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CALÍOPE Presença Clássica ISSN 1676-3521

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  • Calope presena Clssica

    ISSN 1676-3521

  • Calope presena Clssica

    Universidade Federal do Rio de Janeiroreitor: Alosio Teixeira

    Centro de Letras e Artesdecana: Flora de Paoli Faria

    Faculdade de Letrasdiretora: Eleonora Ziller Camenietzky

    Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicascoordenador: Auto Lyra Teixeira

    Departamento de Letras Clssicaschefe: Ricardo de Souza Nogueira

  • OrganizadoresShirley Ftima Gomes Almeida PeanhaTania Martins SantosConselho EditorialAlice da Silva CunhaAna Thereza Baslio Vieira Arlete Jos MotaAuto Lyra TeixeiraNely Maria PessanhaShirley Ftima Gomes de Almeida PeanhaTania Martins SantosVanda Santos FalsethConselho ConsultivoGlria Braga Onelley ( UFF)Jackie Pigeaud (Universit de Nantes Frana)Jacyntho Lins Brando (UFMG)Maria Celeste Consolin Dezotti (UNESP / Araraquara)Maria da Glria Novak (USP)Maria Delia Buisel de Sequeiros (Universidad de La Plata Argentina)Neyde Theml (UFRJ)Zlia de Almeida Cardoso (USP)RevisoGlria Braga Onelley Shirley Ftima Gomes de Almeida PeanhaTania Martins SantosCapa e projeto grfico7Letras

    Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas / Faculdade de Letras UFRJAv. Horcio Macedo, 2151 sala F-327 Ilha do Fundo21941-917 Rio de Janeiro RJhttp://www.letras.ufrj.br/pgclassicas [email protected]

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    C158Calope: presena clssica / Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas, Departamento de Letras Clssicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vol. 1, n.1 (1984) Rio de Janeiro: 7Letras, 1984-. SemestralDescrio baseada no: Vol. 20 (2010)Inclui bibliografiaISSN 1676-3521

    1. Literatura clssica. Peridicos brasileiros. 2. Lnguas clssicas. Peridicos brasileiros. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de Letras Clssicas. 08-1785. CDD: 880 CDU: 821.124

  • SumrioApresentao 7

    artigos

    A Alceste de Eurpides sob a tica das relaes de gnero 9Fbio de Souza Lessa

    Canto e fala: o espetculo do poder da linguagem na tragdia grega 22Fernando Brando dos Santos

    Viajar por amor e desamor 38Francisco de Oliveira

    Consideraes sobre os valores da conjuno CVM no Bellvm Catilinae, de Salstio 62

    Michele Eduarda Brasil de SExempla mticos em Proprcio 71

    Roberto Arruda de OliveiraPaisagens brasileiras 90

    Wellington de Almeida Santos

    traduo

    O epodo II de Horcio 101Arlete Jos Mota

    teses e dissertaes apresentadas ao programa de ps-graduao em letras clssicas / ufrj em 2010 106autores 108normas editoriais para envio de trabalhos 109

  • Calope 20, 2010, Rio de Janeiro: p. 7-8 7

    APrESENTAo A revista Calope: Presena Clssica veio luz na dcada de 1980,

    tendo sido idealizada e criada pela inesquecvel Professora Titular de Lngua e Literatura Grega, Doutora Guida Nedda Barata Parreiras Horta, responsvel pela editorao dos nove primeiros nmeros (1984-1993), interrompida em virtude do precoce passamento da referida professora, em abril de 1994.

    Aps oito anos de interrupo, a revista passou a ser organizada pela Professora Titular de Lngua e Literatura Grega, Doutora Nely Maria Pessanha, Emrita do Departamento de Letras Clssicas, que, no per-odo compreendido entre 2001 e 2008, coordenou a publicao de nove nmeros, alguns dos quais com a colaborao dos Professores Doutores Henrique Fortuna Cairus e Miguel Barbosa do Rosrio, organizador, este ltimo, do nmero dezenove, dedicado memria do Professor Titular de Lngua e Literatura Latina, Doutor Carlos Antonio Kalil Tannus, fale-cido em junho de 2008.

    Apresentam-se, a partir de 2010, novos organizadores, que mantm a estrutura proposta, em 2001, pela Professora Nely Maria Pessanha.

    Integram o presente nmero uma traduo e seis artigos, dos quais cinco apresentam abordagens literrias vrias e um encerra aspectos lin-gusticos. Desses artigos, dois privilegiam como tema o amor. O Professor Francisco de Oliveira, da Universidade de Coimbra, estabeleceu um di-logo entre viagem e amor, destacando as viagens como cura de males de amor, nomeadamente em textos de matiz elegaco. O topos do amor cons-titui, ainda, o tema do artigo do Professor Roberto Arruda, que enfoca os exempla mticos nas elegias de Proprcio.

    A tragdia grega antiga se faz presente em dois artigos: um, da lavra do Professor Fbio de Souza Lessa, versa sobre os protagonistas

  • 8 Calope 20, 2010, rio de Janeiro: p. 7-8

    da tragdia Alceste, de Eurpides, com base nas relaes de gnero, con-siderando-as um aspecto sociocultural; outro, de autoria do Professor Fernando Brando dos Santos, trata do poder da palavra cantada e falada no espetculo teatral.

    O topos clssico do locus amoenus a tnica da conferncia pro-ferida, por ocasio da XXVI Semana de Estudos Clssicos da Faculdade de Letras da UFRJ, pelo Professor Wellington de Almeida Santos que sublinha o tratamento distinto dado a esse clich literrio na Lira 54, de Toms Antnio Gonzaga, e em Penso familiar, de Manuel Bandeira. Mais uma vez, a natureza, conjugada com nuana epicurista, o fio con-dutor do Epodo II, de Horcio, traduzido para o vernculo pela Professora Arlete Jos Mota.

    Com base em Bellum Catilinae, de Caio Salstio Crispo, a Professora Michele Eduarda Brasil de S apresenta um estudo pormenorizado acerca da conjuno cum, destacando-lhe os valores temporal, causal, conces-sivo e historicum.

    Ao fim desta apresentao, almeja-se que a revista Calope continue a ser um dos frteis caminhos para manter acesa a chama imorredoura dos estudos clssicos, no dizer da saudosa Professora Guida, em seu artigo Calope, a Musa de bela voz, publicado no nmero 1 dessa revista.

    Shirley Ftima Gomes de Almeida Peanha

    Tania Martins Santos

  • Calope 20, 2010, Rio de Janeiro: p. 9-21 9

    A ALCESTE DE EurPiDES SoB A TiCA DAS rELAES DE GNEro Fbio de Souza Lessa

    rESumo

    Propomos, neste artigo, analisar a dinmica da sociedade ateniense do Perodo Clssico (sculos V e IV a. C.), com base nas relaes de gnero. Entendemos o conceito de gnero como uma construo sociocultural. A documentao literria para esse estudo ser basicamente a tragdia Alceste de Eurpides. Palavras-chave: Atenas Clssica; Eurpides; tragdia; gnero.

    Algum duvida de que ela a melhor? Quem poder negar a sua perfeio? Como prestar a um marido muito amado a

    maior homenagem seno declarando-se pronta a perder a vida para que ele viva?

    (EURPIDES. Alceste, v. 185-9)

    Os versos citados do poeta trgico Eurpides1 (485 a 406 a. C.) que escolhemos como epgrafe de nosso artigo sintetiza com preciso a beleza do ato nobre da personagem Alceste na tragdia homnima. justamente da relao construda pelo poeta trgico Eurpides entre os personagens Alceste e Admeto que propomos entender a dinmica das relaes de gnero na diversidade cultural que caracterizou a plis dos atenienses durante o sculo V a. C. No nos esqueamos de que imensa a riqueza das tragdias e, nesse sentido, cada um de ns pode encontrar nelas o que procuramos (THIERCY, 2009, p. 9). No nosso caso em especial, a rela-o estabelecida entre os protagonistas ser lida com base no instrumen-tal terico da Histria de Gnero.

    O tema central da tragdia Alceste,2 apresentada em 438 a. C., o nobre sacrifcio da jovem protagonista que, por espontnea vontade e pela honra de Admeto, aceita morrer em lugar de seu esposo. A prpria per-sonagem enfatiza tal intuito quando afirma que para honrar-te que ao preo de minha vida te dou os meios de continuar vivendo (EURPIDES. Alceste, v. 352-3). claro que esse tema no atribui muita nobreza ao seu esposo. Ao aceitar tal sacrifcio, Admeto aparece diante do pblico

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    caracterizado pelo egosmo. Inclusive, segundo Jacqueline de Romilly (1984, p. 108; 1998, p. 118 e 121), os personagens que cercam Alceste, como Admeto e seu pai, Feres, so muito pouco hericos.

    Convm ressaltar que a tragdia Alceste, assim como os demais tex-tos que fornecem informaes sobre as mulheres atenienses, resultado do mundo masculino: os textos literrios, as inscries, assim como as pinturas sobre as cermicas, que comunicam uma gama de informaes sobre a vida cotidiana das mulheres. Podemos dizer que hoje as pesquisas sobre as mulheres fazem com que saibamos mais sobre elas do que elas mesmas. Os homens tiveram uma atitude entre eles de no as nomear e torn-las uma realidade silenciosa (BUXTON, 1996, p. 131; CURADO, 2008, p. 283-94). Conforme Legras (1998, p. 77) afirma, as mulheres no tiveram a palavra (e o poder) que, no mundo imaginrio das comdias, Aristfanes, na Assembleia de Mulheres, coloca em cena uma inverso da sociedade real. Porm, segundo Claude Moss (1997, p. 11), o gnero trgico est no mesmo patamar dos discursos polticos, judicirios e filo-sficos para o entendimento da vida cotidiana, diante de outros testemu-nhos, sobretudo aqueles contidos nos documentos oficiais.

    Entre os especialistas em teatro grego, notamos ser consenso que entre tragdia e plis h uma relao estreita. O poeta, por meio das tra-gdias, pode enderear-se ao conjunto da sociedade polade, represen-tando em cena suas principais preocupaes. E nesse sentido, a represen-tao trgica reflete a sua integrao na plis e em suas instituies demo-crticas. No teatro, a sociedade polade se representava para si mesma (GOLDHILL, 2007, p. 202). Na verdade, as tramas trgicas exploram a lacuna entre o que somos e o quo humanamente bem conseguimos viver (NUSSBAUM, 2009, p. 114). Na concepo de Jean-Pierre Vernant (1999, p. 3), a verdadeira matria da tragdia o pensamento social da prpria plis, especialmente o pensamento jurdico, em pleno trabalho de elabo-rao no decorrer do sculo V a. C.

    E no poderia ser diferente, tendo em vista que os poetas trgicos eram cidados, o que implica dizer que eles estavam envolvidos com a dinmica da sociedade. Porm, na condio de poetas, suas obras pres-supunham transcender os interesses imediatos da prpria plis e condu-zi-los ao nvel dos interesses humanos. Nas tragdias de Eurpides, por exemplo, o que predomina a presena concreta do sofrimento humano (ROMILLY, 1984, p. 111). Ligado aos sofistas, Eurpides emprestou

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    aos seus personagens sua arte de discutir acerca de tudo, e deixou que aflorassem em seu teatro todos os problemas, todas as ideias novas... (ROMILLY, 1984, p. 114).

    No que se refere dinmica do gnero trgico, Martha C. Nussbaum destaca que:

    Uma tragdia no revela os dilemas de suas personagens como pr-enun-ciados; ela os mostra em sua busca por aquilo que tem pertinncia moral; e nos compele, como intrpretes, a ser igualmente ativos. A interpretao de uma tragdia mais confusa, menos definida e mais misteriosa do que a avaliao de um exemplo filosfico; e mesmo que a obra j tenha sido inter-pretada, permanece inesgotada, sujeita reavaliao, de um modo tal que no ocorre com o exemplo (NUSSBAUM, 2009, p. 13).

    O teatro ainda um espao no qual os cidados e a plis so coloca-dos mostra. Segundo Simon Goldhill (1990, p. 55-7), a apresentao do drama era o maior evento poltico no calendrio ateniense, isto , eviden-ciava o pertencimento vida pblica da plis. Refletir acerca do gnero trgico pressupe uma revisitao Potica de Aristteles, que discute acerca do trgico e nos fornece uma definio de tragdia que entende-mos ser relevante. Observemos:

    Dando uma definio mais simples, podemos dizer que o limite suficiente de uma tragdia o que permite que nas aes uma aps outra sucedidas, conformemente verossimilhana e necessidade, se d o transe da infeli-cidade felicidade ou da felicidade infelicidade (Potica, VII, 1451a, 6)

    Mas a tragdia antes de tudo o lugar do conflito das tenses e ruptu-ras: so as mulheres, nesse espao, agressivas, dominadoras, ativas e seres visveis (BUXTON, 1996, p. 145), como o caso de Alceste, em especial. Podemos atestar tal afirmao pela prpria origem etimolgica do nome da protagonista. Alceste (lkestis) deriva do primeiro tema do verbo alksein, que significa repelir, afastar um perigo. J a forma nominal alk nos remete fora que permite a algum se defender, defesa, vigor. Assim sendo, Alceste atuou no mito como uma grande defensora, at mesmo com o perigo ou a oferta da prpria vida (BRANDO, 2000, p. 47).

    H entre tragdia e mito uma relao de proximidade. Segundo Aristteles, o mito o princpio e como que a alma da tragdia; s depois vm os caracteres (ARISTTELES. Potica, VI, 1450b). Sem dvidas, a inspirao para a tragdia grega oriunda de temas selecionados nos mitos. Possuindo regras prprias, ela no destina a adorar um heri, mas

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    apresentar uma situao humana, aumentada pela perspectiva heroica (GRIMAL, 2002, p. 27). A tragdia Alceste um exemplo claro de uma apropriao de uma temtica mtica por parte de Eurpides. A personagem uma das filhas de Plias, rei de Iolco, e Anaxbia. A nica das filhas que no participou do assassinato de seu pai, arquitetado por Medeia (esquar-tej-lo e coloc-lo num caldeiro de bronze, a fim de rejuvenesc-lo). prometida quele que fosse at ela num carro puxado por lees e javalis. Admeto, rei de Feras (Tesslia), a quem Apolo estava comprometido a servir durante um ano, executa uma tarefa com a ajuda do deus e ganha a mo de Alceste (GRIMAL, 2000, p. 18).

    Porm, no devemos esquecer que Eurpides alterou profundamente os antigos mitos para aproxim-los da vida cotidiana. Seus personagens seguem uma nova psicologia, pois esto mais prximos de ns que os heris dos outros trgicos e tambm mais inteiros nas suas paixes. Seus heris vivem como homens comuns, estando expostos a todas as fraque-zas humanas. Os personagens euripidianos obedecem aos impulsos diver-sos da sua sensibilidade; no agem em funo de um ideal claramente definido, mas sim movidos por medos e desejos.

    No decorrer da tragdia em anlise, verificamos que Alceste, apesar de uma personagem feminina, assume um comportamento mais prximo do idealizado para o masculino do que propriamente Admeto. Tal consta-tao refora o aspecto de construo cultural que caracteriza o conceito de gnero. essencial para a Histria de Gnero que se analise, ao mesmo tempo, a construo social do feminino e do masculino. Direcionamo-nos para uma anlise do conceito de gnero que nos permita compreen-der as formas de integrao social dos grupos sociais, da construo de suas identidades no interior da sociedade ateniense.

    A Histria de Gnero tem como proposta entender a diferena entre o masculino e o feminino como resultado da organizao social da relao entre os sexos. Assim sendo, a categoria gnero est ligada noo de que o masculino e o feminino so construes, nas suas diferenas, privilegiando a dinmica relacional, isto , homens e mulheres devem ser definidos em termos recprocos (COSTA, 2001, p. 114; BOURDIEU, 2002, p. 33-4).

    Vale ressaltar que existem muitos femininos e masculinos, isto , ambos se constituem em categorias heterogneas e plurais, o que significa dizer que preciso reconhecer diferenas dentro da diferena e nos esfor-armos para desfazer as noes abstratas de mulher e homem (MATOS, 2006, p. 14 grifo da autora).

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    Segundo L. Feitosa e M. Rago (2008, p. 108), a categoria gnero foi operacional nesse movimento de autonomizao do sexo, evidenciando teoricamente que as diferenas sexuais no poderiam ser explicadas por uma suposta natureza humana, instalada desde sempre nos rgos geni-tais, mas que resultam de construes culturais, sociais e histricas. Em sentido semelhante, Pauline Schimith Pantel (2009, p. 41) enfatiza que as relaes entre os sexos so sociais; no so naturais e sim construes sociais. At mesmo porque podemos trabalhar com a ideia de que hoje largamente admitido que o natural construdo pela cultura. At mesmo porque a compreenso dos corpos e dos comportamentos, por exemplo, sempre histrica (LWY; ROUCH, 2003, p. 8).

    Podemos sintetizar essa discusso do vis relacional e social do conceito de gnero com a seguinte passagem de Maria Izilda S. Matos. Segundo a autora:

    Por sua caracterstica basicamente relacional, a categoria gnero procura destacar que a construo do feminino e masculino define-se um em funo do outro, uma vez que se constituram social, cultural e historicamente em um tempo, espao e cultura determinados (MATOS, 2006, p. 14-5).

    Aplicaremos o conceito de gnero elaborado por J. Scott que repousa numa conexo entre duas proposies:

    1. o gnero um elemento constitutivo das relaes sociais base-adas nas diferenas percebidas entre os sexos;

    2. o gnero uma forma primria de dar significado s relaes de poder (SCOTT, 1995, p. 86; SCOTT, 1994, p. 20).

    Gnero, nesse contexto, adquire a conotao de uma organizao social da diferena sexual, com base nos saberes, nas instituies e pr-ticas produzidas pelas culturas sobre as relaes entre homens e mulhe-res/masculino e feminino.

    Passemos aplicao das questes tericas apresentadas quanto relao desenvolvida entre Admeto e Alceste na tragdia de Eurpides. O mundo antigo grego construiu modelos ideolgicos de ao e de com-portamento esperados para os grupos masculinos e femininos na plis. Esses modelos se caracterizam pela bipolaridade. Os espaos na plis so fortemente demarcados pelo gnero: s mulheres, o interior; aos homens, o exterior (SCHMITT PANTEL, 2009, p. 9). Essa bipolaridade tambm pode ser concebida pelas noes de atividade e de passividade. A repre-sentao mais frequente entre os especialistas em Antiguidade aquela

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    em que o homem aristocrtico e cidado exerce a funo ativa, tanto no campo sexual como social. Trata-se de um modelo de virilidade defi-nido pela consonncia entre o papel de comando social e de autocontrole emocional e sexual (FEITOSA; RAGO, 2008, p. 110-11). Podemos des-tacar que essa noo de bipolaridade est pautada numa perspectiva de complementaridade e no propriamente de oposio entre os grupos de homens e de mulheres.

    Conforme j indicado, iremos concentrar nossa anlise nos grupos sociais abastados da Atenas Clssica, isto , os grupos dos cidados kalo k'agatho, os bem-nascidos. No caso dos grupos femininos, estaremos nos remetendo s esposas legtimas dos cidados atenienses bem-nascidos. Tal seleo se explica pela maior quantidade de informao acerca desses grupos for-necida pela documentao. Os prprios atributos de Alceste e de Admeto nos permitem afirmar tratar-se de um casal abastado.

    Comecemos refletindo acerca da situao da esposa legtima, condi-o de Alceste na tragdia. A esposa bem-nascida representada, na plis, por um modelo idealizado e oriundo da abelha mlissa , cujos seguintes traos nos so apresentados por Marcel Detienne (1976, p. 55-6): tipo de vida puro e casto, ou seja, uma atividade sexual bastante discreta; hosti-lidade aos odores, seduo; fidelidade conjugal (LESSA, 2001, p. 58).

    Essa associao tambm feita por Semnides de Amorgos, poeta iambgrafo do sculo VII a. C. que compara a mulher a vrios animais, tais como porca, raposa, cadela, mula, gua, macaca e, por fim, abelha. O seu intuito o de descrever melhor a phsis feminina (LESSA, 2001, p. 58-9). Vejamos o que o poeta de Amorgos nos diz da mulher que des-cende da abelha:

    Outra foi feita a partir da abelha. Feliz quem a apanha!S nesta no assenta qualquer tipo de censura.Graas a ela, floresce e aumenta o sustento do marido.Envelhece, amada, com o esposo amado,tendo gerado uma bela e bem reputada prognie.Sobressai no meio das outras mulherese h em volta dela uma graa divina.( Stira contra as Mulheres, v. 83-9)

    Os versos de Semnides revelam alguns dos atributos esperados pela sociedade grega das esposas legtimas, a saber: conquist-la constitui-se na possibilidade de xito do esposo; boa administradora do okos (grupo domstico); fiel; concebe filhos legtimos, pois a mulher um elemento

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    fundamental na estrutura e na continuao a longo prazo da famlia (CURADO, 2008, p. 299); e, por possurem esses atributos, elas se tor-nam divinas e graciosas.

    Os atributos recorrentes na documentao, que atuam na construo do modelo ideolgico de esposa bem-nascida/mlissa, so os seguintes:

    exerccios das atividades domsticas; submisso ao homem; abstinncia aos prazeres do corpo; silncio;3 fragilidade e debilidade; concepo de filhos legtimos (preferencialmente do sexo masculino); vida sedentria e reclusa no interior do okos. A mulher atua no espao interno, o homem no externo; excluso da vida social, poltica e econmica; dedica-se fiao e tecelagem; em sua funo reprodutora, associada agricultura, revelando a sua condio de passividade. Ela o campo que deve ser germi-nado pelo homem.No caso especfico da personagem Alceste, os atributos frequentes

    so os seguintes: aceita sofrer em lugar de Admeto, seu esposo hypste psin (v. 35 passim.); a melhor das esposas arste (v. 83 e 150-2); esposa gloriosa dxasa gyn (v. 84); a esposa mais dedicada ao seu marido psin gegensthai (v. 85); esposa devota/dedicada kedns (v. 96-7); ela sabia ter morte gloriosa eukles (v. 150-2); esposa corajosa/nobre esthls gynaiks (v. 200).Ao aceitar morrer em lugar de Admeto, seu esposo, Alceste se trans-

    forma na esposa mais nobre entre os gregos do Perodo Clssico. Ela com-porta os atributos referidos que correspondem ao ideal de mulher, cuja condio social de esposa legtima e bem-nascida.

    Mas e Admeto? Ao temer a morte, a sua condio de esposo e cida-do ideais alterada. No plano da idealizao, o modelo de cidado vir-tuoso comportava os seguintes atributos: defender a koinona, conduzi-la politicamente, ser pai e marido, ter virilidade e coragem, atuar no espao

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    pblico, ter habilidade com a palavra, ter participao poltica e fora, ser ativo e ter agilidade de movimentos, exercitar prtica desportiva, desnu-damento/exposio pblica, ser obediente religio cvica, ter descen-dncia legtima e proteger os pais na velhice.

    Vale destacar que os grupos sociais so sempre heterogneos, no havendo um grupo homogneo de esposa e/ou cidado. O outro aspecto a ser enfatizado que os modelos idealizados gregos so resultantes de uma sociedade masculinizada. Ainda segundo Pierre Bourdieu (2002, p. 23), podemos pensar na noo de dominao masculina, quando o prin-cpio masculino tomado como medida de todas as coisas, sendo natura-lizado. Ainda Bourdieu (2002, p. 64-5), esse privilgio masculino acaba representando para os homens uma cilada, pois impe a todos eles o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstncia, sua virilidade, que ter de ser atestada pelos outros homens, havendo claramente a hegemo-nia de uma determinada representao do masculino.

    Defendemos que o comportamento de Admeto possa representar uma possvel desconstruo da noo de dominao masculina, pois esse per-sonagem se distancia do modelo ideal movido pela falta de coragem ao enfrentar a morte. Ou, ainda, Admeto pode representar uma proposta do poeta Eurpides para um novo modelo de masculinidade. Porm, inde-pendentemente de qualquer hiptese, o personagem explicita que o mas-culino plural e que os heris euripidianos vivem como homens comuns, estando prximos da realidade e apresentando as fraquezas humanas.

    A fala de Feres esclarecedora quanto mudana de conduta de seu filho, Admeto, aps a morte de Alceste. Vejamos:

    Que mal te fiz ou de que bens te despojei?No ters de morrer por mim, da mesma formaque no morro por ti. Tens o maior prazerem ver a luz do dia; crs que eu, teu pai,sofro com a luz? Dizem que muito, muito longoo tempo que todos teremos de passardebaixo da me-terra, e que, se a vida breve,tem seus encantos. Nas presentes circunstncias,debates-te despudorada e cegamentepara evitar a morte e preservar a vida,na tentativa de fugir morte certa,a ponto de imolar tua prpria mulher.Acusas-me de covardia mas te deixasser superado tu, o maior dos covardes!

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    pela mulher que se sacrificou por ti,por este jovem marido! Achaste um meio muito engenhoso e fcil de nunca morrer,persuadindo a cada novo casamento tuas mulheres a morrerem pelo esposo!Insultas teus pais porque no se ofereceram,quando tu mesmo te comportas como um fraco! (EURPIDES. Alceste, v. 854-73 grifo nosso).

    Aos olhos do pai e da sociedade, Admeto, ao fugir da morte, tor-na-se um cidado fraco e covarde. Ao contrrio, Alceste cresce em cora-gem e fora. O quadro seguinte ressalta as caractersticas do casal aps a morte de Alceste:

    Quadro 1ADMETO

    Antes da morte de Alceste Depois da morte de Alcestevirtuoso o maior dos covardesnobre no teve a coragem de enfrentar a morteobediente religio cvica -casado aceita no se casarmanteve-se atento famlia apego esposaproteo dos pais e da comunidade postura crtica diante da famlia- passivo no quer viver- fraco

    O quadro nos permite afirmar que diante do pblico Admeto constri um novo modelo de atuao masculina, cujos atributos se aproximam do comportamento culturalmente associado aos grupos de mulheres: a fra-queza, a falta de coragem, a passividade e o pthos/emoo. Podemos concluir que Admeto, biologicamente do sexo masculino, assume o gnero feminino.

    J na atuao de Alceste, podemos visualizar elementos mais pr-ximos do gnero masculino, at mesmo porque no h qualquer empeci-lho em buscarmos o masculino em uma personagem biologicamente do sexo feminino. Apesar de ter sido o modelo emblemtico de esposa para o Perodo Clssico, pois foi a melhor das esposas (v. 83 e 150-2), a melhor me (v. 410) e a esposa mais dedicada ao seu marido (v. 85), Alceste assume no decorrer da obra um comportamento que, em determi-nados aspectos, a distancia do modelo ideal de esposa, caracterizado pela

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    submisso e pela fragilidade, aproximando-se do comportamento mascu-lino. Atentemos para os atributos de Alceste, aps o seu nobre gesto de morrer em lugar de Admeto: aceita sofrer por ele, protege o esposo e o coletivo, sabe ter morte gloriosa e ser esposa corajosa, forte e ativa, exerce a fala, impe condies para morrer e, por fim, morre pelo coletivo.

    O prximo quadro permite-nos comparar os atributos esperados de um cidado ideal com os de Admeto e Alceste.

    Quadro 2

    Modelo ideal masculino Atributos de Admeto Atributos de Alceste

    coragem covardia coragem

    virilidade covardia coragem

    defesa da comunidade fragilidade morre pelo coletivo

    atua politicamente rei da Tesslia -

    fora fraqueza fora

    atividade passividade atividade

    No quadro 2, podemos visualizar que predomina em Alceste os atribu-tos tidos tradicionalmente como masculinos, enquanto em Admeto se fazem mais presentes os femininos. Dessa forma, podemos defender a hiptese de que as aes de Alceste e de Admeto na tragdia de Eurpides explicitam a dinmica da construo sociocultural da categoria gnero e tambm atuam no sentido de enfatizar que para cada contexto sociocultural, elegemos modelos de homens aceitveis e valorizados, assim como aqueles despre-zados (CECCHETTO, 2004, p. 70). Permitem tambm a verificao de que os personagens de Eurpides obedecem aos impulsos diversos da sua sensibilidade: no agem em funo de um ideal claramente definido, mas sim movidos por medos e desejos (ROMILLY, 1998, p. 117).

    Como concluso, podemos afirmar que analisamos as mudanas de comportamento dos personagens Admeto e Alceste como uma discusso posta em prtica por Eurpides acerca dos modelos construdos para homens e mulheres na plis e como uma proposta de pluralizao e flexibilizao de tais modelos. Nessa interpretao, Admeto pode representar uma nova proposta do masculino, da mesma forma que Alceste pode ser associada a uma nova proposta do feminino, menos passivo e frgil. Temos conscincia

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    de que pela dinmica das relaes de gnero, podemos visualizar a plura-lidade cultural, seja no mundo antigo, seja no contemporneo.

    ABSTrACT

    We propose, in this paper, to analyze the dynamics of the Athenian soci-ety of the Classical period (fifth and fourth centuries BC) based on gen-der relations. We understand the concept of gender as a sociocultural con-struction. The literary documentation for this study will be basically the tragedy Alcestis of Eurpides. Keywords: Classical Athens; Eurpides; tragedy; gender.

    NoTAS1 Eurpides nasceu em Salamina, em 480 a. C. Venceu apenas cinco vezes. Sua ltima vitria ocorreu postumamente. No participou da vida pblica ateniense. Morreu em 406 a. C., na Macednia. As obras de Eurpides so muito diferentes das de seus pre-decessores. ainda o tragedigrafo cuja obra foi melhor conservada. Segundo Thiercy, ele mostrava muita originalidade em relao aos concorrentes, tanto pela msica quanto pelas modificaes feitas nos mitos que utilizava (THIERCY, 2009, p. 24).2 Alceste considerada, na verdade, um drama satrico, isto , tratava de forma divertida as temticas mticas. O fato de ser um drama satrico explica, de acordo com Thiercy, o tom satrico de algumas cenas e o final feliz da pea (THIERCY, 2009, p. 13 e 50). 3 Trabalhando com os oradores, Ana Lcia Curado destaca que as mulheres repre-sentadas pelos oradores nada dizem sobre o seu prprio comportamento porque a cul-tura grega tinha o silncio como uma das principais qualidades da mulher, ao lado da beleza, da castidade, do pudor ou da submisso (CURADO, 2008, p. 283-4).

    DoCumENTAo TEXTuAL

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    CANTo E FALA: o ESPETCuLo Do PoDEr DA LiNGuAGEm NA TrAGDiA GrEGAFernando Brando dos Santos

    rESumo

    No presente estudo, destacamos como a estrutura da poesia trgica em partes cantadas e dialogadas resulta num grande espetculo dominado pela palavra. Nos cantos corais e nos cantos de ator, os estados emocio-nais so marcados pelo vis da tradio do dialeto drico. Nos dilogos, o ritmo prximo da fala quotidiana, em dialeto tico, acelera os aconteci-mentos em cena, pe em ao e movimenta o que Aristteles depois vai chamar de ao. O resultado da mescla de tradio e novidade, de canto e fala, de dana e gestos, um espetculo contendo mito e realidade, poesia e retrica, entre outras dicotomias, em que o poder da linguagem colocado em cena. Na tragdia, ento, a palavra em todos os seus modos de expresso o espetculo a ser visto e ouvido. Assim, a tragdia grega insere-se numa longa tradio iniciada pela poesia oral homrica e anun-cia o estabelecimento da filosofia.Palavras-chave: canto; fala; espetculo; tragdia grega.

    ALGuNS PrESSuPoSToS TEriCoS

    Com base nas ilaes que comecei a desenvolver em minha tese de doutorado, Canto e espetculo em Eurpides: Alceste, Hiplito e Ifignia em ulis, (SANTOS, 1998) em que demonstrei como a poesia dramtica tem em si elementos da poesia pica e da poesia lrica, porm, combina-dos de tal forma que nunca se confundem com elas, examino os textos das tragdias produzidas no sculo V a. C. em Atenas por esse approach.

    Para tanto, alguns autores foram fundamentais: a Profa. Dra. Filomena Y. Hirata, que me introduziu, nos idos anos da graduao, na poesia lrica e seus encantos, e depois me iniciou nos mistrios do universo da trag-dia grega e de toda a vasta tradio filolgica clssica, tanto na gradua-o como no mestrado e no doutorado; a Profa. Dra. Daisi Malhadas, com quem tive a honra de trabalhar por alguns anos na rea de lngua e litera-tura grega em Araraquara, e com a qual fiz um curso de ps-graduao em

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    Estudos Literrios Semiologia do espetculo teatral: a tragdia grega, enquanto ainda preparava meu mestrado. O presente trabalho reflete muito a influncia dessas duas grandes estudiosas da tragdia grega no Brasil.

    Em dois estudos j publicados, oriundos da minha tese, comeo a abordar essa questo da sintaxe, digamos assim, da tragdia grega, seguindo a orientao dada por Hermann Frnkel (1975) no clssico Early Greek Poetry and Philosophy. A history of greek epic, lyric, and prose to the middle of the fifth century. O primeiro: O canto na tragdia grega, em que tomando o prlogo de Hiplito de Eurpides, levanto as questes tericas pertinentes ao uso do canto coral e canto de ator nas tragdias gre-gas (SANTOS, 2000, p. 7-14); o segundo, Quando Eurpides influencia Sfocles: um estudo sobre a estruturao da poesia trgica grega, numa publicao de nossa Faculdade, coordenada pelas Profas. Dras. Ldia Fachin e Maria Celeste C. Dezotti, discuto os problemas da composio escrita do texto trgico para uma execuo oral (SANTOS, 2003, p. 105-18).

    Salientamos aqui que, em nosso entendimento da tragdia grega, a dicotomia entre personagem individual (que normalmente fala e even-tualmente, em estados alterados de emoo, canta) e personagem cole-tiva encarnada pelo coro (que tem na maior parte de suas intervenes o canto como elemento, embora, em alguns momentos, use a fala para diri-gir-se s personagens individuais) revela uma tenso dramtica que tam-bm precisa ser levada em conta tanto na anlise textual como em uma montagem. para isso que nossos estudos apontam, indicando inclusive os cantos corais e o canto de ator como uma provvel origem daquilo que hoje chamamos trilha sonora, tanto para as peas teatrais moder-nas como para os filmes, j que os dilogos desenvolvem o que chama-mos hoje de ao.

    CANTo E FALA NA TrAGDiA GrEGA

    Seguindo a linha de pensamento que vimos traando, podemos afir-mar que o drama, nascido com a democracia e com os debates por ela sus-citados, acompanha tambm o debate do homem ateniense na procura de sua identidade, to bem estudado por Bernard M. W. Knox em Oedipus at Thebes (1971). Esse debate no se restringe esfera meramente poltica no que tange ao direito e s leis fixadas na cidade, mas tambm compreen-so e expresso da experincia da interioridade no homem grego, que, com a tragdia, por meio dos conflitos presentes nas personagens, comea

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    a tomar uma feio mais definida, mais ntida do que na poesia lrica. E essa complexidade igualmente se verifica na prpria forma do gnero dra-mtico, que traz em si os dois outros gneros precedentes: os temas, em geral, so tirados da tradio heroica, de um passado mtico, alguns deles retratados nos poemas homricos. No entanto, a maneira como esse pas-sado mtico tratado no drama est inteiramente submetida s novas con-dies do homem grego do sculo V. uma espcie de tratamento cosm-tico, uma atualizao dos mitos, transformando-os num espetculo inteli-gvel ao homem comum, que lotava os festivais dramticos em Atenas e, na gora, debatia questes semelhantes s propostas nas peas.

    As prprias transformaes sofridas pelo gnero dramtico, de alguma forma, podem estar relacionadas com mudanas no panorama social em que este gnero se inseria. possvel verificar as mudanas ocorridas na concepo da existncia do prprio homem e seus dilemas: suas relaes com os prprios homens e com os deuses. No entanto, a obra de arte no tem necessariamente relao com a realidade imediata. Como expresso de uma viso particular, ela expressa, em seu conjunto, um ponto de vista que, no mnimo, se relaciona com outros pontos de vista, como por exemplo, o do pblico que assistia aos espetculos. Citando Bruno Snell (1992, p. 143):

    Quando, pois, o drama se liberta das exigncias da "realidade", vincula se com maior fora ao seu material s regras da representao e s leis artsticas. Apreender a realidade o que agora empreende a prosa cient-fica, que surge na mesma altura que a tragdia. Mas onde se reflecte sobre a tragdia (dela s ouvimos falar, decerto, desde o final do sc. V), no se pressupe que o drama tenha de dizer a verdade e representar a realidade; pelo contrrio, impe-se a a "iluso" como a preocupao do dramaturgo, mais ainda, ele censurado quando se atm demasiado ao real.

    Tampouco se pode afirmar que, pelo fato de o poeta recriar verses diferentes para o mito, esteja ele, de alguma forma, tentando afastar seu pblico da realidade. interessante percorrer o caminho de um gnero to bem datado como o drama grego. Oriundo da tradio dos cantos corais, portanto, de uma tradio originalmente oral, o teatro grego, em sua forma mais evoluda, vai mesclar os cantos com os dilogos. Escrito para ser apresentado oralmente, por meio da memorizao do texto, liga-se a outras formas de expresso que transpem o limite do signo verbal. O afastamento da realidade pode ser aparente, j que, na verdade, as perso-nagens lendrias colocadas em cena trazem as preocupaes do homem

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    grego do sculo V, no como um retrato, como um reflexo da realidade, mas como um objeto esttico a ser apreciado com toda a profundidade que ele pode propiciar.1

    Surge, ento, uma dificuldade, que me parece at hoje mal resolvida no que concerne classificao de um texto teatral como literatura, j que esta, alm da escrita, pressupe a leitura silenciosa (ou no), que se refaz a cada nova leitura, facultando ao leitor abrir e fechar sua relao com o texto, de modo solitrio e pessoal; na representao teatral, a comunica-o uma experincia coletiva. Ela se d envolvendo o corpo de atores e o corpo de espectadores no prprio momento da representao; cessa quando o espetculo termina.2

    A dificuldade em classificar o texto dramtico como literatura pode ser vista em afirmaes como as de Roman Ingarden em A obra de Arte Literria (1979, p. 347-48):

    Vamos ao teatro para vermos, p. ex., o Don Carlos, de Schiller. Tratar-se-, neste caso, de uma obra literria ou surgem aqui particularidades especiais que permitiriam estabelecer uma divisria entre exemplos at agora obser-vados e a pea teatral? O que temos, afinal, perante ns quando assisti-mos a uma pea de teatro? o Don Carlos que ns lemos idntico ao que "vemos" no palco?

    Provavelmente, os compositores do teatro grego tico no tinham essa preocupao, j que todo texto potico produzido na Grcia antiga, at pelo menos o final do sculo V a. C., est voltado para uma execuo pblica ou privada, comportando a recitao e/ou a entoao, a que John Herington (1985) chamou performance, termo que passou a ser usado entre ns a partir da dcada de 60, quando os grupos teatrais e musicais passaram a incorporar em suas apresentaes outros elementos (mmica, dana, projeo de slides, entre outros) alm dos at ento habituais.3

    Para Roman Ingarden, a pea de teatro no uma obra puramente lite-rria; em suas palavras , no entanto, um caso limite seu. O estudioso apresenta uma srie de argumentos para ressaltar o que uma pea de tea-tro tem em comum com a literatura: tendo um conjunto de aspectos seme-lhantes da obra puramente literria, sendo aquela produzida ape-nas para ser lida, no pressupondo portanto qualquer tipo de execuo, nela intervm novos elementos e alguns dos estratos desempenham um papel um pouco modificado; embora tenha os mesmos estratos de uni-dade de sentido e das formaes fnico-lingusticas comuns da obra puramente literria, a pea de teatro, segundo o autor, pode ser includa

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    nas obras literrias, mas no nas puramente literrias. A fora expres-siva da pea de teatro muito maior do que a da obra puramente liter-ria. (INGARDEN, p. 348-53) Segundo essa viso, a obra teatral teria em geral alguma participao no que chamamos de literatura, mas, em algum momento, talvez o da representao o autor no nos esclarece trans-pe os limites da literatura e constitui-se no qu? A solicitao efetiva da viso e da audio durante a apresentao de um texto teatral resul-taria naquilo que a distingue do texto puramente literrio? No estaria por trs desta ideia de Roman Ingarden o pensamento de Aristteles, na Potica, quando afirma:

    Ainda a tragdia, mesmo sem movimento, faz o que lhe prprio como a epopeia. Pois pela leitura visvel sua qualidade. Portanto, se melhor em outras coisas, isso, ento, no necessrio encontrar-se nela. Em seguida, por ter tudo o que a epopeia tem (pois tambm pode utilizar-se de seu metro), ainda tambm, o que no pouco, a msica [e o espetculo], pelos quais os prazeres se fazem mais visveis. E depois a visibilidade mantm-se tanto na leitura como na representao. (ARISTOTE, 1980, 1462a 11-18)4

    Mas Aristteles, no passo citado, pe em foco uma mudana de ati-tude em relao ao texto teatral, tanto quanto sabemos, at ento ainda no anotada. Inaugura, assim, o que podemos hoje chamar de Teoria da Literatura, porque justamente pressupe a supremacia da leitura do texto teatral em detrimento de sua execuo, e, com isso, sua escritura.5 Para o autor do Greek Theater and Its Drama, Roy C. Flickinger (1973, p. 5-6), Aristteles no estaria preocupado com a encenao propriamente dita dos textos, mas sim com outros aspectos que muitas vezes nos escapam, um deles certamente a leitura pura e simples, sem os adornos da repre-sentao. No entanto, a postura, indita no mundo grego, est eivada do pressuposto de que a escrita, sempre anterior performance, mais impor-tante. As discusses em torno da relao entre a escrita e o texto potico, ento, despertam, assim, alguma curiosidade e alguns questionamentos. Parece-me que o texto teatral o ltimo dos gneros em que a execuo oral, no mnimo, ainda se faz necessria para uma apreciao esttica de sua totalidade significativa e de todas suas possibilidades expressivas. No entanto, no dispomos de todas as marcas, de todos os signos que com-pem, em sua totalidade, o texto teatral grego.

    Os estudos de semiologia aplicada ao teatro tm postulado que o signo teatral se compe de muitos outros signos. Roland Barthes (1977, p. 355-6), por exemplo, afirma:

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    O que o teatro? Uma espcie de mquina ciberntica. Em repouso, esta mquina est escondida atrs de uma cortina. Mas a partir do momento em que a descobrem, ela pe-se a emitir na nossa direco um certo nmero de mensagens. Estas mensagens tm de particular, o serem simultneas e con-tudo de ritmo diferente; em determinado ponto do espetculo, voc recebe ao mesmo tempo seis ou sete informaes (vindas do cenrio, dos trajos, da iluminao, da localizao dos actores, dos seus gestos, da sua mmica, da sua fala), mas algumas destas informaes mantm-se ( o caso do cen-rio), enquanto outras giram (a fala, os gestos); estamos, pois, perante uma verdadeira polifonia informacional, e isto a teatralidade: uma espessura de signos (falo aqui em relao monodia literria, e deixando de lado o problema do cinema).

    Roland Barthes tem em mente, com certeza, os textos teatrais pro-duzidos em nosso tempo, segundo as condies de representao do tea-tro contemporneo. Porm, se levamos em conta as condies materiais especficas de que dispunha o teatro grego antigo, suas observaes man-tm-se vlidas na apreciao dos textos trgicos, que no deixam de apre-sentar a polifonia informacional, ou seja, a teatralidade.

    Como observar essa espessura do texto teatral grego, se, como se tem afirmado, os autores de teatro grego no nos deixaram textos secundrios, isto , indicaes no prprio texto de como se deve montar o cenrio, esco-lher as indumentrias, determinar as expresses gestuais dos atores, enfim todo o conjunto de signos que transcendem o signo puramente verbal, incluindo-se a a modulao da voz?6 Pela prpria condio de represen-tao, no entanto, os compositores gregos, de certa forma, incorporam no prprio texto a ambientao cnica e, com isso, j na leitura fica estabele-cido o cenrio em que a ao deve transcorrer ao longo da pea; a identi-ficao das personagens que vo ocupando a cena regularmente se faz por meio do texto pronunciado pelos atores, assim como sua caracterizao e, sobretudo, a descrio de seu estado emocional.

    Daisi Malhadas (2003, p. 44), em um de seus estudos sobre o espe-tculo na tragdia grega, afirma:

    A ausncia do texto secundrio no teatro grego seria, ento, mais um obs-tculo ao estudo do espetculo na tragdia. No se poderia ler a tragdia grega como teatro, mas apenas como um texto literrio. Isso aconteceria, se o espetculo na tragdia grega, antes de ser cena, no fosse poesia.

    E a sim temos a chave para uma das entradas no texto teatral grego, sua forma potica, que de qualquer maneira pressupe, ento, a

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    performance. Da tradio potica, o drama herda, por assim dizer, os outros sistemas de significao.

    Na tragdia grega, o texto pronunciado pelo ator e pelo coro dilogos e cantos contm vrios sistemas de signos da representao: expresso facial, gesto, marcao, penteado, indumentria, acessrios, cenrios, tom, som, alm da prpria palavra (MALHADAS, 2003, p. 45).

    Na tragdia grega, da perspectiva do espetculo, a viso direcio-nada sempre pelo texto pronunciado:

    Nessa mesma pea [Orestes de Eurpides], pelo modo como Electra, as outras personagens e o coro se referem a Orestes, vemos a sua maquilagem, seu pen-teado: as secrees coaguladas nos olhos, nos cantos dos lbios, os cabelos em desalinho que lhe tapam a viso. Sabemos que o ator estava de mscara, de modo que, quando foi encenada no V sculo a. C., apenas a palavra devia ter a fora para fazer o espectador ver esses sinais. O mesmo pode-se afir-mar da passagem em que Electra, tambm nessa pea, num momento em que desespera da salvao, diz estar, com as prprias unhas, fazendo seu rosto sangrar. (...) Na experincia teatral grega, portanto, a palavra constitui-se em rico sistema de signos. Pode-se dizer que a "ditadura da palavra" contra a qual se insurge Artaud em Le thtre et son double, para quem o teatro deve ter uma "linguagem fsica e concreta", expresso de tudo que se manifesta em cena materialmente, e que, por isso, se dirige primeiro aos sentidos e no ao esprito como a linguagem da palavra (MALHADAS, 2003, p. 47-8).

    Mas essa ditadura da palavra sobre o espetculo, que se quer fazer ver na tragdia, est intimamente ligada ao modo de compor, de conca-tenar a sequncia dramtica. Assim, a palavra vai construindo todos os signos exigidos pela cena. A palavra plasma a realidade mental, espiri-tual e intelectual por meio do canto e da dana e da fala, nos monlogos, dilogos, entre outros elementos, eivados pelo recente racionalismo fun-dado no discurso em prosa.

    Na verdade, a organizao do texto teatral deve revelar a organiza-o do espetculo. Para ns, hoje, a diviso estabelecida por Aristteles na Potica torna mais cmoda a leitura e a apreciao crtica, mas suas consideraes sobre a tragdia so como um cnone a ser seguido pelos compositores de sua poca, desconhecido, talvez, por squilo, Sfocles e Eurpides, que parecem mais estar buscando uma forma do que seguindo frmulas predeterminadas.

    Embora seja considerado o mais inovador entre os autores da trag-dia grega, por seguir novas tendncias musicais por exemplo, Eurpides

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    tem os seus textos elaborados de modo formal: em suas peas encon-tramos os prlogos, os prodos, os episdios e os estsimos, cantos de cena e xodos. Assim, a necessidade de fixar o texto a ser dito, cantado e coreografado e a ser sobretudo compreendido pelo pblico, fazia com que o autor apresentasse, no prprio texto, informaes mnimas sobre o cenrio, as indumentrias, o estado emocional das personagens, enfim, pistas que revelam uma concepo teatral que nada deixa a dever s mais sofisticadas montagens contemporneas.

    Eurpides, parece-me, muito sensvel a esse novo meio de expres-so de que dispunham os seus contemporneos. Como compositor, usando o material mtico disponvel na tradio potica grega, deixou-nos textos em que discute o seu universo espiritual, abrindo debates sobre poltica, religio, sociedade, enfim, sobre todos as questes em pauta nos meios intelectuais atenienses, sem, contudo, abrir mo das possibilidades est-ticas que a poesia dramtica lhe proporcionava. Explorou-a, a meu ver, de maneira radical, ainda que, muitas vezes, como tem sido notado pelos comentadores de seu texto, tenha prejudicado a unidade dramtica. Mas a entraramos em outros problemas, mais amplos, pois o que considera-mos representativo de toda a produo teatral do sculo V a. C. muito pouco e, na verdade, no sabemos exatamente como outros autores, a no ser squilo e Sfocles, compunham suas peas, como distribuam seus dilogos e seus cantos corais. De qualquer modo, o que chegou at nos-sos dias nos causa um grande impacto, quer pela construo formal, quer pelo contedo, permitindo considerar que as peas nos fazem vislumbrar um pouco mais claramente o que teria sido o teatro grego, e, de acordo com o nosso plano, as modificaes desse gnero e seus efeitos.

    Quando se fala em espetculo teatral, imediatamente nos vem mente o elemento visual, que, para Aristteles um dos elementos constitutivos da tragdia. Temos a dois caminhos a percorrer: um, o da encenao pro-priamente dita; o outro, o das possibilidades que, como postula Aristteles, j a leitura do texto nos oferece. O primeiro, para ns, invivel pois no tivemos o privilgio de viver no sculo V a. C. e presenciar as apre-sentaes, ouvir a modulao das vozes dos atores nem a entoao dos coros; no pudemos ver como se vestiam as personagens, como se cons-truam os cenrios, nem sentir o que pblico sentia, ao fazer, de alguma forma, parte do espetculo que para ele se produzia.7 Oddone Longo, num ensaio intitulado The Theater of the Polis, afirma:

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    o evento teatral na antiga Atenas era um evento pblico par excellence. As performances dramticas atenienses no eram concebidas como produes autnomas, em algum ponto indiferente do tempo ou do espao, mas esta-vam firmemente locadas dentro de uma estrutura de um festival cvico, em uma ocasio especificada de acordo com o calendrio comunitrio, e num lugar especial expressamente reservado para essa funo (LONGO, In: WINKLER, ZEITLIN, 1990, p. 15).

    Se tivermos esses detalhes em mente, a impossibilidade de apreen-dermos a experincia teatral grega torna-se mais clara. Ao estudar o espe-tculo e a forma na tragdia, H. C. Baldry (1984, p. 9) prope que, se uma mquina nos permitisse atravessar o tempo e presenciar uma repre-sentao teatral no sculo V a. C., na certa no teramos a compreenso exata do que estaria acontecendo l. Seu livro, ento, busca, na medida do possvel, trazer para ns, hoje, dados sobre os testemunhos dos auto-res mais antigos sobre o teatro, uma discusso sobre o envolvimento da cidade em todas as atividades polticas e religiosas relativas aos festivais dramticos, as condies materiais da representao, as representaes propriamente ditas e o contedo das peas. Sua obra destaca a singulari-dade da experincia teatral grega, irrecupervel para ns.

    O segundo, herdeiros que somos de todo esse legado escrito, permi-te-nos explorar as possibilidades que o texto prope, como qualquer outra obra de arte. E nesse mergulho nas possibilidades do texto que sigo os passos dados por Oliver Taplin (1985, p. 4), em Greek Tragedy in Action, sem contudo concordar com todas as suas afirmaes:

    Agora, quando insisto que a tragdia grega deve ser vista para ser pensada, no estou falando a respeito da mecnica da encenao. As caractersticas permanentes do teatro a construo do palco, maquinaria, etc. so inte-ressantes o suficiente, mas meu interesse no tanto por como a pea era posta em cena quanto pelo que est sendo representado em seu interior.

    Assim, tudo o que o texto nos apresenta como parte de sua realizao performtica, muito de perto nos interessa, a saber: entradas e sadas de cena, atos e gestos sugeridos pelo texto das personagens, objetos de cena, sons e silncios, sequncias cnicas, emoes que se percebem pelos voc-bulos usados, e mesmo as partes dialogadas e partes cantadas, pois todo esse conjunto de elementos carregados de significao conduz a uma expe-rincia nica que o prazer esttico da poesia em seu mais alto grau.

    Oliver Taplin (1985, p. 13), porm, no inclui neste seu trabalho con-sideraes sobre os cantos corais, visto que sua preocupao est centrada

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    na ao dramtica, ou seja, naquilo que os atores dizem e fazem em cena. Reproduzo aqui sua declarao para maior clareza:

    Para os gregos, um coro era parte integral de muitas ocasies comunais, reli-giosas ou seculares festivais, casamentos, funerais, celebraes de vit-rias, por exemplo. Um coro garante a cerimnia e a profundidade para todas as ocasies festivas na vida grega. E, mesmo assim, o coro receber ine-vitavelmente pouca ateno neste livro, comparativamente, j que no est como regra rigorosamente envolvido na ao e na trama das tragdias. H excees, sobretudo em squilo, mas para postul-lo bem genericamente o lugar para a cano coral mover-se num mundo diferente, um registro diferente, distinto dos eventos especficos da trama. As canes no esto limitadas a um lugar e tempo, na linguagem, na seqncia arrazoada da fala e do pensamento, como o dilogo est; elas se desviam por uma sequn-cia de elos associativos, muitas vezes emocionais, a um mundo altamente colorido de encadeamentos universais e abstratos, amplamente alinhados, de pensamento, por desertar a relevncia direta da monotonia em favor das conexes poticas da imaginao e universalidade. Se soubssemos um pouco mais de sua coreografia e msica, da o coro trgico poderia encon-trar um espao mais amplo; mas, tal como est, minha lente focar inevi-tavelmente os atores.

    Concordo com quase todas as afirmaes de Oliver Taplin, tendo em mente sua preocupao centrada na ao dramtica, mas este trabalho pre-tende acentuar justamente o oposto de sua proposio: a importncia da participao do coro, se no na ao dramtica propriamente dita, pelo menos no seu modo de insero no que aqui chamamos de espetculo, sobretudo pelas modificaes que Eurpides teria introduzido, neste par-ticular, na tragdia tica.

    O desconhecimento que temos da representao do coro o mesmo que temos de como os atores de fato atuavam. A mudana de registro na linguagem utilizada pelo coro, a musicalidade de sua interveno e mesmo sua coreografia so to irrecuperveis quanto a modulao, a entoao e mesmo o modo de representao dos atores. Se, na atuao do coro, h uma mudana de registro to forte e caracterstica, como acontece com o canto coral nas tragdias ticas, mais do que uma tradio potica ou fun-o esttica, h que se consider-la do ponto de vista do espetculo que o autor quer nos fazer ver. Se o canto est ligado mais a expresses de con-tedo emocional, incluindo-se a todas as sugestes de carter religioso, comunitrio, enfim, cerimonial, sua interveno para a apreciao de um texto teatral tambm de igual importncia. Nesse sentido, preferimos a

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    ideia de Helene P. Foley (1985, p. 19) em Ritual Irony, Poetry and Sacrifice in Eurpides, ao postular:

    As odes de cada uma dessas peas (Ifignia em ulis, As Fencias, Hracles furioso, As Bacantes), longe de serem apenas decorativas e no funcionais, formam um ciclo contnuo de cano que ganha nfase precisamente por seu contraste estudado ou relao desconcertante com a ao. O ritual, servindo nessas peas para ligar ode e ao, o mtico e o secular, o passado e o presente, em ltima anlise, permite ao poeta reivindicar ao drama e sua tradio po-tica arcaica uma relevncia contnua para um sociedade democrtica.

    Se partimos do pressuposto de John Herington (1985, p. 3-40) de que a poesia grega em sua origem performtica, temos que admitir que ela comportava elementos do que aqui chamaremos espetculo. O termo espe-tculo, a princpio, parece-nos um pouco perigoso, porque tem um campo semntico que se estende desde o ver uma encenao teatral at o assis-tir a qualquer modalidade desportiva. Mas o perigo se desfaz ao notar que, em qualquer um dos usos que ora fazemos do termo latino spectaculum, o ver est sempre embutido, e, mesmo numa encenao, uma das princi-pais atividades justamente o ver o jogo dramtico.8 No por acaso que o recorte lingustico do ingls recobre justamente esse campo semn-tico do teatro com o uso do termo play tanto para uma pea teatral como para o verbo representar (GIRARD e OUELLET, 1980, p. 16 nota 1). Portanto, alm de uma experincia acstica, note-se que em ingls o pblico denominado audience, enfatizando sobretudo o elemento acs-tico do espetculo , o espetculo denomina o ver esteticamente algo que se representa, trate-se de uma execuo potica, de uma disputa despor-tiva ou de uma apresentao teatral. J o termo grego qe/atron designa sobretudo o local de onde se v a apresentao dramtica.

    W. B. Standford, levando em conta as condies da representao teatral em Atenas do sculo V a. C., postula a importncia maior dos ele-mentos acsticos em relao aos elementos visuais, estes tampouco sendo negligenciados pelos compositores.9 Mas qual a sua especificidade, se, de algum modo, o texto teatral est inserido numa tradio potica que comporta os elementos performticos? Em primeiro lugar, o texto teatral rigidamente escrito para, nos dilogos e monlogos, ser dito de cor; nas partes corais, para ser cantado e danado. Como no temos a partitura musical, nem a coreogrfica, o que nos resta o texto. E com base no texto que vamos recuperar, com nossas limitaes de leitores, o que cha-mamos de espetculo, ou seja, aqueles elementos textuais que, de alguma

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    forma, nos sugerem ou indicam algo alm da palavra escrita, isto , a pala-vra que, lida ou dita, nos leva para uma outra experincia mais expressiva do fenmeno da comunicao, o prazer esttico.

    GuiSA DE umA CoNCLuSo

    O espetculo teatral grego tem, ento, como objetivo principal expor aos ouvidos e olhos de uma plateia a quem especialmente dirigido o drama, a ao. A ao, aqui, considerada como a sucesso de acon-tecimentos que gera a tenso de uma pea teatral, e a fala a grande res-ponsvel por esse aspecto do drama. No entanto, todos os elementos do espetculo podem, de alguma forma, contribuir ou no para a construo dramtica. Os jogos estabelecidos pelas falas do dilogo dos atores, pelas canes do coro, que apelam sobretudo emoo da plateia, e por todo o conjunto de outros elementos indicados de alguma forma no texto (a indumentria das personagens, o cenrio, os objetos de cena, as expres-ses faciais, os gestos, os estados emocionais), tm um nico objetivo, o de proporcionar ao pblico a compreenso do texto como um conjunto significativo: da o nome tcnico de signo teatral para todos esses elemen-tos. Cada um dos signos, o lingustico, o musical, o rtmico, cenogrfico etc., compe um signo maior, o teatral.

    Quando usamos aqui o termo espetculo, tm-se em mente as discus-ses abertas pelos estudiosos da semiologia do teatro, que tm o olhar vol-tado para as representaes modernas. Ser possvel, ento, aplicar suas teorias a um texto teatral produzido e representado segundo as condies disponveis no sculo V a. C.? Acredito serem notveis diferenas entre o teatro contemporneo e o teatro produzido ento na Grcia antiga, se levar-mos em conta os recursos tcnicos de que dispem hoje nossos autores.

    No entanto, mesmo que aos nossos olhos o teatro grego antigo possa parecer despojado em relao aos recursos tcnicos disponveis hoje, tem j todas as possibilidades de uma montagem teatral, nada ficando a dever a qualquer texto contemporneo. E no por acaso que, cada vez mais, estudiosos, encenadores, diretores por todo o mundo se debruam sobre os textos teatrais ticos para neles encontrar uma fonte vigorosa de cria-o e expresso teatrais. Na apreciao do espetculo, as dificuldades de um estudioso diante de um texto de squilo, Sfocles ou Eurpides so as mesmas que encontra ao se confrontar com um texto de Shakespeare, Gil Vicente ou Brecht. Isso porque como j apontamos, rigorosamente, o

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    espetculo s existe no momento da encenao. O que sobrevive depois o texto, e com base no texto que uma nova montagem pode ser feita. Note-se aqui que a ideia de se recuperar o teatro grego gerou um dos gneros mais importantes da msica erudita, a pera (TAPLIN, 1990, p. 50-61). E mesmo assim, digamos, a pera foi calcada sobre uma ideia errnea do que foi a tragdia, pois nela no havia s o canto, sendo o acom-panhamento musical muito mais simples, no intervindo na modulao dos atores quando cantavam. Ao contrrio, ao que tudo indica, o instru-mento seguiria o ritmo determinado pela marcao dos versos.10 Penso que, ainda que se cometam enganos, o contato com uma fonte latente de expresso, como o o teatro grego, sempre pode resultar em algo produ-tivo e interessante. E se os diretores de teatro e encenadores cumprirem com rigor o programa estabelecido nos textos da tragdia tica, ainda poderemos por muito tempo experimentar o terror e a piedade preconi-zados por Aristteles.

    ABSTrACT

    In the present study, we detach how the structure of tragic poetry in song and dialogued parts results in a great spectacle dominated by the word. In the choral and actors songs, the emotional estates are marked by means of the dorian dialect tradition. In dialogues, the rhythm, close to the daily speech in attic dialect, accelerates the events on the stage, puts into practice and moves what Aristotle later will designate action. The result of mixture of tradition with novelty, song and speech, of dance and gestures. is a spectacle containing myth and reality, poetry and rhetoric, among other dichotomies, in which the power of language is staged. In tragedy, then, the word in all its modes of expression is the spectacle to be seen and heard. So, the Greek tragedy is inserted in a long tradition initiated by the Homeric oral poetry and announces the establishment of philosophy.Keywords: song; speech; spectacle; Greek tragedy.

    NoTAS1 Para apreciao dos anacronismos na tragdia tica, ver a discusso de P. E. EASTERLING, em seu trabalho Anachronism in Greek Tragedy, JHS, CV (1985, p. 1-10). Para a discusso sobre realidade e fico, na tragdia, veja-se Oliver TAPLIN (1978, p. 170).2 Cf. Eric BENTLEY Literatura Versus Teatro para uma discusso interessante dos pontos de vista antagnicos neste particular (1981, p. 141-2).

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    3 Esse aspecto das performances dos anos sessenta em diante est muito bem estudado por Renato COHEN em Performance como linguagem (1989).4 Traduo nossa. Cf. as outras referncias de Aristteles ao espetculo: como uma das partes da tragdia (ARISTOTE, 1449b 31-3 e 1450b 15-20).5 Oliver Taplin tem uma viso um pouco diferente no que se refere ao espetculo na Potica. Cf. (TAPLIN, 1977, p. 24-5; 477-9).6 Para as questes sobre as didasclias no texto grego ver Il teatro greco nell et di Pericle, o polmico texto de Gary Chancellor, Le didascalie nel testo (MOLINARI, 1994, p. 127-46) e o texto de O. Taplin Le questione delle indicazioni didascaliche (MOLINARI, 1994, p. 147-60), que com muito mais clareza questiona as possveis indicaes em alguns textos.7 Rigorosamente o estudo de um espetculo teatral teria que ser feito durante sua repre-sentao, da quase uma inviabilidade de sua apreenso total a posteriore. Cf. os deba-tes sobre o fenmeno teatral em Do significante ausente no teatro, Itinerrios, n. 5 (CAIZAL, 1993, p. 15-47). Cf. Oliver TAPLIN (1977, p. 39).8 No nos esqueamos de que disputa, jogo, para o grego a0gw/n, tambm debate, sendo um dos elementos do teatro. Para as ligaes a0gw/n na poesia de Pndaro, por exemplo (CROTTY, 1982). Para a apreciao do a0gw/n no teatro, ver Elementos mtricos arcaicos en los rituales de Agon (ADRADOS, 1983, p. 347-60). 9 Cf. dois captulos referentes aos elementos acsticos: STANDFORD, 1983:The aural element I: song, music, noises, cries, and silences, p. 49-62; The aural ele-ment II: the music of the spoken word, p. 63-75; e um captulo sobre os elementos visuais: The visual element p. 76-90.10 Cf. Delivery, Speech, Recitative, Song (PICKARD-CAMBRIDGE, 1969, p. 156-67), para uma completa discusso sobre as partes de ator faladas, recitadas e can-tadas e o respectivo acompanhamento musical.

    rEFErNCiAS BiBLioGrFiCAS

    ADRADOS, F. R. Fiesta, tragedia y comedia. Madrid: Alianza Editorial, 1983.

    ARISTOTE. La Potique. Texte, traduction, notes par Roselyne Dupont-Roc et Jean Lallot. Paris: ditions du Seuil, 1980.

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    BARLOW, Shirley A. The Imagery of Eurpides. A study in the dramatic use of pictorial language. 2nd. Ed. Bristol: Bristol Classical Press, 1986.

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    BARTHES, Roland. Ensaios Crticos. Trad. de Antnio Massano e Isabel Paschoal. Lisboa: Edies 70, 1977.

    BENTLEY, E. A experincia viva do teatro. Trad. de lvaro Cabral. 2a ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

    CAIZAL, Eduardo Peuela. Do significante ausente no teatro. In: Itenirrios, n. 5, 1993, p. 15-47.COHEN, Renato. Performance como linguagem. So Paulo: Perspectiva, 1989.

    CHANCELLOR, Gary. Le didascalie nel texto. In: MOLINARI, Cesare (org.) Il teatro grego nell et di Pericle. Bologna: Societ Editrice il Mulino, 1994, p. 127-46.

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    EASTERLING P. E. Anachronism in Greek Tragedy. In: Journal of Hellenic Study, CV. 1985, p. 1-10.FACHIN, L. e DEZOTTI, M. C. C. (org.). Teatro em Debate. Araraquara: Laboratrio Editorial/ So Paulo: Cultura Acadmica, 2003.

    FLICKINGER Roy C. The Greek Theater and Its Drama. 4th ed. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1973.

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    FRNKEL, Hermann F. Early Greek Poetry and Philosophy. A history of Greek epic, lyric, and prose to the middle of the fifth century. Trad. inglesa de Moses Hadas e James Willis. Oxford: B. Blackwell, 1975.

    GIRARD, Gilles et RAL, Ouellet. O universo do teatro. Trad. de Maria Helena Arinto. Coimbra: Livraria Almedina, 1980.

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    KNOX, Bernard M. W. Oedipus at Thebes. New York: W. W. Norton & Co., 1971.

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    MOLINARI, Cesare (org.). Il teatro grego nell et di Pericle. Bologna: Societ Editrice il Mulino, 1994.

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    SANTOS, F. B. dos. O canto na tragdia grega: Eurpides, Hiplito v. 58-71. In: Aletria n. 7, 2000, p. 7-14._____. Quando Eurpides influencia Sfocles: um estudo sobre a estru-turao da poesia trgica grega. In: FACHIN, L. e DEZOTTI, M. C. C. (org.). Teatro em debate. Araraquara: Laboratrio Editorial/ So Paulo: Cultura Acadmica, 2003, p. 105-18.

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    ViAJAr Por Amor E DESAmor*

    Francisco de oliveira

    rESumo

    A relao entre viagem e amor est na base da trama de algumas comdias de Plauto e de Terncio, por vezes assume alguma colorao filosfica, e aparece com alguma frequncia nos elegacos latinos. Dada a multiplica-o de referncias, o enfoque ser posto nas viagens decididas como cura de males de amor, quer por iniciativa prpria, quer por imposio alheia, e essencialmente em textos coloridos com uma tonalidade elegaca. Palavras-chave: amor; cdigo elegaco; teraputica do amor; viagem.

    iNTroDuo

    Na tipologia oferecida pela literatura sobre a matria, as viagens por amor no merecem classificao, embora pudessem ser elencadas, por exemplo, nas viagens por motivos sanitrios.1 Todavia, a relao entre viagem e amor antiga, pois encontra-se na Odisseia de Homero, na his-tria do persa Sataspes em Herdoto 4.43, nos mitos dos Argonautas, de Perseu ou de Hrcules e na Eneida de Virglio.2

    A relao entre viagem e amor, um dos tpicos da Antologia Palatina,3 est na base da trama de algumas comdias de Plauto (vejam-se peas como Anfitrio, Bquides, Csina, Gorgulho, Fantasma, Estico) e de Terncio (O Homem que se castigou a si mesmo e Formio), por vezes assume alguma colorao filosfica e aparece com alguma frequncia nos elegacos latinos, em temas to diversos como os perigos das sadas noturnas para encontros furtivos, ilcitos e at adlteros, ou a recusa das viagens e temticas militares em favor do amor e da poesia ertica.

    Dada a multiplicao de referncias, o enfoque ser posto nas via-gens decididas como cura de males de amor, quer por iniciativa prpria quer por imposio alheia, e essencialmente em textos coloridos com uma tonalidade elegaca.

    Os autores abordados so Plauto (O Mercador), Lucrcio, Catulo, Tibulo, Sulpcia, Proprcio e Ovdio (em especial Remdios de Amor).

    * Trabalho preparado no mbito do Projeto Quadrienal do Centro de Estudos Clssicos e Humansticos, FCT POCI 2010.

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    TorNAr A PArTir Em O MErCAdOr dE PLAuTO

    Em Plauto, tomarei o exemplo da comdia O Mercador. Logo na fala inicial, o jovem Carino resume a sua vida recente (Mer. 11-3):

    Pater ad mercatum hinc me meus misit Rhodum;biennium iam factum est, postquam abii domo.Ibi amare occepi forma eximia mulierem.

    O meu pai mandou-me daqui para Rodes em viagem de negcios:j passaram dois anos desde que sa de casa.L me tomei de amores por uma mulher de beleza estonteante.

    Nestes simples trs versos se confrontam dois temas conexos: um pai que envia o seu filho em viagem para o curar de uma paixo mals e a con-cretizao da cura dessa mesma paixo, mas por troca por um novo amor.

    No incio da pea, o prprio adolescente descreve os males do amor em toada verdadeiramente elegaca (Mer. 18-31), recordando a sua pri-meira experincia ertica: a paixo intemperante por uma meretriz (v. 42: Amare ualide coepi hic meretricem), as censuras permanentes de seu pai,4 a presso deste para que o filho partisse para o estrangeiro a fazer fortuna no comrcio martimo, a deciso final do adolescente, perante tanta ani-mosidade paterna (Mer. 80-6):

    Ego me ubi inuisum meo patri esse intellegoatque odio me esse quoi placere aequom fuit,amens amansque ut animum offirmo meum:dico esse iturum me mercatum, si uelit,amorem missum facere me, dum illi obsequar.

    Eu, mal percebi que estava a ser odioso para meu paie que me tinha averso aquele a quem eu devia agradar,amente e amante,5 tomo a seguinte deciso:prometo-lhe partir em viagem de negcios, se assim o desejasse,e dizer adeus ao meu amor, para lhe agradar.

    Comunicada a deciso, foi dito e feito, que o pai logo mandou apres-tar um navio antes que o jovem se arrependesse. Mas, no decurso da via-gem, durante a estadia em Rodes, o adolescente apaixona-se por uma escrava de enorme beleza, que logo compra para seu proveito.6 Claro que, no regresso, vai esconder de seu pai esse tesouro, que deixa a recato no navio, ao desembarcar.

    Mal imagina ele que, cheio de saudades, notcia da chegada, logo o velho se dirige para o porto e a encontra a beldade, e tambm ele se

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    apaixona primeira vista.7 E, como j se sabe, o velho no para delon-gas, pois mal viu essa mulher... o malvado comeou a acarici-la (Mer. 199-203: Postquam aspexit mulierem... scelestus subigitare occepit). tamanha a sua perdio que logo inventa uma tramoia para privar o jovem Carino do contato com a amada.

    Depois de vrias cenas rocambolescas, de fingimento entre pai e filho (Mer. 545: clam uxore et clam filio), de qui pro quo, como no dilogo entre Demifo e Psicopompa (Mer. 499-542), de um leilo em que o velho arre-mata a rapariga, impedindo o filho de continuar a licitar (Mer. 424-65), de tiradas sobre os inconvenientes do amor,8 incluindo numerosos regis-tros de toada elegaca,9 e apesar de o seu amigo Eutico se propor ludibriar o velho pai Demifo para o ajudar,10 tal situao conduz o jovem nova deciso de partir, mas agora em busca da amada trazida de Rodes, onde quer que ela esteja, uma vez que seu pai a escondeu em parte incerta com a ajuda do vizinho Lismaco.11 Tendo visto exilar-se toda a esperana,12 s lhe resta partir, tambm ele. Mas hesita entre localidades possveis que se compraz em enumerar, num elenco com implicaes cmicas aliadas a alguns desses destinos de comrcio, de lazer e devassido, para no usar a moderna expresso de turismo sexual (Mer. 644-7):13

    certumst exulatum hinc ire me sed quam capiam ciuitatem cogito potissimum:Megares, Eretriam, Corinthum, Calchidem, Cretam, Cyprum,Sicyonem, Cnidum, Zacynthum, Lesbiam, Boeotiam?

    tomei a deciso de partir daqui para o exlio.Pois a que cidade me dirigir, coisa que d muito que pensar:Mgara, Ertria, Corinto, Clcis, Creta, Chipre,Scion, Cnidos, Jacinto, Lesbos, Becia?

    Mas quando fica a saber que o motivo da partida de Carino so os males de amor (Mer. 648: Quia enim me aflictat amor), e por mais que este diga que parte procura da amada (Mer. 934: ad peruestigandum ubi sit illaec), o jovem Eutico s pode entender que se trata de uma cura de amor, at porque tanto a equitao14 como a partida num navio (Mer. 946: nauem conscendo) tm implcitas metforas elegacas para a relao amorosa.15

    Em suma, Eutico consagra um entendimento geral: quando o apai-xonado infeliz se prope iniciar uma viagem, para fazer uma terapia de amor (cf. Mer. 951: Medicari amicus quin properas?). Mas tambm des-venda o seu cepticismo perante tal terapia, de resto alicerado na anterior

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    experincia do seu amigo Carino; isto , a cura da paixo por meio de uma viagem s serve para fomentar turismo e donjuanismo (Mer. 649-57):

    Quid tu ais? quid cum illuc quo nunc ire paritas ueneris,si ibi amare forte occipias atque item eius sit inopia,iam inde porro aufugies? deinde item illinc, si item euenerit?Quis modus tibi exilio tandem eueniet? qui finis fugae?quae patria aut domus tibi stabilis esse poterit? dic mihi.Cedo, si hac urbe abis, amorem te hic relicturum putas?Si id fore ita sat animo acceptum est, certum id, pro certo si habes,quanto te satiust rus aliquo abire, ibi esse, ibi uiuere,adeo dum illius te cupiditas atque amor missum facit?

    Que ests para a a dizer? Que fars quando chegares aonde agora [te aprestar para ir:

    se acaso a te apaixonares e de novo dela ficares privado,tambm da irs fugir? E de outro lugar, depois, se tornar a acontecer?Que termo ter o teu exlio? Que fim para a tua fuga? Que ptria ou casa te poder dar estabilidade? Diz l!Vejamos: se te fores embora desta cidade, tu julgas que deixars aqui

    [o amor?Se ests convencido, se tens por certo, se tens a certeza de que assim ser, quo mais vantajoso no seria partir para algum stio no campo, instalar-se

    [a, viver aat a paixo e o amor por ela fazerem a sua despedida!

    Mas tal conselho ineficaz: o amigo vai partir sem se despedir do pai (Mer. 660: Clam patrem patria hac effugiam). E j preparado que o vamos reencontrar em duas cenas de verdadeira opereta, primeiro em monlogo (Mer. 830-41), depois em dilogo com Eutico (Mer. 842 segg.), reafirmando o desejo de correr mundo procura da sua amada (Mer. 863: aut amicam aut mortem inuestigauero tudo farei at encontrar ou a minha amada ou a morte). Em delrio, realiza uma viagem imaginria, de Atenas a Chipre, a Clcis, com regresso a Atenas quando grita: J estou em casa, j regressei do exlio.16 E, afinal, em casa e na ptria que ele vai reencontrar o seu amor.

    LuCrCio: o DEAmBuLAr EPiCuriSTA Por um CorPo quALquEr

    Ora a problemtica da cura do amor-paixo reaparece, agora em tona-lidade filosfica, no epicurista Lucrcio (4.1058-72). Aqui, bem de ver, a cura da paixo no se faz com paliativos, muito menos com uma ausn-cia atormentada pelos simulacros do objeto amado, que s seria esquecido

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    com separao definitiva e permanente. Em consequncia, Lucrcio acon-selha o apaixonado a voltar-se para outros amores:

    Haec Venus est nobis; hinc autemst nomen amoris,hinc illaec primum Veneris dulcedinis in corstillauit gutta et successit frigida cura.nam si abest quod ames, praesto simulacra tamen suntillius et nomen dulce obseruatur ad auris.sed fugitare decet simulacra et pabula amorisabsterrere sibi atque alio conuertere mentemet iacere umorem conlectum in corpora quaeque,nec retinere, semel conuersum unius amore,et seruare sibi curam certumque dolorem.

    isto Vnus, para ns. Daqui sai o nome de amor,daqui correu para o corao aquela primeira gotada doura de Vnus, a que sucedeu um glido cuidado. que, se est longe o objeto do teu amor, esto perto os seus simulacrose a doura do seu nome ecoa a teus ouvidos.Convm espantar17 tais simulacros e afastar de si os alimentos18 desse amor e voltar o esprito para outreme lanar o smen acumulado num corpo qualquer,no o reter, guardando-o s para um amor nico,entregando-se a tormentos e dor inevitvel.

    Como se deduz, para o epicurismo a cura da paixo no consente can-seiras de viagem.19 O amor multvago, eufemismo para dizer promiscui-dade sexual,20 no vagueia, errante, por terras longnquas para esquecer a paixo ou procurar a alma gmea: cura-se no primeiro corpo disponvel, de corpo em corpo que transita, no de terra em terra. Este um rem-dio que o prprio Ovdio reconhecer como certo, quando recomenda ter sexo com uma qualquer antes de chegar mulher amada (Rem. 401-4):

    Gaudia ne dominae, pleno si corpore sumes, te capiant, ineas quamlibet ante uelim;quamlibet inuenias, in qua tua prima uoluptasdesinat; a prima proxima segnis erit.

    Para que o gozo da tua senhora, se a abordares com todas as energias,no te torne prisioneiro, antes dela, pratica sexo com uma qualquer;uma qualquer que encontres, na qual sacies o teu prazer primeiro;depois do primeiro, o ato seguinte ser menos intenso.

    Est aqui implcito o tpico elegaco do amor-paixo, sempre obce-cado por dois lugares de eleio: a cama da amada, quando esta se dispe;

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    ou a porta da amada, cravejada de splicas, serenatas, beijos, flores, lgri-mas, quando esta recusa a entrada. Para esse amor-paixo as deslocaes so curtas, por vezes mais curtas do que as navegaes noturnas nos bra-os da amada, quando o vento toca de feio.

    CATuLo ou AriADNE ABANDoNADA NA ViAGEm DE NPCiAS

    No poema 11, em registro com alguma ironia, Catulo apresenta o tema da ruptura amorosa concretizada em viagens, que seriam longas, por pases longnquos, de uma extremidade outra do mundo conhecido: ndia, Mar Oriental, Hircnia, Arbia, Sagas, Partos, Egipto, Alpes, Reno, Britnia.21 Os perigos de viagens como essas no anulam o desejo de par-tida e o adeus final amada infiel, lasciva e cnica, a quem envia non bona dicta palavras que no so amigveis (11.21-4):

    Nec meum respectet, ut ante, amorem,qui illius culpa cecidit uelut pratiultimi flos, praetereunte postquamtactus aratro est.

    E que no conte mais, como dantes, com o meu amor,que, por sua culpa, feneceu, como uma florno extremo de um prado, depois de ser arrancada passagem do arado.

    O carme 64 comea com a significativa histria da nau Argos e a inveno da navegao, antes de passar s bodas de Peleu e Ttis, aonde acorrem convidados vindos de muitas regies da Grcia e deuses de todas as suas moradas divinas. A descrio da manso faustosa da noiva inclui uma cfrase de pintura, se como tal entendermos o bordado multicolor da colcha do leito nupcial (cf. 64.47-52 e 265-6). A se conta a longa his-tria de Ariadne (64.50-264): como fora abandonada numa ilha deserta (64.57 e 184 segg.), completamente transtornada (v. 70: perdita mente), como vira ao longe Teseu a fugir das promessas de amor e casamento que havia jurado jovem princesa, a qual, apaixonada primeira vista, como Medeia, trara o irmo (64.150 e 181), os progenitores (6.117-9 e 180) e a ptria (64.120-3):

    (..) Omnibus his Thesei dulcem praeoptarit amorem,aut ut uecta rati spumosa a litora Diaeuenerit, aut ut eam deuinctam lumina somnoliquerit immemori discedens pectore coniunx?

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    (...) como a tudo isso ela preferiu o doce amor de Teseu,ou como chegou s espumosas praias de Dia, levadaem seu navio, ou como a abandonou, de olhos cerrados pelo sono, o esposo que partiu com seu corao ingrato.

    Depreende-se, de resto, do uso irnico de coniunx esposo, que Teseu incapaz de qualquer ligao permanente, pois comporta-se segundo a tica de Lucrcio, simplesmente procurando o prazer sexual num corpo qualquer, que abandona mal a libido saciou o seu propsito cpido (64.147: simul ac cupiditate mentis satiata libido est). A viagem a dois no fora, portanto, uma viagem de npcias, mas logro calculado. Pelo contrrio, para verem umas bodas de amor, viajaram todos os convida-dos de Peleu e Ttis.

    TiBuLo: A oBSESSo Por um Amor NiCo No CoNSENTE AFASTAmENTo

    J quando os elegacos falam de viagem, a toada soa entre cime e frustrao. A viagem impe-se, por vezes no final de um progressivo afastamento, quando uma das partes quer sinalizar o termo ou, afastan-do-se, quer procurar a cura do amor no correspondido, sem desquitar uma inteno vingativa.

    Tibulo, na elegia 1.3, recorda as preocupaes da amada em relao sua partida para o oriente no squito de Messala. O poeta est retido em Corfu por uma doena que o deixa entrever uma morte longe do seu amor e lhe d pretexto para manifestar a nsia do regresso e invectivar a guerra e a ganncia, com as suas consequentes longas viagens (v. 36: longas uias), por oposio a um passado idealizado, onde s reinava o amor. Fica tambm implcita a ideia de que o afastamento nefasto ao amor (v. 20: Audeat inuito ne quis discedere Amore) e que a ausncia pode mesmo ser causa de traio (v. 81-4).

    No quadro do amor homoertico, que aconselha a no desperdiar a juventude,22 e sob a forma de uma arte de amar pederstica, o deus Priapo ensina o amante a vencer a resistncia do jovem cobiado, nunca da sua presena se ausentando (1.4.39-46):

    Tu, puero quodcumque tuo temptare libebit, cedas: obsequio plurima uincet amor.Neu comes ire neges, quamuis uia longa paretur et Canis arenti torreat arua siti,quamuis praetexens picta ferrugine caelum

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    uenturam amiciat imbrifer arcus aquam;uel si caeruleas puppi uolet ire per undas, ipse leuem remo per freta pelle ratem.

    Tu, em tudo o que o teu amado desejar experimentar, cede: pela complacncia muitas vitrias alcanar o amor.E no te negues a viajar na sua companhia, ainda que prepare

    [uma longa viagem e a constelao do Co torre os campos abrasados pela seca;ainda que, orlando o cu com uma pintura de azul metlico, o pluvioso arco-ris se cubra com a chuva que est para cair;e se ele mostrar vontade de partir de barco pelas ondas cerleas, pega tu no remo para impelir o leve navio atravs da agitao do mar.

    Assim, para conquistar o amor, Priapo apregoa um servio amoroso capaz de enfrentar todos os perigos,23 incluindo uma notao de perigos inerentes s viagens que recorre no final, quando sobre o amor venal lanada a maldio de andar errante por trezentas cidades (1.4.69), uma sugesto j implcita em Pl. Mer. 644-7, acima citado, com sugesto de roteiros de prostituio.

    Na elegia 2.3, a partida da amada Nmesis para o campo permite evo-car uma mtica idade de ouro do amor, que todavia ironicamente con-trovertida no fecho, quando o seruitium amoroso retm o poeta na cidade enquanto no recebe chamamento da amada (v. 77-80).

    A elegia 2.6 conglomera uma srie de motivos a partir da anttese armas / amor. Aqui, a partida para uma longnqua campanha militar apa-rece como cenrio de cura de um amor cruel (v. 15: acer Amor), de uma penosa escravido (v. 24: ualida compede uinctum) que j fez pensar em suicdio e que agora se transforma em autodesmascaramento (v. 9-14):

    Castra peto, ualeatque Venus ualeantque puellae: et mihi sunt uires et mihi facta tuba est.Magna loquor, sed magnifice mihi magna locuto excutiunt clausae fortia uerba fores.Iuraui quotiens rediturum ad limina numquam! Cum bene iuraui, pes tamen ipse redit.

    Pois vou partir para o servio militar! Adeus, Vnus, adeus donzelas: tambm eu sou forte, a trombeta tambm foi feita para mim!Baboseiras o que digo, e uma porta fechada repele com soberba as minhas fanfarronadas quando digo baboseiras.Quantas vezes jurei nunca mais tornar a estas soleiras! L jurar, eu bem jurei! Mas, por si mesmos, os meus ps a tornaram.

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    Incapaz de quebrar os grilhes que o prendem, ao apaixonado s r