diabolus-desenho - léo pimentel (2011)
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Léo Pimentel Souto
http://amantedaheresia.blogspot.com
diabolus/desenho – léo pimentel souto
– brasília: instituto autonomia, 2011
um trítono em um diálogo
remix das imagens para capa: léo Pimentel
[2011]
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"sou "indesejável", estou com os individualistas livres, os que sonham mais
alto, uma sociedade onde haja pão para
todas as bocas, onde se aproveitem todas
as energias humanas, onde se possa cantar
um hino à alegria de viver na expansão de
todas as forças interiores, num sentido mais
alto – para uma limitação cada vez mais
ampla da sociedade sobre o indivíduo."
maria lacerda de moura
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um diálogo comum, duas ou mais pessoas falam e escutam intercaladamente.
marcia tiburi e fernando chuí assim se propuseram em seu projeto
diálogo/desenho. falaram e escutaram, mediante a troca de correspondências. a intenção
de ambos era a da troca de percepções, experiências e reflexões sobre a questão do
desenho. o resultado é fantástico. muito inspirador. porém...
em todo o momento de minha leitura, eu era tentação inquieta. sentia-me um terceiro
excluído. eu queria falar. ser um inturmão, como dizem. um intrometido. meter o nariz
onde não é chamado. mas... eis que de repente, não mais que de repente, saltei de minha
inquietação. saltei como um intervalo de três tons correspondente a uma quarta
aumentada. uma entoação difícil. um trítono – como os medievais diziam – saltei como
um “diabolus in musica”. insurgência diabólica. meti o bedelho bem no meio desseprofícuo diálogo. pura má educação; perturbação dos bons costumes. assim,
arbitrariamente, escrevi um diabolus/desenho. Já que o símbolo é aquele que une e o
diabolus aquele que separa, divide. dividi. sem permissão, omiti todas as
correspondências de fernando chuí. o silenciei para ficar em seu lugar. o silenciei para
ficar apenas com as escritas pela marcia tiburi. ah... belíssimas e inspiradoras idéias!
eis as minhas cartas às de marcia.
léo Pimentel, amante da heresia
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primeira [cor]respondência: diabolus/desenho – ou iniciando
outra conversa ... p. 07
segunda [cor]respondência: contra o eu-falo/eu-phalo ... p. 10
terceira [cor]respondência: hei de gravar em todas as
paredes esta acusação eterna contra o ... p. 13
quarta [cor]respondência: eis a carta sétima de tiburi ... p. 16
quinta [cor]respondência: defesa acirrada da personalidade
contra os ativistas da cultura espetacular ... p. 19
sexta [cor]respondência: e=m.c² ou o suporte do desenho ...
p. 21
sétima [cor]respondência: uma política do olhar enquanto
olho que vê a si mesmo ... p. 24
oitava [cor]respondência: a insurgência e a rebeldia de um
em-si-mesmamento ... p. 26
nona [cor]respondência: nesse ordenamento que uma
questão (sorrateira) nos espreita ... p. 28
décima [cor]respondência: percepção (pessoal e própria) e
representação (impessoal e cultural): como se relacionam? ...
p. 30
décima primeira [cor]respondência: quando o desenho, oesforço de olhar assemelha-se ao esforço de pensar ... p. 32
décima segunda [cor]respondência: desconfio de nós, olhos
atuais ... p. 34
décima terceira [cor]respondência: foi nesta tua carta que me
tornei diabolus ... p. 36
décima quarta e última [cor]respondência: esta como
experiência da terminalidade de todas as coisas ... p. 38
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I(primeira [cor]respondência)
marcia,
diabolus/desenho – ou iniciando outra conversa – se bem entendi, em sua
primeira correspondência, seu interesse (diálogo/desenho) é a relação entre pensamento
(lembrado enquanto teoria, ou ato da visão) e traço (um modo de ação da representação
pós-paixão – pathos, patologia). tal relação (genealogia do gesto) parte de sua percepção
pessoal (raríssima força que pensa de modo diverso) sobre o desenho (que não precisa
ser filosofia, mas é o primeiro ancestral da representação), onde todo pessoal é político
(campo de partilha de afetos, desejos e conhecimentos) e, como tal, também ético (uma
diversidade incrível de avaliações e justiça). o traço emerge como uma mínima ação
(indiferença prática sem orgulho de si) nessa direção – talvez enquanto apontamento que
alimenta e destrói paixões. e ele deve emergir como resultante de um apuramento (o
duplo movimento de deseducação e educação) do olhar (valioso não pelo seu resultado,produto ou causa, e sim pela sua dinâmica). o apurar deve suprimir (vingança duradoura
contra esquemas contrários ao ato criativo do desenho) a tentativa de se retirar o que
esconde o visível. retirada que está mais para uma fetichização do voyerismo (pêndulo
que oscila entre um novo negócio e um novo entretenimento) do que para a relação
erótica (vontade não arbitrária) com o próprio fetiche (superfície idílica). esse começo de
conversa é o que você nos oferece, como o esboço de um mapa geopolítico se
delineando a partir de seu modo de olhar (capaz de pisar em seus próprios rastros) o bem
dado a público: o olho que se vê olhando (o pensar reflexivo). no entanto, esse mapa
geopolítico pode, desde já, oferecer um grande obstáculo: a democracia (leito de morte dapolítica). para uma potente política do olhar, como você pretende, é preciso superar esse
“governo do cidadão (povo sob julgo de um estado – ditadura da maioria)”. uma boa dose
antidemocrática (oposição radical e completamente diferente da tirania) não lhe seria
nada mal. essa antidemocracia (talvez uma assembléia à exaustão – caracóis zapatistas)
emerge com urgência como ato político de libertação da liberdade: fazer com que ser livre
não mais signifique a escolha entre o traçar daqui-ali ou dalí-acolá dentro de qualquer tipo
de tutela, e sim agir na descontinuidade, no iniciar, no acontecer, no criar, no jogar.
esse primeiro itinerário (pois foi extraído apenas da primeira parte do livro) me dá o
seguinte à diabolar:
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relação entre pensamento e traço : forma de expressão. no caso dos antigos gregos, gesto
geométrico. a métrica do pensamento é o raio: dois pontos extremos (ponto: o que não
tem partes) e uma linha reta (métrica, medida) os unindo, onde um dos pontos permanece
fixo enquanto o outro se movimenta mantendo uma tensão na linha que os une (raio –
razão). portanto, eis a imagem do modo de raciocinar grego - o desenhar um círculo!
traço tenso como base do pensamento grego. assim surge a origem da filosofia:imaginemos que os pontos sejam duas idéias-bases (pré-conceitos) e sua
operacionalidade fosse o percorrer tenso de um dos pontos. o gesto crucial seria o de
absolutizar uma das idéias, tornando-a ponto fixo e relativizar a outra, tornando-a ponto
móvel (a que se colocará à prova o tempo que durar o percurso). a dupla somente teria a
pose de verdade universal (conceito) no momento em que, com ela, se conseguisse
desenhar um círculo perfeito (a figura geométrica por excelência dos gregos). no entanto,
essa razão geométrica saiu da grécia e se espalhou por toda a europa. nisso a tensão
entre dois pontos sofreram perturbações. uma delas levou o círculo perfeito a uma
segunda imagem métrica de raciocínio, o gesto geométrico moderno (ou sua
potencialização absoluta: o pós-moderno): a esfera de riemann – revolução no raciocinar!
revolução na relação entre pensamento e traço! a tensão da linha poderia ser afrouxada e
até mesmo estendida. mas... pera lá! como assim revolução? tal se deu como a reforma
protestante no cristianismo: revolução não dirigida contra o ordenamento estabelecido
(raio – razão), mas sim contra apenas uma ordem estabelecida (um modo de se desenhar
um círculo), contra apenas uma determinação de estado de coisas (círculo perfeito).
assim, esta ou aquela forma de desenhar/pensar mudou, mas não a forma mesma de
desenhar/pensar. a revolução não passou de reforma! mas isso é história (formas
aritmetizáveis de desenhar) que não pertence aos nossos tracejos. para nós selvagens, o
pensamento tem a indiferença necessária para com a religião, a ciência e a filosofia,assim deixa de competir com elas. nesse sentido a reforma acima não nos interessa. pois
é nosso dever insurgir contra tais formas de direcionar pensamento e traço. nossas raízes
históricas estão por ser inventadas. portanto, de um modo arbitrário (dar a si mesmo) e
necessário (destinação) parto em direção ao gesto imagético maori (à sua maneira de
relacionar pensamento e traço). para nós não basta apenas ter sangue indígena correndo
pelas nossas veias, é a destinação dada a si mesma vivenciar tal fluxo sangüíneo. todo
pessoal é político, não é mesmo?
mapa geopolítico do olhar maori : a visão de mundo (desenho) do povo maori (experiência
indiferenciada de eu e social) não é a impressão (traço) de algo em um fundo vazio
(espaço). o vazio é ao mesmo tempo desenho. em cada gesto desenhista um diabolus
está presente saltando sobre nós. no desenho maori não há primeiro ou segundo plano
(figura/fundo). desse modo não há hierarquia visível, pois, desde já, não há não-visível.
todo fundo é superfície simultaneamente toda superfície é fundo. nenhuma relação
comando/obediência. um mapa geopolítico que mesmo não havendo vazio, não significa
que nele está tudo preenchido. não haver vazio e preenchido é a superação do ser
(poesis – como diz heidegger) e do nada (mortaleza, como diz julio cabrera). é
experiência de e da zebra. é a percepção da mortalidade enquanto “ih, deu zebra”, ao
mesmo tempo em que é a percepção de geração e do jogo, “o que é uma zebra, umaespécie de cavalo preto pintado com rajadas brancas ou é uma espécie de cavalo branco
pintado com rajadas pretas?”. ou seja, é uma experiência dupla de ser um e outro ao
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mesmo tempo. sendo que o outro não e seu duplo (ilusão). tanto o ser quanto o nada se
dão como pensamentos que envelhecem sem se realizarem. ao mesmo tempo em que o
ser e o nada se realizam como pensamentos que se rejuvenescem pela dúvida do jogar
(aposta). é esquecimento, inocência, jogo, afirmação, criação, abertura, possibilidade e
início. o olhar não é dono de si mesmo. não é livre por interiorizar a lei. é livre por não ter
garantias. é livre por não se sustentar mais sobre causa, fim ou meio. e isso nada tem aver com a experiência ocidental do esvaziamento (pessimismo/otimismo estrutural) ou da
angústia (pessimismo/otimismo existencial). é começo absoluto fora do tempo e da
história. é genealogia reversa onde a ancestralidade se dá na potenciação da imaginação
sobre o futuro. os instintos surgem após o olhar. não é geometria euclidiana, ou mesmo
geometria fractal. pois um desenho maori não se sutiliza. dele não se retira todo o sangue
e o preenche com sintomas. para ele não se pode pensar qualquer coisa. pensar é uma
força natural, tal qual chover ou ventar – desnaturalizada já que é artifício sem artífice.
portanto não se desenha qualquer coisa (livre arbítrio - vontade liberal). não se pensa por
ser sujeito. pensa por ser linguagem semiótica afetiva. pensasse como laisser aller (deixar
ir), enfim, desleixo. este, em seu mais refinado sentido: l’effet c’est moi: o efeito sou eu.
assim é olhar, pensar e tracejar ao modo maori. se para o ocidente o olho (e todas as
suas metáforas metafísicas de conhecimento) é algum tipo de espelho do mundo (sujeito
que vê e reflete o objeto visto), para os maoris o olho (sabedoria de floresta) é um mapa
geopolítico do mundo onde há tanto o geo (topografia e percurso), o bio (fauna e flora) e a
cultura (natureza no humano) dispostos em um mesmo plano indiferenciado. ou seja,
experiência de tudo em um único plano multidimensionado. tal qual a experiência de uma
projeção holográfica que pode ‘ilusionar’ (ressurgir) outras dimensões. justamente por
esta ressurgência ser disfunção/função óptica (olho que vê a si mesmo enquanto parte do
visto). experienciar a relação olho (pensar), traço (gesto) e política (tomada de posição)como sendo maori e outro não-maori ao mesmo tempo (a tentativa desse texto), a
experiência da relação pensar/desenhar é a própria ressurgência mesma da natureza
enquanto desnatureza (o agente não age, é ação propriamente – não há sujeito algum
que se interessa, é interesse que se interessa). é o gesto/pensamento enquanto traçar
que deixar o não-traço ressurgir enquanto traço alheio – mero viver autêntico enquanto
jogo, no e para o jogo.
léo, amante da heresia
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III(segunda [cor]respondência)
marcia,
contra o eu-falo/eu-phalo . trarei de volta um tema da carta anterior de tiburi que
deixei propositadamente para agora: a política do olhar. para com isso, também trazer à
tona (para meu melhor entendimento) a relação com o seu duplo: a política do falar. tiburi
diz que desenho “é uma palavra que subsume a condição existencial do eu como seu
próprio ato”. palavra e desenho (enquanto ato e não produto/fim) estariam encharcados
um pelo outro, pois ambos carregam algo que possibilita a individuação (o a posteriori é o
próprio a priori). ou, ambos carregam algo que possibilita a quem o pratica a tomada de
posição político-existencial que instaura no mundo a sua irremediável condição de ser
“único” (ser mais que qualquer outro – ser humano in abstrato – ao mesmo tempo em que
os outros não são menos – ser humano in concreto). como se no que tiburi chama de “eu-
desenho” (grande motivador de sua carta iii) o eu de cada um que desenha (ou fala) sedefine enquanto singularidade: no gesto único sobre uma folha de papel única, ato
singular impossível de ser realizado coletiva (simultaneidade eu-outro), abstrata (gestos
em si) e virtualmente (projeção de intencionalidade). como se o ato de desenhar (ou falar)
contivesse a mesma impossibilidade de uma inteligência coletiva: a inteligência de alguém
é intransferível, no máximo é dada como cópia esquemática ou diagramática para fins de
uma construção coletiva. da garantia da singularidade (tomada de posição político-
existêncial) penso no método forense de como se distingue um quadro falso de seu
original: são os detalhes da pintura que revelam sua originalidade (no caso de figuras
humanas, a atenção é para com o desenho das mãos e dos pés). e para melhor ilustraresse ato de singularizar, vem à tona outra preocupação de tiburi: a prática do desenho
manual (esta que, por excelência, garante a singularidade do eu) e prática do desenho
digital (digamos que seja uma espécie de socialismo do espírito, onde o “eu” pessoal é
trocado pelo “nosso” impessoal). no desenho manual pode-se identificar o eu que o
pratica (como no método forense), já no desenho digital não (a máquina – quase
autonomamente – se mete no meio da história). pois por intermédio da máquina o eu
perderia as mãos. e um eu sem mãos, é impossível. mas claro que a falta de mãos é
apenas metafórica: metáfora para a falta da mediação do corpo. não há eu sem um corpo.
assim como não haveria uma fala sem corpo, já que, mesmo a falta de voz pode ser
substituída pela linguagem de libras. assim, tanto a política do olhar quanto a política do
falar necessitam de um corpo que aponte seu caráter existencial único (só se vive uma
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única vez) que por isso se singularize enquanto presença: eu-desenho, eu-falo. porém, é
neste último modo político que mora um malévolo problema: o eu-falo em uma estrutura
política patriarcal, torna-se eu-phalo. ahá! depois de todas essas inspirações tiburianas, é
chegada a hora de doses alopáticas de heresia.
minha heresiologia ativa aqui será facilitada pelos próprios apontamentos de tiburi ao
fazê-los via vílem flusser: (1) “que o design seja a forma de desenho implicada em ‘ardis e
malícias’ eis a questão que inegavelmente reúne estética e ética”; (2) “o designer é um
conspirador malicioso que se dedica a engendrar armadilhas”. e por suas (tiburi) palavras:
“é o artifício que está na base do desenho. (...) O desenho seria uma enganação que não
é falsa”.
antes de tudo, o que distingue um/a falante e um/a desenhista perante outros/as falantes
e desenhistas não é o fato de serem falantes e desenhistas, mas de serem um/a falante e
um/a desenhista único/a. aquela palavra, aquele desenho que um/as falante e um/a
desenhista é capaz não significa que também outros/as possam falar ou desenhar. esta éuma das posições político-existenciais mais poderosas. pois o mais autêntico atentado
contra o “cogito, ergo sum” das elites intelectuais e o “laboro, ergo sum”, das classes
trabalhadoras. não é nem o pensamento, nem o trabalho o fundamento do
desenvolvimento pessoal rumo a singularização (fato de ser único/a). muito menos é
aquilo que revelas enquanto pensador/a ou trabalhador/, é sim, a palavra e o desenho
que só te revelas a ti próprio/a. a singularização é abundância do eu. pois é um/a eu que
faz de tudo para si e para satisfazer seus desejos. no entanto, não significa que a
singularização seja uma reação contra outras singularidades. o perigoso, ou melhor, o
que pode causar medo, é uma inveja de um/a eu direcionada aquele/a eu que
simplesmente faz porque pode fazê-lo. esse medo/inveja torna-se paranóico quando sua
política torna-se uma luta contra toda singularização por considerá-la a ante-sala da
tirania de um/a, ou poucos/as, sobre muitos/as eus. por exemplo, a burguesia luta para
que o grande-eu mercado (livre-concorrência) seja o regulador das singularidades e, já os
trabalhadores lutam para que o grande-eu sociedade (ora representada pelo estado) seja
esse regulador. ambas formas paranóicas de luta vivem assombradas pelo fantasma da
liberdade. ou melhor, vivem assombradas pelo fanatismo do eu-phalo (a versão tirânica
do eu-falo – ou eu-desenho). esse trocadilho infame entre a política do falar e a política do
phalo é ilustrativo por nos lembrar que tanto falar quanto desenhar é antes de tudo um
exercício que assegura o domínio da palavra (tomada de poder enquanto aquisição depalavra) e do desenho (este lembrado em sua forma de design). ou seja, o trocadilho
infame, só possível na língua portuguesa, foi feito como traço de caneta nas costas da
mão, como traço que designa uma lembrança: lembrar de sempre se perguntar “existe
uma fonte de palavra ou de desenho legítimo?”. nas paranóias acima citadas tanto a
palavra quanto o desenho (design) são o direito do poder: somente o estado, ou a
sociedade podem, já que esse poder da paranóia é o exercício regulador pela violência.
para a singularidade (tomada de posição político-existencial) que estamos (aqui
alegremente me junto à tiburi) apontando, a palavra e o desenho são obrigações
imperativas. uma palavra e um desenho indicam o lugar real de um empoderamento, nãodo poder (o exercício regulador pela violência): a singularização do eu enquanto um ser
único, concretamente singular. é uma espécie de ato ritualizado (totemização) que nos
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torna, cada um/a de nós, palavra-única, desenho-único. a singularidade não torna-se
aquela reação paranóica do “todos contra todos” pois, cada eu, para se singularizar deve-
se submeter à obrigação de falar e/ou de desenhar, à mesma medida que os/as outros/as
eus não são obrigados/as senão a esvaziar a palavra e o desenho de tal modo que
ambos jamais se tornem palavra de poder (slogans) e desenho de poder (design). essa
inversão, cuja singularização é o extremo oposto da violência, é o ardil e a malíciaresignificada. é o engendramento de uma armadilha para pegar o eu-phalo em sua
própria ilusão. é o artifício onde o poder é palavra-vazia e desenho-vazio. a palavra e o
desenho é exatamente aquilo que eu quero que seja. o/a falante e o/a desenhista
enquanto único/a é um meio de neutralizar a virulência da autoridade da palavra e do
desenho.
léo, amante da heresia
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V
(terceira [cor]respondência)
marcia,
“hei de gravar em todas as paredes esta acusação eterna contra o cristianismo, em toda a
parte onde houver paredes – tenho letras que até os próprios cegos podem ler...” ah,sempre adorei estas palavras de nietzsche (lxii, o anticristo). dinamite e pichador. duas
fantásticas qualidades expressivas. a primeira, toma seus ouvidos de assalto, bum! a
segunda toma seus olhos. ambos os tipos de assalto te levam além deles mesmos.
gestos terroristas? não! pois não se quer gerar pânico algum. sim! se quer apenas te
arrancar do conforto. pois são assaltos que nada lhe tiram. são assaltos que apenas lhe
dão um algo a mais. te assaltam para te acrescentar. desse modo também fui assaltado
pelo seu desenho, tiburi. este do fim de sua carta v, sobre o qual você também promete
fazê-lo aparecer estampado por toda a cidade: que até os próprios cegos possam ver. no
entanto, você promete muito mais do que meras letras: “propor uma dúvida e, por isso,faz pensar” (38). é a partir deste seu desenho que me pôs a pensar, que responderei ao
que tu dizes nessa carta v.
sim, os traços deste teu desenho me arrastam rumo a algo anunciado por ti que me é
muito caro: “uma irrupção do i-natural na ordem natural para fins de reconstrução”. é-me
caro por ser a natureza a forma de crença, e na falta desta, a forma de desejo, mais geral
que eu consigo pensar. pois é o lugar que se depositam toda as últimas fichas de aposta
na realização sagrada da existência de algo (pensemos na querela entre nominalistas e
realistas). é a própria representação de um conselho que se pretende ser promessa
cumprida (a coisa/conceito enquanto relação absoluta). A natureza como o princípioalheio a tudo que é fortuito e raro – alheiamento, claro, para fins de ocultação do acaso
(os jogos da natureza desnaturalizada). entendo quando tu dizes sobre “irrupção do i-
natural” como sendo o gesto próprio da dessacralização que rompe com essa forma mais
geral de crença e desejo, ou no caso, o gesto próprio da desnaturalização da natureza. ou
ainda, o mais recente gesto de desdivinização: aculturar a cultura (morte e gênesis
permanente); desumanizar o humano (cada pessoa é irrepetível). esses antiprojetos
(desdivinizar, desnaturalizar, aculturar e desumanizar), são os assaltos primordiais (ditos
acima) que se aproximam de teus traços quando tu dizes “a intenção primeira de seu
olhar é a reconstrução”. no acontecimento (política do olhar e seu gesto consequente), é oduplo ato de destruir e construir tornado um só. nietzsche também se aproxima disso ao
dizer em construir estrelas de ruínas. o mesmo traço que desenha constrói algo que até
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então não existia (desenho) ao mesmo tempo que destrói algo que até então existia
(suporte do desenho): rompe, risca e arrisca. é ato violento, necessário, para desviar
qualquer movimento retilíneo uniforme de sua rota inercial. princípio este distinto do
verbo.
gosto de teu desenho por expressar um conselho, como tu mesmo dizes, um conselho
para uma nova ontologia não alucinada (o poder alucina). ontologia liberta da pretensão
de realidade (causas eternas e fins absolutos) que a palavra (na expressão: no princípio
era o verbo) sempre quis tomar para si: imobilismo, eternidade e ser absoluto. gosto da
errância que apontas em teu conselho. gosto pois é a mesma que encontramos no
movimento de povos errantes (errância: “erros que dão certo”) – ciganos (anti-geometria,
pois não desejam demarcar terras), indígenas (desenho no corpo: memória do segredo
confiado pela tribo), beduínos (desenhar enquanto manifestação de um sonho iniciático) e
imigrantes (capaz do grande abandono para se integrar à outro desenho). o movimento
dessa nova ontologia sugerida (desdivinizada , desnaturalizada, aculturada,
desumanizada) é a revolução permanente (ir além do progresso) que se pretendia quandoa imaginação (insurgente à história) ameaçava o poder (sem causa; sem razão). a
ontologia do verbo (a do fardo do conceito/princípio/finalidade), esta alucinação do poder
(onde a liberdade parcial é a própria liberdade), é miragem miragionista: duplicidade
imagética (promessa de explicação e interpretação) e cumplicidade ideológica (não define
um conteúdo de crença e sim o modo da própria crença): as coisas nunca se mostram
sozinhas, conceitos (causas e fins) devem vir atrelados a elas; servem de instâncias
sobre-naturais (além-mundo) que acompanha sua aparição. tiburi, teu desenho
espalhados pelas paredes da cidade emancipa as paredes e se autoliberta, pois é poder
singularizante, mesmo que haja uma reprodutibilidade técnica (máquinas/computadoressão apenas meios, não competem com nenhuma das pretensas causas e pretensos fins
humanos).
desde aqui a necessidade de insurgência (tanto no traçar primordial quanto no tomar de
assalto) de seu traço ante tua palavra (o acaso apto a trilhar mil caminhos): é preciso
desabitar (voluntariamente ser despejado/a) da dissimulação e do mistério. somente esse
tipo de traço de força ancestral mantém longe as instituições (subjugação do qualificado
pela sua qualificação). a instituição (avarentas por princípio) se reduz a uma única função:
não te vê como ti, e sim te vê enquanto abstração: gênero, nacionalidade, humano, etc.
ou, cidadã, pichadora, criminosa, outro etc. a ontologia-miragem-miragionista (a doprincípio era o verbo) dá atenção a uma qualidade generalizante de modo a ocultar
(política negativa do olhar) a situação de que tal qualidade é mera qualificação parcial e
transitória. eis o velho desprezo pelo gesto singularizante. não é possível fazer de um
desenho algo transcendente. [apesar de que é isso que se tenta fazer com as logomarcas
(o último refúgio do absoluto)]. o desenho (o do traço primitivo) nada tem de estranho
(dissimulação, mistério) a quem desenha. o gesto de desenhar é júbilo de serdes vós
próprio/a, ao prazer de vós. talvez o próprio ancestral do poder: dele a liberdade vinha por
si (já que se está acima da lei). és certeira quando denuncias que seu único grande
inimigo é a miséria pelo excesso (assim como a denúncia de nietzsche contra ocristianismo). o tipo de miséria que pretende retirar da liberdade seu processo (conquista)
e instituí-la enquanto algo a ser possuído (abstração). pois aquele/a que pode ser
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libertado/a é tão somente um/a escrava liberto/a. alguém meio livre. é meia liberdade por
ser mero conceito (traço repetitivo, sutilizado, de obediência). assim, enquanto o livrar-se
(processo) é tornado liberdade (algo dado e, por vezes, até imposto), é sempre nostalgia,
uma espécie de lamento romântico (ou gritaria), uma grande esperança no além e no
futuro (alucinação, sonho que visita a consciência desperta): portanto, liberdade-peso. o
traço primitivo é um desembaraçai-vos de tudo o que vos pesa antes de se fazer pesar. Otraço enquanto força primordial parte de alguém que desenha e volta para este que
desenha. insurgência a priori, já que não são embriões retardatários de algum posterior.
insurgência que se esboça antes mesmo de algo ser instituído pelo tédio estrutural da
existência (escravidão, servilismo, dedicação, submissão) superado pelo eu que desenha
que só pode ter a liberdade que for capaz de adquirir a partir de sua própria singularidade
(política do olhar – aqui o olho que vê pode ver se vendo). como tu dizes: “pensar o
desenho como uma prática da vida, modo de viver”. porém, modo de viver que pode
(nada grávido de tudo); prática da vida enquanto poder (os mil caminhos do acaso). se
desenhar é poder enganar (irrupção do quem não arrisca não petisca) e não desenhar é
poder ser enganado/a (consumidores/as de conforto que abrem mão de serem livres),
tanto o teu traço de força primordial quanto a tua política insurgente do olhar são esforços
permanentes para impedir o poder de ser poder; ou seja, é recusa permanente da
unificação da potência com a dominação.
léo, amante da heresia
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VII(quarta [cor]respondência)
marcia,
adoro relações inusitadas entre as coisas. neste caso, quando bati o olho no número VII,no topo de seu texto, logo pensei: “eis a carta sétima de tiburi! e sendo sétima teria ela
algum contato com a carta sétima de Platão? sim, em dois momentos peculiares!” tanto
você quanto platão estão interessados/as com um potencial a ser desenvolvido do/a
filósofo/a: para ti o/a filósofo/a pode se desenvolver rumo a um desenhista que se torna
um tipo de especialista no olhar cuja importância de seus traços seja a mesma dada pela
criança a seus próprios desenhos. no caso de platão o potencial a ser desenvolvido é o/a
filósofo/a como governante da cidade. ambos/as estão preocupados/as com a questão do
olhar (ou uma metafísica do olho) e com ela elaborar uma alegoria da ação. [eis aqui uma
incrível aproximação: tiburi você descreve o que é uma alegoria: “a expressão de algo
outro; uma ilusão. Uma simulação] platão elabora uma alegoria (a da caverna) baseada
no tipo de narrativa teatral de sua época (que mas tarde seria melhor estruturada por
aristóteles). você marcia, elabora outra, declaradamente baseada no teatro do absurdo:
eu nomearia a sua alegoria de “alegoria do oásis” – a ilusão e o simulacro que traça sua
própria alegoria (todo desejo é alegorista). que particularmente me interessa muito mais
do que a caretisse platônica [essa descrição das diferentes etapas de ascensão do/a
filósofo/a para a sabedoria suprema (a ciência do belo) cujo fim é governar a cidade]. a
tua alegoria do oásis é bem mais genial. sem abandonar por completo a relação inusitada
entre as cartas sétimas, me volto à respondência contigo. para me pôr a pensar a partir
de tua carta sétima. pensar enquanto reescrita.
imaginemos o seguinte quadro (surreal para fazer justiça com o teatro do absurdo) ei-la, a
alegoria do oásis: alguns/mas prisioneiro/as perambulam (dopados/as: a mercadoria é a
cachaça do povo) por sua cela (capitalismo) sem ver suas grades (produtividade, ordem e
progresso). diante deles/as vêem as mais belas embalagens, os/as mais belos/as
apresentadores/as (pastores/as de todo o tipo) e escutam (alguns até lêem) slogan que
associam toda aspiração anarquista a todo tipo de produto. por exemplo, “viver sem
fronteiras” e “porque a vida é agora”, etc. de onde vêm tudo isso? de desenhos,
composições, de projetos de designers e marketeiros/as e de todo o tipo de ativista do
capital. nessa ampla prisão de grades invisíveis, não há planos diferenciados ou fundo, é
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tudo horizontal (na altura do olhar). ao nível do olho telas de todo o tipo projetam essa
prisão miragem.
um/as dos/as prisioneiros/as liberta-se. começa a se expressar pelo prazer. (expressão
prazerosa, “algo que se realiza em nome do prazer da própria ação”). libertação iniciada
por uma irrupção – o desejo. este recalcado, este sim, o único a estar prisioneiro em uma
caverna. o/a prisioneiro/a liberto/a torna-se um/a fora da lei. não é mais resultado. não é
mais um produto. não pode mais ser nem bom nem mal. seu olhar torna-se um
acontecimento político – uma insurgência. um olhar que insurge contra a negligência da
cultura e da educação. o percurso dos olhos está muito além de qualquer ciência do belo,
de qualquer ética metafísica . está muito além de qualquer cidade governada, seja por
filósofo/a ou não (além da cibernética – falando etimologicamente). a vítima deixa de se
vitimar. sem martirismos. o/a prisioneiro/a liberto/a é um/a vagabundo/a. vaga livremente
sem nada produzir (“metáfora e metonímia da nossa forma de viver”). é simples
movimento para além de qualquer gesto (experimento de pensamento e experimento de
afetividade). é ação desejante. desejo que se expande para além de si. que se expandepara além de toda sociedade de controle (ambos conceitos juntos é uma redundância pois
não há mais abismo entre ambos). pois, toda cidade tornara-se uma espaço de controle,
sem aventuras (qualquer espontaneidade fora tornada uma ilegalidade) e sem encontros
interessantes (aculturação recíproca) com forasteiros/as (o/a estrangeiro/a foi tornado/a
um/a criminoso/a em potencial – um/a criminoso/a sem crime). o adestramento está cada
vez mais geral e mais vasto.
marcia, outra coisa genial dessa tua carta sétima e sua alegoria do oásis é, quando você
diz que esse/a liberto/a, só assim o é, se sua política do olhar tiver a mesma importância
que o desenho tem na vida infantil. pois quando criança, após superarmos nossa
comunicação pelos gritos, nos comunicamos mediante realidades virtuais (cria-se um
mundo com a intenção de partilhá-lo com outros/as – está muito além da intenção de
apenas descrevê-lo). o desenho infantil é, em sua força maior, uma realidade virtual
(mundo sensível sem entidades físicas construído apenas com informação). modo de
comunicação tão poderoso que é aspirado por todo o tipo de conhecimento: a gênesis e o
fim de qualquer filosofia – se dar sem palavras; se dar como experiência sensorial (utopia
semiótica ou niilismo lingüístico). um tipo de comunicação caótica (teoria do caos aplicado
à linguagem) geradora de realidades relativas ao vivente das mesmas realidades geradas
(projetista). projeções de detalhes (o desejo que se legitima a si própria e não se redigeao serviço de qualquer alheio). a realidade virtual apresentada pela criança, via seus
desenhos, é a condução de um sonho em vigília (pensamento-imagem liberto da
“salvação” pela religião e da lei). eis aqui o sentido de sua alegoria do oásis: o movimento
e o gesto de desenhar reata o/a desenhista com a energia original das escritas anteriores
ao estado. o desenho, ou a capacidade traçativa (superação da capacidade
argumentativa) é por inspiração translingüística – articula-se como uma modelagem
espaço-temporal baseada em movimentos criativos. traço tão livre quanto nós próprios/as
formos livres. nesse deserto capitalista da produtividade imposta, ninguém pertence a si
mesmo/a. jamais conseguirá realizar-se plenamente. já nasce sob atenção policial. dessemodo, o desenho, para além do oásis, só será restituído enquanto força liberta, se guiado
pela ousadia de traço, pela sua vontade de autoafirmação, e pela sua indiferença aos
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princípios da cultura e aos receios da educação. como você mesma questiona: “seria o
olhar o que produz a cola entre estes dois mundos separados?” (natureza e olhar sobre
ela). eu responderia: seria o olhar o diabolus entre estes dois mundos. o diabolus que
insurge contra o mesmo barroco que não suporta a “cabeça vazia” (popularmente a
oficina do diabo) que vaga livremente (estatalmente a oficina do crime).
léo, amante da heresia
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IX(quinta [cor]respondência)
marcia,
esta tua carta me passou uma mensagem simples, mas muito potente: desenhar é uma
defesa acirrada da personalidade contra os ativistas da cultura espetacular (estes/as queandam espalhados/as por aí ocupando pontos chaves na cultura, na sociedade e no
estado). o desenho seria uma expressão combatente cuja missão é fazer quem desenha
encontrar consigo mesmo/a para reconhecer aquilo que lhe seria mais próprio: sua
personalidade. processo deliciosamente paradoxal: para se resessibilizar e tomar posse
de si mesmo/a, a personalidade, é preciso se ver externado/a, ou seja, se ver com outros
olhos (ver-se desenhando o desenhado) . alheiamento voluntário para fins de um em-si-
mesmamento. uma luta possível apenas corpo a corpo: ato de retomada contra os/as
parasitas de toda energia vital. um olho que ao ver o mundo também vê a si mesmo
(negatividade que esvazia e interrompe o automatismo que domina o atual). éextremamente interessante pensar que no ato de desenhar (realizar-se enquanto obra), a
questão central é o corpo manifesto enquanto personalidade (marcia, eis a política que
você desenha). sua política é um combate frontal contra escolarização maciça
(cristalização do real). guerra (nada mesquinha como as televisionadas) contra um dos
fundamentos do projeto iluminista (metro que serve para medir) que você mesma aponta:
“vasto projeto de institucionalização do conhecimento que orienta o olhar para esquemas
prévios”. o traço desse projeto o conhecimento nada serve para nutrir e desenvolver
personalidade alguma. nada contribui para a formação do caráter de ninguém. gosto de
tuas verdades aqui: a escola da instrução maciça é ilusionista, proíbe o desenho para
proibir o pensamento e a vontade mesma de cada criança (que tudo joga no aqui e
agora). sim, uma ditadura que mudou de estratégia: não mais submete os corpos
violentamente, submete sim, com violência, a personalidade (esta que não aceita a
escravidão para evitar a morte – sacrifício da carne). quando tu dizes sobre sua
aprendizagem com seu irmão mais velho, ele certamente em nada sufocou a potência de
seu eu (marcia). ler para ti, como desenhar, nada teve a ver com a “sabedoria” que nos
empanturra (a escola nos mete o saber goela a baixo até o transbordamento). contra a
disciplina 19pedagógica (que garante a liberdade desde que a carne seja dócil e usável)
só nos resta a indisciplina (ao ponto quase insuportável) de algum tipo de analfabetismo
(pensado em sentido bastante estendido) voluntário. pois, somente esse processoindisciplinar pode convergir o conhecimento para cada pessoa (vontade/personalidade).
imagino, marcia, você escrevendo um tipo de manual endereçado às crianças para uso da
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pichação nas escolas. insurreição (é preciso ter coragem de ser destruidor/a) necessária
que mostra à escola que ela faz parte da vida. essa restituição da política do olhar
mediada pelo ato de pichar (que não se veja aqui qualquer tipo de mística do indizível) é
propriamente a realização da personalidade de cada criança. essa teoria em carne viva
que você diz. carne que grita, sente, padece e (até) goza (verdadeiro banquete
antropofágico cuidadosamente preparado e celebrado pelo/a comestível).maravilhosamente libertário é pichar na escola (livre infância), nas ruas, no metrô (livres
vagabundos/as), nas paredes de nosso local de trabalho (amantes do cape dien). pois
isso não nos torna cidadãos/ãs submissos/as, (cidadãos/as utilizáveis). e quando um/a
professor/a percebe que uma criança não é submissa (assim, não será um/a adulto/a
utilizável), de pronto, ele/a corre e se esconde por de trás daqueles/as que aplicam
sanções, punem e enquadram à ordem.
sim, marcia, mais verdades suas que adorei nesta sua carta: toda liberdade é
necessariamente autoliberação (indiferente à metafísica do lançamento da história para o
futuro); liberdade (cabe à singularidade delimitar o alcance do próprio agir) apenasconcedida pela personalidade (outro tipo nos é sempre um insulto). caso contrário (o das
verdades das instituições iluministas e, portanto, ditatoriais) tem como empreitada (além
de afirma sua soberania) que cada movimento livre do intelecto, de cada gesto, vontade,
de cada pensamento, cada traço diferenciado, seja um assunto de polícia (não de
moralidade). desse modo, não é estranho pensar que, os desenhos que encabeçaram
todos os “grandes” empreendimentos do século xx até os dias de hoje, foram os
propostos por engenheiros/as, financistas e administradores/as: “industrial”,
“mercadológico” e “de massa” (o desenhar colocado a serviço da técnica, do progresso
econômico, da abstração da humanidade)
marcia, suas “fantasias de pichação” jamais deve poupar (cada um de nós) das
conseqüências práticas de sua sabedoria: corpos livres para além do/a predador/a e da
pessoa moral.
léo, amante da heresia
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XI(sexta [cor]respondência)
marcia,
e=m.c² ou o suporte do desenho: materialidade; abstração. adoro pensar esse duplo. pois
sempre que penso no termo “matéria”, lembro que há um modo de apreendê-la antes, e
outro modo, depois da relatividade einsteniana. só para nos situarmos: matéria nada mais
é do a velocidade (lembremos que na relatividade há um absoluto, a luz) da energia.
desse modo, em termos iniciais, podemos pensar que, o suporte de qualquer desenho é
sempre uma determinada velocidade da energia (nada sutil). o papel ou o digital são
apenas velocidades diferentes. imagine marcia, desenhamos sobre uma ou outra
velocidade. que fantástico. a materialidade das coisas está situada entre o lento e o veloz
relativo ao movimento da luz. uau!
arte conceitual ou o retorno do sagrado recalcado: também partilho desta sua
preocupação. e, de carona contigo viajo anos-luz. arte conceitual como conceito
realizado. uma vingança vitoriosa da arte contra a arte: pois torna-se programática (um
mundo fundado cada vez na medida). assim a arte se perde na miríade das artes. as
intenções artísticas tornam-se construtoras de vazios (como os simulacros deus,
humanidade, liberdade, etc). novo veículo para cruza a vida. almeja a hierarquia absoluta.
pois pretende fundir-se com algo chamado real. outro projeto fundamental do iluminismo:
aniquilar ídolos, auras, delírios em troca de procedimentos analíticos. tais com
pretensões, por vezes bem sucedidas, de recriar a sensibilidade: espectrando a existênciaenquanto crítica dos processos estéticos. essa vingança vitoriosa, assim o é, pois
restituição a concepção originária da arte: origem e fim da religião – divide a “realidade”
mediante uma imagem criada por artistas; depois (ou simultaneamente), os/as
mesmos/as criam conceitos para iluminar essa mesma “realidade”. desse modo o
sagrado, antes recaldado, retorna, com toda a sua força. quer ser imagem absoluta (não
reconhecer a transitoriedade de sua formação). potência de negatividade (abstração) que
parasita qualquer energia vital.
“será que a arte substituiria a filosofia na tarefa de pensar, será que a filosofia substituiria
a arte na tarefa de sensibilizar?” adorei essa questão pois nos leva a sua questão central:o corpo, no caso a pele. pois pensamos e sentimos por ela.
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a pele como o suporte do desenho: no ponto em que já estamos neste diabolus, faz-se
necessário trazer à tona uma estranha tríplice aliança dos povos tribais: o código (a lei), o
desenho (índice) e o corpo (a materialidade última). mas antes, vejo em seus desenhos
marcia, que você se afirma e ri do sagrado. você usa uma excelente estratégia: arrisca a
incompreensão. pele contra pele. sua pele contra a pele das palavras, dos conceitos e
dos programas. uma mulher livre em superfície livre. tal qual indivíduos rebelados contra atríplice aliança mencionada acima. como você havia dito, na gratuidade e na obrigação da
escola, se esconde a imposição da dureza da lei. toda pedagogia é índice de lei. inspira
terror, já que ninguém pode alegar desconhecimento. o ponto extremo disso é fazer da
pele o suporte legível da lei. pois nela se concentra nossas experiências limites mais
profundas: dor e morte. o prazer torna-se aqui um tipo de paliativo. em sociedades tribais
a pele é o meio de aquisição de um conhecimento. este é desenhado nela. o indivíduo é
literalmente marcado por esse saber. é memória visual do segredo que a tribo lhe confiou.
o código não está separado do corpo, como está com a escrita. o corpo sempre colocado
à prova (iniciações). a pele sempre colocada contra a divisão tribal. é a mesma pele
(indivíduo/tribo). no entanto, há quem não deseja ser pele de sua tribo. aqui entramos no
ser desenho. desenhar-se a si mesmo/a. traçar-se. como nos povos árabes pré-islam,
existia a figura do al-suluk. uma espécie de herói dos desertos que por terem perdido os
vínculos tribais, viviam no limite entre atrair a vingança de tribos inteiras e a hospitalidade
de tribos estrangeiras.
traçar-se ou o auto-empoderamento da pele contra a lei do estado e de outras tribos:
quando o desenho adquire o grau zero de seu poder, só há traço a um só tempo total e de
certo modo nulo. uma espécie de quitação cega entre desenho e suporte (incapacidade
de explica e mesmo exprimir). um desenho que não se pode valer-se de nenhum fatoespecífico (indiferente a qualquer objeção). no entanto, nada tem a ver com o vago
romântico que tende à melancolia e à tristeza. esse desenho que falo é aquele que não
consiste na satisfação de uma espera precisa de significado, nem na obtenção de um
sentido cobiçado ou definido. de certo modo, até dispensa qualquer razão de ser. diante
dele, por vezes, até nos pegamos pensando quais as causas que ali estariam ligadas,
qual motivo ou satisfação. mas, o que nele interessa, não são as causas que o
provocaram. e sim, o acúmulo ou qualidade de afeto que o consiste. inútil, seria pensar da
realidade (ou materialidade) do desenho, mais do que ele pode dar. a pele assim
desenhada é uma espécie de aprovação da existência tida por irremediavelmente trágica.
desenho necessariamente cruel, pois se recusa a complacência para com a pele.
desenho e pele são assumidos sem nenhuma idéia de melhoria do suporte pelo
desenhado (ideologia progressista). não se pretende ter outra pele (vida que se vive
indiferente a outra vida melhor que ninguém viverá). nenhuma descoberta da ciência ou
nenhuma melhor organização social é suficiente para arrancar da pele sua materialidade
“insignificante”, finita, fugidia e efêmera. o que vale nesse tipo de desenho é apenas seu
testemunho do caráter caótico e furtivo da “realidade”. nada tem a ver com o sagrado
(imobilidade), o conceito (universalidade) e a abstração (efeito conjugado da negatividade
e da passividade).
sobre suas tatuagens: marcia, você as menciona em um momento perfeito: o geral e o
universal somente existem nas palavras. (1) antebraço interno sinistro (esquerdo): o
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silêncio – característica da pessoa da dúvida diametralmente oposta da pessoa da
certeza (não pára enquanto não bateu na porta de todo o mundo). (2) antebraço interno
direito: “escrever com sangue” – ética da guerreira que rejeita qualquer transposição da
realidade à ordem abstrata (fantasmática). (3) braço sinistro: gravura alquímica –
fidelidade incondicional à nua e crua experiência da realidade (porque não... amor fati).
léo, amante da heresia
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XIII(sétima [cor]respondência)
marcia,
partamos das trilhas da carta anterior: desenho/suporte. anteriormente a pele, agora a
tela. a pele, uma política do olhar enquanto olho que vê a si mesmo (não se protege e nãorecusa sua função de ver e sua estrutura do como se vê) – é desenho/suporte; dor e
morte; nudez e crueza. a tela, uma política do olhar enquanto olho que se esquiva
duplamente: esquiva-se de ser olho (estrutura do como se vê) e desvia-se do primeiro
plano (nudez e crueza) que vê, ultrapassando o suporte da imagem. a primeira, uma visão
amplificada e que retorna a si (vê o seu reflexo em tudo o que vê, sem uma atenção
exagerada ao visto); a segunda uma visão reduzida e indiferente para consigo mesmo
(afasta-se de si por si mesmo, alheiando-se). esse tipo de política é uma quase cegueira
(que você chama de desatenção): visão apressada que vê imagens como sendo elas
mesma o próprio mundo (sem mediação ou mediadores/as). nada mais, nada menos:outra grande reforma religiosa. reforma-se, como o fez lutero, a iconoclastia. tornando-a
iconoclastia invertida. pois, recusa-se as imagens, dando lhes um excesso de realidade.
assim, como você mesma diz, “vivemos num mundo de imagens sem saber lê-las (sem
ser olho que vê a si mesmo) e ainda confundindo o que vemos com a realidade”
(iconoclastia invertida). aqui também concordo contigo: “a experiência com a arte tornou-
se apenas meta-arte” – experiência que está para além, tanto da perspectiva do/a artista
(estética nietzsheana), quanto da perspectiva do/a receptor/a (estética kantiana).
experiência de terceira pessoa (estética cristã – não como experiência do pai, nem do
filho, e sim como experiência do espírito santo). ahá! eis que se abre para nós um outro
possível futuro de uma ilusão: a necessidade de exagerar o outro tanto como ausência
quanto como além.
caminhando um pouco mais: filosofia da tela. esta é uma espécie de desenho que deseja
esquecer que assim o é. pretende se esconder atrás de alguma insuficiência das coisas
(assim como para lacan, o pênis não tem sentido sem o falo). é suporte visível que almeja
a invisibilidade (desejo vampiresco ao contrário). sua lógica é inversamente proporcional à
lógica do desenho: quanto mais a tela almeja a imaterialidade completa (como as telas
representadas nos filmes avatar e minority report) o desenho almeja a materialidade
(como os projetos representados no filme iroman). permita-me um correção necessária à
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tudo o que aqui eu disse: nem a tela nem o desenho são seres que desejam ou têm
intenções. são ambos frutos de uma lógica, ação e política: portanto, intenções. essa
invisibilidade e imaterialidade da tela, nada mais é do que intenção concreta de humanos
concretos: investidores/as, militares, governantes, projetistas e ativistas da
homogeneidade (qual dessas funções desempenhamos?). telas e desenhos não são
inocentes. sua estrutura é oracular. são respostas a questões cujo fim é dizer: este mundoaqui não está aqui; o outro mundo lá é que é o mesmo mundo aqui. sim, marcia, a
metafísica da tela é que ela é quem tudo vê (como a foto do grande-irmão, espalhado por
todo lado, faz o mesmo ver todos em 1984 de orwell). a física da tela (onde uma delas
tem o nome de internet) é o depositário da eterna presença do passado e do futuro cuja
função (sempre policialesca) é apagar a insuportável presença do presente. já a política
da tela... bem, essa é o modo como agimos frente (vendo e sendo visto, cinicamente, no
pacto da invisibilidade mútua), ao lado (função instrumental) e por trás das telas (hackers
crackeando a realidade e pichadores/as imprimindo seu olhar nela). eis aqui o
empoderamento que eu e você desejamos: uma poder necessário para irmos além da
democracia (essa invenção grega tornada obsessão pelo e para os pobres e máscara e
ocultamento pelas elites). mas não pretendo trocar a democracia por outro tipo de tirania.
pretendo pensar que é preciso a imaginação antes do que o realismo conformista.
voltando ao tema “internet” enquanto tela política da liberação: temos sede de liberdade?
de que coisa queremos nos libertar? de que vale uma liberdade que nada nos
proporciona? uma parte da liberdade é a liberdade? a liberdade é uma moeda de troca? a
liberdade é uma conquista? de que serve a liberdade senão para ser usada?
qualquer liberdade é, nada mais nada menos, que autolibertação. não é possível o
mercado ser livre; não é possível a imprensa ser livre; não é possível a expressão ser
livre; senão o eu concreto não renunciando a si mesmo/a. um/a único/a pichador/a é a
própria liberdade de expressão (a publicidade, a moda, o mundo das mercadoria, dos
carros não são todo-poderos). um/a único/a camelô é o livre mercado (o legalismo, a
bolsa de valores, o liberalismo não são todo-poderos). um/a único/a hacker ou uma única
rádio pirata é a liberdade de imprensa (o aval da anatel, concessões governamentais,
poder econômico não são todo-poderos ). um único traço de marcia tiburi sobre a parede
de sua casa já é a liberdade de traço (o design, o mangá, as escolas de belas artes não
são todo-poderos). estas ações livres são nossos/as professores/as: não existe liberdadeensinada, dada ou mesma imposta.
léo, amante da heresia
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XV(oitava [cor]respondência)
marcia,
adoro pensar o tema da micropolítica (nenhum novo absoluto, ideal). pois implica a
insurgência e a rebeldia de um em-si-mesmamento (cuidado de não se deixar cair no erroda religião: transfigurar o indivíduo em humanidade que tem uma destinação). insurgência
contra qualquer princípio de um querer fazer de nós (cada uma de nós) alguma coisa
(cristão, cidadã, etc.). rebeldia contra a insatisfação do “sujeito abstrato” atual (do “deveis
ser perfeito”). assim amplio sua percepção para meu diabolus emergente:
diabolus/desenho como exercício de micropolítica. não estou aqui trazendo um novo
ideal, uma nova aspiração, novos tormentos, uma nova devoção, uma nova divindade,
uma nova contrição. aposto na exclusividade. aqui sugiro, enquanto método, o
desrespeito ao dever de considerar sagrada a não intromissão. um diálogo não deve ser
entendida como propriedade em sentido burguês (propriedade sagrada). que eu tenha derespeitar a “tua” propriedade” ou a “dele” (me permito aqui uma generalização de ti,
marcia, e do fernando). se há esse dever imposto a mim, penso: quanto mais
proprietários/as do dialogo tanto mais filósofos/as a filosofia terá. enquanto herege cometo
micro-atentados (talvez até suicida) agindo: aquilo que não pertence a ninguém, não pode
ser roubado. marcia, com esse estado de humor volto ao tema de sua carta XV: relação
entre desenho e literatura nas história em quadrinhos. ou, a diferença entre as artes do
traço e as artes da palavra. gosto de pensar que essa relação nas histórias em quadrinho
é o início de um processo rumo a uma nova escrita. multiplicação de poderes. recorrer à
imagem para ilustrar ou enfeitar um texto; recorrer ao texto para ampliar ou dar uma
tonalidade à imagem; dão-se como instrumento de pensamento. tecnologia intelectual.
realizações técnicas. prelúdio dos sistemas informacionais que geraram linguagens não-
lineares e não-estáticas da televisão e do cinema. hq enquanto reivindicadora de algo
para além do conformismo de alfabetos provedores de símbolos fixos. sim, semiologia
plástica ao mesmo tempo literária (como a de kafka). prelúdio por uma simples razão:
relação que ainda não permite a passagem à abstração. no entanto, a hq reata uma
energia original das linguagens-escritas anteriores ao estado (constrói e simula modelos
mentais nômades e errantes). não se trata de tornar o duplo comunicacional da oralidade.
é uma cena vista. espaço bidimensional imaginante e imageante. o mostrar que aqui
implica (antes do explicar) empenha-se em uma exploração de navegante (mais pirataque colonizador). o mostrar plástico-literário bidimensional se assemelha a um sonho
desperto (nenhum sonho pode ser completamente descrito por palavras – é imagem
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vivida). se assemelha a algum tipo de realidade virtual estática (e de fluxo descontínuo)
cuja intenção é partilhar, muito mais do que descrever algo. caos linguagem
(indeterminação à memória). niilismo ativo lingüístico (linguagem possível por estar
suportada por outras linguagens). sim, marcia, o desenho sendo algo da ordem do
pensamento. pensar por imagens. pensamento-imagem. vetores de emoção. imaginação.
assim, trazemos novamente (para a ordem da micropolítica) uma nova linhagem deutopia: pensamento plástico-literário que visa curto-circuitar os pensamentos formais-
literários. substitui o cálculo gramatical pela discussão imaginante (máquina de guerrilha
semiótica). sabota qualquer aspiração por linguagens absolutas (projetos de Rousseau,
Leibniz e wittgenstein). e, por fim, reabre nossos esquemas semióticos para trazer à tona
nossas capacidades expressivas e nosso grau caótico de elaboração.
léo, amante da heresia
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XVII(nona [cor]respondência)
marcia,
dom e índole. onde teriam sentido estas palavras (desejosos por escapar de serem
tomado como conceitos) senão na ordem da religião? na ordem das questões pelos fins epelos inícios absolutos. é nesse ordenamento que uma questão (sorrateira) nos espreita:
enquanto espírito (alma, mente, ou seja lá o nome escolhido) devo nutrir um desprezo
pelo mundo. porque nos espreita? pela razão de que isto é um dos piores poderes que
tentam exercer sobre eu e tu: símbolos que se apoderam (acoplam virulentamente) de
minha carne e ossos. apoderamento (muitas vezes simbióticos) que acaba por gerar a
idéia de que, possuído, torno-me um ser espiritual. um tipo especial de ser (de
entendimento e coração) que jamais será oprimido ou amedrontado pelas coisas deste
mundo. assim, dom e índole fazem sentido em mim: apenas enquanto me vejo refletido
num absoluto qualquer. eis a origem da obra de arte: teste e prova de que estou paraalém de mim mesmo; ou, teste e prova de que este corpo (em constante decadência)
possui um espírito em constante ascendência. individuação possível pela tomada de
posse de mim pelos símbolos (como numa espécie de golpe de estado imaterial).
concordo contigo marcia, o dom, nada mais do que, uma espécie de sorrateiro ocultador
do processo de criação; e a índole, nada mais do que, outro sorrateiro ocultador. a índole
oculta critérios, medidas e intenções para com o/a outro/a. sem ocultar (e sem perder a
maestria na ironia e no despiste) tento dizer algo que já mal pode ser dito sem densas
confusões sobre a figura traga à discussão: hitler. não tenho o menor problema com tal
(pois minha indiferença é radical). tenho problema sim com todos os/as anônimos/as
ativistas de sua política (estes/as sim estão loucos/as para saltar em minha goela).
pergunto: porque hitler é, “em sua índole”, o grande vilão (oculto e insondável) e não seus
apoiadores? um fantasma (ou símbolo) não pode ser vilão de nada. não é nenhum eu
sem corpo que assombra o universo. esse assombramento é toda uma educação
orientada para produzir em nós certos sentimento. assim entra em cena a política do
fascismo. que somente funciona pois também opera na ordem da religião. hiper-
estetização dos meios para os fins e inícios absolutos (aqui ilustra bem a idéia de um
simulacro construído para se fundir ao “real”). se bem que o real também não consegui ir
além do que um dissimulacro. mas, enfim, o ponto aqui é discutir mais o poder da
dominação do que o estatuto de sua “realidade”. desse modo você se pergunta se o domteria a mesma origem que a loucura. eu diria que sim, tomando as razões acima como
minha medida. pois o sentido de ambas palavras estariam sendo garantidos como
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conceitos metafísicos e suportes de hierarquia. o filme “arquitetura da destruição” do
cineasta peter cohen, traz uma avaliação dessa política dos processos estéticos (reflexo
do ético tendo ambos como espelho) levado ao extremismo religioso. tanto a ética quanto
a estética seriam o espaço privilegiado de tudo o que não é racionalizável encontrar lugar:
monstros mitológicos, deuses, dom, índole, inspiração, espírito, excessos de todos os
gêneros, etc. para que não fiquemos encurralados/as e liberemos a arte, os excessos, e apolítica do pensamento fascista, é preciso um pensamento guerrilheiro indígena [tal qual
jaguar paw (pensamento antes por ações do que por instrumentos) – personagem do
filme “apokalypto”, realizado por mel ginson]. marcia, como tu trazes flusser (pensar a
diferença entre um pensar por palavras e um pensar por superfícies) à tona, faço o
seguinte: convido o seguinte personagem para nos acompanhará até o fim desta pequena
jornada: o avatar “jaguar flusser”. enquanto linguagem, nem palavras, nem imagens
seriam suficientes para desenhar o mundo. e sim realidades virtuais (desenho aromático,
tátil, auditivo, visual, saboroso) onde tudo nela fossem cinéticas e necessitassem
interação. comunicar-se mediante tais. um tipo de realidade virtual jamais pensada pela
ficção científica de até então, pois o regente seria o pensamento guerrilheiro (insurgente
libertário não revolucionário autoritário), selvagem (ataca a hierarquia que divide as coisas
reduzindo-as a mesma miserabilidade) e arcaico (potência de continuar a dividir e a criar).
uma espécie de iconoclastia dinâmica (“a iconoclastia tem algum sentido?”), onde o
próprio gesto (mesmo tomado isoladamente) nos serviria como instrumentos intelectivos
poderosos (desenhos sem suporte). o autoritarismo (cristalização da imagem originária)
próprio do desenho se perderia em sua propriedade anárquica (descria as imagens que
iluminam a “realidade”). nenhuma imagem absoluta. nenhum suporte absoluto. nem traço,
nem gesto absolutos. é preciso a coragem de destruir o que se constrói (até mesmo o que
se desconstrói – “será que o pensamento seria só desconstrução da imagem que sevaleria da palavra para poder se pensar?”). é preciso abandonar as cidades. é preciso
reestabelecer sociedades de florestas. em prol de um futuro é preciso abandonar
qualquer promessa de futuro. é preciso parar de lançar a história para o futuro. é preciso
abandonar a fina película que recobre as imagens, os desenhos. é preciso abandonar
toda essa rede de conceitos, programas e instrumentos que tudo entorpece. é preciso ser
uma pessoa livre vagabundando pela terra livre.
léo, amante da heresia
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XIX(décima [cor]respondência)
marcia,
percepção (pessoal e própria) e representação (impessoal e cultural): como se
relacionam? eis que partes de uma relação conflituosa. conflito. seria uma luta? um jogo?ou um debate? no primeiro tipo, ou a percepção, ou a representação, faz mal a sua
adversária (forças cegas e/ou arte da guerra). caso seja um jogo, uma quer ser mais
esperta que a outra (como na bolsa de valores e/ou sorte). e se for do terceiro tipo, a
percepção faz a representação viver em sua pele, ou vice-versa (perspectiva e empatia).
como sentimos esse conflito? como tudo acima misturado? tu propõe que sim. aceito tua
pele: “entender o lugar da relação entre elas, perguntando sobre aquela percepção que
ultrapasse a representação”. considero isso com e de muito bom gosto. pois o destino que
nos aguarda (transformações destinadas) é o desaparecimento: impossibilidade da volta
(entropia e caos).
a luta entre percepção e representação : tudo o que é pessoal é virtualmente inimigo do
que é impessoal (cultura). assim a representação torna-se a tentativa violenta (arbitrária e
racionalizada) de regulação das percepções (iniciativa, impulsos, paixões). tentativa por
coerção e renúncia (não há possibilidades de adaptação) em prol de algum tipo de
patrimônio impessoal (alheiamento): a cultura. a estratégia de luta da representação (já
uma luta pela existência) frente a percepção é a gradação da internalização da coerção.
gradação guardiã da idéia de que a percepção individual tem pouca importância nas
tendências de grande escala. resultado: o que antes era pessoal torna-se impessoal
(ideais culturais).
o jogo entre percepção e representação : há forças sociais em funcionamento tão cegas e
poderosas quanto há forças cegas e poderosas também no/do indivíduo. portanto, não
basta saber da existência dessas forças, é preciso intrumentalizá-las: de volições e
desejos em ética. por vezes, a cegueira dá-se como nos jogos de azar (probabilidade de
ocorrência > expectativa > utilidade) ou como na elaboração de estratégias (informação >
segurança > negociação/ameaça > coalizões). no jogo abolimos (imponente, cruel e
implacável) ou somos abolidos pelas restrições culturais (afasta, reconcilia e recompensa)
nos apossando dos meios de poder.
o debate entre percepção e representação : começa-se com a intenção de ir do acaso à
escolha. seleção do “ato de ver” de uma e de outra posta à teste. processo seletivo.
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nenhuma resistência à modificação. compreensão empática. aprendizado. seleção.
engajamento. persuasão (por lavagem cerebral, por dialética, por aspectos psicanalíticos,
etc.). região da validade, da ambigüidade, abordagem semântica, presunção da
similidade. movimento pendular que oscila do coletivismo (socialismos, direito dos povos,
liberdade de organização, etc.) ao individualismo (self made man, consciência, compulsão
motivadora, ser si próprio/a).
depois de tamanha volta, onde o desenho se encontra nesse labirinto? como recalque?
também, mas acrecido de: foi o que sobreviveu na luta (destituído de objetivos racionais);
o que se apostou no jogo (a banca sempre vence); o que se tornou compreensão por
mudança de perspectiva no debate (influenciador no funcionamento das forças cegas).
marcia, este sobrevivente que você chama de “inconsciente gráfico” eu gostaria de
chamá-lo agora de “libido gráfica”: aquela imagem que segue os caminhos das
necessidades individuais (talvez narcísicas) e se cola nos objetos alheios (culturais) que
lhe garante satisfação. sim, um traço comum para tudo aquilo que é suporte incomum.
novamente, é o corpo colocado como traço selvagem que resiste conspirando.reivindicando sua postura (tracejo/trajeto) sem fundamentar suas pretensões (aceitação
do caminho, sem amostras de resultado). a libido gráfica sobrevive como um gene.
usuária de nossos corpos para sua reprodução. usuária que ensina ao mesmo tempo em
que se constitui historicamente. olhar (entropia e caos) que toma de assalto o próprio olho
dominado por traços recalcados. olhar que se livra da “neurose obsessiva universal da
humanidade” (ápice da impessoalidade). retomada da orfandade primordial.
desobediência não-racional que desfigura suas bases afetivas. rehipertorfia. reeducação
irreligiosa. movimento de traço que reconhece seu desamparo e insignificância. no
entanto, sem tornar esse reconhecimento, centro da criação do desenho. assim, a libidográfica retoma sua pré-linguisticidade; torna-se independente das regras do alheiamento
(cultura); rompe com o mito do dado e, por fim, torna-se descrença da diretriz da qual se
consegue em outra parte aquilo que ela não pode oferecer.
léo, amante da heresia
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XXI(décima primeira [cor]respondência)
marcia,
quando o desenho, o esforço de olhar assemelha-se ao esforço de pensar: “o traço a
escolher é como a melhor palavra a ser usada”. esse melhor traço a ser usado é o nossoincômodo. nos incomoda por estar à espreita a redução de uma engenhosidade a um
constructo básico. um poder de reduzir para facilitar ao crítico e ao leitor. reduzido o
pensamento não é mais pensado: espaço aberto para o costumeiro. no entanto, o
incômodo pode ser insurgente. insurgência de um pensamento em ato. este não conhece
nem reprodução nem fotocópia. lança-se adiante. assume o risco de se perder para
encontrar alguma coisa. um nome me vem à cabeça: miyamoto musashi (famoso ronin
japonês criador do estilo de luta com duas espadas “niten ichi ryu”). considero esse ronin
(samurai sem mestre) um dos maiores filósofos do traço (inclusive treinei por dois anos
este estilo de luta). sua filosofia do traço concentra-se em seu único livro: gorin no sho (olivro dos cinco anéis). uma interpretação costumeira percebe o gorin no sho como um livro
de estratégia militar. interpretação ilusionista já que musashi não serviu a nenhum feudo.
gorin no sho é dedicação ao movimento da espada. dedicação ao traço, pois a pena e a
espada devem estar juntas (bunbu ichi). musashi também foi um grande pintor e calígrafo.
o movimento de seu pincel era tão preciso quanto sua espada. pensamento em ato.
jamais foi derrotado. sua sabedoria para tal (representação do espírito do guerreiro)
precisam de olhar/traço/pensamento está em sua famosa frase: “a lua no riacho frio como
um espelho” (frase que na própria caligrafia de musashi está tatuada ao longo de minha
espinha). conta-se a seguinte história: musashi não conseguia dormir, pois precisava
encontrar o traço perfeito para finalizar sua pintura intitulada “picanço sobre ramo seco”.
em uma noite dessas (entre sonho e vigília) ele teve simplesmente levantou, pegou seu
pincel e “zap!”. um traço perfeito. dado esse traço (pensamento em ato), ele voltou a
dormir bem. fiel a seu gorin no sho, suas táticas escritas no livro do vento e no livro do
nada, esse ronin (filósofo do traço da pena e da espada) finalizou sua pintura (os
ideogramas que representam tais livros estão impressos em minha pele, um em meu
ombro esquerdo, outro no direito). portanto, marcia, estou de acordo contigo, desenhistas
e escritores são projetistas que estão a exercitar seu traço. não escolher o traço, ou a
palavra, é mesmo uma forma de cegueira. como antagonista desse tipo de cegueira,
penso que seja a alegria (esta que você anuncia: “a universalidade do traço acompanha aparticularidade que cada um que desenha pode experimentar” – uma universalidade sem
totalidade). amante em êxtase. ommibus laetitiis laetum (“alegre com todas as alegrias”).
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alegria não romântica, portanto nada vaga (vagueza esta que sempre tende à melancolia
e à tristeza). alegria do querer que dispensa suas razões de ser (não há chaces nem
possibilidade alguma de durar). sem causa ou motivo de satisfação (reconciliação do
júbilo com a precariedade). alegria/pensamento em ato (não ilusória, mas paradoxal). o
que não quer dizer um alheiamento daquilo que a provoca (indiferença à infelicidade).
alegria-causa-efeito (nada mais duro nem mais penoso). pois é inútil esperar dos efeitosalgo mais do que a causa pode dar (savoir-vivre). alegria que nada tem a ver com o
prazer sexual (o orgasmo é condição não suficiente) ou com o prazer estético (geram
regras para fanatismos). é sim alegria-prazer-simples (não há pior força do que a
esperança). efêmera. sem pretensão de duração. perene. mortal. regozijo que rompe toda
a frieza e lucidez de espírito (contrária à qualquer ideologia progressista). esse traço
alegre-pena-e-espadas-juntas talvez seja mesmo o phármakon grego (remédio e veneno
a um só tempo). nenhuma atenção excessiva e entusiasmo suspeito àquilo que há e
poderia haver.
léo, amante da heresia
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XXIII(décima segunda [cor]respondência)
marcia,
desconfio de nós, olhos atuais. suspeito do não termos tempo. tenho dúvidas sobre nossa
capacidade de guardar silêncio. tomo cuidado com as boas coleções de opiniões próprias.minha pergunta aguda no momento se dá sobre as condições de nossas vistas
(acompanhar linhas e pontos): olho fixamente em meus próprios olhos e me pergunto:
quem é este que olha? logo minha experiência do ver se desloca para além da
compreensão do significado do visto. a experiência do ver se dá como um vivê-lo. um eu
vivo. só que um “eu” superfície. um “eu” resultado de certa organização hierárquica de
intenções (sentidos, disposições corporais, vivências passadas, instintos, temperamentos
e entranhas). todas em disposições anímicas. dá-se o mesmo processo quanto a um eu
vivo que traceja. tal qual o gato de alice (no país das maravilhas). ver e traçar viventes.
ambas expressões de uma persona (personalidade enquanto sistema hierarquizado deintenções). o artista do traço é o mesmo artista do visto. um desenho não pretende
transmitir um conteúdo de verdade. não se pretende ser um saber que enfrenta outro
saber. nem mesmo pretende instruir um olho. um desenho é expressão de
intencionalidade (força que se combine com outras forças). intencionalidade que não visa
impor nada. pois sabe, por comparação a si, o quão inútil é (ética e estética) legislar
universalmente. esse desenho cheio de intenções tem apenas a tarefa de multiplicar
perspectivas. intenções de abrir os ouvidos. intenções de apurar o olfato. intenções de
aprimorar o gosto. intenções de sensibilizar o tato. intenções de dar tempo. intenções de
fazer do traço e do olhar uma aventura (doses de inocência, sensibilidade, coragem e até
um pouco de maldade). o resto é temperamento, estado de ânimo, persona. ah, marcia,
nesta altura de suas cartas, vejo seus insetos não só com os olhos. vejo-os também com
o olfato, com os ouvidos, com o gosto, com as minhas entranhas. aprendi com elas que
ver bem é ver com todo o corpo (mesmo que o desenho, corriqueiramente, se comunique
com a visão). eu até chamo seus insetos de “insetos-intenções”. por eles se relacionarem
imediata e intuitivamente com nossas vivências, como nossas personas. suscitam
renovação constante de interpretações. desse modo, seus insetos abandonam-se rumo à
luz de estrelas errantes. são seus traços enfim. interessante é que eles habitam o interior
da técnica da gravura. esta mesma que você introduz para se pensar o desenho. tanto a
tecnologia da gravura quanto seus insetos-intenções contam a história de um gesto.contam a história de uma potência interrogativa. de uma cosmo impotente em converter-
se em si mesmo. no entanto, ambos se dispõem como se dispõem os processos de uma
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escrita. ver e ler. ambos desejosos pela jovialidade de uma barriga nietzschiana. aquela
capaz de esquecer o que se leu. aquela capaz de esquecer o que se viu. tudo isso no
tempo do metabolismo (inércia intestinal). um bom desenho pode ser indigesto. é preciso
uma boa acidez no estômago. rapidez e alegria do ver e do ler. alimentos ousados. pouco
comuns. intestinos alegres. é preciso, antes de tudo, comer com os olhos. mas cuidado!
não tenhamos o olho maior que a barriga! gosto de pensar que o “desenhar bem” é algocuja direção é o desconhecido. algo que nos faz duvidar de nossos olhos. parafraseando:
desenho desenhado para todos e para ninguém. eis a intenção: nós mesmos sendo
desenho visto por nós mesmos em multiplicação de perspectivas. até o ponto em que a
aventura torna-se o próprio aventureiro. marcia é chegar naquele momento que você nos
aponta: “a linha sendo o desejo do ponto” (o aventureiro sendo o desejo da aventura). se
na escrita a letra equivale ao ponto no desenho, na intenção do traço, o gesto equivale à
aventura (como a busca de um pirata do século XVIII d.c. por um tesouro do século III
a.c.). um gesto (que assumi o risco da ousadia – intenção), depois outro, cria-se uma
aventura, “mostrando como se pensa”.
léo, amante da heresia
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XXV(décima terceira [cor]respondência)
marcia,
foi nesta tua carta que me tornei diabolus. foram duas oportunidades. duas pausas. temor
supersticioso da música medieval cristã (não que tua carta seja algo parecido) em dosedupla. essa que não abria brechas. caso abrisse (sequer uma) o diabo entrava e tomava
conta (perigo eminente de um exu alegre) foi o que fiz. esperei uma pausa. entrei e tomei
conta (sorrateiramente tomei de assalto seu diálogo/desenho). logo após você ter
afirmado que “desenho é jogo” (do tipo nem isolado nem fictício). do tipo que comunica
com o resto da vida. liga a vida ao jogo e o jogo à vida. que segue o ritmo de uma festa
(não aquelas que obedecem a um calendário). festa e jogo desmedidos de riscos
consentidos; de riscos desejados. ora jogo de competição (agon, agonia, agonista). ora
jogo de acaso (alea, aleatório, apostador). ora jogo de simulacro (mimicry, ilusão,
ilusionista). ora jogo de vertigem (ilinix, instabilidade, desequilibrista). e assim, marcia,nessa carta-música cujo prelúdio se anunciava, como um desenho quanto atividade livre,
incerta e improdutiva... uma pausa. associado à vertigem de um jogo de azar, escapei
para dentro do dialogo/desenho. não ocupando nenhum espaço reservado e nenhum
tempo excluído. ansiosamente, aguardei o segundo momento: o momento em que você
discute o rolo compressor do “cotidiano e suas obrigações” e o “desenho com a forma da
mercadoria” (tendo a arquitetura como fantasmagoria desta). concordo contigo, a
arquitetura é um tipo de fantasmagoria que nos estende um espelho cego. lhe darei um
exemplo perto de mim: setor noroeste (novo bairro de Brasília). é o bairro o qual se tem o
metro quadrado mais caso do brasil. dizem que os edifícios serão inteligentes (desconfio
que seja a de algum tipo de verme). será o primeiro bairro completamente ecológico (para
tal desmataram um cerrado inteiro). e, ainda um bairro politicamente correto (que ainda
briga na justiça para a retirada de uma pequena aldeia indígena, fulni-ô, que lá está desde
a formação de brasília). arquitetura e infra-estrutura alienadas e alienantes (tipicamente
brasiliense). arquitetura capricho (desdém). arquitetura da morte (desprezo). arquitetura
de mau-gosto (oscar niemeyer). exemplar ferocidade do desenho. já ao rolo compressor,
para muitos, adquire a forma e os encantos de uma profissão. esta que deixa de ser o
exercício de uma função e torna-se mercadoria (nem chefe e nem horário de trabalho; ou,
sob a soberania do mercado e trabalho em tempo integral). atividade sem fim (não há
necessidade de bater ponto nem na entrada nem na saída – trabalha-se nas horas vagas,nos fins de semana, nas festas...) e onipresente (trabalha-se em casa, na rua, dentro dos
veículos...). se nietzsche anunciou no século xix a morte de deus, com a mesma
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necessidade devemos anunciar a morte do mercado. anúncio rebelde e delinqüente. se
possível até matá-lo. matar como morremos sob sua soberania. esta cujo vazio é seu
senhor e organizador de sua demência. vazio convicto. vazio-solo onde terminamos
nossas errâncias. sim, marcia, é preciso uma boa dose de acaso e espontaneidade em
nossos traços. acaso que decifre o enigma. espontaneidade que enuncia o resultado da
equação que nossa existência coloca. é preciso um desenho resultado de um gesto que jamais tenha pensado em criar uma ordem; em conceder cruzes; em conceder
condecorações. desenho-jogo cuja cara e coroa seja o vazio e a insurreição. um desenho-
jogo cuja nobreza é morrer sem vaidades... opa... mais uma pausa... sim! olha eu!
(diabolus-exu-alegre) novamente mergulhando para dentro do dialogo/desenho. num
carnaval suntuoso e goyesco. no terceiro momento de sua carta: “desenhar uma teia de
aranha”. filosofia da teia. aranha filósofa. mimesis do gesto de tecer. penso que a única
possibilidade desse seu projeto ser uma experiência única é tratá-la como um a arte zen.
experiência direta, imediata, não filtrada pelo intelecto. imagino uma arte aracnídea da
desenhista zen: desprezo pelas palavras, silêncio, gestos iluminantes e iluminados,
comunhão com o próprio ato de tecer. imagino o mesmo acontecendo com a desenhista:
quando a aranha tece tua teia ela tece a si mesma. ambas não tendo como objetivo nem
resultados práticos, nem o aprimoramento do prazer estético. sim um exercício de
consciência. não em sua versão mais fraca: moral. sim sua versão mais forte: questão de
vida ou morte. o domínio técnico é insuficiente. é preciso ir além (não para o além). é
preciso desprender-se do alheamento. não se persegue um resultado exterior (imersão).
se persegue um resultado interior (insurreição). um abandono do esforço. um fazer como
se não tivesse de fazer mais nada. insólito. arte gentil. intenção livre de expectativa.
intenção cuja educação é impossível. impossibilidade de antecipá-la com o pensamento.
somente o fazer pode ensinar. agilidade primordial. insurreição primordial
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XXVII(décima quarta e última [cor]respondência)
marcia,
chego ao fim. esta como experiência da terminalidade de todas as coisas (minha ausência
logo será preenchida por uma outra coisa). a última [cor]respondência. nenhuma saudade
ou nostalgia de começo (é preciso rir da fênix). rir e seguir. sigamos assim, livres,
portanto, sem esperanças (nem passadas nem futuras). marcia, em sua última carta você
a começa pensando a cópia (preocupada com a possibilidade de repetir aristóteles). pois
bem, não sejamos antifilosóficos nem antidialéticas. pensemos uma única situação de
cópia: elmyr de hory (brilhante falsificador de arte do século xx). sua contribuição para
pensar a cópia foi a de torná-la limítrofe (serve como portões do plano material da arte
para sua sutileza e espiritualidade). suas falsificações não continham a certeza absoluta;
continham a multiplicidade imanente de uma natureza fantástica. elmyr não falsificava
obras já existentes de pintores célebres. elmyr pintava obras originais fazendo uso dos
estilos de pintores célebres. de forma genial sua copia era a do estilo. ato mágico do traço
(vivifica). traços nem subjetivos, nem objetivos. cópias de um lugar em que esses opostos
se encontram (aparente nadir da materialidade). estranha aura da reprodutibilidade
estilística para além da tecnológica (para além de benjamim, pois amplifica a aura e não a
dissipa). a natureza do traço de elmyr possui uma natureza dupla de original e cópia
(ambos determinantes e determinadores um do outro). suas falsificações respondem a
quem aprecia na medida em que quem aprecia responde tanto à cópia quanto ao original.
pintura como que se pintasse para um espelho (absorver e ser absorvida). abundância designificado. põe à prova qualquer ortodoxia da arte que subestima a jovialidade da cópia
em favor da sobriedade do original. elmyr recoloca a cópia como uma espécie de jogo re-
uter-ado. cada apreciadora é convidada à participar de sua “revelação”. é um desafio ao
monopólio do gênio primordial (quebra da autoridade de sacerdotes e de deuses). elmyr
promover um excelente encontro do olhar com o traço. sua experiência desenhante
preocupa qualquer autoridade. é um rebelar-se contra a verdade e a falsidade de todas as
coisas. marcia, pego emprestado tua citação de Peter greenaway para ilustrar este
momento: “a técnica sempre me foi uma potência criativa”. elmyr diria: “o estilo de outros
sempre me foi potência criativa”. com essa possível fala encaminho sua própriapreocupação: o desenho hoje. você afirma ser uma espécie de arte recalcada. esta já
enquanto método. este ferramente essencial da cultura da repressão sob a qual vivemos.
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mesma cultura que se coloca aos afagos do desenho como design (“elogio desenfreado
de um mundo projetado para convencer os olhos” – aqui somos tentados a pensar que
elmyr também tentava convencer nossos olhos, mas isso seria uma visão muito pobre da
coisa). afirmo que o bom desenho é um fenômeno maravilhoso de anagramas
onipresentes das formas. um fenômeno mesmo que parece sonhar. uma espécie de
linguagem que mostra certos sintomas oníricos (trocadilhos inconscientes, atos falhos).metaforicamente, o desenho mesmo sonha (forma misteriosa). o desenho contém chaves
lingüísticas que despertam apreensões metalingüísticas (eficácia alquímica de formas).
traços que transbordam e que transvalorizam. pois caso você se abdique de desenhar,
tudo se torna igual. torna-se um mesmo sem princípios negativos. um igual monótono
sem armadilhas, sem quebras de entendimento, sem elementos de ruído e cegueira.
abdicar-se de desenhar é abdicar-se do mundo insurgente do imaginário. sim, marcia, há
desenhos capazes de críticas. capazes de abrir outras visões de mundo. são aqueles
desenhos guiados por tudo o que você deseja. não aqueles desejos os quais cada um
tem o direito de tê-los. pois estes são apenas aqueles que uma autoridade qualquer
sanciona. são coletivos e não seus. se consegues conceder e retirar seus próprios
direitos; se consegue desenhar criticamente (empoderamento do traço). desenho cujo
traço é emancipação (autovalorização) mais do que libertação (pois quem é libertado é
apenas escravo liberto). a liberdade jamais pode ser algo dado ou imposto. pois não é um
bem. a liberdade é um ato; um gesto; um traço. desse modo não há desenho livre (este se
tornaria apenas permissão ilimitada). somente é possível haver desenhista livre.
independente de ocasiões propícias. o desenho é desenhado pela desenhista sem
autorizações. quando quem desenha não pertence a nenhum poder. quando quem
desenha passa a perna em qualquer autorização. ou, utilizando (sorrateiramente) teu
exercício de destravar os dedos como metáfora: quando quem desenha tem os dedosleves de um batedor de carteira como primeiro ato insurrecional da irresponsabilidade. a
liberdade de desenho (como qualquer outra liberdade) é a desenhista que tem de
conquistá-la. tal como você faz: “saio daqui para desenhar um pouco mais”. não há
desenho que sirva para lhe dar expressão. nenhum desenho que faça não lhe esgota
enquanto desenhista. você é proprietária do poder de seu traço. criadora mortal e
perecível. a si mesma consome. a chave para o desenhar livre é a chave de nada
(finalidade). pois não vives para cumprir missões. vives para tornar tudo à sua volta algo
pessoal (terminalidade). vives para perguntar uma pergunta que responde a si mesma:
nenhum desenho tem liberdade, porque nenhum é capaz de corporeidade.
léo, amante da heresia
5/10/2018 diabolus-desenho - léo pimentel (2011) - slidepdf.com
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