Diagramação Desmortos 2015 - PerSe · 2015-03-17 · 10 CAPÍTULO UM Sobre como acordar de...

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desmortosMary. C. Müller

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Copyright © 2015 Mary C. Müller

Projeto de capa/miolo/editoração eletrônica: Maria Claudia MüllerRevisão: Thiago Toste

Revisado conforme o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa de 1990 em vigor no Brasil desde janeiro de 2009.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, ou um dinossauro comerá sua cabeça.

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Para James, quem fez de mim mais estranha e mais verdadeira.

Para meus pais, irmãos e sobrinhos S2

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Parte 1 - Nascer

And hey, you, don’t you think it’s kinda cuteThat I died right inside your arms tonight

That I’m fi ne even after I have diedBecause it was in your arms I died.

Mother Mother – Arms Tonight

Goodbye my friendLife will never endAnd I feel like you

And I breath on truthLove is the life breath of all I see

Love is true life inside of meAnd I know you somehow

As I hold you in my heart, in my heartAnathema – Internal Landscapes

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PRÓLOGOOnde começa e acaba ao mesmo tempo

O enorme e colorido fone da Skullcandy não ajudava, cha-mando mais atenção na rua do que considerava aceitável.

Gostava de se sentir invisível. Diferente, sim, do resto das pessoas, mas queria que simplesmente a ignorassem, que não reparassem no cabelo desgrenhado, na calça colorida ou em sua jaqueta de vinil. As pessoas provocavam ou davam risadinhas, mas ela sempre se fazia de surda.

Por isso o fone de ouvido.A maneira perfeita de matar instantaneamente milhares de pes-

soas: era só plugar no mp3 e aumentar o volume, que tudo o mais deixava de existir. Death Cab For Cutie estava tocando quando seu desejo finalmente foi atendido e alguém resolveu ignorar a sua existência: naquela noite, o motorista não a viu atravessando a rua. Ou passou por cima dela mesmo assim.

Lorena se lembrava de livros e filmes onde os personagens morriam em paz ou não sentiam dor ao deixar a vida. Aquela, para ela, era a maior mentira de todas. As pessoas deveriam saber, diria ela, que morrer dói e que nenhum anjo bonito irá aparecer pra levar você. Não irá tocar uma música bonita e não surgirá uma luz branca.

Ela nunca se esqueceria da parte exata da música que tocava quando o carro a acertou: No blinding light or tunnels to gates of white1.

1 Nenhuma luz ofuscante ou túneis para portões brancos

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Eles estavam certos. Não havia nada. Ou pelo menos, nada de especial. Substitua a luz ofuscante por estrelas ao bater a cabeça e os túneis e portões pela escuridão total depois do primeiro baque. A música angelical é facilmente substituída por gritos de transeun-tes, pneus derrapando e ossos se partindo. A parte boa é que o carro a matou bem rápido e só precisou aguentar alguns segundos da dor. A parte ruim... bem...

Lorena não tem uma história bonita: ela não é linda, popular e delicada de cabelos sedosos – pintara-os de tantas cores diferentes que estavam ressecados e manchados. A falta de preocupação com cremes e protetor solar não a deixou com a pele mais perfeita do mundo. Era baixa e os olhos eram escuros, além de precisar dos grandes óculos de armação vermelha para enxergar.

A história de Lorena também não é uma história de amor per-feito, e, caso você esteja se perguntando, o trecho acima não é o final da história, mas sim, o começo.

E por último, a morte de Lorena não tem um final feliz.A última coisa que ela ouviu antes de apagar definitivamente

foi parte do refrão da música: I’ll follow you into the dark2.Alguém a seguiu pela escuridão.O Death Cab For Cutie acertou de novo.

2 Vou seguir você pela escuridão

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CAPÍTULO UMSobre como acordar de repente não se parece com suco de

framboesa

Nunca se considerara uma pessoa claustrofóbica, mas acordar naquele local minúsculo, escuro e gelado foi uma das piores

sensações que já tivera. Ficou tão desesperada ao ver-se ali den-tro que começou a hiperventilar. Seu coração disparou. Olhou em volta, tentando entender onde estava. Tateou, ofegante, e quando se deu conta de que se encontrava completamente trancada, come-çou a socar as paredes de metal. Uma caixa comprida e gelada onde Lorena cabia perfeitamente. Estava nua, coberta apenas por um fino pano branco. Imaginou estar vivendo uma daquelas lendas urbanas e tateou sua barriga atrás de marcas de cortes ou costuras. Nada. Aparentemente os rins permaneciam onde deveriam estar.

Os olhos arderam com as lágrimas que ameaçaram vir, e ela voltou a socar e chutar as paredes. Sentia como se elas se apertas-sem em volta do seu corpo e todo o oxigênio do lugar houvesse acabado. Começou a tremeu e suar gelado. A mente tentava buscar uma explicação para o que acontecia ou onde estava, mas nada vinha em sua memória. Não se lembrava do acidente ou de nada do que aconteceu quando fora atropelada. Continuou socando e gritou com toda a força de seus pulmões. E então, em meio ao desespero e com medo de sufocar, se levantou e bateu a cabeça com força no teto. Lorena perdeu a consciência e seus sinais vitais cessaram.

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Alguns minutos depois, acordou novamente.A cabeça girava e sentia-se nauseada. Um pensamento bobo de

que talvez pudesse estar morta e enfiada em uma gaveta de necro-tério povoou sua imaginação por um breve momento de loucura. Eu apenas desmaiei, repetia ela para si mesma. Desmaiei, desmaiei, desmaiei.

Moveu-se lentamente para evitar mais uma onda de náuseas. A cabeça doía onde havia batido. Esfregou a testa, checando se havia ficado com algum galo no local, mas não tinha nada. Tentou se acomodar o máximo que pôde naquela caixa. Precisava pensar direito se quisesse sair dali. Olhou em volta mais uma vez, repa-rando que não havia nenhuma fresta de luz. Desistiu de esperar os olhos se acostumarem com a escuridão. Afinal, o que haveria para ver? Era apenas uma grande caixa. Nada mais do que isso.

Esfregou os olhos. Pense, Lorena, pense, murmurou. E então apoiou as mãos no tórax. Foi neste momento que se deu conta do silêncio. Não havia nada. Absolutamente nada. Não havia o som de sua respiração e as batidas de seu coração também não estavam lá. Concluiu que não precisava respirar, e, por mais que seu coração não pudesse disparar no momento, nada a impediu de sentir uma pontada no peito, acompanhada de um vazio total. Uma angustia que devorava cada pedacinho de pele.

Não podia ser, não era possível, o que estava acontecendo e milhares de outras indagações tomaram conta de Lorena. Mas lá estava seu coração imóvel, jogando-lhe na cara que estava indiscu-tivelmente morta. E aquela pequena palavra de apenas duas sílabas fez com que desmoronasse. Começou com um soluço dolorido, seguido pelas lágrimas que precipitaram de seus olhos.

Agarrou a raiz dos cabelos, chorando com força, e em poucos segundos seu rosto estava encharcado. Balançou a cabeça, incré-dula e confusa. Não queria morrer. Não queria ir embora nem

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dizer adeus. Não agora, nem tão cedo.Aos poucos, foi se lembrando do acidente. Não precisou pen-

sar muito para adivinhar que o carro havia lhe matado.Não fora a melhor pessoa do mundo e não era religiosa, mas

nunca fora má. O que fizera para merecer esse tipo de fim? Pensou nos pais e em como eles estariam se sentindo. Não tinha muitos amigos, mas se perguntava o que as pessoas à sua volta estariam sentindo naquele momento. Será que deixariam recados no seu perfil na internet? Ou levariam flores e ouviriam músicas que as faziam lembrar-se dela?

Será que estavam tristes? Ou será que não se importavam, achando que não faria diferença alguma? Imaginou se os colegas de classe reparariam na sua ausência.

Talvez nem estivesse morta, pensou ela, com um sorriso louco perpassando em seu rosto. Talvez alguém tenha lido errado os seus sinais vitais. Ou talvez era algum tipo de sonho estranho, como aqueles onde você não consegue se mexer. Voltou a chorar e balan-çar a cabeça em recusa. Aquilo simplesmente não podia ser ver-dade. Deveria existir alguma explicação plausível.

Por mais que seu coração estivesse imóvel, nada a impedia de sentir uma dor perfurante nele. A garganta e o peito ardiam enquanto soluçava, mas, ainda assim, respirar surtia tanto efeito quanto pílulas de farinha e açúcar.

Começou a pensar nas coisas que nunca faria caso realmente estivesse morta. Nunca iria para a universidade ou viajaria para outro país. Nunca teria uma família ou veria a sua novamente. Nem andaria de mãos dadas com algum garoto bonito de calça xadrez. Sentiu-se estúpida ao pensar que também nunca iria a um show do Weezer. A não ser que virasse uma alma-penada, passeando por aí. Se fosse assim, assistiria ao show que quisesse, e de graça.

O som dos passos a tirou de seus devaneios. Apurou os ouvidos

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para tentar escutar melhor. O que deveria fazer? Chamar atenção para que a tirassem dali? Mas estava morta e provavelmente aquele nem era o mundo em que vivera. Não tinha como imaginar a rea-ção de alguém se a vissem.

Não precisou tomar nenhuma atitude, pois o som das gave-tas se abrindo de uma em uma foi se aproximando. Pof, pof, pof, faziam elas com força. Imaginou os corpos dos mortos balançando dentro delas ou caindo no chão. Apertou os punhos e esperou pelo momento que sua própria porta abriria. O barulho estava cada vez mais perto agora. Lorena soltou um grito quando a gaveta abriu e seus olhos cegaram com a forte luz que a atingiu.

Esfregou os olhos, tentando enxergar. A primeira coisa que viu foi uma cabeleira escura a encarando. Depois de tudo o que pas-sara, só conseguia pensar no lençol branco que cobria seu corpo nu contra a visão do garoto. Única proteção existente. “Obrigada lençol, não preciso de mais vergonha agora que estou morta.”

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CAPÍTULO DOISSobre a parte boa de ser um fantasma

Nem fazia ideia de onde tirara a habilidade para abrir fechadu-ras, mas ser um fantasma tinha vantagens óbvias. Aprendeu

rapidamente a interagir com objetos físicos e podia abrir trancas facilmente com essa faculdade. Não que precisasse abrir as portas ou janelas, já que podia simplesmente atravessá-las, mas precisava fazer isso para tirar a garota dali.

Ouvia-a gritando na sala seguinte enquanto checava o alarme. Havia um guarda, dormindo, mas com o escândalo ele provavel-mente não seguraria o sono por muito tempo. Entrou no que gos-tava de chamar de frigorífico de presuntos. Perdera um pouco da graça agora que era um fantasma, mas o apelido ainda agradava. Já o visitara quando seus pais morreram, quando a esposa do irmão morrera, quando o melhor amigo morrera. Praticamente morava no necrotério. E não era má ideia, afinal, precisava de um lugar para ficar e assombrar.

A garota estava quieta agora. O local cheirava a ferro e estava impecavelmente limpo. Abriu as gavetas enfileiradas pela parede, tentando adivinhar em qual delas a menina estaria. Flávia, o anjo da morte que lhe dera a informação, poderia ter sido mais direta e simplesmente lhe dito qual das gavetas, pensou Lucas.

Cada uma delas exigia concentração para conseguir tocá-la e cada erro lhe presenteava com uma visão pior que a outra. Costuras grosseiras, membros perdidos, olhos vidrados. Nunca gostara de

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ver sangue ou coisas mortas e o cheiro daquele lugar começou a deixá-lo enjoado. Talvez assombrar o necrotério não fosse uma boa opção no final das contas.

Foi quando escutou um grito esganiçado ao abrir uma das gavetas que soube ter acertado. Isso e o fato de o lençol não cobrir todo o corpo da garota, que estava sentada e olhando-o direta-mente nos olhos. Eles se encararam por vários segundos e caso tivessem fôlego para segurar, o teriam feito. A verdade é que Lucas mal reparou que ela estava seminua, só ficou momentaneamente paralisado pelo fato de ter sido visto por alguém.

E dando-se conta da indelicadeza, cobriu o rosto com as mãos.— Me desculpe, juro que não foi intencional — balbuciou ele,

olhando para trás. Deu uma espiada para garantir que ela havia se coberto antes de virar.

Da última vez em que havia visto uma menina nua, tinha cinco anos de idade e levara um tapa no rosto. Sem contar que a menina era sua prima.

A garota se encolheu e cobriu o corpo, olhando em volta com os olhos apertados e parecendo muito confusa.

— O que diabos está acontecendo? — perguntou ela com os olhos molhados e a voz fraca.

Teve pena dela, mas sentia-se extremamente constrangido quando alguém o fitava, mesmo naquela situação — e o fato de ela estar coberta apenas por um pano também tinha sua parcela de culpa. Nunca conseguia tirar da cabeça que o estariam julgando ou que o achavam esquisito quando o encaravam daquele jeito. Nunca tivera um pingo de autoestima e nem sequer tinha uma mãe para lhe mentir e dizer que era bonito.

Lucas desviou o olhar pensando na própria aparência. Absurdamente magro e ainda por cima alto, o que lhe dava uma aparência de desengonçado. O cabelo preto que ficava desgrenhado

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não importando o que fizesse. Uma argola no canto esquerdo da boca e os alargadores pretos. Lembrou-se imediatamente da menina que estudara com ele que sempre dizia que Lucas vivia eternamente em 2006 com suas roupas de adolescente alternativo.

Sua cara de fantasma era ainda mais pálida do que fora quando ainda tinha um corpo. Gostava do fato de não ser transparente, pois achava aquilo idiota, clichê de cinema barato. Queria ter esco-lhido outra roupa no dia fatídico em que resolvera desencarnar. A blusa de manga comprida e listrada de preto estava desbotada. Começou a enjoar do cinto de taxas e da calça apertada com All Stars.

Ele voltou a olhar para a garota, que ainda aguardava resposta.— Não sei bem — disse ele, apressando-se. — Mas sei alguém

que pode ajudar, me ajudou.— E o que é você? Isso é o inferno ou algo assim?De todos os insultos que Lucas podia imaginar, ser comparado

a um demônio, mesmo que sem querer, era definitivamente o pior deles.

— Não, cara. É só o necrotério.— O quê?Lucas conseguiu dar uma boa olhada na etiqueta presa no pé

dela antes que ela se levantasse com o lençol enrolado em volta do corpo e começasse a andar pela sala. Lorena Carvalho. Achou que ela estava em ótimas condições para um zumbi que morrera atropelado.

— Você está morta — disse Lucas, apenas para se certificar de que ela já havia percebido isso.

Ela o encarou e revirou os olhos.— Não tenho sinais vitais e acordei em uma gaveta de metal.

É, acho que percebi que estou morta. Mas quando acordei eu ainda estava respirando.

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Tentou ignorar a agressividade na voz dela e lembrou-se que ela só estava acordando agora. Não era fácil descobrir que você não tem mais nada pela frente.

— Me disseram que você é um tipo de zumbi — disse ele. — Ainda tem o seu corpo. As pessoas podem te ver como se esti-vesse viva e tudo o mais.

— Você está me dizendo que sou um zumbi? E o que é você, por acaso? Eu também estou te vendo.

— Eu sou só um fantasma, igual a qualquer outra pessoa que morre e continua na Terra. Nada muito emocionante.

Lorena começou a rir. Perguntou-se se era um dos estágios do luto. As risadas provavelmente eram sinais de que estava saindo do estágio da negação para o de raiva.

— Então você está me dizendo que eu sou um zumbi e você é um fantasma? — ela soltou um misto de bufada com riso — Você só pode estar tirando com a minha cara. Essa é a coisa mais imbecil que já me disseram. Se você dissesse que estamos, sei lá, na recep-ção do Céu, eu teria até pensado em acreditar. Até parece! Zumbis e fantasmas! O que vem depois? Fadinhas?

— Lorena... — disse ele bem baixo — Acho que você deveria parar de gritar. Tem um--

— Eu vou parar de berrar quando eu quiser parar de berrar!Lucas estacou onde estava, apontando para a porta. Alguém

gritando com ele daquele jeito ainda era muito melhor do que metade das coisas das quais tinha sido chamado na escola. Mas naquele momento em particular estava mais preocupado com os sons de passos apressados se aproximando.

A porta se abriu com violência e teve poucos segundos para registrar o guarda de arma em punho, disparando involuntaria-mente com o susto.

A bala atravessou o corpo de Lucas e foi se alojar na testa de

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Lorena. Ela cambaleou vários passos para trás, levando a mão à cabeça com horror.

— O que diabos você está fazendo? — gritou ela para o homem.

Não houve resposta alguma do guarda. Estava em choque. Lucas não sabia se pelo fato de ter atirado em alguém ou se por esse alguém ainda estar de pé.

Ele olhava fixamente para Lorena, que o olhava de volta com uma expressão de quem iria voltar a gritar.

— Acho que ele está em choque — observou Lucas.— Por que ainda estou viva? — perguntou ela, com o dedo no

furo da bala, passando a ignorar o guarda e se olhando no reflexo de uma das gavetas. Um filete de sangue escorria pelo furo.

— Mas você não está viva — respondeu Lucas.— Oi, eu sou um zumbi! Tiros na cabeça me matam!— Você não é um personagem de The Walking Dead, Lorena. É

só uma coisa que não está nem viva nem morta.— E como você sabe meu nome?— A etiqueta enorme no seu pé responde a pergunta?Lucas se aproximou do guarda que continuava com o braço

esticado segurando a pistola. As pernas dele tremiam.— Deveríamos sair daqui antes que ele volte a si.Lorena o ignorou e se agachou, arrancando a etiqueta do pé e a

rasgando em milhares de pedaços. Lucas deu de ombros, segurou o braço dela e a arrastou para fora do dali. Ela resmungou e pra-guejou durante todo o trajeto.

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CAPÍTULO TRÊSQuando Lorena descobre que não precisa ter medo de armas de

fogo

Foi arrastada pelo garoto de cabelos negros e piercing no lábio por toda a pequena construção que era o necrotério. Reconheceu

onde estavam quando chegaram à rua. O necrotério ficava em uma casa pequena em uma área mais afastada do centro de Balneário Camboriú. A universidade ficava por perto. Universidade esta em que nunca entraria.

Era noite e não havia ninguém em volta. Aquela área era um abandono nas madrugadas e os carros só passavam por ali para chegar à rodovia. Ou a algum dos inúmeros motéis baratos. Lorena parou na calçada e ajeitou o lençol para ter certeza que ele cobria todo seu corpo. Algumas pessoas podiam pegar retalhos e os trans-formar em bolsas, saias chiques ou lenços. Para ela, que nem fazia ideia para que servia blush, os panos multiuso eram um grande mistério.

— Deveríamos achar algum lugar para você ficar e algo que possa vestir. Depois vamos até a Flávia — disse ele, olhando de esguelha para a porta do necrotério.

— Onde você mora? — perguntou ela.O garoto deu de ombros.— Não faz diferença, ninguém pode me ver ou ouvir. Mas

você, além de poder ser vista, tem a mesma aparência, podem te reconhecer.

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Ele tinha razão. Caso ficasse naquela situação por mais tempo, precisaria se disfarçar, mesmo que não conhecesse pessoas sufi-cientes para que isso acontecesse rápido. Ela sabia o lugar perfeito para se esconder.

— Sei onde podemos ir. É a casa da minha tia, ela trabalha na Europa, vai ficar lá o mês inteiro. — “A não ser que ela venha para meu funeral, e se ela não vir eu vou ficar muito revoltada”, pensou ela.

Lucas simplesmente virou o rosto para a rua sem dizer nada. Teve que admitir que ele era bonito. Afinal, estava morta, não velha. E o fato de ele ser tão quieto era uma vantagem. Pelo menos não precisaria ficar interagindo socialmente.

— Qual o seu nome? — perguntou ela. — Por que você veio até aqui me ajudar?

Ele tentou chutar uma pedra no chão e o pé simplesmente atra-vessou a rocha. Colocou as mãos nos bolsos, ainda olhando para o chão.

— Lucas — respondeu simplesmente.— Quem é essa Flávia?— Um anjo da morte — respondeu ele. — Mas precisamos

sair daqui. Explico mais depois.Ela concordou e começou a andar. Não estavam muito longe,

em vinte minutos de caminhada deveriam chegar. Pegaria um cami-nho mais escuro e abandonado para evitar ser vista daquela forma, passando pelas diversas ruazinhas entre os blocos. A cidade estava calma naquela noite. Nenhuma festa em volta, nenhum grupo de amigos, nenhum carro com música alta. Era outono e aquela época do ano era agradável, apesar do frio que começava a fazer. Desviou de algumas poças e andou pelo asfalto durante parte do trajeto. A cal-çada ali estava totalmente quebrada e não queria sujar os pés na lama.

Foi só depois de dez minutos de caminhada que se lembrou

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de que não tinha as chaves e estacou no local. Lucas, que andava atrás dela, atravessou-a. A sensação foi idêntica a passar por baixo de uma queda de água, porém não tão gelado como imaginou que seria. Lucas se virou para fitá-la.

— O que foi? — perguntou ele.— Não tenho as chaves.— Você não precisa de chaves. Tem alarme na casa?— É um apartamento. Tem sim, mas eu sei o código.— Não tem problema. Eu consigo abrir a porta. Aí você corre

e digita o código do alarme.Lorena não se moveu. Acabara de levar o dedo até a ponte do

nariz para ajustar os óculos, que por acaso não estavam ali. Deu de ombros, resmungou uma resposta e voltou a andar. Mesmo com seis graus de astigmatismo, estava enxergando perfeitamente. Pensou em milhares de perguntas que poderia fazer, mas ficou calada. Não sabia até onde ele estava disposto a conversar. Lembrou-se de que ele não respondera quando perguntou por que ele a havia ajudado. Queria saber o motivo de ter virado um zumbi e o que acontece-ria agora que seu corpo sumira do necrotério. Procurariam pelo corpo dela? Certamente não iriam acreditar no guarda quando ele dissesse que a vira andando e sobrevivendo a um tiro. Levou a mão na testa e tateou em busca do furo da bala. Não encontrou nada. Apenas um pouco de sangue já coagulado.

Lucas, reparando nela, comentou:— Você vai regenerar sempre que se machucar. Estilo Jason.Lorena abriu a boca para fazer um comentário, mas ele a inter-

rompeu continuando sua linha de pensamento:— E antes que você faça algum comentário idiota, não, você

não é um vampiro.— Precisava ser tão babaca?— Eu fui babaca? — perguntou ele. — Desculpa, eu

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nem reparei.Achou que ele estava sendo sarcástico, mas a expressão de ino-

cência no rosto dele indicava que ele realmente não percebera a forma como falara. Talvez fosse a falta de interação com pessoas. Até agora não a fitara nos olhos nenhuma vez.

Andaram em silêncio até chegarem ao prédio. Lorena agra-deceu que não havia portaria ali. Lucas abriu a porta do hall de entrada com um pouco de dificuldade. Subiram pelo elevador e entraram no apartamento da tia.

Depois de digitar o código do alarme, Lorena se deixou cair no sofá da sala. O apartamento era pequeno, mas aconchegante e muito bem decorado. Uma das paredes era roxa e as almofadas do sofá eram de patchwork, cada uma de uma cor. Havia um grande aparelho de som ao lado de um vaso de bambu da sorte de mentira, já que a tia nunca estava em casa para cuidar de plantas. A parede oposta estava repleta de quadros e havia um velho pôster amassado do The Strokes, quase caindo.

Lucas se sentou no tapete em silêncio, fitando a estante de livros que ficava acima da televisão e correndo os olhos por tudo. Talvez, pensou Lorena, ele estivesse pensando no tempo que tinha para ler todos os livros que quisesse. Foi com esse pensamento na cabeça que adormeceu.

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CAPÍTULO QUATROGarota, você está mortinha, mortinha mesmo

Lorena adormeceu no sofá sem sequer arrumar algo para ves-tir. Lucas tirou a manta da poltrona de canto e jogou sobre

ela, que resmungou enquanto se colocava em posição fetal. Ficou imaginando o quanto ela xingaria e berraria quando acordasse e percebesse que estava respirando novamente. Lucas estava particu-larmente curioso em relação à condição dela. Queria saber por que era assim, por que ainda tinha corpo físico depois de morta e qual era a lógica de o coração dela voltar a bater sempre que dormia.

Sempre fora uma pessoa curiosa e o mundo sobrenatural era para ele um universo perfeito para ser explorado e tentava ver tudo com sua mente lógica – mesmo quando tudo parecia impossível.

A parte difícil de alimentar sua curiosidade era que os anjos da morte costumavam ser muito vagos ao responder qualquer tipo de pergunta. Não sabia se eles mesmos não sabiam a resposta para muitas delas ou se deveriam manter segredo acerca de tudo.

Entediado, andou pelo apartamento, conhecendo a cozinha excessivamente colorida e o banheiro que cheirava a melancia. A tia de Lorena deveria ser muito jovem, ou pelo menos tinha um bom gosto para decoração, música e livros. O quarto dela era enorme, com uma estante abarrotada, televisão plana em uma das paredes e pequenos vasos de plantas falsas. A cama estava bagunçada e repleta de roupas e brinquedos de criança por cima. Gravuras de Andy Warhol em molduras coloridas faziam às vezes

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de cabeceira para a cama box.A cortina estava aberta deixando entrar uma faixa de luz, o

que não era muito comum por ali. Aquela era uma sina da cidade, o excesso de edifícios fazia com que as casas e apartamentos pre-cisassem disputar o sol. Apoiou-se na janela e ficou encarando o pedaço de mar que aparecia espremido entre dois prédios. Podia ouvir as ondas quebrando na praia e o céu começou a adquirir a cor dourada do sol que nasceria em poucos minutos. As nuvens cobriam o horizonte em manchas rosadas.

Ficou ali por um bom tempo, remoendo pensamentos, até que resolveu continuar seu tour pelo lugar. Havia ainda o quarto da criança e mais um, no qual não entrou. Não teve tempo, pois ouvira um palavrão vindo da sala. Foi até lá e, quando olhou para Lorena, viu que ela encarava as próprias mãos, apertando-as e sol-tando em seguida. Ela respirava profundamente e soltava o ar bem devagar. Então deu uma pequena risada.

— Eu sabia que tudo não passava de um sonho estúpido — disse. — Parece tão idiota agora que estou lembrando. Até parece que virei um zumbi!

Lorena soltou mais um risada sem graça antes de se virar para onde estava Lucas e levar um susto. A expressão no rosto dela foi de dar pena, afinal, ver Lucas significava que aquilo realmente não havia sido um sonho.

— Por favor, me diga que ainda estou dormindo!— Não, você não está — disse ele.Ela sacudiu a cabeça e bateu no próprio peito.— Então como você explica isso, hein? — ela apontou seu

coração. — Ele tá batendo, e eu tô respirando!Lucas soltou um longo suspiro e se sentou ao lado dela, enca-

rando os próprios tênis.— Eu disse que você é diferente, uma coisa que não está nem lá

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nem aqui.As sobrancelhas dela se uniram num sinal de confusão. Lucas

parou um momento, pensando em como explicar.— É como aqueles casos de quase morte, sabe? Quando

alguém morre no hospital e volta depois? Você é assim, só que um pouco diferente. Seu corpo está morto de fato, mas é como se sua alma ainda se agarrasse à vida e isso o anima. O estado do seu corpo muda quando dorme. Da próxima vez estará como morta de novo.

Lucas continuou encarando os pés, Lorena não disse nada e não se moveu. Esperou ela começar a brigar, mas ela apenas lhe deu um sorriso frustrado.

— Então já era mesmo? — indagou ela, por fim.— Sim — respondeu Lucas. — Você tá mortinha. É como os

fantasmas, você ficou porque tem algum objetivo ou algo inaca-bado. Os anjos da morte são assim também. Ficam nessa função antes de ir para o Mais-Além.

Olhou-a de relance. Ela estava de cabeça baixa e lágrimas silen-ciosas escorriam por suas bochechas. O nariz dela era pequeno e redondo. Os olhos bem pretos. Os lábios finos tremiam no que considerou uma tentativa de não chorar. O cabelo manchado de rosa, roxo e castanho, frisado e colocado todo para o lado de forma desalinhada.

— O Mais-Além é o que? — ela perguntou.Lucas desviou o olhar e quando ela se dirigiu a ele, deu de

ombros.— Ninguém sabe. Nem os ceifadores. E sempre são bem

vagos. Flávia é a ceifadora que me ensinou tudo. Ela disse que é impossível saber, exceto quando se chega lá.

Ela balançou a cabeça, fazendo que entendia.— Vou me vestir — disse ela simplesmente. Se levantou e foi

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em direção ao corredor, agarrando o lençol.Lucas deitou no sofá, apoiando a cabeça nas mãos. Sabia por

que Flávia o mandara até ela e sabia o seu objetivo, mas desconhe-cia totalmente o objetivo de Lorena. E esse desconhecido lhe dava medo. E o fazia se perguntar se era aquilo mesmo que queria.

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CAPÍTULO CINCOE por que visitar seus pais depois de morta é uma péssima ideia

Lorena se trancou no quarto. Costumava passar os fins de semana com a tia, muito mais liberal que sua mãe, que não a

deixava sair ou escutar música alta. Tentou não pensar na família, agitando as mãos na frente do rosto como que espantando uma nuvem de pensamentos. Sentou-se na cama, bem de frente para o calendário com fotos de gatos que a tia colocara sobre a estante. Passara uma noite inteira morta numa gaveta e essa informação se demorava em seu cérebro, se recusando a ser computada.

Puxou na memória o horário que saíra dali para voltar para casa, tentando contar nos dedos há quantas horas estava morta. Não conseguia para de imaginar os pais vendo seu corpo. Caso não tivesse acordado, provavelmente seria enterrada dali poucas horas, lá no cemitério de Blumenau onde ficava o jazigo da família. Odiava aquele lugar. Quando criança, os primos sempre a assus-tavam, dizendo que os túmulos quebrados eram portais de onde vinham fantasmas. E pensar que eles estavam quase certos. E que roupa será que eles teriam escolhido para ela? Algum vestido sem sentido ou uma de suas roupas preferidas? Que flores colocariam no caixão em volta dela?

Soltou um suspiro lento com sua recém recuperada respiração.O despertador lhe dizia que eram cinco e quarenta da manhã.

Pensou em tudo que Lucas lhe dissera, sentindo uma queimação na garganta. Então se levantou. Precisava deixar aquilo de lado

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ou enlouqueceria.Vestiu uma legging preta e uma camisa branca com a frase

“Love will tear us apart” do Joy Division. Calçou o All Star, mexeu nos cabelos para bagunçá-los do jeito que gostava, colocou seus brincos de raios e uma pulseira. Apenas ao se olhar no espelho do armário que se deu conta de quão diferente ficava sem os óculos. Aproximou-se do vidro, encarando o próprio rosto. Conseguia enxergar com perfeição. Os graus de astigmatismo haviam desa-parecido completamente. Ninguém a reconheceria assim, pensou. Deu de ombros, achando que aquilo era o suficiente como dis-farce. Não se deu ao trabalho de colocar um casaco. Tinha uma boa noção de temperatura agora que estava morta, mas não sentia frio.

Fitou o relógio mais uma vez. Que mal faria, pensou, ninguém ficaria sabendo. Lucas acharia que estava se arrumando. A casa dos pais era logo ali, a uns três quarteirões. Não faria mal algum dar uma espiada.

Abriu a porta lentamente e espiou pelo corredor. Nem sinal de Lucas. Trancou a porta atrás de si e andou pé ante pé até a cozinha. Havia uma pequena área de serviço nos fundos e lá, a porta da área de serviço.

A chave sempre ficava na fechadura, já que só a usavam para colocar o lixo pra fora. Saiu do apartamento o mais silenciosa-mente que pode. Cobriu o rosto com o cabelo ao passar por alguns moradores no hall de entrada e partiu em disparada.

Fechou os punhos com força e correu, sentindo o ar entrar nos seus pulmões, seus pés batendo no chão e a dor no diafragma ao correr. Sentiu o coração bater acelerado. A vida em cada um de seus dedos, no ar que batia no rosto e nas lágrimas que des-ciam pelas bochechas. Não se iludia em pensar que aquilo era vida de verdade, mas era o que desejava que fosse. Naquele momento,

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perdeu toda e qualquer vontade de descobrir qualquer coisa que fosse sobre aquele novo mundo.

Os milhares de prédios, pessoas, carros e lojas, passando por ela como borrões, sendo completamente ignorados. A vida da cidade começando cedinho. O ar fresco da manhã e o sol que apensa começava a despontar. As pessoas indo para o trabalho usavam suas jaquetas grossas e cachecóis no pescoço, falando ao telefone e comendo pães de queijo ao mesmo tempo.

Ia andando, pisando nas folhas secas, ouvindo-as esfarelar-se sob seus pés. Chutava pedregulhos espalhados pelo chão e juntou um pacote de salgadinhos, jogando-o no lixo.

Quantas vezes já não pensara na morte enquanto viva? Ou sentira que sua vida era inútil e não valia a pena? Precisou morrer para apreciar cada pulsação no peito. Mais do que nunca, queria estar viva. Sentir frio e calor. Levar um sermão dos pais. Tomar um sorvete vendo algum filme bobo. Se apaixonar por um cara que não valia nada. Fazer um amigo. Perder um amigo. Qualquer coisa.

Cada metro que se aproximava do que um dia fora sua casa, sua garganta se apertava mais. Diminuiu o passo, apertando o peito dolorido e ofegante. Andou as três casas seguintes e se sentou de frente para a rua, no muro baixo de um terreno baldio.

Ficou de olhos fechados, ouvindo o som do vento nas árvores e secando as lágrimas do rosto. O nariz coçava com o esforço que fazia para não chorar igual uma criança. Esperou até criar coragem para abrir os olhos. Quando o fez, um pequeno sobrado surgiu à sua frente. Ficava bem na esquina. Um quintal pequeno, decorado com flores simples e um fícus de dois metros ao lado da porta. A árvore estava plantada em um grande vaso vermelho, que ela mesma pintara quando mais nova.

Naquele bairro os prédios rareavam em comparação com o grande centro da cidade, e, naquela calmaria, parecia que estava

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em outro mundo. A brisa da manhã bagunçou ainda mais seus cabelos enquanto ela encarava a casa em que nunca mais entraria. Estava tudo fechado. Apenas olhando, ninguém poderia adivinhar que aquela família acabara de perder a filha. Um menino passou de bicicleta, atirando jornais nos quintais das casas. Viu o vizinho idoso levando água para o cachorro. Uma mulher fumava um cigarro, apoiada na janela da varanda. Tudo parecia extremamente normal.

Voltou a olhar para a casa dos pais. Havia um enfeite novo na porta. Algum símbolo chinês. Também haviam trocado a velha caixa de correio por uma nova.

Deu-se conta do quão insignificante era. Não como pessoa, mas de maneira geral. Quantas pessoas morriam por dia? Por que ela faria diferença? O mundo estava cheio de gente, e por mais que sua morte fizesse diferença para sua família, não afetaria em nada o resto do mundo. Tudo continuava completamente normal, mesmo no número 87 daquela rua pacata. A vida continuava. Todos conti-nuavam. Como uma barata morta a chineladas em uma infestação. Não faria a menor diferença matar aquela barata se as outras con-tinuavam vivas.

A não ser que ela voltasse como zumbi e ficasse andando por aí, pensou Lorena. Ela soltou um longo soluço e cobriu os olhos com as mãos, segurando o choro. Fitou a casa por entre os dedos e, sem conseguir se conter, começou a chorar. Seu corpo inteiro tremeu.

Lembrou-se do cheiro que a mãe tinha. Das mãos ásperas do pai. Da priminha que ficava com eles quando a tia viajava. Aquela coisa pequena de risada irritante que riscava seus cds. Lembrou-se de tudo isso, sabendo que nunca mais poderia ficar com eles. Não teria mais chocolate na Páscoa ou surpresas no Natal. Seu pai já tinha dito que estava muito velha para presente de dia das crianças,

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e ele tinha razão. Sua mãe não prepararia mais estrogonofe de camarão no seu aniversário. Seu preferido. Nunca mais iria até a praia para escolher conchas e pedras para brincar com a prima. Nem encontraria os amigos na pracinha na noite de sexta. O que faria quando a tia voltasse da Europa? Iria assombrar um cemité-rio? Vagaria por aí sem rumo? Será que haviam outros como ela? Eram muitas as coisas que ela não sabia. E por mais que quisesse e precisasse entender esse novo mundo, queria ficar longe das respostas. Como se elas fossem a confirmação de todos os seus temores.

Foi quando alguém se sentou ao lado dela. Sabia que era Lucas. Afinal, era o único que faria isso agora que estava morta. Ele tam-bém tinha um cheiro, que nem a mãe dela. Mas era diferente. Era cheiro de carro, aquele cheiro dos assentos novos misturado com algo a mais.

— Vai embora — disse ela.— Você não deveria estar aqui.Lorena não se importou. Só queria ser deixada sozinha.— Eu sei que é difícil. Se foi para mim, imagino como é para

você, que tem família.Surpreendeu-se com aquelas palavras. Então ele não tinha

família? Virou o rosto parapoder enxergá-lo. Lucas continuou:— Por favor, só entenda o que eu quero dizer — ele desviou

o olhar. — Você pode lamentar o quanto quiser, mas não pode ser vista de forma alguma.

— Ninguém vai me ver aqui. E não é como se eles esperassem me ver. Nem vão me reconhecer.

Ele balançou a cabeça.— Você está enganada. Quando a gente perde alguém, começa

a ver essa pessoa em todos os lugares. Qualquer um que passe,

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você acha que é essa pessoa andando por aí. Um cabelo parecido, alguém da mesma altura. Um borrão. Tudo nos faz pensar que a pessoa voltou. No começo, bastante, depois, menos. Até que você se acostuma e aceita que não a verá mais. Aí para de ver.

Lucas olhava em frente, com olhos desfocados. Seu rosto não expressava muita coisa. Continuava estático como sempre esti-vera. Mas os olhos não mentiam, havia algo ali. Não estava apenas falando de perder alguém, estava relatando a própria experiência. Pela primeira vez desde que acordara morta, Lorena percebeu que não era a única pessoa sozinha. Fez a pergunta antes de perceber o que estava fazendo.

— Quantos anos você tinha quando morreu?Ele hesitou por um instante.— Dezenove.— Hum — Lorena esperou, mas ele não disse mais nada. —

De quem você estava falando?Ele virou o rosto lentamente quando ela fez a pergunta. Agora

olhava diretamente para ela. Primeira vez que fez aquilo. — Minha mãe — ele ficou quieto um tempo antes de conti-

nuar. — Minha mãe morreu quando eu tinha uns seis anos. Eu a via em qualquer pessoa. Segurava na mão de estranhos na rua achando que poderia ser ela.

Lorena baixou a cabeça. Nunca perdera ninguém próximo, não fazia ideia de como era ter de dizer adeus. Até os avós estavam todos vivos. O máximo que ela havia perdido tinha sido um hams-ter, e nem era tão apegada ao animal, que sempre a mordia no dedo. Seu pensamento foi interrompido pelo barulho do portão abrindo.

Lucas se levantou num pulo, se colocando na frente dela em uma tentativa obviamente inútil de ocultá-la da pessoa que havia saído da casa. Lorena sabia que deveria abaixar a cabeça, se

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esconder, mas não conseguiu. Ficou olhando fixamente para sua mãe do outro lado da rua.

— O que você está fazendo? — Gritou Lucas. — Se esconda, vamos!

Nada. Lorena sequer se moveu. Ficou olhando para o cabelo castanho e ondulado dela, tentando se lembrar da textura que tinha. E, naquele instante, sua mãe se virou para ela.

Lucas tentou puxar Lorena pelo braço, mas não conseguiu tocá-la. As mãos atravessando seu corpo como se fossem nada.

Tentou se livrar do fantasma, olhando fixamente para a mãe que a fitava de volta do outro lado da rua. A boca dela se abrindo em uma vogal não dita. Sabia que precisava sair dali, que não podia ser reconhecida e que se mãe acreditasse que aquela era Lorena de fato, tudo seria ainda mais difícil para os pais. Como aceitar que a filha estava morta se uma “sósia” dela aparecia na rua de casa um dia depois de sua morte?

A mulher deu alguns passos em sua direção. Lucas desistiu de tentar arrastá-la dali e simplesmente ficou na frente de seu rosto e suplicou:

— Por favor, Lorena, vá embora!Dando-se conta da besteira que estava fazendo, levantou-se do

muro e saiu correndo. Virou na primeira esquina, apoiando as cos-tas na parede de um prédio qualquer sem força alguma para impe-dir as lágrimas de descerem pelo rosto. Começou a chorar sem se importar se alguém a visse e sem medo de passar vergonha. Tudo o que queria, lá dentro de seu coração morto, era correr de volta para casa e abraçar a mãe. Dizer a ela que a amava, coisa que nunca havia feito em vida e agora perdera todas as chances de fazer.

Queria poder reviver cada um dos momentos que tivera com eles, os bons, os ruins, os péssimos e os maravilhosos. Se tivesse sido mais obediente e fosse menos teimosa, será que ainda estaria

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viva? Será que tudo teria sido diferente?Lucas olhava a garota chorar sem saber o que fazer. Os soluços

não diminuíam e entre eles, pedidos de desculpas e lamentos de que nunca mais poderia ver seus amigos ou família. A garota sentou-se no chão, esfregando os olhos sem conseguir secar o rosto, se esfor-çando para conseguir parar de chorar. Ficou ali, vendo o garoto se abaixar na sua frente e passar a mão em seu cabelo, tirando-o do rosto, desgrudando os fios colados à pele pelas lágrimas.

— Vai ficar tudo bem — disse ele, colocando a franja com-prida atrás da sua orelha. Ficou ali durante todos os dez minutos que Lorena levou para se acalmar.

Então foi deixada sozinha com seus pensamentos e agradeceu por isso. Não queria precisar dividir aquilo tudo com um completo estranho. Naquele momento, preferiu a solidão. Pouco tempo depois, o fantasma voltou e sentou-se ao seu lado mais uma vez.

— Lorena, só, por favor, não faça mais isso. Existem umas regras que--

Ele parou de falar quando a garota bufou em sua direção, dando uma meia risada e balançando a cabeça com um sorriso irônico no rosto.

— Você realmente acha que eu tô preocupada com regras e anjos da morte e fantasmas? Vocês todos podem ir pro inferno. Só me deixa em paz, por favor.

— É sério. — Lucas insistiu. — Existem caçadores nesse mundo e eles podem vir atrás de você. Sem falar que o povo do Mundo Espiritual fica possesso de raiva quando um de nós aparece por aí.

Não impressionada, Lorena se colocou de pé e chutou com força um pedregulho, que foi parar em um terreno baldio perto dali.

— Eu morri, você é um cara que veio do completo nada e acha

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que pode ficar largando regra na minha vida – perdão – não vida. Não, obrigada.

— Okay, então — ele respondeu, jogando os braços para cima e começando a se afastar — Boa sorte quando vieram atrás e você. E boa sorte achando seu ceifador sozinha.

Ficou parada na esquina, vendo ele se afastar e se sentindo mais sozinha a cada passo que ele dava na direção oposta. Ele podia ser chato com todo aquele papo de regras, podia ser um sabichão que achava saber de tudo sobre a morte, mas era tudo o que ela tinha. E, apesar da raiva que sentia pelo que havia acontecido, sabia que ele tinha razão. Não é como se mortos ficassem aparecendo o tempo todo por aí, afinal eram um segredo que só alguns poucos se dignavam a acreditar.

Deixou o orgulho de lado e o seguiu. Ele parou de andar, tor-ceu a boca para ela:

— Mudou de ideia?— Vamos embora, esse lugar me deprime.Começaram a andar de volta para o apartamento, mas, antes de

virar na esquina da avenida, Lorena parou por um tempo e ficou ali plantada sem me mexer. Não tinha mais um lugar no mundo. Só o apartamento, e mesmo assim teria de abandoná-lo em breve. Olhou para Lucas à sua frente. A única coisa que tinha agora. Um total desconhecido. E só. Sabia que precisava se ater àquilo.

Andou alguns passos, sentindo o sol bater no seu rosto. Então virou-se para trás, dando uma última olhada nas janelas, no fícus, no portão. Gravou aquela imagem o máximo que podia na memó-ria. Até as partes descascadas da pintura, lá onde o guidão da bici-cleta raspou na parede.

— Adeus — disse ela baixinho.E nunca mais voltou lá.

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CAPÍTULO SEISNo qual a campainha toca e cabelos são pintados de azul

Lucas acompanhou Lorena até uma farmácia antes de voltarem para o apartamento. Ficaram quietos durante todo o tempo.

Ele não sabia muito bem o que dizer a ela e preferiu ficar quieto, evitando falar alguma besteira. Não reparou muito no que ela com-prou lá, apenas esperou do lado de fora. Nunca gostara do cheiro de farmácias, remédios ou hospitais. Ela voltou com um grande saco de papel e com a promessa de que arrumaria um disfarce melhor. Agradeceu pelo surto de bom senso. Lucas não queria pro-blemas por falta de responsabilidade dos outros.

Já no apartamento, Lorena se trancou no banheiro e ele ficou na sala. Desejava poder dormir. Estava cansado de ficar acordado o tempo todo. Já tentara ficar deitado de olhos fechados, mas não acontecia nada. Técnicas de meditação eram inúteis. Tinha que haver algo que pudesse fazer para simular um sono e ter alguns instantes de paz.

Foi até o estéreo e passou os olhos pelos cds que estavam nos suportes. Talvez, colocando música alta e fechando os olhos pudesse fingir que estava dormindo. Ou, pelo menos, descansar. Aquela pequena missão que haviam lhe dado estava começando a incomodar. Achava que precisaria ajudar apenas uma garota qual-quer, mas Lorena era diferente. Identificava-se com ela. Em muito tempo, foi a primeira pessoa que pensou em, quem sabe, consi-derar como amiga. E só estavam juntos há poucas horas. Talvez

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Flávia estivesse certa: o destino deles estava entrelaçado. Seus olhos encontraram o que sua mente precisava. Colocou o cd em uma das gavetas, aumentou o volume, acionou o repetir e deitou no sofá de olhos fechados. Ouviu Comfortably Numb várias vezes. E o efeito foi exatamente o que esperava. Fora o mais perto de dormir que tivera em dias. Podia ficar ali sem pensar em nada e relaxar a mente por pelo menos um pouquinho de tempo.

Lorena continuava trancada no banheiro. Podia ouvir o baru-lho do chuveiro agora. O que ela iria achar quando descobrisse a verdade sobre ele? Começava a sentir-se mal com o que estava fazendo e o que estava escondendo. Não tinha certeza se era o certo a ser feito, mas foi a ceifadora quem sugeriu. Ela provavel-mente tinha razão sobre aquilo e o que era melhor para a garota. Queria contar a ela toda a verdade, mas simplesmente não pode-ria. Não tão cedo. Ela sequer havia se acostumado com a ideia de estar morta. E, de preferência, deveria deixá-la acreditando que ele estava morto há muito tempo, ou não teria confiança nele. Sim, pensou ele. Seu foco era ajudar ela, não a si mesmo. E faria o que fosse preciso para fazer isso.

Sua mente estava longe quando ouviu as batidas na porta. Não se moveu. Elas continuaram. Não queria levantar, queria ficar des-cansando e aproveitar aqueles breves instantes de silêncio mental. Novas batidas, mais fortes e insistentes. Sentou-se no sofá com uma carranca, desligou o rádio e continuou ouvindo. Seja lá quem fosse, seria óbvio pra eles que havia alguém em casa, de tão alto que estava o volume do som.

Voltou-se para o corredor ao ouvir uma porta se abrindo. Praticamente não reconheceu a pessoa que veio para a sala com passos apressados. O cabelo estava azul e cortado acima dos ombros em um chanel desordenado. O corte a deixava mais nova e emoldurava o rosto redondo. Não teve tempo de ficar reparando

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na aparência nova de Lorena, pois ela se dirigiu diretamente para a porta. Lucas foi até ela de um salto, tentando puxá-la para trás, mas não teve tempo de impedi-la.

Quando a garota tocou a maçaneta, uma grande mão branca atravessou a porta e a agarrou pelo pescoço. Lucas deu um pulo na direção dela, mas a mão começou a subir, tirando os pés de Lorena do chão. Ela soltou um grito, tentando se desvencilhar e agarrando o enorme punho branco. Lucas ficou paralisado. Sabia quem eram as pessoas do outro lado.

A porta se abriu com força, batendo em Lorena e atirando-a ao chão. Pela porta, vieram duas figuras, a maior delas um grande fantasma esbranquiçado, usando uma boina preta e um charuto apagado no canto da boca. O segundo, mais baixo, não era translú-cido como seu colega. Usava um terno risca de giz com tênis. Um chapéu panamá na cabeça, completamente deslocado.

Lorena se arrastou até ficar de pé, respirando com dificuldade. O homem mais baixo começou a rir.

— Ora, ora, olha o que encontramos, não é uma gracinha? — Sua voz era estridente e irritante.

O mais alto começou a rir também. Flávia havia falado sobre eles, eram fiscais. Tomavam conta para que fantasmas, zumbis como Lorena e outros seres não aparecessem em público. Imaginou que uma hora eles apareceriam. Principalmente depois do que ela fizera.

— Quem são vocês? — perguntou ela, a voz esganiçada.— Quem faz as perguntas aqui somos nós, pirralha — disse o

mais baixo e gordo. — Quem é o incompetente do seu ceifador?Lucas estava certo de que ela falaria besteira só de ver a expres-

são na cara dela. Desejava que ficasse quieta para que ele mesmo pudesse responder. Percebia agora que deveria ter respondido as dúvidas dela, explicado mais. Achou que teria tempo de levá-la até

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Flávia antes que algo acontecesse. Mas não. Ela teve de correr até a casa de seus pais.

— O quê? — Perguntou Lorena.Novas risadas vieram dos fiscais.— Quem é seu Anjo da Morte? Quem ceifou você? Disse capuf,

tchau vida? Te empacotou. Cortou o cordãozinho de prata. Preciso desenhar?

Lorena fitou Lucas com os olhos assustados.— É Flávia — disse Lucas, indo à frente. — A enfermeira do

Hospital Santo Agostinho.Os dois fiscais se entreolharam e balançaram a cabeça, entrando

no apartamento e fechando a porta atrás deles.— Menina, menina... — começou o baixinho, se aproximando

de Lorena que dava passos para trás. — O que diabos vocês estava fazendo morta e apodrecida na frente da sua avivada mãe?

— Eu, eu... — Lorena continuava recuando, até que suas per-nas bateram na mesa de centro e teve de parar.

O fiscal ficou na ponta dos pés para se aproximar do rosto dela, mas ainda não passava da altura de sua barriga.

— Sua ceifadora por acaso lhe explicou o que acontece com zumbizinhos metidos a vivos? — Ele balançou o dedo curto e gordo.

Lorena se limitou a balançar a cabeça. Ele se afastou, deu meia volta e continuou encarando a garota.

— Assim como nos filmes idiotas que fazem para vocês ado-lescentes, existem caçadores. E eles não querem saber se você é boazinha ou o fantasminha camarada como esse cara aí — apon-tou para Lucas com a cabeça. — Você pode se ajoelhar e implorar e jurar que é do bem, mas eles vão te matar definitivamente mesmo assim. Ah, e eles sabem como fazer isso. Não é, Gasparzinho?

Lucas afirmou com a cabeça. A verdade é que sabia muito

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pouco sobre os caçadores ou sobre qualquer outra coisa. Flávia disse que zumbis podiam pegar fogo e mesmo assim voltariam, então, se nem isso acabava com um deles, o que poderia?

— Sem contar no povo que pode levar vocês para o inferno — ele soltou uma risada engasgada. — Isso é um aviso — gri-tou, quase cuspindo. — Na próxima vez que seu rostinho aparecer perto de um parente, vou te levar algemada e te prender até que você aprenda. Quer se matar, vá em frente, mas pare de colocar nosso delicado equilíbrio em jogo.

Lorena balançou a cabeça em concordância rapidamente. Parecendo satisfeitos, os dois fiscais foram para a porta.

— Vamos embora — disse o mais baixo.— Sim, chefe — respondeu o fantasma enorme e o seguiu.— Precisamos ter uma séria conversa com aquela doida e achar

um médium pra esses dois.Lucas e Lorena se entreolharam. Os dois fiscais resmungaram

alguma coisa em tom baixo um com o outro. Antes de fecharem a porta, o chefe concluiu:

— É bom vocês ficarem longe de problema, moleques.E bateram a porta com força na saída.