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127 , Goiânia, v. 16, n. 1, p. 127-140, jan./jun. 2018. Ricardo Cortez Lopes** Resumo: trata-se de um estudo de caso de uma devoção católica parodiada, a do per- sonagem fictício japonês chamado Goku (da franquia Dragon Ball) a partir de dois fenômenos: a Igreja Universal do Reino de Goku e a Marcha para Goku. Essa devoção, apesar da linguagem que utiliza, se refere a uma crítica católica ao avanço da presença neopentecostal na esfera pública. Palavras-chave: Goku. Paródia. Imanência. Sagrado. J á afirmava o psicanalista Jacques Lacan que “ou não penso, ou não sou” (BRU- DER; BAUER, 2007, p. 516). Seguindo essa linha de raciocínio, as divindades são fortes na medida em que não se coloca em dúvida a sua transcendência. Mas, mui- tas vezes, as divindades podem ser criadas intencionalmente por mãos humanas: seja para defender sagrados ou para atacar outros sagrados. Nosso objeto de inves- tigação é a gênese de uma divindade criada propositalmente a partir da inspiração em um artefato globalizado: Goku. Esta “devoção parodiada” nos foi detectável empiricamente a partir de dois fenômenos recentes: a “marcha para Jesus” e à comunidade no facebook chamada de “Igreja Universal do Reino de Goku”. Goku é um personagem ficcional da franquia multimídia japonesa Dragon Ball, criada pelo desenhista industrial Akira Toryama. Goku é inspirado no personagem Sun Wukong, do romance Jornada para o Oeste 1 , do chinês Wu Cheng’en, e significa “Rei Macaco” em português. Ambos possuem uma cauda de macaco: no romance porque Sun Wukong é um macaco e na animação porque o per- DEVOÇÃO CATÓLICA PARODIADA: LIBERDADE RELIGIOSA E CULTO IMANENTE* ––––––––––––––––– * Recebido em: 21.12.2017. Aprovado em: 08.05.2018. ** Mestre e Doutorando em Sociologia (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Licen- ciado em Ciências Sociais. Professor de sociologia na ONG por uma Educação Popular. E-mail: [email protected] DOI 10.18224/cam.v16i1.6145

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Ricardo Cortez Lopes**

Resumo: trata-se de um estudo de caso de uma devoção católica parodiada, a do per-sonagem fictício japonês chamado Goku (da franquia Dragon Ball) a partir de dois fenômenos: a Igreja Universal do Reino de Goku e a Marcha para Goku. Essa devoção, apesar da linguagem que utiliza, se refere a uma crítica católica ao avanço da presença neopentecostal na esfera pública.

Palavras-chave: Goku. Paródia. Imanência. Sagrado.

J á afirmava o psicanalista Jacques Lacan que “ou não penso, ou não sou” (BRU-DER; BAUER, 2007, p. 516). Seguindo essa linha de raciocínio, as divindades são fortes na medida em que não se coloca em dúvida a sua transcendência. Mas, mui-tas vezes, as divindades podem ser criadas intencionalmente por mãos humanas: seja para defender sagrados ou para atacar outros sagrados. Nosso objeto de inves-tigação é a gênese de uma divindade criada propositalmente a partir da inspiração em um artefato globalizado: Goku. Esta “devoção parodiada” nos foi detectável empiricamente a partir de dois fenômenos recentes: a “marcha para Jesus” e à comunidade no facebook chamada de “Igreja Universal do Reino de Goku”.

Goku é um personagem ficcional da franquia multimídia japonesa Dragon Ball, criada pelo desenhista industrial Akira Toryama. Goku é inspirado no personagem Sun Wukong, do romance Jornada para o Oeste1, do chinês Wu Cheng’en, e significa “Rei Macaco” em português. Ambos possuem uma cauda de macaco: no romance porque Sun Wukong é um macaco e na animação porque o per-

DEVOÇÃO CATÓLICA PARODIADA: LIBERDADE RELIGIOSA

E CULTO IMANENTE*

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* Recebido em: 21.12.2017. Aprovado em: 08.05.2018.

** Mestre e Doutorando em Sociologia (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Licen-

ciado em Ciências Sociais. Professor de sociologia na ONG por uma Educação Popular.

E-mail: [email protected]

DOI 10.18224/cam.v16i1.6145

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sonagem pertence a uma raça alienígena chamada Sayajin. Goku havia sido enviado ao planeta terra para conquistá-lo, mas, ao bater sua cabeça, perdeu este “instinto” de destruição e foi socializado por um senhor chamado Son Go-han, que lhe ensinou artes marciais e lhe deixou como legado uma das esferas do dragão - artefatos mágicos que, quando reunidos, chamam o dragão Shen Long para realizar um desejo - antes de morrer por circunstâncias esclarecidas apenas posteriormente.

O ponto de virada da trajetória de Goku é quando encontra com uma menina chamada Bulma, que está em busca das sete esferas para realizar um desejo particular. Assim, Goku deixa a sua região isolada nas montanhas e se engaja em muitas situações. Durante vários acontecimentos, é morto e revivido pelas esferas, além de sempre precisar superar suas habilidades prévias para enfrentar adver-sários gradativamente mais fortes. O personagem muitas vezes é comparado com Super-Homem, e a comparação não é espúria: ambos representam ideais como o do dever (desinteressado ou ingênuo) e como o da força (crônica, como a do Super-Homem ou conquistada, como a de Goku). Curiosamente, foi no ocidente que o “culto” a Goku foi realizado: “O personagem mostra muito o caminho de como se tornar um herói e também tem uma certa relação com Je-sus Cristo, afinal, ele morre, ressuscita e salva a Terra”, destaca o organizador” (MARCHA, 2014). É contexto também a força da cultura japonesa no Brasil a partir dos anos 1980, através de mídias que foram chegando e que foram tendo uma repercussão positiva no canal de televisão chamado Manchete (NUNES, 2013, p. 82).

O percurso desse texto será o de conhecer os conceitos de análise e mediação digital, seguido da análise.

IMANÊNCIA, TRANSCENDÊNCIA E SAGRADO

A imanência trada aa realidade como uma deriva do mundo sensível (no caso, a natu-reza como um ente-em-si). Esta foi criada e que se guia por um conjunto de acontecimentos aleatórios. Não há intervenção divina (DULLO, 2012, p. 382) nem metafísica: apenas o mundo físico dos átomos.

Já a transcendência tem a ver com o escape dos sentidos e dos átomos: uma dimensão não física que antecede à dimensão física. Esta não é independente nem na sua origem e nem na sua continuidade (ABAGGNANO, 2007, p. 973).

Sociologicamente, o sagrado é imanente por derivar dos grupos humanos. Mas os seres humanos não percebem essa criação e o consideram-no como uma força transcendente, uma realidade maior (ROSATI; WEISS, 2015, p. 122).

A ficção como invenção que envolve a nossa atenção parece ser uma possibilidade de se fazer um transcendente se tornar imanente. É transcendente no sentido de

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ultrapassar a imanência (porque não retrata necessariamente o vivido), mas é imanente por provir da imaginação de algum criador e não acontecer de fato. E também é sagrada no sentido de que é uma composição de valores in-dividuais e artísticos, que se misturam e, assim, geram a obra ficcional. Nesse sentido, Goku é sabidamente um ser que não possui (nem nunca possuiu) uma vivência física e histórica, mas foi criado por alguém que teve essa vivência, que se inspirou em valores ou pessoas para elaborar a personagem, uma com-posição de vários elementos que o tornam crível e, assim, apreciável. É uma espécie de “mentira desejada” que permite mobilizar elementos sagrados sem ser, de fato, um sagrado, por conta de sua origem já sabidamente humana - a obra de Toriyama.

LIBERDADE RELIGIOSA, PARÓDIA E ETNOGRAFIA VIRTUAL

Com o processo/projeto moderno, os nacionalismos buscaram estabelecer-se como as fontes de sagrados compartilhados e públicos. Os sagrados particulares, como o da religião, segundo esta teoria, enfraqueceram-se diante de fenômenos como o da urbanização, da industrialização e do progresso técnico e científico (RANQUETAT, 2012, p. 16). Estabelece-se, assim, o enquadramento imanen-te do mundo e as religiões podem ser vividas como opções, e não como uma obrigatoriedade óbvia, uma matriz social (TAYLOR, 2010, p. 625).

Apesar de alguns países possuírem religiões oficiais, elas não são exclusivas e sua re-cusa não implica sanção jurídica. No Brasil, vamos observar a preconização da liberdade religiosa neste artigo da Constituição Federal: “VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (FEDERAL, 1988). Assim, a carta constitucional descreve e prevê um ambiente plural, mas ainda há desigualdades simbólicas (GIUM-BELLI, 2008, p. 97).

Há uma assimetria nas forças das confissões na ocupação do espaço público. Desta configuração potencialmente conflituosa emergem embates, uma parte deles traçados a partir da confecção de paródia. Inicialmente, esta seria um re-curso originalmente literário: subverter o estado das coisas e buscar novas verdades constituindo-se as antigas nas suas referências (ALAVARCE, 2009, p. 59). Existem algumas paródias às religiosidades dominantes, algumas a nível internacional. Uma delas seria a do Pastafarianismo (PACE, 2015, p. 74), criada em 2005 pelo professor Robert Henderson e que fundou a Igreja do Espaguete Voador.

Trata-se de uma criação sabidamente fictícia, mas que, mesmo assim, consegue mobili-zar pertenças. Goku, por exemplo, não é uma criação “nova”, ele já é compar-

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tilhado (conhecido e celebrado) por muitos sujeitos. Mas ele é ressignificado de personagem fictício à uma divindade sabidamente falsa. A ficção perma-nece em todos os níveis, mas comunica factualmente um sentimento através da paródia. Se o pastafarianismo é contra o design inteligente, por exemplo, a devoção à Goku se coloca irreverentemente na dimensão política.

Mas é importante estabelecermos que há um intermediário digital em nossa investigação para a produção dos dados. Isso porque há duas limitações: (a) uma temporal, referente ao evento ter ocorrido em 2014 e (b) não presencial. Não há como garantir um “estar lá” como no trabalho de campo analógico, que começa com o deslocamento no tempo e espaço para um local diferente. Portanto, se Geertz, por exemplo, aponta o gabinete como uma etapa do trabalho etnográfico, para essa antropologia o gabinete está em todo o processo, algo que inclui problematizar essa relação de maneira indireta (LEITÃO; GOMES, 2011, p. 25). Realizadas essas considerações, podemos avançar para o material empírico, que nos dará o contato indireto - mas não menos rico - com essa devoção.

A PÁGINA: A IGREJA

É relevante conhecer, brevemente, o provável referente neopentecostal da paródia, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), de 1977 (MARIANO, 1996, p. 124). Se há uma Igreja Universal do Reino de Goku online, há chance de esse nome ter sido derivado da IURD. A probabilidade aumenta quando promovemos uma comparação das imagens e de alguns documentos, como veremos agora.

O banner de capa da página, revela alguns aspectos, conforme a Figura 1:

Figura 1: Banner da capaFonte: <https://www.facebook.com/Igrejauniversaldoreinodegoku/photos/a.374395332610354.79660.374395042610383/980163225366892/?type=1&theater>.

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Afora a corruptela do símbolo da IURD (o coração), há ainda um outro elemento que chama a atenção: a hibridização Jesus Cristo-Goku. Não é uma imitação: as roupas são as de Jesus, mas as cores são as das vestimentas de Goku. Os traços do rosto do personagem também não são as do original de Goku, o que reforça a hibridização. Ressaltamos que esta imagem possivelmente seja uma paródia de alguma outra imagem que não está mais disponível online. Outra foto re-levante é a aquela que serve de ícone para a página. Esta segue na Figura 2:

Figura 2: Foto do íconeFonte: <https://www.facebook.com/Igrejauniversaldoreinodegoku/photos/a.374395332610354.79660.374395042610383/980163225366892/?type=1&theater>.

Novamente podemos observar o logotipo da IURD. Mas os traços ficam mais claros na comparação com uma imagem religiosa, da Figura 3:

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Figura 3: Jesus CristoFonte:<https://www.google.com.br/search?hl=pt-br&tbm=isch&source=hp&biw=1745&bih=885&q=jesus+cristo&oq=jesus+cristo&gs_l=img.3..0l10.1830.3226.0.3411.14.8.0.0.0.0.328.602.2-1j1.2.0....0...1.1.64.img..12.2.600.0...0.DINTGTBBdi4#imgrc=rI5NpHc9XULKVM:>.

As roupas são basicamente as mesmas em cores, mesmo que a pintura de Jesus Cristo (JC) tenha sido realizada com outra técnica. A posição das mãos é quase idên-tica: apenas a mão direita de JC aponta para o Sagrado Coração com um dedo, enquanto Goku o faz com todos eles. JC também olha para o horizonte e pos-sui uma expressão mais transcendente, enquanto Goku olha diretamente para o apreciador da figura. A fonte de luz na imagem de JC provém diretamente do Sagrado Coração, mas a de JC não ficou aparente de onde provém. Por fim, JC possui uma auréola auto brilhante, enquanto Goku possui uma bola de luz que é alimentada por uma série de fios - algo que remete a um golpe do perso-nagem chamado de Genki Dama, o qual conheceremos no próximo parágrafo.

A Figura 4 é sobre o “ritual”: levantar as mãos aos céus e enviar energia para Goku re-alizar a Genki Dama, ataque energético realizado com uma voluntária doação de energia, feita com os braços levantados. É uma postagem humorística que mostra uma prática “crente”:

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Figura 4: Postagem humorística na páginaFonte: <https://www.facebook.com/Igrejauniversaldoreinodegoku/photos/rpp.374395042610383/1409548959094981/?type=3&theater>.

Com relação aos documentos, vamos começar pela missão da instituição, composta por dois valores. O primeiro é “Ir por todo o mundo e pregar o Gokuismo a toda criatura”, remetendo a “Ide por todo mundo, pregai o evangelho a toda criatura” Marcos 16.15; O segundo é “Goku é meu senhor, e meu ki elevará”, o que remete para o salmo 23 da Bíblia Sagrada: “O Senhor é meu pastor e nada me faltará”. Apesar do Salmo 23 ser mais conhecido do que o versículo de Marcos, é preciso algum conhecimento teológico prévio para se poder rea-lizar a corruptela.

Em mais alguns textos do site se pode encontrar “afirmações”. São 16 da IURG e, após pesquisa, encontramos 16 da IURD. Trata-se do mesmo texto, o que muda são elementos, com as seguintes substituições de palavras: Goku = Deus = Pai, Gohan2 = Filho = Senhor Jesus Cristo, Shenlong = Espírito Santo, Mestre Kame3 = Adão, Lei = força, Mandamentos = Ki4 = sangue, Chi Chi5 - Virgem Maria, Sayajin6 = divino = santidade = espiritual, Lutar = sacrificar, Apanhar = morrer, Tratar = sepultado, DBZ7 = Bíblia, Semente dos deuses8 = água, Freeza = Majin Boo = Dabura9 = diabo, Crentelhos - cristãos, Sayajin Ceia = Santa Ceia, Gokuismo = cristianismo, Curtidas = dízimos, Compartilhamen-

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tos = ofertas, Poder de luta10 = mandamentos, Esferas do Dragão = Palavra, Nuvem Voadora11 = Nuvem, Vida de um guerreiro Sayajin = Vida eterna e Super Sayajin = Segunda morte.

Mas além das meras substituições, há três pontos de discordância, todos constantes nas afirmações 5 e 7. O primeiro diz respeito às obras assistenciais: Goku as apro-va irrestritamente para se obter a Salvação, diferentemente da IURD. Para os protestantes, a noção de assistência social é diferente, porque fazem coincidir caridade e prosperidade econômica (MONTERO, 2006, p. 59).

Também as Sementes dos Deuses causam atributos positivos imediatos, enquanto o Ba-tismo com Água só tem eficácia ao ser acompanhado uma mudança de atitude ética. O último ponto é a utilização do vocabulário “Crentelhos” por parte dos gokuístas.

O ACONTECIMENTO: A MARCHA

O referente para essa paródia, provavelmente, é a Marcha para Jesus. Um dos partici-pantes afirmou que: “eu acredito que teve relação sim. Não digo que foi uma afronta nem nada, apenas jovens se divertindo e se expressando de maneira saudável”. A original começou em 1987 na Inglaterra e queria dar maior vi-sibilidade aos evangélicos no espaço público. No Brasil ela é organizada pela Igreja Renascer em Cristo, e não pela IURD (DE MOURA PAEGLE, 2008, p. 94).

Realizamos uma revisão do ocorrido em portais da web, uma etnografia dos vídeos gravados e entrevistas semiestruturadas com participantes voluntários. Esse material foi registrado no diário de campo. Os vídeos são os seguintes: Marcha para Goku em Curitiba (https://www.youtube.com/watch?v=aNIrk7MRi3M), #1 Vlog! Marcha para Goku em Curitiba! (https://www.youtube.com/watch?v=FQ-95a84Pzc), Marcha para Goku - Curitiba (https://www.youtube.com/watch?v=Qb8-aMipiZs), Marcha para Goku! (https://www.youtube.com/watch?v=TXP9rdIWfxg).

O planejamento da Marcha para Goku começou meses antes: “A iniciativa foi uma ideia do perfil de humor Busão Curitiba, que faz sucesso nas redes sociais”, como afirmou um dos entrevistados. “Tentaremos fazer um super Genki Dama para enviar forças ao nosso guerreiro! E será a maior Genki Dama que Curitiba já viu” (MARCHA PARA, 2014). Alguns jornalistas da época consideraram que a Marcha foi uma sátira da Marcha para Jesus, compondo a tendência de encontros absurdos marcados pelo facebook (MARCHA PARA, 2014). Foram 27 mil confirmações.

Foram reunidas cerca de 200 - ou 400 pessoas (CURITIBA, 2015) - em um domingo que pareceu ensolarado. ““Mas a ideia principal, que era mostrar que qual-

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quer pessoa pode ocupar a cidade pela causa que bem entender, aconteceu. Foi divertido”, comemora Marcel [Bely]” (MARCHA, 2014). Um ano de-pois, foi planejada uma segunda Marcha para 7 de junho de 2015, mas desta não obtivemos muitas informações, apenas de que foram 1,3 mil confirmações (CURITIBA, 2015).

Por se tratar de um personagem fictício, poderíamos questionar: por que Goku? Não poderia ser dedicada a qualquer outro personagem? Uma das respostas para essa problematização foi dada por um jornal, que afirmou ser uma paixão in-fantil revivida pelos participantes (CURITIBA, 2015). Mas há indícios de in-tencionalidade dos organizadores em um texto escrito após o evento:

Mas afinal, qual o motivo de se realizar uma marcha para um personagem fic-tício? [...] Bem, nessa marcha havia cristãos, agnósticos e ateus e todos eram bem vindos. Independente se era de esquerda ou de direita, todos eram bem vindos. Independente de sua idade e se eram homens ou mulheres, independente de sua opção sexual, todos eram bem vindos. [...] Cada um tinha seu próprio motivo para estar lá, mas de forma geral, essa marcha fez com que voltássemos a nossa infância e relembrássemos de um dos momentos mais belos dela [...] O Goku? Ele representa uma boa parte de nossa infância, aquele momento em que voltamos para casa, da aula, para acompanhar mais um episódio, a hora em que sentávamos em frente a TV, seja com nosso irmão/irmã, com nossos amigos ou até mesmo com nossos pais para torcer pela vitória de Goku. Era o momento em que ficávamos aflitos e torcendo pelo nosso Herói, para que ele vencesse mais uma vez. [...] E Se você ainda não acredita nisso, olhe para a foto e perceba a expressão de felicidade desse garotinho ao ganhar um boneco de seu personagem favorito, do personagem que gosta tanto que fez questão de vir à marcha caracterizado como ele. Esse rosto feliz representa, para todos que vieram à marcha e todos que a apoiaram, o que já vivemos um dia: Felicidade [grifos nossos].

É perceptível que o motivo aventado foi, basicamente, o da felicidade pueril, das recor-dações infantis. Questões etárias, religiosas, políticas12: todas elas subsumem a esse sagrado, que uniu esses indivíduos em volta do ideal compartilhado de torcer para goku no desenho animado da infância, o que se traduz na transcen-dência de felicidade. Há a formação do ideal na imagem: a action figure de Goku, para além da brincadeira, serve como celebração do ideal. Esse estado é alcançável na convivência coletiva, que atraiu, por exemplo, um dos parti-cipantes: “eu não organizei a marcha, só fui participar por gostar muito do Goku [...] é o Goku [...] não precisa de explicações”. O sagrado aparece em sua inquestionabilidade.

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Nos vídeos podemos observar que há um atraso do início da marcha, ela começou mais tarde do que havia sido combinado na internet. Com o passar do tempo, começa uma concentração de pessoas em pequenas rodas, e a marcha se pôs em movimento na chegada de pessoas utilizando fantasias. Um marcador se destaca visualmente: um banner de Goku segurado por um dos integrantes das pequenas rodas, o que nos apontou para quem eram os organizadores (dado que se confirmou em outros vídeos). É interessante que não se trata de uma imagem oficial da produtora: a imagem foi nitidamente desenhada e impressa.

Não é muito difícil de enxergar a consagração: a veste cerimonial nas fantasias e a imagem que aglutina os ideais - tal como uma procissão onde a imagem da Santa é levada à frente. No decorrer da marcha a imagem é segurada à frente: ela comunica simbolicamente o motivo da união daqueles indivíduos e abre os caminhos. Também são cantados os temas de abertura do desenho: curio-samente, aquele que filmado foi o da série menos popular de Dragon Ball, Dragon Ball GT. Eram audíveis, também, gritos de “Majin Boo, vai tomar no cu!”, que remete a gritos em atos políticos. Foi perceptível também que alguns participantes riam quando proferiam esses cantos.

O espaço onde se desenvolve a marcha foi em uma região central que, por ser larga, favore-ce esse tipo de manifestação - destarte a existência de bancos e canteiros centrais. O grupo avança em bloco cantando as músicas, a evolução é documentada o tempo todo através de celulares e câmeras. Parecem conviver a diversão e a seriedade.

Por fim, há ainda um evento no Facebook que convida usuários para a Marcha, e que continuou ativo. Há nelas algumas imagens, como a da Figura 5:

Figura 5: Foto do evento Marcha para GokuFonte: <https://www.facebook.com/1437853973138626/photos/a.1437855233138500.1073741825.1437853973138626/1439090676348289/?type=1&theater>.

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Há muitas imagens de “Goku anjo” disponíveis na internet, acessíveis por uma simples pesquisa. É uma evidência que Goku acabou adquirindo alguma espécie de afinidade com alguns valores cristãos e isso é expresso no volume de desenhos disponíveis. A auréola está presente na produção original (em uma das mortes de Goku), mas as asas constantes são uma montagem. Goku está com asas de anjo católico, e as está batendo para levantar vôo - no desenho, ironicamente, o personagem consegue voar sem auxílios de asas por conta de uma técnica.

A última imagem é uma montagem com o “ritual” concluído. Após a atividade sagrada dos participantes da Marcha, desenvolve-se a Genki Dama na Figura 6:

Figura 6: Genki Dama no espaço públicoFonte:<https://www.facebook.com/pg/Marcha-para-Goku-1437853973138626/photos/?tab=album&album_id=1437857733138250>

Podemos observar que a Genki Dama está pairando acima do espaço público por excelên-cia (a prefeitura), e é realizada por todos que colaboram voluntariamente - uma das fotos mostra os participantes efetivamente levantando as mãos. O golpe apa-renta ser um microcosmos da terra como um todo: uma herança de igualdade

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porque a técnica só existe porque há a participação voluntária de todos - vale notar que o gesto de erguer as mãos em direção ao céu é tipicamente cristão. É preciso uma ocupação adequada e igualitária na construção desse espaço, e a Genki Dama simboliza essa participação. Igualitarismo que pode remeter à modernidade, mas parece expressar com uma linguagem definitivamente ca-tólica. Ou seja: trata-se de uma religião ocultada servindo para parodiar uma outra religião que se publiciza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho tratou de uma devoção parodiada católica, que é a devoção ao persona-gem da franquia multimídia Dragon Ball, Goku. O exploramos a partir de duas manifestações: a página Igreja Universal do Reino de Jesus (paródia da Igreja Universal do Reino de Deus) e a Marcha para Goku (paródia da Marcha para Jesus). Observamos, no decorrer do texto, que o vocabulário utilizado no culto é basicamente o cristão, o que nos fez formular a categoria de cristianismo parodiado, pois os valores cristãos acabam sendo mantidos, apenas com outra roupagem. Cabe, a partir de agora, realizar algumas reflexões finais.

O primeiro lugar é pensar se esse culto se trata de um protesto, de uma festa, de uma celebração ou de uma contestação. Talvez, como se trata de um ideal imanen-te, todos esses elementos estejam presentes: o protesto está na paródia, a festa está na diversão (da paródia), uma celebração (principalmente do passado) e uma contestação - talvez da atuação da religiosidade neopentecostal na esfera pública. Assim, há um engajamento no sentido de se aproximar indivíduos de grupos, mas a ficção como atividade mediadora parece ser catártica o suficien-te.

Esse culto pode servir como um indicativo de que não existe um sentimento de autoria na estrutura política brasileira. Trata-se de um elemento globalizado que pare-ce “purificar” a prática, e a paródia de certos grupos pode indicar a percepção de uma dominação de algum grupo. Assim, essa iconoclastia pode indicar um desejo de reconhecimento? Porque críticas como a do Pasterastafianismo rei-vindicam uma simetria com algo que não pode ser afirmado como irreal, o es-paguete voador. Porém, o gokuísmo já se afirma como uma ficção proposital, mas ocupa o espaço público ao menos por aquele momento. E também não se reivindica como uma seita, embora tenha construído elementos “teológicos” para tal.

Outra questão é que a ficção pode estar escondendo um sagrado religioso. Isso porque há uma transcendência do mundo através desse intermezzo, uma suspensão que permite um olhar renovado. Por isso, o ideal era que não se apresentassem esses conflitos mundanos: nem de idade, nem de gênero, nem políticas. No en-

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tanto, pudemos observar a presença de uma empresa especializada em cultura oriental tanto na divulgação quanto na organização do evento. Essa talvez seja a única intervenção comercial amplamente aceita.

PARODED CATHOLIC DEVOTION: RELIGIOUS FREEDOM AND CELEBRATION OF IMANENCE

Abstract: about a case study of a parody Chatolic devotion, that of the fictional Japanese character called Goku (Dragon Ball franchise) from two phenomena: the Universal Church of the Kingdom of Goku and the March for Goku. This devotion, despite the language it uses refers to a Catholic critique of the advance of the Neo-Pentecostal presence in the public sphere.

Keywords: Goku. Parody. Immanence. Sacred.

Notas

1 Sun Wukong foi um macaco que nasceu de uma pedra mítica, que se tornou rei dos macacos,

ao que empreende uma jornada para se tornar imortal (MITOCONDRIA, 2009, 2009).

2 Filho de Goku

3 Professor de artes marciais de Goku

4 Palavra de origem chinesa que designa a força vital. No enredo, se trata de uma medida

qualitativa, porque é sentida.

5 Esposa de Goku

6 Raça alienígena da qual Goku faz parte

7 Sigla de Dragon Ball Z, uma das séries de Dragon Ball.

8 Sementes que permitem a recuperação instantânea de ferimentos.

9 Todos inimigos no enredo.

10 Medida numérica das potencialidades de luta de um indivíduo dada por algum equipamento.

11 Artefato mágico que permite ao usuário de coração puro se transportar por via aérea. A

nuvem voadora também existiu no romance A jornada para Oeste.

12 Embora um dos participantes tenha relatado: “deviam ter algumas pessoas aproveitando a

marcha para divulgar opiniões políticas”.

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