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 childhood & philosophy , rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 125  O FILOSOFAR NA ARTE DE EDUCAR ENTRE O CORPO E A INFÂNCIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE ADORNO E LYOTARD Pedro Angelo Pagni Universidade Estadual Paulista, Campus Marília, SP Resumo: Nos últimos anos se observa uma crescente instrumentalização do ensino, que pode ser percebida na busca desenfreada dos professores por novos métodos e técnicas de ensino, produzidos pelo mercado editorial ou instituídos pelas políticas oficiais. Pode ser observada também na matriz curricular dos cursos de formação de professores que, pelo menos no Brasil, privilegia o técnico em detrimento das disciplinas relacionadas às Ciências Humanas e à Filosofia. Tentando contribuir para a reflexão acerca dessas questões este artigo se propõe a discutir possibilidades de conceber a educação como uma arte e compreender a poética como uma das dimensões do ensino, contrapondo-se à tendência de cientifização da educação e de instrumentalização do ensino observada no presente. Particularmente, este artigo interroga o lugar ou não-lugar da filosofia e do filosofar nessa arte da educação e nessa poética do ensino, tendo em vista a forma como ela é concebida no e pelo pensamento filosófico contemporâneo. E, com isso, saber quais seriam os principais problemas e temas dessa filosofia e desse filosofar, e como poderiam ser oferecidos não apenas um conjunto de questões para refletir, como também abrir algumas perspectivas para que os educadores possam enfrentar os desafios dessa atividade, reconhecendo os seus limites e as suas possibilidades atuais. Escolheu-se recobrar neste artigo, para tanto, o pensamento dos frankfurtianos e, particularmente, o de Adorno. Mesmo que haja divergências entre o pensamento de Adorno e o de Lyotard  a começar por não terem vivido em um mesmo contexto histórico, ele elucidará algumas afinidades sobre o tema em foco, isto é, sobre as possibilidades da educação ser concebida como arte e da constituição de uma poética no ensino, vislumbrando a postulação de ambos por uma política da resistência por intermédio dessa atividade. Palavras-chave: Filosofia; Educação poética; Adorno; Lyotard; Resistência El Filosofar en el Arte de Ed ucar entre el Cuerpo y la Infancia: consideraci ones a partir de Adorno y Lyotard Resumen: En los últimos años, observase una creciente instrumentalización de la enseñanza, que puede ser percibida en la frenética búsqueda, por parte de los profesores, de nuevos métodos y técnicas de enseñanza, producidos por la industria editorial o establecidos por la s políticas oficial es. También se puede observar que, al menos en Brasil, la matriz curricular de los cursos de formación para profesores privilegia el técnico en detrimento de la s disciplinas relacio nadas con las Ciencias Humanas y la Filosofía. En el intento de contribuir para la reflexión sobre estas cuestiones, este artículo tiene como objetivo discutir posibilidades de concebir la educación

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  • childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 125

    O FILOSOFAR NA ARTE DE EDUCAR ENTRE O CORPO E A INFNCIA: CONSIDERAES A PARTIR DE ADORNO E LYOTARD

    Pedro Angelo Pagni

    Universidade Estadual Paulista, Campus Marlia, SP Resumo: Nos ltimos anos se observa uma crescente instrumentalizao do ensino, que pode ser percebida na busca desenfreada dos professores por novos mtodos e tcnicas de ensino, produzidos pelo mercado editorial ou institudos pelas polticas oficiais. Pode ser observada tambm na matriz curricular dos cursos de formao de professores que, pelo menos no Brasil, privilegia o tcnico em detrimento das disciplinas relacionadas s Cincias Humanas e Filosofia. Tentando contribuir para a reflexo acerca dessas questes este artigo se prope a discutir possibilidades de conceber a educao como uma arte e compreender a potica como uma das dimenses do ensino, contrapondo-se tendncia de cientifizao da educao e de instrumentalizao do ensino observada no presente. Particularmente, este artigo interroga o lugar ou no-lugar da filosofia e do filosofar nessa arte da educao e nessa potica do ensino, tendo em vista a forma como ela concebida no e pelo pensamento filosfico contemporneo. E, com isso, saber quais seriam os principais problemas e temas dessa filosofia e desse filosofar, e como poderiam ser oferecidos no apenas um conjunto de questes para refletir, como tambm abrir algumas perspectivas para que os educadores possam enfrentar os desafios dessa atividade, reconhecendo os seus limites e as suas possibilidades atuais. Escolheu-se recobrar neste artigo, para tanto, o pensamento dos frankfurtianos e, particularmente, o de Adorno. Mesmo que haja divergncias entre o pensamento de Adorno e o de Lyotard a comear por no terem vivido em um mesmo contexto histrico, ele elucidar algumas afinidades sobre o tema em foco, isto , sobre as possibilidades da educao ser concebida como arte e da constituio de uma potica no ensino, vislumbrando a postulao de ambos por uma poltica da resistncia por intermdio dessa atividade. Palavras-chave: Filosofia; Educao potica; Adorno; Lyotard; Resistncia El Filosofar en el Arte de Educar entre el Cuerpo y la Infancia: consideraciones a partir de Adorno y Lyotard Resumen: En los ltimos aos, observase una creciente instrumentalizacin de la enseanza, que puede ser percibida en la frentica bsqueda, por parte de los profesores, de nuevos mtodos y tcnicas de enseanza, producidos por la industria editorial o establecidos por las polticas oficiales. Tambin se puede observar que, al menos en Brasil, la matriz curricular de los cursos de formacin para profesores privilegia el tcnico en detrimento de las disciplinas relacionadas con las Ciencias Humanas y la Filosofa. En el intento de contribuir para la reflexin sobre estas cuestiones, este artculo tiene como objetivo discutir posibilidades de concebir la educacin

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

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    como un arte y comprender la potica como una de las dimensiones de la enseanza, en contraposicin a la tendencia de cientifizacin e instrumentalizacin de la enseanza observada en el presente. En particular, este artculo pregunta por el lugar o no lugar de la filosofa y del filosofar en esta arte de la educacin y en la potica de esta enseanza, considerando la forma cmo se la concibe en y por el pensamiento filosfico contemporneo. Y con eso, saber cules serian los principales problemas y temas de esta filosofa y de este filosofar y cmo se podran ofrecer no slo un conjunto de cuestiones para reflexionar, sino tambin abrir algunas perspectivas para que los educadores puedan enfrentar los retos de esta actividad, reconociendo sus lmites y sus posibilidades actuales. Para eso, se ha elegido en este artculo recuperar el pensamiento de de los frankfurtianos y en particular lo de Adorno. A pesar de que existen divergencias entre el pensamiento de Adorno y lo de Lyotard a empezar por el hecho de que no vivieron en el mismo contexto histrico el artculo elucida algunas afinidades sobre el tema en foco, es decir, sobre las posibilidades de concebir la educacin como un arte y la constitucin de una educacin potica, considerando la postulacin de una poltica de resistencia a travs de esta actividad. Palabras clave: Filosofa; Educacin potica; Adorno; Lyotard; Resistencia

    Philosophizing About the Art of Education between Body and Childhood: Considerations on Adorno and Lyotard

    Abstract: In recent years, one can observe an increasing instrumentalization of education, evident in the frantic search by teachers for new methods and techniques offered by the publishing industry or established by government policies. It can also be observed that, at least in Brazil, the curricular matrix of teacher training courses privileges a technical perspective at the expense of human sciences and philosophy disciplines. In an attempt to contribute to a reflection on these issues, this article aims to discuss some possibilities of conceiving education as an art, and of understanding poetics as a dimension of teaching, in opposition to the tendency toward scientifization and instrumentalization of teaching. In particular, this article inquires into the place--or no-place--of philosophy and philosophizing in the art of education, and on the poetics of this kind of teaching, considering the way it is conceived in and by contemporary philosophical thought. In this way, I hope to identify the main problems and issues of this form of philosophy and of philosophizing, and to offer, not only a set of questions to reflect on, but also to suggest some perspectives through which educators might deal with the challenges of this activity. In order to achieve this, I have revisited the thought of the Frankfurt school--particularly that of Theodore Adorno. Although there are divergences between the thought of Adorno and Jean-Francois Lyotard--beginning with the fact that they did not live in the same historical contextthis paper identifies some of their affinities that are relevant to considering education as an art, and to the constitution of a poetical education based on a policy of active resistance to instrumentalization. Keywords: Philosophy, Poetical Education; Adorno; Lyotard, Resistance

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 127

    O FILOSOFAR NA ARTE DE EDUCAR ENTRE O CORPO E A INFNCIA:

    CONSIDERAES A PARTIR DE ADORNO E LYOTARD

    Pedro Angelo Pagni

    Nos ltimos anos se observa uma crescente instrumentalizao do

    ensino. Tal instrumentalizao pode ser percebida, no presente, na busca

    desenfreada dos professores por novos mtodos e novas tcnicas de ensino,

    produzidos ou pelo mercado editorial ou institudos pelas polticas oficiais.

    Pode ser observada tambm na matriz curricular dos cursos de formao de

    professores que, pelo menos no Brasil, privilegia o tcnico em detrimento

    das disciplinas relacionadas s Cincias Humanas e Filosofia ou, mesmo,

    da experimentao de uma organizao temtica ou interdisciplinar, que

    privilegiariam o pensamento e a reflexo filosfica sobre a e na educao. E,

    ainda, poderia ser notada como uma conseqncia do prprio mundo em

    que vivemos, na denegao do pensamento reflexivo que nos impe, na

    iluso que nos faz respirar e na impotncia que nos faz sentir, aumentando

    nossos medos e nossas angstias, diluindo nossas esperanas em relao ao

    futuro de uma vida e de um mundo melhor.

    Pode-se dizer que a instrumentalizao do ensino decorre, em linhas

    gerais, da compreenso comum de que essa atividade seria uma mera

    tcnica ou uma aplicao do conhecimento produzido pelas chamadas

    cincias da educao, que se expressa tendo em vista aumentar a eficincia

    do ensino e, consequentemente, corresponder s demandas da qualificao

    profissional e aos padres de consumo impostos pelo mercado nas

    sociedades ps-industriais. Essa tendncia atual corroborada tambm pela

    formao dos educadores nas universidades, que cada vez mais, em nome

    da profissionalizao docente, esvaziam os contedos formativos que

    poderiam auxili-los a compreender os problemas que enfrentam no

    existente, refleti-los e encontrar alternativas viveis para solucion-los, sem

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    que isso implicasse no abandono da busca da reflexo sobre o qu e o para

    qu de sua atividade e de que sentido ela teria no presente. Vem se notando,

    assim, na prtica e no processo formativo do educador uma substituio do

    carter reflexivo necessrio atividade pedaggica, e da dimenso artstica

    que a compreende, por um fazer mecnico e instrumental que, no limite,

    restringe a funo do educador tarefa de adequar os meios certos aos fins

    dados, institudos como verdadeiros ou pela fora do mercado ou pelos

    mecanismos oficiais, que regulamenta quais contedos ensinar para quais

    fins e com que mtodos.

    Mesmo que sejamos educadores e que tenhamos como metas

    promover o pensamento, aguar os sentidos e espalhar o entusiasmo em e

    com outros, a racionalidade instrumental, a semi-formao e o niilismo

    onipresentes fazem com que essa perspectiva emancipatria e iluminista

    que fundamentou os discursos pedaggicos modernos percam o seu sentido

    e, consequentemente, seja colocada em xeque na contemporaneidade.

    Diante desse problema, restaria ao educador pensar se estaria subjugado s

    referidas condies histricas e sociais e como poderia enfrent-las, se ainda

    seria possvel aprender com e contaminar outros indivduos dispostos ao

    pensar, ao sentir e ao agir no mundo, na contemporaneidade, com o intuito

    de conferir a si mesmos e ao existente um outro sentido, no habitual,

    transformador.

    Tentando contribuir para a reflexo acerca dessas questes este artigo

    se prope a discutir as possibilidades de conceber a educao como uma

    arte e compreender a potica como uma das dimenses do ensino,

    contrapondo-se tendncia de cientifizao da educao e de

    instrumentalizao do ensino que pode ser observada no presente.

    Particularmente, interessa a este artigo interrogar sobre o lugar ou no-lugar

    da filosofia e do filosofar nessa arte da educao e nessa potica do ensino,

    tendo em vista a forma como ela concebida no e pelo pensamento

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 129

    filosfico contemporneo. E, com isso, saber quais seriam os principais

    problemas e temas dessa filosofia e desse filosofar, como poderiam oferecer

    no apenas um conjunto de questes a serem refletidas, como tambm abrir

    algumas perspectivas para que os educadores possam enfrentar os desafios

    dessa atividade, reconhecendo os seus limites e as suas possibilidades

    atuais.

    Escolheu-se recobrar neste artigo, para tanto, o pensamento dos

    frankfurtianos e, particularmente, o de Adorno. Mesmo que haja

    divergncias entre o pensamento de Adorno e o de Lyotard a comear por

    no terem vivido em um mesmo contexto histrico, ele elucidar algumas

    afinidades sobre o tema em foco, isto , sobre as possibilidades da educao

    ser concebida como arte e da constituio de uma potica no ensino,

    vislumbrando a postulao de ambos por uma poltica da resistncia por

    intermdio dessa atividade. Alm disso, no segundo momento da obra de

    Lyotard, as citaes dialtica negativa e teoria esttica de Adorno so

    textuais, independente dos motivos histricos que levem a elas. E, mesmo

    que apontem para modos diferentes de filosofar na arte de educar, h

    alguns temas comuns e fundamentais para as suas filosofias quanto

    abordam o assunto: o corpo e a infncia. Nesse sentido, abordar-se- esse

    filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia a partir dos

    pensamentos de Adorno e de Lyotard.

    Estabelecer esses paralelos no significa mirar apenas nas

    convergncias estabelecidas pelo pensamento desses filsofos de tradies

    distintas do pensamento, como tambm explicitar as divergncias entre eles,

    tal como demonstraram brilhantemente Honneth (1995, P. 121-34) e, depois,

    Dews (1996, P. 51-70) abordando, respectivamente, as relaes entre Adorno

    e Foucault e a Escola de Frankrurt e o Ps-estruturalismo1 francs. Este

    1 Jean Franois Lyotard, juntamente com Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida, foram considerados por alguns intrpretes como integrantes de um movimento intelectual,

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    artigo tem uma pretenso mais modesta, ao abordar especificamente o

    assunto em foco, partindo do ensaio de um possvel dilogo entre eles a

    partir das questes apresentadas por Lyotard e respondidas por Adorno

    acerca da potica e da dimenso esttica da experincia educativa. Em

    seguida, elucidaremos que eles apresentam sadas distintas sobre o filosofar

    na arte de educar, mas abordam temas comuns em suas filosofias: o corpo e

    a infncia. Aps retratarmos a relevncia desses temas no pensamento de

    ambos, discutiremos as perspectivas que abrem para os educadores e para a

    atividade do filosofar na arte de educar na contemporaneidade.

    As possibilidades da educao como arte e da potica no ensino

    Em seu livro A condio ps-moderna, Lyotard (2000) aborda o

    problema da deslegitimao do conhecimento, questionando as suas formas

    de produo e de transmisso na universidade, demonstrando as suas

    implicaes para a desestetizao da vida na atualidade. Para tanto, ele

    problematiza o princpio de desempenho e de performatividade que regem

    a produo e a transmisso dos conhecimentos nessa instituio, acentuados

    ainda mais com o advento da informtica na sociedade ps-industrial.

    Tendo em vista os problemas decorrentes desse advento, o filsofo francs

    parece aprofundar a compreenso de alguns problemas que no foram

    compreendidos historicamente pelo pensamento de Adorno, em razo de

    ter sido produzido em outro contexto histrico e sob outro horizonte

    originalmente francs, denominado de Ps-estruturalismo, de Ps-modernidade ou de Filosofia da Diferena. Entre esses intrpretes, esses termos so discutidos por Peters (2000), que opta por designar esses filsofos como participantes de um crculo intelectual denominado de Ps-estruturalismo. Embora os argumentos desse autor sejam bastante convincentes, como este artigo abordar particularmente o pensamento de Lyotard, optou-se aqui por no tomar emprestada essa designao. Isso porque, alm de no ter sido cunhada pelo prprio filsofo em questo, ela foi proposta por alguns de seus intrpretes (provenientes, em geral, dos pases de lngua inglesa) com o intuito de dar ao pensamento desses filsofos uma unidade relativa a alguns temas ou um conjunto de problemas, mesmo reconhecendo as divergncias existentes entre eles e as concluses singulares que formularam.

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    intelectual. E, ao mesmo tempo, mantm vivo o esprito presente no projeto

    de Adorno, ao desenvolver um pensamento radical sobre o tempo presente,

    questionando o conhecimento produzido e transmitido na universidade, os

    princpios que o regem e as suas conseqncias para a vida. O filsofo

    francs parece revigorar, assim, o projeto filosfico de um dos principais

    representantes da Escola de Frankfurt, oferecendo argumentos significativos

    para a defesa de uma atitude poltica de resistncia ao existente e para a

    construo de estratgias que possibilitem a no repetio do mesmo, do

    passado que reverbera no presente, nos termos postulado pelo

    frankfurtiano.

    O filsofo francs faz isso ao buscar, por intermdio do pensamento

    filosfico, um outro capaz de possibilitar a explicitao do diferendo e de

    produzir lances novos nos jogos de linguagem estabelecidos, reconhecendo

    a sua heterogeneidade, vislumbrando a desestabilizao do sistema e

    oferecendo um outro sentido para o existente, dentro dos limites em que

    este se encontraria sob a condio ps-moderna. Por mais que a categoria de

    jogos de linguagem ser alheia ao vocbulo dos frankfurtianos, Lyotard

    (2000) a emprega no sentido de uma agonstica social e da admisso de um

    conflito constante no seio da sociedade ps-industrial, tentando dar conta

    do problema da linguagem pouco retratada no pensamento de Adorno, mas

    que ganha centralidade no debate filosfico contemporneo francs. Ele

    emprega essa categoria em funo de admitir os rudos da linguagem,

    daquilo que no apreendido pela linguagem, nem pelo seu uso pblico, e

    que implicam na admisso de sua heterogeneidade. Esse outro no captado

    integralmente pela linguagem seria, para ele, o mvel do diferente e o objeto

    do pensamento que o constri, explicitando o diferendo em relao ao que

    concebido como si mesmo e produzindo o dissenso no jogo de foras

    existentes, por intermdio de um outro lance e pela irrupo da paralogia,

    que deixaria aberta a possibilidade ou no de uma efetiva inovao da

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    experincia social.

    Numa instituio, como a universidade, em que a produo e a

    transmisso do saber, na atualidade, estariam definidas por regras bastante

    rgidas e por cnones produzidos pelas disputas correntes (dentro e fora

    dessa instituio), em torno das quais se conseguiu o consenso relativo da

    comunidade de cientistas e se proibiu falar desse outro constitutivo que as

    compreende, Lyotard (2000, p. 32) questiona se esse novo lance poderia

    ocorrer por meio do jogo de experimentao sobre a linguagem, isto , por

    meio de uma potica, presente tanto no processo de produo quanto no de

    transmisso de saberes. A sua resposta a essa pergunta afirmativa, desde

    que as universidades abrissem suas oficinas de criao e, juntamente com

    outras instituies, ultrapassassem os seus limites atuais, decorrentes de

    uma incidncia do passado sobre o presente.

    Desta perspectiva, vrios campos do saber acadmico, sobretudo os

    das cincias humanas, poderiam reflexionar sobre as suas prprias

    produes, sobre os objetos e os problemas que elegeram para anlise,

    vendo neles um processo de subjetivao e de estetizao do conhecimento

    similares ao da arte. Ao mesmo tempo em que vrios professores,

    responsveis pela transmisso desses saberes na universidade, e no apenas

    nela, poderiam vislumbrar na educao e no ensino que a caracterizam, por

    tal atitude reflexionante, respectivamente, suas proximidades com a arte e

    com a potica. Afinal, tanto esses processos constitutivos da produo do

    conhecimento quanto o ncleo artstico da educao e do ensino poderiam

    oferecer ao pensamento um outro critrio, seno racional, ao menos mais

    justo e mais sublime ao seu desenvolvimento, capaz de se contrapor ao

    princpio de desempenho e performatividade inscritas nessa atividade,

    polemizando com o institudo e abrindo outras possibilidades de

    pensamento e de criao, de pensamento da criao e de criao de

    pensamento, em cada comunidade de cientistas.

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 133

    Se essas outras possibilidades engendrassem, alm da polmica e do

    dissenso nessas comunidades, uma maior conversao entre elas, gerada

    pela diluio das fronteiras disciplinares, quem sabe, no obtivssemos um

    outro olhar sobre o conhecimento produzido e transmitido na universidade,

    e em outras instituies de pesquisa e de ensino. Quando pensamos nas

    produes acadmicas sobre a educao e a veiculao dos conhecimentos

    produzidos nos cursos universitrios de formao de professores, essas

    indicaes depreendidas da obra de Lyotard parecem ser ainda mais

    interessantes, sobretudo, quando glosadas a partir das consideraes de

    Adorno sobre a natureza e os desafios do ensino e da atividade docente o

    primeiro ponto em torno do qual elucidaremos um possvel paralelismo

    entre essas duas tradies do pensamento contemporneo, no obstante as

    divergncias existentes entre elas.

    Mesmo que no enuncie a proposio de um novo lance por meio da

    experimentao da linguagem e da potica na produo e na transmisso do

    saber acadmico, Adorno prope uma discusso sobre a natureza do ensino

    e do trabalho docente, elucidando a sua dimenso subjetiva e esttica, que

    pode auxiliar na possvel concepo da educao como arte e da potica no

    ensino, perspectivando uma poltica de resistncia ao existente, tal como a

    indicada por Lyotard.

    Adorno (1995, p. 112-3) se refere ao problema e a antinomia da

    atividade docente nos seguintes termos:

    Os professores tm tanta dificuldade em acertar justamente porque sua profisso lhes nega a separao entre seu trabalho objetivo e seu trabalho em seres humanos vivos to objetivo quanto o do mdico, nisto inteiramente anlogo e o plano afetivo pessoal, separao possvel na maioria das outras profisses. Pois seu trabalho realiza-se sob a forma de uma relao imediata, um dar e receber, para a qual, porm, esse trabalho nunca pode ser totalmente apropriado sob o jugo de seus objetivos altamente mediatos.

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

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    Pensar o trabalho pedaggico como um problema a ser enfrentado

    pelos professores em sua prpria atividade, cuja complexidade envolve essa

    dupla dimenso objetivo-subjetiva assinalada por esse frankfurtiano,

    consiste numa tarefa daqueles que se dispe ao exerccio desse ofcio ou que

    desenvolvam suas pesquisas sobre a educao e o ensino. Adorno postula,

    com isso, que o professor que estivesse disposto a pensar o seu prprio

    ofcio deveria, de um lado, compreender as condies sociais e polticas que

    envolvem essa atividade e se empenhar na reflexo sobre os seus limites no

    mundo totalmente administrado e, de outro lado, focalizar os dispositivos

    subjetivos que a perpassam e que nela promovem, inadvertidamente, a

    reiterao do autoritarismo, da violncia e da barbrie. A despeito da

    suposta democracia, da livre comunicao entre os homens e dos ideais

    civilizatrios propagados, o objetivo fundamental dessa atividade reflexiva

    sobre o ensino seria o de evitar a repetio de Auschwitz e a reiterao da

    barbrie no presente, por intermdio da explicitao dos mecanismos

    subjetivos que promoveram situaes histricas como aquela e que

    continuam a alimentar na contemporaneidade. Esta seria, para ele, a

    principal tarefa tica e poltica para a educao no presente, em virtude dos

    limites atuais para a superao das condies (sociais e polticas) que

    determinam objetivamente a dominao e a barbrie na sociedade

    totalmente administrada.

    Embora no nomeie de interdisciplinar a relao dos saberes a serem

    apropriados ou produzidos pelo professor para o empreendimento dessa

    tarefa, Adorno (1995, p. 45-7) parece pressup-la em suas consideraes

    sobre as condies de possibilidade para o desenvolvimento de uma

    educao poltica que seja capaz de elaborar o passado que repercute sobre

    o e no presente, trazendo tona o ressentimento e o dio reprimido,

    caractersticos do autoritarismo existente nas atuais democracias, tornando-

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 135

    os autoconscientes aos indivduos e evidenciando as contradies que os

    engendram nas formas de vida vigente, com o mundo totalmente

    administrado. Com o objetivo de se contrapor destruio da memria e ao

    esquecimento do horror representados por aquele passado e vividos no

    presente em funo da racionalidade instrumental e da reificao da

    conscincia instauradas, o frankfurtiano prope que se faria urgente, de um

    lado, fortalecer nas universidades uma sociologia vinculada pesquisa

    histrica de nossa poca; de outro, promover uma apropriao da

    psicanlise que possibilitasse tornar natural ao indivduo uma atitude de

    no exteriorizao da violncia, da reflexo sobre si mesmo e sobre a relao

    com os outros que costumam ser os destinatrios dessa violncia. A

    produo e a apropriao desses saberes pelos professores constituir-se-iam

    em um meio para que fossem reeducados, reconhecendo os limites da

    autoridade e da sabedoria atribudas a sua funo social, bem como as

    dimenses de sua psicologia profunda, inconsciente, que interferem em sua

    prtica, tornando-as pr-conscientes e objetos constantes das reflexes sobre

    e no ensino, a fim de que essa atividade no reproduzisse a violncia

    inadvertida contra os alunos, seu destinatrio imediato.

    desse ponto de vista que Adorno considera que, alm do

    envolvimento dos professores e de outros pesquisadores na produo e na

    transmisso de conhecimentos relativos atividade do ensino, desenvolvida

    com o objetivo de torn-la auto-reflexiva, essa forma de esclarecimento

    deveria atingir tambm outros destinatrios, os alunos e os demais

    indivduos. Afinal, tanto quanto os professores e os pesquisadores, esses

    indivduos estariam submetidos aos truques de propaganda e aos meios de

    comunicao de massa que, desde o nazismo, atingiriam as disposies

    psicolgicas das pessoas, enfraquecendo o seu eu e impedindo a elaborao

    do passado enquanto forma de esclarecimento subjetivo.

    Uma das formas indicadas pelo frankfurtiano para se enfrentar esses

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    problemas seria o desenvolvimento de programas de pesquisas que,

    envolvendo vrios campos e executado pela ao conjunta de profissionais

    de vrias reas, poderiam analisar esses aspectos que impedem a efetivao

    dessa forma de esclarecimento subjetivo. Contudo, para ele, mesmo essa

    alternativa dependeria de uma ruptura com os cnones dos conhecimentos

    cientficos objetivos e da produo de um pensamento crtico sobre esse

    mesmo esclarecimento, reconhecimento os seus limites racionais e as

    possibilidades de empreend-lo por aquilo que as pessoas ainda possuem

    de sensvel no mundo atual. Nas palavras de Adorno (1995, p. 48):

    Provavelmente apenas uma atuao daqueles pedagogos e psiclogos que no se esquivem da mais prioritria das tarefas profissionais em nome da objetividade cientfica poderia solucionar o problema da realizao prtica de um tal esclarecimento. Contudo, em face da violncia objetiva existente por trs desse potencial sobrevivente, o esclarecimento subjetivo no ser suficiente mesmo que seja enfrentado em termos diferenciados de energia e profundidade. Se quisermos contrapor objetivamente algo ao perigo objetivo, no bastar lanar mo de uma simples idia, ainda que seja a idia de liberdade ou da humanidade, cuja conformao abstrata, (...), no significa grande coisa para as pessoas.

    Para ele, essas idias no significariam grande coisa s pessoas

    porque, na sociedade administrada, todos estariam submetidos a uma

    integrao da conscincia aos meios de comunicao de massa e mdia

    televisiva, frutos da indstria cultural, reiterando em escala ampliada o

    princpio da troca de equivalentes, a reificao da conscincia e dos sentidos

    e a frieza burguesa instauradas com a modernidade. Alm disso, mesmo

    uma atuao conjunta dos pedagogos e psiclogos, em programas de

    pesquisas sobre as disposies psicolgicas que impediriam o

    esclarecimento subjetivo, no presente, no seria suficiente para contrapor-se

    a tal impedimento, justamente porque ele seria determinado pelos

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 137

    mecanismos da indstria cultural.

    Verifica-se que, antes do filsofo francs, Adorno reconhece que, para

    se ultrapassar os limites acerca da produo e da transmisso dos saberes

    acadmicos na universidade, especialmente os relativos educao e ao

    ensino, nada adiantaria apenas um trabalho interdisciplinar isolado,

    destinado a um campo de saber especfico, nem um trabalho conjunto

    envolvendo vrios campos, que concorresse para a ampliao das fronteiras

    disciplinares. Essa articulao dos saberes para se compreender a educao

    e o ensino seria, sim, necessria, mas no seria suficiente para dar conta da

    complexidade desse objeto nem para pensar o esclarecimento subjetivo que

    poderia ser uma das possibilidades para pens-lo, na atualidade, como um

    dos meios de promover a elaborao do passado pressuposta pela educao

    poltica e realizar a tarefa de evitar a repetio da barbrie. Adorno

    considera necessrio dar um passo a mais, com a produo de saberes que

    auxiliassem a construo de narrativas capazes de afetar a sensibilidade dos

    indivduos na qual estariam impressas os horrores experienciados no

    passado e os medos reprimidos no presente, tornando-os objetos de sua

    auto-reflexo crtica sobre si mesmo. Desse modo, tenta trazer luz a

    memria sensvel, fruto dessa experincia, cuja imemorialidade resultou em

    dio e em ressentimento contra o diferente, no presente, propondo a sua

    elaborao e o encontro dos meios para que se resista barbrie e ao

    totalitarismo que ainda persiste nas formas de vida social.

    Isso implicaria, para o frankfurtiano, no em um apelo conscincia

    e razo desfigurada pela civilizao, mas em um apelo ao seu outro, quilo

    que no inconsciente e que na sensibilidade podem ainda ser mobilizados

    contra essa mesma desfigurao, elucidando a face sensvel e irracional nela

    implicadas e os limites para elev-la ao conceito pelo pensamento crtico, j

    que compreendem uma outra ordem ou dimenso, denominada de esttica.

    Por esse motivo, compreende que a eficcia da elaborao do passado,

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    138 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    pressuposta pela educao poltica, estaria condicionada por essa dimenso

    sensvel com a qual as pessoas se relacionariam na experincia com o

    mundo e consigo mesma. Diante de uma situao em que a destruio da

    memria e a reificao dos sentidos teria sido levado ao extremo, Adorno

    (1995, p. 49) recomenda a seguinte alternativa para promover tal elaborao

    do passado:

    Lembremos s pessoas o mais simples: que o revigoramento direto ou indireto do fascismo representa sofrimento e misria num regime autoritrio, (...); resumindo, que dessa forma se instalaria uma poltica catastrfica. Isto surtir mais efeito do que atentar a ideais ou ento remeter ao sofrimento dos outros, (...). Em face dessa perspectiva, o mal-estar do presente representa pouco mais que o luxo de um estado de nimo. Entretanto, apesar de toda represso psicolgica, Estalingrado e os bombardeios noturnos no foram esquecidos a ponto de impossibilitara compreenso de todos acerca da relao que existe entre uma poltica igual que levou quela situao e a perspectiva de uma terceira guerra pnica.

    Uma educao poltica, compreendida nesses termos, ento,

    comearia por esse apelo ao sensvel e ao inconsciente, tentando alvejar a

    dimenso esttica de uma experincia singular em que o horror e o medo

    foram vivenciados, em uma situao histrica determinada, para que, ento,

    aqueles que fossem tocados por essa experincia tentassem elev-la ao

    conceito, por intermdio do pensamento. Embora essa experincia no

    pudesse ser completamente conhecida e elevada ao conceito, ao menos ela

    poderia focalizar o no idntico ao pensamento, vislumbrando nele um veio

    fecundo para que os indivduos, dispostos ao trabalho de auto-reflexo

    sobre si mesmo, evitassem barbrie e buscassem criticamente outras

    formas de estetizao da existncia. Tais tarefas seriam imprescindveis para

    a ampliao de sua experincia singular e para a inovao da experincia

    social no presente. Contudo, o passado somente seria elaborado quando as

    causas do que nele se passou fossem eliminadas algo que at hoje no teria

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 139

    ocorrido, segundo o frankfurtiano.

    Adorno recorre aos recursos da afetao da experincia sensvel para

    a comunicao daquilo que diferente ao pensamento, parecendo almejar a

    uma asthesis por meio de sua crtica e propor uma espcie de poesis para

    efetivar uma sensibilizao das pessoas sua educao poltica. Mesmo que

    no mencione os jogos de imaginao sobre a linguagem ou a potica como

    meios de promover uma ruptura com o vigente processo de produo e de

    transmisso dos saberes acadmicos, o frankfurtiano pensa criticamente essa

    asthesis, pois, considera que, j que a experincia que propicia ao indivduo

    no poderia ser conhecida objetivamente pelas cincias, ao menos ela

    poderia ser pensada enquanto parte constitutiva das pesquisas e do ensino

    desenvolvidos na universidade, e em outros nveis e estabelecimentos,

    ainda que seja enquanto um problema e no como um objeto.

    Esse problema decorreria da acentuao da inaptido da referida

    experincia na sociedade industrial. Aps a Segunda Guerra, segundo

    Adorno (1992, p. 45-8), as pessoas no teriam mais nenhuma experincia a

    relatar nem se empenhariam em significar as atrocidades cometidas ou

    sentidas em sua prpria pele, fechando aos olhos s crueldades impetradas,

    se esquecendo dela e se calando diante desse supremo mal que se abateu

    sobre a humanidade. Esse esquecimento e esse mutismo seriam sintomas,

    para ele, da incapacidade atual de recobrar o horror e o medo

    experienciados, em virtude da reificao dos sentidos e da frieza

    disseminada pela racionalidade instrumental e pelo pensamento

    identificante, desde a modernidade.

    Ao no poder ser completamente apreendida pela linguagem nem

    elevada ao conceito, a referida experincia se diferenciaria do pensamento,

    interrogando-o no sentido de assinalar o que ele no pode comunicar e

    focalizando assim aquilo que dele se diferencia. Por esse motivo, Adorno

    (1982, p. 385-6) reconhece que "a experincia s no basta, preciso que ela

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    140 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    seja alimentada pelo pensamento", que por sua vez assume o papel de

    focalizar nela aquilo que de outra ordem e que pode ser pensada

    criticamente, evitando que a sua indeterminao concorra para a produo

    da violncia. O frankfurtiano procura, com isso, chegar quilo que a

    experincia por si s no alcana e, por sua vez, por intermdio dessa

    experincia indecifrvel, fruto da asthesis, explicitar os limites do

    pensamento.

    como se Adorno, a partir dessa reflexo, procurasse articular, pela

    dialtica negativa, experincia esttica e pensamento filosfico, em busca de

    um lugar para a arte e para a filosofia no processo de produo e

    transmisso dos saberes acadmicos na universidade, e em outras

    instituies de pesquisa e de ensino, do qual foram destitudas. Nesse

    sentido, compreende que filosofia caberia promover a conceitualizao

    necessria esttica, elevando a experincia sensvel ao conceito e ao

    pensamento, deixando vista o que o conceito no esgotaria: o medo, o

    terror, os sentimentos de beleza, de prazer e as emoes sublimes suscitadas

    pela relao do indivduo com o mundo. Seriam justamente esses

    sentimentos e emoes que a linguagem no consegue captar e que a arte

    suscitaria, tanto em seu processo de produo quanto no de recepo,

    propiciando um lugar-tempo para ocorrncia dessa experincia esttica em

    que o pensamento se defronta com o seu derradeiro limite e, por seu

    intermdio, com as possibilidades de criao de outros modos de ser, de

    sentir e de agir no mundo. A articulao entre filosofia e arte se daria,

    respectivamente, pelo reconhecimento dos limites do pensamento diante

    dessa experincia esttica e pelas possibilidades de experienci-la, no

    presente, trazendo luz aquilo que difere do pensamento e que o faz,

    constantemente, recomear a sua busca pelo enigma da existncia, da vida e

    da morte.

    Mais do que restabelecer um lugar para filosofia e para a arte no

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 141

    processo de produo e de transmisso dos saberes acadmicos atuais, a

    articulao entre esses saberes rompe com a diviso e com a especializao

    estabelecida para cada um desses campos na universidade, propiciando

    entre eles um mtuo esclarecimento sobre os seus limites e, ao mesmo

    tempo, um trabalho de auto-compreenso aos pesquisadores e aos

    professores dispostos a pensarem criticamente as experincias que

    compreendem as suas prprias atividades. Por esse pensamento crtico

    sobre as suas prprias atividades de pesquisa e de ensino, tais

    pesquisadores e professores poderiam at recorrer aos conhecimentos

    objetivos produzidos sobre elas, a mtodos e a tcnicas que concorrem para

    inov-los, porm, precisariam muito mais do trabalho de auto-reflexo

    sobre suas prprias experincias, onde esse trabalho poderia ser concebido

    como artstico e essa auto-reflexo seria filosfica, a fim de conferirem a elas

    os sentidos ticos e polticos desejados, conforme as suas possibilidades de

    efetivao no presente.

    Adorno reconhece que, para que isso ocorresse, preciso tornar

    significativa essa experincia por intermdio de situaes ou de narrativas

    que poeticamente afetassem aqueles que a vivem e esto dispostos a

    signific-la, mesmo reconhecendo o carter indeterminado e acidental dessa

    afeco. Esse carter indeterminado e acidental tambm estaria presente na

    experincia educativa e no ensino, embora muito menos neste ltimo, que se

    caracteriza justamente pela sua organizao racional, pelo planejamento e

    pela determinao prvia daquela. Ao menos isso que se pode depreender

    de uma passagem dos textos educacionais do frankfurtiano, quando,

    referindo-se msica, diz o seguinte:

    |... | experincias musicais na primeira infncia a gente tem, por exemplo, quando, levado a deitar na cama para dormir, acompanhamos desobedientes e com ouvidos atentos msica de uma sonata para violino e piano de Beethoven

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    142 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    proveniente da sala ao lado. Mas se adquirirmos essa experincia mediante um processo, ele prprio por sua vez ordenado, torna-se duvidosa a mesma profundidade da experincia. (ADORNO, 1995, p. 147)

    Esse seria o ponto nevrlgico no qual o ensino estaria enredado e que

    poderia ser um dos objetos da auto-reflexo do educador sobre a sua

    prpria atividade, focalizando nela elementos de sua experincia profunda

    que auxiliam a compreend-la e torn-la significativa no apenas para si

    mesmo, como tambm para queles aos quais ela se destina: os educandos.

    Melhor seria falar em uma experincia em que os indivduos envolvidos

    somente aprendem quando so afetados por uma palavra, um gesto ou uma

    imagem emitida pelo outro, dispondo-se a aprofundar a compreenso

    acerca de si mesmo ou de sua relao com e no mundo. Nesses termos,

    talvez pudssemos pensar com Adorno numa potica no ensino,

    pressupondo uma concepo de educao como arte que almeje nessa

    experincia profunda, na esttica compreendida por ela, os meios para que o

    horror e o medo se tornem objetos do pensamento crtico, por parte de

    alunos e de educadores, evitando a repetio da barbrie e resistindo s

    causas que a promovem no presente.

    Sendo concebida como arte, porm, na perspectiva adorniana, a

    educao estaria submetida s mesmas condies histricas e sociais que a

    produo e a recepo artstica nas sociedades industriais. A arte teria sido

    incorporada aos mecanismos do mercado e indstria cultural,

    determinando a beleza, o prazer e as emoes sublimes, suscitadas pela

    experincia da criao e da recepo da obra artstica e convertendo-as em

    mera dissimulao e espetculo catrtico. Por conseguinte, a beleza, o prazer

    e as emoes sublimes provocadas pela arte de educar estariam sujeitas aos

    mesmos impedimentos da experincia da criao e da recepo artstica.

    Em virtude de terem se tornado cada vez mais racionalizadas e

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 143

    reduzidas ao mero domnio de uma ou mais tcnicas, a educao e o ensino

    concebidos como objetos da cincia abriram mo de seu sentido auto-

    reflexivo, concorrendo para a reproduo ampliada dos saberes ou para a

    sua aplicao a outros setores da vida, para uma ausncia de criao e para

    uma recepo passiva no mbito de sua veiculao, desfigurando-os

    enquanto arte e como um meio de produzir formas de subjetivao. Para se

    contrapor a isso, seria preciso que os pesquisadores desse campo de saber

    (es) e os professores formados por ele estivessem abertos a pens-lo

    criticamente, se deparando com as experincias que decorrem de suas

    atividades de pesquisa e de ensino, buscando romper o cerco que as envolve

    e que resultaram em sua inaptido atuais.

    Os pesquisadores e os professores dispostos a pensar a sua prpria

    atividade, nesse sentido, se deparariam com uma experincia singular,

    indeterminada, que interfere nesse processo e que no se restringe aos

    atuais critrios de objetividade estabelecidos pelas cincias nem com o de

    eficincia definidos pelo ensino. Ao contrrio de seus critrios atuais, eles

    vislumbrariam nesse processo formas de subjetivao presentes no

    conhecimento sobre e no prprio ensino, resultantes de suas experincias

    com o mundo e consigo mesmos, pensadas no no sentido de lhes conferir a

    unidade e a identidade em que se baseiam as cincias e a tcnica, mas no de

    perceber a sua heterogeneidade e de comunicar o diferenciado, por

    intermdio da crtica filosfica. Deparar-se-iam tambm com a subordinao

    dos critrios de objetividade, ento considerados racionais, e da tecnologia,

    caracterizada pela aplicao dos conhecimentos cientficos atividade

    humana, aos mecanismos sociais e polticos da dominao, resultados de

    uma experincia histrica e social, que tornou o processo de produo dos

    saberes sobre a educao e o prprio ensino em meio aos quais ocorrem as

    disputas sociais e definem as relaes de poder na sociedade totalmente

    administrada. E, diferentemente da iseno propagada pela racionalidade

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    144 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    instrumental, esse processo de produo de conhecimentos cientficos sobre

    a educao, de sua aplicao ao ensino, e este propriamente dito, estaria

    associado s disputas pelo poder e aos poderes institudos, perdendo o seu

    encanto e revelando-se ideolgico nessa mesma sociedade.

    O pensamento de Adorno fornece elementos, assim, para pensarmos

    na arte de educar e na potica do ensino, assim como o problema da

    inaptido da experincia, do indeterminismo da aprendizagem significativa

    e da submisso da educao aos jogos do poder vigentes. Diante desses

    problemas, restaria ao labor artstico, assim como filosofia tentar elaborar

    o terror e medo suscitados pela incidncia do passado sobre o presente a

    partir das experincias com o mundo e consigo mesmo, s quais

    pesquisadores e professores deveriam estar atentos, tornando-as objetos de

    suas reflexes nessas atividades.

    A interpretao depreendida da obra de Adorno sobre as

    possibilidades de conceber a educao como uma arte e a potica no ensino

    sugerem o intuito de afetar os agentes envolvidos nessa atividade e com a

    experincia que dela decorre, para que ainda pudessem ter alguma

    admirao (ou indignao) e algum espanto em relao aos horrores do

    mundo e, com isso, se dispusessem a pensar criticamente e resistir aos

    mecanismos que promovem o espetculo trgico que representa. Tais fins

    seriam os mesmos da educao poltica e da elaborao do passado

    postuladas pelo frankfurtiano, pressupondo um filosofar nessa arte como

    uma forma de aprender o diferenciado e de comunic-lo, resistindo ao

    pensamento identificante e ao totalitarismo representado por ele na

    atualidade. Ao mesmo tempo em que a potica no ensino seria um meio de

    tentar romper com o circulo da instrumentalizao e da reificao da

    conscincia atual de educadores e de educandos, por intermdio da

    sensibilizao desses agentes envolvidos nessa atividade, do remexer em

    feridas entre abertas e em elementos de suas experincias singulares

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 145

    profundas, capazes de provoc-los a pensar criticamente sobre suas relaes

    consigo mesmos, com e sobre o mundo.

    O pensamento adorniano no sugere que, por intermdio da crtica

    filosfica, se possa postular um ideal de emancipao a ser alcanado pela

    educao e pelo ensino, muito menos quando concebidos, respectivamente,

    como arte e como potica. Tambm no permite vislumbrar nessa crtica a

    possibilidade de compreender racionalmente o todo e chegar ao universal,

    compreendendo a educao e o ensino em sua totalidade e os seus

    fundamentos de um ponto de vista superior. Ao contrrio disso, como

    sugere Adorno (1969), a filosofia deveria renunciar a tais pretenses, porque

    a ambio de compreender o todo racionalmente implicou historicamente

    em uma forma de totalitarismo e a postulao de um ponto de vista

    universal e superior serviu muitas vezes para justificar a diluio e a

    supresso do particular. Nesse sentido, a crtica seria a nica via ainda

    vlida para a filosofia. E poderamos dizer que o pensamento crtico,

    definido nesses termos, seria a nica via aberta para o filosofar

    desenvolvido na arte de educar.

    Adorno se contrape, filosoficamente, aos ideais iluministas que

    legitimaram a produo e a transmisso do conhecimento na universidade,

    justamente por abandonarem o seu carter poltico. Ao abordar os

    fundamentos do processo de ensino, engendrados pela pedagogia do

    iluminismo (pedagogie der Aufklrung), o frankfurtiano tambm interroga a

    pretenso desta em conceb-lo como uma atividade determinada

    racionalmente, pelas leis da razo e do entendimento, e objetivamente, pela

    aplicao dos conhecimentos objetivos produzidos sobre a educao. Isso

    porque compreende que em funo dessa racionalidade e objetividade ele

    deixou de cumprir a tarefa ao qual historicamente se props emancipar os

    indivduos e torn-los civilizados , gerando justamente o seu oposto a

    heteronomia e a barbrie. Ele procura, dessa forma, voltar contra o prprio

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    146 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    iluminismo, e a pedagogia que dele decorre, as contradies que persistem

    desde sua gnese, at o seu uso ideolgico atual, propondo uma ruptura

    com essa sua configurao, por meio da cobrana de suas promessas no

    cumpridas e da realizao de um trabalho de auto-reflexo crtica dos

    agentes envolvidos nesse processo sobre eles mesmos.

    Pode-se dizer, com isso, que o pensamento de Adorno sobre o

    assunto nos auxilia a estender para o processo de produo e a transmisso

    do saber acadmico sobre a educao a questo de Lyotard sobre as

    possibilidades de uma potica nesse processo, assim como reforam a

    necessidade das universidades abrirem suas oficinas de criao, com o

    intuito de evitar a repetio do mesmo e produzir um novo lance nos jogos

    de poder existentes. Alm disso, o pensamento de Lyotard sobre a educao

    tambm parece apontar para as mesmas perspectivas crticas e polticas

    assinaladas pelo pensamento do frankfurtiano, marcadas por uma poltica

    de resistncia ao totalitarismo e pela crtica ao ideal moderno de

    emancipao.

    Lyotard (1993) concorda com a crtica adorniana ao projeto iluminista

    e pedagogia que dele decorre, quando afirma que a modernidade teria nos

    ensinado a desejar a extenso da liberdade poltica, das cincias, das artes e

    das tcnicas e legitimar esse desejo porque o progresso auxiliaria a

    emancipar a humanidade, mas tal promessa no foi cumprida. Mesmo que

    se refira aos problemas decorrentes de um contexto histrico distinto

    daquele ao qual se referia s consideraes sobre os lineamentos da

    educao poltica, o filsofo francs parece chegar s mesmas concluses do

    frankfurtiano. Para ele, o fracasso desse projeto teria apenas outros sinais,

    sob a condio ps-moderna:

    O perjrio no foi devido ao esquecimento da promessa; o prprio desenvolvimento que impede de a cumprir. O neo-analfabatismo, o empobrecimento dos povos do Sul e do

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 147

    Terceiro Mundo, o desemprego, o despotismo da opinio e portanto dos preconceitos repercutidos pelos media, a lei de que bom o que performativo isto no devido falta de desenvolvimento, mas ao desenvolvimento. (LYOTARD, 1993, p. 114-5)

    Tal como o frankfurtiano, o filsofo francs argumenta que no se

    trataria apenas de retomar os ideais modernos e invocar a universalidade da

    razo e partilh-la como um princpio universal. Tambm no se trataria de

    focalizar pelo e no pensamento aquilo que no poderia ser compartilhado, o

    que encerra em cada um de ns um segredo intransmissvel, como

    desenvolvido por alguns filsofos contemporneos que almejaram

    perpetuar a tarefa. Ao contrrio disso, essa tarefa persistiria no presente

    apenas como uma forma de resistncia mnima a todos os totalitarismos,

    tal como desenvolvido por Adorno. Isso porque, para Lyotard (1993, p. 115):

    Adorno compreendeu melhor a mgoa de que eu falo do que a maioria de seus sucessores. Associa-a queda da metafsica e, sem dvida, ao declnio de uma idia de poltica. Volta-se para a arte, no para acalmar essa mgoa, que sem dvida no pode ser remida, mas para testemunhar, e diria eu, salvar a honra.

    Embora no se refira diretamente s possibilidades da arte na

    educao, o filsofo francs argumenta que a falncia das Luzes deveria ser

    tomada na atualidade como um luto a ser vivido, como um sinal do declnio

    do humanismo no qual se pautou. Afinal, nos dias de hoje, o saber no seria

    mais um meio de emancipao: um luxo que homem se oferece a si

    prprio, um produto no meio de uma diversificao crescente e de uma

    multiplicao aleatria da vida, que representaria a imagem que o cosmos

    produz de si mesmos, no pertencendo ao homem. Ao homem caberia

    apenas complexificar esse produto e compreender essa imagem luz do

    pensamento, no por destinao, mas pelo maior dos acasos, fazendo o que

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    148 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    lhe caberia fazer: a complexificao de nossos conhecimentos.

    Nesta perspectiva, se eu devesse atribuir uma finalidade

    educao uma pura hiptese da minha parte, - seria a de tornar as pessoas mais sensveis s diferenas, de faz-las sair do pensamento massificante. preciso educar, instruir, nutrir o esprito de discernimento, formar para a complexidade. (Lyotard, s.d., p. 50)

    Ao mesmo tempo, ele argumenta que, se tivesse que pensar num

    sistema educativo para a realizao dessa finalidade, o formularia a luz de

    uma poltica da resistncia, isto , a uma resistncia ao pior, quer dizer

    manter um nmero de idias a favor e contra tudo, mesmo que elas no

    possam ser aplicadas de imediato. Na prtica, ele defende uma adaptao

    ao complexo, refreando aquilo que tende ao macio e ao simplista. Desse

    modo, o filsofo francs almeja uma crtica ao iluminismo e perspectiva

    politicamente uma educao que implique na resistncia ao totalitarismo e

    barbrie, capaz de tornar as pessoas sensveis s diferenas e dispostas a

    pens-las, aproximando-se bastante das consideraes de Adorno sobre o

    assunto, que poderiam inclusive aprofund-las, como o fizemos na primeira

    parte deste artigo.

    Restar-nos-ia, ento, saber como possvel tornar as pessoas

    sensveis s diferenas e dispostas a pens-las na arte de educar, se ela

    envolve uma indeterminao da experincia educativa, est submetida aos

    mesmos mecanismos de dominao na produo e da recepo artstica e

    est envolvida por uma inaptido atual, que promove e que comunica o

    pensamento identificante ao invs do pensamento acerca do no idntico,

    nos termos assinalados por Adorno. Ou, ento, como sair dos jogos de

    linguagem e de poder aos quais estaramos enredados, principalmente, aps

    o advento da informtica e da sociedade da informao, como sugere

    Lyotard? A resposta a essas perguntas parece estar, para Adorno, no

    trabalho de auto-reflexo sobre essa prpria arte de educar, a ser

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 149

    desenvolvido pelos educadores, tendo em mira os objetos que so

    constitutivos de sua prpria subjetividade, tais como o corpo e a infncia, e

    que perpassam a experincia educativa. Por sua vez, para Lyotard, a

    resposta estaria no reflexionamento do desejo em que consiste a filosofia

    sobre esses mesmos objetos, nos jogos de fora existentes, no sentido de

    concorrem para a explicitao de uma asthesis, que auxiliaria a

    compreenso da arte de educar, e de uma poesis, que permite construrem

    narrativas ou interpretar obras artsticas capazes de tocar o corpo e a

    infncia, por intermdio do reflexionamento sobre esses objetos, presentes

    nas experincias singulares de educadores e educandos. Desse modo,

    Adorno e Lyotard parecem apresentar respostas diferentes ao que

    poderamos conceber como o filosofar necessrio arte de educar, porm, os

    compreendem dentro dos limites e das possibilidades de seu confronto com

    o corpo e com a infncia, como veremos a seguir.

    O filosofar na arte de educar: entre o corpo e a infncia

    Adorno & Horkheimer (1986, p. 217) concebem o corpo como um

    tabu, objeto de amor e dio, de atrao e de repulso, que interfere na

    relao do indivduo consigo mesmo e, muitas vezes, determina a produo

    de sua identidade subjetiva. O corpo seria um objeto problemtico em si

    mesmo, em virtude dos tabus que representa, da atrao e da repulso que

    provoca, podendo ser compreendido como um local onde se manifestam as

    idiossincrasias, os gestos rudes e violentos, entre outras formas

    denunciativas da proximidade do eu com a sua natureza arcaica, abrigada

    por ele e constitutiva da mesma subjetividade racional que a renuncia. Por

    intermdio desses argumentos, os frankfurtianos almejam elevar a natureza

    arcaica constitutiva da subjetividade ao conceito, a comear por aquilo que

    ela manifesta no corpo, esforando-se por torn-la conscientes aos

    indivduos, dentro dos limites subjetivos e objetivos em que isso seria

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    150 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    possvel. Em razo de reconhecerem os limites objetivos da emancipao da

    sociedade no mundo totalmente administrado, eles postulam que somente a

    auto-reflexo crtica sobre si mesmo poderia gerar uma resistncia capaz de

    romper com a adeso cega do indivduo ao todo social, com a conscincia

    reificada e com o pensamento identificante, gerando um pensamento crtico

    capaz de reconhecer o no idntico, o seu outro parcialmente representado e

    constitudo pela natureza recalcada e desfigurada pela civilizao. O sujeito

    perceberia em si mesmo, desse modo, o retorno inadvertido daquela

    natureza arcaica abrigada pelo corpo e de suas manifestaes inscritas sobre

    esse objeto, constitutivo do prprio eu.

    Desse ponto de vista, Adorno procura recobrar as marcas de uma

    memria inscrita no corpo, nele percebida e por ele expressa, no presente,

    por meio de idiossincrasias geradas pela rebelio da natureza ou dos

    instintos e das paixes contra a prpria civilizao e o prprio indivduo

    que os reprimiram. Fazendo com que essas marcas e esses sinais sejam

    trazidos ao olhar, ele espera conter o dio que desperta a intolerncia,

    refletindo o quanto resulta do sacrifcio exigido pela civilizao e de uma

    compensao do sofrimento a que todos foram submetidos historicamente.

    Aquilo que se inscreve sobre o corpo, nele se sente e se expressa, ento, seria

    o comeo dessa inflexo do sujeito sobre si mesmo e da produo de um

    pensamento crtico, que resiste submisso desse objeto ao conhecimento

    cientfico e sua manipulao racional e fria pela tcnica, objetivando

    restaurar o que ainda pulsa e o que no da ordem da razo subjetiva, mas

    daquilo que foi denegado por ela: os instintos e as paixes humanas. Mesmo

    que estes ltimos sejam geridos pelo instinto de autoconservao ou a

    dinmica pulsional seja movida pela pulso de morte, na concepo

    adorniana, o esforo em torn-la consciente uma tentativa de propiciar um

    confronto do indivduo com uma vida finita e com um limite histrico

    estabelecido para o exerccio do pensamento.

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 151

    Pode-se dizer que o reconhecimento desse limite da vida e da histria

    propiciaria, por intermdio da relao do indivduo com o seu prprio

    corpo, vislumbrar uma fissura, a possibilidade do recomeo ao

    desenvolvimento de seu pensamento crtico sobre e no tempo presente, no

    mais assentado na subjetividade racional e na figura da conscincia, e, sim,

    fundado num outro dessa subjetividade e numa memria daquilo que foi

    esquecido em nome dessa figura. Adorno parece procurar nesse recomeo a

    possibilidade de um nascimento do pensar crtico, algo que se assimile a

    uma experincia originria, tambm arcaica, vivida num tempo no

    presidido pela cronologia dos fatos e acontecimentos, pela histria, mas que

    constitua uma experincia imemorial, produtiva a esse mesmo pensamento.

    Ele busca, enfim, uma experincia prxima quela ocorrida na infncia,

    vislumbrando nela o sinal produtivo do pensamento, j que a se manifesta

    incompleto, finito, sem as amarras da razo subjetiva, da unidade da

    conscincia e do pensamento identificante. Adorno vislumbra na

    experincia da infncia, desse modo, um outro curso, tateante, para o

    pensamento, como se seguisse pistas e trilhas que no podem ser expressas

    pela linguagem, mas que possuem sentidos a serem perseguidos e reclamos

    inexplicveis.

    Como nessa experincia os instintos e as paixes humanas no foram

    totalmente recalcados pela civilizao, os sentimentos no foram moldados

    por uma cultura espiritual estril e como a imaginao no se encontra

    dissociada completamente do pensamento, o corpo a ela se apresenta como

    uma natureza rebelde e com algum poder de reao aos sacrifcios exigidos

    pela educao para a dureza e para a severidade. Nessa rebelio da natureza

    e nessa reao possvel reconhecer toda a dor e o sofrimento impingidos

    pela civilizao para a constituio de um eu viril e frio, assim como

    perceptvel o momento em que o indivduo ainda esboa alguma resistncia

    privao, ao cerceamento e quilo que representam para a sua vida e para

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    152 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    a sua morte. por esse reconhecimento e por essa percepo que possvel

    ao indivduo vislumbrar aquilo que foi e ainda pode ser encontrando em si

    mesmo essa natureza infantil, rebelde e reativa , ao mesmo tempo em que

    evita projet-la sobre um outro semelhante para justificar aquilo que quer

    recalcar em si mesmo, mas nunca consegue faz-lo por completo.

    Se, na relao do indivduo consigo mesmo, o corpo traz os sinais

    daquilo que a conscincia e o pensamento negaram at ento, delineando os

    primrdios de uma linguagem indecifrvel sob a qual incide todo

    pensamento crtico, o nascimento e a infncia representam a potencialidade

    do desenvolvimento deste ltimo, caracterizada por essa busca constante de

    resistir ao existente e firmar-se enquanto ser, ainda que seja pelo

    reconhecimento de sua finitude, de sua no identidade e de sua

    incompletude, o que implicaria tambm na possibilidade da construo do

    novo.

    Embora no busque uma conscincia mnima sobre esses objetos,

    produtos e produtores da auto-reflexo crtica pressuposta por Adorno, o

    filsofo francs tambm compreende o corpo e a infncia como objetos

    privilegiados da filosofia e do filosofar.

    Analisando a obra 1984 de Owell, Lyotard (1993, p. 111-12) aborda

    duas linhas de pensar o corpo. Uma das linhas, a fenomenolgica, tenta

    ligar aquilo que sente com o que sentido, enunciando o n que envolve

    essa compreenso, j que os elementos sensveis que atingem os nossos

    rgos jamais so transferveis para o espao tempo e prprios s nossas

    existncias e experincias singulares. Mesmo que essas existncias e

    experincias sejam partilhveis em sua intransitividade, o ponto de escuta,

    de tato, de olfato, de viso e de gosto do outro nunca seria o meu, sendo tais

    singularidades o enigma ofuscante do mundo e se apresentando sempre a

    ele no plural. O mesmo n se verificaria quando em tal concepo de corpo

    se procura tomar o amor como uma exceo a isso, justificando que ele

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 153

    exigiria permeabilidade entre os amantes e rendio do campo de

    perspectiva de um ao do outro, buscando nessa experincia interminvel

    um outro idioma sensvel, uma vertigem entre o nu, o tocar e o se descobrir

    a dois, que tambm queda intransmissvel pela linguagem de duas vozes

    nuas.

    Ao analisar a outra linha que esboa um pensamento sobre o corpo, a

    psicanaltica, que o aborda como uma organizao escondida, singular, do

    espao-tempo, Lyotard (1993, p. 112) afirma que ela tambm problemtica

    na medida em que o concebe como o esconderijo de um fantasma, isto , de

    um passado de terror marcado e mascarado na sua presena, ordenador

    secreto de suas afeies, compreendendo a o seu trao de maior fraqueza.

    Mas fraqueza relativa a qu? Segundo ele, fraqueza relativa ao fato de ser

    mais familiar e mais estranha que a sensibilidade, comandando o eu de

    modo que se torne cego e surdo ao que, no entanto, visvel e audvel,

    alrgico ao inofensivo, fazendo com que se delicie onde os cnones da

    cultura prescrevem o horror ou a vergonha. Assim sendo, o autor

    evidencia uma fraqueza relativa norma e comunicabilidade.

    Seguindo essa dupla linha, explorando as fraquezas, o dominador

    (burocrtico ou negociante) poderia fazer com que, segundo ele, os rebeldes

    se denunciem uns aos outros, bastando para isso que se ame, que acolham

    em conjunto o acontecimento no seu valor inicitico, avanando juntos no

    labirinto das sensibilidades e das palavras nuas antes assinaladas, revelando

    um ao outro e a si mesmos as figuras mais destrutivas que os governam.

    Denunciando o objeto do seu amor a Big Brother, o

    amante no trai apenas aquilo que so um e outro, mas aquilo que no so, o que lhes falta, a falha. A confisso do enfraquecimento a delao mais preciosa. Fornece ao senhor uma informao e o meio de a obter. Um ato inscreve-se positivamente na realidade, pode-se sempre arquivar o seu rastro. Mas aquilo que em cada um aguarda, espera e

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    154 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    desespera, no nada que se possa segurar e inscrever. Nisso reside o verdadeiro crime antes de qualquer ato criminoso. (LYOTARD,1993, p. 112-13)

    Essa prtica de confisso restabeleceria aquele que confessa a

    integralidade e a unicidade da linguagem comunicacional, expandindo a

    novilngua que renuncia os poderes da linguagem e concorre para o declnio

    da cultura, forjando uma lngua da rendio e do esquecimento. Bastaria

    repararmos na generalizao das linguagens binrias, no apagamento das

    diferenas, o esquecimento dos sentimentos em benefcio das estratgias,

    concomitantes hegemonia do mercado, que pesam sobre a escrita, o amor

    e a singularidade, existindo hoje uma ameaa de natureza profunda, a da

    confisso e a da novilngua, que envolve a eliminao do outro, do

    diferente. E o que faz essa ameaa mais ruidosa seria impacto das

    democracias miditicas, das tecnocincias trabalhando com, e sobre a

    linguagem, da competio econmica e militar mundial. Diante desse

    problema, a resistncia seria a nica prtica poltica possvel no mundo

    atual, sendo necessrio para tanto focalizar pelo e no pensamento aquilo

    que no poderia ser compartilhado, o corpo inconsciente, que encerra em

    cada um de ns um segredo intransmissvel. Desse modo seria necessrio

    prolongar a linha do corpo na linha da arte, cujo trabalho tem semelhanas

    com o do amor, inscrevendo a marca de um acontecimento inicial e o

    oferecendo a partilha. E, ainda que essa partilha propiciada no seja a do

    conhecimento, ao menos ela poderia ser o compartilhamento de uma

    sensibilidade que pode ser considerada comum.

    Esse trabalho de resistncia desenvolvido pela arte significaria no o

    encerramento do indivduo numa torre de marfim nem o voltar das costas

    para os novos meios de expresso resultantes do desenvolvimento cientfico

    e tecnolgico, mas a procura com e por eles testemunhar a nica coisa que

    conta no presente vivido: a infncia do encontro, o acontecimento feito

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 155

    maravilha que acontece, o respeito pelo acontecimento. Afinal, diz ele: No

    te esqueas de que foste e s, tu prprio, isso, a maravilha acolhida, o

    acontecimento respeitado, a infncia misturada dos teus pais. (LYOTARD,

    1993, p. 116)

    Isso quer dizer que, para ele, essa experincia profunda nos faria

    enfrentar o que fomos e somos enquanto acontecimentos do e no mundo,

    onde o corpo no seria apenas um receptor de seus sinais, de seus cdigos e

    de suas normas, nem o esconderijo de seus fantasmas, mas um mvel

    pulsante e irrefrevel que, em continuidade com a arte, poderia testemunhar

    os horrores vividos e partilhar uma sensibilidade comum, como aquela

    experimentada na infncia, graas ao amor e proteo de nossos pais.

    Vislumbrando nessa experincia vivida na infncia o comeo de

    tudo, e refutando todo e qualquer princpio como superior ou transcendente

    vida, Lyotard parece valoriz-la como um acontecimento em que esse

    mvel pulsional se encontra em menor estado de circunscrio ou de

    refreamento pelo mundo, em plena potncia, pronto para se converter em

    ato, graas a um aconchego originrio, a um respeito aos sentimentos que

    compartilha com e que so compartilhados pelos seus pais. A infncia

    parece ser o comeo do balbuciar uma linguagem que ainda no a dos

    adultos, mas que envolve uma relao com eles e com o mundo, numa

    mistura em que a escritura forjada, em continuidade com o corpo psquico,

    e onde a arte do viver torna imprescindvel o compartilhamento de uma

    sensibilidade comum aos amantes. O encontro com a infncia pode

    significar, desse modo, a busca desse incio e da origem de si mesmo

    enquanto acontecimento no mundo, desenvolvida pelo pensamento,

    tentando encontrar a aquilo que no consegue expressar racionalmente e

    que lhe constitutivo, reconhecendo por esse meio a sua incompletude, a

    sua falha e a sua carncia.

    Mesmo que o corpo e a infncia fossem objetos de subjugao e de

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    156 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    prescrio, precederiam a qualquer ordem racional ou legal, inscrevendo-se

    em uma outra ordem, denominada por ele de esttica.

    Ser esteticamente (no sentido da primeira Crtica kantiana) ser a, aqui e agora, exposto no espao-tempo e ao espao tempo de algo que toca antes de todo conceito e de toda representao. Evidentemente, no conhecemos esse antes, porque estaria ali anteriormente a si mesmo. como o nascimento e a infncia, que esto ali antes de estarem em si mesmos. O ali em questo se chama corpo. No sou eu quem nasce e que iluminado [enfant]. Eu mesmo nascerei depois, com a linguagem, com a sada da infncia [enfance], precisamente. Meus assuntos tero sido tratados, decididos, antes que eu possa responder por eles. De uma vez por todas, essa infncia, esse corpo, esse inconsciente ficaro a pelo resto de minha vida. Quando vem a lei, com o eu e com a linguagem, j ser tarde. As coisas j tero tomado um rumo. E o sentido impresso pela lei no ter borrado o primeiro rumo. Esse primeiro toque. A esttica concerne a esse primeiro toque que me tocou quando eu no estava. No este o lugar para desenvolver esta esttica negativa que governa toda grande arte, toda escritura, e no faz mais que revelar-se em plena luz com a arte e a literatura modernas. Sua obrigao, sua prescrio constitutiva pagar o toque insensvel com os meios sensveis. (LYOTARD, 1997, p. 44-5)

    Essa esttica negativa ao qual se refere privilegiaria a sensibilidade

    em detrimento da lei, no obstante o fato daquela ser mais indeterminada

    do que esta, sendo mais difcil de tocar o corpo, sobretudo, num momento

    em que esse objeto teria se submetido s leis e razo. Esse toque no corpo,

    nesse espao e tempo imemorial, selvagem e peregrino, nesse momento em

    que vivemos, ampliaria a culpa, presente como potncia do corpo, desde o

    nascimento. Isso porque, para que a lei seja no apenas enunciada, mas

    tambm obedecida, ela precisaria ser inscrita no corpo, a ferro e fogo,

    implicando no seu sacrifcio como meio de dilu-la. No entanto, essa culpa

    s seria diluda com a morte. Nesse sentido, o corpo seria demais para a lei e

    se a esttica negativa mencionada no seria suficiente para expiar essa culpa

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 157

    que espao-tempo do toque, j que se ela no agravaria ainda mais a

    culpabilidade, ao menos repetiria a selvageria da infncia e do nascimento,

    por intermdio da arte, sendo-lhe fiel.

    A lei se preocupa tanto com sua inscrio no corpo, como um toque,

    pois, s executada quando suprime a selvageria, a redime com o

    sofrimento e, posteriormente, com a morte, momento em que encontra

    finalmente a redeno da culpa. Na realidade, ela se constitui num segundo

    toque ou um retoque, fazendo com que o corpo expie a culpa do primeiro

    toque, pague o crime da inocncia da carne com o prprio sangue

    derramado e com a tortura, tal como ocorrem nas antigas execues penais,

    instaurando um teatro da crueldade que se sobrepe esttica negativa e

    que se reitera at os dias de hoje, e no apenas nas antigas instituies

    penais.

    Para Lyotard no bastaria, assim, que se recuperasse a memria

    inscrita sobre o corpo, sobre os seus sofrimentos vividos e os sacrifcios

    exigidos pela civilizao, como assinalado por Adorno, at porque essa

    memria seria a da lei inscrita sobre o corpo, no seriam seus segredos mais

    profundos nem a experincia esttica que o compreende e que precede a

    qualquer ordem racional. Ao contrrio dessa memria seria preciso

    recuperar aquilo que o corpo possui de imemorial, de selvagem e de

    peregrino, buscando na arte o meio de toc-lo, acentuando a culpa

    originria de seu desordenamento e de sua no completa subjugao s

    normas, moral e justia. Nesse sentido, o corpo estabeleceria com a tica

    um diferendo insolvel e com a justia uma aporia, pois, nem uma nem

    outra subordinariam a asthesis na qual estaria inserido. Mais do que isso, a

    justia produziria uma heteronomia do corpo e, principalmente, do toque ao

    qual deveria se comprometer, reiterando a injustia da crueldade que se

    exerce sobre ele pela lei.

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    158 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    E quando digo: haver sido tocado, nem sequer sou fiel ao carter temporal dessa passividade, que seria mais intemporal do que essa confuso da temporalidade com a cronologia. Melhor dizendo, a heteronomia do corpo, que a linha da justia retoca, no compreende nada de sucesso das causas e dos efeitos, nem da temporalidade improvisada na qual surge uma causalidade sem causa (isto , aquela causalidade que no o efeito de nada) prpria da liberdade. A heteronomia do corpo no entende nada do tempo fsico nem do tempo tico, porque a asthesis que a rege no nem encadeada-encadeante (no sentido da inteligibilidade) nem desencadeada-encadeante (no sentido da responsabilidade). O paradoxo do tempo do corpo, na medida em que esteja constitudo pelo seu no pertencimento a si mesmo, por seu desprendimento primrio, est em no ser de ordem nenhuma cadeia. (LYOTARD, 1997, p. 54-5)

    De um modo mais preciso do que Adorno, o filsofo francs

    circunscreve o corpo ao espao e tempo de uma asthesis que mais do que

    pela racionalidade da filosofia teria uma relao profunda com a arte ou,

    melhor dizendo, seria uma continuidade desta, bastando apenas que o

    corpo seja tocado e no retocado. Ele no seria ordenado numa cronologia,

    mas seria intemporal, j que stasis. Regido pela asthesis, esse carter

    intemporal do corpo perdura no ato da justia que procura libert-lo,

    particularmente na forma da crueldade manifesta, na pena fisicamente

    cumprida pelo condenado e na admirao daqueles que assistem o seu

    sofrimento, como fora h algum tempo. Ou, ento, no apagamento da

    culpabilidade engendrada pelo toque ou do desprendimento do corpo, por

    intermdio desse ato e da razo reflexiva, que inscrevem nele a justia e

    fazem com que seja esquecido efetivamente pela lei. No entanto, o xtase

    suscitado pelo ato de justia e a crueldade manifesta por ele acabam no por

    enunciar a emancipao do corpo pelo esprito, mas sim denunciar o quanto

    aquele persiste neste, indefinidamente, resultando numa dupla persistncia:

    a da infncia da liberdade e a da infncia do corpo.

    Ao invs da emancipao, que supe a infncia como a portadora de

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 159

    uma potncia que se converteria em ato racional e livre, ter-se-ia a

    persistncia de um ato movido pela asthesis, tal como aqueles

    desenvolvidos pelas crianas, onde liberdade sinnimo de agir em

    conformidade com os afluxos do corpo. No caso dos adultos ditos

    emancipados, tal conformidade consistiria em se comprazer com as

    descries do sofrimento causado pela impetrao da justia e, de certo

    modo, aplacar sua angstia e sua melancolia provocadas pela pertinncia de

    sua culpabilidade, que traz em si mesma a denncia da persistncia de uma

    liberdade incompleta, limitada, infantil. Tal infantilismo seria decorrente

    no apenas do corpo intratvel, esttico, que persiste na vida adulta, mesmo

    aps ter sido esquecido pela lei, como tambm do no reconhecimento deste

    nos prprios atos dos adultos ditos emancipados, que denotam a

    persistncia daquele corpo no pensado, o corpo de sua infncia.

    Certamente que tal infantilismo no implicaria no nascimento mesmo de

    um pensar emancipado, mas a sua renncia mesma enquanto potncia e ato

    para ficar apenas com a lei, que no momento atual tenta esquecer o seu

    aparato cruel e a morte, que faz com que o corpo renasa como infncia

    indesejada, ao almejar apenas e to somente a sobrevivncia negando a

    vida.

    Diante desse quadro, segundo Lyotard (1997, p. 59), porm, restaria

    saber se, como disse Adorno, se mesmo a morte j no teria morrido.

    como se o filsofo francs se perguntasse se a nica coisa que restaria em

    nossos dias seria, de fato, uma promessa de emancipao que consiste

    apenas em aplacar nossa angstia e nossa melancolia, mediante o contato

    com a nossa impotncia, a fim de que sobrevivssemos num mundo em que

    essa seria a nica tarefa possvel.

    Entendendo a melancolia como fruto de uma impossibilidade de

    entrar em confronto com o passado, que incide sobre o presente, Lyotard

    (1997, p. 66) afirma que ao menos possvel sublinhar a perda irremissvel

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    160 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    desse mesmo presente, a sua morte, em grande medida acentuada pelo fato

    de o presente vivo estar sempre ausente e de o que chega vida, o instante

    do acontecimento, estar j condenado a no chegar a lugar algum: ao nada.

    Isso porque, desde Plato, a melancolia se reencontra com todo pensamento

    quando este se depara com o seu fracasso, que a passividade, a

    temporalidade e a modalidade. Esta teria sido uma forma do pensamento

    no trair a presena, relutar a todo ente e manter-se em melancolia.

    Contudo, a melancolia omite a relao da alma com o no ser, com o enigma

    da apario e com o acontecimento. H o ser de entes, de instantes e de

    objetos. A melancolia os omite, e justamente essa recusa que interessa, j

    que h algo, ainda que seja indecifrvel, o que seria melhor que o nada. E

    interessa porque, dessa forma, poder-se-ia refutar antes o niilismo que a

    prpria melancolia.

    O resultado disso no seria nenhum cinismo, o que seria incorrer no

    equvoco do niilismo do qual tributrio e persevera por meio do ativismo,

    na melancolia que nada vale. Tambm no significaria nenhum ludismo

    nem uma metafsica do artista. Ao contrrio, o seu resultado , segundo

    Lyotard (1997, p. 69):

    ...a infncia, que entende de como se, que entende da dor devido a impotncia e da queixa ser muito pequena, de estar a retardada (em relao aos outros) e de haver chegado muito antes, prematura (quanto a sua fora), que entende de promessas no cumpridas, de decepes amargas, de desfalecimento, de inveno, obstinao, de escuta do corao, de amor, de verdadeira disponibilidade s histrias. A infncia o estado da alma habitado por algo que jamais se d nenhuma resposta, conduz suas empresas a uma arrogante fidelidade a esse anfitrio desconhecido do qual se sente refm. A infncia de Antgona. Compreendo aqui a infncia como obedincia a uma dvida, que se pode chamar dvida da vida, do tempo, ou do acontecimento, dvida de ser a pese a tudo, da que s o sentimento persistente, o respeito, pode salvar o adulto de ser s um sobrevivente, um vivente com sua aniquilao refreada.

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 161

    A obedincia a essa dvida que corresponde a infncia e essa

    resistncia a que enquanto adultos fossemos apenas sobreviventes implicam

    numa valorizao de si mesmos. Para Lyotard (1993, p. 119-26), uma

    valorizao de si mesmo, do que fomos e somos enquanto acontecimentos

    no e com o mundo, poderia ser produzida em nossa experincia singular e

    histrica, por intermdio de um ato filosfico, que nos colocaria diante do

    comeo que significou a nossa infncia, as misturas fsicas e simblicas com

    os nossos pais, reconhecendo a os rastros e os caminhos entre abertos que

    ela nos deixou. Diferentemente de um corpo de saber, de saber-fazer e de

    saber sentir que se encontraria em potncia em cada um de ns, esse ato

    filosfico s existiria como ato e no enquanto uma potncia a ser

    desdobrada, desenvolvida ou desprendida por meio da educao. Ele no se

    pautaria na idia de que o esprito no seria dado aos homens como preciso,

    devendo-se reform-lo. Ao contrrio, o encontro desse ato com a infncia,

    at ento considerada como o monstro dos filsofos, tornar-se-ia agora seu

    cmplice, ensinando-o a perceber que, embora o esprito no fosse dado,

    seria possvel. O filosofar seria uma atividade que segue um curso no

    mundo e que no implica numa relao com um saber dado ou

    administrado pelos nossos pais ou educadores, algo a ser ensinado, mas

    num processo de identificao e desvencilhamento pelo qual nos formamos

    e nos re-formamos, como um autodidata, que nunca alcana uma identidade

    adequada e est sempre empenhado no difcil trabalho de recomear,

    reconhecendo a infncia de nosso prprio pensamento e a menoridade em

    que nos encontramos todos.

    Isso no significa que no precisemos de um outro (mestre e/ou

    saber) nesse processo, mas que aprendemos mais com aqueles educadores

    que nos ensinam a desaprender, com os livros que exigem de ns a

    pacincia da leitura, da anamnese e da escuta necessria ao

    desenvolvimento do pensar sobre e na realidade, lanando-nos ao constante

  • o filosofar na arte de educar entre o corpo e a infncia: consideraes a partir de adorno e lyotard

    162 childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987

    recomeo e ao aprendizado de uma resistncia s demandas do mundo

    atual. Nisto parece residir o que fomos e somos enquanto um acontecimento

    no mundo, sendo o nosso problema no o curso que seguimos nem os

    nossos pais, mas o de-curso, a deriva possvel e ameaadora que comea

    tudo pela metade, sem ir fundo no contato com a realidade do mundo por

    meio do ato filosfico, cedendo e ajustando-se a ela.

    De acordo com Lyotard (1993, p. 125), o mundo atual exige de todos a

    velocidade, a pressa e a performance, encarnando o princpio eficincia e

    proscrevendo o cio necessrio ao pensamento, gerando uma indisposio

    ao pensar filosoficamente sobre e no mundo por parte de professores e de

    alunos. Ainda que o seqestro do desejo de sabedoria tenha sido interditado

    pelo predomnio do princpio da eficincia, os professores poderiam

    reconhecer os limites de sua sabedoria nesse contato com a incompletude de

    seu pensamento, buscando em si mesmos essa disposio para o pensar e,

    para alm dela, as estratgias que permitissem instigar em seus alunos esse

    desejo interrompido. Desse modo, eles poderiam compartilhar com os seus

    alunos, por intermdio de seu pensar sobre e no mundo, alm de uma

    sensibilidade, um desejo de sabedoria comum, seno fosse a insistncia por

    parte do professor em querer implicar a dialtica ou a dialgica, onde

    persiste a agonstica.

    Se os alunos que freqentam a escola no estiverem dispostos a

    romper o crculo social que se fecha sobre eles e compartilhar esse desejo

    comum, em funo de estarem totalmente imersos nos seus dispositivos

    disciplinares e na performance exigida pelo mundo, segundo Lyotard (1993,

    p126), ao menos seria possvel buscar em outras goras, fora da instituio

    escolar, aqueles que nutrissem ainda certo desejo de sabedoria e estivessem

    dispostos a uma experincia com esse pensar sobre si mesmos e sobre o

    mundo. Ainda que seja tardiamente, na vida adulta, a experincia com esse

    pensar poderia levar esses indivduos ao reconhecimento de sua

  • pedro angelo pagni

    childhood & philosophy, rio de janeiro, v.1, n.1, jan./jun. 2005 issn 1984-5987 163

    incompletude, da insatisfao que ela gera e que nos faz buscar a criao do

    novo. Isto implicaria no compartilhamento de um desejo de sabedoria

    comum e