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Dia-Logos ___________________________________________________ REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Nº 8 | OUTUBRO DE 2014

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Dia-Logos ___________________________________________________

REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Nº 8 | OUTUBRO DE 2014

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Reitor

Ricardo Vieiralves de Castro

Vice-Reitora

Paulo Roberto Volpato Dias

Sub-Reitoria de Graduação

Lená Medeiros de Menezes

Sub-Reitoria de Graduação e Pesquisa

Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron

Sub-Reitoria de Extensão e Cultura

Regina Lúcia Monteiro Henriques

Diretor do Centro de Ciências Sociais

Léo da Rocha Ferreira

Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

José Augusto de Souza Rodrigues

Coordenadora Geral do Programa de Pós-Graduação em História

Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves

CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ/ REDE SIRIUS/ CCS/ A

____________________________________________________ D536 Dia-Logos - RJ. - vol.1 nº1 (2004) - .- Rio de Janeiro:

UERJ, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2004 –

v.

Anual Dia-Logos - Revista dos alunos de Pós-Graduação em História da UERJ,

nº8, 2014.

ISSN 1414-9109

1. História - Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

CDU: 981 (05)

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Dia-Logos

___________________________________________________ REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Nº 8 | OUTUBRO DE 2014

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

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Conselho Consultivo (UERJ) Edgar Leite Ferreira Neto; Edna Maria dos Santos; Eliane Garcindo de Sá; Lená Medeiros de Menezes; Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves; Lúcia Maria Paschoal Guimarães; Maria do Carmo Parente; Maria Emília da Costa Prado; Maria Regina Cândido; Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos; Marilene Rosa Nogueira da Silva; Oswaldo Munteal Filho; Paulo Roberto Gomes Seda; Ricardo Antônio Souza Mendes; Sonia Wanderley; Tânia Maria T. Bessone da Cruz Ferreira. Conselho Consultivo (professores convidados) Alex Gonçalves Varella (UERJ); Álvaro de Oliveira Senra (CEFET/RJ); Álvaro Vicente G. Truppel P. do Cabo (UFRJ/UCAM); Andrea Barboza Marzano (UNIRIO); Andrea Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ); Beatriz Vieira (UERJ); Bernardo Borges Buarque de Hollanda (CPDOC/FGV); Bruno Leal (UFRJ); Carlos Armani (UFSM); Carlos Gabriel Guimarães (UFF); Célia Cristina Tavares (UERJ/FFP); Daniel Aarão Reis Filho (UFF); Felipe Charbel (UFRJ); Felipe Magalhães (UFRRJ); Gelsom Rozentino (UERJ/FFP); Guilherme Pereira das Neves (UFF); Hilton Meliande de Oliveira (UERJ); Humberto Fernandes Machado (UFF); Icléia Thiesen (UNIRIO); José Maria Neto (UPE); Júlio Cesar Mendonça Gralha (UFF/PUCG); Kátia Krause (UFF); Laura Moutinho Nery (UERJ); Luciana Gandelman (UFRRJ); Luiz Reznik (UERJ/FFP); Marcelo de Souza Magalhães (UNIRIO); Márcia Regina Romeiro Chuva (UNIRIO); Maria da Conceição Pires (UNIRIO); Maria Letícia Corrêa (UERJ/FFP); Maria Regina Celestino de Almeida (UFF); Maria Teresa Villela Bandeira de Mello (UERJ/FFP); Mariana de Aguiar Ferreira Muaze (UNIRIO); Maurício Drumond (UFRJ); Mirian Cabral Coser (UNIRIO); Miriam Lourdes L. Luna (UERJ); Monica Almeida Kornis (CPDOC/FGV); Monique Gonçalves (UERJ); Norma Cortes (UFRJ); Patrícia Wolley Cardoso Lins Alves (FIS/UVA); Paulo Cruz Terra (UFF); Rafael Alex Rocha (UFF); Rebeca Gontijo Teixeira (UFRRJ); Rui Aniceto (UERJ/FFP); Sérgio Chahon (FIS/UGF); Sheila Conceição Silva Lima (UCM); Silvio de Almeida Carvalho (UFRJ); Surama Conde Sá Pinto (UFRRJ); Vantuil Pereira (UFRJ). Conselho Editorial Beatriz Piva Momesso, Carlos Eduardo da Costa Campos. Projeto gráfico editorial Tricia Magalhães Carnevale | e-mail: [email protected] Desenho de capa Gabriel Costa Labanca. Revisão Beatriz Piva Momesso. Correspondência Rua São Francisco Xavier, 524 - Bloco F - 9º andar - sala 9037 Maracanã - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20550-013 Tel./Fax.: 21 2334-0678 - e-mail: [email protected]

Todos os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a posição da editoria ou da instituição responsável por esta publicação.

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ÍNDICE

7 Apresentação

9 Entre histórias e memórias: Gonçalves Dias como ícone de identidade brasileira e maranhense

Andrea Camila de Faria Universidade do Estado do Rio de Janeiro

19 Do Arena para o Olympia: “Upa, neguinho” e as transformações musicais na trajetória de Elis Regina

Andrea M. Vizzotto A. Lopes Universidade Federal do Rio de Janeiro

31 Marcha Hoje: o nascimento da República de Cabo Verde em 5 de julho de 1975

Artur Monteiro Bento Universidade Federal do Rio de Janeiro

43 Fronteira, Espaço do Encontro: expansão territorial e aldeamento em Cachoeira de Itabuna (Bahia), século XIX

Ayalla Oliveira Silva Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

55 A questão democrática na estratégia da resistência armada contra a Ditadura Militar: Os aportes do marxismo-leninismo para a luta de classes no Brasil

Diego Grossi Universidade do Norte do Paraná

65 O decote, o Canhão e a Fila Negra – Possibilidades de Interpretação do Brasil em Diário Íntimo de Lima Barreto

Eliete Marim Martins Universidade de Brasilia

75 Páginas Revolucionárias: A Revista Che Guevara e a Defesa da Luta Armada e do Internacionalismo Latino-Americano na Década de 1970

Izabel Priscila Pimentel da Silva

Universidade Federal Fluminense

87 O Desenvolvimento como política de modernização do Brasil Juanito Alexandre Vieira

Universidade Federal de Juiz de Fora

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99 “O preclaro brasileiro” — a memória perpetuada do jornalista José Carlos Rodrigues (1844-1923)

Julia R. Junqueira Universidade do Estado do Rio de Janeiro

111 Libertas e ingênuos, ou, mães e filhos nos processos de tutela? (Rio de Janeiro, 1880-1890)

Patricia Urruzola Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

123 Resumos | Abstract

133 Normas Editoriais

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Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.8, Outubro de 2014 7

APRESENTAÇÃO

Mais um número da revista Dia-logos vem à luz, apresentando os melhores trabalhos da edição de 2013 da Semana de História Política da UERJ. Dessa forma, Dia-logos continua a cumprir sua primeira e original finalidade: apresentar ao público a melhor síntese do seminário científico discente organizado há anos, com grande esforço, em meio as mais variadas dificuldades de ordem prática, pelos alunos da Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Para alcançar tais objetivos, árduas foram as tarefas do Conselho Editorial: recolher artigos, enviá-los a considerável grupo de professores pareceristas, aguardar a avaliação dos pares, elaborar a apresentação gráfica, editar e, por fim, distribuir os exemplares. Tudo isso em meio à elaboração de teses, dissertações e à obrigação do cumprimento de outros compromissos acadêmicos, necessários, na vida dos pós-graduandos.

Mas, valeu a pena! Temas de História Política mostraram-se muito bem integrados a outros de História Social e Cultural nos trabalhos enviados por pós-graduandos das mais diversas regiões do Brasil. A produção de todo o país se fez representar por meio de artigos inéditos, plasmados em textos bem articulados que compõem o número oito dessa publicação. A cada ano que passa a seleção dos artigos tem sido realizada de modo mais rigoroso, já que os textos enviados apresentam excelente nível e exigem um processo criterioso de seleção.

A temática é diversificada e inclui estudos que relacionam a música à identidade política nacional, ou que fazem uso de análises da linguagem política, da construção da memória e história, só para apresentar alguns exemplos. Surpreende ainda, a relação estabelecida entre o território e a política oitocentista ou muito diversamente entre a literatura e a construção de uma biografia. Nesse número, ademais, nota-se a combinação da História Política com a História Cultural e/ou Social como uma realidade possível, que pode ser feita de forma séria e consistente.

Por conseguinte, deve-se ressaltar a contribuição tanto da Semana de História Política da UERJ quanto da revista Dia-logos para a alvissareira ascensão do Programa de Pós-Graduação em História na avaliação da CAPES (alcançamos o conceito 5, na última avaliação

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Apresentação

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trienal). Tal fato comprova que, na universidade que queremos construir, professores e alunos podem trabalhar com prazer, mas também com grande esforço e sacrifício em benefício de seu programa de pós-graduação.

A revista Dia-logos, intimamente associada à Semana de História Política, cumpre ainda outra finalidade – publicizar a promoção científica das melhores produções em História dos muitos mestrandos e doutorandos do nosso país. Talvez, esse seja seu objetivo primordial.

Parabéns a todos os que participaram de uma ou de todas as etapas do processo de produção desse periódico discente. Agora, cabe ao leitor dar sua opinião!

Lucia Maria Bastos P. Neves

Coordenadora do PPGH/UERJ

Tania Maria Bessone da C. Ferreira

Coordenadora adjunta dp PPGH/UERJ

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Entre histórias e memórias: Gonçalves Dias como ícone de identidade brasileira e maranhense

Andrea Camila de Faria*

As províncias do norte do Brasil foram as que mais tarde aderiram à independência do Império. Caxias, então chamada Aldeias Altas no Maranhão, foi a derradeira. A independência foi ali proclamada depois de uma luta sustentada com denodo por um bravo oficial português que ali se fizera forte. Isto teve lugar à (sic) 1° de Agosto de 1823. Nasci a 10 de Agosto desse ano.1

Segundo Joël Candau não podemos recordar um acontecimento do passado sem que o futuro desse passado seja integrado à lembrança, isto é, lembrar uma história nunca é recuperá-la sem as influencias de seu futuro, pois “o tempo da lembrança não é o passado, mas ‘o futuro já passado do passado’”2. Nesse sentido, toda recordação é, segundo o autor, tributária da natureza do acontecimento memorizado, do contexto passado desse acontecimento e também daquele momento de recordação3. Em suas palavras,

O narrador parece colocar em ordem e tornar coerente os acontecimentos de sua vida que julga significativos no momento mesmo da narrativa: restituições, ajustes, invenções, modificações, simplificações, “sublimações”, esquematizações, esquecimentos, censuras, resistências, não ditos, recusas, “vida sonhada”, ancoragens, interpretações e reinterpretações constituem a trama desse ato de memória que é sempre uma excelente ilustração das estratégias identitárias que operam em toda narrativa.4

Recuperar uma lembrança, especialmente uma lembrança autobiográfica é criar uma memória, uma identidade, e esse movimento nos permite vislumbrar algumas das estratégias de criação identitária, mesmo que nem sempre elas estejam perfeitamente às claras ou pareçam deliberadas.

No caso de Gonçalves Dias é sintomático que o poeta, ao escrever nota autobiográfica a pedido do francês Fedinand Denis, tenha relacionado diretamente seu nascimento ao “nascimento” da pátria, na menção a consolidação da independência com a rendição do Maranhão em agosto de 1823. Está claro que para o menino que nascia a 10 de agosto daquele ano, o fato de que o país estava recém-saído de sua condição colonial e de que sua província natal resistira a essa metamorfose, não era questão importante, aliás, nada que não

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Andrea Camila de Faria

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dissesse respeito aos cuidados maternos requisitados por um bebê recém-nascido devia importar.

Mas para o homem de letras que se consolidara já em 1846, quando da publicação de seus Primeiros Cantos, como o maior poeta do Brasil, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, parte ativa dos projetos de (re)construção da nação, estabelecer esta relação significava criar para si próprio uma identidade e uma origem singular. Nas palavras da biógrafa Lucia Miguel Pereira, a nota é:

importantíssima, pelo que diz, e pelo que omite. Mais ainda pelo que omite do que pelo que diz. Com efeito, ligando o seu nascimento aos sucessos políticos, patenteia Gonçalves Dias que foi profundamente marcado por eles. Que o fato de nascer com a independência da sua província influiu no seu feitio, na direção que imprimiu à sua obra. Do contrário não mencionaria a coincidência nessa concisa informação, em que mais nada adiantou sobre a sua vida particular.5

Na interpretação da biógrafa, em seu silencio Gonçalves Dias

deixava transparecer a inquietação de seu lugar social, de sua posição de filho natural de uma mãe mestiça e um pai português que resistira à independência do Brasil. Era o silencio revelador de um estado d’alma6. Não nos cabe aqui aprofundar ou debater tal interpretação, embora deva se pensar que talvez sua condição de mestiço tenha pesado – positivamente, devemos dizer – para sua identificação como ícone da nacionalidade brasileira. De todos os modos, ao estabelecer esta relação, o poeta firmou para si um pertencimento e uma vinculação particular com sua pátria, numa imagem que ajudou a perpetuar o seu nome junto à memória nacional.

Para Marcia de Almeida Gonçalves, ao estabelecer esta relação, Gonçalves Dias, mais do que um pertencimento, firmava um compromisso de representar por meio de sua vida particular – e aqui entendemos também por meio de sua obra – a comunidade imaginada, sentida e significada como nação7.

De alguma maneira podemos dizer que Gonçalves Dias decidira proclamar-se como brasileiro desde o nascimento, identificando-se ao Brasil cuja imagem ajudava a divulgar e (re)construir, num exercício onde o presente e o futuro pesavam decisivamente sobre a memória do passado. Ele era brasileiro desde o nascimento, mesmo que ser brasileiro nesse momento ainda fosse algo em construção.

Operações complexas, a reconstrução de um passado e a conseqüente construção de sua memória, demonstram alguns dos objetivos escondidos atrás desses movimentos. Movimentos que, no caso das narrativas pessoais, buscam tornar estável, verossímil e previsível os projetos que norteiam ou nortearam a vida daquele indivíduo. Nesse sentido, como afirma Candau, “todo aquele que

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recorda domestica o passado e, sobretudo, dele se apropria, incorpora e coloca sua marca em uma espécie de selo memorial que atua como significante da identidade”8. Assim ao relacionar diretamente seu nascimento ao nascimento da pátria, Gonçalves Dias procurou criar para si uma identidade que o vinculava diretamente ao seu objetivo, ao seu projeto de vida.

O projeto de Gonçalves Dias era o de fazer brilhar o seu nome tornando-se “o primeiro poeta do Brasil, e, se houver tempo, o primeiro literato”9, como comentou certa vez em carta ao amigo Alexandre Teófilo. Como sabemos, o poeta alcançou seu objetivo já em 1846 com a publicação de seus Primeiros Cantos. Tal sucesso merece, contudo, ser melhor problematizado.

A publicação que trazia à público a hoje tão aclamada Canção do Exílio, veio à luz sem grande alarde. O grande sucesso só viria após a divulgação da crítica de Alexandre Herculano sobre o livro de estréia do jovem poeta maranhense. No artigo em questão, intitulado Futuro Literário de Portugal e do Brasil, publicado no tomo 7 da Revista Universal Lisboense (1847-1848), o escritor português afirmava:

Nós somos hoje o hilota embriagado, que se punha defronte da mesa nas filiais de Esparta, para servir de lição de sobriedade aos mancebos. O Brasil é a moderna Esparta, de que Portugal é a moderna Helos. Estas amarguradas cogitações surgiram-me na alma com a leitura de um livro impresso o ano passado no Rio de Janeiro, e intitulado: Primeiros Cantos: poesias por A. Gonçalves Dias. Naquele país de esperanças, cheio de viço e de vida, há um ruído de lavor íntimo, que soa tristemente cá, nesta terra onde tudo se acaba. A mocidade, despregando o estandarte da civilização, prepara-se para os seus graves destinos pela cultura das letras; arroteia os campos da inteligência; aspira as harmonias dessa natureza possante que a cerca; concentra num foco todos os raios vivificantes do formoso céu, que a alumina; prova forças enfim para algum dia renovar pelas idéias a sociedade, quando passar a geração dos homens práticos e positivos, raça que lá deve predominar ainda; porque a sociedade brasileira, vergôntea separada há tão pouco da carcomida árvore portuguesa, ainda necessariamente conserva uma parte do velho cepo. Possa o renovo dessa vergôntea, transplantada da Europa para entre os trópicos, prosperar e viver uma bem longa vida, e não decair tão cedo como nós decaímos!10

E ainda ponderava que os Primeiros Cantos eram “inspiração de

um grande poeta” e que o poema Seus Olhos eram as composições mais mimosas que já havia lido11.

O artigo de Herculano chegou às mãos de Gonçalves Dias através de seu amigo português Gomes de Amorim, que o transcreveu

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e enviou para o Brasil na certeza de que o escrito surpreenderia e em muito alegraria o poeta maranhense. Os meios que levaram os Primeiros Cantos às mãos do ilustre letrado português, infelizmente nos são desconhecidos, talvez tenha influído para isso as sociabilidades portuguesas de Gonçalves Dias, mas o que é certo é que sua repercussão foi de grande importância na vida do jovem poeta, lançando-o de vez a um posto de destaque no cenário das letras nacionais.

Nesse sentido, José Henrique de Paula Borralho, afirma que

A repercussão do artigo de Alexandre Herculano nos jornais do império foi imediata e pesou decisivamente para a visibilidade e dizibilidade do cantor timbirense e de sua utilização pelo império brasileiro dentro do projeto criador da nação.12

Num momento em que a nação se construía e se firmava, o

reconhecimento da declaração de independência literária recebida pelas mãos de um dos mais aclamados homens de letras da antiga metrópole se revestia de um aspecto mais do que simbólico. Tratava-se de um ato político. Com a exaltação de Gonçalves Dias feita por Herculano, o Império Brasileiro não era mais apenas independente politicamente, ganhara o aval para ser autônomo em sua literatura e história. E não seriam justamente essas duas esferas as principais responsáveis pela construção da nação?

Gonçalves Dias parecia ter plena consciência da importância que essa “aprovação” possuía, prova disso é que ao organizar em 1857 uma publicação que reunia seus Primeiros, Segundos e Últimos Cantos – intitulada Cantos – precedeu-o pelo artigo de Herculano, em um claro recurso de (re)afirmação de sua obra e de sua imagem. No prólogo da edição ele afirmou:

A colecção de poezias, que agora reimprimo, vae illustrada com algumas linhas de A. Herculano, a que devo a maior satisfação que tenho ate hoje experimentado na minha vida litteraria. Merecer a critica de A. Herculano, já eu consideraria como bastante honroso para mim; uma simples mensão do meo primeiro volume, rubricada com seo nome, desejava-o de certo; mas esperal-o, seria da minha parte demasiada vaidade. Ora, em vez da critica inflexível, que eu devera, mas não ousava receiar; em vez da simples noticia do apparecimento de um volume, que não seria de todo ruim, pois que teria merecido occupar a sua attenção; o ilustre escriptor poz por alguns momentos de parte a severidade que tem direito de usar para com todos, quando é tão severo para consigo

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mesmo, e, benevolamente indulgente, dirigio me algumas linhas, que me fiserão comprehender quão alto eu reputava a sua gloria, na plenitude de contentamento, de que as suas palavras me deixarão possuido.13

Gonçalves Dias ia assim firmando sua imagem de literato, mas

mais do que isso, firmava sua imagem de poeta nacional, criando e recriando sua memória a cada novo escrito ou publicação, fixando seu nome na memória da nação.

Nesse sentido é interessante lembrar que nenhum de seus poemas fixou tão bem seu nome na memória nacional quanto sua Canção do Exílio. Incessantemente repetida e parafraseada, a Canção atravessou os séculos, fixando seus versos e a memória de seu autor como ícone de brasilidade. Nas palavras de Maria Helena Rouanet, os versos “Nosso céu tem mais estrelas,/ Nossas várzeas têm mais flores,/ Nossos bosques têm mais vida,/ Nossas vidas mais amores” foram tão eficazes em proclamar a diferença entre o eu e o outro, o nacional e o estrangeiro – a polaridade norteadora da construção de identidade (nacionalidade) no romantismo – que além de serem reproduzidos por vários outros poetas românticos, acabaram se institucionalizando de vez na letra do Hino Nacional14.

Mas essa institucionalização torna-se curiosa se pensarmos que esse poema foi escrito em Coimbra, em julho de 184315, quando Gonçalves Dias era ainda um jovem de 19 anos, distante de sua terra natal já há quatro quatro anos. Aliás, quando nos referimos a sua terra natal precisamos deixar claro que não estamos nos referindo ao Brasil, esta unidade nacional tão evocada, mas a uma pequena partícula desse todo, ao Maranhão, ou antes, a Caxias, esta sim, sua terra natal.

Ao partir para Coimbra em 1838 o jovem Gonçalves Dias não conhecia mais do que Caxias, o sítio de Boa Vista, onde nascera, e a capital da província, São Luiz16. Uma parte do Maranhão era o máximo de Brasil que ele conhecia. Aliás, o próprio poeta ao publicar sua Canção fez questão de ressaltar: “Quando eu compuz esta canção, ou como melhor se chame, tinha apenas visto algumas das Províncias do Norte do Brasil”17. Esta simples nota nos faz pensar que talvez aquele que é o poema nacional por excelência, conhecido nos quatro cantos do país, incessantemente reproduzido nos manuais didáticos, não seja exatamente nacional, mas antes, regional.

Não queremos com isso, contudo, retirar Gonçalves Dias de sua posição no panteon nacional. O que nos importa é problematizar essa figuração, entende-la como uma construção, como mais uma das muitas construções de memória que são responsáveis por criar uma identidade comum. Nesse caso, nos parece que a propagação de Canção do Exílio como poema nacional por excelência se deu sem que

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se levasse em conta o regionalismo que a produzira, ou antes, desconsiderando-se propositalmente essa característica a fim de torná-la um símbolo que bem representasse o sentimento nativista que se queria construir, nosso nacionalismo. Nesse caso, sem que Gonçalves Dias planejasse, seu poema foi alçado ao posto de canção nacional e seu autor, por conseguinte, ao de cantor da pátria, de iniciador da literatura brasileira, numa construção de memória que merece, no mínimo, ser demarcada.

De acordo com Joël Candau, “‘fazer o nome’ é agir para a posteridade, ter a esperança estéril de não desaparecer no esquecimento”18, e essa busca requer o esforço de fazer escolhas, de jogar luz sobre os aspectos que se quer exaltados e jogar na penumbra aqueles que podem dificultar seu “sucesso”. Nesse sentido, é curioso pensar que nessa mesma edição dos Cantos, onde procurou dar destaque às palavras de Herculano sobre sua obra e sobre futuro da literatura brasileira, Gonçalves Dias tenha deixado de republicar a nota que pontuava a Canção do Exílio como fruto da inspiração de um jovem que quase nada conhecia de Brasil, o que, como já dissemos, acabava insinuando ao poema uma forte marca de exaltação regional.

No entanto,No entanto, ao pensarmos isso somos forçosamente direcionados a pensar nos meios pelos quais a memória de Gonçalves Dias, criada por ele ou não, se fixou e se transmitiu ao longo dos anos, especialmente após a sua morte. Nesse caso, parece-nos claro que os textos biográficos sobre o poeta foram determinantes em fixar sua memória/identidade de poeta nacional.

Ainda segundo Joël Candau o trabalho da memória nunca é um ato individual. Em suas palavras,

A forma do relato, que especifica o ato de rememoração, “se ajusta imediatamente às condições coletivas de sua expressão”, o sentimento do passado se modifica em função da sociedade. (...) Muitas de nossas lembranças existem porque encontramos eco a elas, observação que conduziu Halbwachs a elaborar a noção de “quadros sociais da memória”. Por isso, é um tecido memorial coletivo que vai alimentar o sentimento de identidade.19

Nesse sentido, está claro para nós que se Gonçalves Dias se

fixou na memória nacional não foi apenas pelo sucesso de seu projeto de fazer seu nome ou, dito de outro modo, seu projeto de muito pouco valeria se a memória que procurou criar de si não encontrasse eco na memória coletiva, social. Dessa forma, seu projeto foi vitorioso porque ao criar-se como brasileiro, sua voz ressoava junto ao projeto nacional, garantindo-lhe posição de destaque perpetuo entre os nomes ilustres do país.

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Para isso contribuiu além de seu próprio esforço em construir sua memória, a fixação feita por seus biógrafos. Desde sua morte em 1864, suas biografias proliferaram-se, mas nesse cenário de vastidão não há grandes novidades, o que vemos sempre é o paralelo entre a vida do homem e a obra, numa constante fixação da imagem de Gonçalves Dias como o poeta do Brasil, imagem que ele mesmo havia se encarregado de criar.

A nosso ver, contudo, essa fixação foi iniciada pelas obras de quatro autores específicos: Joaquim Manuel de Macedo, Antonio Henriques Leal, Lucia Miguel Pereira e Manuel Bandeira. Cada um desses autores e de suas respectivas obras possui características específicas que ajudaram ou a manter e reforçar a memória de Gonçalves Dias que o próprio poeta havia forjado ou a criar/identificar novos valores que ajudaram a consolidar a figura do poeta no imaginário nacional.

Não nos interessa pensá-las aqui, contudo. Mas cabe ponderar apenas que se houve a nacionalização de Gonçalves Dias, sua institucionalização como brasileiro por excelência, houve em contra partida, uma re-apropriação de sua imagem pela sua província natal, como forma de alçar o Maranhão – decadente econômica e socialmente – aa um posto de destaque no cenário nacional. Assim, seus co-provincianos propagavam: Gonçalves Dias era Brasileiro sim, mas era antes Maranhense!

Ainda hoje a antiga Província, hoje estado do Maranhão, orgulha-se de seu ilustre filho. Não há uma só publicação sobre maranhenses ilustres que não apresente seu nome com destaque e ostente sua imagem na capa20. Simbolicamente a maior estátua em sua homenagem foi erguida na capital S. Luis e não em Caxias, sua cidade natal.

Entretanto, mais significativo do que a disputa por sua memória, nacional ou regional, é constatarmos o real alcance dessa memória. Um recente projeto da Universidade Federal do Maranhão em parceria com o Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão21 para que fosse publicado um livro de mil poemas em homenagem aos 190 anos de nascimento de Gonçalves Dias, completados em 10 de agosto de 2013, recebeu poemas de autores de várias partes do Brasil e do mundo, até mesmo da África, onde o poeta maranhense nunca esteve. A dimensão dessa publicação recém-lançada nos permite vislumbrar o alcance da memória construída sobre o contruída sobre o poeta. E sem entrarmos no mérito da qualidade dos textos, são ao todo 757 páginas dedicadas à memória de Gonçalves Dias. 757 lembrando o seu nome.

Antonio Candido em seu célebre estudo sobre a gênese da literatura nacional afirmouafirmou – surpreendentemente sobre I-Juca Pirama e não sobre a Canção do exílio – que “é dessas coisas

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Andrea Camila de Faria

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indiscutidas, que se incorporam ao orgulho nacional e à própria representação da pátria, como a magnitude do Amazonas, o grito do Ipiranga ou as cores verde e amarela”22. Digamos surpreendentemente não em desmerecimento de I-Juca Pirama, mas parece claro que Canção do exílio tornou-se muito mais célebre, incessantemente repetida e incorporada ao imaginário nacional do que o “canto de morte do filho do norte”. Entrementes, o que incorporamos não foi somente o I–Juca Pirama, foi a memória do próprio poeta.

Se ainda hoje vemos referencias à Canção do exílio surgirem aqui e acolá, seja repetindo-a ou parafraseando-a é porque estes versos se incutiram de tal forma no imaginário nacional que é como se sempre tivessem existido, como se não fosse necessário pensar sobre as especificidades de sua produção e circulação. Sua força nacional está dada, como está dado que as cores verde e amarela representam o Brasil, como apontou Antonio Candido, mas esquecendo-se que estas mesmas cores foram fruto de escolhas e debates.

Assim, ao completar 190 anos de nascimento, Gonçalves Dias é o poeta nacional. Mas o é porque era esse o seu projeto e porque a construção que fez de si, de sua identidade, encontrou eco e espaço na memória coletiva que se criava. DDe alguma forma ele nasceu junto com sua pátria, não porque veio ao mundo junto com a consolidação da independência, mas porque criou sua identidade ao mesmo tempo em que se forjava a identidade nacional. Mas é também o poeta maranhense, dando eco aos anseios de parte desse imenso país que ainda busca a glória de outrora. É o poeta do exílio, se fixando na canção que percorreu o mundo e é ao mesmo tempo apenas uma pequena parte de um quebra-cabeça chamado identidade brasileira.

Notas de Referência

* Mestre em História Política pelo Programa de Pós-Graduação em História da UERJ. Bolsista do Programa de Treinamento e Capacitação Técnica da FAPERJ no projeto Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividades (NUBHES) coordenado pela Profª Drª Marcia de Almeida Gonçalves. 1 DIAS apud PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943, p. 09. 2 CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011, p. 66 3 Ibidem, p. 71. 4 Ibidem. 5 PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. ..., op.cit., p. 9. 6 Ibidem. 7 GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Histórias de gênios e heróis: indivíduo e nação no Romantismo brasileiro”. GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org).

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Entre histórias e memórias

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In: ______. O Brasil imperial 1831-1889. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009b, p. 428. 8CANDAU, Joël. Memória e identidade..., op.cit., p. 74. 9 DIAS, Gonçalves apud PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias...,

op.cit.,, p. 85. 10 HERCULANO In: DIAS, A. Gonçalves. Poesia e prosa completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 98-99. 11 Ibidem, p. 99-100. 12 BORRALHO, José Henrique de P. A Athenas equinocial: a fundação de um Maranhão no Império brasileiro. 2009. Tese (doutorado em História) - Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009, p. 208. 13 DIAS, A. Gonçalves. Cantos: collecção de poezias. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1857. Disponível em Brasiliana Digital: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00647200. Acesso em 26 jun 2010, p. VII. 14 ROUANET, Maria Helena. “Nacionalismo”. In: JOBIM, José Luís (org.). Introdução ao romantismo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999, p. 22-23. 15 Segundo a datação publicada nos Primeiros Cantos. 16 cf. PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias..., op.cit. 17DIAS, A. Gonçalves. Primeiros Cantos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1846.

Disponível em Brasiliana Digital: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00634200. Acesso em 26 jun 2010, p. 09 18 CANDAU, Joël. Memória e identidade ...., op. cit., p. 69 19 Ibidem. p. 77 20 Em recente visita ao Maranhão me deparei com um grande número de publicações de caráter biobibliográfico que buscavam destacar os ilustres filhos do estado e em quase todas o nome de Gonçalves Dias estava presente e sua imagem figurava na capa, em geral rodeada de algumas palmeiras. Até mesmo em uma publicação sobre nomes ilustres da cidade de S. Luis, Gonçalves Dias era figurava na capa, embora tenha nascido em Caxias. 21 Refiro-me ao projeto “Mil poemas para Gonçalves Dias”, organizado por Dilercy Aragão Adler e Leopoldo Gil Dulcio Vaz. O projeto foi complementado ainda por um convite para que pesquisadores produzissem estudos sobre a vida e a obra do poeta, originando a publicação “Sobre Gonçalves Dias”, onde possuo artigo publicado em co-autoria com a Prof.ª Dr.ª Marcia de Almeida Gonçalves. Cf. ADLER, Dilercy Aragão; VAZ, Leopoldo Gil Dulcio (Orgs). Antologia mil poemas para Gonçalves Dias. São Luís: EDUFMA, 2013. / ADLER, Dilercy Aragão; VAZ, Leopoldo Gil Dulcio (Orgs). Sobre Gonçalves Dias. São Luís: EDUFMA, 2013. 22 CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993. v. 2, p. 85.

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Andrea Camila de Faria

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Do Arena para o Olympia: “Upa, neguinho” e as transformações musicaismna trajetória de Elis Regina

Andrea M. Vizzotto A. Lopes*

Introdução

A canção Upa neguinho, de Edu Lobo e Gianfrancesco

Guarnieri, foi um dos grandes sucessos da carreira da cantora Elis Regina. Originalmente, Upa negrinho integrava o musical Arena conta Zumbi, dirigido por Augusto Boal com textos dele e de Guarnieri, e músicas de Edu Lobo. Estreou no dia 1º de maio de 1965, no Teatro de Arena, iniciando uma longa temporada de apresentações que durou quase dois anos, dramatizando a resistência do Quilombo dos Palmares para representar a resistência de todos os oprimidos. Assim como o musical Opinião – escrito por Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa –, que estreara em dezembro do ano anterior, Arena conta Zumbi também discutia os problemas socioculturais do país, na perspectiva de uma canção engajada ou “de protesto”, como era conhecida na época, ressoando alguns dos pressupostos ideológicos do Centro Popular de Cultura (CPC) e inspirando-se no projeto estético de Mário de Andrade, ao escolher temas folclóricos ou associados à tradição musical brasileira para reelaborá-los musicalmente, tanto a partir do diálogo com as propostas musicais da bossa nova quanto com técnicas composicionais eruditas.1 Em Arena conta Zumbi, é o samba o gênero escolhido para representar a cultura popular e a resistência dos escravos e para significar também a luta contra a opressão de todos os povos, e naquele contexto específico, pode-se considerar que pretendia significar também a resistência contra o regime militar instaurado em 1964.

Em meio a um debate político e estético, alguns gêneros considerados mais nacionais e “autênticos” são valorizados na defesa de uma cultura nacional-popular, como a moda de viola e o samba, inseridos em um projeto de renovação musical que rejeitava a influência do rock e de certa música estrangeira, sobretudo aquela produzida nos Estados Unidos e que vinha conquistando um grande espaço nos meios de comunicação. Para Marcos Napolitano, além da intenção de conscientização popular e resistência ao regime militar, outro objetivo presente em espetáculos como Opinião e Arena conta Zumbi era “resolver o problema de repertório e massificar uma cultura musical nacional-popular”.2 Objetivo que ele considera foi bem-sucedido.

Neste artigo, procuro discutir aspectos da inserção mercadológica e profissional da cantora Elis Regina, em um cenário de

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transformações estéticas e políticas, destacando que durante os anos 1960, quando se fixa a sigla MPB para representar uma determinada produção musical brasileira, o consumo da obra de Elis conseguiu ampliar-se para além de um “circuito fechado” de comunicação de uma cultura de esquerda formada por intelectuais e jovens de classe média, a que constantemente se costuma fazer referência na pesquisa acadêmica sobre o tema. Considerando que essa sigla e seu conceito surgem nos palcos dos festivais de música e dos musicais televisivos, a participação de Elis é fundamental para entender esse processo de construção da MPB. Vários estudiosos vêm desenvolvendo pesquisas e reflexões sobre essa produção musical e um imaginário compartilhado pelas esquerdas e seus projetos políticos e culturais, tema que não pretendo aprofundar nesse artigo.3 Contudo, tenho procurado problematizar análises que ainda sugerem espaços diferentes de consumo dessa produção musical da década de 1960, que era considerada engajada mas que era também popular. Concordo com Marcos Napolitano, quando afirma a importância de Elis Regina – e também de Chico Buarque – para a ampliação do consumo de MPB, trazendo o público de rádio que ouvia boleros e sambas-canções, constituindo-se em uma canção híbrida “que é mercado, que é engajamento, que é populista, que é revolucionária, enfim, que é tradição e modernidade ao mesmo tempo”.4

Metodologicamente, tenho buscado e encontrado em vídeos e comentários na internet, especificamente no youtube, fontes que têm me ajudado a sugerir algumas indagações a respeito da trajetória da intérprete também no exterior. Embora esses vídeos e alguns LPs gravados e lançados apenas no exterior nesse período – quando a acessibilidade a esse material não era facilmente obtida como hoje em dia, com o recurso dos vídeos disponibilizados em redes sociais – não tenham circulado e sido recebidos no Brasil por um público mais amplo, acredito que o contato com o cenário musical mundial, o convívio e a experiência com outros músicos pode ser considerada importante para as transformações na obra da artista, em um momento de transição, não só da carreira de Elis Regina como da de outros artistas brasileiros que também estão se redefinindo musicalmente.

O final dos anos 1960 foi também um período em que Elis Regina direcionou suas atividades musicais para o objetivo de atingir sucesso também no exterior, embora já houvesse realizado turnês em outros países. Como desenvolvo pesquisas com recepção, ampliei o meu campo de estudo para a sua presença em outros países. Teoricamente, ao discutir a sua inserção no mercado fonográfico e o sucesso que conquistou a sua obra, considero igualmente importante pensar nos mediadores culturais, nas formas possíveis de interação entre o artista e o seu público, considerando que a “massificação”

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Do Arena para o Olympia

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cultural não implica em perda de qualidade estética do produto musical.5 E essa mediação era realizada pelos produtores de televisão, pelos programadores musicais, e por jornais e revistas, tanto de crítica especializada quanto de consumo mais amplo, no Brasil e no exterior.

Quando Arena conta Zumbi estreou, Edu Lobo já havia se consagrado como o compositor vitorioso do I Festival Nacional de Música Popular, realizado em abril pela TV Excelsior, com a canção Arrastão, em parceria com Vinicius de Moraes, defendida por Elis Regina. E também integrava o repertório do espetáculo Dois na Bossa, com Elis e Jair Rodrigues, que estreou logo após a final do festival da TV Excelsior, e resultou no LP homônimo lançado pela gravadora Philips, que se tornou recordista de vendagens até aquele momento, com estimativas de 500 mil cópias vendidas.6

Com a estreia, em 17 de maio, do programa O Fino da Bossa, na TV Record, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, a obra de Edu Lobo – igualmente contratado pela emissora para participar desse e de outros programas – ampliava ainda mais a repercussão da sua obra. No segundo LP da série Dois na Bossa, gravado ao vivo durante o programa O Fino da Bossa e lançado em 1966, Elis já aparece interpretando a canção Upa neguinho, que será um dos seus maiores sucessos, sendo reinterpretada em diversas ocasiões até o fim da sua carreira.7 Essa foi uma uma das canções que ela interpretou em sua apresentação no Mercado Internacional de Discos e Edições Musicais (MIDEM), em Cannes, em janeiro de 1968.

Os loucos e lúcidos festivais da canção

Os festivais realizados em meados da década de 1960 são

considerados pela pesquisa acadêmica como importantes espaços de atuação política, ou “eventos de oposição ao regime militar”, como define Marcos Napolitano, frente ao cerceamento de outros espaços de participação.8 Foram também palcos férteis de experiências estéticas e propostas de renovação da música popular brasileira, seja pela inspiração das ideias de Mario de Andrade no tratamento musical erudito de temas populares e folclóricos por Edu Lobo, seja pelo hibridismo das técnicas composicionais eruditas de vanguarda com a linguagem pop e a cultura popular, desenvolvido pelos tropicalistas com inspiração do pensamento de Oswald de Andrade, ou ainda pela pesquisa musical realizada pelo Quarteto Novo (Hermeto Pascoal, Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Moreira), conjunto criado por Geraldo Vandré para acompanhá-lo em suas apresentações.

O samba era um dos gêneros bastante performatizados por Elis Regina, presente em discos gravados quando ela ainda morava em Porto Alegre – com um repertório que incluía também o samba de

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bossa nova – e nos palcos e discos realizados em meados da década de 1960, com experiências como o sambajazz, mais ligado ao hot jazz, quando as diversas propostas de modernização da música popular brasileira estavam ainda sendo chamadas de MPM (música popular moderna) e outros acrônimos, antes de a sigla MPB se consolidar.

O sucesso crescente da produção musical associada ao programa Jovem Guarda desde o início de 1966 acirrou os debates em relação aos rumos da música popular brasileira, confundindo-se o debate ideológico com as estratégias de promoção dos artistas. Até então, Elis Regina desfrutava de grande popularidade, apresentando um programa com altos índices de audiência, transmitido em São Paulo pela TV Record e pela Rádio Panamericana, e em videoteipes para outras capitais do Brasil. Ao mesmo tempo vendia muito bem o LP Dois na Bossa, com Jair Rodrigues. Como expressão dessas tensões – ou querendo revitalizar a sua programação –, a TV Record sugeriu o lançamento de um novo programa, o Frente Única da Música Popular Brasileira – que substituiria o programa Fino 679 – para o qual foi realizada uma passeata de divulgação, que ficou conhecida como a “passeata contra as guitarras elétricas”, pois era um programa que pretendia fazer a defesa da música popular brasileira, e essa defesa passava pela não aceitação de elementos considerados estrangeiros, emblematicamente representados pela guitarra. Participaram da passeata alguns dos integrantes do denominado grupo da Frente Única, como Elis Regina, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, entre outros.

Analisando algumas fontes, como os dados do Ibope, Marcos Napolitano desconstrói o “mito da ameaça da jovem guarda”, argumentando que o crescimento do movimento do programa Jovem Guarda não levava ao declínio de O Fino da Bossa – que se manteve estável nos patamares de 1965, chegando a aumentar o seu índice no ano seguinte –, pois eram transmitidos em dias e horários diferentes. Em relação ao público, havia um segmento difuso que acompanhava os dois programas, o que estimulava a competição entre eles.10 E esses artistas também dividiam o mesmo palco em programas da TV Record e eram tocados pelas mesmas emissoras de rádio. Entretanto, mesmo que esses dados mostrem que efetivamente não havia essa ameaça, houve essa percepção de “ameaça” por parte de artistas e intelectuais, que resultou em debate realizado pela Revista Civilização Brasileira, que propunha uma reflexão sobre a “crise atual da música popular brasileira”, percebida pela emergência do iê-iê-iê, considerada, por alguns debatedores, uma música de qualidade inferior e “alienada” e “desligada da realidade”, e que vinha ganhando um espaço cada vez maior nos meios de comunicação.11 Também a alta sociedade se interessava mais pelo iê-iê-iê, que começava a agradar não só o

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público juvenil, mas também o adulto. As formas de inserção no mercado e a relação com os meios de comunicação eram temas da discussão.

Durante o Festival de Música Popular Brasileira promovido pela TV Record, em 1967, as canções tropicalistas de Caetano Veloso e Gilberto Gil, Alegria, alegria e Domingo no parque, levaram para o palco dos festivais o debate sobre a cultura nacional-popular e o aproveitamento estético das tradições musicais brasileiras com a linguagem pop. Durante o ano seguinte, as discussões tornaram-se ainda mais acirradas, entre os “nacionalistas”, os artistas “engajados”, que acabaram sendo identificados com a tradição e o arcaico, e os “tropicalistas”, que ficaram identificados com a inovação estética, em um discurso que parece reverberar até hoje. Em artigo escrito para o jornal Última Hora, em 9 de dezembro de 1968, intitulado “Nem toda lucidez é velha, nem toda loucura é genial”, Chico Buarque defende-se das acusações de “ultrapassado” ou de músico antiquado, apegado às tradições, negando que seja contrário às inovações estéticas na música popular, pois, para ele,

é certo que se deve romper com as estruturas. Mas a música brasileira, ao contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação. Não se trata de defender a tradição, família ou propriedade de ninguém. Mas foi com o samba que João Gilberto rompeu as estruturas da nossa canção.12

O seu artigo foi motivado pela provocação de um repórter, “Mas

como, Chico, mais um samba? Você não acha que isso já está superado?”, mostrando que a diversidade estética e a pluralidade de estilos e gêneros musicais não era uma prática bem aceita, em meio a um cenário de lutas culturais e mesmo com a defesa de um “som universal”. O artigo tem sido bem menos discutido pela historiografia e pesquisa acadêmica que o debate promovido pela Revista Civilização Brasileira13, no qual formulou-se a expressão “linha evolutiva”, mas é significativo por explicitar as tensões do período, quando Chico Buarque fala das críticas que recebera de antigos colegas músicos:

Fiquei um pouco desconcertado pela atitude do meu amigo, um homem sabidamente isento de preconceitos. Foi-se o tempo em que ele me censurava amargamente, numa roda revolucionária, pelo meu desinteresse em participar de uma passeata cívica contra a guitarra elétrica. Nunca tive nada contra esse instrumento, como nada tenho contra o tamborim. O importante é ter Mutantes e Martinho da Vila no mesmo palco.

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Recuperando o cenário de lutas culturais do período, é possível perceber as tensões presentes na defesa de um projeto estético – e político –, mas que é também a defesa de um espaço no mercado fonográfico. Nesse cenário de tensões, Elis Regina produz mudanças, direcionando sua carreira também para o exterior, e o samba Upa neguinho torna-se uma canção significativa desse momento. A repercussão com o MIDEM

Em janeiro de 1968, Elis Regina e Roberto Carlos participaram

do Mercado Internacional de Discos e Edições Musicais, realizado em Cannes, por serem os artistas brasileiros recordistas de vendagens em suas gravadoras, a CBS e a Philips, respectivamente. Era considerado um importante evento internacional, pois os artistas se apresentavam para mediadores culturais, como jornalistas, representantes de gravadoras e produtores musicais. Naquele momento, o responsável pelo setor de divulgação da gravadora Philips era Fernando Lobo, jornalista e compositor que atuara na Rádio Nacional e na gravadora Odeon, que viajou para Cannes com Elis Regina, o conjunto Bossa Jazz Trio, que iria acompanhá-la, e o seu empresário, Marcos Lázaro.

Upa neguinho era uma pequena canção executada com acompanhamento de flauta, violão e percussão, que entremeava os textos do musical Arena conta Zumbi, e era considerada inexpressiva pelos seus compositores. Na releitura que fez durante o programa O Fino da Bossa, com o conjunto Bossa Jazz Trio, Elis acrescentou algumas mudanças na canção, como os breques com percussão antes dos versos “capoeira / posso ensiná / ziquizira / posso tirá / valentia / posso emprestá / mas liberdade só posso esperá” e acentuando com palmas, sem a voz, a quarta repetição da introdução, enfatizando o caráter rítmico da composição e destacando a capacidade de divisão da intérprete, características marcantes e bastante presentes em sua obra. Melodicamente, era uma canção de fácil memorização e entoação pelo público. Os finais dos versos, com a vogal “á”, afastam-se dos padrões da norma culta do português, ao suprimirem o “r” final dos verbos, e fazem referência ao dialeto africano. A temática social referia-se ao trabalho escravo e à opressão social que mantinha muitas crianças naquela situação. A interjeição “upa” confere graça ao falar do menino que tropeça com os primeiros passos mas que tem que aprender a se levantar e a lutar pela sua liberdade. Apesar do sofrimento, era necessário sobreviver, de alguma forma.

A apresentação foi considerada sucesso pela imprensa, que acompanhava – e também estimulava – as tensões entre as diferentes propostas musicais naquele momento. O Jornal do Brasil destacava o momento importante vivido pela música popular brasileira – no embate

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com o chamado iê-iê-iê e o programa Jovem Guarda – com o auditório lotado e mais de mil pessoas batendo palmas, inclusive junto com o arranjo, e não após a execução da canção. Desta maneira, Elis Regina conseguia também atingir o seu objetivo de estabelecer uma grande comunicabilidade com o público.14

O arranjo e a interpretação vocal de Elis Regina se caracterizam por um “som pra fora”, “som pra frente”, como definiam os integrantes do Zimbo Trio – conjunto que também tocava com Elis – a sua proposta estética.15 Era uma proposta consciente de artistas que procuravam aumentar o espaço de atividade da música instrumental no país, que tocavam em boates e bares e que conceberam um estilo com a intenção de passar à frente, aos palcos, e não fazer apenas uma música de fundo para os clientes. Com Elis Regina, essa proposta de um “som pra frente”, expressivo, trazia a informação sonora das vozes das cantoras do rádio. A MPB que surgia em meados da década de 1960 incorporava o “excesso” aos arranjos, às interpretações vocais, pelos desdobramentos vindos da canção de protesto, do tropicalismo, e do sambajazz, com fundamental contribuição de Elis Regina.16

Sobre a realização musical, considero o conceito de “mundo artístico”, de Howard Becker, pensando em uma ação colaborativa, em que são as pessoas e organizações envolvidas em um “mundo artístico” que reconhecem o seu trabalho como arte, que entendem os códigos musicais, as convenções previamente acordadas, que partilham uma mesma experiência musical. Para o autor, “é possível entender as obras de arte considerando-as como o resultado da ação coordenada de todas as pessoas cuja cooperação é necessária para que o trabalho seja realizado da forma que é”.17 Acredito ser importante ressaltar que não se trata de retirar do intérprete ou do compositor a sua qualidade e capacidade criativas, transferindo-as para o arranjador, instrumentistas ou produtores musicais, mas reconhecer a importância dos vários agentes envolvidos na atividade de criação musical.

O conceito de performance proposto por Paul Zumthor tem ajudado a pensar a trajetória e a obra de Elis Regina, assumindo que intérpretes também produzem sentidos quando executam uma obra e considerando a performance como uma ação complexa em que, em nosso caso, a música é simultaneamente transmitida e percebida, colocando em comunicação e confronto emissor, música (texto) e receptor.18 Na apresentação durante o MIDEM, também com o conjunto Bossa Jazz Trio, Elis Regina novamente consegue estabelecer grande comunicação com o público, como se percebe ouvindo o áudio da gravação realizada ao vivo, em que aplausos já surgem na metade da canção, após o trecho em que repete a introdução quatro vezes, executando a última apenas batendo palmas.

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Nessa inter-relação com o público, podemos considerar que a sua interpretação também se transforma, reiniciando a canção com um riso que se ouve nos versos e com vigor musical e físico que perdura até o fim. Uma alegria com o resultado obtido e pela importância da apresentação naquele espaço, entre tantos artistas, alguns pouco conhecidos no exterior, como ela, e outros já com muita popularidade, como o conjunto Supremes, de Diana Ross.19

Com o sucesso que obteve no MIDEM, Elis foi convidada para uma temporada de quinze dias no Teatro Olympia, de Paris, a partir de 6 de março, o que resultava em ampliação do seu reconhecimento como artista e em novas propostas de trabalho no exterior. Nessa temporada ela dividiria o palco do teatro com vários outros artistas, sendo o argelino Enrico Macias uma das atrações principais. O Teatro Olympia era um espaço privilegiado para a apresentação de artistas populares, como Edith Piaf, que em 1958 já havia convidado a cantora Marlene para dividir o palco, e que também já contara com outra brasileira, Leny Eversong, nesse mesmo ano. Além dos espetáculos, havia os compromissos com a televisão e a divulgação dos shows. E a agenda de Elis esteve cheia, participando de programas televisivos, como o de Sacha Distel, com bastante audiência, e o de variedades musicais Dim Dam Dom, da Office de Radio Télévision Française (ORTF).20

No retorno ao Brasil, após o MIDEM, Elis Regina apresentaria o seu novo programa na TV Record, o Elis Especial, produzido pelo seu marido, Ronaldo Bôscoli, e durante o ano de 1968 continuou destacando-se com o samba, ao vencer a I Bienal do Samba, com Lapinha, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, promovido pela TV Record. Durante esse ano, com a intensificação das lutas culturais e pelo mercado fonográfico, o debate com o tropicalismo acentua-se e o samba é o gênero ao qual vários artistas recorrem, como Elis Regina e Chico Buarque, resultando em cobranças estéticas e em posicionamentos, como o de Chico Buarque. O novo LP de Elis tinha o mesmo nome que o seu programa televisivo e era feito em estúdio, o que não ocorria desde o lançamento de Elis, dois anos antes. Com arranjos de Erlon Chaves, traz o sucesso Upa neguinho, e mostra uma fase de transição para a produção musical que ela realizaria a partir do ano seguinte e indefinição em relação ao caminho musical que deveria seguir, distante do sambajazz que a popularizara, ainda rejeitando o tropicalismo e sem incorporar o pop, o soul e o rock, como faria nos próximos discos.

No final de 1968, é decretado o AI-5 e Caetano Veloso e Gilberto Gil são presos e depois exilados. Chico Buarque, que estava na Itália, estende a sua temporada no país. E Elis Regina busca o reconhecimento musical no exterior, capitalizando-o também no Brasil.

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Nesse mesmo ano, André Midani assumiu o cargo de gerente-geral da filial da Philips no Brasil, a Companhia Brasileira de Discos, e uma das suas metas era impulsionar a carreira de Elis no exterior. Ela realizou turnês pela Europa, e retornou ao Teatro Olympia, em novembro, para nova temporada, dividindo o palco com outros artistas, e sempre com Upa neguinho recebendo destaque em suas apresentações.

Em 1969, Elis Regina gravou e lançou no exterior dois LPs. Um com o gaitista Toots Thielemans, em Estocolmo, e Elis in London, no qual aparece a canção Upa neguinho, agora com arranjos de base de Roberto Menescal, aos quais seria acrescentado o arranjo orquestral do maestro inglês Peter Knight. Nesse disco, Elis revisita canções da bossa nova e alguns clássicos internacionais, cantando em inglês, e aproxima-se do samba-rock de Jorge Ben, com Zazueira, e do iê-iê-iê ao fazer uma releitura de Se você pensa, da dupla Roberto e Erasmo Carlos. A gravação da voz foi realizada no estúdio em Londres, ao vivo e junto com a orquestra, ou seja, a versão musical final foi a realizada lá. As mudanças no repertório de Elis, o que inclui os arranjos, traduzem a necessidade de readaptação a um cenário modificado pela emergência do tropicalismo e também da explosão da soul music, que começava a tornar-se extremamente popular, reverberando, principalmente, no Festival da Canção de 1970. Assim como Roberto Carlos, Chico Buarque e outros músicos, Elis produzia mudanças em suas obras levando em conta a recepção do público, um elemento que considero sempre esteve presente em sua concepção de cantora popular. Conciliar o sucesso popular com o prestígio perante certos segmentos da crítica especializada e da intelectualidade seria um desafio que Elis enfrentaria a partir da década de 1970.

O contato com outros cenários musicais, com o que estava sendo realizado em outros países, deve ser considerado nesse momento de transição da carreira de vários artistas no Brasil. Em busca de novas sonoridades e propostas estéticas, a obra de Milton Nascimento, que já inspirava jovens músicos, como Gonzaguinha, que vencia o II Festival da Canção Universitária da TV Tupi, em 1969, com O trem, também será fundamental para as mudanças que Elis começará a executar em algumas canções já a partir de 1969, mas, sobretudo, a partir de 1972, quando o LP Clube da Esquina é lançado, demarcando uma sonoridade singular para a MPB e sugerindo um outro hibridismo com o rock, que será de grande importância para a trajetória de Elis durante a década de 1970, quando ela estabelece um diálogo com o rock, mas com outras referências estéticas.

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Andrea M. Vizzotto A. Lopes

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Notas de Referência

* Doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com orientação do Prof. Dr. Marcos Bretas. Esta pesquisa está sendo desenvolvida com recursos da CAPES. Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Música pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP). E-mail: [email protected]. 1 CONTIER, Arnaldo Daraya. “Edu Lobo e Carlos Lyra: O Nacional e o Popular na Canção de Protesto (Os Anos 60)”. Rev. bras. Hist. São Paulo, v. 18, n.

35, 1998 . Disponível em: <<http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0102-01881998000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 01 Out. 2013. 2 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 72. 3 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. São Paulo: Record, 2000. NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. SOUZA, Miliandre Garcia de. Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. 4 NAPOLITANO, Marcos. “A canção engajada nos anos 60. Marcos Napolitano”. In: DUARTE, Paulo Sérgio; NAVES, Santuza Cambraia (org.). Do samba-canção à tropicália. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2003, p. 134. 5 LAMARÃO, Luisa Quarti. A crista é a parte mais superficial da onda. Mediações culturais na MPB (1968-1982). Tese. UFF. História, 2012. 270f. 6 Outros dados falam em um milhão de cópias vendidas. Ver: SILVA, Walter. Vou te contar: histórias da música popular brasileira. 2. ed. São Paulo: Códex, 2002, p. 19. Mesmo problematizando esses números, a popularidade de Elis Regina também pode ser percebida em consulta a diferentes jornais e revistas do período. 7 Do mesmo musical Arena conta Zumbi, Elis Regina também interpretou Zambi no açoite, que se transformou em Zambi, presente no LP com o Zimbo Trio, O Fino do Fino, lançado em 1965, e A mão livre do negro, transformada em Estatuinha, presente no LP Elis, de 1966. 8 NAPOLITANO, Marcos. “Os festivais da canção como eventos de oposição ao regime militar brasileiro (1966-1968)”. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (Org.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004, p. 203-216. 9 Em 1966, o programa O Fino da Bossa passou a chamar-se O Fino, por questões contratuais, pois um dos produtores do musical, Horácio Berlinck, era o “proprietário” do nome e se desligou do programa. Antes de acabar, em julho de 1967, era apresentado apenas por Elis Regina, com o nome O Fino 67. O programa Jovem Guarda acabou no início de 1968, semanas após a saída de Roberto Carlos, em janeiro. Elis e Roberto continuaram, mas com programas individuais. 10 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit., 2001, p. 101-4.

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Do Arena para o Olympia

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11 Os participantes do debate eram: Flávio Macedo Soares (crítico), Caetano Veloso (compositor), Nelson Lins de Barros (crítico), José Carlos Capinam (poeta), Gustavo Dahl (cineasta), Nara Leão (cantora), Ferreira Gullar (poeta). BARBOSA, Airton Lima. (coord.) “Que caminho seguir na música popular brasileira?” Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 6, p. 375-385, maio 1966. 12 Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/texto/artigos/artigo_lucidez.htm>. Acesso em: 20 abr. 2012. 13 Considerando a dificuldade de acesso ao texto da Revista Civilização Brasileira, pois o artigo de Chico Buarque está disponível na internet, Walter Garcia incluiu o artigo, na íntegra, no livro organizado por ele, João Gilberto, lançado em 2012 pela editora Cosac Naify. 14 ELIS pede passagem pra sambar. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 ago. 1966, Caderno B, p. 8. Gravações nos LPs Arena conta Zumbi SMLP-1505, Discos Som/Maior Ltda (1965), e LP Dois na Bossa n. 2, P 632 765 L, pela Companhia Brasileira de Discos (1966). 15 Sobre o Zimbo Trio, conjunto musical fixo do programa O Fino da Bossa, ver: MACHADO, Cristina Gomes. Zimbo Trio e o Fino da Bossa: uma perspectiva histórica e sua repercussão na moderna música popular brasileira. Dissertação. UNESP. Artes, 2008. 410f. 16 NAVES, Santuza Cambraia. “Da bossa nova à tropicália: contenção e excesso na música popular brasileira.” Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 43, 2000, p. 35-44. 17 BECKER, Howard. “Mundos artísticos e tipos sociais”. In: VELHO, Gilberto. Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 9. 18 ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997. 19 Sobre a apresentação de Elis Regina, ver: SARSANO, José Roberto. Boulevard des Capucines: Teatro Olympia, Paris 1968: Elis Regina e Bossa Jazz Trio em uma época de ouro da MPB. São Paulo: Árvore da Terra, 2005.

A gravação, lançada em compacto simples, está presente na coletânea em CD Elis 20 anos de saudade, lançada em 2002 pela Universal Music. 20 A apresentação de Elis Regina no programa Dim Dam Dom está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=1J72otb-u08. Acesso em: 23 jul. 2013.

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Marcha Hoje: o nascimento da República de Cabo Verde em 5 de julho de 1975

Artur Monteiro Bento*

Em 5 de julho de 1975, no Estádio da Várzea na cidade da Praia,

ilha de Santiago, foi montado um palanque, cujo objetivo era proclamar e celebrar a independência política de Cabo Verde1. Esse evento festivo deveria não apenas cumprir o acordo de independência 2 assinado em Lisboa, entre a República Portuguesa e o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)3 de 19 de dezembro de 1974, que reafirmava o direito dos caboverdianos à autodeterminação e independência, em conformidade com a Lei Constitucional portuguesa n° 7/74 de 26 de julho, mas construir um discurso político-social sobre o processo da luta pela libertação colonial e nascimento da República de Cabo Verde.

Em um momento bem delicado de transferência de poder para o PAIGC, a celebração, por meio da leitura da trajetória histórica de seus principais combatentes, destacando, Amilcar Cabral, refletiu o momento histórico que passava Cabo Verde, sob a dominação e exploração colonial. Seu objetivo principal é problematizar, refletir e indagar acerca do processo de luta pela libertação da África e demonstrar a população que a independência, graças, principalmente, ao Partido, era o caminho para a cidadania, o progresso e desenvolvimento econômico do País, com foco no combate à pobreza, ao analfabetismo e toda forma de subdesenvolvimento. Este último, contudo, só seria alcançado com os programas das pastas governamentais, que se colocavam como fundamental para o alcance desse objetivo.

Celebrações sempre foram vitais ao bom funcionamento dos grupos humanos, à medida que pontuam a vida com rituais. Cerimônias religiosas, eventos científicos, políticos e culturais, além de constituírem uma força vital para a canalização das tensões e conflitos sociais, são uma constante na história da humanidade. Solenes ou simples, sérias ou entretidas, programadas ou espontâneas, cumprem, sobretudo, funções normativas e identitárias, ao mesmo tempo em que são vitais ao bem-estar da humanidade. Olhar a partir dessa lente permite ao pesquisador ter apreensão das múltiplas relações que são estabelecidas na construção do discurso oficial, entender as possibilidades e limites, as significações e mediações de uma totalidade aberta, mas historicamente situado.

Seguindo a lógica das concepções da história do tempo presente e das noções de cultura política e cultura histórica, o discurso buscou construir uma imagem do Partido, que tinha em 19 de dezembro de

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1974, seu ponto culminante com as negociações políticas “em ordem à fixação, por acordo, do esquema e do calendário do processo de descolonização do território caboverdiano celebrado em Lisboa pelas delegações do Governo Português e do PAIGC na seqüência de anteriores contatos”4 e terminava em 1975, apontando projeções para o futuro do País, sob a direção do Partido, que se assumia como sendo “a força, a luz e o guia do nosso povo na Guiné e Cabo Verde”5 , permanecendo a visão do exercício de um governo forte, que, sob os auspícios do Partido garantiria a integração nacional e solidificação da independência, com foco no nacionalismo e chefia confiável.

Toda celebração requer a valorização de acontecimentos passados comuns a um determinado grupo: seja um país, uma comunidade ou até a um indivíduo. Ela se sustenta na construção de uma memória vivida por um grupo, e propõe, a partir de releituras dos princípios fundadores, tornar-se portador de uma história. Em um momento de construção do nacionalismo, a leitura sobre o passado, quais sejam, a memória da luta pela libertação colonial, cumpriu no discurso seu principal objetivo: a memória nacional. Tal memória não se produz espontaneamente, mas corresponde à forma sistemática para responder os desafios da realidade das ilhas e as interrogações que dela surgem.

Informações atualizadas pelas lembranças do passado põem em evidência a complexidade político-social do evento festivo, momento de legitimação do Governo. Esse evento foi um ato político, mas, sobretudo, social, à medida que buscou fortalecer a coesão nacional, reorganizar a economia e projetar o futuro do País rumo ao progresso, por meio de reiteração da ordem militar e também de autopromoção para as novas possibilidades de governança. O Governo, por meio de um discurso político-social, articulado a narrativa da libertação dos povos oprimidos, busca o reforço do sentimento de pertença nos caboverdianos e a demarcação de suas fronteiras simbólicas, traduzido nos seguintes termos:

“coube ás modernas gerações, iluminadas pela ideologia dos povos colonizados e impregnados de espírito de bandung, compreender que o problema da miséria e do atraso social das ilhas de Cabo Verde reconduzia-se a um problema político e, como tal, jamais poderia ser resolvido no quadro da sujeição colonial e da alienação da liberdade humana. Antes de mais, postulava a reivindicação e a luta pela independência”6.

O ato de proclamar e celebrar se relacionam a uma continuidade

da memória, coroando Amilcar Cabral como sendo um dos melhores filhos da terra que

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“concebe a genial idéia de renovar o sentido do povo e reestruturar na matriz política da libertação dos povos do Terceiro Mundo, a unidade dos filhos da Guiné e Cabo Verde. Assim se funda e se constrói o PAIGC, motor histórico da renovação mental, social e ideológica, segundo linhas da ação construtiva e da pedagogia política do nosso imortal guia, Amílcar Cabral”7.

A imortalização de Amilcar Cabral reflete a preocupação de

salvaguardar as lembranças, num esforço de transformar a memória em documento. Há uma função pedagógica nesse discurso, visto que estão presentes processos como criação de conhecimentos científicos, a partir desse evento; seleção e priorização de um conteúdo, que possui um marco re referência de centro. O entrelaçamento das lógicas políticas e afetivas se caracterizou na década de 70, como um dos efeitos das reconfigurações sobre o modo de fazer política que coloca diferentes saberes em diálogo/conflito, na qual a força material cede lugar à força simbólica. A manutenção do poder e as relações que emanam daí passam a ser marcadas pela prática do convencimento, em detrimento da luta armada e da coerção física, embora não as elimine completamente como recursos do jogo político. Na encruzilhada de tantas disputas, os esforços de criar campos documentais a partir dos registros das memórias dos seus combatentes deveriam garantir as bases da construção da nova sociedade.

Por meio de uma amálgama de elementos patrióticos evocados por apelações emocionais, a população, ao acompanhar o evento, era imbuída da importância que o governo atribuía à história, segundo a qual o acesso a plena soberania se deve ao “coroamento dos esforços dos melhores filhos das nossas terras, que nas condições duras da luta armada e nas menos difíceis da luta clandestina, não olharam sacrifícios para levar avante a realização do alto ideal inspirado ao nosso povo pelo fundador e militante n°1, Amilcar Cabral”8. Ressalta ainda que o êxito da luta desigual

“face à expressão numérica das realidades em confronto e ao prestígio de falsos valores dominantes em vastas regiões da comunidade internacional, era, na conjuntura, necessário que os povos africanos superassem a escala nacional e potenciassem a sua energia vital na cooperação de esforços e na unidade de propósitos revolucionários”9.

Esse discurso marcou o início de um movimento político-social

sem igual na história da República de Cabo Verde. Não somente, representou a adesão de milhares de caboverdianos e caboverdianas a um projeto de governo revolucionário, mas também significou o alcance do ideário socialista, em terras e condições que não

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correspondiam às aspirações do homem caboverdiano. A nosso ver, as classes populares não estavam dispostas a travar uma “luta ideológica nas ilhas” contra a burguesia e nem a uma possível degradação dos vários subsistemas coloniais, à medida que se encontrava em estado de debilidade socioeconômico. Ao contrário, idealizavam melhorias das condições de vida, devido ao estado de indigência e vivências catastróficas, advindo da seca, da pobreza e das fomes, que “na década de 1940 chegou a vitimar em média 50% da população recenseada”10.

A ressonância do discurso revolucionário, aliás, “falsos valores dominantes em vastas regiões da comunidade internacional, subjugação colonial, escolha de nosso destino africano e glória eterna a Amilcar Cabral”11, mobilizou o despertar da consciência sobre os significados da independência política. Mas também, compreende a memória vivida em reação permanente às estruturas coloniais, associado ao temor da Unidade do Povo das Ilhas de Cabo Verde (UPICV) não afeto a unidade12 com a Guiné, e certa preocupação com a memória da libertação, posta em relação com a memória da revolução dos cravos, em 1974, que conduziu a queda do regime salazarista, uma percepção própria da União Democrática de Cabo Verde (UDC). E o apelo a Amilcar Cabral, ao longo do discurso, mobilizou seu reconhecimento por orientar as ações do Partido no cenário caboverdiano, de modo a não apenas se adaptar a esta realidade atlântica, mas de utilizá-lo estrategicamente, o que torna possível à apreensão mais profunda da constituição do Partido, considerando suas relações fundantes e sua ação dentro de uma perspectiva de cultura histórica e cultura política.

A memória é um dos elementos constitutivos da identidade de um grupo. Há, portanto, uma seleção de conteúdos, condicionada tanto por elementos internos, como a ideologia, quanto por elementos externos, relacionados à forma de apresentação do discurso, representando, o fio condutor entre o seu passado e o seu presente. As memórias partilhadas de forma oral ou escritas evidenciam o significado que têm para o grupo. As memórias em documentos exemplificam o modo pelo qual se constroem as identidades com específica visão do passado. A narrativa do evento festivo leva em conta a multiplicidade das memórias, das datas, das significações e dos esforços dos combatentes.

Maurice Halbwachs13 sintetiza que a memória é a vida sempre carregada por grupos vivos. Está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, vulnerável a todos os usos e manipulações, e susceptível de repentinas revitalizações. A memória é, portanto, o que fica do passado, ou aquilo que os grupos fazem do passado. Tem valor afetivo ou simbólico, é inalienável, pode ser

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manipulável e se tornar instrumento de luta e poder. Conserva por um momento a lembrança de uma experiência intransmissível. Apaga e recompõe, em função das necessidades do momento ou do imaginário. Especificamente, no caso do Partido, a memória da luta, com suas respectivas significações e reconfigurações se confunde com a história da libertação dos povos oprimidos, assumindo, desse modo, a função de memória-história. Um dos grandes representantes intelectuais desse pensamento é Pierre Nora14 que em suas memórias aponta que a partir de um retorno à própria história, associada às continuidades temporais por meio de uma operação intelectual e laicizante entre iguais, a memória passou a ser objeto da história depois que se processou um trabalho lento de ajuste da historiografia às necessidades da coletividade do presente.

Como ocorre, entre os grupos humanos, o PAIGC necessita da legitimação social para demarcar suas fronteiras simbólicas, de um discurso que se refira a marcos fundantes e a luta contra o imperialismo e a colonização. Porém, mais que isso, necessita de uma habilidade de oferecer soluções imediatas de problemas diversos de sua população. Inserido num competitivo ambiente de luta pelo poder, já que não haveria níveis intermediários definidos pelo regime de partido único, reage politicamente a qualquer tipo de empecilhos ou movimentos que coloca em causa a estabilidade nacional, sobre o quê e como se deve lembrar. Absorve um lugar de memória enraizada na instituição partidária e os valores que se impõe aos estados pós-coloniais. E, assim sendo, as oposições, explicitado ou não nas suas intencionalidades, representam o elemento perturbador que movimenta a ordem do discurso, em torno da política revolucionária.

Considerando as oposições, o passado emerge no discurso de forças políticas outras, com o objetivo de justificar o presente – a necessidade da implementação das diretrizes governamentais – recontando histórias de unidade, diversidades, diferenças e singularidades dos povos em contato (guineenses, caboverdianos, portugueses). E, a partir dessas articulações, projetam-se os rumos do futuro: um cenário que deveria ser diferente do passado e do presente. Michael Foucault corrobora que “em toda sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem como papel exorcizar os poderes e os perigos, refrear o acontecimento aleatório, disfarçar a sua temível materialidade”15.

Na construção da nova sociedade, o discurso oficial representa uma unidade pedagógica, visto que o governo busca difundir uma mensagem em um sistema didático, que promove e enaltece a unidade dos povos africanos e o amor à pátria. O discurso valoriza a guerra desencadeada na Guiné até a decadência do império colonial

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português, bem como a luta ideológica travada nas ilhas, apontando a mobilização de caboverdianos em função de suas aspirações e interesses, momento em que “deu aos trabalhadores públicos e da atividade privada uma nova consciência de dignidade na liberdade, inspirou greves e manifestações de protesto contra atos repressivos da ordem colonial, dinamizou movimentos de massa para reivindicação de bens e valores”16.

A estruturação do discurso está associada ao contexto social, em particular às lutas políticas, que dominam as ilhas, em que diferentes grupos disputavam a hegemonia das ilhas. O PAIGC afirma-se como impulsionador da luta política revolucionária em oposição a toda forma de subjugação colonial. Denuncia a repressão e a violência promovida pela Polícia Política (PIDE) contra as bases do PAIGC e acusa Lisboa de ser o mandatário do assassinato de Amilcar Cabral, em 1973, após 17 anos de luta pela libertação. Assim, justifica a intensificação da luta ideológica nas ilhas que teria como fim levar a decadência das estruturas coloniais, a partir da mobilização das massas populares.

O discurso faz os caboverdianos se lembrarem que a independência tinha sido aberto unicamente pelo esforço do PAIGC na década de 50, que depois se tornará próspero com as negociações diplomáticas, em 1974, e realidade em 5 de julho de 1975. Ao promover sua centralidade na cena política nacional, sustenta seu discurso na libertação dos povos africanos e amor à pátria, com o propósito de intervir nos rumos de Cabo Verde, e voltar a se inserir no contexto regional e internacional. Desde já, cuida de evidenciar que o centro da sua preocupação justifica-se na medida do amor que tem para a pátria, do desejo de vê-la crescer, o que depende da política revolucionária. É a partir destas enunciações que o Partido constrói uma cenografia através da qual podem ser identificadas as visões de mundo já existentes no substrato político-ideológico.

A instrumentalização do discurso é utilizada para a efetivação de suas articulações políticas, referindo-se a violência das empresas ultramarinas e derrota dos monopólios imperialistas. A crítica nesse discurso está no sentido de reaver e/ou reviver sentimentos negativos contra as estruturas coloniais, concebidas como exploradores e desumanos. Vê-se, então, a luta de classes, estimulando as massas populares a ingressar na luta ideológica contra a burguesia ou apoiar àqueles que deram a vida pela libertação da pátria. Desse modo, a imagem do combatente é realçada como praticante de justiça social e detentor da moral revolucionária.

A memória do passado é rearticulada tanto para caracterizar a atuação negativa do sistema colonial como para justificar as propostas e rumos para o futuro. A referência a Amilcar Cabral como guia imortal

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cumpre seu papel na continuidade da luta ideológica nas ilhas, constituindo-se o fator mais importante de materialização dos objetivos do Chefe. Cabe lembrar as análises de Chartier17, em 1988, quando evoca que o objetivo da história é identificar o modo como em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Ao resgatar-se o passado na intenção de recuperar uma memória, ele passa a possuir algum significado. Não se pode reconstruir o mundo, pode-se abrir caminho para as informações que, recuperadas, serão investidas na realidade. A memória resgatada transforma-se, então, em memória histórica. A partir do momento que o governo autodelega a função de julgar o passado, o que deve ser esquecido ou lembrado, sacramenta-se, então, um lugar do qual se deve ler a história.

Relacionando memória-história, tornam-se pertinentes as análises feitas por Pierre Nora sobre os meios de organização da memória na sociedade moderna, que necessita conservar informações, utilizando-se de instrumentos que sacralizam o passado em si, através de celebrações; exposições, imagens, estátuas; museus. Infere-se, dessa forma, o que o autor conceituou como “lugares de memória”, que resultam da necessidade de preservação da identidade do grupo. “Quando a memória não mais está em todo lugar, ela não estará em lugar algum a não ser que se tome a responsabilidade de recapturá-la através de meios individuais”18.

Toda funcionalidade presente nos espaços simbólicos possui uma interpretação do passado e necessária para a formação da memória-história, pelo exercício das lembranças individuais, mesmo em eventos que apenas nós estivemos envolvidos. Na transformação do discurso em documento, Jaques Le Goff evoca que o que sobrevive não é um conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam a ciência do passado, os historiadores. “Esses materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador19”.

Esses materiais de memória existem sob duas formas principais: o monumento, como herança do passado; em contraponto, ao documento, que seria uma escolha do historiador. Portanto, o discurso, enquanto documento, só é preservado e colocado em evento celebrativo, mediante a vontade de alguém. Os objetos (imagens dos combatentes e os símbolos - bandeira e hino) não nascem como documentos. Isto só ocorre mediante a vontade de um indivíduo ou grupo, ou seja, mediante uma intervenção social. No entanto, o processo desenvolvido não inaugura o caráter de suporte de memória no objeto – este já chega ao evento com tal qualidade. Promover os

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objetos (imagens e símbolos), mas da estrutura da qual fizeram parte: a mobilização para o ideal do passado como fonte do presente. O que o discurso faz é desenvolver o suporte de memória a um contexto específico, historiá-lo, em sintonia com o discurso político.

Um discurso marcado por amor à pátria em que a paixão se sobrepõe à razão, dentre as quais se destaca a glorificação dos combatentes como forma de extravasar a indignação ao colonialismo. O discurso reforça a autoridade do combatente, mas abre portas para a reinvenção do passado, remanejando-o e transformando-o por meio da imaginação e dos interesses do momento. Esse modo de construção do discurso apenas legitima os esforços do Partido, mas não os símbolos, isto é, legitima o Partido e evitam-se os símbolos, criando um conceito da mudança de símbolos (bandeira e hino) que, submetidos a intensos processos de transformação a partir da abertura do regime de partido único e democratização do país, em 1990, parece que os novos símbolos (bandeira e hino) tendem a se legitimar na memória nacional.

O discurso construído para o evento aspirava proporcionar aos indivíduos uma idéia de ruptura em relação ao passado colonial, contudo, o voto, não foi mencionado, sem que isso signifique que o exercício eleitoral estava vetado à população. Este fato, contudo, acabou por ser praticamente esquecido, até porque não estava definido nos objetivos da luta pela independência, à medida que o foco principal era a libertação da África e independências. Para suprir essa perda, foi oferecida uma importância participativa dos combatentes na celebração. A estes caberiam o papel de honrar glória eterna aos que tombaram na luta armada, que, paulatinamente, suprimia os lapsos no discurso. Mesmo que não através de voto, segundo os princípios da democracia moderna, os sujeitos eram convidados enquanto atores a participar da construção da nova sociedade, que se projetava estar surgindo com o Partido, embora suas participações fossem restritas, já que os passos iniciais seriam dados pelas diretrizes governamentais, com políticas de ações afirmativas nas áreas de saúde, educação, assistência, habitação, saneamento, reforma agrária, esporte e cultura; geração de trabalho e renda – tudo isso, num contexto de fragilidade socioeconômico.

Na intenção de reforço da memória, a celebração chama o povo e faz com que este se sinta ativo em meio a um processo que, na verdade, não teve grande participação. Assim sendo, a presença de Aristides Pereira, Abílio Duarte, Pedro Pires em festejos por todo o País, após a independência, como em debate em torno do progresso e desenvolvimento do País, era um incentivo para a participação das massas populares no desenvolvimento de um modelo econômico regulado pelo Estado, e, por outro, servia como um elo de identificação

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ao nacionalismo/patriotismo, pautado na soberania política, na unidade territorial e coesão nacional. A celebração não explicitou apenas a continuidade do passado histórico, mas também o trouxe para o dia-a-dia dos caboverdianos. Ela foi também um momento privilegiado de utilização do espaço público como símbolo de expectativa, difusor da consciência nacional, patriotismo e do PAIGC que “continuaria a ser a força política dirigente da nossa sociedade hoje totalmente livre”20.

A idéia de partido único expressa no discurso deve ser entendido como uma possibilidade da moderna sociedade de massas e não apenas de um período histórico determinado pelas idéias socialistas do século XX, que se transformava em vanguarda da consciência coletiva. A idéia de centralização do poder, baseado nos fins e metas socialmente desejáveis, mostra-se extremamente pertinente na análise deste discurso, uma vez que a tona um lócus privilegiado do comportamento político e do grupo partidário, tendo em vista suas representações de mundo, com as quais definiram suas memórias, vivências e sensibilidades. Nas páginas do partido único e tantos outros documentos, podemos encontrar políticas de ações afirmativas de combate à miséria, à pobreza generalizada, ao analfabetismo, a degradação do solo, a carência da educação, saúde e saneamento básico.

Dentre a variedade de temas presentes nos documentos coloniais, somente um governo forte poderia garantir a independência salvadora, a integração territorial, o bem-estar e cidadania das classes populares, cuja educação via ensino formal, conduziria um processo de ascensão ao poder no âmbito do Estado. Daí a intolerância às escolhas fora dos parâmetros do Partido. Porém, os limites da intolerância são flexíveis nos contornos contextuais, mas permanece a visão de que somente um Estado forte pode conter e resolver os abusos de exploração do homem pelo homem, bem como a defesa da independência. Assim, caberia as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) “em primeiro lugar, defender a soberania nacional e a integridade do território, salvaguardar as conquistas revolucionárias do povo e participar na construção do País, pelo combate ao subdesenvolvimento e às suas componentes: a miséria, a fome, o analfabetismo”21.

As mudanças que ocorreram nas décadas de 80, com a mudança de nome para PAICV, após o golpe de estado na Guiné e, na década de 90, com a democratização do País, acenaram para novas possibilidades nas vidas de seus militantes, ao mesmo tempo em que trouxeram desafios, perigos e dificuldades. No entanto, não desistiram diante da perspectiva do novo, do desconhecido, ocupando novos espaços e procurando se adaptar às realidades que foram encontrando pelos caminhos que trilharam. Considerando a história do Partido, num

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País com grande índice de miséria, a coragem e a esperança estão intrinsecamente vinculadas a ele, por dispor de um olhar crítico do sentido de apontar as estratégias fundamentais para alavancar o desenvolvimento e dignidade dos caboverdianos tanto nas ilhas como na diáspora.

Hoje, mais do que nunca, a memória da luta exerce um papel fundamental em relação à geopolítica global, representando o fio condutor entre o passado, presente e o futuro. A memória permite ao Partido manifestar resistência, por meio de sua afirmação identitária em relação às diferenças, bem como passar por um processo de adaptação e acomodação do conflito, decorrente das parcerias reforçadas com a União Européia e da reconstrução de sua identidade partidária no contexto do pluripartidarismo e do capitalismo neoliberal. A trajetória desse Partido teve início nos cenários do movimento de reivindicação da independência, movido pela esperança de uma vida melhor para os povos africanos e, caboverdianos, em particular, até o dia em que saiu às ruas para proclamar e celebrar o nascimento da República de Cabo Verde. Esta mesma esperança impulsionou o movimento que, por sua vez, implicou a abertura política na década de 90, em que o Partido passou a trilhar novos caminhos e atalhos, sob a releitura da obra de Amilcar Cabral.

No século XXI, em consonância com a nova geopolítica mundial, instaurou-se, enquanto palavra de ordem do discurso o imperativo de Amilcar Cabral sempre fundamentado em aspectos simbólicos e processos históricos, a partir de uma reinterpretação do legado documental, calçado nos princípios do universo cabralista de pensar com a própria cabeça. Por isso, o discurso de proclamação e celebração da independência, associado a esse universo, torna-se mais completo, uma vez que propunha a construção de uma nova sociedade, o nascimento de uma República. Além de que foi a época de consolidação do nacionalismo e figura de Amilcar Cabral no panteão dos heróis nacionais como símbolo da nacionalidade, libertação da África e dos povos oprimidos.

Notas de Referências

* Doutor em Memória Social, pesquisador colaborador no PPGAS, Museu

Nacional, UFRJ; Bolsista Pós-doc̸FAPERJ,̸ [email protected]. 1 Cabo Verde é um estado insular, constituído por mestiços, situado na desembocadura dos continentes Europeu, Africano e Americano. Descoberto em 1460, por navegadores a serviço de Portugal, introduziu-se moradores portugueses, em 1462, e, em 1466, africanos livres e escravos para auxiliar na lavoura. Governo colonial durante 515 anos, em 1975, o PAIGC fundado por

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Marcha Hoje

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Amilcar Cabral proclamou a independência política após 20 anos de luta pela libertação da África, e Cabo Verde, em particular. 2 A delegação do Governo Português era constituída por Major Melo Antunes, Ministro Sem Pasta; Dr. Mário Soares, Ministro dos Negócios Estrangeiros e Dr. António de Almeida Santos, Ministro da Coordenação Interterritorial; a delegação do PAIGC constituída por Pedro Pires, membro do Comité Executivo da Luta e Presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, Osvaldo Lopes da Silva, membro do Conselho Superior da Luta, Amaro Alexandre da Luz e José Luís Fernandes Lopes, membro da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC. Jornal voz di povo (1975). 3 Fundado em 1956 na Guiné, teve como principais lideres, Amilcar Cabral, Luis Cabral, Aristides Pereira, Abílio Duarte, etc. Em 1960, sai da clandestinidade, com a instalação da sua sede em Conakry. Os combates iniciaram em 1963, até à queda do regime salazarista em 1974. Em 1981, o PAIGC em Cabo Verde assume o nome PAICV, após o fracasso das negociações com o golverno golpista da Guiné, havidas em 1980 4 JORNAL VOZ DI POVO. Acordo de independência celebrado entre o governo português e o PAIGC. Praia: GCV, agosto de 1975, p.1. 5 CABO VERDE. “Texto da proclamação da República de Cabo Verde”. Boletim oficial da República de Cabo Verde. Vol. 1. Julho. Praia: GCV, 1975, p. 3. 6 Ibidem, p. 2 7 Idem. 8 Ibidem, p. 1 9 Ibidem, p. 2 10 MEITEL, D. Race, culture, and portuguese colonialism in Cabo Verde.

Syracuse University, 1984, p. 20. 11 CABO VERDE, op. cit. p. 2 12 A unidade da Guiné e Cabo Verde e a própria concepção do PAIGC como partido binacional surge não só como uma necessidade estratégica da luta pela independência dos povos da Guiné e Cabo Verde, mas também como resposta concreta à idéia pan-africanista da necessidade de unidade a nível continental. 13 HALBWCHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais Ltda, 1990. 14 NORA, Pierre. Entre a história e a memória: a problemática dos lugares. Revista projeto história. São Paulo: Universidade de Campinas (dezembro). 1983. 15 Foucault, Michael. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 200, p. 6. 16 CABO VERDE. “Texto da proclamação da República de Cabo Verde”. Boletim oficial da República de Cabo Verde. Vol. 1. Julho. Praia: GCV, 1975, p. 2 17 CHATIER, R. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa:

Difel, 1988. 18 Nora, op. cit. p. 14 19 LE GOFF, Jaque. História e memória. São Paulo: UNICAMP, 1996, p. 356. 20 Cabo Verde, ibidem, p. 3 21 Idem.

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Fronteira, Espaço do Encontro: expansão territorial e aldeamento em Cachoeira de Itabuna (Bahia), Século XIX

Ayalla Oliveira Silva*

Em meados do século XX, Frederick Jackson Turner produziu

um ensaio que casava perfeitamente com as preocupações privilegiadas da historiografia norte-americana daquele momento: “os processos imigratórios e a expansão fronteiriça”1. Turner “propôs novas alternativas para entender o significado do passado dos Estados Unidos, com base no estudo da geografia, dos costumes, da cultura e da ideologia do ‘homem simples’ que desbravou o Oeste”2, ou seja, mitificou a expansão para o oeste, de forma a cristalizar a ideia da conquista de “territórios vazios” que esperavam pela “civilização”. A história de sucesso dos Estados Unidos justificada e legitimada pelo trabalho dos seus pioneiros.

As ideias veiculadas por Turner sobre as fronteiras norte-americanas produziram na historiografia especializada, o efeito de se pensar a fronteira enquanto espaço unicamente geográfico, anulando a atuação e interação dos sujeitos, dos grupos sociais envolvidos em tal processo. Para Turner, as populações indígenas americanas eram concebidas como parte da conquista, ou seja, assim como os territórios vazios, estas também deveriam ser alteradas e assimiladas pelo branco, tal proposta anulava qualquer possibilidade de contato e interação entre os diferentes atores sociais. Estas assertivas destoam profundamente da abordagem proposta por Mary Louise Pratt, cujo estudo possibilitou novos olhares sobre o tema da fronteira.

Em Os olhos do império, estudo no qual Mary Louise Pratt propõe se pensar a relação metrópole-colônia para além da questão territorial-geográfica, de dominação e conquista, a autora pontua o lugar de fala do seu estudo, que é lançar um novo olhar sobre a experiência da colonização europeia e o intercâmbio cultural entre os sujeitos envolvidos naquele processo.

Na perspectiva de Pratt, a fronteira não é o lugar que marca limites e que divide territórios, mas que se constitui em um espaço em construção pela ação dos sujeitos, espaço este que se define, se redefine e que está em constante movimento, conforme os conflitos estabelecidos entre os diferentes sujeitos históricos que se “encontram” naquela situação específica. Esses sujeitos, no caso do processo de expansão das fronteiras na Província da Bahia, mais especificamente no sul da Bahia, são os indígenas (aldeados e não aldeados), as autoridades imperiais, os colonos e os religiosos. Percebemos que, “é na fronteira que se dá o conflito, não apenas na

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fronteira das terras, mas na fronteira da legislação, dos poderes, dos interesses, das culturas e de tudo o mais que se encontra”3.

Diferentemente da fronteira no sentido turneriana que traz a ideia de separação geográfica, o conceito zona de contato, elaborado por Pratt para tratar das relações estabelecidas entre colonizador e colonizado em seu estudo, agencia uma perspectiva que se adéqua perfeitamente aos estudos sobre populações indígenas no contexto de colonização na América do Sul e especificamente Brasil, nos séculos XVIII e XIX. Zona de contato sugere o encontro, que nas palavras da autora:

[...] é uma tentativa de se invocar a presença espacial e temporal conjunta de sujeitos anteriormente separados por descontinuidades históricas e geográficas cujas trajetórias agora se cruzam. Ao utilizar o termo “contato”, procuro enfatizar as dimensões interativas e improvisadas dos encontros coloniais, tão facilmente ignorados ou suprimidos pelos relatos difundidos de conquista e dominação. Uma “perspectiva de contato” põe em relevo a questão de como os sujeitos são constituídos nas e pelas suas relações uns com os outros. Trata as relações entre colonizadores e colonizados, ou viajantes e “visitados”, não em termos da separação ou segregação, mas em termos da presença comum, interação, entendimento e práticas interligadas4.

Ainda na perspectiva de Pratt, a zona de contato estabelece o

fenômeno da transculturação, que possibilita perceber as complexidades dos processos da colonização. Pois, se na zona de contato “os povos subjugados não podem controlar facilmente aquilo que emana da cultura dominante, eles efetivamente determinam, em graus variáveis, o que absorvem em sua própria cultura e no que o utilizam”5, como bem podemos perceber nas correspondências provinciais que demonstram as diferentes facetas possíveis de análise na relação colonizador-colonizado em São Pedro de Alcântara. Trazer para a análise em foco o sentido da transculturação, suscita uma série de questões importantes, tais como, até que ponto as representações feitas pelo colonizador dos “povos dominados” não eram produto daquilo que os últimos intencionavam se fazer representar? Nessa direção, é que somos conduzidos a pensar as descrições de docilidade, afeição ao trabalho, fereza e insubordinação, presentes nas correspondências provinciais acerca dos indígenas aldeados e não aldeados em Cachoeira de Itabuna, portanto, analisá-las enquanto possibilidades, onde os indígenas numa relação complexa de conflito tentavam negociar sua sobrevivência e permanência nos seus territórios.

Nesse escopo, Laura Muñoz analisa as interlocuções entre os sujeitos, as “zonas de intercâmbio” e as transculturações provocadas

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Fronteira, Espaço do Encontro

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por estes intercâmbios, em discussão sobre o papel e efeito dos relatos de viagem no Caribe, com um olhar sobre as diversas fronteiras estabelecidas naquele processo (a fronteira climática, a da paisagem, a fronteira agrícola, a fronteira sanitária e a fronteira cultural), onde “el Caribe se convirtió en el espacio donde esos dos mundos se tocaban por la colonización [...], su caráter de frontera excedió el de una línea divisória y se convirtió, más bien, en un área amplia, variable e compleja”6, ou seja, a autora propõe pensar a fronteira caribenha como espaço onde se delineavam redes de fronteiras que se entrecruzavam.

Segundo Muñoz, o Caribe no século XIX se configurava como uma parada obrigatória de pessoas e mercadorias, acesso de entrada e saída do continente. O arquipélago caribenho enquanto um conjunto articulador, como uma região de fronteira que tornava possível a vinculação de regiões litorâneas com o oceano e os continentes. Na mesma direção, a região de Cachoeira de Itabuna se configurava durante o século XIX enquanto importante espaço de acesso entre as diferentes vilas da região, bem como para o trânsito de pessoas e mercadorias. No entanto, pensar tanto o Caribe na perspectiva de Muñoz quanto aquela parte do sul da Bahia na perspectiva do estudo em foco meramente sob os termos geográficos, empobrece a importância de outras prerrogativas essenciais nesse processo, quais sejam: as possibilidades dos contornos identitários nos encontros estabelecidos na fronteira. Desse modo,

la frontera se manifesta más como área de contacto, de encuentros y entrecruzamientos. Desde puestos de observación móviles, flotantes a veces, esas miradas perciben la imagen de una frontera viva, mutable, porosa, una zona de interacción donde se vivió un proceso sostenido de tranculturación, de intercambio7

O estudo de Martins (1997)8 compõe o quadro bibliográfico

estabelecido nesse estudo, no sentido de pensar “o outro lado” na realidade da expansão territorial brasileira. É conhecido através de ampla historiografia o lado do “vencedor” no processo da expansão territorial, o chamado pioneiro, desbravador transformado em mito, no entanto, ainda se faz necessário pensar e problematizar o “outro lado”, o lado dos indígenas que tinham suas terras expropriadas. Mais do que expropriação de terras indígenas e violências sobre as populações, Martins propõe reflexão sobre o outro lado da expansão que é a fronteira do humano, o contato entre os diferentes grupos, que segundo o autor, foi negligenciado pela produção acadêmica, principalmente pelos historiadores e sociólogos.

Pensar a fronteira sob as perspectiva do encontro é um movimento ainda tímido no escopo de análise da expansão territorial

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do sul da Bahia, onde falar de índios e pensar sua atuação no processo das origens da região ainda causa estranhamento, desconforto social e político. O intrigante é que aquela se trata de uma região historicamente marcada pela presença indígena, portanto, como entender a invisibilização das populações indígenas na escrita da história da região? Talvez possamos encontrar respostas numa reflexão sobre o papel de uma escrita tradicional regional marcada pelo discurso memorialista, que tem se repetido inclusive em produções acadêmicas de estudos regionais.

O trabalho de José de Souza Martins dentre outras características, nos possibilita enxergar o outro lado da realidade da expansão, os indígenas, populações invisíveis na produção memorialista, mas também na produção historiográfica, produção esta, que por muito tempo elegeu a atuação dos “sujeitos protagonistas” em tal processo, a saber, o pioneiro, e ao mesmo tempo invisibilizou a atuação do “outro” da fronteira.

Em se tratando do questionamento sobre a invisibilidade das populações indígenas na construção historiográfica no Brasil, destacamos a atuação de autores como, John Manuel Monteiro, Maria Regina Celestino de Almeida, Manuela Carneiro da Cunha e Vânia Maria Losada Moreira, cujos estudos têm prestado relevantes contribuições no sentido de perceber os indígenas como atores sociais e não como meras marionetes dos interesses da colonização brasileira.

Nesse sentido, em estudo sobre a organização política e social dos índios de Nova Almeida – Espírito Santo, na primeira metade do século XIX, Moreira empreende rica análise a partir das correspondências provinciais que veiculam queixas e requerimentos indígenas, por conseguinte, explicita bem a relação estabelecida entre índios e autoridades, índios e não índios naquele espaço de fronteira. Visto que, “o conjunto de documentos a partir dos quais se aufere o tipo de ação realizada pelos índios no período em foco aponta, com muita clareza, que eles negociavam com as autoridades seus interesses”9.

Nesse sentido, as fronteiras da expansão territorial no Espírito Santo, assim como nas demais Províncias do Brasil, foram em maior ou menor grau espaços de confrontos, conflitos e negociações. Nas palavras de Martins, a fronteira “é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização [...], fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira étnica, fronteira da história e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano”10.

O tema da fronteira não é um tema tão novo, mas as atenções sobre a temática pela historiografia têm crescido nos últimos anos. Seja para os estudos que detenham um novo olhar em relação à

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colonização espanhola no Caribe, seja em relação ao processo de expansão territorial do Brasil sobre as populações e terras indígenas, o tema da fronteira sob a perspectiva do encontro tem agenciado importantes possibilidades de leitura, reflexão e análise pela construção historiográfica do tema aqui exposto. É nesse bojo de reflexão e análise historiográfica, que se situa o estudo sobre o Aldeamento São Pedro de Alcântara no contexto da expansão territorial no sul da Bahia durante o século XIX, mais especificamente, a região sul da Bahia, a Cachoeira de Itabuna.

Desde os princípios da época colonial, as tentativas de colonização dos territórios compreendidos nos domínios da Capitania de Ilhéus, foram dificultadas pela presença de diversos povos indígenas, habitantes primitivos da região e que defendiam seus territórios. Desse modo, no período subsequente, foram implementadas políticas indigenistas para minimizar tais dificuldades, sendo a dos aldeamentos de catequese uma das principais ações das políticas indigenistas, e cuja finalidade era tornar os territórios do império transitáveis, bem como assimilar os indígenas ao projeto imperial de colonização. Nesse sentido, na área da antiga Capitania de Ilhéus, foram estabelecidos diversos aldeamentos, dentre os quais, o Aldeamento São Pedro de Alcântara – também chamado Aldeamento de Ferradas.

A primeira metade do século XIX abrigou uma ampla discussão em torno de dois problemas totalmente imbricados, ou seja, a legislação fundiária e a legislação indigenista, com vistas à expansão e colonização territorial do Império. Como sugere Lígia Osório Silva (1996)11, em meados do Oitocentos, quando se proibia o comércio internacional de escravos, dentre outras questões, a posse da terra no Brasil adquiria um novo significado, ou seja, passava de um bem que garantia ao dono status social para se transformar em um bem comercial capaz de gerar lucro, diferentemente do que representava no contexto colonial. Essa mudança na relação do homem com a posse da terra suscitou a necessidade de ampliação dos espaços colonizáveis, bem como acirrou os debates em torno de uma legislação de terra.

Logo após a instituição do Regulamento das Missões, foi instituída e posteriormente promulgada a Lei de Terras de 1850. Assim, como os meios necessários para civilizar os “índios bravos” estavam na pauta das discussões políticas do Império na primeira metade do Oitocentos, os meios para barrar a posse indiscriminada da terra e regulamentar seu acesso também ocupava lugar de destaque no âmbito político do país. A partir desta lei, a terra só poderia ser adquirida através da compra, não sendo permitidas novas concessões

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de sesmaria e, tampouco, a ocupação por posse. Como bem ressalta Lígia Osório Silva, a Lei de Terra de 1850 e seus desdobramentos, devem ser vistos como um processo de discussão dos vários grupos políticos que davam sustentação ao Império e, como tal, defendiam os interesses de uma elite fundiária.

No que tange à questão indígena, a Lei de Terras conferia ao Estado o direito de reservar terras para a colonização de índios, pois, como já frisamos, o século XIX foi marcado por maiores interesses, pela posse da terra, quando a expansão territorial do Império se dava no sentido de “alargar os espaços transitáveis e apropriáveis”12. O regulamento de 1845, criado cinco anos antes da Lei de Terras, tinha a finalidade de transformar os indígenas em trabalhadores e, através da catequese nos aldeamentos, integrá-los ao projeto de nação. “A lei de 1850 acentuou os aspectos negativos do decreto de 1845, na medida em que atribuiu ao governo a faculdade de reservar terras para a colonização dos indígenas”13.

Com a Lei de Terras de 1850, o Império do Brasil nega o direito natural do indígena à posse da terra, reconhecendo apenas o direito à terra de forma tutelar, e somente aos indígenas aldeados, aos quais “para seu aldeamento, serão reservadas áreas dentre as terras devolutas”14. Nesses termos, o governo afirma o caráter administrativo do Regulamento das Missões, e que é corroborado pela lei de 1850, ao regulamentar o “uso de terras públicas com fins administrativos para a colonização”15.

No contexto das missões de catequese, os frades capuchinhos tiveram um papel de relevância junto às autoridades imperiais, sobretudo no final da primeira metade do século XIX, quando o Império intensifica a política de “importação de capuchinhos” para, em grande parte, atuar como diretores das aldeias, e cuja atuação nada lembrava a autonomia administrativa dos jesuítas no período colonial. O papel dos capuchinhos nos aldeamentos atendia diretamente aos interesses das autoridades do Império “que os distribui segundo seus próprios projetos”16.

Com relação à presença missionária dos capuchinhos em São Pedro de Alcântara, no referido relatório de 1852, encontramos as seguintes informações fornecidas por Casemiro de Sena Madureira, Diretor Geral dos Indios na Bahia:

Aldêa de S. Pedro de Alcântara ou Ferradas à margem do Rio Pardo, na estrada de Ilhéus para a Villa da Victoria, tem 300 Camacans Mongoiós abrigados pelo missionário capuchinho, Fr. Vicente Maria de Ascoles. Empregam-se na lavoura com bastante actividade instigados pelo enérgico missionário actual de quem elles não podem prescindir17.

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A política indigenista do Oitocentos privilegiava a atuação dos missionários religiosos nos aldeamentos pelo caráter de “brandura” destes na catequização dos indígenas. Assim, “Central a essa política era a atuação de missionários estrangeiros, em sua vasta maioria, capuchinhos italianos”18. O Aldeamento São Pedro de Alcântara foi dirigido essencialmente por missionários capuchinhos, cujas atribuições administrativas no interior do aldeamento, como Diretores da Aldeia, são assim descritas no Regulamento das Missões:

[...] Cabe ao Diretor da Aldeia tomar as medidas necessárias para que o trabalho dos índios possa ser aproveitado, mas com a garantia de pagamentos [...], é de sua competência, também, o envio de relatórios periódicos ao seu superior, informando o andamento dos trabalhos realizados e dos acontecimentos mais notáveis, com dados para orçamento e despesa para o período seguinte [...] cuidar da manutenção da segurança e da tranquilidade interna da aldeia19.

O aldeamento São Pedro de Alcântara, atendendo à demanda

da política imperial de terras e a política indigenista do século XIX, teve a funcionalidade de assegurar o acesso dos viajantes na estrada que ligava as vilas Ilhéus-Vitória (atual Vitória da Conquista), o estabelecimento de colonos naquela área, dentre outras atividades que desenvolviam os aldeados, tais como a de cultivar a terra, sendo que uma de suas principais funções foi mesmo a de trabalhar na conservação e abertura da estrada ligando Ilhéus a Conquista. O aldeamento tinha avaliação positiva do governo imperial quanto a sua boa funcionalidade: “O principal e mais importante destes aldeiamentos é o de S. Pedro d’Alcântara, situado à margem setentrional do Rio Cachoeira 12 léguas da Vila de Ilhéus (72 km), fundado pelo missionário Fr. Ludovico de Leorne”20.

Uma das principais preocupações do governo imperial era a manutenção da segurança do aldeamento para, desta forma, conseguir avançar no processo de ocupação territorial e civilização dos “gentios”. Nesse sentido, é recorrente nas correspondências dirigidas pelas autoridades locais à Presidência da Província, a preocupação acerca da segurança do aldeamento. Os índios Camacans ali aldeados tinham, dentre outras, a função pacificadora, defendendo sua integridade no interior do aldeamento, ao mesmo tempo em que auxiliavam os missionários nas incursões aos lugares mais afastados, a fim de catequizar os indígenas não aldeados.

Em correspondência, datada de 1855, enviada a Presidência da Província, o então diretor de São Pedro de Alcântara, Frei Vicente Maria D’Ascoles, solicita “munição para a caça de que os mansos

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alimentão-se, e para se defenderem dos ataques dos Pataxós, que infestão a estrada de Ilheos para Minas”21.

Ainda na perspectiva de atender as orientações imperiais Oitocentistas quanto ao funcionamento dos aldeamentos, nota-se que, além da preocupação em manter o aldeamento munido dos materiais necessários para o trabalho e segurança, havia a preocupação em estabelecer contato entre as aldeias daquela localidade para, dessa forma, garantir e manter sua integridade e, por conseguinte, tornar coesa a atuação dos indígenas aldeados, com vistas a fortalecer o projeto imperial de colonizar aquelas terras que, até então, esbarrava nas dificuldades impostas pela resistência de populações consideradas selvagens que habitavam a região. Nesta perspectiva, o Diretor Geral dos Índios, Casemiro de Sena Madureira, em 04 de maio de 1855, observa: “Representei ao Exmº antecessor de V. Ex.ª q era necessário authorisar os missionários das aldêas de S. Pedro de Alcantara e os de Catules e Barra de Catulés a abrirem comunicação fácil entre as [ditas] aldêas para prestarem-se socorros”22

Sendo assim, concordamos que “os aldeamentos inseriram-se no conjunto mais amplo das estratégias colonialistas; eram inclusive, espaços de treinamento de mão de obra na colônia, mas foram também espaços onde os nativos encontraram a possibilidade de subsistir”23. Tal possibilidade interpretativa é agenciada no contexto atual da emergência de produções historiográficas que lançam novos olhares sobre os povos indígenas do Brasil colonial e imperial, onde tem lugar privilegiado o estudo de Monteiro (2001), que suscita importantes contribuições para pensar as populações indígenas no universo imperial.

Nessa direção, um aspecto importante a ser observado nos relatos oficiais é a descrição dos indígenas aldeados como “subjugados”. O ofício do diretor de aldeia enviado as autoridades provinciais pelo Juiz de Órfãos e subdelegado de Santo Antônio da Cruz em 1854, diz: “Os Mongoiós estão se adiantando muito na civilização e n’agricultura de modo que estão quase esquecidos da caça e da pesca”24. Tais relatos se referem aos Camacans (também chamados vulgarmente de Mongoiós), como povos indígenas em vias de assimilação ao projeto de civilização do Império. Descritos, portanto, como indivíduos já transformados em trabalhadores rurais, e que, inevitavelmente, deixariam seus costumes e modos de viver, típicos de sua natureza selvagem, para incorporarem novos hábitos, próprios do mundo civilizado.

Vale ressaltar que em Ferradas, ao longo de quase todo o século XIX, coexistiam indígenas aldeados e não aldeados, a ameaça aos indígenas muitas vezes, provinha dos próprios homens “civilizados”,

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Fronteira, Espaço do Encontro

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responsáveis por ocupar as fronteiras dos territórios do Império Brasileiro e promover a civilização dos “selvagens”. Se no IHGB e na Assembléia Legislativa um dos principais pontos de pauta era discutir a melhor forma de civilizar os índios, e cuja preferência era pela catequese missionária, na prática, os sertões eram espaços arriscados, onde os indígenas eram submetidos a qualquer sorte, tendo em vista que “a espada nunca estava muito distante da cruz”25 e, como bem frisou Cunha, “a escravidão indígena perdurou surpreendentemente até pelo menos os meados do século XIX”26.

Deste modo, o fato de se disporem à vivência no aldeamento e sob jurisdição do Império, muitas vezes, representava para os indígenas de Ferradas permanecerem em segurança, diferindo, portanto, de um comportamento denominado de “passividade” e subserviência. Tal escolha fazia parte da construção de uma estratégia de subsistência desses índios, no sentido de manter não somente a sua integridade física, mas também seus espaços e, territórios, pois, “existe a possibilidade da leitura dos espaços intermediários”27, por onde passava a reelaboração, ressignificação. Nessa perspectiva, o aldeamento, espaço construído pelos brancos com sentidos e intenções próprias, torna-se um espaço dos indígenas, os quais lhe atribuem outros significados e intenções. Retomando a fala de Pratt no início desse texto, se “os povos subjugados não podem controlar facilmente aquilo que emana da cultura dominante, eles efetivamente determinam, em graus variáveis, o que absorvem em sua própria cultura e no que o utilizam”28.

Concordamos com Maria Regina Celestino de Almeida, entendendo que o indígena atuava enquanto agente histórico no universo em que estava inserido, e onde as transformações culturais e territoriais “revelava toda sua complexidade, permitindo perceber as mudanças não só como simples perdas culturais, mas também como propulsoras das novas possibilidades dos índios adaptarem-se” ao universo do aldeamento29. Portanto, o esforço empreendido nesse texto, foi o de ressaltar que a análise acerca da trajetória percorrida pelo Aldeamento São Pedro de Alcântara, perpassa a simples verificação daquele estabelecimento enquanto um empreendimento imperial. Configurava-se, por conseguinte, em espaço de encontro, permeado de conflitos, estratégias e negociações entre os diferentes sujeitos envolvidos no processo de expansão territorial daquelas paragens.

Notas de Referência

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* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; e-mail: [email protected]. 1LOPES, Maria Aparecida de S. “Frederick Jackson Turner e o lugar da fronteira na América”. In: Fronteiras: paisagens, personagens, identidades.

GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Márcia R. C. e LOPES, Maria Aparecida de S. (orgs.). Franca: UNESP, S. Paulo: Olho D’Água, 2003, p.13. 2 Idem, p.15. 3MACHADO, Marina Monteiro. Nos limites das leis: Disputas de sesmeiros em terras indígenas no Rio de Janeiro (1790-1820). XIII Congresso de História Agrária/ Congresso Internacional de La Seha, 2011, p.5. 4PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturações. Bauru: Edusc, 1999, p.32. 5 Idem, p.30-31. 6MUÑOZ, Laura. “Bajo el cielo ardiente de los trópicos: Las fronteras del Caribe em el siglo XIX”. In: Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Márcia R. C. e LOPES, Maria Aparecida de S. (orgs.). Franca: UNESP, S. Paulo: Olho D’Água, 2003, p.55. 7Idem, p.5. 8MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo, EDITORA HUCITEC, 1997. 9MOREIRA, Vânia Maria Losada. A serviço do império e da nação: trabalho indígena e fronteiras étnicas no Espírito Santo (1822-1860). Rio Grande do Sul. Anos 90. V.17, nº 31, 2010, p.35. 10MARTINS, José de Souza. Op. Cit. p.13. 11SILVA, Lígia Maria Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas-São Paulo: UNICAMP, 1996. 12CUNHA, Manuela Carneiro da. “Política indigenista no século XIX”. In: História dos índios no Brasil. CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.). São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992, p. 141. 13 Idem. 14CUNHA, Manuela Carneiro da. Op. Cit. p. 145. 15 MACHADO, Marina Monteiro. A trajetória da destruição. Indios e Terras no Império do Brasil. Dissertação de mestrado. UFF, Niterói, 2006, p.118. 16CUNHA, Manuela Carneiro da. Op. Cit. p. 141. 17Falla que recitou o presidente da província da Bahia, o desembargador conselheiro Gonçalves Martins, na abertura da Assembléia Legislativa da mesma província em 1º de março de 1852. Bahia, Typ. Const. De Vicente Ribeiro Moreira, 1852, p. S2-5. Relatório da Diretoria Geral dos Indios. Acesso em 22 de agosto de 2012, 23hs e 41min. http://www.crl.edu/brazil/provincial/bahia. 18MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e historiadores: Estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de livre docência. IFCH-UNICAMP. 2001, p.160. 19 MACHADO, Marina Monteiro. Op. Cit. p.105-106.

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Fronteira, Espaço do Encontro

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20Falla que recitou o presidente da província da Bahia, Dr. João Maurício Wanderley, na abertura da Assembléia Legislativa da mesma província em 1º de março de 1853. Bahia, Typ. Const. De Vicente Ribeiro Moreira, 1853, p.35. Acesso em 22 de agosto de 2012, 23hs e 54min. http://www.crl.edu/brazil/provincial/bahia. 21APEB, Seção Colonial e Provincial; Série Agricultura; Maço 4613; Ano 1855. 22 APEB; Seção Arquivo Colonial e Provincial; Série Agricultura; Maço 4612; Ano 1855. 23ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Seara indígena: Deslocamentos e dimensões identitárias. Dissertação de mestrado. UFC, 2002, 162 p.18. 24APEB; Seção Arquivo colonial e provincial; Série Agricultura; Maço 4613; Ano 1823-1881. 25MONTEIRO, John Manuel. Op. Cit. p. 153. 26CUNHA, Manuela Carneiro da. Op. Cit. p.146. 27 ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Op. Cit. p. 38. 28 PRATT, Mary Louise. Op. Cit. p.30-31. 29ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidades e culturas nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p.129.

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A questão democrática na estratégia da resistência armada

contra a Ditadura Militar: Os aportes do marxismo-leninismo para a luta de classes no Brasil

Diego Grossi *

Introdução Perto de completar 50 anos, o Golpe Militar de 1º de abril de

1964 e os fenômenos históricos desencadeados por este ainda são feridas sensíveis na formação da identidade do povo brasileiro. Alvo de polêmicas desde a sua instituição, a Ditadura Militar provoca na sociedade acalorados debates, nos quais ganham destaque os diversos projetos que buscaram não só derrubar o regime militar, mas também retirar o Brasil do “reino da necessidade e colocá-lo no reino da liberdade”. Há cerca de dez anos explodiu no país, por conta dos 40 anos do golpe, uma onda de discussões sobre os diversos aspectos da ditadura e da oposição à mesma, processo intensificado recentemente pela criação da CNV (Comissão Nacional da Verdade). Dentro das diversas hipóteses que vêm sendo elaboradas um ponto tem merecido atenção especial: A questão democrática.

Paradoxalmente, em nome de tal democracia, tanques de guerra rasgaram a Constituição em 1964 assim como milhares de vozes empurraram a ditadura para o fim entre 1979 e 1985. Nesse meio tempo a democracia foi evocada através das armas tanto por aqueles que defendiam o regime quanto pelos que a ele se opunham. A hipocrisia dos primeiros já está revelada e carimbada na história. Quem carimbou, com sangue inclusive, foram os próprios golpistas, responsáveis por sequestros, estupros, torturas e mortes. No entanto, a relação da resistência com a questão democrática ainda é tema em aberto, cujas várias versões estabelecem, declaradamente ou não, identidades com os desafios do presente e do futuro.

O objetivo do trabalho que se segue é não só identificar qual o lugar da democracia no projeto das organizações que promoveram, grosso modo entre 1968 e 1974, uma ofensiva revolucionária contra o regime militar, como também apontar a concepção da mesma adotada pelos revolucionários, rejeitando as visões (difundidas nos anos da Guerra Fria e muito comuns até os dias de hoje) que limitam a questão democrática aos paradigmas de sua vertente fundamentada na institucionalidade liberal iluminista.

O empreendimento estaria incompleto se não levasse em consideração o contexto global de ofensiva socialista e antiimperialista em que se insere a luta armada no Brasil. Tal processo, inaugurado com a Revolução Russa de 1917 e em grande expansão entre o final da II Guerra Mundial e idos da década de 1970, teve como principal

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impulsionador ideológico o socialismo científico. Marx e Engels, ao elaborarem suas propostas revolucionárias, aprofundarão o debate sobre o que realmente seria um governo do povo, ponto discutido também pelos ideólogos das revoluções socialistas vitoriosas, como Lenin e Mao Tsé-Tung,

1. O golpe de primeiro de abril de 1964 e a Ditadura Militar

O levante golpista de 1964 ocorreu num período de extrema efervescência social e ideológica, manifestada através da intensificação da luta de classes em diversos aspectos. Nesse contexto, a sublevação dos militares contra a ordem institucional correspondeu à movimentação decisiva do bloco social elitista, formado principalmente pelos setores empresariais e latifundiários (majoritariamente os grupos associados ao capital externo), em reação ao projeto popular patriótico encabeçado por João Goulart. Tal grupo se articulara através de duas entidades, o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), voltadas para dar organicidade aos diversos segmentos da classe dominante brasileira com apoio do imperialismo estadunidense1.

Logo, o golpe de primeiro de abril de 1964 foi o momento da ofensiva vitoriosa da parcela majoritária da elite brasileira que, apoiada pelo imperialismo estadunidense, se organizou em algumas entidades (incluindo entre as já citadas uma do próprio Estado brasileiro, a Escola Superior de Guerra), além de seus partidos políticos tradicionais, para alcançar as parcelas disponíveis de poder legal (institucional e social), desestabilizar o governo e arregimentar outros setores na empreitada anti-Jango (como as camadas médias conservadoras), tendo na alta oficialidade das forças armadas um elemento coeso e logisticamente capaz de canalizar as forças acumuladas e impor um golpe de Estado à nação. Tudo isso movido por conta do descontentamento com o projeto trabalhista apoiado pelas grandes massas (e legitimado pelas regras institucionais), no qual não só deslocava o Estado brasileiro para atender cada vez mais os setores patrióticos, especialmente a classe trabalhadora, como poderia acabar indo além da própria perspectiva, desencadeando um processo revolucionário que colocaria em risco a existência dessa própria elite enquanto tal.

Logicamente, os setores descolados do poder pela força não aceitaram de forma passiva a ditadura imposta (que duraria até 1985) oferecendo resistência à mesma de diversas formas, inclusive pelas armas.

2. Resistência democrática ou outra ditadura? A ofensiva revolucionária

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A questão democrática na estratégia da resistência armada contra a Ditadura Militar

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Os trabalhos de mais fôlego sobre a luta armada no Brasil durante o período do regime militar contaram com o pioneirismo do projeto “Brasil: Nunca Mais”, que teve uma versão compilada em livro com o mesmo nome lançada em 1985 e procedida em 1987 pela obra “Combate nas Trevas” na qual Jacob Gorender faz uma análise crítica e autocrítica da esquerda armada. Outro ex-militante do período, Daniel Aarão Reis Filho, levará para a academia a discussão e através de sua tese de doutorado publicará o livro “A revolução faltou ao encontro” em que, entre as inúmeras críticas que faz às organizações armadas, a acusação de desprezo da democracia por parte dos comunistas será desenvolvida posteriormente e se destacará em alguns trabalhos2. O diálogo com a questão democrática será feita também por outros autores do campo acadêmico, como Caio Navarro Toledo e Marcelo Ridenti.

Na argumentação levantada por Daniel Aarão Reis Filho quanto à questão democrática destacam-se três pontos principais: a) Os valores democráticos não eram defendidos pelos comunistas, no máximo havia um interesse tático na democracia para que os objetivos maiores fossem alcançados; b) A definição da luta armada como “resistência democrática” é equivocada, pois as organizações guerrilheiras possuíam uma perspectiva revolucionária ofensiva e não meramente de resistir contra a ditadura; c) A simbiose entre a luta armada e a democracia seria uma reconstrução memorialística da própria esquerda no processo de redemocratização, não correspondendo à realidade. Ou seja, a participação da esquerda na vida política durante o processo de redemocratização e no sistema supostamente democrático construído a partir daí teria sido o propulsor de uma remodelação da visão sobre a própria trajetória dessas esquerdas, em que foi criada uma sintonia entre suas lutas do passado, incluindo aí a experiência guerrilheira, e a presente democracia brasileira, metamorfoseando a proposta ofensiva revolucionária (no geral, socialista) em “resistência democrática”.

No entanto, Marcelo Ridenti apresenta outra visão e dedica um artigo inteiro ao problema. Em “Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura”3, Ridenti conclui ser legítimo o uso da denominação “resistência” já que a mesma, além de não ser mera reconstrução (já era utilizado pelos grupos guerrilheiros na época da luta armada) está consagrado pela historiografia em outros movimentos que também tinham um caráter ofensivo e por vezes socialista, como os partisans europeus durante a luta contra o fascismo. Porém, o adjetivo “democrático” deveria ser evitado para evitar confusões conceituais.

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Eis que a origem dos problemas vem à tona. A esquerda nutriria um sentimento de desprezo pela democracia ou o cerne da questão está justamente no descompasso sobre o entendimento do que viria a ser uma democracia4?

Seria equivocado afirmar que o reconhecimento da existência dessa outra concepção não está presente nos autores que alegam ser a resistência antidemocrática, porém, os mesmos, quando citam a democracia revolucionária, o fazem en passant, como se fosse tema já superado que não merecesse maior atenção e aprofundamento ou consistisse apenas em frases vazias dos comunistas. Impedindo assim o entendimento da questão por partir de uma premissa fundamentada na concepção liberal iluminista de democracia.

O paradigma liberal sobre a suposta ausência de apresso democrático entre as esquerdas vai, inclusive, até as origens do golpe. Para Jorge Ferreira5, por exemplo, uma das causas do levante militar teria sido tanto a radicalização das forças políticas da direita quanto às da esquerda, numa conjuntura em que ambos os agrupamentos desprezavam a regra do jogo democrático. Caio Navarro Toledo6 faz críticas a tais concepções já que quem rompeu com a legalidade foi a direita e, além disso, não há qualquer documento que indique um plano golpista por parte da esquerda. Todas as propostas populares radicais buscavam se concretizar através de alternativas legais, por mais ousadas que fossem (salvo raras exceções sem condições de oferecer ameaça real, como o Movimento Revolucionário Tiradentes, ensaio de guerrilha organizado pelas Ligas Camponesas). Logo, para os defensores da suposta tradição antidemocrática, a ausência de democracia no projeto dos revolucionários que empunharam armas entre 1968 e 1974 aparece como desdobramento de uma herança.

Diante das divergências o que se impõe é a análise dos documentos das próprias guerrilhas para começar a se entender o que era a “democracia revolucionária” pensada pela esquerda armada. No manifesto7 lançado pela ALN (Ação Libertadora Nacional) na tomada da Rádio Nacional em 1969 os objetivos dos revolucionários são sintetizados em cinco itens:

1º) derrubar a ditadura militar; anular todos os seus atos desde 1964; formar um governo revolucionário do povo; 2º) expulsar do país os norte-americanos; expropriar (...) propriedades deles (...); 3º) expropriar os latifundiários (...); 4º) acabar com a censura; instituir a liberdade de imprensa, de crítica e de organização; 5º) retirar o Brasil da posição de satélite da política externa dos Estados Unidos (...).

No documento intitulado “Linha política”8 produzido em abril de 1968 pelo PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário),

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A questão democrática na estratégia da resistência armada contra a Ditadura Militar

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organização que, diferentemente da ALN, vislumbrava uma revolução de caráter socialista, observa-se entre as intenções dos comunistas a defesa das liberdades democráticas:

O objetivo fundamental da revolução brasileira é destruir o aparelho bucrocrático-militar do Estado burguês-latifundiário, substiuindo-o por um governo popular revolucionário (...). Ao novo poder estatal cumprirá realizar, entre outras, as seguintes tarefas: (...) 6 – Garantia das mais amplas e efetivas liberdades democráticas às massas trabalhadoras e populares, garantindo-lhes real participação nos órgãos de poder e seu controle. (pp. 210-211)

Porém, seria plausível contestar a validade das intenções expressas, já que seu caráter público poderia levar os autores à ocultação dos reais objetivos. Por isso é importante analisar também os documentos internos e particulares (como cartas), inclusive de pessoas não envolvidas diretamente com as organizações (numa carta9 de 17 de agosto de 1971, Zuzu Angel chega a comparar o martírio de seu filho, Stuart, com o de Tiradentes, apresentando importante paralelo entre a luta por liberdade no passado com a resistência diante da Ditadura Militar). Pedro Pomar10, em reunião realizada pelo Comitê Central do PCdoB em 1976 para avaliar a luta guerrilheira no Araguaia, afirmará que:

a luta armada do Araguaia testemunhava de modo eloquente que o PC do Brasil é o abandeirado da liberdade e da independência nacional, inimigo ferrenho da ditadura militar-fascista, consequente defensor da democracia para as massas populares. Entre as correntes patrióticas do país e os nossos amigos do estrangeiro, o acontecimento foi saudado com jubilo. (p. 196)

Percebe-se que, utilizando (PCdoB) ou não (como a ALN) o termo “democracia”, havia na esquerda armada uma perspectiva de governo democrático. Sua gênese está nas formulações teóricas do marxismo-leninismo, ideologia que influenciará diretamente, ainda que através de uma ou outra vertente, a luta dos guerrilheiros no Brasil. 3. O marxismo-leninismo e a questão democrática

O conceito ocidental de democracia tem origem na Antiguidade, mais especificamente em Atenas. Porém, caberá aos filósofos iluministas, cerca de dois milênios depois, a elaboração de uma nova vertente que se consolidará ao longo das revoluções burguesas do século XIX, estabelecendo assim os paradigmas liberais da democracia contemporânea, fundamentada, entre outros, na: a) Submissão do governo às leis e a divisão dos poderes estatais (com o

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passar do tempo as pressões populares conquistarão o sufrágio universal); b) Garantia das liberdades individuais; c) Direito à propriedade privada e ao comércio. No entanto, as promessas de liberdade, igualdade e fraternidade não se realizarão.

Durante toda a primeira metade do século XIX a cascata revolucionária inaugurada pela Revolução Francesa, assim como a reação á mesma e suas próprias limitações, intensificará a luta de classes no continente. Nesta conjuntura Karl Marx e Friederich Engels colocarão as perspectivas da classe trabalhadora em nível elevado, desenvolvendo as idéias socialistas em uma nova vertente, agora científica, cujo fundamento básico será a abolição da propriedade privada dos meios de produção, tornando terras, fábricas, matérias-primas, fontes de energia, e tudo mais essencial para a sobrevivência e a produção, bens coletivos. Entretanto, tal objetivo só poderia ser completamente atingido após um longo processo inaugurado com a revolução popular, em que seria constituído um novo governo dirigido pelos trabalhadores.

Esse período, em que o Estado estaria sob o controle da classe trabalhadora, foi denominado como “ditadura do proletariado”, termo usado de maneira oportunista há mais de um século pelos ideólogos das classes dominantes como suposta prova das intenções autoritárias dos comunistas. Para não cair nessa retórica vazia há que se entender o conteúdo expresso pelos pensadores alemães através de tal conceito. Os fundadores do socialismo científico entendiam que toda sociedade dividida em classes era por si mesma uma ditadura da classe dominante sobre os dominados, independentemente da forma utilizada para sustentar o Estado. O conceito “ditadura” aí se refere ao conteúdo da dominação e não necessariamente à forma assumida por esta (como é utilizado com mais frequência o termo nos dias de hoje). A ditadura do proletariado11 seria então nada mais que o governo da classe trabalhadora sobre e contra a burguesia até a eliminação das classes sociais.

Tais reflexões seriam aprofundadas com a Comuna de Paris. Em 1871, diante da guerra entre a França e a Prússia, o povo parisiense rebelou-se e assumiu o poder na cidade durante algumas semanas. A experiência da construção do primeiro Estado proletário foi analisada por Marx em “A Guerra Civil na França” (1871), na qual o revolucionário, no terceiro capítulo da obra, aponta o fato de todos os membros da comuna, inclusive do corpo judiciário, terem sido eleitos pelo povo, com o mandato revogável e ganhando o mesmo que a média salarial de operários comuns. Além disso, a ampliação do ensino público, o fim da interferência da Igreja na educação e no Estado, entre

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A questão democrática na estratégia da resistência armada contra a Ditadura Militar

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outros, serão destacados. Engels, em 1891, reafirma a percepção de Marx numa introdução à obra acrescenta:

Esta destruição do poder de Estado até aqui existente e a sua substituição por um novo, na verdade democrático, está descrita em pormenor no terceiro capítulo da Guerra Civil. O filisteu social-democrata caiu recentemente, outra vez, em salutar terror, à palavra: ditadura do proletariado. Ora bem, senhores, quereis saber que rosto tem esta ditadura? Olhai para a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado.

As possibilidades da conquista do poder por via pacífica e/ou

legal não eram descartadas, porém apareciam como casos excepcionais. A opção revolucionária era legitimada diante da violência da classe dominante, que romperia até mesmo com a própria legalidade para se sustentar no poder (e até os dias de hoje a história vem confirmando essa tendência, como exemplifica 1964 no Brasil, 1973, no Chile, etc.).

Ao longo do século XX os revolucionários comunistas, vitoriosos em diversos países, tiveram de construir (e formular cientificamente sobre) os novos governos populares. A temática da democracia ocupou lugar destacado entre as inúmeras reflexões, tanto que coube à própria III Internacional formular em 1919, através de Lenin, um documento (“Teses e relatório sobre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado”) no qual argumenta-se basicamente que: a) A democracia sofreu alterações durante toda a história, desde o governo ateniense até as experiências socialistas, e por isso seria equivocado tratar apenas sua vertente burguesa como parâmetro; b) Dentro de uma sociedade capitalista tal democracia limita-se à garantia de certos direitos, mas na prática os mesmos são irrealizáveis para a grande maioria; c) O governo socialista aprofunda a democracia que sob o capitalismo era meramente formal, não rejeitando as liberdades individuais (com exceção da propriedade privada dos meios de produção), mas expandindo-as, acrescentando novos direitos, e garantindo maneiras reais de serem efetivados; d) Não se pode falar em democracia ou ditadura como conceitos puros, já que os mesmos relacionam-se à estrutura de classes de determinada sociedade. Mao Tsé-Tung, líder da Revolução Chinesa e um dos que mais influenciaram os guerrilheiros brasileiros, na mesma linha da Internacional Comunista, afirmará em 1949 na obra “Sobre a ditadura da democracia popular" que:

O sistema democrático deve ser aplicado entre o povo, dando a este a liberdade de palavra, de reunião e de organização. O direito de voto é

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concedido unicamente ao povo, e não aos reacionários. Estes dois aspectos, de democracia para o povo e de ditadura para os reacionários, é que constituem em si a ditadura da democracia popular

É importante notar que tais visões não eram apenas teorias, mas

faziam parte do sistema legal dos países socialistas. A Constituição soviética (e poderiam ser citados diversos países desse campo) não só garantia as liberdades individuais básicas, aceitas tradicionalmente dentro do capitalismo como se fossem a própria democracia (eleições, liberdade de expressão, imprensa livre, etc.), e a já citada garantia de concretização desses direitos, como também abordava questões pouco amadurecidas na época em diversas nações capitalistas. No artigo 123 do documento máximo da URSS12, aprovado em 1936, lemos:

Direitos iguais para todos os cidadãos da URSS, independentemente de sua nacionalidade ou raça, em todas as esferas do Estado, seja economicamente, na vida cultural, social ou política, constituem lei irrevogável. Qualquer limitação direta ou indireta desses direitos ou inversamente, qualquer estabelecimento de privilégios, direta ou indiretamente por causa de sua raça ou nacionalidade, assim como qualquer propaganda de exclusividade nacional ou racial, de ódio ou desprezo serão punidos pela lei.

Ou seja, enquanto no país berço da democracia liberal, EUA, o

racismo ainda era uma prática institucionalizada, na URSS o mesmo era condenado na própria Constituição, sendo que no primeiro a intenção declarada de se construir um Estado democrático estava a se desenvolver há cerca de um século e meio, diferente do país socialista que até o início do século XX estava submisso a um governo absolutista. O que, mesmo diante de todas as limitações práticas, não só da União Soviética, mas de outras nações socialistas, leva, no mínimo, à responsabilidade de se reconhecer que há no projeto de governo socialista um novo tipo de democracia, teoricamente formulada, institucionalizada de forma legal após as revoluções e colocada em prática, ainda que não plenamente e com insuficiências impostas pela realidade. Problema, aliás, compartilhado por todos os projetos políticos e sociais ao longo da história da humanidade, na qual a própria trajetória do liberalismo e sua demora em incorporar valores hoje considerados básicos (como sufrágio universal e igualdade étnica, entre outros) são exemplares. O debate sobre a questão democrática precisa ser historicizado, pois há que se compreender o processo de construção do socialismo como um fenômeno limitado pelas condições concretas de uma conjuntura dada, assim como tudo na história.

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A questão democrática na estratégia da resistência armada contra a Ditadura Militar

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Conclusão

A esquerda armada brasileira, influenciada pelo marxismo-leninismo, possuía uma visão de democracia distinta dos paradigmas liberais, porém, rompendo e superando estes, incorporava seus elementos principais quanto às liberdades individuais. Tal perspectiva não se efetivou no Brasil, já que a luta armada foi derrotada pela repressão, no entanto, é legítima a reivindicação dessa esquerda sobre sua importância para a “Nova República”, pois, ainda que não se limitassem à democracia expressa pela Constituição de 1988, as liberdades básicas contidas nesta eram, em grande parte, reivindicações dos guerrilheiros, membros de uma resistência que foi, dialeticamente, ao mesmo tempo democrática e revolucionária. Hoje, quando a polícia do Rio de Janeiro viola sistematicamente os direitos mais básicos e reprime com brutalidade os protestos populares, incluindo aí a greve dos professores municipais (um entre uma infinidade de casos no Brasil e no mundo), os paradigmas liberais mostram novamente seus limites, confirmando a perspectiva dos revolucionários sobre a necessidade de se construir uma democracia real, política, econômica e social (e não apenas formal). Notas de Referência * Universidade do Norte do Paraná. 1 DREIFUSS, René. 1964 A conquista do Estado: Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. 2 REIS, Daniel Aarão, et al. O golpe e a Ditadura Militar: 40 anos depois (1964

– 2004). Bauru: EDUSC, 2004. pp. 29-52 3 Ibidem, pp. 53-66 4 Em uma nota na obra citada o autor aponta os comentários de Duarte Pereira (p. 59) sobre o assunto no qual este trás o alerta de que a visão entre as esquerdas armadas era, para as mesmas, outra concepção de democracia. 5 FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: O Brasil republicano (vol. 3): O tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 6 TOLEDO, Caio Navarro de. 1964 Golpismo e democracia: As falácias do

revisionismo. Disponível em <http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo104cri tica19-A-toledo.pdf> Acesso em 12 de setembro de 2013. 7 MARIGHELLA, Carlos. Mensagem na Rádio Nacional. In: MINISTÉRIO DA AERONÁUTICA. Encaminhamento 332/QG4 de 16/08/69 (relatório de investigação). 8 REIS, Daniel Aarão e SÁ, Jair Ferreira de (org.). Imagens da revolução: Documentos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961 – 1971. São Paulo: Expressão Popular, 2007. pp. 205-230

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Diego Grossi

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9 Disponível em: <http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/1971-carta-inedita-de-zuzu-angel-futuro-mostrara-meu-filho-como-o-tiradentes-da-epoca-dos-computadores/> Acesso em 23 de setembro de 2013. 10 POMAR, Pedro. Sobre o Araguaia. In; Brasil memória n. 2: Pedro Pomar.

São Paulo: Brasil Debates, 1980. Os documentos lançados pela Guerrilha do Araguaia estão cheios de propostas democráticas diversas. Alguns podem ser consultados em: <http://www.cedema.org/?ver=portada> 11 Em nota à edição inglesa do Manifesto Comunista em 1888, Engels classifica como proletários os trabalhadores que vendem sua força de trabalho por não terem meios de produção, logo a imensa maioria da população. 12 A Constituição Soviética de 1936, assim como as demais obras marxistas citadas podem ser encontradas em português no Marxists Internet Archive: Disponível em http://www.marxists.org/portugues. Acesso em: 10 jun. 2014.

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O decote, o Canhão e a Fila Negra – Possibilidades de Interpretação do Brasil em Diário Íntimo de Lima Barreto

Eliete Marim Martins*

Lima Barreto acreditava na arte literária como capaz de revelar

a sociedade, “sem pára-balas”, e esclarecer cada homem de seu tempo. Para ele, a literatura deveria, acima de tudo, comunicar. Constantemente o escritor é analisado como aquele que deixou escapar, em suas composições, aspectos pessoais, o que o levou a uma menor preocupação com a forma. Porém o que se verifica é que a forma em Lima Barreto tem a ver com uma concepção literária e com a convergência de aspectos pontuais e de caráter ampliado.

Nos romances, crônicas e contos que escreveu, mesmo nos artigos de jornal e de revistas, há incansavelmente esse combate entre a palavra e a vida. A tentativa de levantar questões sociais, muitas vezes não visualizadas na sociedade ou nem mesmo discutidas em seu tempo, culminou numa escrita que guarda uma unidade temática. O leitor de Lima Barreto é capaz de reconhecer um texto do autor pelas palavras, pelo tema, pelos elementos estéticos caros ao escritor, como, por exemplo, descrições da paisagem, relações de tempo e espaço que se misturam na subjetividade, efeito da relação entre a vida e a arte. Com isso, a estética literária de Lima Barreto pode ser percebida também nos textos não ficcionais.

A repetição que se dá em seus escritos demonstra um fio que transpassa todos os textos. É a palavra empenhada sua forma mais usada e propagada. De tal sorte, um dos livros do escritor que demonstra essa oscilação entre a autobiografia e a ficção é Diário íntimo.

Quando Afonso Henriques de Lima Barreto faleceu, suas obras foram entregues a um amigo da família como presente, já que este financiou o enterro do escritor. Tempos depois, cogitou-se a publicação de seus romances. A tentativa de se publicar Diário íntimo veio três anos após sua morte. A. J. Pereira da Silva tomou para si a tarefa, mas logo desistiu, justificando a recusa pelo fato de o diário estar repleto de referências às pessoas da época, ferindo gente conhecida. Além disso, segundo ele, pouco valor estético tinha. Devolvido à família, o livro só foi publicado em 1953 pelo então organizador da obra completa do escritor, Francisco de Assis Barbosa.

Na nota introdutória de Diário íntimo, Barbosa explicita que a edição sofreu modificações e acréscimos, argumentando que essas modificações foram feitas para evitar os ilegíveis, abandonar o critério de expurgo que sacrificara muitas passagens íntimas e “melhorar a provável cronologia das notas, peças, apontamentos e esboços”.1

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Eliete Marim Martins

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Sobre a produção barretiana, o crítico Antonio Candido, em seu artigo Os olhos, a barca e o espelho, registra que é no Diário íntimo que o escritor atingiu momentos de “elaboração criadora”.2 Cândido analisa trechos de livros autobiográficos, como Cemitério dos vivos e Diário Íntimo ressaltando as vezes em que o escritor, mesmo sem querer, produziu literatura. A observação de Candido demonstra a totalidade temática que foi a investida em escrever para quem acreditava, sobretudo, na dimensão comunicativa da literatura. O escritor, de tanto imbuir em seu espírito o desejo de fazer literatura, com o fim de esclarecer o homem, fundiu arte e vida. Ou seja, a vida de Lima Barreto se confunde com sua literatura. É pela perspectiva de averiguar a literatura em meio às anotações cotidianas, experimentadas por Lima Barreto, que serão analisados três trechos do Diário íntimo.

Importa aqui pensar nos dados valiosos para a compreensão dos trechos. É necessário, mais uma vez, buscar os ensinamentos de Antonio Candido quanto aos aspectos que um crítico da literatura deve se atentar. Segundo ele, a obra pode exigir do crítico a utilização de elementos sociais, psicológicos e outros para levá-lo a uma compreensão mais coerente, desde que utilize esses dados “como componente da estruturação da obra”. Dessa forma, a análise que se propõe aqui é resultado da composição vida, sociedade e arte. Nota-se que do indivíduo e da situação pontual, problematiza-se o coletivo, as agruras humanas.

O primeiro trecho de Diário íntimo, data do dia 5 de janeiro de 1905. O narrador fala de um trajeto que ele faz de trem e de como uma menina o chama atenção. A despeito da comum ausência do tom erótico na maioria das obras do autor, em que os problemas humanos tendem a suplantar os de relações amorosas, a descrição da mulher-menina beira uma sensibilidade inspirada pelo amor carnal. O narrador, de maneira observadora, descreve a menina que repara no trem como “antes feia e sardenta, porém de corpo, apetitosa”.3 O detalhamento com que desenha a figura feminina leva o leitor a imaginá-la “cheia de carnes, redondinha”, uma mulher que despertava o “furor báquico”. Acontece que, na sucessão dos fatos, a narrativa desemboca num outro aspecto, agora nada sensual, advertido pelo narrador. A mesma figura, de certo modo vistosa num olhar erótico, revela um semblante de sofrimento. “Sentara em um banco afastado e, cobrindo-se de expressão dolorosa, repousava a cabeça sobre a mão, que, em começo, bonita, polpuda e abacial, acabava nas pontas de dedos feios, chatos”.4

No pequeno trecho, há uma contradição que poderia ser, a princípio, tomada pelo leitor como algo aquém das intenções do narrador, mas que, diante da fatura do trecho, revela um procedimento argumentativo de maior alcance. Ao fim e ao cabo, a leitura parte de uma paisagem humana e cai, logo depois do encantamento, num

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O decote, o Canhão e a Fila Negra

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abismo, num tipo de realismo cruel. A menina parece uma desculpa para abordar outro aspecto das mocinhas, como ela, sobreviventes de um Rio de Janeiro cheio de contradições. O que a personagem referenciada faz é despertar o narrador para questionamentos de caráter social. E o que instigou o narrador, além dos dedos que delatavam a pobreza da jovem – “as mãos denunciavam... os estragos do trabalho manual”5 – foi o decote do vestido, forjado por uma dobra da gola. Tal como observado por Candido, na produção barretiana do diário, a experiência individual aponta para a condição social.6

A sedução feminina é abafada pela situação de pobreza que sua representação indicava. A utilização da imagem, a ordem sequencial de fatos e mesmo a lista de adjetivos para a caracterização da passageira de um trem parecem recursos singulares, numa narrativa preocupada com o detalhe. A descrição sugere a existência de um narrador com intenções de manter distância do enunciado, afastado da cena, com certo controle dos fatos, mas que se deixa flagrar pela sua perspicaz observação bem além da aparência.

O segundo fragmento consta do ano de 1904. Neste, o escritor relembra do tempo em que fora amanuense da Secretaria de Guerra. Descreve um coronel identificado como “B” que, de acordo com o narrador, era um ignorante, idiota e jactancioso. A coragem nele posta só era real, de fato, quando vestia a farda. Como continuidade das lembranças, o narrador transfere suas memórias para um plano maior: o Exército – mais especificamente os oficiais generais “de mar e terra”. Esses oficiais eram “gente habituada à guerra”7 e tão familiarizados com os instrumentos de luta que tomaram como canhão “um tubo de poste telefônico, quebrado e assentado”; como bombas, “peças de madeira envolvidas pacificamente em fio de ferro”; e, para finalizar os equívocos, conclui com a seguinte frase: “almas doutro mundo”.8

Tal dinâmica narrativa remete a procedimentos comuns à oralidade. A sensação é de que se escuta a narrativa antes de lê-la (como boa parte dos textos de Diário Íntimo). Com teor memorialista, o fluxo das lembranças corre numa sequência que liga o fim de uma lembrança ao início de outra, como uma cadeia lógica de fatos, mas que não guarda uma continuidade fiel – aí onde o salto se dá. A recordação do coronel é logo conectada à coletividade, representada pelos oficiais do exército. De um indivíduo a narrativa dimensiona o todo, findando na delação da incompetência da corporação militar.

Outro ponto interessante nesse trecho é o misto de verdade e imaginação. A realidade, tendo em vista que as descrições partiram de fatos verídicos, é atrelada à ocorrência de um aspecto imagético. O caso de Porto Artur é real9, mas daí a enumerar objetos e afirmá-los como instrumentos de guerra, mesmo flagrantemente falsos pelos enganos do exército, é trabalho com a linguagem, recurso que foi

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Eliete Marim Martins

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sempre tomado pelo escritor como mais uma arma da palavra, por mais que ele julgasse secundário. Aquilo que era real toma outro enfoque na composição encenada pelo narrador. O que é sério vira cômico. O fato de os oficiais não saberem identificar uma bomba é colocado, ao mesmo tempo, atestando a incompetência da farda e demonstrando as contradições da corporação detentora de um poder ilusório.

“Almas doutro mundo”, desta feita, podem dilatar um cenário repleto de arranjos criativos. Os argumentos de Roberto Schwarz em “As idéias fora do lugar”10 podem ser aqui retomados, no sentido de que a utilização da farda e a imposição de respeito que essa exigia, não condiziam com o preparo técnico de quem as usava. Os oficiais imitavam os países centrais para valorizar o que a força de “mar e terra” simbolizava. No entanto, as condições físicas e tecnológicas locais não eram suficientes para um bom desempenho. Nesse sentido, o narrador visualiza a comicidade, usando de uma ironia sagaz para representar o quadro dos oficiais do Brasil.

No último trecho, datado de 1905 também, o narrador relata como foi tratado ao cumprir seu dever profissional de ir à Secretaria de Estado das Relações Exteriores. O narrador parte da expectativa de um bom atendimento, pois apesar de mal vestido, “estava certo de que era cidadão brasileiro, homem de algum cultivo, cumpridor dos meus deveres” (...) “mereceria dos contínuos de lá o tratamento que se dá ao comum dos mortais”. No entanto, é surpreendido por certo desdém dos seus interlocutores. A imagem criada para o leitor é de um perfeito quadro do Brasil – eram “dous contínuos, enfardados em amplas sobrecasacas pretas com botões dourados”.11 Além do fato de serem contínuos, um trabalho de pouco reconhecimento, e, contraditoriamente, usarem farda pomposa, a descrição dos dois agentes do Estado finda com a revelação do trabalho desempenhado por ambos no momento do atendimento: “... ocupavam-se pachorrentamente em cortar jornais, pregando retalhos num livro branco. Original ocupação dos contínuos da Secretaria do Exterior!”.12 E a ironia se dá ao ponto de o narrador temer a interrupção da tarefa dos “respeitáveis funcionários”.

A metonímia aparece como prova da relação, mais uma vez, estabelecida entre o fato isolado e a coletividade. A resposta “entre complacente e desdenhosa” dos contínuos em “sotaque estrangeiro” era também a resposta do departamento da administração brasileira da Secretaria de Estado das Relações Exteriores e era a resposta do próprio Brasil. A dialética local e universal perpassa toda a narrativa, dando a ver as contradições enveredadas pela história do país. São o lustre e o requinte em meio ao “sujo” e ao arcaico. Como parte privilegiada dos escritos de Lima Barreto, a descrição aparece como denúncia do disparate brasileiro:

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O decote, o Canhão e a Fila Negra

ISSN 1414-9109 69

Tinha sob mim uma delgada cadeira e meio suja. Em tôrno, um salão lustrado, amplo e meio escuro; e o teto de estuque tinha pelos cantos o armorial de algum visconde apressado. O estuque encantou-me e, embora sob o pêso daquela afronta, interessou-me o relêvo dêle, as armas do escudo, os florões, os grifos, etc. etc. etc...13

Há na construção narrativa um trabalho sutil que revela um

quadro antitético: o salão é lustrado, mas meio escuro; o teto era de estuque e tinha armorial, mas de algum visconde apressado. O espaço descrito é resumido com uma questão: “De quem fôra aquilo?”. Segundo o narrador, a resposta para essa questão ele não tinha, porém era fácil saber de onde viera o dinheiro. Novamente vêm à tona as lembranças que fogem ao momento narrado. Nem mesmo o fato que o levou à Secretaria é registrado, o que importa são as aferições que o ambiente antagônico do luxo e do precário revela. A representação que o narrador faz vem ao encontro do processo de formação da sociedade, ou mesmo das relações que essa sociedade abarca e produz. Partindo do conhecimento do dinheiro utilizado para o salão lustrado e seu estuque, o narrador lembra-se da relação “Casa-Grande e Senzala”.

E, não sei como, eu vi uma grande fazenda: a senhorial casa acaçapada, numa meia laranja de morro branco de cal, enrubescer sob o banho da luz da aurora; as vacas mugiam no curral próximo; o terreiro fronteiro era como vasto lençol estendido. Da senzala, sem que sequer ouvissem o gorjeio dos pássaros, em filas cerradas, saíam, sob o pêso do cativeiro, algumas centenas de negros”.14

A cena imagética trai a aparente lógica do sistema

organizacional da Secretaria. O olhar mirado no ambiente culmina em reflexões de abrangência histórica: “E, não sei como, eu vi uma grande fazenda”. O resultado das contradições é fruto de um sistema maior, no qual a relação de senhor e escravo é retomada como construtora dos antagonismos perpetuados. Aí, não é mais o narrador quem fala, mas principalmente “a fila negra unida, cerrada, por entre os cafezais...”.15

A força da “linha negra” é registrada como algo que beira a revolução. Reconhecer a força de quem está “por entre os cafezais”, aqueles que, aparentemente, não habitam o salão da Secretaria de Estado das Relações Exteriores, é colocar em xeque a idéia de passividade das pessoas escravizadas e, ao mesmo tempo, revelar que todo aquele luxo representava também a “Doce fila negra”. A palavra doce atesta a ironia, pois o próprio registro delata o “filete” de gente negra como quem vivia “sem querer” nos cafezais. Há o

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Eliete Marim Martins

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reconhecimento da força dos negros para a construção do “salão lustrado”, mas não que tenha sido doce a vida daquela “viva linha negra”. Por trás do silêncio da fila, havia um “filete que se infiltra pela terra adentro”, num movimento dialético, quanto mais o filete afunda, mais forte fica, mais complexidade atinge. Essa imagem vai tomando força nas personagens em fila até chegar “nos profundos recessos do planêta”, e lá “complica, revoluciona, baralha, e provoca vulcões”. A convulsão de idéias desencadeia o pensar em voz alta. O narrador deixa escapar seus pensamentos e é surpreendido pela intromissão do contínuo, porém não se deu por interrompido. Concluiu determinado que a fila não seria desviada:

Olhei o escudo, as fantasias herádicas, as armas de galés e, de mim para mim, pensei: – Doce fila negra, que mourejaste no cafezal, estás ali também naquele níveo escudo; tu entraste nêle sem querer; fôste aí pela fatalidade das cousas e essa... – Não é isso que você quer?, disse-me o contínuo. E eu acabei de raciocinar:

–... e essa, não há barões, viscondes, duques e reis que a desviem.16

A fila unida e cerrada estava também “naquele níveo escudo”, mesmo sem querer e por vias tortas. O filete negro não deixaria mais que os expositores das “fantasias herádicas” desmanchassem a fila. O relato parte da descrição da rotina do atendimento ao público, feito pelo Estado, e dá lugar ao embrião do problema alimentado por séculos no Brasil. Foi na história brasileira, com a estratégica implementação da democracia racial, que se firmou a própria escravidão e que se firmou o racismo. Talvez coubessem questionamentos aos registros de Diário íntimo como, por exemplo, quais os verdadeiros motivos do desdém dos contínuos? Esse cidadão, que forjou um canhão, sabia das contradições que levariam o exército a tal equívoco? Ou ainda, como seria a “expressão dolorosa” da menina do trem? Quem são essas pessoas relatadas, que rosto tinham e que cor poderiam ter? São perguntas que rondam os trechos de Diário Intímo. A chave para tais questões está posta na História do Brasil. Suas reflexões apontam para um Brasil desigual, consciente dos erros, mas inventando javanês, cinicamente, para a comodidade de poucos.

É certo que Diário íntimo revela o cotidiano de um homem, mas é preciso considerar que esse homem é um escritor. Lima Barreto pensava no seu tempo na busca de reconstruir, por meio da linguagem, movimentações e episódios do dia-a-dia carioca. As notas diárias demonstram que diante da sobrevivência pessoal havia uma preocupação com questões de cunho geral. A interpretação do Brasil se dá nos momentos mais corriqueiros, porém esses momentos se

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O decote, o Canhão e a Fila Negra

ISSN 1414-9109 71

fazem grandes, quando o alcance dessas ações isoladas é coletivo. Um simples “decote” pode estar sob a mira de um “canhão”, mesmo sem balas; mas ameaçador, traduzido em dedos chatos ou numa “fila negra unida, cerrada, por entre os cafezais”. Nem sempre a explosão é uma garantia, antes o disfarce nas dificuldades que todos sentem e não conseguem mensurar.

EXCERTOS UTILIZADOS NA ANÁLISE

Texto I – 5 de janeiro de 1905. Página 78.

Hoje, no trem, vim com uma menina que me despertou a

atenção. Ela não era bonita, antes feia e sardenta, porém, de corpo, apetitosa, era dessas que os franceses chamam fausses maigres. Cheia de carnes, redondinha, ela despertava facilmente o furor báquico. Vinha no trem com pai e irmãos. Sentara em um banco afastado e, cobrindo-se de expressão dolorosa, repousava a cabeça sobre a mão, que, em começo, bonita, polpuda e abacial, acabava nas pontas de dedos feios, chatos. Mas o que me chamou a atenção foi um detalhe da toilette. Evidentemente menina pobre – mesmo as mãos denunciavam, naquelas pontas de dedos feios, os estragos do trabalho manual –, pobre, pois, não tendo talvez um vestido decotado e querendo sair com um assim, dobrara a gola do casaco afogado para dentro na altura das espáduas. A coisa foi boa, porquanto as suas espáduas eram das melhores.

Texto II – 1904 – sem data. Página 48.

Quando eu fui amanuense da Secretaria da Guerra, havia um tal

B... coronel ou cousa que valha, que era um tipo curioso de idiota. Ignorante até à ortografia; jactancioso. A coragem dele e sua vibração pessoal só surgem quando veste a farda. É conveniente mesmo escrever alguma cousa a esse respeito.

O exército, ou antes, os oficiais generais de mar e terra escaparam, pelas masorcas de novembro, de serem tomados de terror pânico.

Gente habituada à guerra, e familiarizada com seus instrumentos, tomou como sendo canhão, em Porto Artur (Saúde), um tubo de poste telefônico quebrado e assentado. Bombas eram inofensivas peças de madeira, envolvidas pacificamente em fio de ferro. Almas doutro mundo! Texto III – 1905 – sem data. Página 109.

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Eliete Marim Martins

72 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.8, Outubro de 2014

Há dias, por motivos de minha profissão, fui obrigado a entrar na Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Vestia-me mal, é fato; mas entrava certo de que era cidadão brasileiro, homem de algum cultivo, cumpridor dos meus deveres, e, sobretudo, protegido da crença que, tendo freqüentado uma dessas nossas escolas superiores, mereceria dos contínuos de lá o tratamento que se dá ao comum dos mortais. Enganei-me. Dirigi-me ao contínuo, no primeiro pavimento, que, com habitual morgue dos altos e baixos funcionários, aconselhou-me que subisse. Até aí pisava no Brasil, agora, parecia-me, passava a fronteira. Dous contínuos, enfardelados em amplas sobrecasacas pretas com botões dourados, ocupavam-se pachorrentamente em cortar jornais, pregando os retalhos num livro em branco. Original ocupação dos contínuos da Secretaria do Exterior!

Medroso do meu ato, ousei interromper-lhes a tarefa: – Precisava isso assim, assim; os senhores podem etc. Os dous respeitáveis funcionários olharam-me de alto abaixo e,

entre complacente e desdenhoso, um deles disse-me: – Entra. Fiquei atônito, nunca fora assim tratado em departamento da

administração brasileira e demais naquele sotaque estrangeiro! Prudentemente entrei, sentei-me, conforme me aconselhava o magnífico auxiliar das nossas relações exteriores. Tinha sob mim uma delgada cadeira dourada meio suja. Em torno, um salão lustrado, amplo e meio escuro; e o teto de estuque tinha pelos cantos o armorial de algum visconde apressado. O estuque encantou-me e, embora sob o peso daquela afronta, interessou-me o relevo dele, as armas do escudo, os florões, os grifos, etc. etc. etc...

De quem fôra aquilo? Não sabia. O dinheiro que o fizera, entretanto, era fácil de se dizer donde vinha. E, não sei como, eu vi uma grande fazenda: a senhorial casa acaçapada numa meia laranja de morro branco de cal, enrubescer sob o banho da luz da aurora; as vacas mugiam no curral próximo; o terreiro fronteiro era como vasto lençol estendido. Da senzala, sem que sequer ouvissem gorjeio dos pássaros, em filas cerradas, saíam, sob o peso do cativeiro, algumas centenas de negros. Aquela viva linha negra a estender, silenciosa, humilde, tinha a energia oculta de um filete que se infiltra pela terra adentro. Depois de furar cem metros, rebenta aqui como uma fonte cristalina; se mais desce, mais pressão e mais temperatura ganha, e complexidade na composição; voltando à flor da terra, é agora termal; se mais baixo vai, mais forte fica, e lá, nos profundos recessos do planeta, complica, revoluciona, baralha, e provoca vulcões. Lá ia a fila negra unida, cerrada, por entre os cafezais...

Olhei o escudo, as fantasias heráldicas, as armas de galés e, de mim pra mim, pensei:

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O decote, o Canhão e a Fila Negra

ISSN 1414-9109 73

– Doce fila negra que mourejaste no cafezal, estás ali também naquele níveo escudo; tu entraste nele sem querer; foste aí pela fatalidade das cousas e essa...

– Não é isso que você quer?, disse-me o contínuo. E eu acabei de raciocinar: –... e essa, não há barões, viscondes, duques e reis que a

desviem.

Notas de Referência

* Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília. 1 BARRETO, Lima. “Nota Prévia”. In: Diário íntimo. 2ª ed. São Paulo:

Brasiliense, 1956, p. 20. 2 CANDIDO, Antonio. “Os olhos, a barca e o espelho”. In: A educação pela

noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 3ª ed. 2003, p. 41. 3 BARRETO, Lima. “Nota Prévia”. In: Diário íntimo. 2ª ed. São Paulo:

Brasiliense, 1956, p. 78. 4 Idem. 5 Ibidem. 6 CANDIDO, Antonio. “Os olhos, a barca e o espelho”. In: A educação pela

noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 3ª ed. 2003, p. 44. 7 BARRETO, Lima. “Nota Prévia”. In: Diário íntimo. 2ª ed. São Paulo:

Brasiliense, 1956, p. 48. 8 Idem. 9 O episódio denominado “O Porto Artur da Saúde” foi alvo dos jornais da

época, fazendo alusão à batalha de Porto Artur na guerra russo-japonesa. Um

indivíduo brasileiro, para resistir à vacina, armou em sua janela um objeto à

semelhança de um canhão e esperou pela polícia. O caso se estendeu por quatro

ou cinco dias. 10 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo

social nos inícios do romance brasileiro. 11 BARRETO, Lima. “Nota Prévia”. In: Diário íntimo. 2ª ed. São Paulo:

Brasiliense, 1956, p.109. 12 Idem. 13 Ibidem. 14 Ibidem, p. 110. 15 Ibidem, p. 109. 16 Ibidem, p. 110.

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Páginas Revolucionárias: A Revista Che Guevara e a Defesa da Luta Armada e do Internacionalismo Latino-Americano na

Década de 1970

Izabel Priscila Pimentel da Silva*

Inseridas nos novos horizontes historiográficos, as pesquisas referentes à História da América contemporânea têm freqüentemente eleito os periódicos como objeto de estudo ou, como em nosso caso, recorrido ao seu conteúdo enquanto fonte para a compreensão de diferentes épocas. Nesse sentido, estes estudos passaram a encarar os impressos não somente como um registro de eventos, mas, como apontou o historiador Robert Darnton, enquanto uma “força ativa na história”1, que atua como um dos ingredientes do processo social.

Assim sendo, além de documentos de uma época, estes periódicos também atuam como sujeitos históricos, que revelam os conflitos e as experiências vivenciadas pelo grupo ao qual cada um deles está relacionado e aos que se destinam. Segundo Alzira Abreu, mais que mero veículo de comunicação, a imprensa deve ser entendida como uma força ativa dentro da sociedade, que revela as transformações sociais e a complexidade do contexto em que se insere, interagindo com elas.2

Dentro dessa perspectiva, ao encarar os periódicos como “espaço privilegiado de elaboração de ideias, projetos e embates, em contato com outras instâncias e atores coletivos”3, o presente texto visa esboçar uma breve reflexão sobre a revista Che Guevara, órgão oficial da Junta de Coordinación Revolucionaria, organização que reuniu quatro dos mais significativos grupos da esquerda armada na América do Sul na década de 1970. Através das páginas desta revista, é possível apreender as principais características das organizações armadas sul-americanas e suas propostas revolucionárias, bem como vislumbrar o horizonte de expectativa que motivava os grupos guerrilheiros e que, por sua vez, marcou de forma indelével os anos 70 do século XX na América Latina. Nas trilhas de Guevara: A Junta de Coordinación Revolucionaria

“A la estrategia internacional del imperialismo corresponde la estrategia continental de los revolucionarios”.

Junta de Coordinación Revolucionaria (JCR)4

O cenário político da América do Sul foi marcado, ao longo das

décadas de 1960 e 1970, pela emergência de ditaduras militares e pela ascensão de diversas organizações revolucionárias, que se

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caracterizaram por uma forte desconfiança em relação às formas tradicionais de atuação e representação política, pela valorização da ação e pela defesa da luta armada. Estas organizações, apesar de suas especificidades, também possuíam similitudes teóricas e práticas e, além disso, procuraram estabelecer articulações guerrilheiras, esboçando tentativas (na maioria dos casos, fracassadas) de efetivar um internacionalismo revolucionário na região. Nesse sentido, a formação da Junta de Coordinación Revolucionária (JCR) representou o auge do internacionalismo revolucionário na América Latina na segunda metade do século XX.

As origens dessas propostas internacionalistas remontam ao pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels, para os quais o internacionalismo era a peça central da estratégia de organização e luta dos trabalhadores. No contexto latino-americano, as propostas de internacionalismo revolucionário, próprias do socialismo, ganharam forte ímpeto após a vitória da Revolução Cubana em 1959. A vitória dos “barbudos” de Sierra Maestra inspirou fortemente as esquerdas latino-americanas. Acima de tudo, a Revolução Cubana tornou-se um modelo a ser seguido.

Já em Cuba, como analisou Denise Rollemberg, tornou-se primordial a questão de exportar a revolução, não só numa perspectiva de internacionalismo revolucionário, mas também, e sobretudo, como forma de sobrevivência e consolidação da revolução na própria ilha.5 O maior símbolo ou aquele que melhor encarnou a proposta de exportação da revolução foi Ernesto “Che” Guevara. Após consagrar-se como um dos principais líderes da Revolução Cubana e depois de passar anos morando em Cuba, “Che” renunciou seus cargos no alto comando do novo governo cubano para levar a revolução a outros povos. Em 1965, Guevara deixou Cuba e partiu em uma missão clandestina para dirigir um grupo de cubanos que apoiavam os revolucionários no Congo. Contudo, a iniciativa fracassou. Já em 1966, partiu rumo à selva boliviana, onde esperava contar com o apoio dos camponeses. No ano seguinte, fundou, na Bolívia, o Exército de Libertação Nacional (ELN), no qual militavam bolivianos, cubanos e peruanos, dispostos a espalhar a revolução pela América do Sul. Após intensos combates, em condições cada vez mais adversas, a guerrilha fracassou e Guevara foi finalmente capturado em 08 de outubro de 1967. Ao ser interrogado sobre sua nacionalidade, respondeu: “Sou cubano, argentino, boliviano, equatoriano...”. No dia seguinte, foi assassinado. Morria o maior símbolo do guerrilheiro sem pátria, da revolução sem fronteiras.

Apesar de sua morte e do fracasso de seu projeto revolucionário internacionalista, as palavras, as ideias, o exemplo de “Che” Guevara e sua perspectiva de uma revolução para além das

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Páginas Revolucionárias

ISSN 1414-9109 77

fronteiras nacionais continuaram vivos nos corações e mentes dos revolucionários latino-americanos. Em mensagem enviada à conferência tricontinental, Guevara incentivou a criação de “dois, três, muitos Vietnãs” e conclamou os grupos armados da América Latina a “formar uma espécie de Junta de Coordenação para tornar mais difícil a tarefa repressiva do imperialismo ianque e facilitar a própria causa”.6

O ponto de partida para a formação de uma “junta de coordenação” entre grupos da esquerda sul-americana foi o contato com os sobreviventes cubanos do Exército de Libertação Nacional da Bolívia, que, após o fracasso da guerrilha guevarista, conseguiram chegar (clandestinamente) ao Chile, onde receberam todo o apoio dos principais grupos da esquerda chilena, em especial do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR). Desde então, os militantes do ELN mantiveram contatos sistemáticos os miristas chilenos e com militantes de outras organizações da esquerda armada sul-americana7, como os uruguaios do Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros e os argentinos do Ejército Revolucionário del Pueblo (ERP).8

No final de 1972, a sintonia entre estas organizações, que já se consideravam “hermanas”, começou a ganhar contornos de formalização. Em novembro daquele ano, reuniram-se em Santiago as principais lideranças do MIR, do ERP e do MLN-Tupamaros. Foi então criada a Junta de Coordinación Revolucionaria (JCR), que deveria ser a concretização da visão estratégica de “Che” Guevara. Em uma segunda reunião realizada em junho de 1973, desta vez na cidade argentina de Rosário, o ELN da Bolívia – que até então só mantinha conversas bilaterais com as outras três organizações, mas contava com grande prestígio e força simbólica por ser representante da guerrilha iniciada pelo próprio Guevara – foi formalmente integrado à recém-fundada Junta de Coordinación Revolucionaria.9

Após os golpes militares no Uruguai (1973), no Chile (1973) e na Argentina (1976) e a efetivação do Plano Condor – uma aliança secreta entre os governos militares de Uruguai, Paraguai, Bolívia, Argentina e Brasil, que consolidou a internacionalização da repressão – as organizações membros da JCR foram duramente atingidas e seus militantes remanescentes partiram para o exílio, espalhando-se pela Europa, México e Cuba. Entre 1976 e 1977, intentou-se reorganizar a Junta de Coordinación Revolucionaria no exílio, através de comitês organizados pelos militantes exilados primeiramente na Europa e depois no México. Mas as tentativas de reorganização fracassaram, sobretudo porque esbarraram nas fragmentações políticas das próprias organizações que integravam a Junta. Assim sendo, os conflitos internos das organizações membros da JCR, que dissolveram seus laços de cooperação, foram determinantes para a desagregação da organização.

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Além disso, no que tange ainda aos fatores que levaram à desestruturação da JCR deve-se ressaltar que o desenvolvimento da coordenação militar, logística e ideológica desta organização na América do Sul correspondeu ao crescente isolamento dos guerrilheiros nos contextos sociais em que estavam inseridos. Ao almejarem um internacionalismo revolucionário, as organizações que integravam a Junta de Coordinación Revolucionaria não conseguiram estabelecer laços sólidos com as sociedades que sonhavam transformar.

Imprensa Revolucionária: A Revista Che Guevara

“O jornal é o lugar de transição entre a teoria pura e o apelo à ação. Cada artigo converte a teoria em palavras de ordem e em consignas

exatas”. Vladimir Lênin10

No contexto de radicalização política da década de 1970, com o

avanço das esquerdas armadas, o cenário latino-americano também foi incendiado pela circulação de jornais e revistas das organizações clandestinas, que defendiam abertamente a luta armada e propagandeavam suas ações revolucionárias. Nesse artigo, nosso olhar enfocará a dimensão política da revista Che Guevara, órgão de divulgação da Junta de Coordinación Revolucionaria. Por dimensão política, entende-se:

(...) a crítica contundente ao presente, a contestação da realidade existente, a intenção de destruir a sociedade vigente, bem como a colocação de um ideal, a exposição de uma visão de mundo, a construção mental de um mundo alternativo, enfim, a anunciação de uma outra sociedade (...)”.11

Configurando-se como “espaço privilegiado de crítica social e de

projeção de um ideal”12, este periódico atuou como veículo de divulgação de propostas internacionalistas revolucionárias da JCR, que se inspiravam nas ideias de Che Guevara, considerado o ícone dos projetos guerrilheiros que ultrapassaram fronteiras nacionais. A revista teve apenas três números, publicados de forma irregular em novembro de 1974, fevereiro de 1975 e outubro de 1977, respectivamente. Aliás, a imprensa revolucionária, de uma forma geral, teve “sua periodicidade comprometida pelo conteúdo publicado que contrariava as regras impostas pela censura oficial”.13

O primeiro número de Che Guevara apresenta a proposta editorial do periódico, que deveria atuar como um mecanismo de propaganda e agitação revolucionária:

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Páginas Revolucionárias

ISSN 1414-9109 79

Nas páginas desta revista desnudaremos e atacaremos o capitalismo e o imperialismo; exporemos e desenvolveremos as perspectivas revolucionárias, as análises, argumentos e experiências das organizações e militantes revolucionários de distintos países (e principalmente latino-americanos); se analisará a realidade estrutural e conjuntural-econômica, geopolítica e social destes países; se comentará as características das lutas populares e das suas organizações em constantes batalhas pela sua libertação.14

Esta edição também reproduz o comunicado A los pueblos de

América Latina, onde se anunciava a formação da Junta de Coordinación Revolucionaria:

O Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros do Uruguai, o Movimento da Esquerda Revolucionária do Chile, o Exército de Libertação Nacional da Bolívia e o Exército Revolucionário do Povo da Argentina assinam a presente declaração para dar a conhecer aos operários, aos camponeses pobres, aos pobres da cidade, aos estudantes e intelectuais, aos aborígenes, aos milhões de trabalhadores explorados da nossa sofredora pátria latino-americana, a sua decisão de unir-se numa Junta de Coordenação Revolucionária. Este passo importante é o produto de uma necessidade sentida, da necessidade de fazer a coesão dos nossos povos no campo da organização, de unificar as forças revolucionárias para fazer frente ao inimigo imperialista, de travar com maior eficácia a luta política e ideológica contra o nacionalismo burguês e o reformismo. Este passo importante é a concretização de uma das principais ideias estratégicas do comandante Che Guevara, herói, símbolo e precursor da revolução que tende a retomar a tradição fraternal dos nossos povos que souberam irmanar-se e lutar como um só homem contra os opressores do século passado, os colonialistas espanhóis.15

Num contexto em que as ditaduras sul-americanas

intensificavam suas redes de colaboração e delineavam a internacionalização da repressão, a JCR defendia o internacionalismo revolucionário, nos moldes das ações e palavras de Che Guevara, o símbolo máximo da revolução sem fronteiras e que significativamente batizava sua revista. E para além do combate às ditaduras militares que se alastravam pela América Latina, este periódico, enquanto porta-voz de uma organização revolucionária internacionalista, conclamava os povos latino-americanos a lutar contra um inimigo em comum: o imperialismo dos Estados Unidos, que, numa alusão ao passado colonial, atuava como uma metrópole exploradora no subcontinente.

Em seu segundo número, a revista esboça um balanço da atuação das organizações integrantes da JCR na Bolívia, Argentina,

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Chile e Uruguai e aponta perspectivas promissoras no que tange ao estabelecimento de contatos com outras organizações revolucionárias nos demais países latino-americanos. Era grande o otimismo revolucionário: “Imaginávamos uma espécie de Vietnã embrionário em toda a América Latina. Íamos levar a idéia da JCR ao Brasil, Peru, México, Caracas. Para nós, a revolução estava prestes a se iniciar em toda a América Latina”, relembra Luis Mattini, uma das lideranças do ERP.16

Ainda neste segundo exemplar de Che Guevara, destaca-se uma matéria diretamente relacionada à opção pela luta armada adotada pelas organizações responsáveis pela publicação da revista. Tratava-se do anúncio de que, após meses de trabalho, o Ejército Revolucionário del Pueblo (ERP), com auxílio das demais organizações membros da Junta, conseguiu fabricar uma metralhadora, batizada de JCR 1. Ao lado de uma foto da arma, que destacava os detalhes das suas peças, a revista proclamava:

Os povos da América concretizam assim os primeiros passos na formação de uma indústria de guerra das forças revolucionárias latino-americanas. A criação e posterior concretização material da JCR 1 é um avanço histórico da revolução. É a primeira experiência de uma tarefa de importância estratégica. Fica muito ainda por inventar, construir, produzir. Mas o caminho do auto-abastecimento de armas das forças populares está aberto e percorrê-lo-emos vitoriosamente.17

A fotografia da arma remetia à defesa da violência

revolucionária, que era um dos pressupostos de parte significativa da esquerda latino-americana, que se mirava em Che Guevara e Ho Chi Mihn. Nesse sentido, uma das funções da imprensa revolucionária era não só fazer propaganda da revolução, mas convencer o leitor a integrar-se nesta luta política: “as mensagens veiculadas deveriam instigar comportamentos rebeldes expressando novas aspirações, desejos e projetos de vida”.18 Além da função mobilizadora, do formato, da composição, do papel e do conteúdo político, as publicações revolucionárias também se diferenciavam, segundo a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, por determinadas composições discursivas “avaliadas como fórmulas do saber revolucionário como, por exemplo, o emprego dos slogans”.19 Nessa perspectiva, estampavam as páginas revolucionárias da revista Che Guevara frases como: “Não há exército, por poderoso que seja, que possa opor-se ao povo em armas!”. E ainda os slogans característicos de cada uma das organizações que compunham a JCR: “Victoria o Muerte!” (ELN); “Patria o Muerte Venceremos!” (MIR); “A Vencer o Morir por la Argentina!” (ERP); e “Libertad o Muerte!” (MLN-Tupamaros).

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Páginas Revolucionárias

ISSN 1414-9109 81

Em 1977, foi lançado o terceiro e último número da revista Che Guevara, cujas matérias destacavam especialmente os 10 anos da morte de Guevara na Bolívia. Ainda neste número, dentro da proposta internacionalista que guiava a JCR, os editores abrem espaço para a defesa e o apoio às lutas revolucionárias empreendidas pelo Ejército Guerrillero de los Pobres, da Guatemala; pela Frente Sandinista de Liberación Nacional, da Nicarágua; e a Frente Popular de Liberación Farabundo Marti, de El Salvador. Nesse sentido, é importante ressaltar que no final da década de 1970, com o refluxo das organizações armadas na América do Sul inserido no contexto de crescente e internacionalizada repressão das ditaduras militares, o eixo revolucionário deslocou-se para a América Central. Aliás, os editores de Che Guevara reconhecem o avanço das forças contrarrevolucionárias:

El período actual en el conjunto del Cono Sur de América Latina está caracterizado por uma ofensiva global política, económica, militar de la contrarrevolución contra la clase obrera, el pueblo, los revolucionários y los demócratas. Por primera vez em la historia de nuestro continente uma coalición contrarrevolucionaria logra extenderse de manera simultânea y coordinada sobre um conjunto tan importante de países, amanazando com prolongarse hacia la totalidad del continente.20

Ainda assim, a revista segue defendendo os pressupostos

teóricos que guiavam uma parte significativa das esquerdas latino-americanas na década de 1970: “(...) hoy más que nunca, recobra su verdadero vigor el pensamiento del revolucionario de espíritu internacionalista Che Guevara”.21 Através dos textos da revista Che Guevara é possível compreender algumas das características comuns às organizações da esquerda armada no Cone Sul da América Latina. A começar por uma forte desconfiança em relação às formas tradicionais de atuação e representação política, condenadas por sua “ineficácia revolucionária”. Isso nos leva a outra característica da esquerda alternativa22 surgida na América do Sul: a valorização da ação. Uma das grandes acusações que se fazia aos partidos de esquerda tradicionais era a de imobilismo. Nesse sentido, as organizações dissidentes defendiam a prática revolucionária – partir pra ação, imediata e radicalmente, sem perder tempo com discussões que a nada levavam. Qualquer retardamento ou recuo era encarado como um ato de covardia.

Além disso, de um modo geral, a maioria dessas organizações recusava-se a estabelecer qualquer tipo de aliança com frações das classes dominantes, pois acreditava na total falta de vocação revolucionária da burguesia. Por fim, enquanto os partidos comunistas sul-americanos, de forma geral, continuavam mantendo, mesmo

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depois dos golpes de Estado nos respectivos países do Cone Sul, a proposição da via pacífica para o socialismo, as organizações da chamada “nova esquerda” defendiam a luta armada como a principal forma de luta, embora divergissem sobre a maneira pela qual ela deveria ocorrer.

A atuação das organizações revolucionárias sul-americanas que recorreram às armas nas décadas de 1960 e 1970 também pode ser compreendida através dos conceitos de espaço de experiência e horizonte de expectativas, formulados pelo historiador alemão Reinhart Koselleck. Segundo o autor, a experiência

(...) é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada uma experiência alheia. Nesse sentido, também a história é desde sempre concebida como conhecimento de experiências alheias.23

Já a expectativa, ainda segundo Koselleck,

(...) é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.24

Para Koselleck, apesar de se relacionarem, experiência e

expectativa “não são conceitos simétricos complementares, que coordenem passado e futuro como se fossem imagens especulares recíprocas”.25 O autor continua:

Passado e futuro jamais chegam a coincidir, assim como uma expectativa jamais pode ser deduzida totalmente da experiência. Uma experiência, uma vez feita, está completa na medida em que suas causas são passadas, ao passo que a experiência futura, antecipada como expectativa, se decompõe em uma infinidade de momentos temporais.26

Podemos aplicar estas categorias – “experiência” e

“expectativa” – aos movimentos guerrilheiros surgidos na América do Sul ao logo das décadas de 1960 e 1970. Como vimos anteriormente, a opção pela luta armada foi uma das mais marcantes características

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Páginas Revolucionárias

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das organizações revolucionários surgidas neste período. Para a maioria destas organizações, o espaço de experiência das décadas anteriores e dos partidos comunistas tradicionais deveria ser descartado, pois, em sua ótica, o “reformismo” e o “imobilismo” eram incapazes de conduzir à revolução. Segundo Koselleck, “o que distingue a experiência é o haver elaborado acontecimentos passados, é o poder torná-los presentes, o estar saturada de realidade, o incluir em seu próprio comportamento as possibilidades realizadas ou falhas”.27 Para os guerrilheiros, era possível aprender com o passado e dele retirar lições, que guiariam a prática política: os “erros” e “falhas” das tradicionais lideranças políticas não deveriam ser repetidos. Era preciso uma nova forma de luta – a luta armada.

Com base nestas concepções, formuladas a partir de um “espaço de experiência”, a luta armada propiciava para estas esquerdas alternativas um novo horizonte de expectativas. De acordo com Koselleck, horizonte “quer dizer aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, mas um espaço que ainda não pode ser contemplado. A possibilidade de se descobrir o futuro, apesar de os prognósticos serem possíveis, se depara com um limite absoluto, pois ela não pode ser experimentada”.28 Para as esquerdas armadas latino-americanas, a revolução estava em seu horizonte de expectativas.

Este horizonte revolucionário esteve estampado nas publicações clandestinas das organizações armadas do Cone Sul. Na medida em que a imprensa nos permite conhecer “as inflexões da época e as nuances da conjuntura”29, o mergulho no universo dessas páginas revolucionárias, em especial na revista Che Guevara, nos possibilita reconstruir as propostas, discussões e motivações que nortearam a ação dos grupos guerrilheiros setentistas.

As páginas da revista Che Guevara configuram-se, portanto, em uma rica fonte de pesquisa para os historiadores, na medida em que representam um dos mecanismos de participação política das organizações armadas, em especial de grupos que defendiam projetos revolucionários que transcenderam fronteiras. Através de seus textos, carregados de tinta rebelde, podemos entrever as lutas políticas, sociais e ideológicas que marcaram a década de 1970 na América Latina e, sobretudo, vislumbrar as ideias revolucionárias que coloriram o horizonte das esquerdas armadas de nuestra América. Notas de Referência

* Doutoranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História

da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF) sob orientação da profª drª Samantha Viz Quadrat; Mestre em História Social também pela UFF; Bolsista

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do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); professora de História da América da Universidade Castelo Branco (UCB). E-mail: [email protected]. 1 DARNTON, Robert & ROCHE, Daniel (orgs.). Revolução impressa: A imprensa na França (1775-1800). São Paulo: Edusp, 1996, p. 15. 2 ABREU, Alzira Alves de. “Acontecimento e mídia”. In: MOREL, Marco & NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira (orgs.). Anais do Colóquio História e Imprensa: homenagem a Barbosa Lima Sobrinho – 100 anos. Rio de Janeiro:

UERJ, 1998, p. 62. 3 MOREL, Marco. “O surgimento da imprensa no Brasil: questões atuais”. Maracanan. Rio de Janeiro: UERJ, Ano III, nº 3, p. 20, janeiro 2005 março 2007. 4 JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA. “A los pueblos de América Latina, declaración constitutiva da JCR”, Che Guevara – órgão da JCR, nº 1,

edição em espanhol, 01 de novembro de 1974, p. 3. 5 A partir de 1967, Fidel Castro consolidou o caminho de aproximação com a União Soviética – que se opunha às tentativas de desencadeamento da revolução na América Latina – e assumiu a construção do socialismo em um só país. Ambiguamente, no entanto, Fidel Castro também incentivava a impulsão da revolução pelo chamado Terceiro Mundo. Cf. ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2001, p. 14-16. 6 GUEVARA, Ernesto “Che”. “Mensagem aos povos da Tricontinental” (1967). In: LÖWY, Michael (org.). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. 2ª edição. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 305. Grifos nossos. 7 A partir de 1970, quando o socialista Salvador Allende assumiu a presidência da República, o Chile, além de um lugar de refúgio, sobretudo em vista das várias ditaduras militares que já se espalhavam pela América do Sul, tornou-se um espaço fundamental de trocas políticas para os militantes da esquerda armada sul-americana. 8 Foge aos limites e propósitos deste artigo remontar a história da luta armada na América do Sul, apresentando um vasto histórico dos principais grupos da esquerda armada sul-americana. Para saber mais, cf: BERARDO, João Batista. Guerrilhas e guerrilheiros no drama da América Latina. São Paulo: Edições Populares, 1981. 9 MARCHESI, Aldo. “Geografias de la protesta armada, guerra fria, nueva izquierda y activismo transnacional en el cono sur: o ejemplo de la Junta de Coordinación Revolucionaria (1972-1977)”. Disponível em: < http://historiapolitica.com/datos/biblioteca/2j_marchesi.pdf>. Acessado em 05/09/2011, p. 8 10 LENIN, Vladimir apud WORONTZOFF, Madeleine. Nome: Lenine. Profissão: Jornalista. Lenine e a imprensa revolucionária. Lisboa: Antídoto, 1977, p. 19. 11 MARTINS, Angela Maria Roberti. “Palavras e imagens que fazem sonhar: imprensa libertária e representações da revolução social (A Plebe – 1919)”. Maracanan. Rio de Janeiro: UERJ, Ano III, nº 3, p. 69, janeiro 2005 março 2007. 12 Ibidem, p. 58. 13 KOSSOY, Boris. “O jornalismo revolucionário ilustrado”. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci & KOSSOY, Boris (orgs.). A imprensa confiscada pelo

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Páginas Revolucionárias

ISSN 1414-9109 85

DEOPS (1924-1954). São Paulo: Ateliê Editorial; Arquivo do Estado, 2003, p. 12. 14 JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA. “Apresentação”. Che Guevara, nº 1, 2ª edição em português, 23 de julho de 1975, p. 4. A edição em

espanhol foi lançada anteriormente, em novembro de 74. 15 Ibidem, p. 7. 16 MATTINI, Luis apud DINGES, John. Os anos do Condor: uma década de terrorismo internacional no Cone Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2005,

p. 91. 17 JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA. “Desarmemos a JCR 1”. Che Guevara, nº 2, edição em português, abril-maio de 1975, p. 29. A edição em espanhol foi lançada anteriormente, em fevereiro de 1975. 18 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. “Imprensa irreverente, tipos subversivos”. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci & KOSSOY, Boris (orgs.). A imprensa confiscada pelo DEOPS (1924-1954). São Paulo: Ateliê Editorial; Arquivo do Estado, 2003, p. 42. 19 Ibidem, p. 41. 20 JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA. “Por la revolucion socialista em el camino del Che”. Che Guevara, nº 3, edição em espanhol, outubro-dezembro de 1977, p. 71. 21 JUNTA DE COORDINACIÓN REVOLUCIONARIA. “Che Guevara”. Che Guevara, nº 3, edição em espanhol, outubro-dezembro de 1977, p. 1. 22 Estas esquerdas alternativas e radicais, que ficaram conhecidas como “novas esquerdas”, surgiram, ao longo das décadas de 1960 e 1970 em quase todo o mundo ocidental, em oposição aos partidos comunistas tradicionais e seus modelos clássicos de atuação política. 23 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p. 309-310. 24 Ibidem, p. 310. 25 Ibidem. 26 Ibidem. 27 Ibidem, p. 312. Grifos nossos. 28 Ibidem, p. 311. 29 WINOCK, Michel. “As ideias políticas”. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 282.

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O Desenvolvimento como política de modernização do Brasil

Juanito Alexandre Vieira*

Introdução

O presente artigo tem como objetivo discutir as transformações

no processo de produção capitalista e o impacto que as políticas neoliberais têm sobre as estratégias de desenvolvimento implementadas no Brasil a partir da segunda guerra mundial. A partir das diferenciações entre o conceito de desenvolvimento e crescimento serão abordados os desafios dos governos brasileiros nos anos de 1990 no que tange ao processo de industrialização centrado na necessidade de aumentar a capacidade inovativa das empresas

O conceito de desenvolvimento, entendido como um processo de elevação da produtividade é comum para a escola liberal bem como para os desenvolvimentistas. Contudo, o que os difere é o modo como as nações vão alcançar tal desenvolvimento. Para os desenvolvimentistas, esse processo seria alcançado por uma deliberada política de modernização através da industrialização. Já os defensores da escola liberal combatem essa opinião, e afirmavam que o desenvolvimento ocorreria naturalmente a partir da garantia da livre movimentação das forças de mercado. Para essa escola, a preocupação central do Estado deveria ser a preservação do equilíbrio monetário e cambial.

Para os liberais ainda persiste a visão clássica de desenvolvimento, que na prática o considera como sinônimo de crescimento e ligado apenas a um processo de aumento de produtividade. Na perspectiva clássica, o desenvolvimento/crescimento é alcançado de forma natural e ocorre independente da atividade econômica desempenhada.

O conceito de desenvolvimento entendido como um ato deliberado e planejado de aumento da produtividade através do estímulo da industrialização começa a ser utilizado na História Econômica Brasileira a partir dos anos de 19301, em particular após um cenário de crise do regime capitalista com a quebra da bolsa dos EUA (1929) e, consequentemente, a queda das exportações de café no Brasil. Esse novo cenário político e econômico contribuiu para a Revolução de 1930, que elevou ao poder o presidente Getúlio Vargas.

Nesse sentido, o conceito de desenvolvimento, apesar de um conceito econômico, será interpretado nesse artigo como um conceito político social que se constitui num contexto histórico. Para essa perspectiva, utiliza-se como base teoria a contribuição de Karl Polanyi

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ao considerar que “a economia do homem está submersa nas relações sociais” 2.

Sendo assim, busca-se compreender o conceito de desenvolvimento, também, como instrumento de mobilização político social do conjunto da nação em prol de uma política de industrialização que em determinados momentos foi vinculado ao discurso de progresso, mas que neste trabalho será tratado como modernização do país. O Desenvolvimento como política de Modernização

Um dos expoentes iniciais dessa concepção foi Roberto

Simonsen que acreditava que a implementação de um projeto desenvolvimentista exige grande apoio do Estado, pois os mecanismos de mercado não garantiriam o processo de industrialização. Esse apoio estatal deveria ir além de ações indiretas e em alguns setores tornam-se indispensáveis ações diretas3 que incluíssem investimentos em setores básicos, considerados estratégicos para o desenvolvimento. Para o autor o protecionismo e o planejamento são entendidos como instrumentos centrais para nortear as ações desenvolvimentistas do Estado.

Em síntese, Simonsen entende desenvolvimentismo como uma ação planejada e consciente do Estado para estimular o processo de industrialização e superar o atraso econômico, a pobreza e garantir a modernização. Como ação planejada o autor defende praticas protecionistas, a intervenção direta do Estado, principalmente em setores de base, a crítica à visão liberal de manutenção de mecanismos de mercado, considerados muitas vezes nocivos ao processo de industrialização e, a possibilidade de desenvolvimento planificado com a manutenção da primazia da iniciativa privada.

A contribuição de Simonsen ao desenvolvimentismo no Brasil é inegável, em particular por trazer para o centro do debate político e econômico a necessidade do Estado agir de maneira planejada em prol do estímulo industrial. Contudo, é a partir dos trabalhos de Prebisch e da Cepal que elaboram o conceito de “economia do subdesenvolvimento” que a ideia de desenvolvimentismo na América Latina ganha maior fundamentação teórica.

Para entender essa “economia do subdesenvolvimento” os economistas da Cepal constituem o conceito de Centro-Periferia, ou seja, ao contrário do que defendia os clássicos, a divisão internacional do trabalho provocou efeitos diferenciados no estágio de desenvolvimento entre os países capitalistas. O progresso técnico4 se desenvolveu de forma desigual em escala planetária, ou seja, nos

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países centrais, mais industrializados, foi maior do que nos países periféricos, produtores agrícolas e de matéria prima.

A partir dessa caracterização as exportações de produtos primários e industrializados ocupam lugares distintos no quadro do comércio internacional. Ao buscar compreender a redistribuição da renda no plano internacional, Prebisch destaca três problemas para as exportações de produtos primários, a saber: “a questão dos preços, o acesso aos mercados dos países industrializados e os excedentes agrícolas e sua utilização na política do desenvolvimento”5.

De acordo com Prebisch, a produção primária tende a aumentar mais rapidamente do que a demanda, e esse fenômeno cria uma tendência de deterioração dos preços dos produtos primários frente aos industrializados o que afeta a distribuição interna da renda. Nos países centrais busca-se evitar essa distribuição desigual com políticas de defesa dos preços internamente, mas no comércio internacional isso não é uma tendência fácil de ser aceita pelos países industrializados, nas suas relações com a periferia. Para o autor,

é necessário intervir, no âmbito internacional, para evitar ou, pelo menos, atenuar as consequências da imensa redistribuição regressiva da renda entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento (...). Para atingir esse objetivo, seria preciso que os países industrializados importadores de produtos primários adotassem uma decisão política transcendental: tomar providência para evitar essa redistribuição regressiva da renda no plano internacional6.

Ao destacar a tendência de distribuição desigual da renda

entre os países Centrais e Periféricos e a existência de um número pequeno de países considerados produtores de inovações tecnológicas o conceito de “desenvolvimento e subdesenvolvimento devem ser considerados como dois aspectos de um processo histórico, ligado à criação e à forma de difusão da tecnologia moderna”7.

Contrariando a perspectiva da escola clássica os defensores do desenvolvimentismo buscam separar os conceitos de desenvolvimento e crescimento. Crescimento passa a ser entendido como o esforço de expandir a produção em um determinado subconjunto econômico, que não implica, necessariamente, na transformação do processo produtivo como um todo. Já o desenvolvimento deve ser entendido como um aumento de produtividade envolvendo todo o conjunto econômico complexo e não apenas de um subconjunto. Nesse sentido, o desenvolvimento acaba incorporando a noção de crescimento e superando-a, pois é, ao mesmo tempo, aumento de produtividade e de acumulação, mas

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também, de progresso técnico e de renda per capta de uma determinada sociedade.

O conceito de desenvolvimento pode ser igualmente utilizado com referência a qualquer conjunto econômico no qual a composição da procura traduz preferências individuais e coletivas baseadas em um sistema de valores. Se o conjunto econômico apresenta estrutura simples, isto é, se a procura não é autocriada, como no caso de uma empresa ou de um setor produtivo especializado, convém evitar o conceito de desenvolvimento e utilizar simplesmente o de crescimento”8.

Vale destacar ainda, que desenvolvimento não se resume

apenas a elevação do nível tecnológico de uma nação, mas está ligado, também, ao atendimento de diversas necessidades sociais e econômicas de uma coletividade. Nesse sentido, o conceito incorpora questões de preocupação distributivas de renda, que tanto no pensamento da escola liberal, ou mesmo para Simonsen acabam sendo consideradas secundárias.

Para Bresser Pereira, o conceito de desenvolvimento é entendido como um processo social global de “transformação econômica, política e social, através da qual o crescimento do padrão de vida da população tende a tornar-se automático e autônomo”9. Como um sistema social, o desenvolvimento envolve relações econômicas, sociais e políticas, que são interdependentes e que tem como objetivo primordial o crescimento do padrão de vida da população10.

Outra vertente do desenvolvimentismo, que ganha destaca a partir dos anos de 1950, é a liderada por Roberto Campos. Para esse autor, o capital estrangeiro tinha uma ampla contribuição a dar ao processo de industrialização brasileiro. Ao contrário dos desenvolvimentistas, considerados nacionalistas, Campos era favorável ao apoio do Estado à industrialização, mas era crítico a uma intervenção direta, pois acreditava que a iniciativa privada atuaria com maior eficiência nesse processo. Além disso, defendia, como os liberais, que a economia brasileira, sofria de uma tendência ao desequilíbrio econômico-financeiro, e considera a inflação como problema crônico e, por isso, era favorável a medidas de estabilização monetária11.

A questão da participação do capital estrangeiro no processo de industrialização brasileiro é central para entender a diferença do conceito de desenvolvimento entre os nacionalistas e não nacionalistas.

Para os nacionalistas, o Estado é o agente central do processo de industrialização e o capital estrangeiro é considerado como

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“parceiro possível do esforço de desenvolvimento, desde que confinado a setores não estratégicos e sujeito a regulamentação que minimize os impactos negativos de sua presença para o desequilíbrio do setor externo”12.

Já para os não nacionalistas o apoio do capital estrangeiro era indispensável para o desenvolvimento econômico brasileiro, tendo em vista a incapacidade de investir da burguesia nacional em setores considerados estratégicos, devido ao alto custo e inexistência de tecnologia.

A partir da década de 1960, a implementação de políticas desenvolvimentista entra em um momento de declínio devido a mudanças no cenário mundial que, de favorável pós 1945 passou a desfavorável a partir dos anos 1960. No pós-Segunda Guerra o novo sistema monetário internacional dólar-ouro, imposto na Conferência de Bretton Woods, é criado e concilia paridade fixa e certa autonomia das políticas monetárias nacionais, sob a hegemonia dos EUA. Vale destacar que o contexto histórico que possibilita esse cenário é a dualidade político-militar com a URSS. Esse período que dura até o início dos anos de 1960 foi responsável pelo chamado “milagre econômico”, mas chega ao seu esgotamento e provoca mudanças no cenário mundial, que são responsáveis por transformações importantes nas estruturas econômicas, políticas e sociais das décadas seguintes. Para Wilson Cano,

Já no início da década de 1960, os EUA davam mostras de ter ultrapassado seu longo ciclo de expansão, com diminuição de sua taxa de crescimento, debilitamento de seu comércio exterior e de suas contas fiscais, ao contrário da Europa e Japão, que iniciavam sua fase de auge13.

A hegemonia dos EUA no contexto mundial ocidental,

consolidada a partir de Bretton Woods, e a possibilidade de crise econômica, justificada pela diminuição da taxa de crescimento, são fatores determinantes para mudanças no cenário político-econômico. Esse novo contexto explica a restrição a políticas desenvolvimentistas nos países em desenvolvimento e abrem espaço para a propagação de princípios liberais, que priorizam a estabilidade econômica em detrimento do desenvolvimento. Para José Luís Fiori,

O renascimento liberal deu-se de maneira progressiva, começando pela crise simultânea do sistema geopolítico e monetário em que se sustentara o sucesso do embedded liberalism que vigorou nas décadas de ouro do pós-Segunda Guerra, e prolongando-se no problema da ‘ingovernabilidade’ diagnosticada pelos conservadores das sociedades

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desenvolvidas atingidas pela escalada dos movimentos sociais e das reivindicações sindicais14.

Nesse contexto, de fortalecimento do pensamento liberal, agora

de maneira mais direta e menos “embedded”, a preocupação central para os países em desenvolvimento passa a ser a estabilidade econômica e o controle da inflação. Para poucos países, que a diplomacia estadunidense necessitava negociar, dentre eles o Brasil, era possível manter algumas políticas de crescimento econômico, mas não de desenvolvimento nos moldes que era defendido pelos desenvolvimentistas, em particular no que diz respeito ao aumento do padrão de vida.

De modo geral pode-se afirmar que a política do Estado brasileiro, ao longo desse período, procurava estruturar o país para a instalação de empresas multinacionais. Para isso, relações de cooperação entre o Estado – incluindo as empresas estatais –, o capital privado nacional e o capital estrangeiro foram consolidadas. O objetivo central dessa cooperação era favorecer o crescimento industrial alicerçado, prioritariamente, em torno de empresas estrangeiras.

É importante destacar que a política industrial do período militar teve como pontos fundamentais a articulação entre o desenvolvimento e o “autoritarismo instrumental”, que possibilitou crescimento econômico com grande destaque para a presença do Estado e do capital estrangeiro, mas aprofundou a concentração de renda através da contenção dos salários. Essa política foi expressa através da frase de Delfim Neto, que afirmava a necessidade de “primeiro crescer o bolo para depois dividi-lo”, o que de fato não ocorreu durante o período militar.

Ao contrário do que ocorreu em outros países, com destaque para a Coréia do Sul, o crescimento das taxas de industrialização até os anos 1980 não foi acompanhado pelo aumento da capacidade de inovação das indústrias instaladas no Brasil. Os índices de investimentos tecnológicos nas indústrias brasileiras, ao longo desse período de substituição de importações, limitaram-se ao mínimo necessário para a produção.

A incapacidade das empresas instaladas no país de promover novos processos e produtos, somada à “ausência de padrão nítido de especialização da estrutura industrial brasileira e à sua deficiente integração com o mercado internacional” representava, já naquele momento, um fator de fragilidade da política de industrialização no Brasil15.

No início dos anos de 1980 há uma mudança no comportamento da economia, mesmo com uma média de crescimento na década de

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1970 de 8,9% e de 9,1% em 1980, o ano de 1981 teve uma queda de 10,4%. Para Antônio Barros de Castro,

A súbita e drástica reversão dos resultados da indústria, aliada ao inusitado recrudescimento inflacionário verificado no período, trazia consigo, além disso, algo não passível de mensuração, mas capaz de abalar os próprios fundamentos do padrão comportamental vigente na economia. Refiro-me tanto à chocante negação da premissa (primeira convenção) do crescimento garantido quanto ao questionamento do pacto implícito, relativo à inflação administrada e indolor (segunda convenção)16.

A partir da análise de Castro pode-se constatar que há uma

queda da confiança, fruto do rompimento do que o autor chama de crescimento garantido e, por isso, há um freio no ritmo de crescimento. Essa política somada aos desequilíbrios inflacionários contribui para que os adeptos do neoliberalismo tratem a economia brasileira como um exemplo de industrialização tentada e fracassada. Esse cenário de incertezas e pressões políticas e econômicas afeta decididamente as políticas desenvolvimentistas, pois reforçam as concepções clássicas de crescimento como um fenômeno natural e a necessidade de políticas de austeridade econômica.

Contudo, além da queda de confiança na tese do crescimento garantido a mudança de rumos econômicos deve ser entendida, também, como um movimento político que tem como proposito romper com qualquer princípio de desenvolvimento no Brasil. Ao reforçar a tese de que o desenvolvimento gera desequilíbrios financeiros tem-se a intenção de desconstruir a visão de modernização da nação alicerçada no desenvolvimentismo.

Esse período de recessão e instabilidade contribui para induzir “as empresas brasileiras a adotarem estratégias de sobrevivência em tal ambiente de incerteza (...) que não permitiu a adoção de estratégias ofensivas de modernização acelerada do sistema empresarial brasileiro”17.

O maior impacto dessa não modernização do parque industrial brasileiro está no baixo padrão de investimento tecnológico das mercadorias produzidas no país. De modo geral, as grandes empresas brasileiras buscaram um ‘enxugamento’ da produção com abandono de linhas de produção de maior desenvolvimento tecnológico por produtos com menor valor agregado, fruto do baixo investimento em tecnologia.

A partir dos anos de 1980, o conceito de desenvolvimento como política de Estado perde espaço para as políticas de austeridade fiscal e monetária propagadas pela síntese neoliberal. O recuo do Estado, como agente organizador e propagador do processo de

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desenvolvimento industrial, repercute na desaceleração dos investimentos industriais e, em alguns setores, até na redução do nível industrial.

A síntese neoliberal impõe uma falsa verdade de que o público é ineficiente e o privado eficiente e, com isso, abre espaço, principalmente, nos anos de 1990 a um processo de privatização de empresas públicas. A justificativa para tal defesa era a crença no crescimento econômico de forma natural nas sociedades de livre comércio.

Contudo, a experiência de mais de duas décadas de austeridade demonstram que essas medidas não foram capazes de garantir desenvolvimento econômico, político e social o que coloca o desafio de implementar políticas que recuperem o caminho do desenvolvimento econômico com distribuição de renda e melhoria do padrão de vida do conjunto da população brasileira. Conclusão

Ao longo da década de 1980 até 1994 a evolução da indústria

brasileira sofreu com um cenário macroeconômico de grande desequilíbrio fruto de diversos planos econômicos, mudanças no quadro institucional e ausência de uma nova política de industrialização que levou o Brasil a sofrer forte recuo nos seus índices de crescimento industrial.

Com a abertura econômica dos anos de 1990, fruto da crítica à política de substituição de importação implementada durante décadas, sem a criação de condições que contribuíssem para o aumento da competitividade de setores e empresas, somada ao processo de privatização acelerada, diversos segmentos industriais foram destruídos ou substituídos pelas importações crescentes.

Tendo como foco mais específico os governos Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva, fica clara a intenção de FHC, principalmente no primeiro mandato, de criar ambiente institucional favorável à atração de capital externo, a preservação da estabilidade econômica e a redução da presença do Estado. Já no governo Lula, apesar de se manterem as orientações macroeconômicas do seu antecessor, destaca-se um papel mais central do Estado na formatação de uma política industrial, principalmente com a criação de mecanismos de diálogo entre o Estado e o empresariado para a formulação da política industrial.

A partir dos anos de 1990 o Brasil consegue a estabilidade da moeda, e a inserção da economia nacional no processo de mundialização ocorre de maneira mais forte. Nesse contexto, a necessidade de organização de uma nova orientação de política

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industrial se coloca como fator destacado para uma inserção soberana do Brasil na economia mundial.

Essa inserção soberana na economia mundial depende da capacidade do Estado de organizar políticas dialogadas entre os diversos atores sociais envolvidos no processo produtivo e no aumento da competitividade das empresas através da inovação tecnológica.

Enfim, a questão central para desencadear o processo de inovação é a necessidade de estimular novas combinações no processo produtivo para proporcionar o desenvolvimento. Essa questão é central para avaliar a política industrial no período proposto na ótica do aumento da competitividade das empresas a partir da inovação.

Para garantir esse aumento de competitividade das empresas torna-se indispensável propagar a produção de ciência e tecnologia no processo produtivo. Historicamente, o conhecimento científico no Brasil se desenvolveu nas universidades públicas e, ao contrário dos países desenvolvidos, a indústria brasileira não empregou grandes esforços para desenvolver laboratórios de pesquisa dentro das empresas, o que sempre se demonstrou uma importante fragilidade da indústria privada nacional.

Sendo a universidade o principal “locus” de produção de conhecimento científico, a constituição de políticas que objetivam a inovação no Brasil passa, necessariamente, por desenvolver a interação universidade/empresa. Durante o segundo governo Fernando Henrique, algumas ações foram pensadas para suprir essa necessidade. Nesse sentido se destacam a publicação do Livro Verde: Ciência, Tecnologia e Inovação: Desafio para a sociedade brasileira, em 2000, e do Livro Branco: Ciência, Tecnologia e Inovação, em 2001, que culminaram com apresentação, no Congresso Nacional, do projeto de Lei de Inovação Tecnológica, em 2002, que só foi aprovado durante o governo de Lula.

Nesses documentos, o governo constata a necessidade de estimular a inovação como forma de aumentar a competitividade através do aumento da qualificação do trabalho, do estímulo à interação universidade/empresa, criando diversos fundos públicos de investimentos (Fundos Setoriais) e propõe a aprovação de uma lei de inovação, que tem como ponto central a flexibilização do trabalho do pesquisador das universidades, permitindo, assim, a possibilidade desse funcionário público desenvolver pesquisa diretamente nas empresas.

Contudo, vale ressaltar, que, pelas leituras realizadas até o momento, o alcance dessas medidas foram pequenas e isoladas, em particular, porque a coordenação das ações, que deveria ser do Estado, praticamente inexistiu. Dois fatores podem ser utilizados para

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explicar essa situação: o primeiro, o predomínio, no interior do governo, da ideia de que a intervenção do Estado na propagação do desenvolvimento industrial e tecnológico deveria ser pequena; o segundo, a crise econômica asiática do início dos anos 200018.

Notas de Referência

* Doutorando em História na UFJF e professor do CA João XXIII/UFJF sob a

orientação do Prof. Doutor Ignácio José Godinho Delgado. Email: [email protected]. Este trabalho é resultado do primeiro ano de pesquisa de Doutoramento no PPGH da UFJF sob orientação do prof. Doutor Ignácio José Godinho Delgado. 1 Vale destacar que nos anos anteriores a 1930 o Brasil passava por um

processo de industrialização incipiente, que impactava no crescimento urbano e no aparecimento de novos grupos sociais, em particular, de pequenos grupos proletários, de uma burguesia industrial e mais amplamente de uma classe média. Porém, a centralidade do poder estava nas mãos da oligarquia cafeeira, que prioriza as atividades agroexportadoras (IANNI, 2009). 2 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2ª ed.

Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.65. 3 Sobre essa posição de intervenção direta do Estado no processo de

industrialização defendido por Simonsen é necessário registrar que esse ponto sempre foi visto com ressalva por setores do empresariado brasileiro. Na Conferência de Araxá, realizada após a morte de Simonsen, a Confederação Nacional da Industrial (CNI) aprova resolução que afirma que caso seja necessário à intervenção estatal ela deva se dar de forma indireta. Ao longo dessa década as resoluções aprovadas aprofundam a posição de crítica à intervenção direta em todos os setores da economia, pois se acredita que a industrialização é prerrogativa da iniciativa privada. 4 Sobre a questão de progresso técnico, vale destacar, a posição defendida

por Celso Furtado, no livro “O Mito do Desenvolvimento Econômico”, que sustenta a ideia de que o desenvolvimento, tal como vem sendo praticado em escala mundial não pode ser universalizado. Para o autor, acreditar na hipótese de desenvolvimento universalizado é aceitar a noção do mito do progresso, considerado por ele como elemento central na justificativa da ideologia dirigente da revolução burguesa (FURTADO, 1974, p.16). 5 PREBISCH, Raúl. “Nova política comercial para o desenvolvimento” (1964).

In.: GURRIERI, Adolfo (org.) O Manifesto Latino-Americano e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto/Centro Celso Furtado, 2011, p. 498. 6 PREBISCH, Raúl. “Nova política comercial para o desenvolvimento” (1964).

In.: GURRIERI, Adolfo (org.) O Manifesto Latino-Americano e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto/Centro Celso Furtado, 2011, p. 499. 7 FURTADO, Celso. Raízes do Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Ed.

Civilização Brasileira, 2003, p.88. 8 FURTADO, Celso. Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. São

Paulo: Ed. Nacional, 8º edição, 1983, p.90.

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9 BRESSER PEREIRA, Luiz C. Desenvolvimento e crise no Brasil. São Paulo:

Ed. Brasiliense, 7º edição, 1977, p. 21. 10 Bresser Pereira destaca esse conceito de desenvolvimento no livro

“Desenvolvimento e crise no Brasil”, que teve sua primeira edição em 1968. Na introdução, escrita em outubro de 1967, o autor destaca, entre outras questões, a necessidade de saber como se define desenvolvimento e se ele ocorreu no Brasil. Sobre sua defesa de desenvolvimento como um processo interdependente de transformações econômicas, sociais e políticas é destacado que o objetivo do desenvolvimento é o “crescimento do padrão de vida da população”, que é cunhado como sendo diferente de aumento de renda per capita, que pode ocorrer de forma concentrada e não representar o aumento do padrão de vida da coletividade. 11 BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo

ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 5º edição, 2000. 12 DELGADO, Ignácio J. Godinho. “Desenvolvimento, Empresariado e Política

Industrial no Brasil”. In: MANCUSO, Wagner P., LEOPOLDI, Maria A. P., IGLECIAS, Wagner (orgs) Estado, empresariado e desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Editora de Cultura, 2010, p.110. 13 CANO, Wilson. “América Latina: do desenvolvimento ao neoliberalismo”. In.:

FIORI, José Luís (Org.) Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações. Petrópolis: Vozes, 1999, p.293. 14 FIORI, José Luís. “Estados, moedas e desenvolvimento”. In.: FIORI, José

Luís (Org.) Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações. Petrópolis: Vozes, 1999, p.72. 15 CASSIOLATO, José E. LASTRES, Helena M. M. “Arranjos e Sistemas

Produtivos Locais na Industria Brasileira”. Economia Contemporânea. Revista do Instituto de Economia Industrial da UFRJ. – V. 5, edição especial: O futuro da Industrial. – Rio de Janeiro, RJ: UFRJ, 2001. 16 CASTRO, Antonio Barros. “Brasil: O Desenvolvimiento Renegado”. In.:

CASTRO, Ana Célia, CASTRO, Lavinia Barros (orgs). Do Desenvolvimento Renegado ao Desafio Sinocêntrico. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2012, p.93. 17 CASSIOLATO & LASTRES, 2001, p.114. 18 DELGADO, Ignácio J. Godinho; ESTHER, Angelo Brigato; CONDÉ, Eduardo

Salomão; SALLES, Helena da Motta. Estudo Comparativo de Política Industrial: as Trajetórias do Brasil, Argentina, México, Coréia do Sul, EUA, Espanha e Alemanha. Volume 3 – Política Industrial: objetivos e instrumentos, 2008.

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“O preclaro brasileiro” — a memória perpetuada do jornalista José Carlos Rodrigues (1844-1923)

Julia R. Junqueira*

***

Mr. José Carlos Rodrigues […] until recently proprietor of the Jornal do Commercio, of Rio de Janeiro, died in Paris on June 28, aged 78. He would never accept political office, but on one or two occasions he undertook financial missions for the Brazilian Government. He had travelled much, and wrote various books, including one on the New Testament. He formed valuable art and archaeological collections. He married Jane Sampson, daughter of Mr. H. J. Dale, and one of his daughters is the wife of Sir William Garthwaite, Bt.1 Dr. José Carlos Rodrigues, a well-known Brazilian journalist, has died in Paris [...]. The interment will take place in London on Saturday next, and a service, at St. Margaret’s Church, Westminster, has been arranged for 10.30 a.m. on that day. […] He was a member of many scientific societies and the holder of several foreign decorations […] 2.

O telégrafo anunciou-nos, à hora de encerrarmos os trabalhos desta página, o falecimento, em Paris, do Dr. José Carlos Rodrigues. Dedicou o extinto, quase toda a sua vida ao jornalismo, não só aqui, como no estrangeiro, impondo-se ao conceito público pela elevação com que discutia os vários assuntos [...] 3. O dia foi ontem de luto para o jornalismo brasileiro com o desaparecimento de uma das suas personalidades mais eminentes, o Dr. José Carlos Rodrigues. Tendo chegado a diretor do Jornal do Commercio, cargo que exerceu por tão dilatado espaço de tempo, o Dr. José Carlos Rodrigues realizou a obra do remodelamento material do grande órgão, fixando-o na feição que hoje tem. E do ponto de vista moral soube conservar e transmitir intacto o valioso patrimônio que, para o país, representa o mais antigo e ponderado dos seus jornais [...]4.

Fenecer para reviver

Era uma quinta-feira, os dias já estavam mais quentes do que o

de costume, pois o verão parisiense havia começado há quase uma semana. Já se passavam das 15 horas daquele dia 28 de junho de 1923, quando, na rua de la Chaise, número 7, confirmou-se o passamento de um jornalista brasileiro5. Triste notícia transmitida aos periódicos no Brasil ainda naquela data pelo seguinte despacho: “Paris, 28 (Havas) — Faleceu o Dr. José Carlos Rodrigues”6. A partir do dia

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Julia R. Junqueira

100 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.8, Outubro de 2014

seguinte, a nota estaria estampada nas colunas de vários jornais, inclusive, estrangeiros, como se pôde acompanhar pela leitura de alguns trechos dessas publicações acima.

Mas o leitor deve estar se perguntando, quem seria de fato este tal jornalista José Carlos Rodrigues? Por que a notícia de seu falecimento é tão repercutida no Brasil e em outros países? E claro, por mera curiosidade: o que o teria levado a óbito?

O fluminense José Carlos nasceu em 19 de julho de 1844, em Cantagalo, especificamente na propriedade rural de seu pai, Carlos José, que fora um grande cafeicultor na região de Sertões do Macacu — importante zona produtiva de café na província do Rio de Janeiro em meados do século XIX. Devido ao falecimento prematuro de sua mãe, quando Rodrigues ainda tinha poucos anos, este e sua irmã foram para o Rio de Janeiro, ficando sob os cuidados de uma tia paterna. Na capital, José Carlos ingressou no Colégio Marinho e, mais tarde, transferiu-se para o reconhecido Imperial Colégio de Pedro II, aonde, ainda adolescente, chegou a publicar o seu primeiro jornal, chamado O Gentio. Com o término dos estudos secundários e não fugindo à regra da maioria daqueles que se formavam nessa escola, Rodrigues iniciou o curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de São Paulo e, nesta instituição, além de frequentar as aulas, fundou, em 1862, com o colega de academia do quinto ano, José da Silva Costa, a Revista Jurídica, um órgão doutrinário de jurisprudência e legislação. Além disso, escrevia para dois periódicos, o Correio Paulistano e o Correio Mercantil, sendo que neste, José Carlos era correspondente, uma vez que tal se localizava no Rio de Janeiro.

Formando-se, em 1864, o jovem bacharel retornou à capital do Império, onde iniciou seus trabalhos, como advogado, no escritório de advocacia do conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcelos. Tempos depois, foi convidado a ser ajudante do ministro João da Silva Carrão, que assumiu a pasta da Fazenda, em 1866, e que fora seu ex-professor de Economia Política na faculdade de Direito. Durante este período acabou acontecendo um imbróglio na trajetória de José Carlos, visto que o fluminense foi acusado de tentativa de estelionato quando exercia a função de oficial de gabinete no Ministério da Fazenda. Certamente este é um dos motivos que fez com que, em 1867, aos 23 anos de idade, Rodrigues tomasse a decisão de deixar o Brasil e partir para os Estados Unidos da América.

Logo quando chegou a Nova York, o cantagalense exerceu o ofício de tradutor e, um ano depois de já residir no território norte-americano, começou a atuar como correspondente do Jornal do Commercio. Mais tarde, fundou a revista mensal O Novo Mundo, na qual escreveram Varnhagen, Machado de Assis, Teófilo Braga, Cândido Mendes, Cristiano Ottoni, dentre outros. Com o fim dessa

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publicação, em 1879, Rodrigues tornou-se colaborador do The Nation e do New York World, ganhando certo reconhecimento nesta folha quando, através de um jornalismo investigativo, escreveu diversas críticas em relação à construção do Canal do Panamá enquanto esta obra era supervisionada pelo francês Ferdinand de Lesseps. José Carlos permaneceu em Nova York por um período de quinze anos, já que, a convite do conselheiro Manoel Gomes de Oliveira, transferiu-se para Londres, entre 1882-1883, para auxiliar o conselheiro a levantar capitais para a Estrada de Ferro Cantagalo. Durante os oito anos em que residiu naquela capital, o jornalista atuou como agente financeiro e prestou serviços ao governo do Brasil, intermediando negócios e empréstimos tanto para particulares como para o Estado brasileiro. Assim como aconteceu no decorrer de sua estada nos Estados Unidos, Rodrigues também colaborou para a imprensa londrina, especificamente nos jornais The Financial News, Pall Mall Gazette e para The Times. Além disso, em 1887, o brasileiro juntou-se com a inglesa Jane Sampson Dale, com quem teve duas filhas: Evelina e Janet.

Retornou ao país natal em 1890 e, em outubro desse mesmo ano, comprou e assumiu, com a preciosa intermediação de Eduardo Prado junto à família Villeneuve, a propriedade do Jornal do Commercio. Adquiriu o periódico em conjunto com mais 23 associados, ocupando-se dos cargos de gerente e de redator-chefe. Com a experiência adquirida em Nova York, José Carlos Rodrigues trouxe métodos modernos para a elaboração dos editoriais e importou linotipos, trazendo uma rapidez extraordinária ao processo de produção desse jornal. Além da atividade de jornalista, o cantagalense se ocupava com as tarefas de historiador, de bibliógrafo, de membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)7, de membro da Associação Cristã de Moços — primeiro YMCA8 na América do Sul —, de mordomo do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia e, ainda, exercia sua influência nos bastidores da política.

Pois bem, por meio dessa breve síntese sobre a trajetória de José Carlos Rodrigues, percebe-se que o jornalista foi um homem letrado presente nos diversos setores sociais de seu tempo, não somente no Brasil, como em outros países; e mais, estava à frente de um dos mais renomados periódicos do país. De certa forma, mesmo que sem problematizar sua trajetória, pois tal não é o foco deste texto, o leitor pôde compreender um pouco quem foi José Carlos, porque ele é tão bem apresentado nas notícias jornalísticas que abrem esse texto, assim como a grande repercussão da notícia de seu falecimento.

Já a resposta para aquela terceira pergunta no início deste tópico é mais elementar: há algum tempo, José Carlos reclamava de problemas renais e intestinais9, sendo, até mesmo, submetido a mais

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de uma cirurgia nos rins, a primeira ocorrida no Rio de Janeiro e, a segunda, em Paris, realizada pelo dr. Marion10. Segundo nota publicada no Jornal do Commercio, já nos últimos dias que antecederam a morte do periodista, ocorreram diversos acidentes com Rodrigues, provavelmente relativos às enfermidades citadas que agravaram a falta de resistência de seu organismo, consequentemente levando-o a falecer11. Apesar de a morte ter ocorrido em Paris, o velório somente aconteceu alguns dias depois, na capital inglesa, especificamente na igreja de Saint Margaret, localizada na distinta região de Westminster, sendo José Carlos sepultado no cemitério Highgate, também em Londres, como se pode constatar pela ilustração a seguir:

Lápide de José Carlos Rodrigues. Cemitério Highgate, Londres.12

Um discurso, uma memória

Obviamente, o prestigiado Jornal do Commercio, do qual José Carlos foi proprietário, não deixaria de transmitir a seus leitores aquela desgostosa notícia e, tão pouco, de realizar uma devida homenagem ao seu antigo jornalista, redator-chefe e diretor. Assim, no número 177, da folha de sexta-feira, de 29 de junho de 1923, na primeira página, além de várias colunas do periódico, não apenas se noticiava o falecimento do sr. dr. José Carlos Rodrigues, como também se fez um extenso perfil biográfico deste fluminense, que, segundo as palavras impressas no próprio jornal, era “um belo tipo de self-made man”13. A de se notar que a expressão foi igualmente utilizada pelos redatores d’O Paiz ao também publicar a notícia sobre a morte de Rodrigues:

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Os serviços prestados pelo Dr. José Carlos Rodrigues ao país foram de alta valia, não só como jornalista, como conselheiro de governos bons e encarregado de delicadas missões. Mas para todos nós fica sempre a sua grande lição de jornalista, que subiu pelo seu próprio esforço e como nenhum outro honrou a profissão e a tornou respeitável e respeitada14.

Ainda em relação à publicação no Jornal do Commercio,

salienta-se que aquelas colunas foram compostas por seis artigos, intitulados: “Dr. José Carlos Rodrigues”, “O jornalista”, “O homem ativo — o financista”, “A direção do Jornal”, “A personalidade — a lição de energia” e, por fim, “A família”. Tais resumiram algumas passagens da trajetória do periodista, sempre enaltecendo suas realizações e, como em uma ilusão biográfica15, a imagem formada é de um José Carlos que, ao partir para os Estados Unidos da América, em 1867, parecia já ter traçado meticulosamente todos os seus caminhos, levando-o a “uma vida magnífica de esforços e de benefícios”16.

O mais interessante, em relação ao texto veiculado naquela antiga folha carioca, é perceber que em muitas dessas linhas há uma reprodução exata e maciça de um discurso realizado por José Carlos Rodrigues quando de sua despedida da direção do Jornal do Commercio, em maio de 1915. Ora, o jornalista, como homem de letras e conhecedor das tramas da memória, sabia da dimensão que tal fala, reproduzida de forma escrita e, assim, publicada17, poderia ter como parte do registro de sua memória e, neste sentido, deveria ser bastante delineada. A estratégia acabou muito bem sucedida, pois não apenas os seus antigos funcionários usufruiriam daquela alocução como alicerce para escritos póstumos, como também redatores de outros periódicos e futuros autores que se dedicaram a realizar um perfil biográfico de José Carlos. Nascia, assim, através daquela memória autobiográfica, o preclaro brasileiro:

Em torno do chefe que se despedia, legando a esta folha, como inestimável patrimônio moral, o nobre esforço de uma vida inteira, formaram ontem, numa perfeita identidade de sentimentos de grata e leal estima, todos os que se acostumaram a praticar-lhe os ensinamentos, num convívio diário, que era uma verdadeira escola nobilitadora dos labores jornalísticos. Essa escola, essa serena atmosfera de dedicação na defesa das causas justas, do bem coletivo, dos direitos e aspirações nacionais; esse ambiente de nítida compreensão da tarefa social da imprensa, que não é, somente, a de informar, senão também, e sobretudo, a de nortear pelo bom caminho a opinião pública — o preclaro brasileiro, em cinco lustros de direção, soube tornar, aqui, uma resultante dos atributos de sua poderosa individualidade de lutador e de sábio18.

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Como resssalta a escritora argentina Beatriz Sarlo, ao exercício de uma narração — testemunhos, histórias de vida, dentre outras —, emana-se uma experiência que se encontra longe de sua exata temporalidade, ameaçada, desde o seu primeiro instante, pela passagem do tempo, isto é, o ato de narrar se sujeita aos ditames da lembrança. E, por isso, é evidente que nestas vicissitudes da memória autobiográfica, o narrador não apenas, a partir do seu ponto de referência, o presente, se perde no jogo da lembrança, como também se emuduce de forma proposital19. Artifício do qual José Carlos Rodrigues apropriou-se e soube articular arguciosamente em seu discurso de despedida daquele órgão carioca, narrando apenas as passagens de sua trajetória que gostaria de ressaltar nos seus setenta anos vividos até a data do mês de maio de 1915. Ali, no salão nobre do Jornal do Commercio, diante de seus colegas de redação e demais funcionários, com palavras bem sobrepospostas, o fluminense encaminharia as linhas que o caracterizariam como um ilustre brasileiro.

Logo, já nos primeiros parágrafos, José Carlos enfatizou a honra de estar à frente, por vinte e cinco anos, daquela conceituada folha, consequência de sua trajetória jornalística, iniciada, segundo o orador, ainda nos primeiros anos da adolescência, quando publicou o seu primeiro jornal. Pois bem, de acordo com Rodrigues, a partir daquela ocasião, o periodismo estaria sempre presente na sua trajetória de vida e, mesmo durante os anos de formação em Direito, aquela ocupação despertaria mais interesse do que a de bacharel.

Em um terceiro momento da alocução, sem mencionar o motivo que o teria levado a migrar, o fluminense ressaltou as dificuldades ao chegar à América do Norte e que tais foram contornadas principalmente por seu labor como jornalista, atividade que, conforme o próprio, o consagrou naquele país e que lhe proporcionou uma ampla rede de relações sociais. Para corroborar a afirmação, o cantagalense elencou uma lista de nomes ilustres e de periódicos, dentre aqueles, a de ex-presidentes estadunidenses, de conceituados diretores e redatores da impressa americana, e de cientistas e pesquisadores. Nas linhas seguintes, descreveu sua mudança para o velho continente, especificamente para Londres, onde apesar de ocupar-se de assuntos financeiros, o jornalismo não teria ficado de lado, uma vez que também colaborou com a imprensa desse país. A de se ressaltar que, nessa passagem do discurso, José Carlos, assim como vinha encaminhando sua fala, enfatizou apenas sua trajetória profissional, sem aludir a sua vida privada, como por exemplo, sem referir-se a inglesa Jane Sampson Dale, com quem teve duas filhas.

Por fim, inclusive como um elemento de ligação com os parágrafos precedentes, o periodista narrou minuciosamente como

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adquiriu a propriedade do Jornal do Commercio, não deixando de realçar que aquela aquisição somente teria se efetivado devido ao seu percurso profissional, ao seu árduo labor: “[...] Foi, pois, pelo trabalho que me elevei. Não forcei portas, não saltei pelas janelas escusas de uma casa onde não tivesse, pelo meu tirocínio, entrada franca [...]”20.

Não é demais lembrar que, até o momento, esse discurso autobiográfico foi a única fonte localizada em que o fluminense fez um resgate de sua trajetória de vida, de tal modo que essa alocução fosse usada densamente, sem certo crivo, como subsídio para que alguns de seus contemporâneos e biógrafos perpetuassem uma memória, de alguma forma, já elaborada pelo próprio José Carlos Rodrigues. É o caso dos escritores Elmano Cardim e Charles Anderson Gauld, por meio das seguintes obras, respectivamente, “José Carlos Rodrigues: sua vida e sua obra” e “José Carlos Rodrigues. O patriarca da imprensa carioca”21.

Assim como o cantagalense se calou diante de algumas passagens de sua trajetória, na qual deveria sobressair o “homem de imprensa”22, detentor de múltiplos conhecimentos e funções, Cardim também o fez e seguiu quase que a mesma abordagem delineada por seu biografado, exceto por alguns acréscimos realizados. Esse enfoque pode ser percebido pela própria distribuição dos dez tópicos em seu artigo, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, por ocasião da conferência realizada pelo autor, no IHGB, em 5 de setembro de 1944, na sessão solene comemorativa ao centenário de nascimento de Rodrigues. São eles: “O triunfo de um grande trabalhador”, “O jornalista brasileiro nos Estados Unidos”, “O profeta do Canal do Panamá”, “A conquista de Londres”, “A direção do Jornal do Commercio”, “Doutor dos testamentos e dos evangelhos”, “O grande idealista”, “Bibliófilo e erudito”, “Benemerência e filantropia” e, por fim, “O compromisso com o Instituto Histórico”.

Charles Gauld também organizou o seu texto sobre José Carlos de forma que se sobressaísse à figura do jornalista eminente, todavia, este autor foi um dos poucos a imergir na vida privada de Rodrigues, inclusive mencionando a família inglesa deste. E mais, mesmo que de forma bastante parcial, visto que coloca sob os seguintes termos — apenas como um “ato imprudente”23 —, chegou a se referir à tentativa de estelionato que o cantagalense cometeu, em 1866, quando era oficial de gabinete no ministério da Fazenda. No entanto, os comentários em relação a tal fato se resumiram a essas duas palavras, sem nenhum aprofundamento do episódio.

Deste modo, não é difícil constatar que em muitas dessas abordagens biográficas — narrativas que tinham como objeto a trajetória de vida de José Carlos, ou pelo menos parte dela —, independente de terem sido realizadas por seus biógrafos ou

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contemporâneos do jornalista, havia a intenção de ressaltar o cantagalense como um mecenas, um protetor das artes, um homem de letras, um cristão, um financista e economista, um estudioso da bíblia e um indivíduo que, apesar das proximidades com o poder, nunca aceitara um cargo público e nem eletivo. Portanto, para aqueles escritores e colegas de profissão, nada seria mais justo que o elevar como um ilustre:

[...] Trabalhando sem desalentos, revesavam nele o jornalista, o historiador, o geógrafo, o bibliólogo, o economista, o financista, o homem de letras, o crítico de arte. A um espírito assim tão poderoso, a uma influência tão dominadora pelo prestígio próprio e pelas relações que o procuravam, dentro e fora do país, era natural que os Governos recorressem, cometendo missões de vulto excepcional, tarefas que exigiam uma competência provada, um desinteresse pessoal robustecido pelo desejo real de ser útil a seu país [...]24.

É, neste sentido, que os redatores daquele prestigiado órgão da

imprensa carioca, no número do dia 29 de junho de 1923, discorreriam sobre um José Carlos sem fraquezas, medos ou angústias, visto também que esse tipo de abordagem se torna comum diante da notícia de um falecimento. Assim, o leitor desse periódico guardaria em sua lembrança a imagem de um homem entusiástico, que soube com maestria conduzir sua trajetória: no início, cheia de obstáculos, principalmente na transição do país natal para Nova York, mas que, com sabedoria e dedicação ao trabalho, colheu bons frutos na América do Norte e do outro lado do Atlântico, tendo seu ápice profissional com a aquisição do renomado Jornal do Commercio, do qual esteve à frente por mais de vinte anos. Considerações finais

Todavia, talvez sejam nessas palavras tão apaixonadas e bem infligidas nos artigos publicados nos periódicos e, até mesmo, nos textos de seus biógrafos, que o historiador se desperta e, se indagando sobre as incongruências de uma história de vida resgatada de forma tão linear, percebe que há ainda muito que revisitar no passado de um indivíduo que, sem dúvida, foi um personagem chave para a política brasileira do final do regime imperial e das primeiras décadas republicanas, mas que também possivelmente caminhou por trilhos tortos e terrenos acidentados. E aqui, parafraseando Ilmar Rohloff de Mattos25, vale a pena praticar uma simples, mas importante reflexão: ao exercício de uma narrativa histórica não se modifica o passado, isto seria algo inexequível, apenas modifica-se o conhecimento que dele possuímos, lançando um novo olhar a partir de nossas interrogações e

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inquietações. E, portanto, sabendo dessas limitações intrínsecas ao conhecimento de uma história de vida, que o historiador/biógrafo não deve ter a pretensão em abarcar de forma integral a trajetória de um indivíduo, algo indubitavelmente impraticável.

Do mesmo modo, no jogo da memória com a história, a de se acrescentar que, mesmo conhecendo as tramas daquela, como se demonstrou nos parágrafos precedentes, o historiador não necessariamente precisa descartá-la como se tal personificasse o avesso, a oponente da história, colocando-as em um espaço dicotômico. Ao contrário, como nos faz refletir François Hartog, a memória também se insere no território do historiador e este não se encontra excluído do campo da memória26. A própria consciência dos limites que ambos requerem para a construção de uma narrativa, na qual o enfoque é uma biografia histórica, já constitui uma ferramenta importante em que uma não seja anulada em detrimento da outra. Por isto, ao construir um conhecimento sobre uma história de vida, não necessariamente precisamos anular a memória desta trajetória. Com certeza, a partir de um olhar crítico, esta pode ser bastante útil até mesmo para a narrativa que se propõe, não somente apenas para compreender a imagem que se formou do biografado, mas principalmente porque, através dessa representação, tornam-se possíveis ulteriores perguntas e que se enfoque novos conhecimentos por meio de outro espaço a ser ocupado: o silenciado pela memória. Notas de Referência

* Doutoranda em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob a orientação da prof. Drª. Lucia Maria Paschoal Guimarães. Pesquisa com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]. 1 The Times, Londres, 03/07/1923. Tradução livre: “O Sr. José Carlos Rodrigues [...] até recentemente proprietário do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, morreu em Paris, em 28 de junho, aos 78 anos de idade. Nunca aceitou um cargo político, mas em uma ou duas ocasiões, empreendeu missões financeiras para o governo brasileiro. Viajou muito e escreveu vários livros, incluindo um sobre o Novo Testamento. Formou coleções valiosas de arte e de arqueologia. Casou-se com Jane Sampson, filha do Sr. H. J. Dale, e uma de suas filhas é a esposa de Sir William Garthwaite, Barão”. 2 Recorte de jornal desconhecido noticiando o falecimento do jornalista brasileiro José Carlos Rodrigues, s/d. Biblioteca Nacional, coleção Christopher Oldham, localização: 32,04,001 nº 059. Tradução livre: “Dr. José Carlos Rodrigues, renomado jornalista brasileiro, morreu em Paris [...]. O sepultamento será realizado em Londres, no próximo sábado, sendo o velório, na Igreja de St. Margaret, Westminster, às 10:30 do mesmo dia. [...] Era

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membro de várias sociedades científicas e detentor de várias comendas estrangeiras [...]”. 3 A Noite, Rio de Janeiro, 28/06/1923. 4 O Paiz, Rio de Janeiro, 29/06/1923. 5 Cf. Extrato das minutas da ata de óbito atestando o falecimento de José Carlos Rodrigues a 28 de junho de 1923, datado de 29 de junho de 1923. Biblioteca Nacional, coleção Christopher Oldham, localização: 32,04,001 nº 78. 6 A Noite, 28/06/1923. 7 José Carlos Rodrigues foi eleito, em 1907, sócio correspondente do IHGB, passou a honorário em 1914 e a benemérito em 1917. Cf. Dicionário biobibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Sócios falecidos entre 1921-1961. Volume 3. Rio de Janeiro: IHGB, 1993, p. 136. 8 Young Men’s Christian Association. 9 Cf. RODRIGUES, José Carlos. Apontamentos sobre os problemas de saúde que tem sofrido e o tratamento realizado pelos médicos, s/d. Biblioteca Nacional, coleção Christopher Oldham, localização: 32,04,001 nº 079; e _____. Relato, em francês, da evolução dos problemas renais e intestinais, datado de 1923. Biblioteca Nacional, coleção Christopher Oldham, localização: 32,04,001 nº 070. 10 Cf. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 29/06/1923. 11 Cf. Ibidem. 12 Fonte: Peter Zmajkovic. Disponível em: <http://www.panoramio.com/photo/21068466>. Acesso em 02/01/2013 13 Indivíduo que obteve sucesso ou riqueza através de seu próprio esforço, Cf. Oxford. Advanced learner’s dictionary. 7ª ed. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 1378. Sobre a publicação, ver Jornal do Commercio, 29/06/1923. 14 O Paiz, 29/06/1923. Grifos meus. 15 Aqui, remeto-me ao célebre texto — “A ilusão biográfica” —, originalmente publicado em 1986, do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que criticou árduamente as biografias que insistiam na ideia de um indivíduo com uma trajetória linear, na qual não havia espaço para as contradições, as angústias e as fragmentações do biografado. Cf. BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.). Usos e abusos da história oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 183-191. 16 Jornal do Commercio, 29/06/1923. 17 Cf. Despedidas do Dr. José Carlos Rodrigues da direção do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1915. O exemplar utilizado para a apreciação encontra-se na Biblioteca Nacional, coleção Christopher Oldham, localização: 32,04,002 nº 003. 18 Ibidem, p. 31. Grifos meus. 19 Cf. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p. 25 e 58-59. 20 RODRIGUES, José Carlos. “Alocução do Dr. José Carlos Rodrigues”. In: Despedidas do Dr. José Carlos Rodrigues da direção do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 58.

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21 Cf. CARDIM, Elmano. “José Carlos Rodrigues: sua vida e sua obra”. RIHGB. Rio de Janeiro, (185):126-157, out./dez., 1944; e GAULD, Charles Anderson. “José Carlos Rodrigues. O patriarca da imprensa carioca”. Revista de História. São Paulo, (16):427-438, 1953. 22 Apesar de José Carlos Rodrigues não usar tal termo em seu discurso, é nítido, através de sua fala, que essa era a característica a ressaltar. A expressão foi usada por um autor desconhecido, que introduziu a alocução de Rodrigues na obra publicada — Despedidas do Dr. José Carlos Rodrigues da direção do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 33. 23 Cf. GAULD, Charles Anderson. Op. cit., p. 428. 24 Despedidas do Dr. José Carlos Rodrigues da direção do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 34. 25 Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. 2ª ed. São Paulo:

Hucitec, 2011, p. 15. 26 Cf. HARTOG, François. “Memória, história, presente”. In: _____. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução de Andréa Souza de Menezes... [et. ali.]. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 160.

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Libertas e ingênuos, ou, mães e filhos nos processos de tutela? (Rio de Janeiro, 1880-1890)

Patricia Urruzola*

Nesta apresentação, preocupamo-nos exclusivamente, em

perceber a especificidade da aplicação da legislação orfanológica e da Lei do Ventre Livre nos casos que envolveram a disputa pela tutela de filhos de ex-escravas no Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara, tornando mais frágeis os laços familiares entre ex-escravas e seus filhos.

A leitura de determinadas ações de tutela permitiu a visualização do Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara tal qual uma arena onde libertas e ex-proprietários disputavam entre si a guarda de ex-ingênuos. 1 Verificamos também que locatários de serviços de ex-escravas recorreram ao Juízo solicitando a tutela dos filhos de suas alugadas. Em alguns processos desse último grupo, é possível identificar certo interesse dos suplicantes em ter acesso à mão-de-obra com custos inferiores em relação ao aluguel ou compra de um escravo valendo-se do recurso da tutela.

Também constatamos o movimento que pais, padrinhos e tias fizeram em direção ao Juízo. Nesses casos, o Juízo de Órfãos e Ausentes funcionou como um espaço para resolução de questões familiares. Há situações em que a mãe, quando de posse do filho, foi acusada por parentes de incapaz de prover o sustento e a educação do menor. Ou então, momentos em que pais e padrinhos recorreram ao Juízo a fim de suplicarem a tutela dos menores ainda sob a guarda de ex-proprietários no pós-abolição.

Durante o Império, a legislação que versava sobre a tutela estava assentada nas Ordenações Filipinas.2 Foi com base nas Ordenações que Pereira de Carvalho elaborou as Primeiras Linhas sobre o Processo Orphanologico. Nesta obra, o autor registra a jurisprudência dos tribunais superiores, até o ano de 1878, incluindo discussões sobre o direito civil pátrio com aplicação ao Juízo de Órfãos.3

As formulações apresentadas no Livro 4, Tit 102 das Ordenações sob o título de “Dos tutores e curadores que se dão aos órfãos”, referem-se à tutela de órfãos e menores de vinte e cinco anos, considerando os casos em que o tutor é nomeado ou não em testamento. Nas Ordenações Filipinas não há referência à tutela de menores pobres, embora no início do Tit 102 se diga que “o Juiz de Órfãos terá cuidado de tutores e curadores a todos os órfãos e menores”. O que se verifica com a leitura do título é que a atenção estava focalizada nos menores com posses e a preocupação é que o

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Juiz garantisse que o tutor designado salvaguardasse os bens do tutelado.4

Dedicaremos boa parte de nossa análise aos candidatos a tutores e, por isso, é interessante compreender os tipos de tutoria que eram possíveis. Os tutores eram nomeados pelo Juízo de Órfãos e poderiam ser testamentários, legítimos ou dativos. Os tutores testamentários eram aqueles nomeados por testamento; os legítimos eram os nomeados na falta ou por incapacidade dos testamentários e os dativos eram nomeados pelo Juiz, diante da falta ou incapacidade de uns e outros. 5

Os tutores que são partes nas ações tutelares pesquisadas e que estão em disputa pela guarda dos ex-ingênuos são, em maioria, tutores dativos. O tutor dativo era designado pelo juiz por ser “um homem bom do lugar, abonado, discreto, digno de fé e pertencente”. 6 Neste sentido, ao que tudo indica, os ex-proprietários e os locatários dos serviços dos menores e de suas mães pareciam adequar-se às exigências da Legislação Orfanológica, tendo em vista o expressivo número de ex-proprietários e locatários que conseguiram para si o direito de tutelar os filhos de ex-escravas.

A legislação também se referia àqueles que não poderiam exercer a tutela. A inabilidade para o exercício da tutela poderia resultar da incapacidade física, da incapacidade moral ou do justo receio.

Os inábeis por incapacidade física eram os surdos; os cegos; os mudos; os enfermos; e, os velhos.

Dentre os considerados “inábeis pela capacidade moral” estavam os menores; as mulheres; os religiosos; e, os escravos. Quanto às mulheres, havia uma ressalva em relação às mães e às avós, pois, o amor e o afeto dedicados aos filhos e netos supriria a incapacidade. 7 Veremos que essa ressalva foi, em muitos dos casos, negligenciada no caso das mulheres libertas.

Entre os inábeis por justo receio estavam os poderosos;8 os inimigos do pupilo; os que tinham bem em comum, ou a confirmar com ele; os que voluntariamente se ofereciam; os que o pai excluiu voluntariamente; os padrastos do pupilo; e, os pobres. Com relação aos pobres, também há uma ressalva a se fazer. De acordo com a legislação, semelhantes tutores não teriam como empregar tempo para assegurar a própria subsistência e cuidar da administração dos bens do pupilo. Os pobres poderiam ser admitidos pelo Juiz como tutores desde que fossem honestos, dignos de fé e bons administradores de sua pessoa e fazenda. 9

Aliás, aproveitaremos a definição de “pobre” presente nas Ordenações para explicar que quando nos referimos às mulheres pobres remetemo-nos àquelas que precisavam empregar tempo para assegurar a própria subsistência por meio do trabalho. Pelo que vimos

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Libertas e ingênuos, ou, mães e filhos nos processos de tutela?

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nos próprios termos tutelares consultados, a pobreza material foi tida nos Juízos de Órfãos como indicativo da incapacidade de as mães libertas criarem seus filhos. O julgamento da incapacidade atrelada à pobreza material estava presente em frases como “não tem recursos para cuidar e educar o ingênuo”, “dada a sua condição” ou “não tem recursos nem para si, que dirá para prover o sustento dos filhos”. 10

Esses argumentos podem ser notados na fala da ex-proprietária Maria Tereza Barradas que no Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara da Corte afirmou em 3 de setembro de 1888:

que tendo alforriado gratuitamente ha cerca de trez annos a parda Antonia de idade maior de quarenta e seis annos, ficando em companhia da suppe seus filhos Marieta parda de trez annos, Braz de nove annos e Basilia de seis annos ingenuos, havendo tambem alforriado gratuitamente o mais velho de nome Jacintho por ter annos de criação, e atenta a irresponsabilidade de irem para a companhia de sua mãi por não ter meios de subsistência, nem para si, morando em cortiço, e muito menos para seus filhos todos doentes e carecedores de serio tratamento vem requerer a V. Ex.ª haja de admittir a suppe, assignar termo de tutella d’elles para dar tratamento e educação necessarios; n’este sentido.11

Fica explícito o entendimento da ex-proprietária a respeito da

incapacidade de Antonia criar seus filhos associada à pobreza material. Maria Tereza Barradas atenta para a irresponsabilidade que seria deixar os filhos com a mãe, carente de meios de subsistência e moradora de cortiço.

Ao longo da leitura das ações tutelares verificamos certa diferença no trato dispensado às pessoas com posses e às pessoas pobres. Muitas mulheres com posses recorreram ao Juízo após o falecimento do marido para requererem a tutela dos filhos. Geralmente, a elas, o juiz solicitava apenas a apresentação de três testemunhas que comprovassem a capacidade em criar e educar os menores. Feito isto, estariam aptas a assinar o termo de responsabilidade pelos filhos.12

Em 1881, a viúva com posses Maria José Moreira recorreu ao Juízo solicitando a tutela dos seis filhos. O marido havia morrido e ela precisava cuidar dos bens dos filhos. Maria José apresenta em Juízo as testemunhas necessárias que atestaram sua capacidade para criar as crianças e sua honestidade. Em seu requerimento, Maria deixa transparecer o que para ela significavam os predicados de uma boa mãe: idoneidade, capacidade e mais predicados para dos bens e da educação dos filhos. Afirma viver em honestidade e ser muito bem considerada pelas pessoas que a conhecem. O Juiz se deu por

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satisfeito com os argumentos apresentados e a nomeou tutora dos filhos. O processo se resolveu em poucas páginas. 13

Já os processos que tiveram por requerentes mães ou avós pobres a situação era mais complicada, e, morosa também. Os processos iniciados por ex-escravas que solicitaram a tutela dos filhos para si são caracterizados por apresentação de testemunhas e pela apresentação de documentos tais como certidão de batismo e a carta de alforria. Os processos também são marcados por muitas idas das mães ao Juízo e por solicitações de vistas ao processo feitas por seus advogados. Toda a dificuldade percebida nas ações que tinham por suplicantes as ex-escravas talvez se explique porque a maioria era pobre; isto é, as libertas eram consideradas juridicamente inábeis por justo receio.14 Eram também mulheres, ou seja, consideradas inábeis por incapacidade moral.

Interessante notar a diferença crucial observada entre os processos de tutela que envolveram ingênuos e os que envolveram menores com posses. No primeiro caso, observamos que os menores eram dados à tutela mesmo que seus pais estivessem vivos. Por outro lado, os menores com posses tinham a tutela requisitada quando órfãos. Segundo Luciana de Araújo Pinheiro, a diferença pode ser notada considerando menores pobres em geral, independente da cor ou do vínculo com a escravidão. A situação tinha respaldo jurídico, pois, filhos de pais incógnitos ou de mães de maus costumes estavam sob a jurisdição do Juízo de Órfãos.15 Sabemos que havia boas chances de as mães ex-escravas serem consideradas de maus costumes. O simples fato de serem pobres e habitantes de cortiços as classificavam como pertencentes às classes perigosas.16

Voltemos atenção especial à Lei de 28 de setembro de 1871 que determinou em seu artigo 1º que “os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre.” Mas a lei não se resumiu a isso. Os filhos menores, até a idade de 8 anos, ficariam sob a autoridade dos senhores de suas mães, obrigados a “creal-os e tratal-os.” Quando a criança chegasse aos oito anos de idade, o senhor poderia optar em receber uma indenização do Estado no valor de 600$000 em títulos de renda mediante a entrega do ingênuo ou utilizar os seus serviços até os 21 anos de idade.17 Aos senhores também caberia criar os filhos das filhas das escravas tidos no período em que estivessem prestando serviços. A obrigação se extinguiria ao findar o período de serviços da mãe e caso ela falecesse, o proprietário poderia entregar a criança ao governo. Além disso, a lei previa a possibilidade de a mãe escrava alforriar-se. Neste caso, os filhos menores de 8 anos de idade lhe seriam entregues, exceto se ela desejasse deixá-los em companhia do ex-senhor. 18

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Bento Machado Corvello, negociante situado à Rua do Riachuelo, compareceu ao Juízo no dia 6 de junho de 1882 para suplicar a tutela do menor Álvaro, 5 anos, criado em sua casa. Aconteceu, todavia, que o marido da mãe de Álvaro também compareceu ao Juízo e apresentou ao juiz documentos que comprovavam o casamento com Paulina Maria:

Diz Aprigio Martins, que tendo como prova o documento sob nº 1, casado com Paulina Maria, escrava que fôra de D. Jesuína de Jesus Chaves Faria, ambos da Província da Bahia, antes deste casamento a dita sua mulher havia dado a luz (em 15 de agosto de 1877) um filho que foi batizado com o nome de Alvaro, como também prova o documento sob o nº 2 tendo sido a sobre dita sua mulher libertada em 1878, como se evidencia do documento nº 3. E porque o dito filho da mulher do suplicante exista em poder de Bento Machado Corvello, portugues, morador a Rua do Riachuelo nº 146, e conforme a Lei nº 2040 de 28 de setembro de 1871 art. 1 § 4, pertencia a sua mãe, e segundo consta agora ao suplicante, o dito Corvello e contra as leis naturaes e juridicas assignou termo de tutella do dito menor pelo cartório do Escrivão Dr. Archiades, com o fim único de privar a mulher do supplicante de ter em sua companhia o que tem de mais charo neste mundo – seu filho. Acrescendo ainda que o dito Corvello prohibe que a suppte veja o seu, e vivendo ele em mancebia com uma mulher, é por ella maltratado o filho da mulher do supplicante, para que isso não continue, o suppte não duvida (sic) assignar o termo de tutella do mesmo menor. Se a V.Exa. haja por bem mandar tomar termo de tutella e que se passe o mandado de entrega do referido menor ao supplicante. 19

Em 24 de abril de 1882, Aprígio retornou ao Juízo citando

novamente da lei de 1871 e indicando para a ilegalidade do fato de Alvaro permanecer em poder do negociante baseado no o art. 1 § 4º da Lei: “Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores de oito annos, que estejam em poder do senhor por virtude do § 1º, lhe serão entregues, exceto se preferir deixal-os, e o senhor annuir a ficar com elles.” 20

Diante da intimação para comparecer ao Juízo, Bento nomeou o advogado Luiz Fortunato para representá-lo. O advogado pediu vistas ao processo e anexou seu parecer. Segundo o advogado, a interpretação dada por Aprígio à lei estava inadequada. Para Luiz Fortunato, Bento foi nomeado tutor de Alvaro tendo em vista que

Sua mãy he inhabil para o ter, tractar e educar por falta de meios, e por sua conducta, mesmo casado, tanto que ambos, marido e mulher tem-se visto na necessidade de mudarem de residencia por determinação das respectivas autoridades (ilegível). O suppte não tem officio nem

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beneficio, nem meios conhecidos para se sustentar, quanto mais a família. 21

Aprígio não estava errado em sua interpretação da Lei de 28 de

setembro. A reforma de 1871 garantia à Paulina Maria o direito de ficar com o filho. Entretanto, o uso da legislação orfanológica com forte inspiração nas Ordenações Filipinas, a enquadrava na categoria dos incapazes por justo receio. Paulina, egressa do cativeiro, foi considerada pelo advogado Luiz Fortunado inábil para educar o filho por não ter meios de sustento. O Juiz Archias do Espírito Santo seguiu a interpretação feita pelo advogado e o menino permaneceu sob a tutela do negociante Bento Machado Corvello.

Considerando a especificidade das ações de tutela analisadas, a Lei do Ventre Livre e a legislação orfanológica vigentes no Império, pensamos que por mais que os ex-proprietários e os locatários de serviços saíssem à frente na disputa pela guarda dos ingênuos, fosse pelo poder aquisitivo, pela influência na sociedade, ou, por reunirem os qualitativos exigidos pela legislação; as mães, pais, tias e padrinhos também saíram em defesa dos seus direitos e dos menores no Juízo de Órfãos. Nos processos de tutela em que as libertas reivindicaram para si a tutela dos filhos, fica claro que a ação tutelar representava um meio para que pudessem afirmar a dignidade e a condição de liberdade. Esse é o caso das irmãs Benvinda e Ignez.

Dias após a abolição, em 28 de maio de 1888, Benvinda Maria da Conceição, mãe das gêmeas Júlia e Julieta; e, Ignez Maria da Conceição, mãe de Margarida, compareceram ao Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara da Corte para reclamar as filhas, que estavam em poder da ex-proprietária que se recusava a entregar-lhes as meninas. Em cumprimento à convocação do Juiz, D. Edeltrudes compareceu ao Juízo em 30 de maio de 1888 e declarou que

“as pretas Ignez e Benvinda, mães das menores Júlia, Julieta e Margarida, não têm a capacidade necessaria para pretender a função de educadoras das mesmas, porquanto além de não serem casadas e morarem em estalagem têm mau comportamento tendo uma d’ellas já sido intimada pela polícia (...).” 22.

Os argumentos apresentados pela ex-proprietária parecem ter

convencido o Juiz e as meninas foram dadas à soldada à D. Edeltrudes. Não obstante, as mães não desistiram. Retornaram ao Juízo e alegaram viver “honestamente, conquanto sejam solteiras” e que tinham recursos para criarem as filhas. As suplicantes resolveram nomear um procurador para representá-las na disputa pela tutela das meninas. Apresentaram também testemunhas que confirmaram a honestidade e a capacidade de sustentarem e educarem as filhas com

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o trabalho de engomar e lavar para fora. Advogado e testemunhas enfatizaram o gosto pelo trabalho das requerentes. Sabemos que o ex-escravo teve por estigma o gosto pela ociosidade. Por isso, a necessidade de comprovar que o comportamento das libertas era o do apreço pelo trabalho. 23

Em 2 de junho, o Juiz Antonio Augusto Ribeiro de Almeida concluiu que as meninas fossem “dadas à soldada”. Só que diante do “respeitável despacho”, as mães não se conformaram e “por ser offensivo aos seus direitos” justificaram viverem honestamente do trabalho e terem condições suficientes para criar as filhas.

Assim, em 12 de junho, o processo chegou às mãos do Doutor Curador Geral de Órfãos, João Ferreira Gonçalves Lopes, que concluiu em poucas linhas que as suplicantes não podiam exercer a tutela de suas filhas por não serem mães legítimas. Os autos foram dados por conclusos em 20 de junho.

Acontece que Benvinda e Ignez não se conformaram mesmo com o desfecho. Retornaram ao Juízo em 20 de julho e requereram que fosse dada vista ao processo ao advogado. O advogado, por sua vez, elenca uma série de fatores a favor de suas clientes ressaltando as qualidades e a capacidade que tinham para a maternidade e a preferência que elas, mães naturais, tinham para a tutela das filhas.

Em 29 de setembro de 1888, o Juiz Antonio Augusto Ribeiro de Almeida pronunciou o último parecer no processo pela tutela das ex-ingênuas Júlia, Julieta e Margarida e deu por conclusos os autos. O Juiz considerou improcedente a justificação feita pelo advogado das suplicantes e concluiu que somente as mães legítimas poderiam exercer a tutela de seus filhos. Benvinda e Ignez eram mães naturais das meninas, mas Júlia, Julieta e Margarida não eram frutos de legítimo matrimônio. 24

No decorrer do processo, Benvinda e Ignez comprovaram a honestidade, a capacidade e o gosto pelo trabalho. No entanto, não haviam preenchido o requisito do casamento legítimo para pertencerem àquela sociedade, ainda inspirada nas Ordenações Filipinas.

Por fim, concluímos que as ações de tutela são reveladoras de aspectos chave para a compreensão das relações sociais e de poder estabelecidas na última década da escravidão na Corte.

Acompanhamos a ação de Aprígio solicitando a tutela do enteado. Neste processo, não temos informações detalhadas sobre os vínculos entre Bento, Aprígio e Paulina Maria. Não sabemos, por exemplo, se Paulina Maria estava alugada a Bento. Pensamos que o interesse de Bento em tutelar Álvaro pode ser revelador do quanto a escravidão estava arraigada naquela sociedade. A manutenção dos ex-ingênuos sob tutela representava a disponibilidade, para pessoas

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que não tinham escravos, de acesso à mão-de-obra com baixos custos, tendo em vista que os tutores comprometiam-se em prover a educação, alimentação, vestimenta, médico e botica aos tutelados. 25 Provavelmente, foi essa a realidade que motivou José Bonifácio a falar, em 18 de junho de 1888, que “proibiu-se a escravidão dos nascituros e os ingênuos ainda aí estão escravizados, sob a forma imoral e infame da tutela, e nesta exploração miserável entram homens de Estado”. 26

Temos também o caso de D. Edeltrudes, preocupada em manter sob sua tutela as filhas de suas ex-escravas. Neste caso, além da possibilidade de usar os serviços domésticos das meninas, a ex-proprietária poderia também querer manter sob sua tutela as mães e, talvez, valer-se dos serviços delas de acordo com seus interesses. 27

Aprígio e as irmãs Benvinda e Ignez não atingiram seus objetivos. Aprígio estava bem informado a respeito da Lei de 28 de setembro citando-a em Juízo. Talvez ele não tenha lembrado ou desconhecesse a legislação orfanológica. Nos dias que sucederam a abolição, as irmãs Benvinda e Ignez foram em direção ao Juízo requerer a tutela das filhas, afirmando “ser bem de seu direito”. Aprígio, Benvinda e Ignez deixaram registradas suas visões de liberdade: trabalhar mediante remuneração; constituir moradia independente; adentrar um juizado para defender direitos; e, sobretudo, defender a manutenção ou o restabelecimento dos laços familiares. O empenho de nossos requerentes não foi suficiente. Embora pudessem contar com a Lei do Ventre Livre e com a Lei Áurea Aprígio, Paulina Maria, Benvinda e Ignez estavam sujeitos às aplicações previstas na legislação orfanológica que os classificavam como inábeis por justo receio e inábeis por incapacidade moral.

No início do texto, nos referimos ao Juízo de Órfãos como uma arena. Por meio da leitura de processos como estes, concluímos que ex-proprietários estavam preocupados em re-significar as relações escravistas e reorganizarem a sua maneira as relações de trabalho dos ex-escravos. É provável que tentassem de alguma forma manter o poder de arbitrar as relações de trabalho similares às condições da escravidão. Estava em jogo também o domínio pela liberdade. Temos, portanto, uma intricada disputa em torno da liberdade: de um lado, interessados no poder de tutelar a liberdade das ex-escravas; de outro lado, ex-escravas em defesa do poder de exercer a própria liberdade e daquilo que consideravam por direito.

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Notas de Referência

* Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Orientadora: Profª Drª Cláudia Regina de Andrade dos Santos. E-mail: [email protected]. 1 O termo é utilizado em alguns processos para identificar o filho da ex-escrava nascido após 28 de setembro de 1871. Ao que tudo indica, ao conquistar a liberdade, a mãe tornava-se ex-escrava e seu filho ex-ingênuo. Maria Aparecida Papali também utiliza o termo. CF. PAPALI, Maria Aparecida. Escravos, libertos e órfãos. A construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2003, p. 16. 2 PAPALI, op. cit., 2003, p. 157. 3 CARVALHO, José Pereira. Primeiras linhas sobre o processo orfanológico.

Rio de Janeiro: B.L. Garnier livreiro editor, 1880. 4 Cf. Ordenações Filipinas, Livro 4 Tit. 102: Dos tutores e curadores que se dão aos órfãos. Conteúdo disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p994.htm. Grifos nossos. Cf.

AZEVEDO, Gislane Campos. A tutela e contrato de soldada: a reinvenção do trabalho compulsório infantil. In: História Social. Campinas, pp.11-36, 1996. 5 Definições baseadas em CARVALHO, op. cit., 1880, p. 8. Cf. PINHEIRO, Luciana de Araújo. A civilização do Brasil através da infância: propostas e ações voltadas à criança pobre nos anos finais do Império (1879-1889). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003, p. 93. 6 CARVALHO, op. cit., 1880, p. 23. 7 CARVALHO, op. cit., 1880, pp.63-66. Nas Ordenações Filipinas também

podemos verificar a menção àqueles que não poderiam exercer a tutela. Ver também: ZERO, Arethuza Helena. O preço da liberdade: Caminhos da infância tutelada. Rio Claro (1871-1888). Campinas: Unicamp, 2004. (Dissertação de mestrado). p. 91. 8 Neste caso, “poderosos” é uma referência aos “fidalgos de linhagem, os assentados nos livros de el-rei e os de solar”. Cf. CARVALHO, Op. cit., 1880, p. 68. 9 CARVALHO, Op. cit., 1880, pp. 69-70. 10 Cf. PAPALI, 2003, pp. 157-159. Ver também ZERO, op. cit., 2004, p. 92. e GEREMIAS, Patrícia Ramos. Ser “ingênuo” em Desterro/SC. A lei de 1871, o vínculo tutelar e a luta pela manutenção dos laços familiares de origem africana (1871-1889). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2005, PP. 87-89. Sobre o tratamento da historiografia dedicado às mulheres pobres, consultar: DIAS, Maria Odila Leite Silva. Mulheres sem história. In Revista de História. N. 114, 1983, pp. 31-45. 11 Arquivo Nacional. Acervo Judiciário. Ação de Tutela. Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara. Partes: Maria Tereza Barradas e Basilia. 1888, n. 3585, maço 182. Grifos nossos. 12 Cf. GEREMIAS, op. cit., 2005, p. 88. Consultar também ZERO, 2004, op.cit., pp. 69-70. 13 Arquivo Nacional. Acervo Judiciário. Ação de Tutela. Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara. Partes: Maria José Moreira. 1881, n. 803, maço 2291.

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14 Cf. PAPALI, op. cit., 2003, p.p. 39-40. 15 Cf. PINHEIRO, Luciana de Araújo. A civilização do Brasil através da infância:

propostas e ações voltadas à criança pobre nos anos finais do Império (1879-1889).Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003. (Dissertação de mestrado), p. 95. 16 Sobre classes perigosas ver: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril.

Companhia das Letras, 1996, pp. 20-29. 17 Cf. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 171. 18 Lei n. 2040 de 28 de setembro de 1871. Disponível em www.camara.gov.br A Lei do Ventre Livre também determinou a criação do Fundo de Emancipação; a legalidade da formação de pecúlio pelo escravo para adquirir a liberdade; livres os escravos pertencentes à nação, os escravos dados ao usufruto da Coroa, os escravos abandonados pelos proprietários; a matrícula de todos os escravos existentes no Império. Todos esses pontos associados à liberdade do ventre estremeceram as bases do sistema escravista, colocando em xeque o monopólio senhorial na relação com o escravo. 19 Arquivo Nacional. Acervo Judiciário. Ação de Tutela. Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara. Partes: Bento Machado Corvello e Aprígio Martins. 1882, n. 1226, maço 2299. 20 Lei n. 2040 de 28 de setembro de 1871. Disponível em www.camara.gov.br. 21 Arquivo Nacional. Acervo Judiciário. Ação de Tutela. Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara. Partes: Bento Machado Corvello e Aprígio Martins. 1882, n. 1226, maço 2299. Grifos nossos. 22 Arquivo Nacional. Acervo Judiciário. Ação de Tutela. Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara. Partes: Edeltrudes, Júlia, Julieta e Margarida. 1888, n. 2782, maço 139. Grifos nossos. 23 Sobre a ociosidade atribuída ao ex-escravo Cf. SANTOS, Cláudia Regina Andrade. Abolicionismo e visões da liberdade. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. vol. 1, p.50-61, 2007. 24 Cf. PAPALI, Maria Aparecida. A legislação de 1890, mães solteiras, pobres e trabalho infantil. In: Projeto História, São Paulo, n. 39, pp. 209-216, jul/dez. 2009. 25 Além da assinatura do termo de tutela, os tutores poderiam assinar também o termo de soldada, comprometendo-se a depositar mensalmente quantia determinada pelo Juiz em conta na Caixa Econômica Federal. 26 PATROCÍNIO, José. (Ministério da Cultura – Fundação Biblioteca Nacional). A campanha abolicionista. Versão digital disponível em: www.objdigital.bn.br. 27 Cf. FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade. São Paulo: Unicamp, 2006. Nesta apresentação, desenvolvemos os argumentos considerando os processos citados. A pretensão da pesquisa não é a de escrever uma história em que os ex-proprietários são retratados como interessados tão somente em valer-se do ingênuo como mão-de-obra escrava e, tampouco, pretende-se retratar as mães libertas como sempre preocupadas com o destino e bem estar de seus filhos. Houve casos de ex-proprietários que de fato cuidaram dos ingênuos, bem como há um processo em que a mãe é acusada pela própria filha de maus tratos. A ideia não é a de privilegiar um

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Libertas e ingênuos, ou, mães e filhos nos processos de tutela?

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ou outro agente histórico. Cf. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 16.

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Resumos | Abstracts

Entre histórias e memórias: Gonçalves Dias como ícone de identidade brasileira e maranhense

Andrea Camila de Faria

Resumo: O presente trabalho procura entender de que forma a memória do poeta maranhense Gonçalves Dias se formou e se consolidou destacando-o tanto no cenário nacional quanto no imaginário regional maranhense. Nesse sentido estamos trabalhando com as noções de identidade e memória, tendo em mente que a identidade e a memória de Gonçalves Dias estão mescladas à identidade brasileira que se construiu a partir do império e também a uma identidade maranhense que se quer ao mesmo tempo particular e nacional. Palavaras-chave: Gonçalves Dias, memória, identidade. Abstract: This study seeks to understand how the memory of the poet Gonçalves Dias from Maranhão has been formed and consolidated, highlighting he on both national scene and regional imaginary of the Maranhão. In this sense we are working with the notions of identity and memory, keeping in mind that identity and memory of Gonçalves Dias are merged to the Brazilian identity constructed from the empire and also an identity from Maranhão which wants to be at the same time private and national. Keywords: Gonçalves Dias, memory, identity.

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124 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.8, Outubro de 2014

Do Arena para o Olympia: “Upa, neguinho” e as transformações musicais na trajetória de Elis Regina

Andrea M. Vizzotto A. Lopes

Resumo: A partir das várias interpretações de Elis Regina para a canção Upa neguinho, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, discuto as mudanças em sua obra, entre 1968 e 1969, recuperando a sua trajetória no período e considerando os trabalhos realizados no exterior como importantes para entender essas transformações, em um cenário de reconfiguração musical no Brasil após a emergência do tropicalismo e em meio ao acirramento da repressão e da censura no Brasil durante o regime militar instaurado após 1964. Palavras-chave: Música Popular Brasileira; Indústria Fonográfica; Performance Vocal. Abstract: Upa neguinho (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri), was performed with great success by Elis Regina. I discuss the changes in their work, between 1968 and 1969, recovering her trajectory in this period and focusing on television programs’s that Elis made in another countries. I think they are important to understand her musical transformations in a scenario of Brazil’s musical reconfiguration after the emergence of tropicalism and with the intensification of repression and censorship during the military regime established after 1964. Keywords: Brazilian Popular Music; Phonographic Industry; Vocal Performance.

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ISSN 1414-9109 125

Marcha Hoje: o nascimento da República de Cabo Verde em 5 de julho de 1975

Artur Monteiro Bento

Resumo: O artigo aborda o discurso da proclamação e celebração da independência política de Cabo Verde, em 1975, focando, especificamente, um discurso político-social sobre a libertação colonial e seus principais combatentes, destacando, Amilcar Cabral, fundador do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). O estudo, cujo suporte teórico metodológico é a memória e história no encontro com a Análise do Discurso, busca construir bases sólidas para a institucionalização da República de Cabo Verde. Palavras-chave: Cabo Verde, Independência, Discurso. Abstract: The article deals with the speech of the proclamation and celebration of the political independence of Cape Verde in 1975, focusing on, specifically, a political speech-social on the colonial liberation and its main combatants, highlighting, Amilcar Cabral, founder of the African Party of Independence of Guinea and Cape Verde (PAIGC). The study, whose methodological theoretical support is the memory and history in the meeting with the Discourse Analysis, seeks to build solid foundations for the institutionalisation of the Republic of Cape Verde. Keywords: Cape Verde, Independence, Speech.

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126 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.8, Outubro de 2014

Fronteira, Espaço do Encontro: expansão territorial e aldeamento em Cachoeira de Itabuna (Bahia), século XIX

Ayalla Oliveira Silva

Resumo: Pensar a fronteira em Cachoeira de Itabuna, sul da Bahia, durante o século XIX, sob o prisma da historiografia especializada vigente, é pensá-la para além da noção de espaço geográfico. Por meio da perspectiva do encontro se empreenderá esforços no sentido de perceber aquela região, no contexto da expansão territorial Oitocentista como espaço da ação dos sujeitos, a saber: autoridades imperiais e religiosas, índios não aldeados e aldeados. Palavras-chave: Fronteira; Expansão territorial; Cachoeira de Itabuna. Abstract: Think the border waterfall Itabuna, southern Bahia, during the nineteenth century, through the prism of specialized historiography force, think it is beyond the notion of geographical space. Through the perspective of the meeting will undertake efforts to realize the region in the context of nineteenth-century territorial expansion as action space of the subjects, namely: imperial and religious authorities, not Indians settled in villages and settled. Keywords: Border; Territorial expansion; waterfall Itabuna.

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ISSN 1414-9109 127

A questão democrática na estratégia da resistência armada contra a Ditadura Militar: Os aportes do marxismo-leninismo para

a luta de classes no Brasil

Diego Grossi Resumo: A resistência armada contra a Ditadura Militar brasileira (1964-1985) ocorrida, grosso modo, entre 1968 e 1974, teve como perspectiva estratégica a construção de um governo democrático de novo tipo (de caráter socialista ou não), ampliando e rompendo com paradigmas da institucionalidade liberal. Tal concepção de democracia foi influenciada diretamente pelas colaborações político-teóricas do marxismo-leninismo, ideologia em expansão no mundo desde o final da II Guerra Mundial. Palavras-chave: Questão democrática; Ditadura Militar; Luta armada Abstract: The armed resistance against the Brazilian Military Dictatorship (1964-1985), occurred roughly between 1968 and 1974, had the strategic perspective to build a new kind of democratic government (socialist or not), expanding and breaking paradigms of liberal institutionalism. Such a conception of democracy was directly influenced by the political and theoretical contributions of Marxism-Leninism, ideology that has spread worldwide since the end of World War II. Keywords: Issue of democracy; Military Dictatorship; Gunfight

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128 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.8, Outubro de 2014

O decote, o Canhão e a Fila Negra – Possibilidades de Interpretação do Brasil em Diário Íntimo de Lima Barreto

Eliete Marim Martins

Resumo: Lima Barreto foi apontado pela crítica literária como um escritor de pouca preocupação estética, pois deixava resvalar muito dos seus dramas pessoais. Como parte desses apontamentos, Antonio Candido, analisando trechos autobiográficos do escritor, observa dados de criação estética em meio aos escritos pessoais. Partindo da observação de Candido, são analisadas três passagens de Diário Íntimo. Lima Barreto falava da sua vida e saltava para o coletivo. De maneira engajada, vestia o dado histórico de imagem e linguagem típicas da arte. Palavras-chave: História, Literatura, Crítica Literária Abstract: Lima Barreto was indicated by literary critic as a writer of less aesthetic concern, because allowed slip in many of his personal dramas. As part of these appointments, Antonio Candido, analyzing autobiographic excerpts from the author, observes creative aesthetic data between personal excerpts. As part of Candido’s observation, three excerpts are analyzed from ‘’Diário Íntimo’’. Lima Barreto used to talk about his life and went all the way thru the collective. In an engaged manner, impersonated the historic data about image and language so common in the arts. Keywords: History, Literature, Literary Critic

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ISSN 1414-9109 129

Páginas Revolucionárias: A Revista Che Guevara e a Defesa da Luta Armada e do Internacionalismo Latino-Americano na

Década de 1970

Izabel Priscila Pimentel da Silva Resumo: O presente trabalho busca analisar a revista Che Guevara, órgão oficial da Junta de Coordinación Revolucionaria (JCR), organização que reuniu quatro dos mais significativos grupos da esquerda armada na América do Sul na década de 1970. Publicada de forma irregular entre 1974 e 1977, a revista atuou como veículo de divulgação de propostas internacionalistas revolucionárias, que se inspiravam nas ideias de Che Guevara, considerado o maior símbolo da revolução sem fronteiras. Palavras-chave: Luta Armada – América do Sul – Revista Che Guevara. Abstract: This research is an analysis of the Che Guevara magazine, the official institution of the Junta de Coordinación Revolucionária (JCR), organ that met the most important groups of the revolutionary armed left in South America between 1974 and 1977. The magazine worked like a vehicle to disclose the proposals of the Socialist Internationals, that were inspired on Che Guevara's ideas, considered the biggest symbol of the revolution without borders. Keywords: Armed Struggle – South America – Che Guevara Magazine.

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130 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.8, Outubro de 2014

O Desenvolvimento como política de modernização do Brasil

Juanito Alexandre Vieira Resumo: Com o neoliberalismo as taxas de investimento econômico despencam no Brasil o que acarreta a ausência de uma política de desenvolvimento. Na recessão e instabilidade as empresas deixam de adotar estratégias de modernização baseada em inovação. Esta comunicação tem como objetivo apresentar resultados, preliminares, da pesquisa em andamento, que analisa as políticas industriais nos governos Fernando Henrique e Lula e as estratégias do Estado de estímulo à produção de Ciência, Tecnologia e Inovação para ampliar a pratica inovativa nas empresas. Palavras-chave: Desenvolvimento, Industrialização e Inovação. Abstract: With Neoliberalism the investment rates in Brazil deeply dicrease, which cause the absence of a development policy. In recession and instability companies cease to adopt strategies based on innovation. This communication aims to present preliminary results of the ongoing research that analyzes industrial policies during Fernando Henrique and Lula governments and the State strategies to encourage the production of Science, Technology and Innovation to expand innovative practices in companies. Keywords: Development, Industrialization and Innovation.

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ISSN 1414-9109 131

“O preclaro brasileiro” — a memória perpetuada do jornalista José Carlos Rodrigues (1844-1923)

Julia R. Junqueira

Resumo: Em maio de 1915, no Jornal do Commercio, José Carlos Rodrigues, através de um discurso autobiográfico, despedia-se desse periódico, que esteve sob a sua direção durante 25 anos. Por meio da alocução, o jornalista não apenas relembrou os tempos em que comandava um dos principais órgãos do país, mas também delineou o registro de sua memória. Pois bem, no presente texto se abordará como tal fala serviu de subsídio para que biógrafos perpetuassem uma memória já elaborada pelo próprio biografado. Palavras-chave: José Carlos Rodrigues — Jornal do Commercio — Biografia. Abstract: In May 1915, in Jornal do Commercio, José Carlos Rodrigues, in an autobiographical speech, bade farewell to the newspaper, which had been under his management for 25 years. In such speech, not only did the journalist recall the time he ran one of the major media outlets in the country, but also outlined the writing of his memoirs. The present paper will consider to what extent such speech induced biographers to perpetuate memoirs already outlined by the biography subject himself. Keywords: José Carlos Rodrigues — Jornal do Commercio — Biography.

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132 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.8, Outubro de 2014

Libertas e ingênuos, ou, mães e filhos nos processos de tutela? (Rio de Janeiro, 1880-1890)

Patricia Urruzola

Resumo: O presente trabalho apresenta resultados preliminares da pesquisa em desenvolvimento intitulada Faces da Liberdade Tutelada: Libertas e Ingênuos na última década da escravidão (Rio de Janeiro, 1880-1890). A proposta é compreender, por meio de ações de tutela, como as libertas, ainda em tempos do cativeiro, conquistaram direitos, atuaram em redes sociais informais e como afirmaram a liberdade em suas relações familiares, no trabalho e na sociedade em um período marcado por rupturas e continuidades. Palavras-chave: Libertas - Ingênuos - Tutela. Abstract: This paper presents preliminary results of research in development titled Faces of Freedom: Guardianship, ex-slaves and naive in the last decade of slavery (Rio de Janeiro, 1880-1890). The proposal is to understand, through actions of guardianship as liberated in their daily life, even in times of captivity, won rights, acted in informal social networks and freedom as stated in their family relationships, at work and in society in a period marked by ruptures and continuities. Keywords: Ex-slaves, naive, guardianship.

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Normas Editoriais

1. Só serão aceitos artigos de pós-graduandos e pós-graduados que tenham sido aceitos, apresentados e entregues de acordo com as regras estipuladas pela Semana de História Política da UERJ.

2. Será feita uma seleção entre os artigos enviados para a Semana de História Política, onde os contemplados terão seus textos publicados na Revista Dia-Logos. Os trabalhos serão apreciados por dois pareceristas, que poderão solicitar modificações nos artigos aceitos. Havendo disparidade nos pareceres, os artigos serão encaminhados a um terceiro parecerista. Será garantido o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação dos artigos. O Conselho Editorial compromete a não enviar artigos de orientandos para orientadores e direcionar os artigos de acordo com a especialidade do parecerista.

3. Os trabalhos devem ser enviados em arquivo digital para o e-mail da Semana de História Política divulgado no endereço eletrônico www.semanahistoriauerj.net, no qual deve conter título do trabalho, nome completo do autor, títulação, vínculo institucional, identificação do orientador (a), e-mail, telefone e endereço completo para correspondência. Também deve ser enviado duas cópias impressas empapel que não exibirão os dados de identificação do autor, para o endereço: Semana de História Política, Programa de Pós-Graduação em História/UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, 9º andar, bloco F, sala 9.037, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, CEP: 20550-900.

4. Os artigos devem ter a extensão máxima de dez laudas, digitados na fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 e margens de 2,5cm. As notas devem ser colocadas, numeradas, no final do texto. O arquivo deverá ser enviado no formato word. A revista não publica bibliografias.

5. Os artigos devem ser encaminhados de resumos (em português e inglês), com no máximo oitenta palavras e três palavras-chave (em português e em inglês). Caso a pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição esta deverá ser mencionada.

6. As citações com mais de três linhas deverão respeitar tabulação a 3,5cm da margem esquerdas, corpo 10, espaço simples. As

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Normas Editoriais

134 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.6, Outubro de 2012

citações com menos de três linhas deverão estar incorporadas, com aspas, ao texto.

7. As notas devem ser colocadas no final do artigo, com a seguinte apresentação:

7.1. SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p.

7.2. SOBRENOME, Nome. “Título do capítulo ou parte do livro”. In: Título do livro em itálico. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p.

7.3. SOBRENOME, Nome. “Título do artigo”. In: Título do periódico em itálico, cidade, vol. (fascículo, nº): 00-00, ano, p.

8. O número de artigos em cada edição será definido pelo Conselho Consultivo e pelo Conselho Editorial de acordo com a disponibilidade de verbas.

9. Os dados e conceitos emitidos nos artigos são de única e exclusiva responsabilidade dos autores. Os direitos autorais sobre os originais publicados são automaticamente cedidos à revista, ficando a mesma autorizada a republicá-la em diferentes mídias.

10. Cada autor receberá gratuitamente três exemplares do número da revista com o seu artigo.

11. Um mesmo autor não poderá publicar em duas edições consecutivas da revista.

12. Os autores serão notificados da aceitação dos artigos.

13. Serão desclassificados automaticamente aqueles artigos que não se adequarem às normas de publicação, incluindo os artigos cujos autores não se apresentaram na Semana de História Política (proponente de comunicação faltoso).