Dessa Terra e Desse Estrume e Que Nasceu Esta Flor Genealo

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1 6º COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E ENGELS “Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor”: genealogia, dinheiro e literatura no conto “A parasita a azul”, de Machado de Assis. Ana Laura dos Reis Corrêa (Professora da Universidade de Brasília – UnB) GT 7 – Cultura, capitalismo e socialismo Este artigo é parte de uma pesquisa, ainda inicial, acerca da relação entre o dinheiro e a obra de Machado de Assis, realizada em conjunto com dois pesquisadores do grupo Literatura e Modernidade Periférica, da Universidade de Brasília. A pesquisa tem como ponto de partida a idéia do dinheiro como mediação universal, que transforma meus desejos de seres da representação, os traduz da sua existência pensada, representada, querida, em sua existência sensível, efetiva, da representação para a vida, do ser representado para o ser real. Enquanto tal mediação, o dinheiro é a força verdadeiramente criadora. 1 Conforme analisada por Marx, que, aliás, evoca passagens de Goethe e de Shakespeare em sua argumentação, a força verdadeiramente criadora do dinheiro, sua dinâmica relacionada à representação, o movimento que o dinheiro produz no terreno do desejo e do pensamento em direção ao das coisas sensíveis, é sugestivamente algo que mantém parentesco com a representação literária. Como produto cultural, a literatura se insere no mundo sensível, social, econômico e político, mas, como trabalho, ela não apenas está relacionada à dinâmica do capital que se movimenta, transfigura, cria e se recria, mas ainda se alinha, enquanto processo criador, à força criativa do dinheiro. O entrelaçamento, aqui sugerido, da força criadora do dinheiro à da literatura tem um ponto comum: o fetichismo da forma-mercadoria, em seu caráter metafisicamente físico, de que o dinheiro é representação acabada. A nacionalidade do dinheiro, assim como a da literatura, é a mesma: a economia burguesa, agora já transnacionalizada de forma problemática e avassaladora, fazendo esquecer que todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda magia e fantasmagoria que enevoa os produtos de trabalho na base da produção de mercadorias desaparece, por isso, imediatamente, tão logo nos refugiamos em outras formas de produção. 2 Assim, interseccionados em um mesmo mundo, dinheiro e literatura produzem valor sublime e abstrato, como forças verdadeiramente criadoras que são. O valor por eles produzido, no entanto, “não traz escrito na testa o que ele é (...) transforma muito mais cada produto de trabalho em hieroglifo social” 3 , cujo segredo cabe aos homens decifrar, esquecidos de que decifram seu próprio produto social. Decifrar o dinheiro e o texto literário em estado de hieroglifos sociais exige o reconhecimento da sua dinâmica criativa, marcada pelo processo fugidio da inversão poderosa de uma coisa em seu contrário: 1 Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004, p.160. 2 Karl Marx, O capital. São Paulo, Nova Cultural, 1988, p.73, v.1. 3 Ibidem, p.72.

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6º COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E ENGELS

“Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor”: genealogia, dinheiro e literatura no conto “A parasita a azul”, de Machado de Assis.

Ana Laura dos Reis Corrêa (Professora da Universidade de Brasília – UnB)

GT 7 – Cultura, capitalismo e socialismo

Este artigo é parte de uma pesquisa, ainda inicial, acerca da relação entre o dinheiro e a obra de Machado de Assis, realizada em conjunto com dois pesquisadores do grupo Literatura e Modernidade Periférica, da Universidade de Brasília. A pesquisa tem como ponto de partida a idéia do dinheiro como mediação universal, que transforma

meus desejos de seres da representação, os traduz da sua existência pensada, representada, querida, em sua existência sensível, efetiva, da representação para a vida, do ser representado para o ser real. Enquanto tal mediação, o dinheiro é a força verdadeiramente criadora.1

Conforme analisada por Marx, que, aliás, evoca passagens de Goethe e de Shakespeare em sua argumentação, a força verdadeiramente criadora do dinheiro, sua dinâmica relacionada à representação, o movimento que o dinheiro produz no terreno do desejo e do pensamento em direção ao das coisas sensíveis, é sugestivamente algo que mantém parentesco com a representação literária. Como produto cultural, a literatura se insere no mundo sensível, social, econômico e político, mas, como trabalho, ela não apenas está relacionada à dinâmica do capital que se movimenta, transfigura, cria e se recria, mas ainda se alinha, enquanto processo criador, à força criativa do dinheiro. O entrelaçamento, aqui sugerido, da força criadora do dinheiro à da literatura tem um ponto comum: o fetichismo da forma-mercadoria, em seu caráter metafisicamente físico, de que o dinheiro é representação acabada. A nacionalidade do dinheiro, assim como a da literatura, é a mesma: a economia burguesa, agora já transnacionalizada de forma problemática e avassaladora, fazendo esquecer que

todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda magia e fantasmagoria que enevoa os produtos de trabalho na base da produção de mercadorias desaparece, por isso, imediatamente, tão logo nos refugiamos em outras formas de produção.2

Assim, interseccionados em um mesmo mundo, dinheiro e literatura produzem valor sublime e abstrato, como forças verdadeiramente criadoras que são. O valor por eles produzido, no entanto, “não traz escrito na testa o que ele é (...) transforma muito mais cada produto de trabalho em hieroglifo social” 3, cujo segredo cabe aos homens decifrar, esquecidos de que decifram seu próprio produto social. Decifrar o dinheiro e o texto literário em estado de hieroglifos sociais exige o reconhecimento da sua dinâmica criativa, marcada pelo processo fugidio da inversão poderosa de uma coisa em seu contrário:

1 Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004, p.160. 2 Karl Marx, O capital. São Paulo, Nova Cultural, 1988, p.73, v.1. 3 Ibidem, p.72.

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o dinheiro, enquanto conceito existente e atuante do valor, confunde e troca todas as coisas, ele é então a confusão e a troca universal de todas as coisas, portanto, o mundo invertido.4

O poder criativo da literatura como hieroglifo social é movido pelo processo da inversão violenta do mundo em seu contrário, que passa a existir como produto social vestido de um significado diverso, no qual não se reconhece mais a verdade imediata do que deve ser representado, revestido que está pelo valor que encobre a sociedade em que se produziu o texto, que, doravante, cria um mundo outro em relação ao lugar de sua produção. Assim, abordar a relação entre dinheiro e literatura, impõe considerá-los como hieroglifos sociais, forma valor que produz inversão e põe em movimento o universo fantasmagórico da confusão e da troca.

Ao pensar esse parentesco entre literatura e dinheiro no círculo familiar do primo pobre – o Brasil –, as relações se tornam ainda mais confusas e os hieroglifos sociais se confundem com palimpsestos rasurados e arruinados, de difícil decifração. Entretanto, nessa condição negativa, acumularam-se formas literárias que produziram valor e adquiriram poder de inversão radical e decisivo. No Brasil, esse acúmulo se consolida formalmente pela primeira vez na obra de Machado de Assis. Não é essa a única razão para iniciar a investigação sobre esse consórcio entre dinheiro e literatura pela obra de Machado, tampouco nossa escolha se justifica pelo fato de que toda a obra do escritor tangencia ou privilegia o tema do dinheiro. A opção pelo texto machadiano se assenta na própria forma do criador de Brás Cubas, construída sobre o fundamento do contraditório, da inversão: “não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor” 5. Mas não é de Brás Cubas que vamos nos ocupar, e sim de um ancestral seu, ainda mal acabado e indefinido, mas que já ensaiava a arte do domínio do capricho, o movimento confuso da troca e da inversão: Camilo Seabra, personagem central de “A parasita azul” 6.

Se Camilo Seabra é uma espécie de esboço de Brás Cubas7, o Machado de 1872, ano da produção de “A parasita azul”, ainda está à procura da formulação adequada do seu hieroglifo, da inversão poderosa da matéria desejada em seu contrário, e trilha o caminho da experimentação. Embora ainda lacunar, o texto chama atenção pelo seu mecanismo contraditório, confuso e guiado pela economia da troca, o que anuncia o nascimento futuro, em 1881, do narrador de Memórias póstumas, que parece relembrar sua genealogia na história da criação literária machadiana ao afirmar que “Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor” 8.

“A parasita azul” é um texto singular: dividido em sete capítulos, é longo demais para ser um conto e curto demais para ser um romance. Alfredo Bosi9 classifica-o como novela, mas vingou na certidão de batismo a forma do conto. Nessa indecisão da forma, o que vale de fato é a própria indecisão, que sinaliza tanto o caráter experimental e indefinido da forma machadiana àquela altura, quanto o avanço do escritor em direção a 4 Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, cit., p.160.

5 Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo, Abril Cultural, 1982, p.15.

6 Machado de Assis, “A parasita azul”. In: Aluizio Leite Neto, Ana Lima Cecílio, Heloisa Jahn (org.)

Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008, p.145-175, v.2. 7 Ver John Gledson, “1872: ‘A parasita azul’ – Ficção, nacionalismo e paródia”. In:Hélio de Seixas

Guimarães e Vladimir Sacchetta (consultores), Cadernos de Literatura Brasileira. Machado de Assis. Rio de Janeiro, Instituto Moreira Salles 2008, p.163 - 218. 8 Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, cit., p.33.

9 Alfredo Bosi, Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo, Ática, 1999, p.79.

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sua maturidade literária, já que, como observa Bosi, da combinação entre a convenção das formas folhetinescas com o comportamento, ainda mascarado, dos personagens à procura de uma ascensão social, pelos meios oblíquos e utilitários das relações de favor, resulta, em “A parasita azul”, a composição inédita do enganador que triunfa: Camilo Seabra. No conto, “o herói finge, o herói mente, o herói despista para conquistar a amada e o pai desta. E o contexto deixa claro: ele não triunfaria se não mentisse” 10.

À primeira leitura, o conto é quase decepcionante para os leitores do Machado de Brás Cubas. A atmosfera bucólica do interior de Goiás, onde a maior parte do conto se situa, destoa do ambiente urbano do Rio de Janeiro, território hegemônico na segunda fase do romance machadiano. Além disso, o interior de Goiás, que não faz frente ao cosmopolitismo parisiense, motivo da infelicidade mortificante de Camilo Seabra, que desembarca, logo no início do conto, no Rio de Janeiro depois de viver por oito anos em Paris para estudar medicina, é capaz de ressuscitar o rapaz para uma vida acesa na fogueira de um amor infantil reeditado na volta para a provinciana Santa Luzia.

Essa aparente inconsistência faz crer que o dilaceramento inicial do personagem, que desembarcou em terras brasileiras “com a mesma alegria com que o réu transpõe os umbrais do cárcere” 11, e que o pendor comparativo do jovem médico, que “Comparava o que via agora com o que vira durante longos anos” 12 em Paris, não eram problemas enfrentados unicamente pelo herói do conto, mas pelo próprio conto. Em 1873, um ano após a publicação do conto, Machado escreve o artigo “Instinto de nacionalidade” 13, no qual dá notícia da produção literária de seu tempo, dando relevo à tendência dos escritores brasileiros, desejosos de produzir uma literatura mais independente, de vestirem suas produções com as cores do país recém independente. No artigo, Machado afirma que “Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo” 14.

Como produção do trabalho social, a literatura brasileira sedimentava nas suas formas os dilemas não essencialmente literários do chão histórico nacional, no qual o passo decisivo para adiante arrastava ainda as correntes da escravidão e, inevitavelmente, claudicava, ao tentar seguir o ritmo do andamento das nações européias. Entre esses dilemas avulta, sobretudo, a condição de dependência do país Independente. Em meio à solução imediata, ainda muito débil, adotada pelos escritores brasileiros para lidar com esse impasse, gerava-se outro: produzia-se uma literatura com adereços de cor local que fantasiava a dependência externa impregnada nas bases da economia (também dependente) da produção cultural brasileira. O hieroglifo social da literatura brasileira se inscrevia como liberdade sobre o palimpsesto da colonização e da escravidão, “consorciando, na literatura, os que a fatalidade da história divorciou” 15. Machado, no centro dessa dialética entre local e cosmopolita, que moveu a formação da literatura brasileira, posiciona-se da seguinte forma:

10

Ibidem. 11

Machado de Assis, “A parasita azul”, cit., p.145. 12 Ibidem. 13

Machado de Assis, “Instinto de nacionalidade”. In: Aluizio Leite Neto, Ana Lima Cecílio, Heloisa Jahn (org.) Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008, p.147-155, v.3. 14 Ibidem, p.147. 15 Ibidem, 149.

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Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.16

É na direção dessa trilha, ainda não aberta entre o emaranhado dos descaminhos do nacionalismo literário, que o contista Machado traz Camilo Seabra de volta para o Brasil e o leva, após breve estada no Rio de Janeiro, para o interior de Goiás, Santa Luzia, cidade onde o herdeiro de um rico proprietário de terras nasceu e se criou até seguir para Paris, onde estudou medicina sob a tutela de seu padrinho, um naturalista francês e poeta fracassado que, no Brasil, tornou-se grande amigo do fazendeiro e comendador Seabra. Depois da morte súbita do padrinho francês, a França foi um paraíso para o jovem estudante que, recebendo uma mesada que proporcionaria a duas ou três pessoas uma vida dispendiosa e refinada, transformou-se em “parisiense até à medula dos ossos, e não compreendia que um homem pudesse sair do cérebro da França para vir internar-se em Goiás” 17, cérebro que o estudante goiano pouco aproveitou, ou do qual aproveitou mais decididamente apenas de um dos seus hemisférios, aquele ligado ao prazer advindo do gozo de raras mercadorias, alinhadas no mesmo plano: restaurantes italianos, cafés franceses, uma coleção de amigos devedores e uma linda princesa moscovita, que as más línguas diziam ser uma filha da Rua do Bac que trabalhara numa casa de modas, até a revolução de 1848. Camilo, empenhado em gozar a vida parisiense, o amor da princesa russa e o dinheiro goiano do pai, retardou ao máximo a sua volta, criando necessidades que só existem de fato se o dinheiro as puder efetivar:

Se tenho vocação para estudar, mas não tenho dinheiro algum para isso, não tenho nenhuma vocação para estudar, isto é, nenhuma vocação efetiva, verdadeira. Se eu, ao contrário, não tenho realmente nenhuma vocação para estudar, mas tenho a vontade e o dinheiro, tenho para isso uma vocação efetiva18.

Toda a mediação entre o personagem e sua história é feita pelo dinheiro, que aparece no conto como forma dos contrários se confundirem, promovendo uma realização do impossível. As necessidades que o dinheiro proporciona tomam forma sensível na narrativa graças às cartas que o moço, sob o influxo da poesia fracassada do finado padrinho francês, escrevia ao pai:

Em suma, meu pai, se lhe parece que eu tenho o necessário juízo para concluir aqui os meus estudos, deixe-me cá ficar até que eu possa regressar ao meu país como um cidadão esclarecido e apto para o servir, como é do meu dever. Caso a sua vontade seja contrária a isto que lhe peço, diga-o com franqueza, meu pai, porque então não me demorarei um instante mais nesta terra, que já foi meia pátria para mim, e que hoje (hélas!) é apenas uma terra de exílio. 19

16 Ibidem, 148. 17

Machado de Assis, “A parasita azul”, cit., p.147. 18

Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, cit., p.160. 19

Ibidem, p.146.

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A situação geográfica em que o personagem é posto, entre o centro e a periferia, e a feição cínica com que o nacionalismo aparece na escrita do personagem indicam que Machado lidava, no conto, com um problema central para a produção literária brasileira: a confraternização de impossibilidades, literatura nacional a partir de formas estéticas universalizadas pela colonização mercantil e consolidadas pelo capital mundializado.

O enfrentamento dessa questão, que encontra forma bem resolvida na crítica desenvolvida em “Instinto de nacionalidade”, revolve-se no experimentalismo do conto, à procura de uma forma capaz de dar conta do problema, não como sintoma inconsciente vindo à superfície pelos limites da construção narrativa, mas como composição formal acertada e rigorosa, construída na medida da complexidade do problema. Esse feito de construção, que nada tem de espontâneo20, só se realizou no segundo Machado; em “A parasita azul”, esse feito ainda procura sua realização. Daí o caráter experimental do conto, que obriga os contrários a se beijarem, mas não como efeito da construção romanesca arquitetada, e sim como parte de uma genealogia que ainda está em formação e cuja consolidação estética, como sabia Machado, “não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo”. O conto está, portanto, entre o seu jovem e incipiente passado literário – a produção do romance no Brasil – e o futuro narrador machadiano que alcança maioridade em Brás Cubas.

Do passado vêm, para a ordem temática do conto, o regionalismo romântico de Alencar, em o Tronco do Ipê; o componente malandro, de outras Memórias, as de Manuel Antônio de Almeida; e o idílio romântico da história do breve trocado por Carolina e Augusto na infância, em A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo. São muitos os pontos de semelhança entre esses aspectos dos romances citados e o conto de Machado; assim como, contraditoriamente, são significativos os prenúncios da volubilidade de Brás Cubas como narrador no protagonista Camilo Seabra. Não avançaremos aqui nesses parentescos genealógicos que já foram apontados com acuidade por John Gledson21, tendo em vista a objetividade e o espaço restrito deste artigo, mas é necessário mencioná-los para compreender a estrutura de troca e confusão que dá forma sensível ao trabalho machadiano em busca de uma representação que dê efetividade estética a uma forma social complexa. Efetividade que só se concretizará plenamente quando o enredo machadiano for capaz de compor o hieroglifo social que embute a verdade de que “a vida de nossos ricaços foi excelente, mas – em palavras de Oswald – corrida numa pista inexistente” 22.

Seguindo a pista do ricaço Camilo Seabra, o encontramos, então, em Santa Luzia, no interior de Goiás, já completa e surpreendentemente recuperado do atroz sofrimento causado pelo regresso à pátria. O remédio tem nome, chama-se Isabel Matos, uma beldade goiana que, apesar dos muitos pretendentes, segue o exemplo da Moreninha de Macedo e recusa sistematicamente e sem razão aparente todos os seus cortejadores. Leandro Soares, um dos recusados e antigo conhecido de Camilo, está decidido a não permitir que a moça que o rejeitou encontre alguém que o substitua no papel de marido devoto. Está armado o triângulo amoroso romântico, que fica debilmente sem lugar na trama do conto até encontrar solução no esboço da força criadora machadiana ainda em formação: Leandro aceita a proposta de Camilo, trocar

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Roberto Schwarz, Que horas são? São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p.121. 21

John Gledson, “1872: ‘A parasita azul’ – Ficção, nacionalismo e paródia, cit. , p.163 - 218. 22

Roberto Schwarz, Que horas são?, cit., p.123.

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uma coisa por outra, o amor de Isabel pela carreira política. A troca também se efetiva na forma do conto que, fantasiado de romântico, dá mostras de sua vocação futura, a estrutura narrativa artificiosa para a “vulgaridade de caracteres, o amor das aparências rutilantes, do arruído, a frouxidão da vontade, o domínio do capricho” 23.

O par romântico do conto, Camilo e Isabel, ensaia o tempo todo o compasso do capricho e a dança da dissimulação, ainda sem muito acerto, mas com empenho notável. Isabel se nega a amar Camilo, como misteriosamente vinha fazendo com todos os seus pretendentes. Entretanto, há boa dose de cálculo na sua recusa. A moça, de falar oblíquo e disfarçado, como afirma o narrador, tem uma razão para suas negativas. Isabel ama:

Ama... uma parasita. Uma parasita? É verdade, uma parasita. Deve ser então uma flor muito linda, — um milagre de frescura e de aroma. Não, senhor, é uma parasita muito feia, um cadáver de flor, seco, mirrado, uma flor que devia ter sido lindíssima há muito tempo, no pé, mas que hoje na cestinha em que ela a traz, nenhum sentimento inspira, a não ser de curiosidade. 24

E o que tem a ver tal mistério de amor com o cálculo e o dinheiro? Além da insinuação feita pelo vigário de Santa Luzia de que Isabel buscava um partido com futuro político garantido, algo mais forte se insere subterraneamente no terreno do conto. Isabel ama o negativo da flor: um cadáver de flor. O fato de Isabel concentrar todos os seus afetos nessa natureza morta e, por ela, negar a experiência amorosa com seus jovens pretendentes é explicado pelo narrador: na infância, Isabel e Camilo eram amigos próximos e enamorados um do outro; um dia, a menina viu uma linda parasita azul entre os galhos de uma árvore e o jovem Camilo, percebendo o encantamento de Isabel, perguntou se ela a queria. Diante da afirmativa da menina, Camilo subiu na árvore, colheu a flor e a lançou no regaço de Isabel, mas, ao tentar descer da árvore caiu ao chão e feriu a cabeça. A partir desse dia, Isabel que já gostava do rapaz, passou a adorá-lo e, enquanto Camilo esteve ausente a despender a fortuna do pai em Paris, toda sua adoração foi transmitida, por longos oito anos, à flor e “Uma espécie de culto supersticioso prendia o coração da moça àquela mirrada parasita” 25.

O quadro romântico e inocente não se enquadra bem ao temperamento de ambos depois do regresso de Camilo da França. No primeiro momento do reencontro entre eles, Isabel recebe o concorrente rejeitado de Camilo, Leandro Soares, com um adorável sorriso, o que faz Camilo pensar: “Ama-o ou é uma grande velhaca”. Nesse momento, Isabel pela primeira vez encara Camilo, que, falando a meia voz para si mesmo, completa o pensamento anterior: “Ou fala com o Diabo”, ao que Isabel, com os olhos ao chão, responde num murmúrio: “Talvez” 26. Para compreender melhor esse hieroglifo social escrito por Machado sobre o palimpsesto do idílio romântico, é preciso associá-lo, ainda, a outros dois momentos do conto. Leandro Soares narra a Camilo um sonho que tivera com Isabel e Camilo, no qual a moça inquiria o jovem médico a respeito do seu amor e exigia dele que fosse buscar o chapéu que ela havia deixado cair em “um imenso grotão em cujo fundo fervia e roncava uma água barrenta e grossa”. Em outra parte do conto, Camilo é esclarecido por um misterioso homem pobre, que, sendo favorecido pelo pai de Isabel, e desejando, por isso, a felicidade da moça, revela a Camilo o segredo da parasita azul. Camilo, cheio de alegria por saber que era ele o

23

Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, cit., p.33. 24

Machado de Assis, “A parasita azul”, cit., p.170. 25

Ibidem. 26

Ibidem, p. 155.

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protagonista da cena amorosa do passado, estende ao sujeito uma nota de vinte mil-réis, mas o homem, para o espanto de Camilo, joga a nota nas águas de um riacho e o “fio d’água levou consigo o bilhete” 27.

O alinhamento entre a parasita azul, o chapéu e a nota de vinte mil-réis é inevitável. E no vai e vem do conto, opera-se a transformação, a troca e a confusão entre uma coisa e outra. Os três objetos se misturam, dando conta de que uma coisa acaba sendo a outra, amor e dinheiro se enamoram. O cadáver da parasita azul está na forma do chapéu que está, enfim, na forma do dinheiro, todas emolduradas pela forma do conto que opera o movimento da transformação da representação em efetividade e da efetividade em pura representação28. No reino do capricho e do favor, a arbitrariedade da forma só é possível pelo poder de inversão do dinheiro, compartilhado pela literatura em seu processo criativo.

Para terminar essa análise, que na verdade é ainda inicial, tamanha a complexidade da relação que ela se propõe a examinar, é preciso ainda mencionar outro pólo da genealogia machadiana no sistema literário brasileiro. Trata-se do narrador do conto “Bárbara” 29, de 1991, do contista Murilo Rubião, confesso seguidor de Machado. O narrador muriliano nesse conto também teve que subir em uma árvore para atender aos caprichos da sua namoradinha de infância que, mais tarde, veio a ser sua mulher e, de menina franzina que era, transformou-se em uma mulher de corpo monstruoso, que fazia pedidos líricos e impossíveis que o dinheiro do marido transformava em efetividade: o mar, um baobá, um navio e, enfim, uma estrela. A cada exigência cumprida pelo dinheiro do marido, Bárbara engordava e, com ela, a narrativa do conto, que se alimenta dos desejos de Bárbara efetivados, transformados na lista infinita que compõe o corpo da própria narrativa, que, dessa forma, se confunde com as imagens líricas da mercadoria que se efetivam no mundo sensível do texto literário como hieroglifo social em que o homem busca o segredo da forma estranhada do seu próprio trabalho.

27

Ibidem, p.168. 28

Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, cit., p.160. 29

Murilo Rubião, Contos reunidos. São Paulo, Ática, 1999, p.33-39.

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Referências Bibliográficas

Alfredo Bosi, Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo, Ática, 1999.

John Gledson, “1872: ‘A parasita azul’ – Ficção, nacionalismo e paródia”. In: Hélio de

Seixas Guimarães e Vladimir Sacchetta (consultores), Cadernos de Literatura

Brasileira. Machado de Assis. Rio de Janeiro, Instituto Moreira Salles 2008, p.163 –

218.

Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004.

Karl Marx, O capital. São Paulo, Nova Cultural, 1988, v.1.

Machado de Assis, “A parasita azul”. In: Aluizio Leite Neto, Ana Lima Cecílio, Heloisa

Jahn (org.), Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008, v.2.

Machado de Assis, “Instinto de nacionalidade”. In: Aluizio Leite Neto, Ana Lima Cecílio, Heloisa Jahn (org.), Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008, v.3.

Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo, Abril Cultural,

1982.

Murilo Rubião, Contos reunidos. São Paulo, Ática, 1999.

Roberto Schwarz, Que horas são? São Paulo, Companhia das Letras, 1987.