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TRADUÇÃO E TRANSCULTURAÇÃO: A TEORIA MONSTRUOSA DE HAROLDO DE CAMPOS Célia Magalhães UFMG Neste trabalho, reflito sobre o discurso de Haroldo de Campos sobre a tradução para questionar os críticos que analisam a teoria de tradução do autor como derivada das teorias pós-moderna e póscolonial, tendo como ponto comum com outros desdobramentos da teoria de tradução a rejeição à hierarquia de poder que privilegia o texto original e relega o tradutor à condição de invisibilidade. Em primeiro lugar, parto da definição, de Norman Fairclough, de discurso como “prática de significação de um domínio do conhecimento ou experiência a partir de uma perspectiva particu- lar” 1 para denominar os ensaios, prefácios e pósfacios de Haroldo de Campos sobre seu projeto e prática tradutórios de discurso sobre a tradução. Além disso, como vou denominar a teoria de tradução transcultural do autor de “monstruosa”, é preciso definir duas noções: a noção de monstro e da monstruosidade como construção discursiva, representando determinados valores culturais. As teorias de Aristóteles sobre a geração, as quais atribuem a criação do monstro à dessemelhança ou à falsa semelhança entre pai e filho, têm papel crucial na linha dominante de pensamento sobre a monstruosidade até o século dezenove: o monstro é resultado de uma desordem na imaginação materna que apaga a figura do pai, concentrando-se em outra figura como modelo para o rebento que virá a ser. 2

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    TRADUO E TRANSCULTURAO: A TEORIAMONSTRUOSA DE HAROLDO DE CAMPOS

    Clia MagalhesUFMG

    Neste trabalho, reflito sobre o discurso de Haroldo de Campos sobrea traduo para questionar os crticos que analisam a teoria detraduo do autor como derivada das teorias ps-moderna epscolonial, tendo como ponto comum com outros desdobramentosda teoria de traduo a rejeio hierarquia de poder que privilegiao texto original e relega o tradutor condio de invisibilidade. Emprimeiro lugar, parto da definio, de Norman Fairclough, dediscurso como prtica de significao de um domnio doconhecimento ou experincia a partir de uma perspectiva particu-lar1 para denominar os ensaios, prefcios e psfacios de Haroldode Campos sobre seu projeto e prtica tradutrios de discurso sobrea traduo. Alm disso, como vou denominar a teoria de traduotranscultural do autor de monstruosa, preciso definir duasnoes: a noo de monstro e da monstruosidade como construodiscursiva, representando determinados valores culturais.

    As teorias de Aristteles sobre a gerao, as quais atribuem acriao do monstro dessemelhana ou falsa semelhana entrepai e filho, tm papel crucial na linha dominante de pensamentosobre a monstruosidade at o sculo dezenove: o monstro resultadode uma desordem na imaginao materna que apaga a figura dopai, concentrando-se em outra figura como modelo para o rebentoque vir a ser.2

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    A etimologia da palavra d margem a tradies distintas, mascomplementares, de interpretao da noo de monstro, diz Marie-Hlne Huet. Derivado do latim, monstrare (mostrar), omonstruoso na tradio de leitura do Renascimento significava osinal ou mensagem enviada por Deus, demonstrando sua vontadeou ira; ou do latim monere (avisar), a monstruosidade eraassociada com uma viso proftica de desastres futuros.3 Aindacom relao etimologia da palavra, Omar Calabrese ressalta queo monstrum o espetacular, ou aquele que se mostra para almda norma; ele tambm o monitum, ou o mistrio de um avisooculto da natureza para ser adivinhado pelos homens.4 Chris Baldick,sintetizando os dois significados de monstro, remete-nos a Fou-cault e sua referncia s performances feitas por loucos, internosde asilos, at o sculo XIX: o monstro algo ou algum para sermostrado (monstrare), servindo ao propsito de revelar o produtodo vcio e da desrazo como um aviso (monere).

    Baldick focaliza exemplos de uso da palavra por Shakespeare(em Anthony and Cleopatra, Macbeth e King Lear), para quem omonstruoso uma transgresso tal dos limites da natureza que setransforma em aviso moral. Baldick ressalta tambm que asrepresentaes shakespeareanas mais marcantes da monstruosidadegiram em torno do vcio da ingratido, antecipando a suarepresentao como rebelio contra o pai ou benfeitor que, noromantismo, assume a figura do monstro de Frankenstein: o monstro aquele que se rebela, desobedecendo e quebrando as ligaesnaturais de obrigao para com os amigos e as relaes de sangue,especialmente os pais.5

    Na mitologia clssica, uma caracterstica adicional do monstro a sua composio de partes diferentes ou de criaturas diferentesou ainda de partes multiplicadas em excesso. Por isso, constituiprincpio bsico da teratologia, conforme lembra Calabrese, o estudoda irregularidade ou desmesura, pois o monstro excede. Elehomologa mais ou menos rigidamente ou pode ainda mudar, deacordo com o perodo, as categorias de juzo de valor tica,esttica, morfolgica e tmica estabelecidas aleatoriamente por

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    Calabrese para uma leitura do monstro. Alm disso, ele pode apenassuspender, anular ou neutralizar aquelas categorias, como o casodo monstro contemporneo que, muitas vezes, apresenta umainformidade dinmica: o modo de pensar os monstros oculta osmodos de pensar categorias de valor.6 Usando outras palavraspara expressar a mesma idia, Judith Halberstam, depois de notarque a monstruosidade no sculo dezenove traz as marcas da violaoracial ou da espcie, conclui que o monstro uma tecnologiaque incorpora uma multiplicidade de medos cuja forma e contorno proporcionada por seu leitor, pois o monstro, em sua forma, arepresentao do jogo de leitura e escrita, re-escrita e conto, contoe interpretao.7

    Miguel Rojas Mix, estudando os monstros descritos nosdocumentos dos europeus sobre o Novo Mundo, destaca que estesfazem parte de um imaginrio, que inclui o fantstico medieval e ofantstico clssico, alm do fantstico originrio, transposto para aAmrica. Comenta que a noo de monstro usada para se referira todo ser que morfolgica ou culturalmente se distinga das normasestticas ou ticas vigentes: A monstruosidade no existe a noser com relao a uma ordem estabelecida, a uma cultura (...). a identidade do outro.8

    Na representao da teoria de traduo como monstruosa,procurarei seguir o trao que Stephen Greenblatt descreve comomaravilhoso: trao central no complexo sistema derepresentao como um todo (...) atravs do qual as pessoas daIdade Mdia tardia e da Renascena apreendiam, e portantopossuam ou descartavam, o no-familiar, o estranho, o terrvel, odesejvel e o odioso.9 O objetivo ser examinar se o monstro,como representao da teoria de traduo, faz parte de umaestratgia discursiva que leva a articular as diferenas radicaisentre os modos de ser radicalmente contrrios, tornando possvelrenomear, transformar e apropriar, num movimento que vai daidentificao para a alienao total: confunde-se o eu com o outronum primeiro momento para, em seguida, transformar-se o outro

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    em estranho que se pode destruir, como o caso do monstro gticoFrankenstein, ou incorporar, exemplo do monstro modernista, oantropfago.

    Para Halberstam, o gtico uma tecnologia narrativa para aproduo e o consumo de monstros, os quais, como foco principalda leitura, abrem-se para mltiplas interpretaes. Halberstamrelaciona o gtico a um excesso ornamental, uma equivocidadede sentidos cujo objetivo final produzir simultaneamente medo edesejo no leitor. Assim, haveria no romance gtico um enredamentode raa, nao e sexualidade nas produes da alteridade, com atransformao de classe e raa, relaes sexuais e nacionais emtraos sobrenaturais ou monstruosos.10

    Interessa tambm a este trabalho analisar de perto a utilizaopor Rosemary Jackson da diviso de Todorov do contedo daliteratura fantstica em temas que giram em torno do Eu e doTu os primeiros tratando de questes de conscincia, viso epercepo; os segundos lidando com problemas gerados peloinconsciente e desejo.11 Jackson associa dois tipos de mito a essestemas, presentes em dois exemplos de romance gticos. Apenas oprimeiro relevante aqui: exemplificado em Frankenstein, a fontede ameaa e de alteridade est no mesmo: o mesmo se tornaoutro atravs de uma metamorfose auto-gerativa, atravs da auto-alienao do sujeito e a diviso ou multiplicao conseqente deidentidades.12

    A criatura de Frankenstein, no romance de Mary Shelley, construda com partes humanas diversas, ligadas umas s outras,formando um todo monstruoso que escapa ao controle do seu criadore rebela-se contra ele. O monstro, de certa forma, emana dareapropriao pelo Romantismo da noo de monstruosidade comoo desejo do autor de criar sozinho uma obra de arte inquietante masnica. A noo, assim reapropriada, traduz-se tambm numa crisede filiao, eco da relao perturbada dos autores com a prpriaescrita.13 Huet acrescenta que a reavaliao romntica domonstruoso como criao singular e do artista como procriador

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    solitrio tiveram uma influncia duradoura na nossa tendncia parasuperestimar o criador nico de um lado, e inversamente, na nossasubestimao da idia de co-produo.14 Veremos, ao tratar dateoria de traduo de Haroldo de Campos, como ele inverte essaconcepo, num ato de rebeldia contra a noo de autoria, criando,a partir de fragmentos traduzidos de obras, uma teoria de traduoque consideraremos como metfora do monstro de Frankenstein.

    Tomando as ligaes que Jackson estabelece entre a construodos monstros gticos e o sentido de alteridade caracterstico aoperodo, a separao entre o criador e o monstro, em Franken-stein, necessria para que se constitua a identidade do humano.Judith Halberstam, para quem o monstro uma mquina textual,representando a produo e o consumo do texto, analisa o monstrode Frankenstein como a produo que se rebela, no se submetendoao seu autor. O modernismo brasileiro cria a figura do antropfagoem reao ao construto europeu do selvagem canibal; Haroldo deCampos e os concretistas resgatam a antropofagia, usando a traduocomo uma maneira de afirmar seu direito de reler e repossuir aliteratura cannica europia, nas palavras de Bassnet. O que seaponta aqui entretanto que a teoria de Haroldo de Campos,enquanto construo discursiva, se reapropria da noo romnticada obra de arte e do monstro de Frankenstein, construo danarrativa romntica gtica que se rebela contra o pai, trabalhandocom um sentido de alteridade que aliena o Eu e o Outro, maneirada antropofagia e da estratgia discursiva analisada por Greenblat.

    Em ensaio de 1962 sobre a traduo, possivelmente o primeirosobre o assunto, Haroldo de Campos define a traduo de textoscriativos como: recriao, ou criao paralela, autnoma pormrecproca.15 Este tipo de traduo constituiria o avesso dachamada traduo literal,16 pois trata-se da traduo do prpriosigno em sua fisicalidade ou materialidade. As consideraes deHaroldo de Campos sobre a traduo, reunidas em um captulo deA Arte no Horizonte do Provvel, conduzem a um paradoxo: trata-se de processo complexo em que se deixa escapar uma certa

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    fidelidade inteno bem como ao contedo do texto, embora oobjetivo final seja a fidelidade forma. Ou, dentro de umaconcepo romntica, a traduo parece ser impulsionada por umdesejo de substituir o criador na criao. Esse desejo , em ltimainstncia, responsvel pela criao de monstros; assim,entenderemos porque W. Benjamin refere-se s tradues deHoelderlin como monstruosas.

    Vale ressaltar que o cotejo com outras tradues, especialmenteas literais o que novamente nos conduz ao paradoxo, contribuirpara esclarecer a nossa proposta de leitura da teoria de traduocomo recriao, elaborada a partir de fragmentos de outros textos,como um todo monstruoso. O projeto de traduo transcultural,que tem por palavras sinnimas recriao, re-escritura,remastigao e re-imaginao no submisso, ao contrrio,preconiza a rebelio, sendo realizado, na cultura brasileira, porum tradutor antropfago, malandro e trickster (vide Da razoantropofgica ..., 1992).

    A primazia arquetpica, conferida por Benjamin s traduesde Hoelderlin, permitem a Campos, em ensaio sobre a teoriabenjaminiana de traduo (Para alm do princprio da saudade,1984) a inverter esta teoria, transformando a tarefa angelical dotradutor numa empresa luciferina. J que aquela traduomonstruosa, que apaga a imagem do original, colocada comoarqutipo em relao s outras tradues, produtos em que sedistinguem os traos da paternidade, o anjo da traduo pode servisto com o efeito de transparncia negativa, revertendo-se naimagem satnica de Lcifer.

    Em Traduo, Ideologia e Histria, Haroldo demonstrapreferncia pelo termo paramorfismo, para acentuar (...) novocbulo (do sufixo grego Para-, ao lado de, como em pardia,canto paralelo) o aspecto diferencial, dialgico, do processo(...).17 crucial ressaltar que Haroldo deixa escapar aambivalncia do prefixo para que contem o efeito do estranho,abrigando internamente dois sentidos que se opem e se

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    complementam (o que explica a ambivalncia do termo parasita,usado por Hillis Miller como imagem para descrever a re-escritados crticos ps-estruturalistas). Paramorfismo e pardia, comocanto paralelo, poderiam assim no s constituir-se em reao fron-tal ao texto mas, estando ao seu lado, aproveitar-se de suas brechaspara min-lo e confundir os limites que h entre eles. Entretanto,apenas a primeira alternativa parece ser enfatizada no discurso deCampos.

    Campos reafirma que as suas tradues fazem parte de umprojeto, orientado por uma leitura escolhida de textos, e que temimplicado (...) uma cunhagem neolgica de termosespecificadores: recriao, transcriao, reimaginao (...),transparadizao ou transluminao (...) e transluciferaomefistofustica (...), visando a (...) polemizar com a idianaturalizada de traduo literal, fiel ou servil (...).18 Partindode uma concepo de literatura como canto paralelo eplagiotropia, Campos enfatiza que seu conceito de traduo nopode coincidir com aquela noo de traduo literal, subalterna,cujo confronto com o texto original produz o apagamento do tradutor.

    Campos cria, a partir de termos de Benjamin, um outro termopara traduo, composto pelo prefixo para-. Assim, o seu conceitode traduo como atividade paramrfica, ou comoparafigurao, diferentemente dos conceitos implcitos naspalavras em re-, que presumem a volta do texto como essncia,e naquelas em trans-, que pretendem a inverso da nootradicional de traduo como inferior, poderia ter introduzido aidia de traduo como mmica, ou repetio estranha que ameaaa possibilidade de estabilidade e definio de identidade para o origi-nal.

    Nas obras traduzidas por Campos, a noo de escrita da ps-crtica como suplemento, ou parasita do texto literrio, torna-se imagem visual. O paratexto (termo escolhido por Elzira D.Perptua para anlise dos elementos pr- e ps-textuais exatamentedevido ao duplo significado do prefixo para-)19 dessas tradues

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    pode ser interpretado como parasita do texto original; nele, otradutor se apropria das imagens do original para, atravs delas,implicitamente, veicular a sua teoria de traduo. Alm disso, opapel do paratexto, de suplemento do texto traduzido, parececonfirmar-se, na medida em que o espao dedicado a eles no livroe a complexidade e erudio das informaes que contm superamo do texto da traduo (o que se nota tambm na relao prefcio,ou posfcio e notas de rodap).

    Campos traduz apenas fragmentos dos textos escolhidos; escrevea partir ou dentro deles prefcios, psfacios ou notas de rodap emque formula o que chamamos de uma teoria frankensteiniana detraduo, no sentido romntico do monstro que se rebela contra opai ou do autor que reage contra o apagamento da co-autoria naproduo. Dessa forma, Campos, enquanto tradutor rebela-se contraa figura do pai, apagando-a e colocando-se como autor daquelaobra. Assim, seus prefcios sero paradoxalmente autorais, nostermos de Grard Genette, parafraseados em Perptua.20 Esseparadoxo repete-se na capa do livro traduzido: os ttulos dastradues so outros, diferentes dos ttulos dos originais e trazem aassinatura do tradutor.21 Mas seus comentrios expressam tambma angstia do tradutor para tentar reproduzir aquele texto nico,singular no ato da traduo: ele fala de uma liberdade que no total, pois professa a fidelidade ao texto; tambm menciona atentativa de captar o objeto potico que podemos transportar para anoo da reproduo monstruosa: semelhana da imaginao dame, ao invs de gerar um filho natural, intenta reproduzir neletraos do objeto de arte pelo qual se apaixonou. Haroldo de Cam-pos, partilhando a traduo da Poesia Russa Moderna, 1967 com oirmo Augusto e Boris Schnaiderman, parece partilhar tambm apostura paradoxal do ltimo, cujos comentrios expressam aangstia do tradutor para tentar reproduzir um texto nico, singu-lar no ato da traduo: ele fala de uma liberdade que no total,pois professa a fidelidade ao texto; tambm menciona a tentativade captar o objeto potico que podemos transportar para a noo da

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    reproduo monstruosa: semelhana da imaginao da me, aoinvs de gerar um filho natural, intenta reproduzir nele traos doobjeto de arte pelo qual se apaixonou.

    No prefcio do livro Traduzir e Trovar, aparentemente trovar etraduzir so aspectos da mesma realidade, entretanto, ao semanifestar sobre o ltimo, os irmos Campos expressam o dramade compor, ou criar, j tendo um objeto de arte em que o olhar sefixa fazendo com que o resultado da criao no parea natural,semelhante ao pai, mas monstruoso, no sentido de algo que semostra, ou se exibe. Nesse mesmo prefcio, Augusto, emintroduo s canes de Guilherme IX, em que enfatiza seu projetode traduo como atividade crtica, assinala a sua inteno deresgatar para a vitalidade das artes o que foi amortecido pelas regrasdo bom tom literrio da poca, ou seja, de dar vida a, ou mostrar(monstrare) fragmentos do texto que, por terem sido consideradosmonstruosos, foram apagados ou mortos.22

    Na primeira parte do prefcio de Ezra Pound cantares, Haroldoassinala que traduzir Pound ligar-se a uma tradio de escrita ere-escrita; no caso especfico dos cantares, traduzir significa tentarreproduzir seno a melopia, pelo menos a fanopia e a logopiado texto original o quanto possvel.23 Repete a noo do traduzircomo trovar (das tradues de Pound dos trovadores) e acrescenta:traduzir pode ser trair, nunca petrificar.24 Note-se que a idiade traio tambm se vincula concepo da reproduo que apagaa imagem do pai, traindo a semelhana e prenunciando a desordeme o caos, que podem ser lidos como dinamismo, mudana, emoposio petrificao, o que compe mais um trao de umaimagem da teoria de Haroldo enquanto frankensteiniana, na aceporomntica do monstro.

    No prefcio aos Poemas de Maiakvski, o tradutor tececonsideraes sobre as solues que se devem buscar para seconseguir comunicar no apenas o sentido (...) mas tambm otom, a atmosfera, o conjunto da realidade de um texto (...),25

    sobre a traduo/recriao como o caminho da verdadeira fidelidade

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    ao texto, contudo sem prescindir da inveno. Ressalto a mesmatenso entre liberdade/fidelidade e a essencializao do textoprimeiro como objeto singular, o qual desperta no tradutor o desejode reproduzi-lo novamente como nico. So idias expressas porSchnaiderman, mas compartilhadas por Haroldo e Augusto de Campos.

    No prefcio segunda edio do Panorama do Finnegans Wake,a traduo, como ato de escritura, paradoxalmente um ato deviolncia (luta) e liberdade (jogo livre): (...) um exerccio detraduo como criao, uma luta verbal, livre e ldica, no ringtraado pelas balizas literais do texto original.26 Mais paradoxalparece a noo de fidelidade ao esprito, que se assemelha aoconceito benjaminiano de traduo, analisado por Haroldoanteriormente como preso clausura metafsica: (...) [n]umesforo paralelo de reinveno minuciosa (...) a traduo se tornauma espcie de jgo livre e rigoroso ao mesmo tempo, onde o queinteressa no a literalidade do texto, mas, sobretudo, a fidelidadeao esprito, ao clima joyceano (...).27 Confirma-se aqui acomunho das idias de Schnaiderman pelos irmos Campos,especialmente Haroldo: travam os tradutores uma verdadeira lutapara enfrentar o paradoxo do desejo simultneo de reconstituir oesprito da obra e de apag-la. Permanece a noo de reaoviolenta, ou luta contra a desautorizao do co-autor da obra dearte e o desejo invertido de criar um objeto novo semelhana deoutro.

    No prefcio traduo de Dante, Luz: a escrita paradisaca,traduzir significa tresler/ tresluzir,28 transluzir, outransluminar, todas imagens apropriadas da metfora de luz doParadiso que, alm de expandida tambm revertida por Dante,segundo Haroldo.29 Tresler significa ler s avessas;30

    tresluzir, palavra no dicionarizada, parece um neologismocriado a partir de tresler que significaria ento iluminar savessas. Transluzir, do latim translucere, quer dizer luzir(atravs de algum corpo), mostrar-se (atravs de algo)31 etransluminar, palavra tambm no dicionarizada, mas

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    provavelmente inferida de transluminoso ou luminoso portransparncia.32 Se em Dante a metfora da luz revertida,Haroldo obtem o mesmo efeito com as suas metforas de luz paratraduo/recriao: iluminar s avessas, ter luz ou mostrar-seatravs de outro, ou ainda iluminar por transparncia, so imagensinvertidas geradas pela obsesso com o outro no momento dacriao. dessa inverso da imagem da luz que parece emanar,mais tarde, a imagem de Lcifer como o anjo da traduo: seunome, signo oximoresco que diz luz e rege trevas umarepresentao da traduo enquanto tarefa visando a um fiminalcanvel.

    Em Mallarm, Dcio Pignatari, na seo denominadaTriduo, comenta que esse trabalho de traduo constituiu-seem verdadeira perseguio ao texto, num esforo de traduopotica literal que tenta todas as alternativas para chegar a ele.33

    Pignatari tenta elucidar essa noo de traduo potica literalquando define seu termo triduo: trs versos para cada versomallarmaico; livre, enquanto deixa escapar, num verso, esta ououtra informao; literal, enquanto tenta captar, sem o conseguir,em cada trs versos, as informaes embutidas num s do original(...).34 Trata-se do mesmo paradoxo expresso de outra forma:traduo livre e literal, que simultaneamente se afasta e se aproximado texto, convvio estreito com a potica do autor para reproduzi-lade forma melhorada. A noo romntica da obra de arte comocriao monstruosa reforada no conceito de traduo comoprolongamento do objeto, projeo deformada deste numa aberturasutil entre o preciso e o impreciso [nfase minha].35 Na terceiraseo, Um Relance de Dados, Haroldo de Campos fala datraduo de Mallarm como uma operao de leitura, no sentidomallarmeano da expresso: dobragem, dobra, dobro, duplo,duplicao, dao em dois, doao dados (texte en deux).36 Otexto traduzido, visto por Campos como trans(entre)tessitura,deixa transparecer apenas as proeminncias desse trabalho ocultode co-operao, subjacente visibilidade da escritura em relevo.

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    maneira de Pignatari e sua imagem do texto traduzido comoprojeo deformada do objeto, Haroldo implicitamente, ou quaseexplicitamente, traz baila a noo do duplo, do trabalho oculto decooperao que se mostra apenas nas deformaes. Numa outraimagem, o tradutor o manobrista do porto, por entre as pontasdos recifes, diferindo o seu naufrgio e deferindo ao texto, assimdobrado, o seu xito e/ou fracasso (...).37

    Propomos uma leitura dessas imagens tomando como base omonstro criado por Frankenstein como o duplo de seu criador, seualter-ego que difere deste apenas pelas deformaes; ou fazendoreferncia perseguio de Frankenstein ao monstro (ou seria ocontrrio?) ao final do romance, cada um simultaneamente adiandoo fim do outro e responsabilizando o outro pelo seu xito e/oufracasso. So esses elementos de leitura que nos levam a interpretara teoria de traduo de Haroldo de Campos, enquanto construodiscursiva, de acordo com a noo de monstruosidade implcita nacriatura de Frankenstein. Voltemos ao fragmento citado de umensaio crtico que continha uma citao de outro ensaio, como umparasita dentro de seu hospedeiro.38 Na mesma linha depensamento, poder-se-ia argumentar que as tradues de textos,os prefcios, os posfcios, e as notas de rodap (especialmente asde Campos, que parecem dominar, ou conter o texto, conformeveremos) so uma cadeia infinita de parasitas, cada umtransformando seu hospedeiro mais prximo, numa srieinterminvel de rplicas de si mesmos; cada um, por sua vez, umasuspenso, ou um adiamento do outro. Vale fazer refernciaaqui a Derrida, parafraseado por Christopher Norris, sobre oassunto: (...) somos (...) forados a nutrir (...) a noo de umasrie de inscries, um reduplicar perptuo de texto sobre texto,de tal forma que o ato original de mmesis estar sempre perdido,sem possibilidade de ser recuperado.39

    Contudo, o resultado final dessa cadeia de parasitas, que juntafragmentos de textos alheios, no atinge o modelo de ps-escrita,caracterstico das teorias ps-moderna e ps-colonial. Ele uma

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    teoria frankensteiniana de traduo, obsecada com um sentido dealteridade que, de um estgio de reconhecimento passa alienaototal entre o eu e o outro, apenas invertendo a alegoria maniquesta. monstruosa no sentido romntico de rebelio ao criador, aceitandoparadoxalmente a negao romntica da co-produo, quandointenta apagar a figura do autor do original. Se, para a maioria doscrticos, a traduo como transcriao ou transtextualizaodesmistifica a ideologia da fidelidade e abole a superioridade dooriginal, valorizando a traduo,40 para mim, esse conceito detraduo de Haroldo de Campos debate-se contraditoriamente comessa mesma ideologia de fidelidade ao esprito do original, tentandosimultaneamente substitui-lo por uma verso que, paradoxalmente,tenta ser nica.

    Notas

    1. FAIRCLOUGH, Norman. Discourse and text..., p. 215n.

    2. HUET, Marie-Hlne. Monstrous Imagination, p. 1-4.

    3. Ibidem, p. 6.

    4. CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca, p. 106.

    5. BALDICK, Chris. In Frankensteins Shadow: Myth, Monstrosity and Nine-teenth-century Writing, p. 10-13.

    6. CALABRESE, opus cit., p. 115.

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    7. HALBERSTAM, Judith. Skin Shows: Gothic Horror and the Technology ofMonsters, p. 34.

    8. MIX, Miguel Rojas. Los monstruos: mitos de legitimacin de La conquista? ,p. 127.

    9. GREENBLATT, Stephen. Possesses Maravilhosas: O Deslumbramento doNovo Mundo, p. 40.

    10. HALBERSTAM, opus cit., p. 21.

    11. JACKSON, Fantasy: The Literature of subversion, p. 50-51.

    12. Ibidem, p. 59.

    13. Cf. HUET, opus cit., p. 126-127.

    14. Ibidem, p. 161.

    15. CAMPOS, Haroldo de Da Traduo Como Criao e Como Crtica, p. 35.

    16. Ibidem, p. 35.

    17. CAMPOS, Haroldo de. Traduo, Ideologia e Histria, p. 239.

    18. CAMPOS, Haroldo de, Octvio Paz e a Potica da Traduo, p. B-3.

    19. PERPTUA, E. D. Solos e Litorais da Escrita: Uma Leitura de Marginais(1993), indito.

    20. Ibidem, p. 34.

    21 Ver anlise extensa dos elementos paratextuais das tradues brasileiras porVIEIRA, Else R. P. Por uma Teoria Ps-moderna da Traduo, 1992 (indito).

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    22. CAMPOS, Augusto de e CAMPOS, Haroldo de. Traduzir & Trovar ..., p. 12.

    23. Cf. CAMPOS, Haroldo de. Ezra Pound Cantares, p. 209.

    24. Ibidem, p. 210.

    25. CAMPOS, Augusto de, CAMPOS, Haroldo de e SCHNAIDERMAN, BorisPoemas/Maiakvski, p. 13.

    26. CAMPOS, Augusto de e CAMPOS, Haroldo de. Panorama do FinnegansWake, p. 17.

    27 Ibidem, p. 21-22.

    28. CAMPOS, Haroldo de. Dante: 6 Cantos do Paraso, p. 11.

    29. Ibidem, cf. p. 17-19.

    30. Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa, p. 1710.

    31. Ibidem, p. 1702.

    32. Ibidem, p. 1702.

    33. CAMPOS, Augusto de, Mallarm, p. 85.

    34. Ibidem, p. 112.

    35. Ibidem, p. 112.

    36. Ibidem, p. 120.

    37. Ibidem, p. 120.

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    38. HILLIS MILLER, The Critic as Host, p. 223.

    39. NORRIS, Christopher. Derrida, p. 50.

    40. Cf. DINIZ, Thas F. N. Os Enleios de Lear: da Semitica TraduoCultural, p. 33.

    Bibliografia

    BALDICK, C. In Frankensteins Shadow: Myth, Monstrosity and Nineteenth-Century Writing. 3rd edition. Oxford: Clarendon Press, 1992.

    BASSNET, S. Comparative Literature: A Critical Introduction. Oxford. UK &Cambridge USA: Blackwell, 1993. p. 138-161: From Comparative Literature toTranslation Studies.

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