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1 SIMPÓSIO TEMÁTICO Da arte de construir à inteligência arquitetônica TÍTULO DÉTOURNEMENT a estética da indiferença na arquitetura holandesa AUTOR Gentil Porto Filho, professor doutor do Departamento de Design da UFPE RESUMO O presente artigo discute o impacto do détournement na arquitetura holandesa contemporânea. Definido pela Internacional Situacionista como "desvio" de elementos estéticos preexistentes para a configuração de novos arranjos significativos, o détournement foi explorado nos anos sessenta como um método de configuração e crítica cultural. Embora rapidamente assimilado pela arte e pelo design, o "desvio" de objetos arquitetônicos e situações urbanas a máxima ambição da vanguarda situacionista permaneceu, no entanto, praticamente irrealizado até a década de noventa. O que foi designado de "ultra-détournement" só veio a ser sistematicamente materializado a partir de tendências arquitetônicas influenciadas pelos postulados de Rem Koolhaas. Estabeleceu-se então uma verdadeira cultura projetual, disseminada internacionalmente por escritórios holandeses como o MVRDV, Neutelings Riedijk e NL Architects, com base justamente em técnicas de deslocamento, justaposição e hibridação de programas e tipologias preexistentes. Se, por um lado, tal produção vem renovando os paradigmas metodológicos e formais da arquitetura, por outro, não deixa de reproduzir a própria lógica organizacional da metrópole contemporânea. Neste contexto, cabe discutir se o détournement consiste hoje numa estratégia capaz de atuar criticamente sobre a cidade ou apenas num subproduto da "sociedade do espetáculo". PALAVRAS-CHAVE détournement, Internacional Situacionista, arquitetura holandesa

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SIMPÓSIO TEMÁTICO

Da arte de construir à inteligência arquitetônica

TÍTULO

DÉTOURNEMENT

a estética da indiferença na arquitetura holandesa

AUTOR

Gentil Porto Filho, professor doutor do Departamento de Design da UFPE

RESUMO

O presente artigo discute o impacto do détournement na arquitetura holandesa

contemporânea. Definido pela Internacional Situacionista como "desvio" de elementos

estéticos preexistentes para a configuração de novos arranjos significativos, o

détournement foi explorado nos anos sessenta como um método de configuração e

crítica cultural. Embora rapidamente assimilado pela arte e pelo design, o "desvio" de

objetos arquitetônicos e situações urbanas − a máxima ambição da vanguarda

situacionista − permaneceu, no entanto, praticamente irrealizado até a década de

noventa. O que foi designado de "ultra-détournement" só veio a ser sistematicamente

materializado a partir de tendências arquitetônicas influenciadas pelos postulados de

Rem Koolhaas. Estabeleceu-se então uma verdadeira cultura projetual, disseminada

internacionalmente por escritórios holandeses como o MVRDV, Neutelings Riedijk e

NL Architects, com base justamente em técnicas de deslocamento, justaposição e

hibridação de programas e tipologias preexistentes. Se, por um lado, tal produção vem

renovando os paradigmas metodológicos e formais da arquitetura, por outro, não deixa

de reproduzir a própria lógica organizacional da metrópole contemporânea. Neste

contexto, cabe discutir se o détournement consiste hoje numa estratégia capaz de

atuar criticamente sobre a cidade ou apenas num subproduto da "sociedade do

espetáculo".

PALAVRAS-CHAVE

détournement, Internacional Situacionista, arquitetura holandesa

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ABSTRACT

This article discusses the impact of détournement in contemporary Dutch architecture.

Defined by the Situationist International as a "diversion" of preexisting aesthetic

elements for setting up new meaningful arrangements, the détournement was exploited

in the sixties as a method of configuration and cultural criticism. Although quickly

assimilated into the art and design, the "diversion" of architectural objects and urban

situations - the highest ambition of the situationist avant-garde - remained, however,

virtually unfulfilled until the nineties. What was termed "ultra-détournement" only came

to be systematically materialized by architectural trends influenced by the tenets of

Rem Koolhaas. It has established then a true design culture, disseminated

internationally through Dutch offices such as the MVRDV, NL Architects and Neutelings

Riedijk, just based on techniques of shifting, overlapping and hybridization of

preexisting programs and types. If, on the one hand, this production has been

renovating the formal and methodological paradigms of architecture, on the other hand,

it reproduces the own organizational logic of the contemporary metropolis. In this

context, it should discuss whether the détournement is today a strategy able to act

critically in the city or just a byproduct of the "society of spectacle."

KEY-WORDS

détournement, Situationist International, Dutch architecture

Técnica situacionista

Fundada em 1957 por um grupo heterogêneo de artistas e ativistas políticos,

a Internacional Situacionista (SI, 1959) tinha como marca de sua manifestação o uso

do détournement. Definido como “desvio de elementos estéticos pré-fabricados” ou

“integração de produções artísticas atuais ou passadas em uma construção superior

do ambiente” (SI, 1958), o détournement era concebido como o próprio método de

superação de uma ordem sócio-cultural caracterizada pelo consumo passivo de

imagens e mercadorias.

Tendo como objetivo criar novos valores a partir da negação dos valores

estabelecidos (JORN, 1959), o détournement obedecia a duas "leis" principais: [1] a

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perda de importância de cada elemento autônomo desviado e [2] a organização de um

outro arranjo significativo no qual cada elemento ganha novos escopos e efeitos (SI,

1959). A realização do détournement implicaria, assim, numa atitude ao mesmo tempo

de "indiferença" e de crítica em relação aos produtos culturais de uma sociedade

capitalista em processo de "decomposição" (DEBORD; WOLMAN, 1956).

Figure 1 - Asger Jorn, O pato inquietante, 1957

A eficácia dessa técnica – devidamente sistematizada pelas regras de

aplicação de um “guia prático” inspirado em técnicas do design e da propaganda –

proviria da coexistência de velhos e novos significados (SI, 1959). Para os

situacionistas, tal método expressaria a própria contradição de uma era cuja

necessidade de iniciar uma ação coletiva inovadora é confrontada com a sua

impossibilidade imediata (SI, 1959).

O détournement ganha corpo nos anos sessenta como uma evidente

adaptação de certas idéias artísticas já desenvolvidas nas primeiras décadas do

século XX pelas vanguardas históricas. Selecionar e recontextualizar objetos

ordinários e “acoplar realidades inacopláveis” para produzir “estranhamento” e

“centelhas poéticas” ou para ampliar e criticar os padrões culturais vigentes é o próprio

fundamento dos readymades de Marcel Duchamp, das colagens dadaístas de Raoul

Hausmann e das imagens surrealistas de Max Ernst (1999).

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Embora assumidamente devedores dessa tradição que remonta às "poesias"

de Lautréamont, ainda no século XIX, os situacionistas pretendiam ultrapassar o viés

eminentemente negativo que a caracterizava e, sobretudo, estender a prática do

détournement a todo o espaço urbano (DEBORD; WOLMAN, 1956). Seja fazendo do

détournement um instrumento de propaganda seja produzindo uma “construção

integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento”

(SI, 1958), os situacionistas almejavam manipular não apenas imagens e discursos,

mas formas arquiteturais e “situações inteiras”. Sendo assim, o “ultra-détournement”

constituiria a máxima ambição de uma práxis política e cultural que pretendia aplicar a

técnica do "desvio" na totalidade da vida social cotidiana (DEBORD; WOLMAN, 1956).

O détournement na arte contemporânea

Após o encerramento da Internacional Situacionista e de vários outros

movimentos revolucionários nos anos setenta, o mundo das artes acabou

testemunhando na década de oitenta uma ampla retomada da tradição pictórica

(ARCHER, 2001). Tanto no contexto internacional como no brasileiro, as ambições

políticas que tinham orientado a crítica radical situacionista e a aplicação de técnicas

similares ao détournement cedem lugar às mais variadas tendências artísticas neo-

expressionistas (HARRISON, 1998).

Somente a partir de meados dos anos noventa o discurso crítico nas artes

visuais veio novamente a se fortalecer, associado muitas vezes aos diversos

movimentos ambientalistas e antiglobalização. As intervenções no espaço urbano e os

“projetos táticos” na internet de coletivos como o Critical Art Ensemble e o Etoy

passaram então a ocupar um território significativo da cultura contemporânea

(RICHARDSON, 2002). Uma produção que voltou a questionar os objetivos, os

métodos e o próprio contexto da arte e da cultura mediante procedimentos

parodísticos típico dos situacionistas.

A valorização de objetivos comunicacionais e do uso de técnicas projetuais

diversas, em detrimento dos tradicionais interesses estéticos, emergem como traços

fundamentais dessas tendências. Ao atuarem no espaço público, tais artistas

convertem-se muitas vezes em arquitetos de eventos e ambientes efêmeros,

explorando amplamente o détournement. Trabalhos de artistas como Nina Pope e

Jeanne van Heeswijk e do coletivo Superflex servem como exemplos de uma prática

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dedicada ao mapeamento do contexto físico, institucional e informacional e, sobretudo,

às estratégias de interação com o público-alvo através da manipulação de imagens,

espaços e práticas sociais estabelecidas.

Cada vez mais conectados com o sistema internacional das artes, artistas

brasileiros não só têm assimilado tais expedientes como colaborado para a sua

propagação e diversificação. Intervenções urbanas que atualizam a técnica do

détournement – seja por intermédio de artefatos físicos ou ações performáticas –

ocorrem inclusive regularmente em eventos públicos de grande porte como o “SPA

das Artes” no Recife.

Figura 2 - Vik Muniz, Mona Lisa dupla, 1999

No âmbito dos espaços tradicionais de exposição, a aplicação de

procedimentos relacionados ao détournement tem sido também notável na obra de

diversos artistas reconhecidos nos circuitos de museus e galerias. Os trabalhos de

Raul Mourão, Marcelo Cidade e Vik Muniz podem ser apontados como exemplos de

poéticas contemporâneas apoiadas no "desvio" de signos e artefatos preexistentes.

Ultra-détournement: o teorema

Embora o détournement tenha sido amplamente assimilado pelas artes

visuais, pelo design e pela propaganda, essa técnica ficou aparentemente restrita ao

nível imagético ou a ações artísticas. Ou seja, o tão almejado "ultra-détournement" − a

fusão de todas as artes na construção de um “complexo arquitetônico” segundo as

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regras do "desvio" − nunca chegou a ser plena e regularmente realizada até o

desfecho do movimento situacionista em 1972.

Foram necessárias três décadas desde então para que a própria arquitetura

começasse a ser largamente produzida a partir de métodos de deslocamento,

justaposição, hibridização ou deformação de “blocos situacionais” preexistentes. No

entanto, um possível início da difusão dessa estratégia projetual pode ser encontrado

já em 1978 com a publicação de Delirious New York. Nesse livro, Rem Koolhaas

(1994) desenvolve não apenas um "manifesto retroativo" em favor da "cultura da

congestão", mas uma possível teoria do détournement para o campo da arquitetura e

do urbanismo.

Ao descrever o típico "arranha-céu" nova-iorquino de múltiplo uso como o

dispositivo que engendrou o "manhattanismo", o arquiteto holandês apresenta uma

ilustração que, surpreendentemente, pode servir como um legítimo diagrama do "ultra-

détournement" situacionista (KOOLHAAS, 1994, p. 83). Retirado de um cartum do

início do século XX, esse "teorema" apresentado por Koolhaas mostra uma

megaestrutura vertical que suporta em cada pavimento edifícios completamente

autônomos em relação aos demais. Ora, se o arranha-céu multifuncional é

representado pelo empilhamento de tipos arquitetônicos preexistentes, tal ilustração

constitui o próprio teorema do détournement aplicado na arquitetura.

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Figura 3 - Rem Koolhaas, Teorema, Delirious New York, 1978

Nesse caso, a configuração do arranjo arquitetônico funda-se em duas

operações elementares: a primeira consiste em "desviar" tipos "originais" dos seus

contextos usuais e a segunda em justapor verticalmente esses elementos desviados.

Um método projetual que evidencia, antes de tudo, aquela atitude situacionista de

indiferença não só em relação a qualquer premissa estética como também à cultura

arquitetônica como um todo. Ao explicitar esse desinteresse pelo resultado formal

obtido, o "teorema" sugere que a ênfase do fazer projetual recai agora sobre questões

de ordem programática e organizacional.

Descrito e ilustrado implicitamente no Delirious New York, o uso do

détournement só ganharia ampla repercussão na arquitetura contemporânea a partir

da sua aplicação prática, efetivada pelo próprio Koolhaas nos anos noventa. Um dos

trabalhos mais emblemáticos quanto ao emprego desse método é o projeto para a

Biblioteca de Jussieu de 1992. Apesar da relativa homogeneidade programática e do

resultado final não corresponder a um tipo propriamente vertical, Koolhaas concebeu o

edifício como uma peculiar concretização do "teorema" do arranha-céu: um sistema de

pilares e lajes interconectadas a ser ocupado pelos itens do programa da biblioteca,

além de outros espaços e equipamentos "desviados" do tecido urbano, tais como

praças, cafés e lojas.

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A arquitetura surge claramente aqui como resultado de um processo projetual

baseado na configuração de uma estrutura espacial genérica e flexível e na posterior

seleção e combinação de tipologias preexistentes. O projeto não fixa o caráter estético

do conjunto, apenas estabelece uma infraestrutura urbana capaz de abrigar, organizar

e justapor artefatos e eventos. A atenção do projetista volta-se, portanto, menos para a

composição objetual do que para o modo de articulação de componentes

programáticos previamente estipulados.

Figura 4 - Rem Koolhaas, Kunsthal, Roterdã, 1992

Construída em 1992, a Kunsthal de Roterdã é outro trabalho de Koolhaas que

evidencia o uso do détournement como principal técnica projetual. No entanto,

diferentemente do projeto para Jussieu, Koolhaas aqui privilegia a elaboração estética

da edificação. O resultado alcançado provém diretamente da heterogeneidade dos

fechamentos e, sobretudo, das distintas tipologias escolhidas para cada setor da

edificação. Exibindo formas genéricas e elementares, o exterior expressa

didaticamente o seu programa, seja através do aspecto fabril do setor de exposição

seja da típica laje inclinada para a platéia do auditório.

O que evidencia esteticamente o uso do "desvio" como método projetual na

Kunsthal é a inexistência de uma síntese formal a partir dos componentes plásticos e

tipológicos utilizados. Ao recorrer deliberadamente à justaposição de elementos

heterogêneos, Koolhaas demonstra pouco apreço pela correção compositiva e,

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consequentemente, pelos próprios valores formais dos elementos desviados. Afirma

antes uma estética que ganha interesse justamente pela desvalorização de princípios

formais que costumam comprometer o valor de uso e a capacidade de inovação da

arquitetura (PORTO FILHO, 2004).

Os desdobramentos arquitetônicos das teses do Delirious New York

acabaram por fomentar uma cultura projetual baseada em técnicas de "desvio".

Aparentemente, tal tendência deve seu impacto a pelo menos duas razões práticas:

primeiro, porque a aplicação do détournement tende a valorizar questões relacionadas

mais aos usos arquitetônicos do que às formas − mostrando-se, assim, adequado às

posturas que questionam o potencial estético da arquitetura na metrópole

informacional; segundo, porque o détournement afirma-se como um procedimento

coerente com a fragmentação formal, a diversidade tipológica e a "instabilidade

programática" que caracteriza a realidade contemporânea.

Desvios holandeses

Muitos dos arquitetos holandeses que vêm atualizando a técnica do

détournement costumam considerar a arquitetura como um sistema para regulação e

potencialização de usos e eventos às custas de premissas estéticas ou

representacionais (SPEAKS, 1998). Para Winy Maas (1998), por exemplo, atuar na

"cidade da máxima diferença" implica em abandonar o tradicional exercício

compositivo em favor do processamento de dados e diagramas e de uma ampla

reutilização de tipologias "default".

Não é por acaso que o MVRDV, dirigido por Maas, seja um dos principais

responsáveis pelo desenvolvimento e radicalização das idéias difundidas por Koolhaas

e venha produzindo as mais notáveis aplicações do détournement na arquitetura

recente. O pavilhão holandês para a feira universal de Hannover em 2000 é um

desses casos emblemáticos de materialização do "teorema" do arranha-céu. Em vez

de deslocar tipologias arquitetônicas com objetivos puramente pragmáticos, o MVRDV

"desvia" aqui fragmentos de paisagens holandesas com finalidades simbólicas. De

todo modo, a operação projetual é basicamente finalizada com o simples

empilhamento desses "blocos situacionais", dispensando qualquer esforço para

harmonizar os elementos díspares selecionados.

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O MVRDV também tem explorado o détournement em programas

convencionais, submetidos aos condicionantes ordinários da prática arquitetônica.

Edifícios residenciais como o Silodam e o Mirador, construídos respectivamente em

2002 e 2005, demonstram a viabilidade dos métodos de "desvio" na realidade

cotidiana. Em ambos os casos, os dois procedimentos que caracterizam o processo

projetual consistem, primeiramente, em "desviar" a maior variedade possível de tipos

de apartamentos para, em seguida, agrupá-los, formando um grande bloco unitário.

Figure 5 - MVRDV, Silodam, Amsterdã, 2002

O aspecto visual resultante indica a prioridade do arranjo programático sobre

a harmonia compositiva. A dimensão estética surge aqui como uma espécie de

autocrítica, na medida em que a forma edificada decorre da mera justaposição de

elementos aparentemente incompatíveis. Desse modo, tais edifícios expressam de

maneira eloquente a condição fundamental para o uso do détournement: um certo

desdém em relação ao valor das formas utilizadas ou a qualquer método criativo

fundado em premissas estéticas.

Se esses edifícios do MVRDV podem ser apontados como realizações

acabadas de uma metodologia projetual baseada na "montagem" de “situações

desviadas”, as propostas do escritório NL Architects vão indicar, por sua vez,

diferentes possibilidades de uso do détournement. No caso do projeto do Parkhouse, a

operação realizada com os "originais" desviados não é exatamente a da justaposição,

como ocorre no "teorema" de Koolhaas e nas propostas do MVRDV. Após "desviar"

tipologias de estacionamento e shopping-center, o NL Architects realiza antes uma

"hibridização" (L’ARCHITECTURE D’AUJOURD’ HUI, 1999). Ao invés de uma

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"montagem" de unidades-tipo em que cada uma se mantém inalterada, o novo arranjo

é definido por elementos que se modificam mutuamente (sem no entanto deixarem de

preservar certas características estruturais que garantem a identidade dos "originais").

Figure 6 - NL Architects, Parkhouse, Amsterdã, 1995

O NL Architects tem também demonstrado uma especial versatilidade quanto

aos tipos de elemento desviado e contextos de uso do détournement. A estratégia de

deslocar e hibridizar pode ser observada em projetos de naturezas e escalas

completamente distintas, tal como ocorre na proposta para conversão de trens em

supermercados móveis ou no design do vaso "3Vase", realizado a partir da "fusão" de

três exemplares de um mesmo protótipo (NL ARCHITECTS, 2002). Além da

hibridização, o escritório também vem recorrendo à justaposição direta de programas

aparentemente heterogêneos, como é o caso do premiado Basket Bar, em cujo teto

implantou-se uma quadra esportiva.

Outros projetos representativos dessa metodologia não necessariamente se

fundamentam na justaposição ou hibridização de componentes deslocados. A paródia

da casa Farnsworth de Mies Van der Rohe realizada pelo One Architecture é o

exemplo de uma operação projetual que pode ser caracterizada basicamente pelo

"desvio" − sem nenhum outro procedimento criativo de grande relevância. Em

consonância com o modo de atuação cultural situacionista, o escritório explora

abertamente o "plágio" como um recurso para ironizar os próprios pressupostos

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estéticos da arquitetura (L’ARCHITECTURE D’AUJOURD’ HUI, 2002). Tende, assim,

a reduzir o valor da edificação ao seu caráter estritamente instrumental, na medida em

que apenas adapta um ícone da arquitetura universal a novas demandas, sem,

todavia, elaborar novas "formas originais".

Figure 7 - John Körmeling, Pioneer House, Roterdã, 1999

A "pioneer house" é outro caso notável na arquitetura holandesa de um

processo projetual reduzido praticamente ao "desvio" de um "original". Sabendo-se

que a arquitetura tende sempre a enfrentar problemas específicos a partir de formas

específicas, a intervenção de Körmeling levanta questões cruciais sobre a própria

natureza da atividade arquitetural. Tal como no readymade de Duchamp, o arquiteto

holandês simplesmente desloca uma tipologia "colonial" para o teto de um edifício de

escritório (TOESET, 2001, p. 13). Desvaloriza, assim, qualquer pressuposto estético

no processo projetual, além de problematizar radicalmente a própria noção tradicional

de autoria.

Essa ampla e variada presença do détournement na arquitetura holandesa

contemporânea pode também ser verificada em projetos cujas técnicas de desvio são

aplicadas a elementos que nem são de natureza espacial nem programática. No caso

do edifício Minnaert de Neutelings Riedijk, os componentes desviados são fontes

tipográficas que, além de deslocadas do seu contexto familiar, são ampliadas e

confeccionadas em aço para funcionarem como elementos estruturais da fachada

principal. Ocorre aqui não só o desvio mas a conversão de artefatos simbólicos em

elementos construtivos mediante uma radical subversão da escala e da função dos

"originais".

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Figure 8 - Neutelings Riedijk, Minnaert, Utrecht, 2000

Desvio desviado: considerações finais

Essa metodologia projetual fundamentada no uso do détournement vem se

renovando nos Países Baixos especialmente a partir do “dirty detailing” da Kunsthal

(TOORN, 2001). Nos últimos anos instalou-se uma cultura arquitetônica que, mesmo

ironicamente “desviada” do contexto histórico “original” dos situacionistas, levanta

importantes questões sobre procedimentos projetuais e sobre o próprio potencial

crítico atribuído aos métodos de desvio.

É importante assinalar que o uso do détournement delineia-se como um

fenômeno cultural contemporâneo que extrapola amplamente o campo da arquitetura,

espalhando-se pelas artes visuais, pelo design, pelo paisagismo e por todo o universo

da propaganda, da publicidade e dos meios de comunicação de massa. Projetos tão

diversos como as “casas-móveis” do Atelier Van Lieshout, o “mobiliário” do Schie 2.0 e

as intervenções paisagísticas do West 8 são apenas alguns exemplos que atestam o

impacto desse método sobre áreas de atuação diferentes da arquitetura.

Apesar da maciça exposição da recente arquitetura holandesa nos meios

editoriais e da multiplicação das investigações sobre as teses situacionistas na última

década, as possíveis conexões entre ambas continuam insuficientemente exploradas.

Deixa-se, assim, de investigar temas arquitetônicos e urbanísticos relacionados não

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apenas à metodologia projetual mas aos atuais impasses e utopias da arquitetura e

das artes em geral.

Os casos aqui apresentados deixam claro a relevância dessa técnica

situacionista para a teoria e a prática arquitetônica. Ganha destaque o viés pragmático

de um procedimento criativo que se fundamenta no reaproveitamento e na

"perversão" de formas, tipos e conceitos preexistentes. Desse modo, ressalta-se

também a capacidade crítica que o détournement pode assumir em relação ao

esteticismo que vem norteando a "sociedade do espetáculo".

Se o uso do détournement implica numa certa indiferença quanto aos códigos

formais preestabelecidos e mesmo numa desaprovação de qualquer abordagem

projetual formalista, fica patente que se trata de um método que acaba por priorizar

questões relacionadas à usabilidade arquitetônica. Ora, na medida em que a forma

arquitetural é concebida simplesmente a partir do "desvio" de elementos preexistentes

e de um determinado modo de combinação entre eles, os princípios estéticos tendem

a perder espaço para os problemas práticos e, portanto, éticos.

Outro aspecto que merece ser ressaltado é o potencial do détournement para

desestabilizar cenários urbanos e culturais homogeneizados. Na verdade, a própria

concretização do "desvio" depende dos efeitos de "estranhamento" produzidos no

contexto e no "público-alvo". Em outra palavras, a eficácia do détournement está

intrinsecamente vinculada à sua capacidade de subverter ou de pelo menos

"desautomatizar" redes estabelecidas de signos e práticas sociais (DEBORD;

WOLMAN, 1956).

Por outro lado, esse pragmatismo inerente aos métodos de desvio mostra-se

ironicamente coerente com as premissas utilitaristas do capitalismo avançado,

levantando, assim, questões sobre suas possíveis contradições internas. Nesse

sentido, é imprescindível verificar, antes de tudo, se as formas arquitetônicas são

mesmo capazes de produzir algum tipo de "desvio" numa cidade já completamente

fragmentada, hibridizada e saturada − onde parece ocorrer uma irreversível "fadiga do

objeto" (MAAS; RIJS, 1998, p. 100).

Questões sobre a hipotética natureza crítica do détournement tornam-se

especialmente apropriadas ao constatarmos a dependência desse procedimento em

relação às suas condições de recepção. Qualquer "desvio" parece irremediavelmente

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atrelado ao modo que os aparatos informacionais "editam" seus efeitos ou

circunscrevem sua própria materialização no espaço urbano.

Diante da limitada capacidade estética e crítica das formas arquiteturais no

contexto da cidade pós-industrial, a técnica do "desvio" mostra-se, portanto, tão

relevante quanto problemática. Por um lado, pode ser visto como um dispositivo

projetual capaz não apenas de organizar pragmaticamente a "datatown", mas

sobretudo de transformar "poeticamente" as nossas percepções e comportamentos.

Por outro lado, deixa em aberto perguntas sobre as reais potencialidades técnicas e

críticas de um método que hoje poderia ser visto como a própria reprodução da lógica

organizacional da “delirious New York”. Em resumo, faz-se necessário avaliar se a

ampla utilização do détournement é uma possível “estratégia de resistência”, tal como

entende Toorn (2001, p. 31), ou apenas mais um subproduto da “sociedade do

espetáculo”.

Referências DEBORD, Guy; WOLMAN, Gil. A user´s guide to détournement (1956). Disponível em: <http://www.cddc.vt.edu/sionline/presitu/usersguide.html> Acesso em: 25 set. 2006. ERNST, Max. Qual o mecanismo da colagem? In: CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999. JORN, Asger. Détourned painting (1959). Disponível em: <http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/painting.html>. Acesso em: 30 mai. 2007. KOOLHAAS, Rem. Delirious New York: a retroactive manifesto for Manhattan. Rotterdam: 1994. L’ARCHITECTURE D’AUJOURD’ HUI. Paris, n. 324, p. 55-74, sep./oct. 1999. ______. Paris, n. 343, p. 70-71, nov./dec. 2002. MAAS, Winy; RIJS, Jacob van. FARMAX: excursions on density. Rotterdam: 010 Publishers, 1998. NL ARCHITECTS. Rotterdam: 010 Publishers, 2002. PORTO FILHO, Gentil. O fim do objeto: linguagem e experimentação na arquitetura depois do Modernismo. 2004. Tese (Doutorado em Arquitetura) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. RICHARDSON, Joanne. The language of tactical media (2002). Disponível em:

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