Dexter e perversão.

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Psicologia em Estudo, Maringá, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 SOFRIMENTO PSÍQUICO NA PERVERSÃO: O CASO DEXTER Fábio Roberto Rodrigues Belo * Larissa Bacelete # RESUMO. A análise do personagem fictício Dexter permite construir hipóteses metapsicológicas sobre as origens da perversão. A posição perversa nesse caso deve-se à presença maciça de violência nas origens do sujeito psíquico. Dexter expressa o abandono sofrido pela atuação pulsional, os assassinatos em série, tentando inverter o estado de passividade no qual se encontra. Sua angústia pode ser organizada de duas formas distintas: a primeira é consciente, fornecida por seu pai, Harry, que o ensina a não deixar vestígios dos seus crimes. A segunda maneira é inconsciente, e traduz o desejo de submeter o outro à dor, fazendo com que, por meio do mecanismo de identificação projetiva, o perverso desfrute deste sofrimento que provoca, sendo remetido, então, às suas vivências originárias de submissão. Conclui-se que na perversão a angústia não apenas está presente, como também é constitutiva da escolha do sujeito de operar pela via da violência. Palavras-chave: Perversão; angústia; violência. PSYCHIC SUFFERING IN PERVERSION: THE DEXTER AFFAIR ABSTRACT. The analysis of the fictional character Dexter makes it possible to construct metapsychological hypotheses about the origins of perversion. The perverse position in this case is caused by the strong presence of violence at the psychic subject’s origin. Dexter expresses the suffered abandonment by acting-out, the serial murders, trying to reverse the state of passivity in which he is. Dexter’s anxiety can be organized in two distinct ways: The first is conscious, supported by his father, Harry, who teaches him how not to leave traces of his crimes. The second way is unconscious and translates the desire of subject the other to pain, allowing the perverse, through projective identification, to enjoy the suffering he causes, being remitted to his originary experiences of subjection. We conclude that in perversion, anxiety is not only present but is also constitutive of subject’s choice to operate through the path of violence. Key words: Perversion; anxiety; violence. EL SUFRIMIENTO PSÍQUICO EN LA PERVERSIÓN: EL CASO DEXTER RESUMEN. El análisis del personaje ficticio Dexter permite la construcción de hipótesis metapsicológicas sobre los orígenes de la perversión. La posición perversa en este caso se debe a la presencia masiva de la violencia en los orígenes del sujeto psíquico. Dexter expresa el abandono sufrido a través de una actuación pulsional, los asesinatos en serie, intentando invertir el estado de pasividad en el que se encuentra. Su angustia puede ser organizada de dos maneras distintas: la primera es consciente, proporcionada por su padre, Harry, quien le enseña a no dejar rastros de sus crímenes. La segunda es inconsciente, y traduce el deseo de someter al otro al dolor, haciendo con que, a través del mecanismo de la identificación proyectiva, el perverso disfrute del sufrimiento que provoca, siendo remitido, así, a sus experiencias originarias de sumisión. Concluimos que, en la perversión, la angustia no sólo está presente, sino que es constitutiva de la elección del sujeto de operar por medio de la violencia. Palabras-clave: Perversión; angustia; violencia. * Doutor em Estudos Literários (Literatura Brasileira), pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto I, no Departamento de Psicologia, da Universidade Federal de Minas Gerais. # Mestra em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012), pesquisadora do Projeto CAVAS (UFMG).

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Artigo sobre perversão utilizando a série Dexter e o personagem principal como ponto de partida da discussão.

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Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 SOFRIMENTO PSQUICO NA PERVERSO: O CASO DEXTER Fbio Roberto Rodrigues Belo* Larissa Bacelete # RESUMO. A anlise do personagem fictcio Dexter permite construir hipteses metapsicolgicas sobre as origens da perverso.Aposioperversanessecasodeve-sepresenamaciadeviolncianasorigensdosujeitopsquico. Dexterexpressaoabandonosofridopelaatuaopulsional,osassassinatosemsrie,tentandoinverteroestadode passividade no qual se encontra. Sua angstia pode ser organizada de duas formas distintas: a primeira consciente, fornecida por seu pai, Harry, que o ensina a no deixar vestgios dos seus crimes. A segunda maneira inconsciente, etraduz odesejodesubmeterooutrodor, fazendocom que,pormeiodomecanismodeidentificao projetiva,o perversodesfrutedestesofrimentoqueprovoca,sendoremetido,ento,ssuasvivnciasoriginriasdesubmisso. Conclui-sequenaperversoaangstianoapenasestpresente,comotambmconstitutivadaescolhadosujeito de operar pela via da violncia. Palavras-chave: Perverso; angstia; violncia.

PSYCHIC SUFFERING IN PERVERSION: THE DEXTER AFFAIR ABSTRACT.TheanalysisofthefictionalcharacterDextermakesitpossibletoconstructmetapsychological hypothesesabouttheoriginsofperversion.Theperversepositioninthiscaseiscausedbythestrongpresenceof violenceatthepsychicsubjectsorigin.Dexterexpressesthesufferedabandonmentbyacting-out,theserialmurders, trying to reverse the state of passivity in which he is. Dexters anxiety can be organized in two distinct ways: The first is conscious, supported by his father, Harry, who teaches him how not to leave traces of his crimes. The second way is unconsciousandtranslatesthedesireofsubjecttheothertopain,allowingtheperverse,throughprojective identification, to enjoy the suffering he causes, being remitted to his originary experiences of subjection.We conclude that in perversion, anxiety isnot only present but is also constitutive of subjects choice to operate through the path of violence.Key words: Perversion; anxiety; violence. EL SUFRIMIENTO PSQUICO EN LA PERVERSIN: EL CASO DEXTER RESUMEN. El anlisis del personaje ficticio Dexter permite la construccin de hiptesis metapsicolgicas sobre los orgenesdelaperversin.Laposicinperversaenestecasosedebealapresenciamasivadelaviolenciaenlos orgenesdelsujetopsquico.Dexterexpresaelabandonosufridoatravsdeunaactuacinpulsional,losasesinatos enserie,intentandoinvertirelestadodepasividadenelqueseencuentra.Suangustiapuedeserorganizadadedos maneras distintas: la primera es consciente, proporcionada por su padre, Harry, quien le ensea a no dejar rastros de suscrmenes.Lasegunda es inconsciente,ytraduceel deseo de someteral otroal dolor, haciendocon que,atravs del mecanismo de la identificacin proyectiva, el perverso disfrute del sufrimiento que provoca, siendo remitido, as, asusexperiencias originariasde sumisin. Concluimos que,en la perversin,laangustiano slo est presente, sino que es constitutiva de la eleccin del sujeto de operar por medio de la violencia. Palabras-clave: Perversin; angustia; violencia. *DoutoremEstudosLiterrios(LiteraturaBrasileira),pelaUniversidadeFederaldeMinasGerais.ProfessorAdjuntoI,no Departamento de Psicologia, da Universidade Federal de Minas Gerais.# Mestra em Estudos Psicanalticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012), pesquisadora do Projeto CAVAS (UFMG). 520Belo & Bacelete Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 Nesseartigo,analisaremosocasodeDexter, personagemdasriehomnima,lanadaemoutubro de 2006, nos Estados Unidos. Baseados no romance de JeffLindsay(2004),DarklyDreamingDexter,os12 episdios que compem a primeira temporada contam ahistriadoanalistaforenseDexterMorgan, especialistaempadresdedispersodesanguena Diviso de Homicdios do Departamento de Polcia de Miami.FilhoadotivodeHarry,policialreconhecido porsuacondutaimpecvelnestemesmo departamento,Dexterdivideseutempoentreo trabalhoeoutraatividadequeexecuta compulsivamente:aprocuradecriminososqueno foram punidos pelo sistema judicirio, a comprovao daresponsabilidadedestessujeitosnosrespectivos crimes e seus subsequentes assassinatos.ApscursarMedicina,Dextertorna-seperitona Homicdios,eseutrabalhoconsisteemavaliar,tanto emcenasdecrimequantopormeiodeexames laboratoriais, como os padres de disperso de sangue podemsugerirdeterminadostiposdeferimentos,uso de armas especficas, e at caractersticas fsicas do(s) autor(es).Umadesuasfrasesmaisrepetidasade que o sangue conta uma histria.Apesardemostrar-secompletamentevontade emsuasatividades,nota-sequeDexterescolheraeste trabalhotambmcomoumamaneiradeteracessoa arquivospoliciais(oqueconseguemantendouma amizadecomafuncionriaresponsvelporeles,para aqualsemprelevapresentes),encontrandopessoas quecometeramrepetidamentecrimesqueconsidera imperdoveissempreenvolvendoassassinato,cuja vtimainocente,podendo,ento,prosseguircom suaatuao.Entretanto,afimdenolevantar suspeitas,Dexterseesforaparasergentil,calmoe prestativo,mastambmsemantmextremamente reservado no ambiente profissional. OcomportamentodiscretodeDextervisaevitar chamaraatenoparasimesmo,evitandotambm que se levante qualquer suspeita sobre sua rotina, seus afazeresparaalmdotrabalho,esuavidantima. Assim,nomantmqualquerligaoemocional intensa,sejanoplanoamorosoesexual,oumesmo familiar.porissoquenocedesrecorrentes tentativasdeseduodesuachefa,Ten.LaGuerta,e que no compartilha seus problemas com a irm, filha legtimadocasalMorgan,quetrabalhacomopolicial infiltrada.Contandosemprecomofaropolicial aguado de Dexter,que parecet-loaprendidocomo pai,Debrareclamamuitasvezesdadistnciaafetiva doirmo.Pelomesmomotivo,opersonagemassume umrelacionamentocomRita,mulhertraumatizada comosconstantesmaus-tratosdoex-marido,quese recusaaterumavidasexualcomonamorado.A distncia,eatmesmocertaformalidadequese observaentreocasal,sofatoresapaziguadorespara Dexter,que,dessemodo,sentemanterocontroleda situao. Sem dvida, somente com seu falecido pai que o personagem mantm uma ligao emocional intensa e complexa.ParaDexter,Harryeraonicoqueo conheciaverdadeiramente,et-loorientadosobre comodirecionarseusimpulsosagressivosfoi determinanteemsuavida,poupando-odeter assassinadovriaspessoasnajuventude,sparaver osangueescorrer(Dexter,temp.1,ep.3,26:06a 27:17).Figuraextremamenteidealizada,Harry encarnaoobjetoonipotentenavidapsquicade Dexter:excelentepolicial,homemhonesto,marido dedicado,e,principalmente,opaiatenciosoquefoi capazdeidentificarnofilhoadotivotraosmrbidos queasoutraspessoasignoravam,amando-o,apesar disso. Vrias so as cenas nas quais a ligao entre os doismostrada,aindaduranteainfnciadeDexter, oumesmoemsuaadolescncia.Escolhemosduas, ambasdoprimeiroepisdio,paranosdetermosmais detalhadamente.Na primeira cena (Dexter, temp. 1, ep. 1, 06:56 a 07:24),Dexteraparececomaproximadamentedez anos de idade, e seu pai o questiona sobre um cachorro davizinhana,quedesaparecera.Harryafirmater encontradoumacovacomossosenterrados,ea crianaentojustificatermatadooanimalporcausa dobarulhoquefazia,incomodandosuame,quese encontravamuitodoente.Harryprossegue:Havia muitosossosl,Dexter.NoapenasosdeBuddie. Na sequncia da cena (21:45 a 22:22), Harry pergunta aofilhoseelejpensaraemmataralgomaiorque umcachorro,como,porexemplo,umapessoa.O menino confirma, e o pai insiste, questionando por que nomatara.Dexterrespondequenoofizerapor pensarqueospaisnogostariamdisso.Oque desejamosressaltaraqui,maisdoqueodilogoentre osdois,aexpressodopaidacriana,que, visivelmente assustado, tenta confort-la.Talsemblantetambmaparecenaoutracena (temp.1,ep.1,29:09a31:50)qualnos reportaremos:jadolescente,Dexterconfrontado pelopai,quandoesteencontraemseuspertencesum conjuntodefacasdecaa,algumasaindamanchadas desangue.Ofilhoafirmaquesmataanimais,mas Harry sente que os impulsos violentos do garoto esto saindo de seu controle, ainda que tente conversar com elesobreisso.Propeentoquecanalizemesta violncia,jquenopodeminterromp-la.Valea penatranscreverpartedodilogo,quecomeacom Harry interpelando Dexter: -Filho,existempessoaslforaquefazem coisasmuitoruins.Pessoasterrveis.Ea Sofrimento psquico na perverso521 Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 polcianoconseguepegartodaselas... Entende o que estou dizendo? - Est dizendo... que merecem morrer.-Isso mesmo. Mas claro que voc tem que aprenderaidentific-las,acobrirseus rastros. Mas posso ensin-lo. - Pai... -Tudobem,Dex.Vocnopdeevitaro quehouvecomvoc[referindo-sea experinciasanterioressuaadoo],mas pode tirar o melhor disso. (Dexter, temp. 1, ep. 1, 29:09 a 31:50 ). CabeaquiinformaraoleitorqueDexterfora adotadoaostrsanosdeidadee,emboraHarry mencionealgumasvezesqueofilhoteriatido experinciasanterioresqueinfluenciaramdiretamente aconstruodesuapersonalidade,quasenenhuma outramenofeitasvivnciasdacriananeste perodo.Nosesabequemsoseuspaisbiolgicos, ouporqueforaadotado.Mesmoameadotivade Dexter lembrada poucas vezes, ficando claro apenas que morrera de cncer durante sua infncia.Nota-sequeasrecomendaesdeseupaise tornam essenciais para Dexter, e passam a moldar suas interaesnocenriosocial.Umasdelas ade queo filhoseencaixe,oquesignificafazerdetudopara pareceromaiscomumpossvel,sematrairaateno dosoutrosparaseucomportamento.Pensandoassim, Harryaconselhaopersonagemasemostraralegree entusiasmadoemprogramasfamiliares,mesmoque no esteja, a esquivar-se de qualquer tipo de violncia no contexto escolar, para no ser visto como agressor, e at mesmo a tentar demonstrar interesse por meninas dasuaidade,comoamaioriadeseuscolegas.Estas orientaesseriammaneirasdeajudarofilhoa esconder a escurido segundo o termo de Harry queohabita,evitandoquefiqueexpostoealgumdia sejadescoberto,responsabilizadoepenalizadopor seus crimes. Apesar de se revelarem medidas eficazes emtermosprticos,percebemosqueelasacabampor daraDexterasensaodecertaartificialidadeem suasvivnciassociais,distanciando-odasoutras pessoas,edificultandooacessoaseusprprios sentimentos. Pois, reprimindo os impulsos sdicos e as dificuldadesqueencontravaemestabelecerligaes afetivascomosoutros,Harrynoestavatambm privandoofilhodeseuscontedosinternos,ede buscarumaformadelidarcomessadestrutividade atravs da sublimao? Talvezestainstruoquaseumaproibio tenhacontribudoenormementeparaainstauraode umasensaodevaziopsquico,relatadaporDexter emdiversosmomentos,sensaoessaqueaparece sempre atrelada sua percepo de que desconhece as regras de convivncia com as outras pessoas e que no conseguecompartilhardadoroudafelicidadeque demonstram sentir. Observamos, ento, que o cdigo Harryexpressoutilizadapeloprpriopersonagem organizaseupsiquismo,determinandopadresde comportamentoaseremseguidos,condutasaceitveis einaceitveis,eataescolhadesuasvtimas.Sua atuaoorganizadaemeticulosa,baseadanos ensinamentosdopai,policialexperiente,sobrecomo ocultar os vestgios dos assassinatos que comete. Nesse ponto, parece-nos interessante esboar para oleitorocenriomontadoporDexternomomento destasexecues,paraquefiquemclaroscertos aspectosdesuadinmicapsquica:aodefinironde mataravtima,certifica-sedequenoser interrompido durante a tarefa, e recobre todo o espao internodolocalcomplstico,dispondosuas ferramentasdetrabalhobemorganizadassobreuma banqueta,utilizandoumamesaoucamaparaalocar suapresa,aindaviva,pormdespida,eimobilizada pelaaodefortestranquilizantes.Dessamaneira, Dexterpretendedeixarocenrioexatamentecomo estavaantesdesuachegada,semqualquerpistaou sinalquepossaidentific-lo.Outroselementosque inserenesteespaosoasprovasdaautoriados crimescometidosporsuasvtimas(geralmentefotos decadveres),eestassoentoconfrontadascomo materialeobrigadasaconfessaremseusfeitos.Por fim,opersonagemfazumpequenocortenorostode cada vtima, recolhendo uma gota de sangue, que ser catalogadaeguardadaemsuacasa.Quasesempre esfaqueia sua presa no corao, levando-a rapidamente morte.Apsoassassinato,opersonagemesquarteja ocorpo,colocandoaspartesemsacosquedesovano oceano, usando o barco que possui. Ficaevidente,apsessadescrio,oaltograude organizaocomoqualpodeoperarseupsiquismo, tecendoumplanejamentocomplexodecadapassode seus atos agressivos. Esta constatao poderia levantar questionamentossobreocartercompulsivo-compulsriodaatuaodopersonagem:seelato bemarticulada,poderamos,aindaassim,trabalhar comahiptesedecontedosinconscientesque impulsionam este comportamento? ParaBonnet(2008),operversoabrigaelementos inconscientesresultantesdaseduooriginriaque nofoisuficientementemediadapeloobjeto, redundandonainternalizaodeobjetos perseguidores, que excitam e atacam o ego do sujeito, levando-oaresponderaestassensaesatravsda violncia. O desejo de submeter o outro dor faz com que,pormeiodomecanismodeidentificao 522Belo & Bacelete Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 projetiva,operversodesfrutedestesofrimentoque provoca, sendo remetido s suas prprias angstias.Essasangstiasdedesmoronamentoegoico,de invaso,edeperseguio,soabordadaspor Roussillon(1999),quandoestetrabalhaaquestodo traumatismoprimrio,queengendraumapatologia narcsicagrave,cujaperversopodeserapenasuma dasformasdeexpresso.Porsuavez,acercada atuaoperversa,Bonnetsalientaapressopulsional exercidapelasmensagensno-metabolizadas, enxertadasnosujeitopelocontatocomooutro.No seriado,umacena(temp.1,ep.6,23:56a26:00) ilustra muito bem esse estado de agonia. Nela, Dexter temseuprimeirosonhodeangstia,emborajesteja na idade adulta: seu pai aparece convidando-o a entrar emcasa,paraseabrigarde umafortetempestadeque se anuncia. Dentro do apartamento, Harry retira, ainda viva, a ltima vtima do filho, que cede lugar para que entoestesejacolocadonaposiodedominado. Amarrado, como costuma fazer com aqueles que mata, Dextervairmassumiropapeldeagressor, desempenhandoseuritualmortfero.Colhendouma gotadeseusangue,Debramostra-sedesapontadapor noterconhecidoantesaverdadeiraidentidadede Dexter.Nestemomento,pedequeestedigasuas ltimas palavras, o que ele no consegue fazer. Debra, porsuavez,noaparentasurpresa,afirmandoquej esperavaporessareaodoirmo.Acerta-o,ento, com uma grande faca. Umdos aspectos relevantes do sonhoaparceriaexistenteentresuairmeafigura deumassassinoemsriedesconhecido2,quepossui informaes privilegiadas sobre o passado de Dexter. Nessacena,temosumaamostradasfantasias masoquistas que povoam o psiquismo do personagem. Dexter,cujaidentidadeassenta-sesobreaviolncia ritualizada, sobre a submisso do outro e o prazer dela extrado,sevencurraladonaarmadilhapreparada pelosqueocercam,equeconhecem,oupodemvira conhecerseusimpulsosagressivos.Maisumavez, aparece a ideia de que no permitido ao personagem partilhar seus estados internos e seus sentimentos, sem queissotenhaumdesfechotrgico:ousuaverdade assustaeafastaosoutros,ouelessetransformamem 2 TheIceTruckKiller,comochamadooautordos assassinatosdevriasprostitutasnaperiferiadeMiami, cuja assinatura a forma com que trata os corpos de suas vtimas:drenatodoosangueedispeaspartesemalgum localpblicodegrandevisibilidade,embrulhadascom bastantecuidado.Seuapelidosedevesuposiodos investigadoresdequeoassassinocometeseuscrimesem umcaminhorefrigerado,usadoparadiminuirofluxo sanguneodasvtimas.Emboranosejareveladasua identidade,estepersonagemmantmumaestranhaligao comDexter,deixando-lhemensagensquesugeremseu conhecimento sobre a prtica perversa deste ltimo.objetospersecutriosedestrutivos,dispensando-lhea violncia que permeia suas atuaes.Ofatodenoconseguirexprimirsuasltimas palavras,nofinaldosonho,nopoderiaser interpretadocomoumaimpossibilidadedo personagemdetraduziremformadepensamentosas mensagensenigmticasquecarrega,introduzindo-as nojogosimblico?Ouseja,noseriaaexpressoda angstia de Dexter por se sentir condenado a lidar com esses contedos exclusivamente pela via da repetio? Bonnet(2008)sugerequeafontedemaior sofrimentonaperversoumaquebrarepentinana relaocomoobjetoprimrio,levandoosujeito, excitadopelaaodeste,aencontrar,porsimesmo, umamaneiradedarvazoaessaspulses.Dessa forma,acrianaexpressaoabandonosofridopela atuaopulsional,tentandoinverteroestadode passividade no qual se encontra. Quando o adulto no capazdeproporcionarmodosmaissublimadosde operar a excitao que atingiu a criana, seja por ter dispensadoaelaumtratamentoindiferenteou violento,oupornoterpodidoestarpresenteo infantepodeestruturarseupsiquismoapartirdeum desejodevingana,impondoaoutrosobjetoso sofrimentoqueexperimentou.PensamosqueDexter agedessaforma,aodispensarssuasvitimasum julgamentotorigorosoquantooquerecebiade Harry. Afinal, acreditar que o filho habitado por uma violnciaextremaeincurvel,tambmconden-lo dapiormaneirapossvel,negandoaestesujeitoo reconhecimentodeoutrasfacetasdesua personalidade,quepoderiamservalorizadase desenvolvidas.NotamosqueopaideDexterreconheceseus impulsosviolentos,buscandogarantirsuasegurana quandooensinaadissimularadestrutividade.E emborasemostreempenhadonaeducaodofilho, mantendocomopersonagemumaposturaprotetora e amorosa,Harrypareceidentificarnelealgode irrecupervel,umaviolnciacrua,quaseinstintiva, quenopodeserinterrompida,transformada, elaboradaquandomuito,podesercanalizada.Tais interpretaesdasfantasiasagressivasdacrianao levamaretrat-lacomoumaespciedemonstro,ou aberrao, que no tem outra sada a no ser esconder-se sob um falso-self. Issonoslevaaperceberque,certamente,Harry projeta contedos sdicos e disruptivos de seu prprio psiquismo,atribuindo-osnaturezadofilho.Bonnet (2008)insistemuitonestainterpretaodaperverso, sejaquandoabordaasmanifestaesperversasna infnciaouresgataanoodeperversotransitria, cujosurgimentocomumnaadolescncia.Parao autor,sealgumtraodasexualidadeestsendo superinvestido,deve-severificarquaismensagens Sofrimento psquico na perverso523 Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 estofazendo-oeclodir,quaisimpedimentosde traduo ou de veiculao fantasmticas ele sofre para seratuadocomtantafrequncia.Essescontedos provmsempredasvivnciasdesteinfantecomos objetos primrios, com a cota pulsional excessiva que estesdirecionamaopsiquismoincipientedosujeito. Portanto,paraoautor,necessrioqueacriana exteriorizeessasmensagensno-decifradas.Bonnet trazaindaainteressanteobservaodequenem sempre apenas vtimas e algozes se encontram fixados emmecanismosderepetiocompulsivadacena traumtica. Testemunhas, profissionais que lidam com essescasosdiariamente,buscandoumtipode interveno,tambmestosujeitosasereminvadidos peloselementosdisruptivosdessaviolncia. Lembremos,ento,queHarryexerceuoofciode detetive policial durante muitos anos, e, apesar de sua reputao tica inabalvel, em algumas cenas comenta comofilhosuafrustraoacercadaimpunidadede algunscriminosos.Noestaria,assim,negandoseus traossdicos,emdetrimentodaidentificaodesses impulsos na conduta do filho? Pensando na afirmativa de Bonnet, sobre o carter traumtico da ruptura da relao entre sujeito e objeto primrio,podemosressaltarainda,comofator desencadeantedegrandequantidadedeangstia,o fatodeseupaitersidoanicapessoacomaqual Dexterfoicapazdeseenvolveremocionalmente, deixando-lhe, aps seu falecimento, a sensao de que seencontravatotalmentedesvinculadoafetivamente dasoutraspessoas.Oautormencionaqueaatuao perversapodetambmterafunodetentar restabelecer o contato com esse objeto ausente, pois a repetiocompulsivaconservatraosdaligaoque existiraentreadupla.Aoquenosparece,Dexter encarnaasprojeessdicasdeHarry,edessaforma mantm o contato com a sombra deste pai distante.Bonnet(2008)discuteestadificuldadede partilhar sentimentos, pensamentos, que parte tanto do prprioperverso,quebuscaseisolarafimdemanter emsegredoseusrituaiscompulsivos,quantoda sociedade, que tende a recusar toda espcie de ligao aestessujeitos,considerando-osincapazesde experimentarqualqueremoo.Apesardessaviso leiga sobre o perverso, o autor nos adverte que ele no ignoraosafetos,masagedemaneiraaprojet-losno objeto,buscandoocontroledosmesmospelaviada dominaodooutro.Sabemosque,pelocdigo transmitido por seu pai, Dexter mata outros assassinos quesemostramincapazesdedomarseusimpulsos violentos,e,dessemodo,pareceinvertersuasujeio em relao prpria atuao: so os outros, as vtimas dopersonagem,quenocontmsuaspulses, enquantoele,seguidorderegrasbemestabelecidas, acreditadessemodoatingiroautocontrole.Podemos dizer, portanto, que, no psiquismo de Dexter, o afeto confundidocomoobjeto,odio,apassividade,o caos,adesordemeadestrutividadedevemser eliminados,assimcomoosquecometemcrimesque envolvem tais sentimentos.Acreditamosqueessemovimentodeexpulsaros elementosfragmentadorespodeserilustradona instigante cena (temp. 1, ep. 8, 36:34 a 39:54) na qual Dexterconsultaumpsiquiatracujacondutaticao intriga. Pesquisando sobre o trabalho do Dr. Meridian, opersonagemdesconfiaqueestetemummrbido fascniopeloestadodepressivodealgumasdesuas pacientes,contribuindo,dealgumaforma,parao suicdiodelas.Comoobjetivodetestarsuateoria, Dexterseapresentaaoterapeutacomoumhomem frgil,sofrendocomproblemasemseu relacionamentoamoroso.Contaquetemcerta resistnciaemseenvolverafetivamente,escondendo-sesobumaaparnciaquenocondizcomoque realmente,equenoconsegueterrelaessexuais com a namorada, temendo perder o controle da ligao quemantm.curiosonotarque,aindaqueo personagemtenhaaintenodedesmascararo psiquiatra,adotandoumaidentidadefictciaparase submeter ao tratamento, Dexter fala de vrias questes quesofontedesofrimentoeangstiaemsuavida real.Istonoindicariaque,emoutrascircunstncias, algumtrabalhoteraputicopoderiaserempreendido, invalidando, portanto, a ideia de que nada modificaria seu estatuto de assassino em srie? Mas, o ponto mais interessantedacenaaindanospareceoutro:Dr. Meridianinterpretaqueo personagemnoseenvolve sexualmentecomsuanamoradapelomesmomotivo queolevaaafastarasoutraspessoas,ouseja,por medodequeelasnooaceitemcomo.Sugereque, se essa defesa e suas causas no forem suficientemente analisadas,opacientenoconseguirmodificaresta situao.PropequeDexterparticipedeumasesso derelaxamento,naqualtentarselembrarde episdiosnosquaissesentiuimpotente,durantetoda suavida.Inicialmente,opersonagemsenegaafaz-lo,maspoucoapouco,comeamasurgiremsua menteflashesdecenasnasquaisalgunscolegaso intimidavam e o agrediam na adolescncia; outras que mostramsuastentativasdevinganaemdireoa essesrapazes,sendo,porm,interrompidase duramentereprimidasporseupai;outrasquese relacionavamaoassassinoemsriequeparecia persegui-loesabersobreseupassado;e,finalmente, imagensqueapresentamumacrianachorando, sentadanumapoadesangue.Bastanteperturbado comestaslembranas,Dexterdeixaoconsultrio subitamente.Todaessasequnciailustraaclivagempsquica dopersonagem,eocontatocomestescontedosse 524Belo & Bacelete Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 mostraexcessivamentefragmentador.Oqueocorre que, para ele, sua prtica sdica no est relacionada a estasfantasiaseangstiasmasoquistas,poisisso demandariaumimportantetrabalhodereflexoe elaborao psquica. A atuao funciona, ento, como ummecanismoegossintnico,e,poderamosat mesmodizer,unificadordesuaidentidade,fazendo com que se sinta real e verdadeiro, em contraponto s suas impresses de artificialidade nas relaes sociais. Quando o terapeuta solicita uma espcie de catarse do personagem, fazendo com que no apenas tente pensar nesteselementosqueprovocamdescontrole emocional,mastambmsintaestasensaode passividade,Dexternosuportafazerestaconexo, abandonando a sesso atordoado.Estaquestodacatarsetambmlevantadapor Bonnet(2008),queacreditaserimpensvelqualquer sucessoteraputicosemqueacotadeafeto correspondenteaessesfantasmasvenhatona.Cabe aindadizer,sobreesteponto,que,nastemporadas seguintesdoseriado,acapacidadeelaborativade Dexteraumenta,e,consequentemente,onmerode assassinatos diminui, trazendo, porm, um aumento de angstiaaopsiquismodopersonagem,quejno recorresempreaoatoparaaliviarseusimpulsos agressivos.Essenosparece serumsinaldeevoluo, tantonoqueserefereaomodocomqueelese percebe,comooqueconseguedepreenderdo(s) objeto(s),jqueacisoumdispositivoaplicado tantointernaquantoexternamente.Assim,quanto maisintegradoopsiquismodopersonagem,e, portanto,menosbaseadonadivisodoego,mais poder entrar em contato com suas partes frgeis, com osaspectoscriativoseconstrutivosdesua personalidade, e tambm com as contradies ticas e moraisquehabitamosoutros,tornando-osobjetos totais,complexos,repletostantodetendncias destrutivas quanto positivas. HIPTESES SOBRE AS ORIGENS DA PERVERSOPodemosvernarelaoentreHarryeDexterum tipodeseduodesignadaporRoussillon(1999)de traumatismoprimrio:trata-sedotraumaqueconduz o sujeito a se relacionar com o meio externo a partir de umatransfernciabaseadanareverso,ouseja, imputandoaooutrooqueeleprprionosuporta experimentar,equenopdeserintegradoaoseu psiquismo.Oautordescreveostrstemposde formaodestetrauma:noprimeiro,opsiquismo incipientedacrianaatravessadoporgrande quantidade de excitao, a qual no consegue manejar comosrecursosquepossuinessemomento.No segundotempo,inundadopelaangstiaeodesprazer decorrentesdaimpossibilidadedemetabolizarestes contedos,osujeitoesperaseracolhidoeapaziguado peloobjeto.Mas,senovamenteelesefrustraneste processo,odioproduzidolevaaoterceirotempo, instaurando o trauma primrio propriamente dito. Este estadosecaracterizapelaclivagemnoego,pela desestruturaodopsiquismo,fazendocomqueo sujeitoseretiredaexperincia,afastando-se psiquicamentedela.oquetestemunhamosna histriadenossopersonagem,quesofreraumgrave traumatismonoinciodesuainfncia,cujas consequnciastiverambastanteinflunciaemsua constituiopsquica,masnocontoucom acolhimentoealviosuficientesdessaagonia,sendo frequentementeconvocadoareviv-lapormeioda violnciacometidacomoutrosobjetos.Portanto, seguindo a tica de Roussillon (1999), a compulso de Dexter a tirar a vida de outras pessoas deve ser interpretadacomoumadefesadessetipode patologia narcsica. Outraestratgiadefensivaqualopsiquismodo personagemparecerecorreraquiloqueRoussillon (1999)denominaneutralizaoenergtica:uma tentativadeevitaroretornodomaterialtraumtico, impossibilitandoqualquerligaoafetivaquereative esses contedos, ou ainda, operando um rebaixamento emocional generalizado, a fim de prevenir este tipo de repetio. J mencionamos como Dexter se esquiva de umrelacionamentontimocomseusfamiliares,seus colegas e at mesmo sua namorada, pensando que esse tipodeinteraopoderiatrazercomplicaesaoseu estilo de vida, colocando em perigo seu segredo. Mas, almdisso,eletambmdemonstraacreditarque,ao investirafetivamenteumobjeto,estenosuportaria lidarcomsuaagressividade,abandonando-otologo osidentificassem.Talfantasiaficaexplcitaemuma cena(temp.1,ep.8,39:55a43:09),quesesegue quela que descrevemos anteriormente (temp. 1, ep. 8, 36:34a39:54),naqualopersonagemsesentemuito angustiadoduranteumasessodeterapia.As interpretaes que recebe do psiquiatra, combinadas s lembranasdevriassituaesnasquaisera subjugado,fazemcomqueopersonagemfinalmente deseje ter relaes sexuais com Rita, ato muitas vezes adiadoemdecorrnciadeseustemores.Dexterse surpreende,ento,quandoanamoradaexplicitao desejo de receb-lo em sua casa mais vezes, j que sua fantasia era a de que, conhecendo-o sem suas defesas, Ritasenxergariaseupassageirosombrio(termo que usa para falar de sua compulso). Levantamosahiptesedequeessaconstruo fantasmticaderivadaincapacidadedoobjeto primrioeminterpretarpositivamenteaagressividade do sujeito, admitindo seu potencial criativo. Winnicott Sofrimento psquico na perverso525 Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 (1939/2002)destacaaimportnciado desempenho da figuramaternanastentativasdacrianadeexplorara realidadeexterior.Paraoautor,oreconhecimentoda distinoentreeu-outroacompanhadodeimpulsos agressivos,comoomorder,exemplodamesclade excitaoeagressoqueoriginaapercepodas fronteirasentresujeitoeobjeto.Istosignificaque, paraqueestadiferenciaonosejadebilitada, necessrio que o adulto suporte o quinho de violncia queacrianalhedirige,ajudando-aainclu-loem processos construtivos.Severdade,portanto,queobebtemuma grandecapacidadeparaadestruio,no menosverdadeiroqueeletambmtemuma grandecapacidadeparaprotegeroqueama desuaprpriadestrutividade,eaprincipal destruioexistesempre,necessariamente, emsuafantasia.E,quantoaessa agressividadeinstintiva,importante assinalar que, embora se torne em breve algo que pode ser mobilizado a servio do dio, originalmenteumapartedoapetite,oude algumaoutraformadeamorinstintivo. algoquerecrudesceduranteaexcitao,e seuexercciosumamenteagradvel. (Winnicott, 1939/2002, p. 97) Ficaevidente,dessamaneira,aparticipaodo objetonatransformaodeimpulsosagressivos dispersosemsadasintegradasnoego,quesuscitam movimentosconstrutivos.Winnicott(1939/2002) afirma que a descoberta da natureza exterior do objeto peloinfanteacontecepormeiodemudanas gradativas,quedemandamcertotempodematurao paralidarcomaquiloqueescapaaoseucontrole. Quandoacrianaacompanhadanesse desenvolvimento,podendovivenciardemaneira saudvelesteprocesso,torna-secapazdeagredire odiar,oquepodeserumsinaldeprogresso emocional.Essaagressividadepodeserbalizadapelo sonhar, pelo fantasiar e pelo brincar. Segundo o autor, brincandooinfantealcanaoimpulsoconstrutivo, alternativasimplesdestruio.Issoocorrequando eleaceitaaresponsabilidadepeloselementos destrutivos de sua conduta.Essarelaoentreagressoeconstruo podesercomprovadaseretirarmosdeuma criana(oudeumadulto)aoportunidadede fazeralgumacoisapelosquelheso prximosequeridos,ouapossibilidadede contribuir,departiciparnasatisfaodas necessidadesdafamlia.Porcontribuir entendofazercoisas por prazer,ousercomo algum,masaomesmotempoverificando que isso uma necessidade para a felicidade da me ou para o andamento do lar. como encontraroprprionicho.Umacriana participa fazendo de conta que cuida do beb, arruma a cama, usa a mquina de lavar ou faz doces,eumacondioparaqueessa participaosejasatisfatriaqueessefaz-de-contasejalevadoasrioporalgum.Se algumzomba,tudoseconverteempura mmica,eacrianaexperimentauma sensaodeimpotnciaeinutilidadefsicas. Ento,facilmentepoderocorreruma exploso de franca destrutividade e agresso. (Winnicott,1939/2002,p.107-108,grifos nossos) Nestetrecho,Winnicottdiscuteumaquestoque podemosavaliarapartirdahistriadeDexter.A integraodadestrutividade,convertendoestes impulsosoriginriosdaseparaoentreeu-outroem umaaoconstrutiva,estvinculadaaoinvestimento, peloadulto,emumcomportamentodosujeito, reconhecendosuarelevnciacomoumatentativade contribuirnoambienteemquevive.Sabemosque Harrybuscavadirecionaraviolnciadofilhoparao assassinatodealgunsindivduosquejulgava merecedoresdisso,considerandoessaatuaouma formadetiraralgumproveitodesseselementos traumticospresentesnopsiquismodeDexter.Mas, podemosdizerqueessepaicolaboraparao surgimentodeumcomportamentoconstrutivono infante,valorizando-o,conformevimosnateoria winnicottiana?Pararesponderaestapergunta, valemo-nosdeumacena(temp.1,ep.8,13:39a 14:33),emque,adolescente,Dextersurpreendeopai duranteanoite,aplicandosobreHarryumdeseus mtodosparadominarasvtimas.Opai,ento, reconhece que aquele fora um timo ponto de ataque, oquefazcomqueofilhosevangloriedefinalmente t-losuperadonatcnica.AfaladeHarry significativa: Isso no um jogo, Dexter! No para ser divertido. Acha que quero te ensinar estas coisas? Estaanicamaneiraqueconheoparatemanter longedeumacadeiraeltrica.(temp.1,ep.1, [trecho temporal]).Nota-seaambiguidadecomqueHarrytrataeste comportamentodofilho:seporumladooclassifica comoprodutivo,quaseumaprestaodeserviosno cenriosocial,poroutro,nodeixadesehorrorizar comocarterviolentodessemododeagir.Este aspectoficabastanteclaroquandoopersonagemj em outra temporada da srie rememora uma cena, na qual,aindajovem,mostraaopaiocadverdesua primeiravtima,queteriasidoindicadapeloprprio Harry.Aindainexperiente,noconsegueexecutara tarefacomoasseiorecomendadopelopai.Este, quando se depara com a grande quantidade de sangue easpartesesquartejadasdocorpoapresentadopelo 526Belo & Bacelete Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 filho,sente-seextremamenteenojado,deixandoo local imediatamente. Dexter no compreende o motivo dareprovaopaterna,jqueoplanejamentodo assassinatoforaacompanhadoeincentivadopor Harry.Assim,perceptvelqueessatarefadeintegrara destrutividadenoegodosujeitoficacompletamente prejudicadanarelaoentreopersonagemeseupai. Amediaodessesimpulsosagressivosexercidapelo adultoparecefracassarnamedidaemquetais processosestoenvoltosnumaatuaoquenodeixa deevocaremHarryoscontedosmaisangustiantes e fragmentadores.Roussillon (2004) nos lembra que, de acordo com a teoria winnicottiana, a funo de espelho do objeto primrio,refletindoparaobebseusprprios contedos internos, que ir instaurar nele a capacidade dedistinoentrepercepoerepresentaodo objeto.Emoutraspalavras,nosmomentosde construodopsiquismoinfantil,amerealizaum trabalhodeimitaodeseubeb,deseusafetose sensaes, pontuando-os, inserindo entonaes vocais, expressesfaciaiseinterpretaes,queauxiliama crianaasimbolizarestasexperinciase, posteriormente, reconhecer-se como sujeito, dentro de umeucircunscritosfronteirasegoicas.Estas projeesmaternasnasuperfciecorporaldacriana propiciamadistinoentreeu-outronoaparelho mentaldobeb,easexcitaesneledepositadas podemseguiraviadarepresentao,ouseja,ser recalcadas,produzindofantasias.Entretanto,quando essaatividadenodesempenhadademodo satisfatriopeloobjeto,ocorreafragilizaoda organizaonarcsicaprimria,eoslimitesentreos elementosinternoseexternossocomprometidos. Segundo Roussillon, a perverso pode funcionar como umasoluoparaasangstiasadvindasdestetipode sofrimentonarcsico,elegendoumaprticaqueescoe aexcitaoquenopdesercircunscritapelo processodesimbolizaoempreendidopeloobjeto. Assim, a sada pela compulso se sobrepe aos modos neurticos de resoluo de conflito psquico, conforme ocorre com o personagem, por exemplo, quando sente anecessidadeprementedematar,oquelheconfere umasensaodeorganizaopsquica,ereforaseu sentimento de identidade. desta maneira que Dexter se sente seguro dentro de seus limites egoicos.Esteseucomportamentocompulsivopodeainda serilustradoapartirdacenamencionadaacimada admoestaodopaiquantospistasdeixadaspor Dexter.Podemos us-la tambm como metfora desta atuao.ParaWinnicott(1960/1983),existea pressuposiodequeamedeveencontrarobeb, isto,acolherseugestoespontneo,estardisponvel para reconhecer suas necessidades. Ao mesmo tempo, ela deve proteger a criana de possveis invases, deve preservarumespaoprivadodesuasubjetividade.O autor resume desse modo o paradoxo: a relao entre a meeobebum(...)sofisticadojogodeesconder emqueumaalegriaestarescondido,masum desastrenoserachado(Winnicott,1960/1983,p. 169). A partir da, possvel pensar que a vivncia de situaesmuitoviolentasnoinciodavidafazcom que o beb procure se esconder do adulto, no apenas nessassituaes,masemtodasasoutras,poisa crianabuscaasensaodesegurana,dequeno podeserinvadidaaqualquermomento.Podemos considerarentoqueoritualdeDexteropreserva neste lugar de proteo em relao ao outro? Todos os cuidados para no deixar vestgios de seus crimes, sua posturapermanentementevigilante,suadesconfiana emrelaosoutraspessoas,almdeumaformade evitarapriso,sotambmaconstruodeum abrigo,paraqueooutronooalcanceemseus contedosmaisntimos.Assimcomoprecisouse esconderdesseobjetoprimrioinvasivonasorigens, nopdedeixarpistasdesimesmoparaqueeleo encontrasse,Dexterparecemimetizaresseesconde-escondecomapolcia,repetindocompulsivamentea certeza de que o outro no o alcanar.Se , ento, a me quem deve imitar o seu beb, reconhecendoossinaisdesuasubjetividade, encontrandosuaspistas,paradessaformaauxili-lo nametabolizaodasexcitaesqueelamesma deposita,levantamosahiptesedequeDextermata paraimpediressemovimento,paranoser descobertoporesseobjeto,cujaparticipaoemsua vidaprimriaforatotraumtica.Poroutrolado,o bebtambmquerserencontradopeloobjetobom, poralgumquecuidedele,quepossamatizarsuas pulses.Dessemodo,compreendemosmelhoroque Winnicott(1960/1983)postula:importanteparao infanteestarescondido,protegidodainvaso violentaquepodeadvirdooutro,mastambm trgicoqueesteoutronosejacapazderesgat-lo desteesconderijo,assegurandoseubem-estara despeito dos afetos que perpassam esta relao. , no fundo,oflagelodeestarsempresozinhoquelevao personagemaprovocarnooutroodesejode encontr-lo,poiselequerserencontrado,nopelo objeto mal, mas por aquele que finalmente poder lhe acolheregarantirqueeleestejaasalvo.Noseria esteojogoqueDexterempreendecomapolcia, mantendoumarelaotoestreitacomestaque deveria ser sua perseguidora? Talvez,nessassituaesemqueobebnoseja suficientementebemencontrado,aperversose instaleemduasfrentes:atendnciaantissocialea construo de um falso-self. Dexter parece representar oafetoporexemplo,oseunamorosentidocomo Sofrimento psquico na perverso527 Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 teatral,assimcomosuarelaocomairm:eleno sente de fato, mas representa que sente. Temosagoratodososelementosparaapresentar aoleitorasorigensdasescolhasinconscientesde Dexter que o levaram perverso. Numa determinada ocasio,duranteseuexerccioprofissional,Dexterse deparacomumacenacriminalnaqualhaviaenorme quantidadedesangue.Perturbadocomestaviso,ele passa a ser invadido por lembranas recorrentes de um perodoanteriorsuaadoopelocasalMorgan. Dexter se v, ainda bem pequeno, imerso em sangue, e muitoassustado,chamandoporsuame,queaparece nacena(temp.1,ep.10,53:43a55:30)apenaspara pedir que ele feche os olhos e no veja o que se passa naquelelugar.medidaqueosepisdiospassam, descobrimosqueaquelacenaserefereaoassassinato desuamebiolgica,LauraMoser,edemaistrs pessoas,esquartejadasdiantededuascrianas.Esse terrvelmassacredeixamarcasprofundasno psiquismodelas:Brian,entocomseisanos,irmo maisvelhodeDexter,eanosmaistardeacabasendo internadoemumhospitalpsiquitricoportranstornos antissociais,deondesaiaoatingiraidadeadulta. Dexter,quecontavatrsanosnapocadotrauma, acolhido e adotado pelo primeiro policial que chega cenadocrime,odetetiveHarryMorgan.Apesarde terem seguido destinos muito diferentes, interessante reparar que tanto Dexter quanto Brian reprisam a cena traumticanotrabalhoqueexercem:oprimeiro reconstri a histria de homicdios a partir de padres desangueencontrados,eosegundofabricaprteses ortopdicasparapessoasquesofreramdiversostipos de amputao. No seriado, posteriormente Brian que adotaumanovaidentidade,sobonomedeRudy tambmsetornaumassassinoemsrie,e,sempoder contarcomumcdigodeconduta,matapessoasque elege aleatoriamente, sobretudo prostitutas.Acenadoassassinatomaterno,quepodeser consideradaoprimeirotempodotrauma,segundoo modelo winnicottiano proposto por Roussillon (1999), bombardeiaopsiquismodoinfantecomenorme quantidadedeexcitao.Buscandodarumdestinoa essaenergia,oaparelhopsquicodacrianapode recorrer alucinao do desejo, ao autoerotismo, ou destrutividade.Mas,pelocarterbrutaldacenaque descrevemos,percebemosquepelaviadaviolncia queosujeitopoderesboarqualquertentativade escoamento.Portanto,durantesuainfncia,os episdiosdecrueldadecomanimais,aagressividade dirigidaaoscolegasdeescola,eatendncia antissocialqueoacometia,noteriamsidoesforos dojovemDexter,nosentidodeefetuarumaligao dasreverberaesdestaexperincia?oqueparece corroborarashiptesesdeRoussillon(2008)com relaoclnicadosadolescenteshiperviolentosque quebramtudoparanosequebraremderaiva.Ponto fundamental,lembremosdepassagem,pararecusara ideiadequeaagressividadeuma(...)expresso direta de uma pulso destrutiva (p. 182). Osegundotempodotraumapodeseratribudo inabilidadedeHarryemacolherestes comportamentos, interpretando-os como um pedido de ajudadoinfante,quesemostraangustiadocoma impossibilidadederepresentartaiscontedos.Ainda quetenhaprocuradoestarsempreprximoaofilho, orientandoseucomportamento,protegendo-oda desconfianadosoutros,acreditamosqueopai adotivodeDexternorespondeusatisfatoriamente suademanda,poisprojetousobreapersonalidadedo meninoumasriedefantasiassdicas,asquais inundaram ainda mais seu psiquismo de excitaes. Consideramos que o terceiro tempo, que instala o traumatismoprimriodefinitivamente,serelaciona mortedeHarry,quandoDexter,comprovandoo abandonodoobjeto,vivenciaumaclivagemnoego. Percebe-seque, diantedisso,asada queseconfigura justamente a imitao deste movimento projetivo do adulto,quecontribuiuparaaformaodaferida narcsica do sujeito. Em certa medida, Dexter encena o papeldopai,aoimputaraviolnciaeoprazerem exerc-la incessantemente a outros sujeitos, aos que se encaixamemseucdigoedevemserpunidoscoma morte. OcasoDextermostraclaramentecomopodeser recusadaaimagemcomum,mesmonaliteratura psicanalticasobreotema,dequenohsofrimento psquiconaperverso.Ashiptesesmetapsicolgicas aqui levantadas sobre as origens da patologia mostram como a angstia do sujeito est presente desde o incio doqueserdeterminanteparaasadaperversa. possvel,pormeiodessecasoemblemtico,elaborar estratgiasclnicasparaacolherosujeitoqueoptou conscienteeinconscientementepelaviolncia perversa,oferecendo-lheespaoparanovas simbolizaesenovaspossibilidadessubjetivasmais integradas ao lao social. REFERNCIAS Bonnet,G.(2008) La perversion:sevenger poursurvivre. Paris: Presses Universitaires de France. Lindsay,J.(2004)DarklyDreamingDexter.NewYork City: Doubleday.ManosJr.,J.(Director).(2006).Dexter:1Temporada [DVD]. New York, NY: Showtime. Rousillon,R.(2008)Letransitionnel,lesexueletla rflexivit. Paris: Dunod. Roussillon.R.(1999)Agonie,clivageetsymbolization. Paris: Presses Universitaires de France. 528Belo & Bacelete Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 3, p. 519-528, jul./set. 2012 Roussillon.R.(2004)Narcissismeetlogiquesdela perversion.InR.Roussillon(2004).Narcissismeet perversion (pp. 115-166). Paris: Dunod. Winnicott,D.W.(1983)Distorodoegoemtermosde falsoeverdadeiroself.InD.W.Winnicott(1960).O ambiente e os processos de maturao: estudos sobre a teoriadodesenvolvimentoemocional(pp.128-139). PortoAlegre:ArtesMdicas(Trabalhooriginal publicado em 1960). Winnicott,D.W.(2002)Agressoesuasrazes.InD.W. Winnicott(1939).Privaoedelinquncia(pp.93-110).SoPaulo:MartinsFontes(Trabalhooriginal publicado em 1939). Recebido em 24-07-2012 Aceito em 28-11-2012 Endereo para correspondncia: Fbio Roberto Rodrigues Belo. Rua Germano Torres, 166, sala 707, Cruzeiro, CEP 30310-040, Belo Horizonte-MG, Brasil. E-mail: [email protected].