Shariati j tinha claramente articulado antes da Re-voluo Iraniana.20 Mas o marxismo no pode desconectar no sentido dadescolonialidade, porque ou no mais haver marxismo ou ser um novoprojeto imperial que absorva, engula, silencie e reprima categorias de pen-samento articuladas em lnguas e cosmologias que no so o latim e o gre-go, traduzidas nas seis lnguas imperiais europias da modernidade ociden-tal (italiano, espanhol, portugus, alemo, ingls e francs).

    Hoje j h uma forte comunidade intelectual indgena que, entremuitos outros aspectos da vida e da poltica, tem algo como muito claro:seus direitos epistmicos e no somente seus direitos a reivindicar econ-mica, poltica e culturalmente.21 A leve thnique , em ltima anlise,

    20 Veja Samir Amin, Delinking: towards a polycentric world. Traduzido do Francs porMichael Wolfers, New York: Zed Books; 1990; Sayyid Qutb, Social justice in Islam, NewYork: Islamic Publications International, 2001; Ali Shariati, Marxism and other Westernfallacies. An Islamic critique. New York: Mizan PR, 1980.

    21 Os intelectuais indgenas no gozam ainda de ampla circulao, porque os intelectuais noindgenas que apreciam exatamente a colonialidade do conhecimento. O fato de noserem reconhecidos pela mdia ou pela universidade no implica que o trabalho e a produ-o intelectual deles sejam menos significativos na malha social. menos reconhecido certamente pela elite que controla o Mercado da produo intelectual. Meus comentri-os aqui so baseados na trajetria poltica e intelectual de Luis Macas e sua liderana nacriao do Amawtay Wasi (Aprender en la sabidura y el buen vivir; Learning wisdom and thegood way of life); na trajetria poltica e intelectual de Nina Pacari. Recentemente, ela clara-mente expressou os fundamentos histricos, polticos e epistmicos dos projetosdescoloniais indgenas do Equador (La incidencia de la participacin poltica de los pueblosIndgenas. Una camino irreversible, artigo apresentado e discutido amplamente durantea seo de um dia do programa de escola de vero, organizado pela UniversidadComplutense de Madrid). O seminrio de uma semana recebeu o ttulo Pensamientodescolonial y la emergencia de los Indgenas en Amrica Latina. Nina Pacari questionouo ttulo do workshop: En estos ltimos tiempos se habla de la emergencia indgena. Deunos seres anclados en los museos para el gusto colonial de muchos, hemos pasado a serunos actores que les provocamos miedo, incertidumbres o desconfianza. E em FlizPatzi-Paco (socilogo aymara e atual Ministro de Cultura y Educacin) e sua propostaSistema Comunal. Una propuesta alternative al sistema liberal. La Paz: CEA, 2004. A esse ncleo deintelectuais indgenas andinos, poderamos acrescentar o trabalho influenciador de LindaTuhiwai Smith, Decolonizing methodologies. Research and Indigenous People. London/ New York:Zed Books Ltd., 1999. Ela Professora Associada da Maori Education e Diretora doInstituto Internacional de Pesquisas para Estudos Maori e Indgenas na Universidade deAuckland, Nova Zelndia. Tambm, o conhecido trabalho nos EUA de Vine Deloria,Jr., Devon Abbot Mihesuah e Carvender Wilson. Quanto s contribuies de afro-caribenhos, vejam-se PADGET, Henry, Calibans Reason, Introducing Caribbean philosoph,London: Routledge, 2003, e Catherine Walsh e Juan Garca sobre a contribuio de inte-lectuais e ativistas afro-andinos.

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    uma quebra epistmica descolonial que no pode ser classificada na nar-rativa de Michel Foucault (Les mots et les choses, 1966) e muito menos pelasmudanas paradigmticas de Thomas Khun (A estrutura das revolues cien-tficas, 1970). A quebra epistmica descolonial literalmente algo mais. verdade que no h muito escrito e documentado para o cientista socialdo Primeiro Mundo estudar. Fraturas epistmicas esto acontecendopelo mundo e no entre as comunidades indgenas das Amricas, Austr-lia ou Nova Zelndia. Est acontecendo tambm entre os intelectuais afro-andinos e afro-caribenhos. E est certamente acontecendo, embora mol-dado por histrias locais diferentes, entre os intelectuais progressistas e osativistas islmicos. E ao que toca quebra epistmcia, a conseqncia orecolhimento do nacionalismo, ou seja, o idealismo do Estado da bur-guesia que conseguiu identificar o Estado com uma etnia, e, portanto, foicapaz de ser bem sucedido na fetichizao do poder: se o Estado se identi-fica com uma nao, ento no h diferena entre o poder do povo e opoder nas mos doe pessoas da mesma nao nas mos daqueles que repre-sentam o Estado. Mais ainda, o povo e o Estado que o povo e seus repre-sentantes criaram todos operaram sob a mesma cosmologia: teoria polti-ca ocidental de Plato e Aristteles a Maquiavel, Hobbes e Locke. Mas ascoisas comearam a mudar quando os povos indgenas ao redor do mun-do clamaram por sua prpria cosmologia na organizao do econmico edo social, da educao e da subjetividade; quando os afro-descendentes daAmrica do Sul e do Caribe seguiram um caminho semelhante; quandoos intelectuais islmicos e rabes romperam com a bolha mgica da reli-gio, da poltica e da tica do ocidente.

    Isto , em sntese, la versant de-colonial (ou a opo descolonial)que est acontecendo em escala global pela simples razo de que a lgicada colonialidade (ou seja, capitalismo, formao de Estado, educao deuni-versidade, informao e mdia como mercadoria, etc.) tem e continuanivelando o mundo (de acordo com a expresso entusiasta cunhada porThomas Friedman)22. A mudana radical introduzida pela versant de-colonial se move, se desconecta da idia ocidental de que as vidas huma-nas podem ser descartadas por razes estratgicas e da civilizao da mor-te (comrcio escravo massivo, fomes, guerras, genocdios e eliminao

    22 FRIEDMAN, Thomas. The world is flat. A brief history of the twentieth first century.New York: Farrar, Strauss and Giroux, 2006.

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    das diferenas a qualquer custo, como se vem testemunhando no Iraque eno Lbano), em direo a uma civilizao que encoraje e comemore areproduo da vida (no, claro, em termos de ter ou no direito aoaborto, o que no tenho tempo de analisar aqui), mas a comemorao davida no planeta, incluindo organismos humanos que tm sido separa-dos da natureza na cosmologia da modernidade europia; cf. FrancisBacon, Novum Organum, 1605.

    A interculturalidade deve ser entendida no contexto do pensamentoe dos projetos descoloniais. Ao contrrio do multiculturalismo, que foiuma inveno do Estado-nacional nos EUA para conceder cultura en-quanto mantm epistemologia, inter-culturalidade nos Andes um con-ceito introduzido por intelectuais indgenas para reivindicar direitosepistmicos. A inter-cultura, na verdade, significa inter-epistemologia, umdilogo intenso que o dilogo do futuro entre cosmologia no ocidental(aymara, afros, rabe-islmicos, hindi, bambara, etc.) e ocidental (grego,latim, italiano, espanhol, alemo, ingls, portugus). Aqui voc acha exa-tamente a razo por que a cosmologia ocidental uni-versal (em suasdiferenas) e imperial enquanto o pensamento e as epistemologiasdescoloniais tiveram que ser pluri-versais: aquilo que as lnguas e ascosmologias no ocidentais tinham em comum terem sido foradas alidar com a cosmologia ocidental (mais uma vez, grego, latim e lnguaseuropias imperiais modernas e sua epistemologia).

    IV.

    Deixem-me adiantar uma cpia dos processos descoloniais e de de-sobedincia epistmica e sugerir que os horizontes desses atos de desobe-dincia epistmica estejam se abrindo para um futuro alm do acmulode capital e de reforos militares; alm da reestruturao ps-moderna eps-estruturalista da cosmologia eurocntrica da modernidade. Percebamque a minha viso de modernidade no definida como um perodo his-trico do qual no podemos escapar, mas sim como uma narrativa (porexemplo, a cosmologia) de um perodo histrico escrito por aqueles queperceberam que eles eram os reais protagonistas. Modernidade era otermo no qual eles espalhavam a viso herica e triunfante da histria queeles estavam ajudando a construir. E aquela histria era a histria do capi-talismo imperial (havia outros imprios que no eram capitalistas) e da

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    modernidade/ colonialidade (que a cosmologia do moderno, imperial edos imprios capitalistas da Espanha Inglaterra e dos Estados Unidos).

    O socilogo aymara e o atual Ministro da Cultura e da Educao daBolvia, Flix Patzi Paco, adiantou, antes da sua nomeao pelo presiden-te Evo Morales, um resumo de um sistema comum ou popular emcontrapartida com o preponderante sistema (neo) liberal23. Estou ofe-recendo aqui uma verso modificada da proposta dele. Patzi Paco come-a pela hiptese de que sistemas scio-econmicos com um certo grau decomplexidade so formados por um ncleo e um contexto; ou um centroe uma periferia, se preferirem. O ncleo ou centro era constitudo dediversos tipos de gestes, econmicas e polticas. Ou seja, gesto de re-cursos e trabalho, por um lado, e gesto de distribuio de recurso detrabalho. No sistema atual (neo)liberal, gesto de recursos e trabalho egesto de distribuio social, como sabemos, so engrenadas visando acumulao de riqueza, apropriao individual de recursos naturais e ex-plorao de trabalho (das minorias quantitativas). O ncleo constitu-do, para ele, pela administrao poltica e econmica. A minha modifica-o aqui para incluir a gesto da educao nesse ncleo, uma vez que aeducao fundamental tanto para a formao da subjetividade quantopara a formao e a administrao da organizao econmica e polticada sociedade.

    A proposta de Patzi Paco deve ser entendida em dimenses tantodiacrnicas quanto sincrnicas. Os sistemas econmicos e polticos im-plantados pelas expanses imperiais/coloniais europias (espanhola, por-tuguesa, francesa, britnica, holandesa) romperam e mutilaram sistemaseconmicos e polticos existentes no continente e nas ilhas caribenhas.Contudo, sistemas indgenas co-existiram, marginalizados e fraturados,com as cores imperiais. Apesar de Patzi Paco estar pensando a partir daexperincia de Aymara Ayllus, possvel incluir palenques e quilombosformados por afro-descendentes fugitivos escravizados, como ainda umoutro sistema econmico e poltico co-existente. A educao (na famlia,na escola e no treinamento avanado), a economia e a poltica so diferen-tes aspectos da organizao comunal, que chamada de ayllu em Aymara,

    23 PATZI PACO, Felix. Sistema comunal. Una propuesta alternative al sistema liberal. LaPaz: CEA, 2004.

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    oikos em grego e estado em lnguas europias modernas vernculas e imperi-ais. Assim, o analtico e a projeo em direo ao futuro seguem um mo-vimento dialgico ou pluri-lgico.

    Em primeiro lugar, e historicamente, o sistema comunitrio da eco-nomia andina era deslocado e fracionado pela instalao de um sistemaemergente, mercantil e de capitalismo colonial, que consistia na apropri-ao de terra e na explorao macia do trabalho (indgena e afro-oprimi-do). O ayllu sobreviveu, contudo, e entrou em um registro histrico du-plo. A advogada, poltica e ativista quchua, Nina Pacari, coloca isto destaforma:

    [] nuestros mayors salvaguardaron y fortalecieron nuestrasidentidades e instituciones por dos vas simultneas: 1) la interna,radicada en la Fortaleza de los usos y costumbres, en larecreacin de los mitos y los ritos, en la reconstitution delos pueblos y territorios, as como en la reconstruccin dela memoria ancestral y colectiva para proyectarse en unfuturo con inclusion social que no es otra cosa que elposicionamiento del principio de la diversidad; 2) la externa,que permiti utilizar los mecanismos como losalzamientos, levantamientos indgenas or revueltas encontra del abuso y del despojo promovido por la estructuradel poder imperante.24

    Pacari menciona dois caminhos simultneos no qual a histria denaes indgenas sobreviveram em co-existncia e diferenciais de poderpor quinhentos anos. O interno e o externo, dos quais, apenas o externo mais ou menos conhecido por algum que no seja indgena. A razo simples: o caminho interno deveria ter parado de existir desde a chegada doscristos e as pessoas e instituies monrquicas, no sculo dezesseis, etambm por sua transformao no sculo dezenove, quando ocolonialismo interno que estava nas mos da elite crioula de descendn-cia europia desalojou a elite imperial da Espanha e de Portugal. Atravsde diferentes formas e tonalidades, a Inglaterra e a Frana assumiram o

    24 PACARI, Nina. La incidencia de la participacin poltica de los pueblos Indgenas: Uncambio irreversible. Conferncia apresentada e discutida no Seminrio de Vero, Opensamento descolonial, organizado pela Universidad Complutense de Madrid, ElEscorial, Jul. 24-29, 2006.

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    papel de destaque deixado pela Espanha e por Portugal e trabalharamestreitamente com a elite crioula administrativa que comandava os no-vos pases independentes. O caminho interno na vida e na sobrevivncia denaes indgenas se tornou invisvel, pois os indgenas deveriam ter per-dido suas almas e se tornado ndios com um tipo de esprito europeu. E jque histrias e descries de naes indgenas foram escritas por pessoasde descendncia europia, o caminho interno freqentemente os escapa-va. Os indgenas, por outro lado, no deveriam ter alma e essa foi a razodo processo de Cristianizao, objetivando civiliz-los, mais recentemente,desenvolv-los.

    Patzi Paco oferece uma das primeiras descries escritas e argu-mentos que explicam a persistncia do sistema comunitrio que sempreexistiu, mas era invisvel, e que est chegando com fora total na Bol-via e no Equador. A parte visvel sempre esteve l; revoltas foram sem-pre registradas pelas elites vigentes porque elas criavam um problemapara eles; porm o discurso oficial as descreveu como um problema dosndios. Nina Pacari, na citao anterior, oferece uma sinopse da sobre-vivncia histrica e de luta das Naes Indgenas uma sinopse histri-ca na qual a teoria poltica indgena, a economia e a epistemologia socentrais. J houve tempo em que a crena de que os ndios tm culturae que o brancos ou mestios possuem teorias eram prevalentes quepareciam ser a nica idia vlida. Hoje em dia, e num futuro previsvel,a luta para a obteno de direitos epistmicos, a luta pelos princpiosem que a economia, a poltica e a educao estaro organizadas, delibe-radas e promulgadas.

    Os sistemas comunitrios descritos por Patzi Paco so um caminhoem direo ao futuro, no apenas para a populao indgena, mas podemtambm funcionar como um modelo para uma organizao global, naqual muitos mundos iro co-existir, sem serem dominados em nome deuma simplicidade e de uma reproduo de oposies binrias. Os siste-mas comunitrios oferecem uma alternativa para ambos os sistemas: osliberais e socialista-comunistas, j que estes dois ltimos so ambos oci-dentais (isto , concebidos a partir da experincia da expanso imperial eda acumulao de capital, bem como da correspondente teoria poltica eeconomia poltica, em suas verses tanto liberal quanto comunista-mar-xista). O sistema comunitrio descritos por Patzi Paco , ao contrrio,

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    baseado na experincia histrica dos ayllu, que coexistiu com as institui-es ocidentais imperiais/coloniais, desde o momento em que os espa-nhis invadiram os Andes. Observaes similares podem ser feitas sobreo altepetl na regio Anahuac. Para encurtar a histria, vale ressaltar queuma gesto econmica comunitria no uma questo de um Estadotodo-poderoso (como o sistema comunista), ou de uma mo invisvel(como na economia liberal de livre comrcio). A terra no pode ser pos-suda, apenas utilizada pela comunidade. Com a mesma vaidade, fbricase tecnologias que facilitam a vida social e comunitria no podem serpossudas por um ou poucos indivduos que iro explorar outras pessoasem benefcio pessoal prprio ou para a acumulao de riqueza. No siste-ma comunitrio, o poder no est localizado no Estado ou no propriet-rio individual (ou corporativo), mas na comunidade. Quando os zapatistasafirmam que se deve governar e obedecer ao mesmo tempo, eles estoenunciando um princpio bsico da gesto poltica e econmica comuni-tria.25

    Nina Pacari discute a gesto comunal poltica e econmica sucinta-mente. O conceito indgena filosfico de Poder sustentado por um n-mero significativo de elementos vitais (de acordo com o sentido de vidacomunal):

    a) YACHAY, o que significa a sabedoria, o know-how e know-that quepermitem que as naes indgenas possam se manter em auto-trans-formao os seus caminhos internos (isto , da mesma maneira que oocidente mantm em transformao o seu modo de vida, suas for-mas de conhecimento e sua gesto econmica e poltica);

    b) RICSINA, significa knowledge, e se refere ao conhecimento da com-plexa geografia de seres humanos visando a colaborar para uma co-existncia harmoniosa, isto , sociabilidade (e, devo dizer, queDerrida no se faz necessrio aqui pois a sociabilidade no umapropriedade privada dos intelectuais franceses, mas de um senti-mento comum existncia humana);

    25 Patizi Paco, op. cit, 172-191.

  • Cadernos de Letras da UFF Dossi: Literatura, lngua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008 321

    c) USHAI, significa gesto ou planejamento e se refere ao conheci-mento pressuposto para cada execuo consistente na gesto da pol-tica, da economia e da educao, isto , na organizao scio-comu-nitria;

    d) PACTA-PACTA, significa o exerccio da democracia no no sen-tido burgus da palavra ou no seu sentido socialista, mas no sentidoda sociabilidade, de um relacionamento de igual para igual, comparticipao coletiva e gesto social, como est inscrita na memri-as e experincias dos ayllu (ou dos altepetl no caso do Mxico), eno nas memrias e experincias do oykos;

    e) MUSKUI, que poderia ser traduzido como o horizonte ideal dofuturo, ou seja, utopia; um conceito necessrio para que se possa serativo no processo de transformao social, ao invs de se aguardarque a economia liberal ou o Estado comunista encontre uma solu-o para as naes indgenas!

    Compreendo que o sistema comunal e o conceito filosfico ind-gena de Poder como uma alternativa PARA (neo) modelos liberais eMarxistas ou modelos neo-Marxistas de sociedade. Seria possvelconsider-lo, em seu devido tempo e espao, em relao, por exemplo,aos conceitos islmicos e chineses de poder, de gesto poltica e econ-mica e de educao (tanto no sentido da formao e de treinamento deindivduos para atender especialmente aos papis de gesto poltica,educacional e econmica). Embora no haja tempo para desenvolvermais essa questo, importante ter em mente que nem Patzi Paco, nemPacari ou eu, estamos pensando em termos binrios. Um leitor ociden-tal treinado pode ver essa oposio binria como falta de experinciaem ver as formas internas de muitas naes e comunidades religiosas detodo o mundo. A segunda advertncia a de que tambm um leitormoderno ou ps-moderno sensato poderia pensar que o sistema comunal um sonho totalitrio que se destina a substituir o modelo dominanteneoliberal e a sua alternativa dominante utpica, o sistema socialista -comunista. Se fosse esse o caso, o sistema comunal no seria uma pro-posta descolonial, mas uma outra proposta moderna disfarada sob opensamento descolonial. O pensamento descolonial rejeita, desde o in-cio, qualquer possibilidade de novos resumos universais que iro subs-tituir os existentes (liberais e seus neos, marxista e suas neos, cris-tos e seus neos, ou islmicos e seus neos). A era da abstrao uni-versal chegou ao fim. O futuro que vai impedir o auto-extermnio da

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    Desobedincia epistmica: a opo descolonial e o significado de identidade em poltica

    vida no planeta deve ser tanto pluri-versal quanto um projeto uni-versal. E em direo a esta MUSKUI que a concepo do sistemacomunal e da filosofia indgena do poder est apontando.

    Nina Pacari oferece uma possibilidade de se pensar e agir nesse sen-tido, isto , um plano de modelo descolonial de pensamento. Reconhe-cendo o atual momento de afirmao das identidades indgenas, que aconsolidao do caminho interno, ela menciona quatro princpios gerais nosquais o empoderamento poltico est sendo aprovado e assim avana:

    a) Proporcionalidade-Solidariedade, o princpio que orienta apoltica (por exemplo, o pensamento poltico) para o benefciodaqueles que tm menos. A poltica impinge aqui o oyko-nomy (ou,inventando um neologismo, um ayllu-nomy), ou seja, uma economiapoltica que administra a escassez, ao invs de festejar a acumulao.

    b) Complementaridade, se refere produo e distribuio quecontempla o bem-estar da comunidade e no a acumulao e o bem-estar de uma elite. Isso representa, em outras palavras, a sociabilidadecom a harmoniosa complementaridade de elementos opostos. Porexemplo, Sol e Lua (masculino e feminino) no so opostos porrelaes de poder, mas, sim, duas metades de uma unidade; umaunidade sem a qual a gerao de vida no possvel.26

    c) Reciprocidade, expresso na instituio chamada minga, quesignifica trabalho cooperativo visando melhoria. Dar e receber, oprincpio da reciprocidade feito tanto de direitos quanto de deverespara cada um.

    d) Correspondncia, simplesmente significa o compartilhar de res-ponsabilidades (Pacari, 2006, 9-10).

    26 Este no o lugar para entrar em uma anlise da categoria mulher como uma inven-o do sistema ocidental de gnero, baseado na oposio e no poder diferencial, quemutilou e marginalizou a complementaridade complementares masculino - femininonas sociedades e no sistema de conhecimento que eram estranhos ao Cristianismo e aosseus fundamentos gregos (ver Mara Lugones, Heterosexualismo e o sistema do gnerocolonial/moderno , Hypatia, no prelo; e Oyewumi, Oyero