DI-FELICE-2009-O-habitar-atópico

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Projeto: Cidadão em Rede: De Consumidor a Produtor de Informação sobre o Território Prodeb/UFBA Mês: jan 2013 Título: O habitar atópico Fonte: DI FELICE, Massimo. Paisagens Pós-urbanas. O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume. 2009 (Coleção ATOPOS) Notas técnicas p. 221-244 1/4 Maria Célia Furtado Rocha O habitar atópico Com a reprodução tecnológica da paisagem surge, ao lado do território tradicional, um território midiático que causará a perda da aura do lugar e o fim de seu significado único. A tendência à hibridação entre espaço, corpo e informação é resultado das recentes inovações tecnológicas que determinaram a passagem para as formas digitais de interação entre sistemas, máquinas e pessoas. Para M. Castells o conceito de sociedade de informação se destaca enquanto paradigma de análise da sociedade contemporânea, capaz de identificar a tecnologia e a informação como agentes constituintes tanto do processo de produção quanto das relações sociais. Assim, a sociedade informacional seria uma forma específica de organização social em que a geração, o processamento e a transformação das informações tornam-se fonte fundamental da sociabilidade (p. 225). A tecnologia midiática deixa de ser “extensão dos sentidos” para se tornar propiciadora de sociabilidade e da forma de habitar. Além da arquitetura e da geografia, o habitar atópico não é mais ligado às coordenadas topográficas, mas a fluxos informativos e a uma espacialidade mutante, que por meio da tecnologia wireless e da computação móvel faz do corpo o suporte da informação. As pós-geografias e as redes digitais não são espacialidades na nossa frente, mas experiências imersivas que nos convidam a ir além da nossa vista. A paisagem pós-urbana, portanto, não é mais visual. Se a cidade e a metrópole podem ser escritas, fotografadas e filmadas, prestando- se a distintas formas de experiência do narrador, embora fragmentariamente, a experiência atópica do habitar, por sua vez, resulta em algo irrepresentável e indizível (atópico) para a narração do sujeito (p. 226). As redes comunicativas wireless emanciparam-se quase completamente dos suportes físicos e ultrapassam agora nossas peles. Surge então um habitar no qual não há território para atravessar, tampouco geografias para residir. Uma forma de habitar pós-urbana, portanto, na qual a paisagem não é mais dada, nem alcançada ou interpretada por intermédio de uma extensão tecnológico-comunicativa, mas estratificada e porosa, imediatamente manipulável, passível de ser instantaneamente estendida ao passar de uma interface, de um software ou de um sistema informativo para outro.

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Projeto: Cidadão em Rede: De Consumidor a Produtor de Informação sobre o Território Prodeb/UFBA Mês: jan 2013

Título: O habitar atópico

Fonte: DI FELICE, Massimo. Paisagens Pós-urbanas. O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume. 2009 (Coleção ATOPOS)

Notas técnicas – p. 221-244 1/4

Maria Célia Furtado Rocha

O habitar atópico

Com a reprodução tecnológica da paisagem surge, ao lado do território tradicional, um

território midiático que causará a perda da aura do lugar e o fim de seu significado único. A

tendência à hibridação entre espaço, corpo e informação é resultado das recentes inovações

tecnológicas que determinaram a passagem para as formas digitais de interação entre

sistemas, máquinas e pessoas.

Para M. Castells o conceito de sociedade de informação se destaca enquanto paradigma de

análise da sociedade contemporânea, capaz de identificar a tecnologia e a informação como

agentes constituintes tanto do processo de produção quanto das relações sociais. Assim, a

sociedade informacional seria uma forma específica de organização social em que a geração, o

processamento e a transformação das informações tornam-se fonte fundamental da

sociabilidade (p. 225). A tecnologia midiática deixa de ser “extensão dos sentidos” para se

tornar propiciadora de sociabilidade e da forma de habitar.

Além da arquitetura e da geografia, o habitar atópico não é mais ligado às coordenadas

topográficas, mas a fluxos informativos e a uma espacialidade mutante, que por meio da

tecnologia wireless e da computação móvel faz do corpo o suporte da informação.

As pós-geografias e as redes digitais não são espacialidades na nossa frente, mas experiências

imersivas que nos convidam a ir além da nossa vista. A paisagem pós-urbana, portanto, não é

mais visual. Se a cidade e a metrópole podem ser escritas, fotografadas e filmadas, prestando-

se a distintas formas de experiência do narrador, embora fragmentariamente, a experiência

atópica do habitar, por sua vez, resulta em algo irrepresentável e indizível (atópico) para a

narração do sujeito (p. 226).

As redes comunicativas wireless emanciparam-se quase completamente dos suportes físicos e

ultrapassam agora nossas peles. Surge então um habitar no qual não há território para

atravessar, tampouco geografias para residir.

Uma forma de habitar pós-urbana, portanto, na qual a paisagem não é mais dada, nem

alcançada ou interpretada por intermédio de uma extensão tecnológico-comunicativa, mas

estratificada e porosa, imediatamente manipulável, passível de ser instantaneamente

estendida ao passar de uma interface, de um software ou de um sistema informativo para

outro.

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Título: O habitar atópico

Fonte: DI FELICE, Massimo. Paisagens Pós-urbanas. O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume. 2009 (Coleção ATOPOS)

Notas técnicas – p. 221-244 2/4

Maria Célia Furtado Rocha

O que caracteriza o habitar na época das redes digitais é não apenas a perda do sentido do

lugar, mas o fim do território e uma ulterior transformação da relação entre o sujeito, espaço-

informação, marcada pelo surgimento de uma forma simbiótica e interativa.

Além do território – Paisagens virtuais

Há distintas definições de paisagens virtuais, isto é, territórios informativos. Cada um deles

exprime uma distinta concepção teórica do virtual.

Digital City (www.digitalcity.com/)

A primeira forma de pensar a virtualidade e o habitar nela desenvolvido é aquela que descreve

o virtual como um habitar fictício e como um não lugar. Segundo essa visão, o virtual criaria

outra dimensão, evocando um habitar imaginário e alienado. Tal concepção encontra sua

origem na contraposição platônica entre o mundo verdadeiro e o mundo falso, entre o real e a

cópia.

A essa representação de mundo correspondem dois níveis de conhecimento que,

coerentemente com a contraposição entre mundo sensível e mundo metafísico, passam a

dividir o saber em dois tipos: a “doxa” (opinião e mentira), que busca o conhecimento do

mundo sensível (imagens e objetos sensíveis) e a “episteme”, que alcança através das ideias o

conhecimento puro (p. 233-234).

A virtualidade e as cidades virtuais, nessa perspectiva, seriam espaços simulacros, territórios

inexistentes. Uma vida e uma paisagem falsas, uma segunda cidade, contrária ao mundo real

e, portanto, menor.

Amsterdã (www.dds.nl)

Depois de Amsterdã, a digitalização dos espaços urbanos multiplicou-se. Surgiram espaços

informativos “abertos a todos”, sem filas nem poluição ou trânsito.

Aqui o espaço virtual não se opõe ao outro, ao mesmo tempo diferente, é verdadeiro

enquanto virtual. Aos territórios urbanos correspondem os territórios digitais, que ampliam a

prática do habitar fornecendo mais informações. Mais que criar uma geografia fictícia, essa

forma de digitalização parece ampliar e estender os espaços urbanos no virtual (p. 236).

Nessa percepção o espaço digital continua a se contrapor ao espaço “real”, mas não como

simulacro, ou como espacialidade contrária, e sim como sua expansão ou extensão (p. 236).

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Fonte: DI FELICE, Massimo. Paisagens Pós-urbanas. O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume. 2009 (Coleção ATOPOS)

Notas técnicas – p. 221-244 3/4

Maria Célia Furtado Rocha

Uma metaterriorialidade que não é cópia, mas alteridade irmã, extensão identitária, elevação

à potência, continuidade.

GPS

GPS e conexão wireless se propõem a fornecer informações ao cidadão sobre o território em

qualquer momento. São os chamados LBS (Location Based Services), que buscam uma

interação contínua entre sujeito informações/interfaces e território.

Essas informações, em contínua transformação, não poderiam se concentrar em um único

sistema central, mas em um sistema informativo continuamente atualizado.

O resultado é uma espacialidade pós-geográfica interativa, cuja definição e percepção

resultarão sempre temporárias e derivadas de uma interação entre sujeito-interface-

informação-território.

A fusão entre espaço e informação cria outra forma de habitar. A simultaneidade das

informações que guiam o veículo ou o transeunte faz do indivíduo o morador de um espaço

múltiplo, real e virtual ao mesmo tempo.

As imagens do território não são criação original, independentes e autônomas, não são

imitação falsificadora de um modelo. A virtualidade proposta pelas imagens do GPS ou

qualquer outro exemplo de computação móvel não possui original.

Esse novo tipo de interação obriga a superação da concepção dualista entre real e virtual e do

próprio conceito de simulacro. Quebrando a relação cópia-original, as imagens do GPS não são

ícone nem visão, não mantêm uma relação de identidade com o original.

Mais que suspender o tempo e espaço, a virtualização cria outros tempos e espaços

contemporâneos. Ao invés “de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma

extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte”

(Lévy, 1996).

Isso é central para entender os novos rumos das cidadanias contemporâneas que, em vez de

serem ligadas a um espaço e tempo únicos e objetivos, como nas épocas precedentes,

parecem desenvolver-se com mais velocidades, em mais lugares ao mesmo tempo (p. 240).

Assistimos à passagem do mundo objetivo e arquitetônico para os mundos plurais e

interativos.

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Título: O habitar atópico

Fonte: DI FELICE, Massimo. Paisagens Pós-urbanas. O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume. 2009 (Coleção ATOPOS)

Notas técnicas – p. 221-244 4/4

Maria Célia Furtado Rocha

A introdução de tecnologias digitais e interativas e as formas contemporâneas de comunicação

em rede modificam não somente as relações sociais mas superam mesmo o conceito de

território e modificam qualitativamente a relação entre sujeito e espaço.

O advento das redes digitais determina outra forma de relação com o espaço e outro tipo de

dinamismo dialógico, no qual o sujeito e a paisagem passam a se comunicar e a interagir

criativamente por meio da mediação digital (p. 240).

Uma vez que o território transforma-se digitalmente passa a se pluralizar e a se tornar

maleável. O sujeito precisa escolher o tipo de espacialidade na qual quer transitar.

O resultado é um território ampliado, composto de metageografias, isso é, de espaços e

informações, um pós-espaço que remete a outra forma de habitar, possível apenas através de

uma interação técnica.

A consequência é o surgimento de um pós-território, feito de circuitos informativos e de

topografias maleáveis, que muda continuamente as suas formas, possibilitando interações

criativas e formas inéditas de habitar. (p. 244)