Deyve Redyson - Kierkegaard e Cioran-- Melancolia e Pessimismo filosófico

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    KIERKEGAARD E CIORANMELANCOLIA E PESSIMISMO FILOSFICO

    Deyve RedysonDoutor em Filosofia

    Professor adjunto da UFPB

    Resumo: Este trabalho tem como principal mote apresentar o pensamentofilosfico do romeno Emil Cioran sobre o pessimismo e a melancolia davida e do filsofo dinamarqus Soren Kierkegaard que compreende aangstia como gnese de toda uma estrutura existencial. Pensar opensamento pessimista hoje tentar percorrer caminhos ainda poucodescobertos e pouco estudadosPalavras-chave: Pessimismo Melancolia Angstia Desespero

    Abstract: This work has as main mote present the philosophical thought ofthe Rumanian Emil Cioran on the pessimism and life melancholy and ofthephilosopher Dane Soren Kierkegaard who comprehends the anguish asgenesis of all an existential structure. Think the pessimistic thought is todaytry to running through ways still little discovered and little studied.Key-words: Pessimism Melancholy Anguish Despair

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    Ser o pessimismo uma corrente filosfica ou apenas um desgosto pelavida. A necessidade do ser humano nos leva a crer que o mundo, tal qualvivemos, nos confronta diariamente com as possibilidades positivas e negati-vas de uma existncia. Coerente ou no o mundo inextricavelmente umacomposio de alegria e tristeza, sade e dor, bom e mau, timo e pssimo.

    Um pensar filosfico que deslumbra o ser melanclico e a angstia humana um pensar filosfico real. Kierkegaard profundamente um pensador da exis-tncia que de forma irnica deu ao mundo filosfico uma intensa produotica, esttica e religiosa. Cioran intrpido pensador sarcstico e impiedosa-mente pessimista, acreditava que viver no era nada mais que uma eterna einfame misria. Entre estes dois to esquecidos pensadores sem tradiofilosfica, um dinamarqus e o outro romeno, possvel ver uma filosofianecessria a existncia do ser humano na terra.

    Sren Kierkegaard (1813-1855) autor de uma vasta obra que nos lananuma esfera filosfica impressionante. Fez de sua vida uma intensa batalhaconsigo mesmo e com a filosofia, escreveu sobre a angstia, sobre o deses-pero e sobre melancolia. Interpretado falsamente como o corifeu doexistencialismo e um grande conhecedor da filosofia alem.

    Emil Cioran (1911-1995) nasceu na cidade romena de Rasinari, uma pe-quena cidade da Transilvnia. Formado em filosofia na Universidade de Bu-careste pode ser compreendido hoje como o mais pessimista e mais trgicopensador que encarou a vida como uma fortuna angustiadamente desespe-rada, uma solidez da agonia estilizada nos paradoxos dos tormentos, umaincrvel vocao para a dor. A Melancolia e o tdio do qual se utiliza em suasobras contagia mortalmente quem o l. Suas leituras iniciais circundam Balzac,Baudelaire, Dostoievski, Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger, Simmel e

    Kierkegaard, escreve, tambm inicialmente uma tese sobre Bergson e emseguida dedica-se a uma sobre Nietzsche. Sua primeira obra escrita sob osauspcios da idia de suicdio, dominado pela insnia e pela angstia vem aluz Nos Cumes do Desespero, escrito em romeno (Pe Culmine Disperari)em 1933 que considerado a suma do pensamento cioraniano, seguidopor outros, tambm em romeno, O Livro dos Enganos (Cartea Amagirilor)em 1936; Lgrimas e Santos (Lacrimi si Sfinti) em 1937; O Crepsculodos Pensamentos (Amurgul Gndurillor) em 1938 e Brevirio dos Venci-dos (ndreptar Patimas) entre 1941 e 1944. Em 1949 escreve sua primeiraobra em francs, pas ao qual adotou como patria, Brevirio de Decompo-

    sio sucedendo as seguintes: Silogismos da Amargura em 1952; ATentao de Existir em 1956; Histria e Utopia de 1960; A Queda notempo de 1964; O Funesto Demiurgo de 1969; Do Inconveniente de ternascido de 1973; Esquartejamento em 1979; Exerccios de Admiraoem 1986 e Confisses e Antemas de 1987. Alm de 34 cadernos escri-tos entre 1957-1972. Cioran morreu em 1995 aos 84 anos de idade do Malde Alzheimer. Sobre sua idade com a qual iria morrer dizia ser escandalosa-

    18 mente avanada.

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    Acreditamos haver trs fases no pensamento de Cioran: a primeira faseem que escreveu em romeno que demonstra um Cioran angustiado, vorazcontra as felicidades do mundo e da existncia que compreende de 1934 a1949. Uma segunda fase iniciada em 1949 vai at a data de sua morte 1995,fase em que publicou em francs e ganhou notoriedade na Europa, fazendo

    editar suas obras romenas em francs, constituindo amizade com GabrielMarcel, Paul Celam, Samuel Beckett, Ernest Jnger, Jean-Paul Sartre, MirceaEliade, Eugene Ionesco entre outros, e por fim uma terceira fase que englobatoda sua vida que seriam seus 34 cadernos escritos entre 1957-1972 quetrazem impresses sobre sua obra e as circunstncias na qual escreveu. Cioranque trata Deus como um artfice que brinca com a humanidade e que levousua desesperana aos ltimos extremos da linguagem v a essncia do sagra-do como uma alternativa de total desesperana. Em uma certa medida Cioranconsegue ser mais pessimista do que o prprio Schopenhauer, entendidocomo o genitor da filosofia pessimista.

    Cioran leu Kierkegaard e chega a cit-lo em algumas obras que lhe che-gou a mo a partir das tradues francesas dos Tisseau1 e acreditava que seupensamento tinha circunstncias viveis mais extremamente desconsola-doras, acreditava que Kierkegaard era uma mente incompreendida.

    Se percorrermos a histria do pensamento filosfico pessimista encontra-remos sua nascente em Schopenhauer autor de obras fundamentais como OMundo como Vontade e Representao (1819) e dos Parerga e Paralipomena(1851) que desenvolve sua expresso filosfica na negao da afirmao doquerer viver, uma espcie de metafsica da morte. Kierkegaard desenvolvecom maestria a noo de angustia e desespero, retirando elogios do prprioHeidegger, em suas obras O Conceito de Angstia (1844) e Doena para a

    Morte (1849) e Nietzsche o fugaz autor da morte de Deus visto como o maistrgico e dionisaco filsofo que negou o cristianismo e a figura de Paulo deTarso. Cioran vai beber nestas trs fontes do pensamento. A influncia deSchopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche no pensamento cioraniano notrio,tanto pelas citaes quanto pela estrutura na qual pensa, pois ele extravasasua dor em palavras e gritos. Cioran tem cincia da incompatibilidade delesperante o cristianismo e sua grande representao no mundo filosfico:

    Apaixonados pela sua fatalidade, evocam irrupes, fulgores trgicos esolitrios, prximos do apocalipse e da psiquiatria. Um Kierkegaard, umNietzsche, mesmo que houvesse surgido no perodo mais andino, no teri-

    am possudo uma inspirao menos fremente, nem menos incendiria. Pere-ceram em suas chamas; alguns sculos antes teriam perecido na fogueira:cara a cara com as verdades gerais, estavam destinados heresia2. E ainda:

    1 Oeuvres Compltes. Trad. Paul-Henri Tisseau e Else-Marie Jaquet Tisseau. Paris. dition de LOrante. 1966-1887. 20 Tomos.

    2 Cioran, Emil. Brevirio de Decomposio. Rio de Janeiro. Rocco. 1995, p. 170

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    Depois de Pascal e Kierkegaard no podemos mais conceber a salvao semuma srie de imperfeies e sem as volpias secretas do drama interior3.

    Para Cioran, no h um recuo a idia de que o mundo o pior, ele o pior,ento o pior. Em Kierkegaard o fato de a angstia representar o estadopsicolgico do ser-humano lana-o a uma dicotomia que estar entre a reali-

    dade visvel e a possibilidade de transcender de si mesmo. Eternamentemorrer, morrer sem todavia morrer, morrer a morte. Por que morrer significaque tudo esta acabado, mas morrer a morte significa viver a morte e viv-laum s instante viv-la eternamente4.

    Como a angstia, o tdio, a tristeza, a melancolia, o desespero semcausa, isto , no desencadeado por algo de determinado, que pode serindividualizado, nomeado ou enfrentado. O desespero se desespera pelo pr-prio ser-desesperado sem motivo. O sentido do ser que vive o desespero omesmo ser que desesperado vive a noo de estar mortalmente doente, eestar mortalmente doente estar desesperado do desespero de si mesmo que no ser o ser em potencial como desesperado.

    O Brevirio de Decomposio remete-nos a uma metafsica negativa ba-seada na preeminncia do no-ser, em que o ser no passa de uma preten-so do nada, submetido as leis da degradao, uma espcie de putrefaodas certezas. Dentro da perspectiva do pensamento de Cioran a religio e arelao homem-Deus uma constantes batalha em si-mesmo. Sua crtica aocristianismo e civilizao tem origem na anlise dos movimentos trgicosque marcaram o avano do que chama de nova igreja, que soube aproveitaras fraquezas do paganismo, o sectarismo suicida das heresias e a decadnciade Roma utilizando-se de uma esfera ideolgico-filosfico que prega a lastimade que para chegar a Deus necessrio passar pela f. Sua reflexo centrada

    na idia de um Deus que: criou o mundo por medo da solido... A nicarazo de ser das criaturas distrair o criador. Palhaos engraados, esquece-mos que estamos vivendo os nossos dramas para divertir um espectador aoqual, at agora, ningum no mundo tem escutado seus aplausos5.

    Vrios so os exemplos que ilustram essa concepo. A figura do perso-nagem bblico J, que muito provavelmente nunca existiu, a idia de um Deussarcstico que d permisso ao Diabo para fazer o que bem entender de seuservo J, somente para saber se este renunciaria a Deus, a nica ressalva que o diabo no poderia tocar na vida de J, isto , mat-lo. A igreja crist veste exemplo como um sinal de profunda humildade, obedincia e pacincia,

    um Deus que permite o sofrimento; se Deus conhece seu corao sab-lo-que no o renunciar, mais no, permite ao diabo brincar com o homem, isto, com a humanidade. Para que ento serve a doutrina da pacincia de J?

    3 Cioran, E. Exerccios de Admirao. Jos Thomaz Brum. Rio de Janeiro. Rocco. 2001, pg. 84.4 Kierkegaard, S. O Desespero Humano in Col. Os Pensadores. So Paulo. Abril Cultural. 1979. pg. 199. Vale

    lembrar que o ttulo verdadeiro desta obra de Kierkegaard Doena para a Morte.5 Cioran, E. Les Larmes et des Saints in Oeuvres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 300.

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    Para uma nica coisa: para os padres e pastores exortarem suas ovelhasdizendo sejam humildes e pacientes como J foi, para nada mais serveisso. Sobre J diz Cioran em seus cadernos Sou um discpulo de J, maisum discpulo infiel6. Para Cioran Deus brinca com a humanidade, onde emum mundo abalado pela estupidez religiosa transfigura a verdade de que a

    religio e at mesmo Deus no servem para nada, a no ser para pedidosinflamados pelo esprito de sucesso, alegria, que viriam da mesma forma semnenhum pedido. H na verdade uma grande hipocrisia no ser de deus quecompreendemos ou que as igrejas nos fazem compreender, um Deus que sama quem a ele serve. A alternativa de Cioran a suspenso do tempo eirrupo do absoluto na histria, o cristianismo falhou at hoje em sua mis-so de pacificao e amor ao prximo, no h paz e no h prximo, umaexperincia mstica est longe de alcanar uma verdadeira virada paradigmticada relao homem-Deus Deus-homem, parece que o homem fala com umDeus surdo que no nos escuta ou no quer nos escutar, por isso Cioran nosdiz: Recuso-me seduo mals de um eu indefinido. Quero chafurdar-meem minha mortalidade. Quero permanecer normal7 e continua: Senhor, d-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de tua adorao,afasta de mim essa tentao de amor que me entregaria para sempre a Ti. Queo vazio se estenda entre o meu corao e o cu! No desejo ver meus deser-tos povoados pela Tua presena, minhas noites tiranizadas por Tua luz, mi-nhas Sibrias fundidas sob Teu sol. Mais solitrio do que Tu, quero minhasmos puras, ao contrrio das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar aterra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. S peo Tua estpida onipo-tncia respeito para minha solido e meus tormentos. No tenho nada a fazercom tuas palavras. Conceda-me o milagre recolhido antes do primeiro instan-

    te, a paz que Tu no pudeste tolerar e Te incitou a abrir uma brecha no nadapara inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, humilhao e a vergonha de existir8. O atesmo de Cioran culmina ainda noBrevirio de Decomposio: onde Deus causa intil, absoluto sem senti-do, modelo dos bobos, passatempo dos solitrios, ouropel ou fantasma con-forme divirta nosso esprito ou freqente nossas febres9.

    Em Cioran ocorre ento uma metafsica negativa A vida demasiada-mente limitada10, pois o mundo se configura como um sem sentido estemundo um mundo que nunca se resolve nada11. A metafsica aristotlica fundamentada na origem do ser e na sua substancialidade, a partir da temos

    as quatro causas e dez categorias, o ser se explica a si mesmo quando na

    6 Cioran, E. Cuadernos 1957-1972. Trad. Carlos Manzano. Barcelona. Tusquets. 2000. pg. 232.7 Cioran, E. Brevirio de Decomposio. Rio de Janeiro. Rocco. 1995. pg. 95.8 Idem. Pg. 95.9 Idem. Pg. 138.10 Cioran, E. En las Cimas de la Desesperacin. Trad. Rafael Panizo. Barcelona. Tusquets. 2003. Pg. 22.11 Idem. Pg. 65.

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    sua essncia estimulada, para Cioran a essncia e o ser da coisa mesma elaem si mesma, isto , sendo em si mesma ela no passa de uma verificaodaquele ser antigo, Deve-se-a filosofar como se a filosofia no existisse12,sua negatividade o vicio no mundo A vida um vicio. O maior que existe.Isto explica porque to difcil livrar-se dele13. Ser nesta metafsica negati-

    va que Cioran desenvolvera sua concepo de mais forte pessimismo, primei-ro ele atribui as desgraas no mundo ao seu imaginado autor, Deus, e emseguida acredita que esta criao no era nada, isto uma metafsica do nadaem si mesmo. As calamidades e a infelicidade so normais dentro de ummundo criado por esse deus. No se trata de combater o apetite de viver,mas o gosto pela descendncia. Aquilo que deveria ser um dom excepcional,como a genialidade tem sido atribudo a todos, indistintamente: liberdade depssimo valor, que desqualifica a natureza para sempre. impossvel que acriminosa injuno do gnese: Crescei e multiplicai tenha sado da boca deum dom deus. Sejais escassos, teria aconselhado, se tivesse voz ativa14.

    O nada que o ser, diferentemente do que afirma Hegel ou Sartre, paraCioran um recuo, uma escapatria do homem. O nada um buraco negro, puro abismo, pura vertigem, presena inexplicvel que nega a si prprio. um vazio. neste vazio que reside todas as mazelas da humanidade, hajavista a melancolia, tdio, tristeza, desesperana so todos nomes de umdeterminado algo que um no sei o que que atormenta o ser, atormentaa alma provocando dor, gritos dentro da alma humana e destruindo pordentro o ser em si, uma revelao do tormento e da revolta. Cioran, faz umadistino entre melancolia que no provocada por um motivo determinado,uma causa externa, e a tristeza que, ao contrrio, surge de uma razoprecisa, evidente e clara: Sei por que estou triste, mas no saberia dizer

    porque sou melanclico 15 Vencer a melancolia impossvel, ela no podeser curada e s desaparecer junto com o fluxo do nosso sangue. Lutar,combater, tornar-se um heri nos destroos do tempo16. Assim viver lanar-se nas desdobras do desconsolo como tdio, angstia, melancolia esofrimento. O tdio que nos espera no futuro nos terrifica mais do que oterror do instante presente. O presente em si revela uma via agradavelmenteinsuportvel17.

    Poder morrer coisa de quem est vivo, s posso ter a capacidade damorte se eu estiver vivo, logo somos seres capazes da morte, sem sentidotirar sua vida j que a morte to certa que temos medo dela. S os otimis-

    tas se suicidam, os otimistas que no conseguem mais s-los. Os outros, no

    12 Cioran, E. Le Mauvais Demiurge in Oeuvres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 1258.13 Cioran, E. cartlement in Oeuvres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 1482.14 Cioran, E. Le Mauvais Dmiurge in Oeuvres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 117415 Cioran, E. En las Cimas de la Desesperacin. Trad. Rafael Panizo. Barcelona. Tusquets. 2003. pg. 73.16 Pecoraro, Rosano. Cioran, a filosofia em chamas. Porto Alegre. Edipucs. 2004. pg. 166.17 Cioran, E. Le Crpuscule des Pense in Ouevres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 439.

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    tendo nenhuma razo para viver, por que a teriam para morrer18. No possu-mos razes para viver nem para matar-nos: eis a frmula cioraniana que tudopermite, tudo justifica e tudo admite Embora a vida, para mim, seja umsuplicio, no posso abandon-la porque no acredito no absoluto de valoresem nome dos quais sacrificar-me. Sendo sincero, deveria dizer que no sei

    porque vivo, nem por que no cesso de viver. A chave, provavelmente, residena irracionalidade da vida, que faz com que ela se conserve sem razo. E sehouvessem s razes absurdas para viver? O mundo no merece que algumse sacrifique por uma idia ou por uma f. Somos mais felizes hoje por queoutros o tem feito para o nosso bem? Mas que bem? Se algum se sacrificoupara que eu seja mais feliz, eu sou, em verdade, mais infeliz do que ele, poisno posso pensar em construir a minha existncia sobre um cemitrio19 e nomesmo sentido: Por mais que eu saiba que no sou nada, ainda tenho queme persuadir verdadeiramente. Algo, em mim, recusa esta verdade da qualestou to seguro. Esta recusa indica que em parte eu fujo de mim; e aquiloque em mim se subtrai minha jurisdio e ao meu controle faz com que eu jamais esteja seguro de poder dispor plenamente de mim mesmo. E assim, fora de repisar no pro e no contra do nico gesto que tenha importncia,acaba-se por ficar com a m conscincia de estar vivo20.

    O ser-humano, para Cioran uma criatura despedaada, pois todos osvalores que o nutre lhe so tirados, ele apenas tem uma pseudo idia deliberdade, despedaado em vida este mesmo homem est condenado a sobre-viver no mundo, a viver as falsas verdades, principalmente impostas pelocristianismo, tornando-se um homem infeliz e amargurado, um barco em nau-frgio. Os filsofos so demasiadamente orgulhosos para confessar seumedo da morte e demasiado presunosos para reconhecer que a enfermidade

    possui uma fecundidade espiritual21.Cioran ainda entendido como: O mais radical dos niilistas, esquartejador,

    impiedoso, luciferiano, com o dom de negao e estilo22. Cioran insiste:No so os pessimistas, seno os decepcionados, os que escrevem bem23.

    Podemos fazer um dilogo entre Kierkegaard e Cioran a partir da forma queambos enxergam a vida, tanto Kierkegaard como Cioran foram dominadospela melancolia de encontrar-se vivo no mundo.

    Em vrias passagens dos Dirios, Kierkegaard enfatiza sua melancolia, an-gstia e de certa forma desespero e at mesmo niilismo, o tema da melancoliapersegue Kierkegaard na extenso de suas obras, pois sua vida uma conti-

    nuidade que se d a partir da dor da existncia, por isso sua filosofia uma

    18 Cioran, E. Silogismos da Amargura. Trad. Jos Thomaz Brum. Rio de Janeiro. Rocco. 1991. pg. 56.19 Cioran, E. En las Cimas de la Desesperacin. Trad. Rafael Panizo. Barcelona. Tusquets. 2003. pg. 63-64.20 Cioran, E. Le Mauvais Dmiurge in Ouevres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 1210.21 Cioran, E. En las Cimas de la Desesperacin. Trad. Rafael Panizo. Barcelona. Tusquets. 2003. pg. 51-52.22 Pecoraro, Rossano. Cioran, a filosofia em chamas. Porto Alegre. Edipucrs. 2004. pg. 221.23 Cioran, E. Cuadernos 1957-1972. Trad. Carlos Manzano. Barcelona. Tusquets. 2000. pg. 179.

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    filosofia que nos liga a existncia. Cioran da mesma forma um pensador daexistncia, mas de uma existncia factvel e insalubre onde viver to somen-te viver e na mais.

    Os Dirios so leitura obrigatria a quem quer entender o gnio deKierkegaard, pois so neles onde se pode perceber o sentido de sua vida,

    vejamos algumas destas entradas: Morte e inferno: posso fazer abstrao detudo, salvo de mim mesmo24 ou ento: Talvez eu pudesse reproduzir atragdia de minha infncia, a chave horrvel de toda a vida religiosa, quepavorosas suspeitas colocavam sorrateiramente em minhas mos25, insisteno problema de que sua melancolia tem, de alguma forma, inicio em suaeducao crist: Minha desgraa, humanamente falando, consiste em quetive uma educao crist demasiadamente severa. Desde a infncia, vivi sobo domnio de uma melancolia originaria26. Kierkegaard havia passado pelogrande tremor de sua vida, a descoberta dos delitos matrimoniais de seu pai,a morte de seu pai, o amor a Regine e o abandono a ela, sua melancoliaexpede-se dentro de todo seu universo, desde suas obras assinadas at asobras pseudonimicas.

    Muitos reflexos do pensamento de Cioran encontra-se na obra de Anti-Climacus, pseudnimo utilizado por Kierkegaard em Doena para a Morteque em suas primeiras palavras ns diz O homem esprito. Mas o que esprito? o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu uma relao, que no seestabelece com qualquer coisa de alheio a si, mais consigo prpria. Mais emelhor do que a relao propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessarelao para a prpria interioridade. O eu no a relao em si, mas o seuvoltar-se sobre si prpria, o conhecimento que ela tem em si prpria depois deestabelecida27, justamente aqui que nasce o sentido de transcendncia do

    ser-em si com o ser prprio em si, e esta relao quando transborda culminano desespero. Kierkegaard mais adiante ainda diz: Morrer a morte significaviver a morte28.

    O que desesperar-se ou entrar em desespero? Ser uma inconstante vari-ao de que acometido o homem. Muitas podem ser as leituras que podemser feitos de um tal desespero. Insatisfeito com a busca esttica, o homematormenta-se e cai no desespero.

    O Desespero real o retorno do poder desesperar-se, isto , a superiorida-de do homem sobre o animal consciente em sua capacidade de se desesperar. atravs do desespero que o homem alcana o estgio seguinte ao esttico,

    24 Kierkegaard, S. Dirios IA 162.25 Idem. IIA 144.26 Idem. X 2A 619.27 Mennesket er Aand. Men hvad er Aand? Aand er Selvet. Men hvad er Selvet? Selvet er et Forhold, der

    forholder sig til sig selv, eller er det i Forholdet, at Forholdet forholder sig til sig selv; Selvet er ikke Forholdet,men at Forholdet forholder sig til sig selv. Sygdommen til Dden Samlede Vaerke. 3. pg. 15.

    28 Thi at de, betyder at det er forbi, men at de Dden betyder at opleve det at de. Kierkegaard. Doenapara a Morte. Col. Os Pensadores. So Paulo. Abril Cultural. 1979. pg. 199.

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    que seria o tico, pois s assim abandonar as experincias dissipadoras e aatitude passiva diante da realidade.

    Nos Diapsalmata, que fazem parte de uma obra maior A AlternativaKierkegaard revela a sua mais intermitente melancolia: Minha melancolia amais fiel das amantes que j conheci; que h de estranho em que eu tambm

    a ame?29

    . Entre o Kierkegaard e seus pseudnimos percebe-se que a melan-colia que afligia um Kierkegaard e a mesma que transpassada pelos seuspseudnimos, no um esconderijo, mas uma realidade infinita que tem anecessidade da busca pela vida ou pelo seu sentido. Por isso, cita o pseud-nimo de Kierkegaard autor dos Diapsalmata: A vida transformou-se para mimem uma bebida amarga, e, contudo, ela deve ser ingerida como gotas, deva-gar, contando30, est a viso cioraniana de encarar a vida e ver nela algumsentido. Ainda no Diapsalmata, Kierkegaard atinge o pessimismo metafsico:Num teatro ocorreu um inicio de incndio nos bastidores. O palhao veio aopalco avisar o pblico. Acharam que era uma piada e ficaram aplaudindo, elerepetiu o aviso, as gargalhadas tornaram-se ainda mais fortes. Assim, eupenso que o mundo vai naufragar sob o jubilo geral de cabeas engraadasque ho de crer trata-se de uma piada31. Faz, ainda, o questionamento mxi-mo da existncia: Qual o significado desta vida?32.

    Nossa concluso entre estes dois pensadores to distintos de que emKierkegaard a melancolia ganha a projeo da conquista do mundo, do encon-tra-se existindo: Eu era melanclico, de uma melancolia sem fim: foi isto queme ajudou. Pois em minha melancolia eu ainda amava o mundo33. Cioran, opessimista in natura nos colocar entre o amanhecer da insnia para o anoite-cer do nada: Sabedoria e rebelio: dois venenos. Incapazes de assimilarmosingenuamente, no encontramos em nenhum dos dois uma frmula de salva-

    o34, e finalmente: Como nosso destino apodrecer com os continentes eas estrelas, exibiremos, como doentes resignados, e at a concluso das eras, a curiosidade por um desenlace previsto, medonho e vo35.

    29 Kierkegaard, S. Diapsalmata in Valls, Alvaro. Do desespero silencioso ao elogio do amor desinteressado.Aforismos, novelas e discursos de Sren Kierkegaard. Porto Alegre. Escritos. 2004. Pg. 20.

    30 Idem pg. 22.31 Idem. Pg. 22-23.32 Idem. 23.33 Idem Dirios. IX A80.34 Cioran, E. La Tentacin de Existir. Trad.Fernando Savater. Madrid. Punto de Lectura. 2002. Pg. 21.35 Idem. Brevirio de Decomposio. Trad, Jose Thomaz Brum. Rio de Janeiro. Rocco. 1995. pg. 176.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

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    CIORAN, Emil. Silogismos da Amargura. Trad. Jos Thomaz Brum.Rio deJaneiro. Rocco. 1991.

    _____. Emil. Brevirio de Decomposio. Trad. Jos Thomaz Brum.Rio deJaneiro. Rocco. 1995

    . Emil. Oeuvres. Paris. Gallimard. 1995a.

    . Emil. Cuadernos 1957-1972. Trad. Carlos Manzano. Barcelona.Tusquets.2000

    _____. Emil. Exerccios de Admirao. Jos Thomaz Brum. Rio deJaneiro. Rocco. 2001

    . Emil. En las Cimas de la Desesperacin. Trad. Rafael Panizo.Barcelona. Tusquets. 2003.

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  • 8/6/2019 Deyve Redyson - Kierkegaard e Cioran-- Melancolia e Pessimismo filosfico

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