Desvios da Tradução

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OS DESVIOS DA TRADUÇÃO: TRÊS QUESTÕES POLÊMICAS EM FRANCIS HENRIK AUBERT Elida Paulina FERREIRA 1 RESUMO: Em As (in)Bdelidades da tradução: servidões e autonomia do tra- dutor, Francis Henrik Aubert levanta três questões sobre a tradução e o tra- dutor, cujos papéis propõe redimensionar, opondo-se a uma visão que consi- dera tradicional. Entre a apresentação das questões e sua representação com respostas há um desvio teórico. Examino este desvio em termos de um doubie bind; dito de outra forma, levanto a hipótese segundo a qual o movi- mento da reflexão aubertiana encena um conflito em torno das questões pro- postas que revela a necessidade e a impossibilidade de estabelecer a tradu- ção como um mecanismo cujo funcionamento seja previsível e sustente um "tradutor-mediador". A partir de uma dimensão desconstrutivista, assumo que, ao invés de revelar uma contradição, a construção teórica proposta por Aubert passa a funcionar como uma espécie de doubie bind. PALAVRAS-CHAVE: Tradução; doubie Jbind; resistência; (in)fidelidade; dimensão desconstrutivista; intervenção do tradutor; teoria. O livro As (in)fídelidades da tradução: servidões e autonomia do tradutor é um lugar de reflexão sobre tradução em que Francis Henrik Aubert apresenta uma critica a certa visão de tradução que denomina tradicional, levanta questões a serem investigadas e estabelece como objetivo de sua análise responder às questões propostas e fornecer ele- 1 Aluna de pós-graduação do Departamento de Lingüística Aplicada - Instituto de Estudos da Lin- guagem - Unicamp - 13083-970 - Campinas - SP. Alfa, São Paulo, 44(n.esp.): 113-122. 2000 113

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Resumo: (in)fidelidades do tradutor: servidões e autonomia, francis henrik aubert levanta três questões sobre tradução e tradutor.

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  • OS DESVIOS DA TRADUO: TRS QUESTES POLMICAS EM FRANCIS HENRIK AUBERT

    Elida Paulina FERREIRA1 RESUMO: Em As (in)Bdelidades da traduo: servides e autonomia do tra-dutor, Francis Henrik Aubert levanta trs questes sobre a traduo e o tra-dutor, cujos papis prope redimensionar, opondo-se a uma viso que consi-dera tradicional. Entre a apresentao das questes e sua representao com respostas h um desvio terico. Examino este desvio em termos de um doubie bind; dito de outra forma, levanto a hiptese segundo a qual o movi-mento da reflexo aubertiana encena um conflito em torno das questes pro-postas que revela a necessidade e a impossibilidade de estabelecer a tradu-o como um mecanismo cujo funcionamento seja previsvel e sustente um "tradutor-mediador". A partir de uma dimenso desconstrutivista, assumo que, ao invs de revelar uma contradio, a construo terica proposta por Aubert passa a funcionar como uma espcie de doubie bind. PALAVRAS-CHAVE: Traduo; doubie Jbind; resistncia; (in)fidelidade; dimenso desconstrutivista; interveno do tradutor; teoria.

    O livro As (in)fdelidades da traduo: servides e autonomia do tradutor um lugar de reflexo sobre traduo em que Francis Henrik Aubert apresenta uma critica a certa viso de traduo que denomina tradicional, levanta questes a serem investigadas e estabelece como objetivo de sua anlise responder s questes propostas e fornecer ele-1 Aluna de ps-graduao do Departamento de Lingstica Aplicada - Instituto de Estudos da Lin-

    guagem - Unicamp - 13083-970 - Campinas - SP.

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  • mentos que permitam uma reviso do papel tradicionalmente atribudo ao tradutor e traduo (1994, p.8). Na elaborao de sua teorizao, Aubert busca um mecanismo que responda pelo funcionamento da traduo, no qual o tradutor se en-caixe; idealizando a separao processo/produto e abordando a tradu-o como ato comunicativo e como um fenmeno. Mas essa tentativa de separao dos supostos plos - processo/produto - esbarra na inter-veno do tradutor e conduz a desvios. Num primeiro momento, quando anuncia a busca de reviso do papel atribudo tradicionalmente ao tradutor e traduo, Aubert lana as seguintes questes: (1) cabvel exigir do tradutor o seu prprio apagamento?; (2) Em que medida aceitvel o desvio do texto traduzido em relao ao original? e (3) Admitida a diversidade lingstica e cultural, sem as quais estaria prejudicada a prpria razo de ser da traduo, at que ponto a diversi-dade constitui, efetivamente, um conjunto de "servides" impositivas? (1994, p.8) A partir da discusso dos diversos fatores condicionantes do ato tradutrio, espera colher subsdios suficientes para que sejam respondi-das as questes sugeridas na introduo e retomadas no ltimo cap-tulo do livro, tal como seguem: (1) cabvel exigir do tradutor o seu prprio apagamento, ou seja, esperar que ele evite, na medida (sobre)humanamente possvel, uma atuao que resulte em um filtro entre o texto original e a recepo do texto traduzido na lngua de chegada?; (2) Em que medida os desvios decorrentes de tal confronto so ou no admissveis na traduo? e (3) A diversidade imposta pelas lnguas e culturas de partida e de chegada do ato tradutrio constitui, efetivamente, um conjunto de "servides" que se impem ao tradutor? (p.79) Entre a apresentao das questes e a sua retomada com respos-tas h uma negociao, no mbito da discusso dos fatores que tomam parte no ato tradutrio, comprometida com a categorizao das vari-veis que interferem na traduo (p.13-4) e com a tentativa de tratar a traduo como fenmeno, cujo mecanismo possa ser previsto. Todavia a traduo resiste a esse tratamento, ou seja, resiste categorizao e

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  • domesticao com as quais se acena e por isso o terico precisa, ao retomar as questes, alter-las e tentar conform-las maneira como os fatores interferentes da traduo foram abordados, ao longo do seu livro. H o desvio e o cotejo entre as verses, nos dois momentos, pode nos dar indicaes desse desvio terico. Inicialmente, o estabelecimento das perguntas est comprometido com a crtica do que Aubert chama de "viso bastante difundida de tra-duo e do traduzir" (p.7). Nessa viso, o agente da traduo e do tra-duzir tende a ser visto como submetido a vrias servides. Submisso ao original e s restries impostas pelas diversidades lingsticas e cultu-rais, o tradutor deveria, na medida do possvel e do impossvel, abstrair o seu prprio ser, tornar-se um mero canal para permitir a passagem "plena" do texto original sua nova configurao lingstica. Nessas condies, o tradutor acaba sendo considerado um mal necessrio. Admite que casos de incompetncia h, mas no se trata de analisar a condio do tradutor nesse plano; para ele, outras so as questes que merecem ateno (p.8). Quando as questes so reapresentadas, o seu compromisso no mais se reporta crtica feita a uma "viso bastante difundida de tradu-o e do traduzir", e divergem em relao primeira proposta. O com-promisso, nesse segundo momento, com a dificuldade metodolgica reportada (p.8-9) e com a concepo de traduo que preside discus-so dos fatores que Aubert elege como aqueles que tomam parte na traduo e que lhe serviro de base de informao para responder s questes apontadas como pertinentes. Num primeiro momento, a interrogao (1) - " cabvel exigir do tradutor o seu apagamento?" - vem questionar a idia segundo a qual "o tradutor deveria, na medida do possvel e do impossvel, abstrair o seu prprio ser, tornar-se um mero canal, livre de 'rudos' ou outras obstrues passagem 'plena' do texto original sua nova configura-o lingstica", ou seja, o texto traduzido. Quando essa questo reto-mada, h um desvio. No se analisa mais o papel do tradutor, a partir do confronto entre texto original e texto traduzido, mas a partir da rela-o original/recepo do texto traduzido. Introduz-se a expectativa do receptor, ou a imagem que o tradutor faz dela, como um parmetro direcionador da atuao do tradutor, na suposio de que esse possa dar a medida de sua interveno, mas esse recurso no impede o des-vio. esse mesmo aspecto que responde pela divergncia entre as ver-ses da segunda questo; "Em que medida aceitvel o desvio do texto traduzido em relao ao original?" e "Em que medida os desvios Alfa, So Paulo, 44(n.esp.): 113-122, 2000 U5

  • decorrentes de tal confronto [entre o texto original e a recepo do texto traduzido na lngua de chegada] so ou no admissveis na tradu-o?". A diversidade lingstica e cultural, na primeira verso da terceira questo, assumida como inerente traduo; j na segunda verso desta mesma questo, aparece como uma imposio promovida pelas lnguas e culturas de partida e de chegada do ato tradutrio. Referncia feita ao ato tradutrio, no traduo, embora o que se busque seja "a reviso do papel do tradutor e da traduo", no do ato tradutrio. Como esse "desvio" tem relao com a dificuldade metodolgica, j apontada anteriormente, de estudar a traduo como processo; assim, Aubert precisa ancorar a sua reflexo no mbito do ato tradutrio, supostamente concentrando-se no campo do produto. E precisa, da mesma maneira, deslocar as suas perguntas, reformulando-as. No movimento de sua reflexo, Aubert lida com a traduo em duas dimenses: de um lado, busca negociar uma concepo de traduo vista como fenmeno, recorrendo ao "ato tradutrio"; de outro, admite a interveno do tradutor e o acontecimento da traduo, entretanto, no pode entregar-se a esta situao. Na primeira resposta, Aubert taxativo: o apagamento invivel e o tradutor agente, produtor de texto (p.80). Mas reside ainda uma per-gunta: ser inevitvel a interveno do tradutor como produtor de sen-tidos? A anlise das relaes imagticas entre os participantes dos diver-sos atos de comunicao, a constatao de que ocorre interseco entre as mensagens - pretendida, virtual e efetiva - e que jamais existe identidade, todos esses fatores comprovam a inviabilidade do "apaga-mento". Aubert afirma: ter [o tradutor] de tomar decises nos mais diversos nveis: comunicativo, lingstico e tcnico. , portanto e inevitavelmente, agente, elemento ativo, produtor de texto, de discurso. Mesmo a tentativa de apagamento -que, de fato, nada mais pode pretender do que ser uma tentativa, atravs do persistente esforo de colocar-se "no lugar do outro" - constitui, alm de um objetivo inalcanvel na sua plenitude, uma opo pessoal do tradu-tor, e, portanto, em ltima anlise, o texto traduzido portar as marcas dessa opo pessoal, (p.80-1) O terico encontra-se em dupla posio. Partindo do que Ottoni (1997, p.160) comenta sobre o fato de as teorias e histrias serem cons-

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  • titudas na tentativa de estabelecer e detectar a traduo como um mecanismo cujo funcionamento pode ser identificado e previsto, assumo que Aubert est entre a tentativa de estabelecer um funciona-mento do ato tradutrio - em que os fatores condicionantes desse ato seriam categorizados - e entre a impossibilidade de levar adiante o seu projeto independentemente da interveno do sujeito; ento visto como agente, produtor de texto cujo apagamento invivel. Como se houvesse pelo menos dois momentos na sua teorizao: um em que o autor tenta tratar a traduo como ato tradutrio e sua discusso se amarra ao esquema de comunicao organizado por Jakobson (Aubert, 1994, p.10-3). E outro em que, a partir da discusso anterior, o autor admite a inevitabilidade da interveno do tradutor como produtor de textos (p.79-85), entretanto, no tem condies de levar s ltimas con-seqncias, a partir do interior de sua teorizao, a admisso da impos-sibilidade de apagamento. Na segunda resposta, Aubert coloca-se em terreno complexo. Parte da assertiva de que traduzir desviar, mas assume que h um limite entre o que aceitvel como desvio e o que no o . O autor afirma: a existncia do desvio (que preexiste ao ato tradutrio e se confirma nele) que institui a prpria traduo, que a justifica como operao lingstica, cultural e comunicativa. No entanto, para alm de um (in)certo limite, o segundo texto deixa de ser reconhecvel como a traduo do primeiro. P-81) A primeira dificuldade seria, ento, identificar esse limite. Se consi-derarmos a primeira resposta de que no h possibilidade de apaga-mento do tradutor, j que produtor de texto, essa busca de limite j no se justifica mais. Uma das conseqncias de se considerar a impos-sibilidade de apagamento do tradutor a reviso do papel tradicional-mente atribudo ao tradutor e traduo: o tradutor inevitavelmente intervm na lngua e a traduo se instala como um acontecimento. Buscar limites para o desvio tentar colocar a traduo no mbito de um fenmeno transcendental, que supostamente pode ser pensado inde-pendente da lngua. Entretanto, a fixao de critrios imutveis que defi-nam o que aceitvel no se efetiva e o terico necessita desviar: a complexidade das relaes intersubjetivas, a variedade motivacional dos interlocutores, as restries no apenas lingsticas e culturais mas, com peso freqentemente marcante, tambm as de ordem temporal, tornam no Alfa, So Paulo, 44(n.esp.): 113-122, 2000 117

  • mnimo difcil, para no dizer impossvel, estabelecer in vitro um critrio ou um conjunto de critrios que assegure uma delimitao estvel entre o aceitvel e o inaceitvel, um referencial fixo, aplicvel a qualquer situao tradutria. (p.81) Atribui a dificuldade complexidade das relaes que se propu-sera a categorizar, mas a interveno do sujeito na lngua que deses-tabiliza a sua tentativa de sistematicidade. Isso acontece a propsito da tentativa de sistematizar a interveno do que chama de participantes do ato tradutrio (p.27-8). Em relao s mensagens, o terico no tem como fugir leitura promovida pelo tradutor, entretanto, ainda assim, busca dispositivos que respondam pelo limite da atuao do tradutor, pois mantm a dicotomia diversidade/identidade (p.76-7). Estratgia semelhante utilizada em relao anlise dos outros fatores condicio-nantes do ato tradutrio, que se prope a examinar; entretanto, uma vez mais, a sua teorizao abalada. Contrariando a sua assero de que "para alm de um (in)certo limite, o segundo texto deixa de ser traduo do primeiro", aps admitir a complexidade de se avaliar uma traduo, assume que esse limite no pode ser fixado e recai na particularidade, no mbito, portanto, da ine-vitabilidade da interveno do tradutor, afirmando: Em suma, no parece ser possvel estabelecer um critrio nico e geral de aceitabilidade ou no dos desvios, cabendo efetuar, caso por caso, uma avaliao global (e no apenas inspirada em uma lingstica ou uma estilstica comparada) que focalize, com elevada prioridade, a maior ou menor coincidncia de intenes comunicativas entre os participantes daquele ato tradutrio em particular, (p.84) Afinal, em que medida aceitvel o desvio do texto traduzido em relao ao original? Aceitar o desvio da forma como Aubert o faz - "tra-duzir desviar" - corroborar a impossibilidade de apagamento e a aceitao de um tradutor produtor de sentidos. Entretanto o terico, na constituio de sua teorizao, necessita de um lugar de estabilidade que as suas respostas abalam. Esse movimento evidencia o double bind e revela que a traduo um acontecimento, j que o sujeito um pro-dutor de sentidos. Diante desse conflito, Aubert busca a conciliao e institui um tra-dutor rbitro, mediador, tendo j admitido que o tradutor necessaria-mente um produtor de texto. Ser esse o suposto limite para o desvio na traduo?

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  • Ao retomar a terceira questo - At que ponto a diversidade imposta pelas lnguas e culturas de partida e de chegada do ato tradu-trio constitui efetivamente um conjunto de "servides" que se impem ao tradutor? - , cogita situaes que a sua reflexo, de alguma forma, j superou. Ele argumenta: Como se pde verificar nos captulos precedentes, as exigncias -lingsticas, culturais, sociais, comunicativas, subjetivas - colocadas tra-duo so freqentemente conflitantes, contraditrias. Diante de tal situa-o, a viso do tradutor como sujeito a uma multiplicidade de servides implicaria como que seu "esquartejamento", sua aniquilao e, no limite, a impossibilidade de satisfazer de maneira integral a qualquer uma das exi-gncias postas ao ato tradutrio. A anulao de sua presena, o requisito do "apagamento", constitui, portanto, caminho certo e predeterminado para pr(julgar) o tradutor como intrinsecamente incompetente e seu tra-balho como inevitavelmente inadequado, (p.81) Esse retorno talvez diga respeito ao fato de o autor no ter assu-mido as conseqncias de considerar o tradutor um produtor de textos. Por isso ele precisa retornar viso de traduo que critica, recuperando a possibilidade de apagamento, para justificar a construo de um tradu-tor-rbitro, conciliador, administrador de conflitos, gerenciando e nego-ciando as solues e os compromissos possveis. Quando assume o tra-dutor como produtor de texto est redefinindo o papel do tradutor em relao viso de traduo que critica. Todavia se desvia e, quando trata da diversidade na traduo, no pensa o papel do tradutor a partir da sua prpria crtica, retorna viso que combate para instituir um tradu-tor-mediador, o que sugere uma diferena entre o tradutor-produtor da resposta dada primeira questo e o tradutor-rbitro da terceira questo, pelo qual o autor faz opo. Esse tradutor responsvel pela concilia-o entre os diversos requisitos, como administrador dos conflitos, gerenciando e negociando, passo a passo, as solues possveis (p.85). A diferena suposta, todavia, entre tradutor-produtor e tradu-tor-rbitro, Aubert a desfaz, tentando mant-la, quando aponta que o tradutor estar administrando "solues possveis". Quem decide esse "possvel" o tradutor no momento da produo. Quero mostrar que, de alguma maneira, o tradutor intervm na lngua e sua autonomia se justifica em face dessa interveno e a traduo acontece. Se Aubert j admitira que no h possibilidade de apagamento e que o tradutor produtor de texto, por que, agora, instituir um tradutor-rbitro, geren-ciador e conciliador de conflitos para justificar a sua autonomia? O que

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  • confere autonomia ao tradutor no o grau de ligao que se estabe-lece entre as diferentes lnguas e culturas; ele autnomo porque no h possibilidade de seu apagamento e produtor de sentidos. Mas a teorizao aubertiana resiste e, ao mesmo tempo que busca entender a atuao do tradutor de um ponto de vista mais sistemtico, aponta para a particularidade e para o conflito com a lngua do qual o tradutor no se desvencilha. Para confirmar que o tradutor autnomo e no servil, Aubert pre-cisa discutir a relao entre lngua e "viso de mundo" e apenas aps concluir que essa relao no to inerente que, ento, assume que a diversidade lingstica e cultural no pode constituir "um conjunto de 'servides' impositivas" para o tradutor (p.42). Ao longo de sua teoriza-o sobre a diversidade no cogita qual seria o papel do tradutor ante as diferenas entre lnguas e culturas, prefere tratar a questo em ter-mos da "possibilidade da traduo", desviando-se da problemtica da interveno do tradutor, da mesma forma que se desvia desta proble-mtica a propsito da resposta dada terceira questo, quando institui o tradutor-mediador, tendo acabado de afirmar que o tradutor um produtor de textos. O conflito revela, por meio da lngua, a dupla posi-o do terico; revela uma espcie tambm de double bind. Dito de outra forma, ao invs de revelar uma contradio, o argumento de Aubert passa a funcionar como uma espcie de double bind. Comentando o mito de Babel, quando Deus impe e ope seu nome, a sua lei aos Semitas, Derrida (1985) anuncia o double bind -necessidade e impossibilidade da traduo. Ele afirma que, quando Deus impe e ope seu nome, ele rompe a transparncia racional mas interrompe, tambm, o imperialismo lingstico, destinando-os tradu-o, sujeitando-os dupla lei da traduo necessria e impossvel. Alm disso, a traduo toma-se lei, dever e dbito, mas um dbito do qual ningum se desvencilha (p.174). O double bind est na lei. Por isso no nos desvencilhamos do dbito ao mesmo tempo que a transparn-cia est impedida (p.184). Dessa perspectiva que se diz que traduo acontecimento e o double bind mostra isso. Sobre a relao do double bind com a lngua, Ottoni (1998) comenta:

    s atravs do double bind que um texto se faz outro ao evidenciar que a diferena de sentidos no privilgio das diferenas e diferentes ln-guas, mas de como esta diferena est marcada na lngua do tradutor. E como ele no consegue se libertar da imposio de sua lngua ... a tradu-o inevitavelmente promove a lngua e a faz transbordar, (p.5) 120 Alfa, So Paulo, 44(n.esp.): 113-122, 2000

  • Como no nos libertamos da lngua, assumo que os conflitos teri-cos encenados por Aubert revelam o acontecimento da traduo, pro-vocando ao infinito desvios e encenando o double bind. Como tenho insistido, a traduo instaura-se em termos de um duplo endividamento - necessidade e impossibilidade - , um double bind, que, de acordo com Derrida, "est na lei" e "insolvente em ambos os lados" (1985, p. 184-5). A partir dessa postura defendo, em concordncia com Ottoni (1997), que o double bind, por meio da lngua, revela a resistncia da traduo sistematizao, ao estabelecimento de um mecanismo pre-visto que encerre em limites fixos a relao sujeito (tradutor)/objeto (ln-gua) e o movimento da reflexo aubertiana encena esse double bind, uma vez que esta perturbada e, ao mesmo tempo, desestabiliza as "oposies binrias e hierarquizantes que autorizam todo princpio de distines tanto no discurso ordinrio quanto no discurso filosfico ou terico" (Derrida, 1996, p.46). Assim, no conjunto dessa discusso sobre os desvios da traduo, Aubert se desvia ao reformular as ques-tes apresentadas; desvia-se ao tratar a traduo como ato tradutrio; precisa desviar-se do processo da traduo; desvia-se, ao tratar da diversidade; desvia-se da interveno do sujeito, mas a lngua tambm promove seus desvios, e o terico no est livre de sua imposio, no est livre da traduo, duplamente necessria e impossvel. FERREIRA, E. P. Deviations in translation: three polemical issues in Francis Henrik Aubert. Alia (So Paulo), v.44, n.esp., p.113-122, 2000. ABSTRACT: Francis Henrik Aubert, in his work As (in)fidelidades da tradu-o: servides e autonomia do tradutor, points out three questions in regard to

    translation and the translator's role. He proposes to examine those questions in a dimension different from the one he considers traditional, by making a revision oi the role of translation and of the translator. The gap between the first presentation of the questions and their new presentation with answers reveals a theoretical deviation. I shall examine this deviation in terms of a dou-ble bind; in other words, I point out that the movement of Aubert's theoriza-tion brings to the scene a conflict which reveals the necessity and the impossibility to establish the translation as a mecanism which could be pre-dicted and that could cope with a "mediator". Based on a deconstructivist approach, I shall suggest that, instead of revealing a contradiction, Aubert's theorization functions as a kind of double bind.

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  • KEYWORDS: Translation; double bind; resistance; (non)fidelity; deconstruc-tion; translator's intervention; theory.

    Referncias bibliogrficas

    AUBERT, F. H. As (infidelidades da traduo: servides e autonomia do tradu-tor. 2.ed. Campinas. Ed. Unicamp, 1994. DERRIDA, J. Des Tours de Babel. In: GRAHAM, J. (Ed.) Diffrence in transla-tion. Traduo para o ingls de J. Graham. Ithaca: Comell University Press, 1985. p.165-207.

    . Rsistances de la psychanalyse. Paris: Galill, 1996. OTTONI, P. R. A traduo desde sempre resistncia: Reflexes sobre teoria e histria. Alfa: Revista de Lingstica (So Paulo), v.41, p.159-68, 1997. . Traduo recproca e double bind: transbordamento e multiplicidade de lnguas. Revista Internacional de Lngua Portuguesa (Lisboa), n.esp., 1998. (no prelo).

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