Dialnet-HumeEAEpistemologiaDeJoaoPauloMonteiro-3044794

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Natal, v. 16, n. 25, jan./jun. 2009, p. 283-294 RESENHA MONTEIRO, João Paulo. Hume e a Epistemologia; revisão de Frederico Diehl [1ª. ed. brasileira]. – São Paulo: Editora UNESP; Discurso Editorial, 2009. (232 p) Marília Côrtes de Ferraz * Eis que nos chega agora, depois de 25 anos, uma edição revisada (Unesp e Discurso Editorial, 2009) do livro Hume e a Epistemologia escrito pelo professor João Paulo Monteiro. Publicado em sua primeira edição pela Imprensa Nacional (Lisboa) em 1984, trata-se de um dos livros mais importantes sobre Hume publicados aqui no Brasil. 1 De uma perspectiva analítica, o livro compreende um conjunto de oito ensaios, escritos entre 1971 e 1982, que desafiam diversas interpretações de problemas centrais do pensamento de Hume. Os estudos nele reunidos têm em vista problemas que vão desde o conhecimento comum até, e especialmente, os da ciência e da filosofia, e apontam para a relevância epistemológica da obra de Hume (Monteiro: 2009: p. 20-21). 2 Conforme Monteiro assinala, a nova edição não se limita somente a uma revisão e correção de erros tipográficos ou, mesmo, do próprio autor. Ela contempla também algumas alterações ocorridas na leitura que ele, como intérprete, percebeu serem relevantes para * Doutoranda em Filosofia USP/FAPESP. E-mail: [email protected]. 1 Digo um dos livros mais importantes publicados aqui no Brasil porque acredito que haja ao menos mais dois de extrema importância: os Novos Estudos Humeanos, do próprio João Paulo Monteiro, e O Ceticismo de Hume, de Plínio Junqueira Smith. 2 Doravante todas as referências às páginas serão assinaladas apenas pelo número delas, visto que, salvo registro em contrário, todas são extraídas da obra aqui resenhada.

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  • Natal, v. 16, n. 25, jan./jun. 2009, p. 283-294

    RESENHA

    MONTEIRO, Joo Paulo. Hume e a Epistemologia; reviso de Frederico Diehl [1. ed. brasileira]. So Paulo: Editora UNESP; Discurso Editorial, 2009. (232 p)

    Marlia Crtes de Ferraz* Eis que nos chega agora, depois de 25 anos, uma edio revisada (Unesp e Discurso Editorial, 2009) do livro Hume e a Epistemologia escrito pelo professor Joo Paulo Monteiro. Publicado em sua primeira edio pela Imprensa Nacional (Lisboa) em 1984, trata-se de um dos livros mais importantes sobre Hume publicados aqui no Brasil.1 De uma perspectiva analtica, o livro compreende um conjunto de oito ensaios, escritos entre 1971 e 1982, que desafiam diversas interpretaes de problemas centrais do pensamento de Hume. Os estudos nele reunidos tm em vista problemas que vo desde o conhecimento comum at, e especialmente, os da cincia e da filosofia, e apontam para a relevncia epistemolgica da obra de Hume (Monteiro: 2009: p. 20-21).2 Conforme Monteiro assinala, a nova edio no se limita somente a uma reviso e correo de erros tipogrficos ou, mesmo, do prprio autor. Ela contempla tambm algumas alteraes ocorridas na leitura que ele, como intrprete, percebeu serem relevantes para

    * Doutoranda em Filosofia USP/FAPESP. E-mail: [email protected]. 1 Digo um dos livros mais importantes publicados aqui no Brasil porque acredito

    que haja ao menos mais dois de extrema importncia: os Novos Estudos Humeanos, do prprio Joo Paulo Monteiro, e O Ceticismo de Hume, de Plnio Junqueira Smith.

    2 Doravante todas as referncias s pginas sero assinaladas apenas pelo nmero delas, visto que, salvo registro em contrrio, todas so extradas da obra aqui resenhada.

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    uma compreenso mais precisa da filosofia humeana (cf. p. 7). Que alteraes seriam essas? J na edio portuguesa, Monteiro propunha mudanas radicais na compreenso de Hume. No primeiro captulo, intitulado A Teoria e o Inobservvel, Monteiro dirige-se contra as interpretaes observacionalistas, amplamente aceitas, da filosofia de Hume. Segundo estas interpretaes, que se expressam em termos ligeiramente diferentes, as proposies cientficas s seriam vlidas se fossem, nas palavras de Popper, verificveis pelas evidncias dos sentidos, portanto, as teorias cientficas seriam apenas uma digesto de observaes3 (p. 26, 72). Mas Monteiro procura mostrar como tal concepo do conhecimento em geral, bem como da filosofia humeana e seu discurso sobre ela esto fortemente revestidos de um carter terico que nos autoriza a interpretar a sua cincia da natureza humana como no propriamente empirista. Essa uma interpretao, diga-se de passagem, que, num primeiro momento, deve causar forte estranhamento a alguns, se no muitos, estudiosos de Hume.4 Todavia, importante notar que Monteiro no est a negar que Hume um empirista, mas que h ao menos um sentido no qual se pode dizer que ele no propriamente um empirista. preciso, pois, esclarecer o sentido em que ele empirista e o sentido em que ele no o propriamente. Se tomarmos a definio de que um empirista aquele que considera que todo o conhecimento, ou todos os materiais do pensamento, como o prprio Hume afirma, so derivados da sensao externa ou interna...

    3 importante no perder de vista a distino entre a teoria humeana da inferncia

    causal e sua teoria da cincia, pois, tal como Monteiro adverte, a inferncia causal, tal como definida por Hume, est estreitamente circunscrita pelos limites do observvel (p. 26).

    4 Quando li pela primeira vez Hume e a Epistemologia, logo no incio de meu mestrado (2004), no capturei a importncia e o alcance dessa interpretao (do carter terico-cientfico da filosofia de Hume). Cinco anos se passaram at que h pouco tempo, numa reunio de orientao com o professor Joo Paulo, ele questionou por que eu assumia em meu texto, assim, sem maiores explicaes, que Hume era um empirista. Confesso que gelei, pois nunca tinha me passado pela cabea duvidar de que Hume fosse um empirista. Perdi a fala. Precisava pensar. Guardei a questo e sa dali completamente perturbada. Num primeiro momento pensei: ora, se Hume no um empirista, ento, eu nem sei o que um empirista, tampouco entendo algo da filosofia de Hume. Uma concluso que hoje me pareceu (ao menos parcialmente) verdadeira. Pois ao reler o livro do professor Joo Paulo pude compreender a questo que me foi colocada.

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    (EHU 2 5), inequvoco que Hume um empirista. Mas este no o ponto. Penso que Monteiro est a chamar a ateno de que isso diz muito pouco da filosofia de Hume. Alis, oblitera algo muito importante. No devemos entend-lo como um empirista radical (aos moldes dos positivistas) que s considera vlido o conhecimento oriundo da observao e experincia diretas. Dos empiristas, Hume conserva especialmente uma atitude metodolgica: a recusa em aceitar a validade de qualquer teoria que no se submeta prova da experincia (p. 16), o que no a mesma coisa. Uma coisa falar em causas observveis. E algumas o so, como por exemplo, o fogo seguido pelo calor, e a neve pelo frio (p. 66). Outra coisa referir-se a causas inobservveis, tais como a elasticidade, a gravidade, a coeso das partes, ou mesmo o hbito, como causa de nossas inferncias causais. Hume faz filosofia, mas faz cincia tambm (se que se pode aqui separar as duas)5, e cincia, para Hume, constitui-se como discurso do inobservvel, ultrapassando as meras constataes empricas, porm, importa frisar, sem abandonar o mtodo experimental (p. 64). Segundo Monteiro,

    Hume s pode ser objeto de uma leitura coerente no quadro de uma determinada concepo de cincia da cincia como explicao, como teoria, como descoberta de causas ou princpios inobservveis. E que portanto a sua filosofia no pode ser encerrada no estreito espartilho de uma concepo descritivista da cincia, onde esta reduzida ao conhecimento dos eventos observveis (p. 89).

    Quer dizer, a descoberta de princpios causais pela cincia caracteriza-se como descoberta de poderes e foras secretas, ou seja, de princpios inobservveis em si mesmos e no de causas diretamente perceptveis (cf. p. 79). Ademais, Monteiro argumenta que medida que a cincia da natureza humana constri hipteses ou conjecturas que vo muito alm do conhecimento emprico, propondo causas e princpios inobservveis como

    5 Vale lembrar que Hume abre a primeira seo da EHU do seguinte modo: A

    filosofia moral, ou cincia da natureza humana ( 1), ou seja, h a, de alguma maneira, uma identificao entre filosofia e cincia que, evidentemente, deve ser clarificada.

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    explicaes dos diversos fenmenos da vida humana, pode-se sim interpret-la como longe de ser propriamente empirista 6 (p. 8). claro que uma afirmao desse jaez impe a necessidade de esclarecer, alm da concepo humeana de cincia, qual o significado de causas e princpios inobservveis. E isso que Monteiro faz, no s neste captulo como tambm nos dois seguintes, A Hiptese da Gravidade e Kant Leitor de Hume, e em parte do quarto, Causalidade e Seleo Natural. Segundo Monteiro, para Hume, o problema da cincia o problema do conhecimento humano num mundo onde nem todos os mecanismos so observveis (p. 63). [...] As regularidades observveis na natureza so produzidas por mecanismos inobservveis (cf. p. 64). Ora, e o que so, pois, mecanismos inobservveis? Que papel eles tm na filosofia de Hume? Monteiro, nesta nova edio, precisa melhor esse ponto chamando a ateno para especialmente dois aspectos mais especficos da filosofia de Hume. Primeiro ele reexamina o exato significado do conceito de causa inobservvel (p. 8). A seu ver, embora continue a acreditar que a forte conjecturalidade da filosofia humeana revela-se no enunciado de causas inobservveis, preciso distinguir dois sentidos relativamente diferentes, segundo os quais uma causa pode ser considerada inobservvel (p. 8). Para Monteiro

    h dois diferentes nveis na teoricidade dos princpios no puramente empricos da natureza: 1) os princpios explicativos, concebidos como mecanismos, completamente inacessveis observao ou introspeco e 2) disposies que, uma vez descobertas, podem ser encontradas por meios empricos, mas que apenas parcialmente so manifestas e, por isso, tambm precisam do trabalho de construo terica que gera os primeiros (p. 8).

    De qualquer modo, no h propriamente nesta edio alteraes substanciais no captulo primeiro em que ele apresentou essa interpretao. O outro aspecto diz respeito a uma mudana mais radical em sua prpria leitura do autor, em virtude de algumas reflexes que, sobretudo a

    6 preciso, porm, tomar cuidado para no perder de vista a distino entre a teoria

    humeana da inferncia causal e sua teoria da cincia, pois, conforme Monteiro adverte, a inferncia causal, tal como definida por Hume, est estreitamente circunscrita pelos limites do observvel (p. 26).

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    partir do ano 2000, levaram-no a reconhecer a necessidade de rever o conceito de induo na filosofia de Hume. Tal mudana reduz o conceito de induo ao plano do raciocnio causal. Por conta disso, foi feita nesta edio um grande nmero de alteraes no texto da edio portuguesa. Em resumo, ele sustenta que no apenas o termo induo problemtico, na medida em que nem uma nica vez surge nas obras de Hume como sinnimo de inferncia causal, mas que, afinal de contas, Hume nunca se ocupou propriamente com o problema do raciocnio indutivo em geral, apenas com o do raciocnio causal7 (p. 12), ainda que a inferncia causal possa ser entendida como uma forma de inferncia indutiva. Se entendi bem, Monteiro assinala que Hume est preocupado somente com as disposies causais eficientes, ou seja, aquelas que produzem os fenmenos, e no com as constataes empricas simples que no suscitam nenhum raciocnio ou inferncia causal. O raciocnio com base na amostra de um fenmeno natural, que nos leva a concluir que as caractersticas deste fenmeno so comuns a todos os membros dessa mesma classe, no est no horizonte das investigaes humeanas da induo. Ou seja, a induo por enumerao e o raciocnio indutivo em geral esto fora das preocupaes de Hume. Apenas o raciocnio causal que nos diz que tal causa produz tal efeito constitui, para Hume, objeto de investigao. Nesse sentido, a denominao do problema de Hume como simplesmente problema da induo, tornar-se-ia, a partir desta interpretao, se no inapropriada, ao menos imprecisa, haja vista o problema de Hume, nesse caso, no ter em vista um mero conjunto de inferncias indutivas (p. 38), mas sim um tipo especfico de induo, isto , nica e exclusivamente a inferncia causal (ou, se se quiser, a induo causal). Por conta disso, para ser mais fiel ao esprito e a letra da filosofia humeana, Monteiro eliminou desta edio todas as referncias s inferncias indutivas, ao raciocnio indutivo, ou simplesmente induo, que se encontravam espraiadas em diversas pginas, especialmente nos captulos primeiro, quarto e oitavo (cf. p. 14).

    7 Uma tese ousada, diga-se de passagem, pois bastaria encontrar um nico contra-

    exemplo para refut-la. Mas, de fato, eu mesma no encontrei nos textos de Hume o termo induo como sinnimo de inferncia causal. Tampouco algum comentador que viesse a contradizer a tese de Monteiro.

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    No segundo captulo, A Hiptese da Gravidade, Monteiro estende a argumentao do primeiro, fazendo uma comparao metodolgica entre a filosofia humeana e a cincia newtoniana (p. 7). A ele esclarece que a cincia da natureza humana de Hume destina-se a servir de fundamento geral s cincias humanas particulares (moral, esttica, poltica) declarando abertamente sua inteno de seguir o caminho e o mtodo da filosofia natural, sobretudo o de seu exemplo mais ilustre, a cincia de Newton (p. 69). Alm de citar passagens do Tratado, Primeira e Segunda Investigaes, Dissertao das Paixes, Histria da Inglaterra e Dilogos Sobre a Religio Natural que evidenciam essa inteno de seguir o exemplo newtoniano, Monteiro analisa quatro textos humeanos em que aparece o conceito central da cincia newtoniana o da gravidade a fim de mostrar como, apesar da aparente contradio e impreciso da linguagem de Hume ao tratar desta questo, bem como do estatuto epistemolgico da gravidade apresentar-se como um enigma (cf. p. 73), possvel tomar o conceito de hbito paralelamente (cf. p. 78) ao da gravidade, ou seja, como um princpio geral explicativo inobservvel. No caso do conceito de gravidade, como um princpio geral explicativo ou causa do movimento dos planetas e mares. Em relao ao de hbito, como princpio geral explicativo ou causa geral de todas as nossas inferncias causais (cf. p. 76). Quer dizer, ambos so equivalentes e podem ser legitimamente postulados como causa desses fenmenos (p. 83).

    Gravidade, tal como hbito um termo terico. Os termos tericos distinguem-se dos termos observveis na medida em que se referem a inobservveis e em que a justificao para se postular esses inobservveis que a existncia destes a melhor explicao possvel para uma dada ordem de fenmenos (p. 84-85).

    O ensaio particularmente instigante medida que por meio de uma anlise desses quatro textos que, primeira vista, apresentam-se contraditrios, Monteiro mostra que h, na verdade, um acordo profundo entre eles, e que, portanto, podem ser interpretados de maneira a dissipar os nossos piores receios de que Hume se tivesse tornado responsvel por uma das mais grosseiras contradies de toda a histria da filosofia (p. 89).

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    No ensaio nmero trs, intitulado Kant leitor de Hume, Monteiro questiona o rigor e exatido da leitura que Kant faz de Hume. Segundo Monteiro, possvel e legtimo lanar dvidas sobre Kant, no [...] na qualidade de filsofo, mas enquanto e precisamente, leitor de Hume (p. 93). Para demonstrar isso, Monteiro parte da introduo dos Prolegmenos na qual Kant v o conceito humeano de causa como um bastardo da imaginao um filho ilegtimo cuja paternidade s pode ser atribuda experincia (p. 92). Para Monteiro, h um equvoco duplo na leitura que Kant faz de Hume, e a distncia entre eles menor do que em geral se acredita (cf. p. 99). Monteiro pergunta: ter a teoria de Kant acerca da bastardia do conceito humeano de causa um fundamento slido nos textos filosficos do prprio Hume (p. 93)? E acrescenta:

    Ser o conceito de causa efetivamente deduzido da experincia, na filosofia humeana, no sentido emprestado a essa expresso pela interpretao kantiana? Ser esse conceito, por outro lado, efetivamente um resultado da pura e simples imaginao? Tero a associao e o hbito, em Hume, o papel que lhes atribudo na Introduo da Crtica kantiana (p. 93-94)?

    Monteiro acredita haver argumentos suficientemente capazes de levar-nos a responder negativamente a essas perguntas. Infelizmente no posso aqui tratar desses argumentos. Deixo curiosidade dos leitores descobrirem quais so eles, bem como o de avaliarem a sua consistncia. Gostaria apenas de chamar a ateno para a tese de Monteiro de que o naturalismo de Hume um pressuposto metafsico fundamental (cf. p. 101), ou seja, de que h em Hume uma teoria metafsica da natureza (cf. p. 104), e que as propriedades do entendimento das quais deriva, em Hume, o conceito de causa s podem ser consideradas, em relao experincia, como a priori (dado que no so dela derivadas), tal como em Kant (p. 100), malgrado Hume no ter aplicado esse vocabulrio. Ora, para aqueles que lem Hume como um empirista radical, bem como um crtico demolidor da metafsica, tais teses devem causar uma forte perturbao. E espero que despertem tambm muita curiosidade, pois penso que os argumentos de Monteiro, embora polmicos, no so facilmente refutveis e parecem-me, no mnimo, bastante plausveis.

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    O quarto ensaio, intitulado na edio portuguesa de Induo e Seleo Natural, aparece agora nesta edio com o ttulo Causalidade e Seleo Natural, de modo a se adequar s mudanas na leitura do autor. Nele, Monteiro sugere que leiamos Hume como um pensador pr-darwiniano que estaria j a trabalhar com um conceito primitivo de seleo natural como princpio explicativo de uma parte importante do conhecimento humano (p. 8). Ele mostra como Hume defende (por meio do personagem Flon dos Dilogos sobre a Religio Natural) um sistema que atribui ao mundo um princpio de ordem inerente ao prprio mundo (p. 114); e argumenta tambm em favor de que a teoria da eliminao dos inaptos defendida por Flon, vem ao encontro do princpio de seleo natural (p. 117), embora, de modo algum suscite uma antecipao da teoria evolucionista darwiniana (p. 119-120). Hume jamais sugere a possibilidade de que as espcies atualmente existentes se tenham originado a partir de outras espcies hoje j extintas (p. 120). A hiptese de Flon limita-se seleo dos mais aptos. Neste ensaio revela-se tambm a discordncia de Monteiro em relao interpretao de Pike, segundo a qual Flon no esclareceu se considera a sua alternativa para a hiptese do desgnio como mais ou menos provvel do que suas rivais (p. 121). De acordo com Monteiro, a explicao da adaptao na natureza apresentada por Flon parece-lhe claramente ser a nica que permanece de p, como resultado final do conjunto da argumentao dos Dilogos, alm de ser a nica compatvel com a rejeio humeana das causas finais (p. 121). Essa explicao seria tambm, segundo o autor, a nica capaz de conferir significado soluo ctica proposta por Hume para o problema do raciocnio indutivo, na concluso da seo V da EHU (p. 121). O ensaio extremamente fecundo, pois alm de jogar luz sobre todas essas questes, Monteiro esclarece, ao final, alinhando-se a interpretaes de comentadores da envergadura de Kemp Smith, Noxon e Flew, uma interessante interpretao da controversa parte XII dos Dilogos, na qual, como se sabe, h uma aparente concesso de Flon tese da manifestao do desgnio e artifcio na natureza (cf. p. 128-133). A tese a defendida a de que Hume se serviu de artifcios para camuflar o seu ceticismo religioso sem se ver condenado por blasfmia (p. 134). Essa tese

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    ser melhor desenvolvida nos dois ensaios seguintes, o V e o VI, respectivamente, Parcimnia e Desgnio e O Filsofo e a Censura. Em Parcimnia e Desgnio, Monteiro procura situar esse pr-darwinismo no quadro de um antifinalismo radical (p. 8), alm de argumentar contra a incredulidade de alguns filsofos que consideram a filosofia encerrada numa regio em que o discurso se veja condenado a uma literalidade ch e sem brechas (p. 136), e a favor de que os textos de Hume esto permeados de ironia, de exemplos de ocultao do significado real por trs de um vu de ambiguidade (p. 136). Monteiro se mostra no desavisado das dificuldades dessa interpretao, tampouco do frequente preconceito de alguns filsofos contra a anlise da ironia nos textos filosficos. Mas ele no est sozinho. H outros intrpretes, como por exemplo, Price e Noxon, que consideram essencial para a compreenso dos textos de Hume, especialmente os de crtica da religio, o exame da hiptese da ironia (p. 137). Tambm Kemp Smith e Flew so simpticos a esta interpretao. Contudo, h tambm, segundo Monteiro, um adepto fervoroso do preconceito acima citado: Pike recusa-se a admitir qualquer interpretao que recorra anlise dos estratagemas possivelmente utilizados por Hume a fim de escapar a seus censores (p. 137). Como se sabe, os Dilogos Sobre a Religio Natural a obra de Hume em que mais se discute a presena da ironia. E o que Monteiro procurou neste ensaio,

    no mostrar que a totalidade dos Dilogos de Hume pode ser explicada por esse tipo de anlise, mas apenas que o papel da ironia em algumas passagens cruciais da 12. parte consiste em gerar a aparncia de uma converso de Flon s teses testas e, ao mesmo tempo, o de enviar ao leitor atento uma mensagem codificada que revela precisamente o contrrio disso anlise que pretende ser apenas uma contribuio parcial para a compreenso da posio final de Flon nos Dilogos (p. 140).

    As passagens cruciais da parte 12 para a argumentao de Monteiro, como o leitor poder constatar, so aquelas em que se discute o princpio de simplicidade ou parcimnia, evocado por Flon para reforar seus argumentos contra a hiptese do desgnio tal como Hume se serve deste

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    mesmo princpio como um poderoso critrio de escolha entre teorias (p. 141). De uma outra perspectiva, o ensaio seguinte, intitulado O Filsofo e a Censura, reafirma a hiptese da ironia ou dos vus de discrio que envolvem o discurso humeano, e estende a crtica ao finalismo privilegiando a especificidade do discurso que procede a essa crtica (cf. p. 22). Monteiro parte da antiga tendncia (que Noxon assinala imperdovel) dos comentadores (que no so poucos) para recusar seriedade filosfica s obras de Hume sobre religio (cf. p. 154). Ele questiona por que, durante tanto tempo essas obras foram encaradas como irrelevantes? (cf. p. 154) O que teria motivado to duradoura incompreenso da importncia, atualmente j reconhecida por vrios intrpretes, das obras crticas de Hume religio (cf. p. 154)? Monteiro alinha-se s interpretaes de Kemp Smith, Flew e Noxon, segundo as quais Hume escreve de maneira totalmente diferente quando trata de temas religiosos. De acordo com eles, Hume faria isso a fim de exprimir seu ceticismo em matria religiosa de maneira a evitar ser atingido pelo brao da censura (p. 155). A despeito da periculosidade deste mtodo de leitura que atribui a determinados enunciados significados cuja explicao seria feita em funo do receio da censura (p. 156), Monteiro debrua-se sobre aquilo em que ele acredita, ou seja, o exerccio da mais rigorosa crtica de todas as propostas interpretativas, a fim de escolher a que se apresente como mais slida (p. 156), j que a hiptese de que Hume tenha se servido de estratagemas, tal como alguns intrpretes defendem, to verossmil quanto hiptese contrria, qual seja, a de que no h nada a encontrar por trs das aparncias (cf. p. 156). Monteiro adverte-nos de que no se trata de usar

    a hiptese da distoro do discurso pelo receio da censura [...] como princpio de explicao de um enunciado isolado: ele deve funcionar como ideia reguladora da leitura, fornecendo interpretaes em que cada enunciado se ilumine pela trama geral do discurso humeano, e com a funo de manter a ateno do intrprete constantemente focada na possibilidade da presena do discurso estratgico (p. 157).

    Deve-se respeitar a condio de jamais pretender que um enunciado tenha tal ou qual significado porque Hume escolheu essa precisa formulao em razo do medo do censor eclesistico (p. 158). E j que ningum, ao menos

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    a partir das correspondncias humeanas, poderia duvidar de que a publicao dos textos sobre problemas religiosos assumem, para o prprio Hume, um carter altamente problemtico (cf. p. 158), Monteiro analisa passagens dessas correspondncias, bem como das prprias obras sobre o tema, de modo a argumentar em favor da tese do discurso estratgico. O stimo ensaio, Prazer e Realidade: Hume e Freud, aponta para relevncia de um confronto entre esses dois autores. Recorrendo ao discurso humeano, neste ensaio, Monteiro tenta desenhar, em que termos e mediante que articulao foi possvel ao sculo XVIII pensar essa oposio entre prazer e realidade que viria a ocupar, numa teoria produzida no decorrer do sculo seguinte e prolongada no nosso, uma posio absolutamente central (p. 172). Mas Monteiro no pretende insinuar a presena, em sua obra, dos germes de tais conceitos freudianos (p. 172). Ao mostrar como Hume enunciou seu princpio de prazer e realidade (sem lhes dar esta significao), Monteiro rearticula os enunciados capazes de atribuir legitimidade atribuio do papel de antecipao da obra de Hume de Freud, sem perder de vista a imensa distncia que os separa sob diversos aspectos (cf. p. 172-173). No oitavo e ltimo ensaio, Conjecturas Naturais, Monteiro analisa a tese humeana da continuidade entre conhecimento comum e terico. Mas ao levantar questes epistemolgicas atuais que tm na filosofia humeana seu principal ponto de partida histrico (cf. p. 22), Monteiro vai muito alm da interpretao de Hume, promovendo uma discusso com as teorias de Reid, Quine e Popper a respeito deste tema. Para concluir gostaria de chamar a ateno para a fecundidade de temas e conceitos analisados nesta obra de Monteiro: uma crtica interpretao observacionalista; a influncia de Newton sobre Hume; a relao entre filosofia e cincia, bem como entre conhecimento (cientfico-filosfico) e conhecimento do senso comum; esclarecimentos sobre a posio de Hume em relao concepo finalista da natureza; a crtica de Hume religio; as estratgias do discurso humeano; elucidaes sobre os conceitos de hbito, induo, seleo natural e inferncia causal; empirismo, ceticismo e naturalismo todos esses temas e conceitos so tratados de maneira incitante e polmica nos ensaios que aqui se apresentam com um flego filosfico do maior apreo. Saltam aos olhos a acuidade, erudio, clareza e elegncia na apresentao dos argumentos e desafios interpretativos

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    de Monteiro, e acredito poder afirmar que os estudantes e pesquisadores de Hume encontraro nesta obra uma referncia segura e uma fonte indispensvel de inspirao e direo para seus estudos. No h como desconsiderar a relevncia, plausibilidade e pertinncia das crticas de Monteiro, ainda que possamos discordar de suas interpretaes e solues o que deixo a cargo dos leitores. Malgrado o livro tenha sido publicado pela primeira vez h 25 anos, o texto mantm seu vigor e permanece atual, constituindo, assim, uma leitura obrigatria para todos aqueles que se interessam por Hume e, mesmo (por que no?), simplesmente por filosofia.