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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS: ESTUDOS LITERÁRIOS FLORITA DIAS DA SILVA DIALOGISMO E POLIFONIA EM O ENCONTRO MARCADO, DE FERNANDO SABINO Teresina 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS: ESTUDOS LITERÁRIOS

FLORITA DIAS DA SILVA

DIALOGISMO E POLIFONIA EM O ENCONTRO MARCADO, DE

FERNANDO SABINO

Teresina

2010

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FLORITA DIAS DA SILVA

DIALOGISMO E POLIFONIA EM O ENCONTRO MARCADO, DE

FERNANDO SABINO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí, na área de concentração Estudos Literários, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Profª. Drª. Maria do Socorro Rios Magalhães

Teresina

2010

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FICHA CATALOGRÁFICA Serviço de Processamento Técnico da Universidade Federal do Piauí

Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco

S 586d – SILVA, Florita Dias da Dialogismo e polifonia em O encontro marcado, de

Fernando Sabino / Florita Dias da Silva. – Teresina, 2010. 143 f. Dissertação [Mestrado em Letras] – Universidade

Federal do Piauí, 2010. Orientadora: Profª Drª Maria do Socorro Rios Magalhães. 1. Polifonia 2. Dialogismo 3. Literatura brasileira. I. Título. CDD – 801

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FLORITA DIAS DA SILVA

DIALOGISMO E POLIFONIA EM O ENCONTRO MARCADO, DE

FERNANDO SABINO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí, na área de concentração Estudos Literários, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Aprovada em 30 / 03 / 2010

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

Profª. Drª. Maria do Socorro Rios Magalhães (UFPI) Presidente

_____________________________________________ Prof. Dr. Francisco José Sampaio Melo (IFPI)

Examinador

_____________________________________________ Prof. Dr. Diógenes Buenos Aires de Carvalho (UFPI)

Examinador

4

Às minhas preciosidades Rebeca e Débora, que no carisma da

infância pelo simples gesto de um sorriso me ensinam a não

desistir dos meus objetivos.

5

AGRADECIMENTOS

A Deus, o meu bem maior.

Aos meus pais, in memoriam (2008), Raimundo Nonato e Novendora Dias,

cujo amor pela vida sempre me fascinou.

Ao meu grande amor Neto Guimarães, pelo apoio incondicional que me

acompanhou sempre, às vezes, em silêncio ou com palavras e atitudes de carinho,

otimismo e compreensão.

À professora Drª. Socorro Magalhães, pela orientação firme, competente e

atenciosa.

Aos professores Drs. Saulo Brandão, Junia Barreto, Sebastião Lopes,

Diógenes Buenos Aires, Socorro Fernandes, Elio Ferreira, Érica Fontes, Francisco

Filho e Ismênia Sousa, dos quais quero preservar na memória os bons momentos

vividos.

Aos irmãos e amigos que me incentivaram a caminhar nesta jornada, a

superar os limites, a escalar as fortalezas e a não desistir diante dos vales.

À Secretaria de Educação do Estado do Maranhão, pela licença

concedida, viabilizando a minha participação em cada etapa do curso de Mestrado.

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Às vezes, nesta vida, algumas pessoas com as quais cruzamos em determinados momentos, nos "ensinam coisas" ou nos "passam sensações", que carregamos para sempre. E foi

assim que, com o autor objeto da sua pesquisa, por ironias do destino, assimilei a potencialidade da brincadeira e da fantasia,

assim como a sabedoria de guardar das pessoas aquilo que com elas se vivenciou de melhor, mesmo quando os

acontecimentos nos deixam de cabeça para baixo! Guarde, então, na sua lembrança, o que se viveu com elas de melhor e

de belo. Isso alimenta a alma! Desejo que você permaneça forte, determinada e de trato tão suave diante do outro...Que a

sua pesquisa seja um veículo para abrir novas portas, novos mundos e, principalmente, para possibilitar novos encontros!

(Junia Barreto)

Acredite é hora de vencer, essa força vem de dentro de você. Você pode até tocar o céu, se crer. Acredite que nenhum de

nós já nasceu com jeito pra super-herói, nossos sonhos a gente é quem constrói. É vencendo os limites, escalando as

fortalezas, conquistando o impossível pela fé. Campeão, vencedor. Deus dá asas, faz teu vôo. Esta fé que te faz

imbatível te mostra o teu valor. Tantos recordes, você pode quebrar, as barreiras você pode ultrapassar e vencer.

(Jamily Oliveira)

Como disse alguém (Dostoiévski, se não me engano), mesmo que me provassem de maneira incontestável que Jesus Cristo

jamais existiu, eu continuaria acreditando nele. Sou um homem de fé. Creio em Deus, ponto final.

(Fernando Sabino)

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RESUMO

Este trabalho consiste numa análise, fundada nos postulados teóricos de Mikhail Bakhtin, sobre o romance O encontro marcado, do escritor Fernando Sabino, com o objetivo de apreender como se manifestam o dialogismo e a polifonia nesta narrativa. Em um primeiro momento, são analisados os diálogos da narrativa com as esferas religiosas e literárias, instâncias de formação do homem, na qual o plurilinguismo, a paródia e a estilização assumem a forma de dialogismo, utilizados por Sabino como recursos literários para evidenciar uma autoconsciência narrativa. Posteriormente, aborda-se a questão da polifonia, discutindo-se o lugar ideológico do narrador e as vozes sociais que se entrelaçam nos conflitos das personagens, numa vivência em que tempo e espaço são indissolúveis e fazem parte da visão de mundo das personagens. Por fim, discute outro aspecto da polifonia: a formação da autoconsciência do protagonista, que se constitui pela relação com o outro. Ao mesmo tempo em que esta última abordagem finaliza os tópicos analisados, reforça a ideia de que as vozes sociais no romance O encontro marcado, se manifestam numa tessitura dialógica e polifônica. Para tal empreendimento, são fundamentais as contribuições teóricas do pensador russo Mikhail Bakhtin e de estudos que aprofundam suas investigações, bem como o diálogo com a fortuna crítica do escritor Fernando Sabino. Valendo-se do método crítico-analítico, buscou-se o ponto de unificação da análise dos três capítulos no propósito de analisar as vozes sociais no romance O encontro marcado, contudo explorando a temática sob os seguintes aspectos: diálogos com a Bíblia e a tradição literária; perspectivas polifônicas na narrativa; e formação da autoconsciência da personagem central. Atendo-se ao estudo das formas de dialogismo e polifonia na constituição do romance de Sabino, apreende-se que o dialogismo se manifesta num jogo intertextual, no qual as relações discursivas se dão pelo confronto com a palavra do outro; a polifonia se manifesta num jogo plurivocal, ou seja na multiplicidade de discursos das vozes sociais de seu narrador e de suas personagens que evidenciam suas posições ideológicas. A autoconsciência narrativa confirma o caráter dialógico e polifônico do romance de Sabino, que por sua vez explora a autoconsciência do sujeito pelo olhar do outro, numa sempre cisão entre passado-presente, tradição-renovação, materialismo-fé. PALAVRAS-CHAVE: O encontro marcado. Dialogismo. Polifonia. Cronotopo.

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ABSTRACT

This work is anlysis, based on the theoretical postulates of Mikhail Bakhtin, on the romance O encontro marcado, of the writer Fernando Sabino, in order to learn how to express the dialogism and polyphony in this narrative. At first, we analyze the narrative of dialogue with the religious and literary spheres, decision-making of man, in which multilingualism, parody and styling take the form of dialogism, as used by Sabino literary devices to show a self-narrative. Subsequently, it addresses the question of polyphony, discussing the place of the narrator's ideological and social voices that intertwine in the conflicts of the characters in a living that time and space are inseparable and are part of the worldview of the characters. Discusses also another aspect of polyphony: the formation of self-consciousness of the protagonist, which is the relationship with the other. While the latter approach concludes the topics discussed, reinforces the idea that social voices in the romance O encontro marcado, manifested in a dialogical and polyphonic texture. For this project, are fundamental theoretical contributions of the russian thinker Mikhail Bakhtin and studies that deepen their research, and dialogue with the critical fortune of the writer Fernando Sabino. Taking advantage of the critical-analytical method, we sought the rallying point of the analysis of three chapters in order to consider the social voices in tnovel the romance O encontro marcado, however, exploring the theme from the following: dialogue with the Bible and literary tradition; polyphonic perspectives in the narrative, and formation of self-consciousness of the central character. Sticking to study the forms of dialogism and polyphony in the formation of the Sabino´s romance, it is inferred that the dialogue is a clear intertextual game, in which discourse relations are given by comparison with the other word; the polyphony is manifested in many voices game, the multiplicity of discourses of social voices of its narrator and his characters to reveal their ideological positions. Self-consciousness narrative confirms the character of dialogue and the polyphonic Sabino´s romance, which in turn explores the subject's self through the eyes of another, always a division between past-present, tradition-renewal, materialism-faith. KEYWORDS: O encontro marcado. Dialogic. Polyphony. Chronotope.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10

1 DIÁLOGOS EM O ENCONTRO MARCADO .........................................................25

1.1 Diálogos com a Bíblia: o discurso religioso como instância de formação

do homem ................................................................................................................31

1.2 Diálogos com a tradição literária I: a literatura como agente de formação ..........47

1.3 Diálogos com a tradição literária II: a autoconsciência narrativa .........................60

2 PERSPECTIVAS POLIFÔNICAS NA NARRATIVA DE

O ENCONTRO MARCADO ......................................................................................73

2.1 O lugar ideológico do narrador: uma voz reconhecível ? ....................................76

2.2 Tempo, espaço e vozes sociais: uma via cronotópica ........................................85

3 A FORMAÇÃO DA AUTOCONSCIÊNCIA DO PROTAGONISTA

EDUARDO MARCIANO ..........................................................................................108

3.1 A imagem de Eduardo pelo olhar do outro ........................................................110

3.2 Interiorização do múltiplo em um só indivíduo ...................................................117

3.3 A dualidade do sujeito na narrativa ...................................................................127

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................134

REFERÊNCIAS .......................................................................................................138

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INTRODUÇÃO

A publicação do romance O encontro marcado (1956), objeto de análise

do presente estudo, projetou o escritor Fernando Sabino no cenário dos grandes

nomes da literatura brasileira no século XX. Obra publicada também em outros

países, como Holanda, Alemanha, Espanha, Portugal e Inglaterra. No Brasil, após

54 anos de seu lançamento, O encontro marcado está na octogésima segunda

edição e já foi adaptado para o teatro no Rio de Janeiro e em São Paulo. Sabino foi

vencedor em 1962 do Prêmio Cinaglia do Pen Club do Brasil com o livro de crônicas

A mulher do vizinho; em 1980, do Prêmio Jabuti com o romance O grande

mentecapto; em 1981, do Prêmio Golfinho de Ouro na categoria de Literatura; e

ainda, em 1999, recebeu o maior prêmio literário do Brasil, o “Machado de Assis”,

pelo conjunto de sua obra. Além de romancista, Sabino foi, inicialmente, renomado

cronista, sendo um dos mais lidos no país até hoje. Escreveu mais de cinquenta

livros, entre eles os romances: O grande mentecapto (1979)1, O menino no espelho

(1982) e Movimentos simulados (2004); as novelas publicadas na coletânea A faca

de dois gumes (1985) e em Duas novelas de amor (2000); os contos reunidos no

livro O homem nu (1960)2 e as crônicas reunidas em Deixa o Alfredo falar! (1979).

Compõe também a sua obra a autobiografia O tabuleiro de damas (1988); as cartas

que trocou com os escritores Mário de Andrade, Clarice Lispector e com o Quarteto

mineiro3; a recriação literária Amor de Capitu (1988); um dicionário de lugares-

comuns; livros de literatura infantil; peças teatrais e filmes documentários.

Alamir Corrêa (2007), por sua vez, alerta que essa obra consagrada

editorialmente vem merecendo da crítica acadêmica pouca ou nenhuma atenção.

Ele atribui isso ao fato de, provavelmente, haver uma preocupação, por parte das

academias, em não abordar autores ainda vivos, sendo raras as análises formais de

estudiosos e críticos literários sobre esses autores. A opinião expressa por Corrêa

encontra-se na dissertação de mestrado produzida por ele em 1982, quando Sabino

1 Este livro serviu de argumento para o filme com o mesmo nome, dirigido por Oswaldo Caldeira e com Diogo Vilela no papel principal. O filme O grande mentecapto foi premiado, em 1989, no Festival Internacional de Gramado e, em 1990, no Festival Internacional de Cinema em Washington. 2 Livro que reúne diversos contos de Sabino, entre eles o que dá título ao livro foi adaptado para o cinema duas vezes: a primeira, em 1968, pelo diretor Roberto Santos; e, em 1997, por Hugo Carvana. 3 Quarteto mineiro de escritores integrado por Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos.

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ainda estava em atividade literária4. Ela foi publicada em livro sob o título de Manga

Sabina e outras memórias, no qual o autor faz uma análise sociológica de dois

romances de Sabino, estabelecendo um paralelo entre as obras O encontro

marcado e O grande mentecapto. Para o crítico, a personagem central Viramundo

representa Eduardo e vice-versa; ambos não se adaptam ao sistema político, ambos

amam uma pessoa diferente de sua condição social. Essa fixação pelo poder,

segundo o autor,

é, talvez, um elemento presente em toda a obra de Fernando Sabino. Parece, realmente, existir marca profunda da inadaptação dele e de sua geração para com um cerceamento da liberdade política e filosófica. Por conseguinte Viramundo é o sonhador, Eduardo o homem angustiado; a base de ambos é o amor, que veem ruir por divergência social e de ideal em relação a suas amadas. (CORRÊA, 2007, p.74)

Fábio Calvetti compartilha do pensamento de Corrêa, ao asseverar que “a

ficção de um dos escritores brasileiros mais marcantes do século 20 ainda busca

alcançar seu reconhecimento” (2008, p. 23). Calvetti aponta que Sabino, enquanto

consagrado como um dos principais cronistas, por reinventar o gênero, ao lado de

Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, não recebeu a mesma atenção, no que

tange seus romances e novelas. Tornando-se tema secundário ou mesmo ausente

nas esferas acadêmicas e literárias.

Autor brasileiro de origem mineira, Sabino é considerado um escritor de

estilo límpido e fluente. Fábio Lucas (1996), no ensaio A ficção de Fernando Sabino,

analisa a produção do autor em volta de dois eixos, o do humor e do temor, que se

entrecruzam no seu primeiro livro de contos Os grilos não cantam mais (1932).

Segundo Lucas, o estilo ágil, o tratamento direto da matéria, o diálogo

desconcertante, a prosa bem-humorada e a segmentação da intriga são traços

característicos que continuam presentes em outras narrativas de Sabino. Isso faz

com que autores, como Corrêa, apontem na produção literária de Sabino, a

bifurcação entre estas duas vertentes: a literatura séria e a sátira. Para este crítico,

“a aspiração de Sabino era a mais alta possível, descrever e explorar dramas

existenciais, o misticismo, a psicologia do ser; entretanto, a sátira e o humor

cotidiano também estavam presentes em sua obra” (2007, p. 31). Corrêa já faz um

prenúncio da forma dialogal exercida por este ficcionista, ao considerar que a

4 Fernando Sabino faleceu em onze de outubro de 2004.

12

narrativa literária de Sabino abre espaço para a variedade de formas de expressão

presente na prosa romanesca, como agregar diferentes formas de linguagem.

Lygia Marina Moraes, no mesmo sentido, também aponta duas

tendências manifestadas nas primeiras obras de Sabino – a de retratar os aspectos

pitorescos da vida cotidiana e a de analisar os sentimentos interiores –, como

acontece em A marca (1944), uma novela memorialística, altamente introspectiva; já

em A cidade vazia, uma coletânea de crônicas publicada em 1950, segundo a

autora, Sabino inicia a fusão das duas tendências. Moraes ressalta que com O

encontro marcado, Sabino “atinge o seu pleno amadurecimento, realizando a fusão

definitiva das duas tendências que vinham até então se alternando na sua carreira

literária” (1982, p.13).

Sobre o estilo literário de Sabino, Marcos Aurélio Matos, no ensaio

Fernando Sabino: o verbo como aventura, aponta a pertinência e o ímpeto criador

de uma maneira própria de organizar impressões e transmiti-las sob a tensão

constante de um estilo inimitável. A força do estilo de Sabino, segundo Matos, atrai

ao centro da prosa, “prende-nos sem que saibamos por quê, trata-se de uma força

mágica centrada basicamente na sua componente musical: a musicalidade de um

estilo é a qualificação superior de sua oralidade” (1996, p. 32). Por oralidade, Matos

depreende “a capacidade que tem o escritor de transfundir na prosa a sonoridade da

voz. É o diálogo humano transposto para a palavra escrita” (id. ibid., p.33). Contudo,

neste diálogo, como observamos em O encontro marcado, não se apresenta,

necessariamente, uma ideia pronta e acabada, mas uma cosmovisão de um

presente em devir. No romance, esclarece Matos, “o autor procura estruturar as

várias correntes que atravessam o seu meio social, como força apta à criação de

personagens, visando à reorganização de um mundo que se desmantelava” (idem,

p. 36). Matos conclui suas observações sobre O encontro marcado afirmando dois

aspectos: entre outras dimensões constitutivas de sua temática, o livro tem caráter

confessional, trata-se de “um livro profundamente religioso – não no sentido

ritualístico” (idem, p. 37); o segundo refere-se, mais uma vez, à dialogicidade, que

para o autor, confere certa confiança às vozes das personagens, por ressaltar os

conceitos, as confissões, a troca de emoções entre as personagens. Segundo o

crítico, “há uma carga notável de diálogos – forma específica de credibilidade das

personagens e espinha dorsal desta obra” (idem, p. 37).

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O aspecto da religiosidade em O encontro marcado é também abordado

por Dulce Maria Vianna Mindlin (1996). Segundo a autora, Eduardo Marciano,

personagem principal da narrativa, tem como pontos-chave a formação religiosa, a

angústia propiciada pela noção de pecado e um sentimento estético que marca os

anos de mocidade e a transformação do sentimento estético em problema ético, na

idade adulta. Uma espécie de racionalismo ético do qual, segundo a autora, provém

a disciplina, a ordem, a verdadeira obstinação com que Marciano se consagra ao ato

de escrever. Mindlin sugere ainda, o “encontro marcado: com Deus, consigo mesmo,

com a vida, com a ficção, com o romance que, certamente, após tantos desacertos,

poderia afinal emergir dessa reconciliação” (1996, p. 61).

Abordando outro aspecto, Lucilia de Almeida Neves Delgado (2007), em

Tempo de reencontro em Fernando Sabino: memória, literatura, história e

modernidade, observa o tema da temporalidade. A autora argumenta que Sabino

retrata a experiência dos jovens mineiros, mostrando como esses jovens transitam

em dois cenários urbanos. Tal abordagem é desenvolvida através de uma análise

histórico-literária do livro O encontro marcado. Segundo a autora, Sabino

desenvolveu um diálogo crítico com o tempo histórico no qual produziu seus textos,

por traduzir em sua prosa os sentimentos conflituosos da juventude de um tempo de

transição e renovação.

Eduardo Portella, por sua vez, ao se referir à maneira lúcida e rígida como

Sabino situa-se historicamente afirma que, até então, “poucos romances foram tão

violentamente sacudidos pela problemática do tempo e do espaço como O encontro

marcado” (1959, p.113); o crítico ressalta, ainda, o caráter filosófico do romance,

apontando que as questões expostas na narrativa “são os problemas da condição

humana, do homem e da vida” (id. Ibid., p.114). Já Haroldo Bruno (1986) ressalta

que a narrativa de Sabino é um romance de ideias, sem ser de teses; segundo

Bruno, o escritor mineiro escreveu sobre o desentendimento essencial do homem, a

incoerência e o absurdo das coisas, uma narração de hábitos e costumes da

sociedade contemporânea. Por sua vez, João Etienne Filho (1986) ressalta que,

como todo romancista que se preza, Sabino “colheu seus seres à vida real, mas

como todo romancista de talento, transfigurou a realidade”; segundo este autor,

Sabino fez as personagens reais moverem-se em ambientes de pura fantasia e

atribui fatos reais a personagens fictícias. O valor do seu romance, afirma Filho, “não

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poderá ser julgado em função desta maior ou menor fidelidade a fatos e pessoas

reais, valerá, ou não valerá, por si mesmo”.5

Adonias Filho (1958), ao analisar as novelas de A vida real, aponta que

há uma inter-relação da linguagem com a ideologia. No livro, destaca-se a novela O

homem feito, na qual se mostra o encadeamento do ser humano na temporalidade

universal. O crítico tece o seguinte comentário: “a linha do ficcionista – em todos os

elementos plásticos um autor moderno – entrosa-se no trono legítimo da ficção

contemporânea” (p.150). Temístocles Linhares (1978) ressalta que O encontro

marcado é um romance moderno, atribuindo esse caráter ao fato de não se

encontrar nele a tendência descritiva, que, segundo o crítico, se manifesta na

maioria dos romancistas tradicionais. Como exemplo, Linhares esclarece que muito

mais razoável seria encher um quarto de conversa, de discussão, uma vez que o

mais anódino diálogo lhe emprestaria outro interesse, do que cansar o leitor com

detalhes fastidioso e impedi-lo de participar dos acontecimentos, arrematando “quem

não quer ter razão na discussão, e essa razão justamente servida pelas palavras de

contato com o pensamento comum de todos” (p. 37).

Segundo as perspectivas críticas expostas, observa-se uma tendência

dos críticos: a de colocar Sabino como escritor modernista. Segundo Lucas (1996),

O encontro marcado é uma das obras mais afortunadas da moderna literatura

brasileira. Ao comentar sobre o casamento da personagem central com a filha de um

ministro, diz o crítico:

[...] ao contrário da versão romântica, aqui não representa o fim feliz, aquele programado para glorificar a família, base da sociedade burguesa. Antes, mais se aproxima do lado mórbido do realismo, não obstante a prosa de Fernando Sabino, a realização de sua concepção romanesca, a velocidade de sua narrativa e a fragmentação dos episódios testemunhem em O encontro marcado o inteiro compromisso com a modernidade (LUCAS, 1996, p. 28).

Tristão de Athayde (1996, p. 73), ao se referir à narrativa O grande

mentecapto (1979), aponta que esta obra “já nasce marcada pelo sinal de

permanência comum aos clássicos deste pós-modernismo de fim de século”. O

crítico coloca Sabino no quadro do pós-modernismo da literatura brasileira,

5 Os textos críticos (1986) encontram-se, sem indicação de páginas, na 50ª edição do romance O

encontro marcado.

15

ressaltando que Sabino faz parte da primeira geração pós-modernista6, ao lado de

romancistas como Guimarães Rosa, que lançou as letras brasileiras modernas, na

gangorra entre o sertanismo e o universalismo. Para Athayde, essa “linha literária

inclui todo um rosário de grandes escritores, de que Fernando Sabino é, sem dúvida,

um dos mais representativos” (p.73).

Sabino apresenta uma obra inovadora, e não nos interessa, aqui, atrelá-lo

ao modernismo ou pós-modernismo, posto que uma grande obra é eterna e sua

leitura ao longo do tempo traz sempre uma visão de mundo. Tais pressupostos estão

também presentes na análise de Joel Pontes (1960), ao dizer que, em certos pontos,

como no uso de processos estilísticos,

Sabino liga-se ao modernismo, ou faz-se neomodernista, como o chamaria um dos nossos mais respeitáveis críticos, por outro lado há no seu romance tanta coisa original que a perplexidade se impõe. Ele não é certamente um modernista, mas ainda não é outra coisa. Será talvez um intermediário, com todas as incertezas e dificuldades daqueles que ainda não se atrelam a um modo de expressão coletivo, característico de uma posição cronológica e filosófica (p.145).

Pontes ressalta que, enquanto essa flutuação literária é visível em

Sabino, a fixidez política não o é, uma vez que O encontro marcado é obra de

protesto que “retrata o que há de mais comum no entusiasmo dos jovens literatos

provincianos e o que há de mais vulgar na média burguesia carioca” (p.156). Para o

crítico, O encontro marcado, neste sentido, não é apenas um romance social, “seu

lugar é solitário, pela técnica e pelos conflitos humanos” (idem).

Antonio Candido (1996) comenta sobre sua própria postura, enquanto

crítico, ao dizer que é primordialmente um leitor de significados, cujo impacto,

porém, segundo o autor, depende dos meios. Candido faz esta auto-análise, ao

observar a técnica de Sabino, qualificada pelo crítico como performance impecável

que força a leitura vertiginosa, mantendo acesa a imaginação:

a alusão, a elipse, o corte, o intercalamento que você usa com abundância e maestria criam movimento; no seu livro não há repouso nem pausa; tudo é deslocamento, afloramento, passagem, erupção. É o moto-contínuo da alma ofegante – e assim eu o definiria, pois

6 O “pós-moderno” a que se refere Athayde traz um duplo sentido: pode se referir a uma terceira geração do Modernismo, uma de suas três fases apontadas pela crítica acadêmica. Ou ainda, uma referência à discussão, se ainda estamos vivendo o período modernista na literatura ou se já se pode falar em Pós-Modernismo.

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sente-se o tempo todo ofegar a alma do personagem desabalado entre as coisas, as pessoas e as situações (1996, p. 54).

A crítica literária da obra de Sabino comumente aponta para questões,

como fé, esteticismo, ideologia, geração, autobiografia, formação, memória,

existencialismo cristão, técnica, temporalidade, metalinguagem. Flora Christina

Bender, por exemplo, ao comentar sobre aspectos da obra de Sabino, ressalta que

ele não gostava de termos críticos intelectualizados; a autora ainda declara: “mas,

desobedecendo-o (e talvez contrariando-o), pode-se dizer que muito do que escreve

tem função metalinguística” (1981, p. 93). Carlos Lacerda (1986) também toca em

pontos cruciais para a nossa análise, como a questão da multiplicidade de vozes

presentes no homem; para ele, o romance “não parece um encontro, mas vários,

pois o homem não é um, mas vários. A multiplicidade do homem explode, por vezes,

nesse romance, com estrondo de festejo ou gemidos de bicho ferido”.

Antônio Houaiss considera Sabino o mestre dialogador, ressaltando que o

estilo do escritor mineiro “sendo tão claro, tão lúcido, tão fluente, tão acessível, tão

desarmado, tão pacífico, tão doce e (aparentemente) espontâneo, seja tão

pertinente, contundente e denunciador” (1996, p. 65). Por sua vez, Jorge de Sá

destaca os ensinamentos da obra de Sabino de “que a vida diária se torna mais

digna de ser vivida quando a convivência com outras pessoas nos leva a olhar para

fora de nós mesmos, descobrindo a beleza do outro” (1996, p. 68). Enquanto José

Carlos B. Moreira (1986) ressalta que Sabino reconhece a complexidade humana; o

protagonista de O encontro marcado, segundo Moreira, é um angustiado, algo que

permanecerá, enquanto Eduardo não se tornar outro homem. Já, Luiz Martins (1986)

ressalta que, deliberadamente, o escritor misturou tudo, fazendo um coquetel de

personagens; numa só figura, sintetizou traços de duas ou três e deformou algumas;

Martins enfatiza que Sabino “não retratou ninguém. Vivos, reais, autênticos, são o

cenário, o tom, a atmosfera, os gestos, as atitudes, as palavras”, em O encontro

marcado.

O que examinamos das avaliações críticas trazem aspectos que

acompanham a recepção crítica de Sabino. Assim, do ponto de vista de nossa

temática, consideremos importantes as observações a respeito da dialogicidade na

obra de Sabino, uma vez que expressam não apenas a tipicidade das personagens

de Sabino, mas sua posição consciente, a sua cosmovisão em situação temática

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interrogativa e vinculadora do diálogo, na qual as vozes sociais ressoam,

plenamente, na dimensão espaço-temporal.

Nesse sentido, ressaltamos a pertinência do texto de Angela Sánchez

(2006), publicado na revista eletrônica Recanto das letras. Através de uma

metodologia de análise comparativa, Sánchez aponta as similitudes entre a vida da

personagem central de O encontro marcado, a lenda de Sísifo e o herói do filme

Matrix. Este texto traz aspectos elucidativos sobre um dos pontos de nossa análise,

uma vez que ressalta o processo de autoconsciência das personagens centrais das

obras citadas. Contudo, a autora relaciona este processo através de outro olhar

teórico, uma vez que traz à tona a questão da individuação. Sánchez, comentando

Carl Jung, declara: “Individuar-se significa fazer o ego (a consciência da superfície) ir

ao encontro desse centro ordenador. Isto representa adquirir autonomia, tornar-se

uma totalidade psicológica, ‘una e centrada’, sem divisões internas, autoconsciência”

(2006, p.1). Sánchez, numa análise sucinta, expressa a questão da autoconsciência

da personagem Eduardo como resultado do processo de individuação.

No entanto, em nosso trabalho, pautado nos pressupostos do pensador

russo M. Bakhtin7, analisaremos, no capítulo três, a autoconsciência enquanto

resultado do encontro do ser social com o outro, que resultaria na sua consciência

de sujeito dual. Marlene Teixeira (2008), em conformidade com a concepção

bakhtiniana de que o sujeito só pode ser objeto da teoria sob a condição de ser da

linguagem, ressalta que não há em Bakhtin “um sujeito fundado na ideia de um ego

individuado e soberano” (p. 229), uma vez que ele só pode ser apreendido na

linguagem a partir da vivência no espaço do limiar com múltiplas vozes. “O sujeito

bakhtiniano advém por uma presença, mesmo ausente, que atravessa

constitutivamente o um” (TEIXEIRA, 2008, p. 233).

Nossa intenção em delinear as posições críticas sobre a literatura de

Sabino é expor as diferentes perspectivas que se inserem na fortuna crítica do autor,

que nos servem de apoio. Seus críticos e comentadores afirmam que a imagem de

leveza, frequentemente associada à obra de Sabino, é um equívoco, pois a crise

religiosa e ideológica está no cerne dos seus livros mais importantes. Ainda que não

7 Escrita originalmente em russo, nos anos de 1920, a obra de Bakhtin foi traduzida das edições francesas ou inglesas para o português. Contudo, nos últimos anos, novas traduções surgiram direto do russo para o português, o que, obviamente, não invalida a possibilidade de contradições, uma vez que cada língua, tomando-se o termo na acepção de idioma, tem as suas peculiaridades. Isso, porém, não compromete o entendimento essencial das concepções bakhtiniana.

18

enveredemos nossa análise por este caminho, a imagem de escritor fácil deve-se,

provavelmente, às crônicas que tornaram Sabino mais conhecido e ao estilo

jornalístico que, às vezes, se impõe ao romance. No entanto, como pontua Paulo

Mendes Campos, “trata-se de um inelutável desencadeador de equívocos, um

catalisador de mal-entendidos, um aglutinador de inesperados, um polarizador de

duplos-sentidos, trata-se de Sabino” (2003, p. 8).

Era mais do que tudo, e continua sendo, mesmo após seu falecimento,

um raro escritor formador de leitores e não apenas para a sua literatura, fazendo jus

ao título da série de crônicas lançada nos anos de 1970, “Para gostar de ler”,

referência de leitura em escolas de ensino fundamental e médio. Este foi o nosso

primeiro contato com o escritor mineiro, infelizmente apenas quando começava a

atuar no Magistério, e felizmente quando começava a compreender, adulta, a

criança que estava presente em mim, sentimento similar ao de Fernando Sabino,

que produziu para a sua própria lápide: “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu

homem e morreu menino”. Muito tempo depois, nos deparamos com a obra O

encontro marcado, graças ao seu empréstimo por um amigo. Ficamos por dois anos

com o livro, devolvendo-o mais tarde, ao adquirir a edição comemorativa de 50 anos

de publicação do romance de Sabino. Encantada pelo autor, por sua ficção crítica e

profunda, ao observar que havia poucos trabalhos acadêmicos sobre a narrativa O

encontro marcado, vimos a oportunidade de adotá-la como objeto de estudo para

esta dissertação.

De certa forma, o presente trabalho representa uma continuação do

nosso projeto iniciado em 2007, para ingresso no mestrado em Letras-UFPI.

Permanecemos com o mesmo objeto de estudo, contudo, ao longo da pesquisa,

novos indícios e possibilidades de análise foram surgindo. Fomos acrescendo novas

categorias ao nosso aporte teórico, não para impingi-las à obra em estudo – uma

vez que na própria leitura do romance parecem saltar aos nossos olhos as

concepções de Bakhtin sobre o gênero romanesco – e sim para ampliar as

perspectivas de análise da narrativa sabiniana.

Já existem estudos sobre a obra de Sabino analisada à luz da teoria

bakhtiniana da carnavalização8, como o trabalho de dissertação, publicado em livro,

realizado por Giovanna Almeida (2006) com o título O carnaval nas Minas Gerais:

8 Categoria bakhtiniana analisada, a partir da obra do escritor francês François Rabelais, no livro A

cultura popular na Idade Média e no Renascimento (2000).

19

uma leitura bakhtiniana de O grande Mentecapto; e a análise, sobre a novela A

nudez da verdade, feita por Marcelo Rosa (2007) em A nudez na obra de Fernando

Sabino – o dito e o não-dito. Desta forma, estamos apenas trilhando caminhos já

abertos por outros estudiosos, diferentes das análises intimistas ou das análises de

crônicas, nas quais se apóiam, provavelmente, a maioria dos críticos especializados

ou pesquisadores pós-graduados para comentar a obra de Sabino, o que é muito

interessante, por se tratar de uma das molas-mestra deste autor.

Numa entrevista a Edla Van Steen, Sabino comenta que a fronteira entre

os gêneros está cada vez mais flexível, por isso não sabe designar certos textos que

escreve, se são contos ou crônicas, o que para ele é irrelevante. Em outro momento,

Sabino comenta que o romance O encontro marcado levou mais de dois anos para

ser escrito, reescrevendo-o por três vezes, com vários descaminhos. Chegou a

escrever mil e quatrocentas páginas para aproveitar apenas uma parte delas. Ao

falar sobre o processo de criação, Sabino declara “toda experiência de criação é [...]

uma novidade. O escritor diante do papel em branco deve ser sempre um estreante.

É sempre uma aventura, como se fosse pela primeira vez” (STEEN, 1981, p.192).

Sabino considera que o escritor “é um desajeitado, um deficitário, um

descompensado, que só chega ao seu próprio tamanho na hora em que realiza a

sua obra” (ib. ibid).

Embora tenhamos analisado a contribuição de vários críticos na

apreensão das obras de Sabino, compartilhamos do pensamento de Calvetti e

Corrêa: ainda não se deu, por parte da crítica, a devida e merecida atenção ao

universo artístico deste autor mineiro. Para se ter uma ideia, conforme dados

fornecidos pela CAPES9 à revista Conhecimento prático: literatura10, apenas onze

dissertações de mestrados, exclusivamente sobre Sabino foram defendidas nos

últimos vinte anos e constam registrados no banco de teses. No entanto, atualmente

apenas dois trabalhos se encontram disponíveis no sistema on-line: o de Marcelo

Rosa (2007), citado anteriormente, e a pesquisa de Suzana Costa (2007), Encontro

marcado com a crônica no romance de Fernando Sabino. Algumas leituras se

9 Atualmente, no banco de teses da CAPES, encontram-se também registrados mais oito estudos envolvendo a obra de Fernando Sabino e outros autores como as pesquisas: Machado de Assis e Fernando Sabino: a oposição dos narradores, de Lílian Toledo (2006); Dom Casmurro em movimento: suas traduções-reescrituras em São Bernardo e Amor de Capitu, de Ariane Cavalcanti (2009); entre outras. 10 Informação contida na matéria de Fábio Calvetti, “Qual o lugar de Fernando Sabino na Literatura”, editada pela revista Conhecimento prático: Literatura, nº 22, p. 53, 2008.

20

aproximam de nossa análise de O encontro marcado, como a pesquisa de Costa

que utiliza um diversificado material biográfico, histórico e literário, evidenciando de

forma muito peculiar a fortuna crítica de Sabino. Contudo, a autora não explora em

seu exame a dialogicidade, o plurilinguismo, a polifonia, a cronotopia, envoltos nas

esferas religiosa, literária e política-social. Traz uma leitura de hibridização entre

romance e crônica, o que neste item central de sua pesquisa, em termos de análise,

não atingiu plenamente o objetivo proposto. Preferiu a autora enfatizar no romance o

aspecto autobiográfico e o fracasso de uma geração.

O que chama atenção é que as duas pesquisas citadas relacionam a obra

sabiniana à teoria de Bakhtin, o que, provavelmente, apontaria para uma espécie de

projeto literário de Sabino, uma vez que, ainda, nas obras O grande mentecapto,

cujo enredo instala o choque entre o sagrado e o profano, e O menino no espelho,

ao narrar a história de um garoto e seu duplo, encontramos alguns aspectos da

teoria bakhtiniana. No entanto, há uma rejeição, por parte de Sabino, aos modismos

formais de composição do romance, apesar de ter sido leitor de teoria literária, o que

se observa na sua postura crítica de autoconsciência narrativa. Postura pertinente,

uma vez que seu processo de criação literária poderia sofrer influências, o que não

significa que, de fato, isto não tenha ocorrido. Estas inferências são apenas para

situarmos a obra de Sabino num contexto dialógico e polifônico, uma vez que é lícito

pesquisadores, frequentemente, adotarem concepções bakhtinianas a fim de

analisarem a obra de Sabino, mas seria inaceitável – caso fosse possível – a escrita

de uma narrativa de acordo com a teoria bakhtiniana do romance, ou qualquer outra

teoria.

Desde a sua publicação, em 1956, a recepção do romance O encontro

marcado está envolta a comentários de jornalistas, professores universitários,

escritores e da crítica literária especializada. O que abre caminho para novas

análises do romance de Sabino, que narra a história de Eduardo Marciano,

personagem que, em sua trajetória, vai traduzindo os desejos e conflitos de uma

juventude que se envolvia em confrontos discursivos, como reflexo de um período

repressor, nos quais confluem, corroboram ou contestam outras ideias. Esta

narrativa, considerada por alguns críticos um “documento romanceado de uma

geração” (CORRÊA, 2007, p.13), será abordada neste estudo analítico como obra

que expressa a relação discursiva entre vozes sociais. Sabino, numa arquitetura

dialógica e polifônica, utiliza estratégias de retomada ou ruptura de discursos,

21

tecendo fios que propiciam o processo de autoconsciência da personagem central.

Candido (2004, p. 3) assim define Sabino: “olhar infalível para os pormenores

expressivos e uma capacidade prodigiosa de invenção verbal”.

O título do romance, O encontro marcado, metaforicamente faz alusão à

ideia de vozes que se encontram, título muito sugestivo por simbolizar um possível

diálogo de vozes plenivalentes que se deixam auscultar. De certa forma, temos aqui

a sobreposição da temática do dialogismo e da polifonia, que envolve, ainda, a

interligação com outras noções, como plurilinguismo, hibridização, paródia,

estilização, cronotopo, vozes, duplos, excedente de visão. Trata-se, portanto, de

uma concepção ampla, com várias possibilidades e formas de realização.

Fazer coexistir, no mesmo espaço de estudo, dois grandes expoentes da

atividade da cultura humana não se constitui uma tarefa das mais símplices. No

entanto, Bakhtin é um teórico aberto a múltiplas possibilidades, o que nos deu certo

conforto para confirmar, contrapor e apresentar outras possibilidades de relações e

imbricações de conceitos, corroborando a ideia de Bakhtin de que “pensar implica

interrogar e ouvir, experimentar posicionamentos, combinando uns e

desmascarando outros” (2006a. p. 95). Portanto, o referencial teórico do presente

estudo são as contribuições provenientes da teoria do romance, de Bakhtin, além de

contribuições de estudiosos das concepções bakhtinianas ou teóricos que

aproximam sua teoria do círculo de Bakhtin; lançamos mão, ainda, da recepção que

compõe a fortuna crítica de Sabino para a análise de como o autor, em O encontro

marcado, constrói uma narrativa dialógica e polifônica, na qual vozes sociais se

fazem auscultar plenas de significado.

Segundo Bakhtin (1998), a orientação dialógica, fenômeno comum a toda

forma discursiva, aponta para a intersecção inevitável entre os vários discursos a

caminho de um mesmo objeto. Para o teórico russo, “apenas o Adão mítico que

chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado,

somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua-orientação

dialógica do discurso alheio para o objeto” (p. 88). É preciso ressaltar, ainda, outro

conceito, para entendermos o processo de construção do romance de Sabino. A

polifonia, termo oriundo da música, consiste no encontro de várias vozes, música

que tem duas ou mais partes (ou vozes) soando de forma simultânea.

Metaforicamente, empregado por Bakhtin (2006a), o conceito literário de polifonia

consiste na multiplicidade de vozes plenivalentes num concerto dissonante, ou seja,

22

essas vozes são modos de presença no mundo. Para o pensador russo, no romance

polifônico, as personagens são ideólogos, defendem pontos de vista que não,

necessariamente, são os do autor da obra. Bakhtin (2003, p.349), na análise da

narrativa do escritor russo Fiodor Dostoiévski, não emprega o termo vozes apenas

na acepção de altura, diapasão, timbre, mas também na acepção de ideia, pontos

de vista ou visão de mundo personificada em vozes, uma vez que Bakhtin concebe

que “o homem entra no diálogo como voz integral, participa dele não só com seus

pensamentos mas também com seu destino”.

As leituras críticas da obra de Fernando Sabino nos instigaram a analisar

o romance O encontro marcado. Assim, propomos a seguinte questão de análise, de

caráter abrangente: como se manifestam o dialogismo e a polifonia no romance O

encontro marcado, enquanto leitura de uma visão plural de mundo? Partimos da

hipótese de que, para a apropriação de significados nas relações discursivas do

romance de Sabino, estes dois processos, dialogismo e polifonia, são centrais para a

análise, pois estão imbricados na narrativa e ainda suscitam outras concepções de

análise como pressuposto importante para apreender as vozes sociais que se

expressam na narrativa O encontro marcado.

Desta forma, buscaremos responder a essas questões visando

demonstrar as relações discursivas do romance com esferas sociais; demonstrar

perspectivas polifônicas na narrativa; compreender o lugar ideológico do narrador;

analisar a atuação das vozes sociais na vivência da dinâmica tempo-espaço; e

apreender o processo de autoconsciência da personagem central numa construção

dialógica e polifônica.

Os capítulos são permeados por estas questões e objetivos norteadores.

Assim, ressaltamos que a presente pesquisa, como foco objetivo unificador, busca

apreender o dialogismo e a polifonia no romance O encontro marcado, verificando a

constituição da multiplicidade de vozes presente na narrativa. Dentro desta

perspectiva, Bakhtin se constitui como referência para a análise proposta, posto que

o princípio dialógico que permeia todo o seu pensamento é constitutivo da

linguagem e a condição do sentido do discurso.

Bakhtin nos propõe uma concepção dialógica da linguagem, a ideia de

que todo texto é na verdade um intertexto, atravessado pelo alheio, que traz no seu

interior o outro. Ao abordar o dialogismo no contexto literário, propõe como espaço

de existência da linguagem a intersubjetividade, em que o eu é formado socialmente

23

e a sua visão é fruto da relação com as outras pessoas, levando-se em

consideração que o homem é um ser social e, por conseguinte, a linguagem também

o é. Estas relações dialógicas sustentam o conceito de polifonia, dado que o

romance polifônico é dialógico, perpassado de vozes que assumem um caráter de

visões do mundo, de vivências num espaço-tempo, definindo-se pelo diálogo entre

os interlocutores e pelo diálogo com outros textos.

Na análise dos capítulos que compõem este trabalho, optamos por utilizar

excertos dos diálogos do romance O encontro marcado, por se tratar de uma

reconstituição das formas de falar das personagens, para que não se perda, deste

modo, nenhum tom, ou acento das vozes em plena liberdade de expressão com o

autor-contemplador (leitor). Este poderá tecer novos fios condutores de um grande

diálogo, novas interpretações e apreciações da obra enquanto objeto estético, na

qual uma das expressões estilísticas de Fernando Sabino incide numa prosa veloz,

exprimindo o próprio modo de vida das personagens do romance O encontro

marcado. Ainda, no que concerne aos procedimentos de análise, através de blocos

dialógicos, constituiremos episódios nos quais o protagonista Eduardo Marciano

apresenta-se na sua relação com outras personagens, vozes-ideia, que se

confrontam ou se conformam, e com cenários da narrativa sabiniana.

No capítulo que abre o trabalho procuramos mostrar os possíveis diálogos

em O encontro marcado, apontando o discurso religioso e o literário como agentes

de formação do homem, por entender que dentre as esferas discursivas que estão

presentes na narrativa, estas se sobressaem no papel formativo do protagonista

Eduardo Marciano. Os diálogos com a Bíblia e a tradição literária suscitam o uso do

discurso citado, recurso utilizado por Sabino para deixar fluir a visão de mundo dos

heróis, evidenciando a cultura e o meio literário no qual convivem. E, ainda, através

das relações dialógicas presentes na narrativa, é possível constatar fenômenos

discursivos que possuem um aspecto comum: o discurso é duplamente orientado, e

o fator essencial é a relação com o enunciado de um outro. Tais efeitos de

linguagem nos permitirão apreender a visão de mundo e a formação ideológica das

personagens. Pretendemos, ainda, no primeiro capítulo, investigar a autoconsciência

narrativa da obra O encontro marcado, uma vez que a função do escritor, bem como

o conceito de gênero e o fazer literário, além do jogo intertextual, são questões que

apontam para uma reflexão autonarrativa manifestada na dialogicidade desse

romance. Desta forma, consideramos que o romance O encontro marcado evidencia

24

relações dialógicas que instauram um olhar imbuído de uma visão crítica, com

tendências a ironizar o próprio processo de construção literária do romance.

No segundo capítulo, a nossa pretensão é analisar o romance O encontro

marcado apontando perspectivas polifônicas que constituem a narrativa sabiniana,

bem como apreender as vozes das personagens que se misturam à voz do sujeito

da enunciação, numa arena discursiva na qual o sujeito é refletido em múltiplos eus,

por meio das vozes sociais plenas de valor que se fazem auscultar nas relações

situadas no campo do discurso que é, por natureza, dialógico. Assim, numa primeira

instância, investigaremos a ideologia do narrador, discutindo se o romance é

desprovido ou não da voz do autor; ainda buscaremos perceber a atuação das

vozes sociais na vivência do tempo e do espaço pela via dupla – passado e presente

– dos sujeitos na narrativa. Não pretendemos, neste capítulo, esgotar as

especificidades em que consiste a categoria do cronotopo de Bakhtin, mas fazer

uma leitura das vozes sociais em O encontro marcado, expondo o contexto

sociopolítico e cultural no qual as personagens estão inseridas.

No último capítulo, buscamos desvelar a formação da autoconsciência de

Eduardo Marciano, o herói polifônico, por entender que O encontro marcado constrói

um espaço discursivo no qual a dualidade do protagonista constitui-se com base na

oposição entre dois polos: materialismo versus fé. No romance se confrontam

interdiscursos, numa orquestração polifônica de vozes que se mesclam com a voz

da consciência de Eduardo e colaboram para o dilema interior do herói. Buscou-se,

também, analisar a imagem de Eduardo pelo olhar de outras personagens, além da

própria interiorização dos discursos do outro em um só indivíduo. Observamos que a

personagem central evoca vozes que não se perderam em sua consciência e que

penetram no discurso do herói, participando do processo de autoconsciência de um

sujeito dual.

25

I

DIÁLOGOS EM O ENCONTRO MARCADO

Interpela-me, e te responderei ou deixa-me falar e tu me responderás (Jó 13: 22).

26

No romance O encontro marcado, de Fernando Sabino, o enredo gira em

torno de três jovens brasileiros dos anos 40 e 50, do século XX. Mauro, Hugo e

Eduardo formam, com outras personagens, uma geração que atravessa os conflitos

da juventude urbana em plena ditadura Vargas: os três amigos confrontam seus

pontos de vista sobre o mundo e o período que vivenciam, envoltos em debates

sobre a religião, a literatura e a situação política do momento. Trata-se de uma obra

literária que tem como pano de fundo o desfecho da segunda guerra mundial,

contexto no qual convicções foram abaladas e tradições questionadas. Neste

período, uma certeza se afirmava sobre inúmeras incertezas, a de que o mundo

precisava ser repensado (DELGADO, 2007, p.143). Eduardo Marciano é o

protagonista, enquanto Mauro e Hugo refletem-se como uma espécie de duplos

deste herói, espelhos que refletem diferentes perspectivas de uma mesma realidade,

de um mesmo período histórico, de uma mesma geração. Três amigos similares nos

sonhos, personalidades e ideias, mas díspares na forma de enfrentar suas

concepções de mundo. Ao longo do romance, Eduardo passa por um processo de

tomada de consciência de si e do outro, processo este que se dará através do

diálogo com múltiplas vozes interiorizadas por ele.

O encontro marcado está permeado pelo diálogo, peça essencial do

romance, que chega mesmo a substituir as ações. Para Linhares (1978), enquanto

alguns escritores obedecem à estrutura tradicional do romance, ao se referir à obra

de Sabino, ressalta: “aqui ao contrário, o diálogo ocupa o lugar da ação, ele é bem a

continuação à luz do dia dos movimentos subterrâneos daquele grupo de rapazes de

Minas [...]” (p. 37). Mas, como bem alerta este crítico, “é preciso [...] não confundi-lo

com esse diálogo de rotina”, posto que, em Sabino, o “diálogo é manifestação da

criação autêntica” (p.38).

Fernando Sabino se preocupa com os seus personagens em presença

uns dos outros, no que diz respeito aos motivos que dão origem ao diálogo. É no

diálogo que reside a força do romance O encontro marcado, sendo o principal

suporte em que se assenta a narrativa. Neste aspecto, a obra de Sabino converge

na direção da obra do escritor Dostoiévski11, cujo caráter dialógico é ressaltado por

11 Dostoiévski (1821-1881), autor de Crime Castigo, Os irmãos Karamazov, O Sósia, O adolescente, Memórias do subsolo, entre outras obras. Para Otto Carpeaux (1972, p. 2538), Dostoiévski é o primeiro grande poeta no gênero “romance”, uma vez que o escritor russo confere ao gênero prosaico a poesia das paixões intelectuais, a poesia das discussões ideológicas, segundo o crítico, inicia-se com Dostoiévski “uma nova época da história da literatura universal, época que ainda não acabou”.

27

Bakhtin ao afirmar que “[...] no centro do mundo artístico de Dostoiévski deve estar

situado o diálogo, e o diálogo não como meio, mas como fim. Aqui o diálogo não é o

limiar da ação mas a própria ação” (2006a, p. 256 – grifos nossos).

O encontro marcado apresenta uma dialogicidade constituída de vozes

que polemizam com os discursos advindos das esferas sociais – especialmente a

religiosa e a literária –, nas quais se entrelaçam vozes oriundas dos campos social,

filosófico e político. Nesta abordagem verifica-se o princípio dialógico inerente à

linguagem, do qual nos fala Bakhtin (1978, 1998, 2003, 2006a, 2006b) no arcabouço

teórico de sua concepção sobre interação verbal, tomando o romance como um

sistema literário de confluência dos discursos sociais, e enquanto fenômeno

pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal.

O diálogo no sentido estrito do termo, segundo Bakhtin (2006b),

não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja (p.125).

Esta concepção de diálogo pressupõe, não apenas, uma visão de mundo,

através da qual as inter-relações do discurso romanesco permanecem num

intercâmbio vivo com a linguagem da vida cotidiana, mas também uma concepção

de homem, cuja consciência constrói-se na comunicação social, marcada pela

relação com o outro, uma vez que “ser significa comunicar-se pelo diálogo”

(BAKHTIN, 2006a, p. 257). O crítico Portella (1978), referindo-se ao diálogo como

categoria do romance, aponta que “nas obras filosóficas os diálogos conservam

sempre o seu caráter subjetivo” (p. 115), entretanto no romance de Sabino, afirma

Portella, “convivem, umas vezes em tranquila harmonia e outras vezes em violenta

oposição, o subjetivo e o objetivo, o real e o imaginário” (idem). Marchezan, (2008)

por sua vez, considera que a palavra diálogo, no contexto bakhtiniano, deve ser

entendida “como reação do eu ao outro, como reação da palavra a palavra de

outrem, como ponto de tensão entre o eu e o outro, entre círculos de valores, entre

forças sociais” (p.123).

Desta forma o aspecto social do romance O encontro marcado é

iluminado pela ideia de esfera da comunicação discursiva ou da atividade humana. A

esfera discursiva é uma noção importante para a compreensão da dialogicidade da

28

obra de Sabino, uma vez que a influência da palavra em todos os campos

ideológicos, seja na religião, seja na literatura, é imprescindível na formação moral

do indivíduo e no processo de autoconsciência de sua realidade e de si mesmo,

posto que “as esferas dão conta da realidade plural da atividade humana” (GRILLO,

2006, p. 147). Assim, observamos no romance de Sabino, um “grande diálogo” com

o discurso religioso (bíblico) e o discurso literário, no qual ecos de outras vozes, ora

em harmonia, ora em dissonância, se fazem ouvir.

Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin (2006a) afirma que,

através das relações dialógicas presentes nas narrativas dostoievskianas, pode-se

constatar fenômenos discursivos – estilização e a paródia – que possuem um

aspecto comum: o discurso é duplamente orientado, tendo como fator essencial a

relação com o enunciado de um outro. A estilização compreende as situações em

que o autor retoma o discurso de outro sem negar ou satirizar os princípios que o

regem. De natureza crítica, a paródia produz uma enunciação de orientação

semântica oposta à orientação do outro. Nela, segundo Bakhtin,

A segunda voz, uma vez instalada no discurso do outro, entra em hostilidade com seu agente primitivo e o obriga a servir a fins diametralmente opostos. O discurso se converte em palco de luta entre duas vozes. Por isso, é impossível a fusão de vozes na paródia, como é possível na estilização ou na narração do narrador (2006a, p. 194).

Na perspectiva de Bakhtin (2006a), paródia e estilização seriam exemplos

de dialogismo, pois nelas há uma bivocalidade evidente. Na paródia a voz do

parodiador entra em embate, estilístico e ideológico, com o discurso parodiado. A

paródia é um discurso que depende de outro, que provoca deslocamentos

semânticos na enunciação do outro, trazendo implicações de ordem estética e

política.

Ao tratar do problema das fronteiras do texto em Estética da criação

verbal, Bakhtin (2003) se refere a dois polos, apontando que “cada texto pressupõe

um sistema universalmente aceito de signos” (p. 309), ou seja, uma linguagem

aceita no âmbito de um determinado grupo; no entanto, segundo o crítico, “não há

nem pode haver textos puros” (idem), posto que, em cada um, existe uma

diversidade de elementos que podem entrar em sua composição. Isto pressupõe,

29

segundo Bakhtin, “relações dialógicas entre os textos e no interior de um texto”

(idem).

Bakhtin (2006a, p.181), sendo um estudioso da linguagem, encontrou na

literatura, especialmente no romance, um terreno fértil para as suas indagações a

respeito da interação verbal, atribui ao discurso a concepção de “língua em sua

integridade concreta e viva”. O teórico russo tem, da língua, uma visão

eminentemente social, considerando-a não como um “objeto específico da

linguística”, ainda que “obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e

necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso” (ib. ibid.). Bakhtin

observa, pois, que são justamente esses aspectos, abstraídos pela linguística, os

que têm importância primordial para os seus estudos. No entanto, diz ele que as

suas análises não são linguísticas no sentido rigoroso do termo, uma vez que devem

ser situadas na metalinguística. Esta nova abordagem, segundo Bakhtin, pressupõe

“um estudo – ainda não-constituído em disciplinas particulares definidas – daqueles

aspectos da vida do discurso que ultrapassam [...] os limites da linguística” (ib. ibid.).

Deste modo, Bakhtin (2006a) afirma que as novas pesquisas

metalinguísticas devem aplicar os resultados da linguística, ou seja, “devem

completar-se mutuamente e não fundir-se”, uma vez que ambas “estudam um

mesmo fenômeno concreto, muito complexo e multifacético – o discurso, mas

estudam sob diferentes aspectos e diferentes ângulos de visão” (p. 181). Bakhtin diz,

por exemplo, que o problema não está na existência de certos estilos de linguagem,

mas no modo como eles dialogam entre si e com outros aspectos da obra, ou seja,

se ouvimos nele a voz do outro ou o entendemos como uma espécie de cosmovisão

da linguagem. Ele ressalta, ainda, que as intensas relações dialógicas, sejam entre

os falantes, sejam entre os elementos do texto ou entre os textos, devem ser vistas

pela perspectiva da metalinguística. Explica que isto deve ocorrer porque a

linguística estuda estas relações enquanto fenômenos puramente linguísticos, ou

seja, no plano da língua, por isso não pode abordar a especificidade das relações

dialógicas entre as réplicas, uma vez que são realidades “extralinguísticas e ao

mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso” (id, Ibid., p.

183), isto é , tais relações, embora pertençam ao campo do discurso, não pertencem

a um campo puramente linguístico do seu estudo.

30

A partir destas considerações, sob um ângulo bakhtiniano da língua

enquanto fenômeno integral e vivo12, depreendem-se, pelo menos, três formas de

dialogismo em uma obra literária: o diálogo das personagens entre si, com seus

pontos de vista personificado em vozes; entre o autor e seus personagens; e “entre

linguagens de outros textos” (BAKHTIN, 1998, p.148). Tais relações dialógicas

podem ser estilizadas ou parodiadas. As duas primeiras, traços mais específicos do

romance polifônico, serão abordadas nos capítulos dois e três. No entanto, às vezes,

iremos nos referir a elas, uma vez que dialogismo e polifonia são conceitos que

estão imbricados na teoria bakhtiniana, nem sempre sendo possível separá-los,

especialmente, quando são abordados através de uma temática, como os diálogos

com o discurso religioso e o discurso literário, neste primeiro capítulo.

A terceira forma de dialogismo, a qual daremos enfoque especial a partir

de agora, nos remete à ideia de intertextualidade, como aponta Boris Schnaiderman

(1997, p. 20): “esta noção que Bakhtin nos dá, no sentido de que toda obra, na

realidade, está dialogando com outras obras, Júlia Kristeva consagrou com o nome

de intertextualidade”. O termo cunhado por Kristeva tem como base as ideias de

Bakhtin na própria concepção dialógica de linguagem que ele constrói. Ao tratar no

ensaio Discurso no romance, das formas da organização do plurilinguismo –

conjunto de linguagens diferentes que compõem o discurso do prosador romancista

–, Bakhtin (1998, p. 124) esclarece que “o romance admite introduzir na sua

composição diferentes gêneros, tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas,

poemas, sainetes dramáticos) como extraliterários (de costumes, retóricos,

científicos, religiosos e outros)”.

O encontro marcado tem a sua linguagem elaborada por meio de

procedimentos intertextuais, através dos quais, textos bíblicos e literários foram

estilizados, parodiados, aludidos ou citados. Sabino propicia, em O encontro

marcado, um jogo intertextual na construção da narrativa. Nesta perspectiva,

levando-se em consideração a ideia de linguagens diferentes compondo a narrativa

e não propriamente a questão de gêneros intercalados, investigaremos os diálogos

12 Não adentraremos num debate epistemológico sobre distinção entre texto e discurso, proposto por alguns teóricos linguistas. As fronteiras existentes entre esses fenômenos da língua, apenas estão referidas na própria estrutura da divisão da temática em seções. Divisão esta escolhida para uma melhor exposição da análise do nosso objeto de estudo.

31

deste romance com a Bíblia e a tradição literária, ou seja, as relações dialógicas que

compõem a estrutura da obra.

Dentro desse quadro desenvolvido por Bakhtin, portanto, todo texto se

constrói a partir de uma relação dialógica com outros textos. O discurso, por ancorar

toda uma dialogicidade, é constituído por muitas vozes que geram vários textos que

se entrecruzam no tempo e no espaço. Assim sendo, a busca de compreensão de

uma dada enunciação passa pelo resgate de possíveis fontes com a qual ela

dialoga. Esta é a tarefa que iremos empreender nas linhas a seguir, tendo por objeto

o romance O encontro marcado.

Vale ressaltar que o nosso objetivo é analisar a unidade artística da

construção dialógica e polifônica do romance de Fernando Sabino, demonstrando as

formas de dialogismo e perspectivas polifônicas que revelam a relação específica

que o escritor mantinha com a palavra enquanto matéria de criação artística.

Abordamos as questões histórico-religiosas-literárias, propriamente ditas, apenas na

medida em que estas questões sociais são necessárias para a análise por um viés

estilístico, da arquitetura dialógica e polifônica construída por Sabino, na qual as

vozes sociais mantêm uma relação dialógica que contribui para a formação da

autoconsciência da personagem central, o que, por sua vez, corrobora a hipótese de

que há uma visão plural de mundo no romance O encontro marcado.

1.1 Diálogos com a Bíblia: o discurso religioso como instância de formação do

homem

Numa relação dialógica, O encontro marcado inicia por uma carta do escritor

Hélio Pellegrino13 a Fernando Sabino, o que já aponta a ideia e os propósitos de

Sabino em relação à obra:

O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos

13 Hélio Pellegrino (1924-1988) foi escritor, poeta e psicanalista. Paulo Roberto Pires (1998), em “Hélio Pellegrino: a paixão indignada”, aponta que o escritor, na juventude já amigo de Fernando Sabino, lhe escreveu a menssagem que inicia o romance O encontro marcado. Muitos anos depois, quando completou 60 anos, Hélio reformulou o que havia escrito para Sabino com um tom de humor: "Quando você faz 20 anos está de manhã olhando o sol do meio dia. Aos 60 são seis e meia da tarde e você olha a boca da noite. Mas a noite também tem seus direitos. Esses 60 anos valeram a pena”.

32

para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendemos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome (SABINO, 2006, p. 05).

Não sabemos quem é anterior – a carta de Pellegrino ou a ideia de

escrever o romance O encontro marcado. No entanto, alguns fios tecidos nesta

correspondência apresentam-se na narrativa de Sabino, como se fosse um resumo

do que irá se encontrar no romance. Conforme Bakhtin (2003), os enunciados

extraliterários e suas fronteiras – entre eles a carta – ao serem transferidos para a

obra literária, têm o seu sentido alterado, uma vez que “sobre eles recaem os

reflexos de outras vozes e neles entra a voz do próprio autor” (p. 320), pois o cotejo

de dois enunciados alheios “que não se conhecem e toquem levemente o mesmo

tema (ideia), entram inevitavelmente em relações dialógicas entre si” (p. 320). Desta

forma, o texto que abre o romance apreende o meio social em que vive o homem, a

descoberta do sentido dialógico da vida. Evidencia-se um escritor preocupado com

as definições do homem ante o “eu” e o “outro” (BENDER, 1981, p. 93), no qual se

revela a lucidez do homem feito, tecida por fios dialógicos que se entrecruzam a fim

de um encontro em coexistência e interação, em que se questiona indefinidamente a

crença nos valores humanos, na arte e na religião.

Bakhtin (2006a) enfatiza que o caráter essencialmente dialógico não se

esgota nos diálogos composicionalmente expressos, levado a cabo pelas

personagens, ressaltando que o romance polifônico é inteiramente dialógico:

Há relações dialógicas entre todos os elementos da estrutura romanesca, ou seja, eles estão em oposição como contraponto. As relações dialógicas – fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas do diálogo expresso composicionalmente – são um fenômeno quase universal, que penetra toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e importância (2006a, p. 42).

Nesta interação, os diálogos com as esferas discursivas – religiosa e

literária – não são um meio de revelação, de descobrimento do caráter como algo

33

acabado no homem, e sim a forma como o homem não apenas se revela

exteriormente mas mostra aquilo que é para si mesmo e para os outros. Assim,

indícios de diálogos com a Bíblia14 nos indicam posturas oriundas da esfera

religiosa.

A formação moral e literária das personagens, segundo Lucas (1996), é

sugerida na primeira parte do livro, A procura, na qual livros e autores são citados e

aludidos, para mostrar uma arte poética da orientação do autor. Já na segunda

parte, com o título O encontro, fica sugerida a mudança de status, lugar e estado

civil do protagonista Eduardo, fazendo a personagem sentir-se como um afogado em

águas revoltas, como alude o título do segundo capítulo: O afogado.

Neste romance, ocorre com muita frequência diálogos com a Bíblia, nos

quais se observa a presença constante da religiosidade, encaminhando o estilo da

narrativa do romance para a citação ou alusão a textos bíblicos do Velho e Novo

Testamento. Tais passagens, citadas ou aludidas, evidenciam que a religiosidade do

protagonista é complexa, como observaremos no diálogo entre o protagonista

Eduardo e o diretor do Ginásio católico, Monsenhor Tavares, levando à indagação: o

que se manifesta da religião na formação moral ou na circulação do discurso de

Eduardo Marciano?

– O que seria de Cristo... – o diretor se inclinou, interessado: – Explique-me essa história: se Judas não traísse... Eduardo pôs-se a falar veemente: – Porque o grande medo de Cristo era de que Judas falhasse, e não houvesse a crucificação, nem nada. Isso o mundo deve a ele: Judas não falhou. Mas como a salvação do mundo só podia vir de Cristo, Judas condenou o mundo, se suicidando. – Condenou o mundo... se suicidando? – repetiu o diretor, lentamente. – Espere, mais devagar. Explique isso direito – O senhor está me pedindo exatamente o que eu pedi ao padre Lima: que me explicasse isso direito. – [...] O grande medo de Cristo... Onde já se viu isso? Você acha possível Deus ter medo de alguma coisa? Onde você anda tirando essas ideias? O que você fica fazendo em vez de ir à aula de Apologética? – Fico lendo na Biblioteca [...] (SABINO, 2006, p. 40-1).

14Segundo os críticos Frank Kermode & Robert Alter (1997) a centralidade da Bíblia na formação da cultura tem sido entendida ou como resultado de um percurso histórico, ou aceito como verdade revelada. Contudo, nas últimas décadas, houve uma revivescência do interesse nas qualidades literárias desses textos e uma nova concepção das Escrituras como obra de grande força e autoridade literária tem aguçado o interesse da crítica profissional.

34

Nesta citação, há diálogos com o discurso religioso (bíblico) da salvação e

condenação. Ao indagar do aluno Eduardo Marciano, o motivo de suas ausências na

aula de Apologética, o Monsenhor Tavares questiona as ideias de Eduardo,

defendendo a soberania de Deus (“você acha possível Deus ter medo de alguma

coisa?”), algo que Eduardo deveria estar aprendendo nas aulas com o Pe. Lima.

Segundo Peter Kreeft & Ronald K. Tacelli (2008), a apologética é uma ciência na

qual se ensinam os argumentos mais relevantes em defesa da fé cristã. Então, o que

levaria Eduardo a ignorar a aula de apologética? Kreeft & Tacelli (2008), apontam

que a maioria das pessoas a concebe como uma disciplina muito “intelectual,

abstrata e racional” (p. 26); no entanto, segundo os autores, o raciocínio apologético

pode levar à fé e à santidade a qual implica amar a Deus, o que, por sua vez, exige

o conhecimento e a predisposição para preparar-se para responder a todo aquele

que lhe pedir a razão da fé em Deus.

Observamos, no discurso da personagem central, que ela atribui, de certa

forma, a salvação do mundo a Judas e não a Cristo. Em seguida Eduardo afirma que

Judas condenou o mundo se suicidando, uma vez que a salvação só poderia vir de

Cristo. Neste jogo da arena discursiva entre salvação e condenação, há um conflito

da personagem sobre a existência ou não de Deus. Eduardo usa a desculpa de que

o professor não lhe tirou as dúvidas, e por isso não assistia às aulas. Observa-se

aqui que Eduardo temia ser persuadido, uma vez que o herói não desejava

incorporar os argumentos apologéticos, isto é, não estava disposto a defender a fé

cristã. Eduardo vivia conflitos em relação à sua religiosidade, no entanto mais devido

à influência da família e da própria instituição católica na qual estudava, do que por

suas próprias convicções. Desta forma, o mais perfeito argumento não estimularia

Eduardo a crer, pois ele queria uma experiência concreta, como um milagre que

pudesse se realizar em sua vida. Há, assim, um conflito tenso entre Eduardo e a voz

eclesiástica pela supremacia dos diferentes pontos de vista ideológicos que revelam

como a palavra interior do protagonista sempre se renova, é inacabada, tendo como

ponto inicial a palavra do outro, isto é, o discurso eclesiástico, que, por sua vez, é

pleno de significados, os quais Eduardo não tinha condições de afirmar ou negar

definitivamente.

O ensaísta Matos (1996) ressalta que há um universo luminoso no

romance O encontro marcado, no qual a descoberta do sentido dialógico da vida, da

incorporação do diálogo à solidão de cada indivíduo, a ronda misteriosa da fé

35

religiosa persegue o protagonista e contamina as demais personagens. Para o

crítico, trata-se de um livro de caráter confessional, de religamento entre o homem e

Deus, entre o homem e o princípio de salvação. Observamos que tais pressupostos

surgem na narrativa, porém de forma conflitante. Em discurso indireto livre15, com

uma visão de fora, o narrador mostra que há uma evidência da fé em Deus, como

ser Divino, além de uma fé institucionalizada pela religiosidade, como uma força que

aprisiona Eduardo que se encontra enredado pela formação católica imposta pelos

pais:

Era um ponto de partida. Imediatamente saltou da cama, rezou um Padre-Nosso e uma Ave-Maria. Depois tornou a deitar-se, sentindo que um mundo de novas perspectivas se abria para ele – precisa estudar Apologética mesmo, quem sabe? [...] Ao contrário do que esperava, não fez da descoberta um grande problema: sim, Deus existia, era claro, evidente, indiscutível que Deus existia – e então? (SABINO, 2006, p. 42)

O conflito da personagem central se acentua ao avaliar a possibilidade de

estudar sobre a defesa da fé. Eduardo pensa em acontecimentos como a primeira

comunhão, o costume de ir à missa, “hábito imposto pela mãe desde cedo e que

nunca se dispusera a interromper” (SABINO, 2006, p. 42). Dessa forma, o discurso

religioso se apresenta no romance como esfera que dialoga com o social, uma vez

que pode ser visto como uma instância de formação do homem, repleta de vozes

encharcadas de valores conflitantes. Eduardo ora polemiza não apenas com a fé na

existência de Deus, mas com a religião enquanto instituição, vista pelas

personagens, como “clero reacionário” –, ora aceita os valores cristãos católicos,

como considerar sagrado ir à missa todos os domingos, apenas por cultivo dos

ideais de religiosidade, impostos pelos pais, e pelo próprio ambiente provinciano no

qual Eduardo e seus amigos viviam.

A formação das principais personagens é voltada para uma educação

tradicional, na qual a voz do conservadorismo se faz ouvir. Mas, desde cedo, os

jovens já revelam suas contestações às convenções e tradições que lhes eram

impostas. Neste diálogo entre Mauro e Eduardo, observa-se na voz de Mauro um

sentimento contrário à fé e à propagação dos valores sagrados; seu discurso

15 Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin expressa que “o discurso indireto livre constitui o caso mais importante e sintaticamente mais bem fixado [...] de convergência interferente de dois discursos com diversa orientação do ponto de vista da entoação” ( 2006b, p.174).

36

reivindica igualdade para a relação dialógica Deus-homem, numa tentativa de

desmistificar a soberania de Deus, cuja imagem, para Mauro, é de um homem

comum que deve ser confrontado face a face:

– [...] Só que não temos mais aqueles temores da infância, preconceitos religiosos, a submissão a tabus, medo do pecado, horror de ser castigado por Deus. – Vai devagar, Besta-Fera. Você agora é ateu? – Ateu, não: agnóstico. – [...] Acho que Deus é uma coisa, os padres outra. O ranço das sacristias me enoja. Tenho horror ao bafo clerical dos confessionários! – [...] O que eu chamo de libertação é a possibilidade de me afirmar integralmente, como homem. O homem é que interessa. Se Deus existe, posso vir a me entender com ele, mas há de ser de homem para homem. Aborrecido, Eduardo não lhe deu resposta. (SABINO, 2006, 110-11)

Este diálogo nos leva a indagar qual a origem do discurso de Mauro, que

discurso a sua voz representa. Mauro, também oriundo de uma família tradicional

mineira, na juventude começa a se liberar do moralismo clerical a que ele chama de

“preconceitos religiosos”. Ao deixar seu amigo Eduardo aborrecido, se declarando

agnóstico16, ele adota um discurso que considera impossível a confirmação da

existência de Deus. De certa forma, a personagem Mauro se mostra oscilante, uma

vez que, ao firmar sua linha de pensamento, ele abre possibilidades para a fé,

expressando que se Deus existe há de se entender com Ele, ainda que seja de

homem para homem. Ao mesmo tempo em que o catolicismo de Mauro se fazia de

liberdade e de conquista, renovado pela crença no poder da razão humana – “Cristo:

dizei somente uma palavra” (SABINO, 2006, p. 82) – o de Hugo era ansioso e

torturado: “Senhor, piedade para os que sofrem. Esperança, Fé e Caridade” (id.,

ibid.).

Esses discursos da religiosidade de Mauro e Hugo como uma imagem

refletida de Eduardo e mediada pelo outro, pela voz eclesiástica, por um olhar que

16 "Agnosticismo" derivou-se da palavra grega "agnostos", formada com o prefixo de privação (ou de negação) "a" anteposto a "gnostos" (conhecimento). As bases filosóficas do agnosticismo foram estabelecidas no século XVIII por Immanuel Kant e David Hume, porém só no século XIX é que o termo agnosticismo seria formulado. Segundo Abagnano (1999), o autor do termo teria sido Thomas Huxlay, nos seus Collected Essays (1869), tendo sido retomado por Darwin. O termo é frequentemente usado para designar a postura de recusa a professar publicamente qualquer opinião sobre Deus, o Absoluto e o Infinito. Para Abagnano (1999, p. 22), o agnosticismo pressupõe “a redução do objeto da religião “a simples ‘mistério’, em cuja interpretação os símbolos usados são todos inadequados”.

37

cultua o sublime, reforça as contradições de um sujeito que vive no limiar de mundos

opostos. Eduardo, ao mesmo tempo em que se aborrece com Mauro, também, não

tem certeza de suas próprias convicções. A consciência de Eduardo não é dada no

seu caminho propriamente dito de formação moral, mas ao lado de outras

consciências. Eduardo é um ser dividido entre as efemeridades do mundo material e

a incerteza do mundo espiritual; oscilando entre esses dois polos, ele busca um

equilíbrio. O romance revela a necessidade humana de transcendência e da busca

do Divino, que analisaremos com mais veemência no capítulo três. Por enquanto

abordemos a dialogicidade do romance com o discurso religioso, que, de certa

forma, alicerça a discussão do último capítulo.

É importante enfatizar que a formação religiosa de Eduardo, Mauro e

Hugo é herança dos pais e da própria origem provinciana de uma parcela da

sociedade mineira, cuja imagem é de uma religiosidade católica, como observamos

na pergunta de Vitor, amigo de Eduardo que morava no Rio de Janeiro, e que tinha

dúvida sobre a existência ou não de milagres: “– Você ainda é católico? – Eu nunca

lhe disse que era católico. – Qual, vocês mineiros são todos católicos.” (SABINO,

2006, p. 249). Vitor se refere à historicidade do estado de Minas Gerais cujas

cidades erguidas durante o ciclo do ouro, no século XVIII, consolidaram a

colonização do interior do país e estão espalhadas por todo o Estado. Isso fez

proliferar a entrada de colonos portugueses originários do norte de Portugal, sendo

que a maior parte da população mineira é descendente destes colonos. Assim, a

forte religiosidade católica de Portugal acaba marcando intensamente a população

mineira que, segundo dados do IBGE (2009), tem uma das maiores porcentagens de

seguidores do catolicismo no Brasil. 17

Sob estas considerações, voltando o olhar para o campo da arte, na

narrativa O encontro marcado, no plano religioso, o narrador expõe a visão

conservadora do Monsenhor Tavares, diretor do colégio católico no qual Eduardo,

Mauro e Eugênio estudavam – este último aparece na segunda parte do romance

17

Ver na revista eletrônica Wikipédia o documentário sobre o Estado de Minas Gerais. Alguns eventos marcantes da história brasileira, como a Inconfidência Mineira, a Revolução de 1930 e o Golpe Militar de 1964 foram arquitetados em Minas Gerais. A literatura floresce neste estado já na época do ouro, através principalmente de poetas árcades como Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manoel da Costa. Modernamente, Minas Gerais deu sua contribuição à literatura brasileira através de escritores famosos, dentre eles: Autran Dourado, Guimarães Rosa, Carlos Drumonnd de Andrade, Adélia Prado, Murilo Rubião, Rubem Fonseca, Ziraldo, Murilo Mendes e Fernando Sabino.

38

como Frei Domingos. A voz eclesiástica do Monsenhor estará sempre cravada na

consciência de Eduardo na pergunta “Você acredita em Deus?”. A assimilação da

palavra de outrem adquire um sentido importante no processo de formação do

homem. Palavra esta que, segundo Bakhtin, “procura definir as próprias bases de

nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento, ela surge

como a palavra autoritária e como a palavra interiormente persuasiva” (1998, p. 142)

Ao se referir às diferenças entre essas duas categorias da palavra de

outrem, Bakhtin afirma que ambas podem se unir em uma única palavra, ao mesmo

tempo autoritária e interiormente persuasiva. A seu ver, “o conflito e as inter-relações

dialógicas destas duas categorias da palavra determinam frequentemente a história

da consciência ideológica individual” (BAKHTIN, 1998, p. 143). Desta forma, a

palavra autoritária se impõe ao sujeito independentemente do grau de sua

persuasão interior no que lhe diz respeito. Observamos nestas inter-relações

dialógicas aspectos formais da transmissão e da representação da palavra

autoritária, enquanto discurso religioso que se reflete na narrativa com a pergunta

“você acredita em Deus?”, revestida de autoridade, mas que paradoxalmente dialoga

na consciência de Eduardo como palavra interiormente persuasiva.

Para Bakhtin (1998, p. 145), “a palavra persuasiva interior no processo de

sua assimilação positiva se entrelaça estreitamente com a nossa palavra”. Assim, no

fluxo de nossa consciência, diz o crítico, tal palavra “é comumente metade nossa,

metade de outrem” (idem). Desse modo, a estrutura semântica da palavra

persuasiva interior, “não é terminada, permanece aberta, é capaz de revelar sempre

todas as nossas possibilidades semânticas em cada um dos seus novos contextos

dialogizados” (ib. ibid., p.146).

Sabino produz esses efeitos de sentido18, ao utilizar estilisticamente o

recurso da citação de textos bíblicos de cunho dramático, nos quais as personagens

bíblicas encontram-se em seu limiar, em plena expectativa de tomar decisões ou

participando de confrontos como encontrar uma resposta para seus dilemas. É o

caso do diálogo com um versículo do Livro de Jó, no qual a personagem, depois de

remoer sobre sua calamidade, expressa uma amarga e violenta crítica contra a sua

18 A expressão “efeitos de sentido”, que os analistas do discurso derivaram de estudos de Bakhtin, lembra que o sentido de um texto não é algo estável e fixo, preso à estrutura do texto. Ao contrário, o sentido é efeito das condições que cercam a produção e a recepção dos textos. No caso do romance de Sabino, um dos elementos basilares de produção de efeitos de sentido é a intertextualidade com o discurso religioso, especialmente com a Bíblia. Sobre essa expressão, ver BRANDÃO (2004).

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vida: “Disse Jó: Pereça o dia em que nasci e a noite em que se disse: foi concebido

um homem!” (3:2-3). Isso é estilizado em: “Desgraçado o dia em que eu nasci, ele

pensava, e a noite em que se disse: foi concebido um homem” (SABINO, 2006, p.

272). O discurso da personagem Eduardo é um lamento expressando a sua tristeza

profunda após insinuar que Neuza, sua vizinha, aborte o seu filho, pois o sentimento

de retidão que propaga não o faria cometer tal “loucura”. Após pensar no que estava

lhe acontecendo, a separação da esposa, o afastamento dos amigos, e a não escrita

do seu romance, Eduardo aproveita o tema de Jó para expressar sua dor e

amaldiçoar a sua própria concepção e o seu nascimento.

A personagem Eduardo não rejeita apenas a vida, ao telefonar para a

vizinha e dizer: “você tem razão, Neuza, não há outra coisa a fazer” (SABINO, 2006,

p.272); no discurso de Eduardo há, também, uma rejeição ao Doador da vida.

Contudo, ele se agarra à figura de Deus, enquanto Ser perdoador, e anseia por um

milagre, como o ocorrido com seu amigo Vítor, que, após saber que estava com

câncer, faz uma promessa de subir de joelhos a escadaria da Penha e depois

recebia a notícia de que a radiografia havia sido trocada. Segundo Moshe

Greenberg19 (1997), com a menção de Jó pelo profeta Ezequiel como um modelo de

retidão, e a referência mais tardia à paciência ou perseverança de Jó em Tiago 5:10,

nunca se imaginaria a complexidade do caráter criado no livro que traz seu nome.

Greenberg (1997) considera que a representação dos diálogos de Jó no livro requer

a hipótese de que duas personagens foram fundidas nele: “Jó, o paciente”, herói da

estrutura em prosa do livro, e “Jó, o impaciente”, a figura central dos diálogos de Jó

e seus amigos (p.305). Desta forma, o narrador, ao estilizar a passagem bíblica do

livro de Jó, alude a Eduardo e a sua inversão e subversão de papéis, através do

diálogo, que predominam em deslocamentos repentinos, com seus duplos, Mauro e

Hugo, por vezes, sarcásticos e irônicos.

No entanto, neste processo, Sabino não trabalha com imagens objetivas

de pessoas, não cria discursos objetivos para as personagens, e sim palavras para o

herói, muito ricas e intensas de significado, e como que independentes do autor;

palavras que expressem as ideias e cosmovisão das personagens, recriando, ao

19 Greenberg (1997), no ensaio Jó, pontua que o principal problema literário (e não teológico ou histórico-literário) do livro de Jó é sua coerência. Isto o leva a indagar: a prosa e os diálogos de Jó e seus amigos formam um todo? Segundo o autor, a discussão a cerca deste tema não implica afirmar a infalibilidade do texto disponível, mas uma reflexão de que a complexidade literária do livro é consistente com a natureza das questões com as quais lida.

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mesmo tempo, enquanto autor, palavras e situações temáticas interrogativas e

veiculadoras do diálogo. Há, em O encontro marcado, um intenso diálogo, com o

discurso religioso referido no Antigo Testamento, nos livros de Gênesis e Jó e no

Novo Testamento, nos livros dos Evangelhos. Esse discurso voltado para a questão

da fé se confirma quando Eduardo recorre ao livro bíblico de Gênesis, capítulo vinte

e dois, especificamente à história de Abraão e Isaque, cujo tema recorrente refere-se

ao sacrifício e à salvação no último momento. Eduardo Marciano extrai desta história

os versículos onze e doze, evidenciando o seu estado de crise, evocado pelo desejo

de um milagre. Neste momento, é explicito o diálogo com o enunciado bíblico. O

diálogo com a história de Abraão e Isaque na voz de Eduardo se apresenta como a

função de purificação e de perdão:

Da sala ao quarto, do quarto ao banheiro, já pedindo a Deus um milagre. [...] e se não houvesse filho algum? E se os exames se negassem, o médico se enganara, os sintomas se desfariam, e Deus perdoava, e não mais precisava imolar o filho, como no sacrifício de Abraão. O que era preciso para haver um milagre? E eis que o anjo do Senhor gritou do céu, dizendo: Abraão, Abraão. E ele respondeu: aqui estou. – Meu Deus, eu não posso pagar esse preço, é demais para mim. (E o anjo disse-lhe: não estendas a mão sobre o menino e não lhe faças mal algum) (SABINO, 2006, p.272-3 – grifos nossos).

Esse engenhoso jogo de palavras (“Aqui estou”; “não estendas a mão

sobre o menino”) cria um paradoxo no centro da mensagem. Segundo P.J.

Fokkelman (1997, p. 65), “ao mostrar sua disposição de renunciar ao filho único,

Abraão o recebe de volta e uma união muito mais profunda começa, tanto entre pai

e filho como entre o Senhor e seu obediente seguidor”. No entanto, a fé antes do

milagre, e a entrega total de Abraão ao chamado de Deus (“Aqui estou”), seguido de

seu alívio posterior, não condiz com a reação de Eduardo; a oposição entre a

incerteza e a fé de Eduardo foi testada, mas sua confiança não se provou genuína

mais do que seus afetos humanos: “Meu Deus, eu não posso pagar esse preço, é

demais para mim” (SABINO, 2006, p. 273).

São momentos de divagações de Eduardo sobre o que iria acontecer: o

aborto feito por Neuza. O conflito entre as inter-relações dialógicas da voz interior de

Eduardo e a voz do discurso religioso dá sequência ao episódio, no qual

observamos, ainda, outros textos bíblicos empregados em tom parodístico. O

excerto seguinte é um discurso irônico alusivo à passagem bíblica, na qual Jesus

41

revela a Pedro que este o negará três vezes, antes do cantar do galo, porém o

discípulo afirma: “Ainda que me seja necessário morrer contigo, de nenhum modo te

negarei” (Mateus 26:34-35), mas, em seguida o nega. No universo simbólico da fé,

percebemos a voz da personagem Eduardo impregnada de contradições que se

deixam perceber em diálogos com o outro, “o eu estranho”, que se manifesta por

meio do discurso religioso:

E o mundo não conhecia outros anjos, senão os que germinavam no ventre e não chegavam a nascer. Em verdade te digo: antes que o galo cante, eu te negarei três, dez, vinte vezes! Esse é o desígnio do homem, sozinho dentro da noite. E dentro da noite um galo cantou (SABINO, 2006, p. 273).

Após declarar que negaria a Deus até vinte vezes, antes que o galo

cantasse, Eduardo já o havia negado, e de fato o galo cantou, pois antes desta

afirmação, debruçado à janela do quarto, ele observava o entardecer da noite sobre

a cidade; neste momento, para ele, todos dormiam, inclusive Deus. No entanto, até

as duas horas da manhã, Eduardo ainda estava à janela, esperando por uma

solução que o salvasse daquela situação com Neuza, e aguardou impacientemente,

até as cinco horas, por uma solução; uma resposta que, para Eduardo, não veio.

Contudo, na voz narrativa percebe-se que algo místico aconteceu, pois assim como

no texto bíblico, também, na narrativa de Sabino “um galo cantou”.

Ecos do discurso de Eduardo soam na linguagem da personagem

Germano, um diplomata aposentado que reside no Rio de Janeiro e aparece na

segunda parte do romance, para tecer diálogos com a personagem central.

Impregnada de um tom paradoxal, a voz de Germano insinua o discurso religioso

como uma instância propícia a formar a moral de Eduardo: “– Olhe a morte de frente!

Se você olha para trás, Deus pode te castigar, te transforma numa estátua de sal

[...]” (SABINO, 2006, p.184). Observa-se aqui uma alusão à esposa de Ló, sobrinho

do patriarca Abraão (Gênesis 19: 26), passagem que descreve o aviso de Deus de

que Ló e sua família deveriam sair da cidade de Sodoma, sem olhar para trás, pois

esta cidade seria destruída por causa do pecado. Germano utiliza o exemplo da

esposa de Ló para lhe expor sobre a ideia de suicídio como pecado: [...] “o suicida é

aquele que perdeu tudo, menos a sua vida. Quis salvá-la e quem quiser salvar a

vida perderá”. Na voz mística de Germano soa o discurso do versículo bíblico “pois

quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa, esse

42

a salvará” (Lucas 9: 24). Esta ideia, também, foi citada pela personagem Toledo,

escritor que iniciou Eduardo nas Letras. Germano expõe o ato do pecado como uma

escolha, uma vez que a esposa de Ló, ao sair da cidade, olhou para trás, desejou a

sordidez que Sodoma oferecia; ela sabia que esta atitude seria uma espécie de

suicídio, ao olhar para trás quis salvar o que desejava, sua vida de pecado, no

entanto, a perdeu, pois, foi transformada numa estátua de sal. Germano continua

sua fala em relação à atitude de um suicida:

[...] Não soube renunciar a si mesmo, não soube morrer – por isso se matou. O pecado dele é uma resolução afirmativa. A luta contra o pecado é a luta contra o suicídio. E no entanto, com a resolução negativa de continuarmos vivendo, estamos sustentando o mundo [...] (SABINO, 2006, p.184, grifos nossos).

No final deste diálogo, Germano cita outro caso, utilizando outra

referência bíblica: “[...] Veja o exemplo de Judas: condenou o mundo se suicidando.

Porque a salvação do mundo só poderia vir de Cristo.” Esta ideia de Germano, foi

exposta por Eduardo, há muitos anos, ao diretor do ginásio católico, onde estudava,

o que deixou Eduardo inquieto, por ouvir tais ideias na voz mística do velho

Germano, embora com novos acentos. Na voz de Germano, Judas, assim como a

esposa de Ló, não soube matar os seus desejos, ou seja, renunciar a sua cobiça

pelo poder, por isso se suicidou como uma atitude positiva na luta contra o pecado

da traição. Segundo Germano, o próprio suicídio é um pecado, porém viver, às

vezes, é uma atitude negativa diante do outro. De certa forma, Eduardo sente sua

vida como uma atitude negativa diante de Deus, o que lhe é mostrado pela

consciência de Germano.

Assim, as personagens recuperam discursos bíblicos que versam sobre

milagre, sacrifício, salvação, condenação e negação, numa indicação de que

Eduardo oscila em abdicar de tudo o que considera pecado em favor de uma

purificação interior. Vozes que se encontram, simultaneamente, neste diálogo que se

mostra rico em alusões a textos bíblicos. Corroborando com o pensamento

bakhtiniano, de que um romance não é um eco monofônico, mas resultado de “um

intercâmbio discursivo, uma tessitura polifônica na qual confluem, se entrecruzam,

se metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam outros textos, outras vozes e

outras consciências” (AGUIAR E SILVA, 2006, p. 625).

43

No diálogo com Germano, a respeito do seu compromisso com o

casamento, Eduardo, ao dizer “– Desgraçado daquele que vê: há de pagar pelo

crime de ter visto pouco” (SABINO, 2006, p. 207), é chamado por Germano de

Jesuíta. A voz de Germano leva à consciência de Eduardo a lembrança de que o

Monsenhor Tavares era um jesuíta. Soa na voz de Germano a ideia de que Eduardo

estava assumindo uma posição de ensinar, de evangelizar, levar as palavras de

Cristo, tal ideia é entendida por Eduardo, uma vez que se lembra do diretor do

ginásio. Observa-se neste diálogo, o tom parodístico ao discurso religioso (bíblico)

das “Bem-aventuranças”, proferido por Cristo no “Sermão do Monte”. Na voz de

Germano, o enunciado tornou-se outro, deslocou-se de seu sentido e derivou para

um outro, mas num tom irônico, insistindo na estrutura do texto, contudo esvaziando

o seu sentido.

[...] – Isso é um pastiche do Novo Testamento, não quer dizer nada, não resiste! Quer ver? Experimente: desgraçado daquele que ouve: há de pagar pelo crime de ter ouvido pouco. Desgraçado daquele que fala: há de pagar pelo o crime de ter falado pouco. Desgraçado daquele que anda, que dorme, que come... Serve para tudo e não serve para nada. Experimente agora com alguma palavra do Cristo, para você ver (SABINO, 2006, p. 207 grifos nossos).

Para apreendermos o efeito de sentido deste diálogo, faz-se necessário

uma leitura do texto bíblico recriado do livro de Mateus, capítulo cinco, versículos de

três a oito:

Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançaram misericórdia. Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus [...]. (Bíblia Sagrada, 1982).

O discurso das “Bem-aventuranças”, num tom solene, propõe uma

felicidade para aqueles que, de alguma forma, sofrem injustiças ou possuem alguns

atributos que os qualifiquem a herdar a terra prometida, ou seja, uma recompensa –

a salvação – aos que se mantiveram fiéis. O discurso de Germano, por sua vez,

numa linguagem comum, propõe um sentido antagônico ao termo “bem-aventurado”;

assim a recompensa para os “desgraçados”, ou seja, os “infelizes” é ser condenado

por não realizar intensamente a sua vida. Eduardo, ao protestar por ser chamado de

44

Jesuíta (“– Eu quis dizer apenas que quem vê as coisas como elas são, há de pagar

por não ter visto como elas deviam ser”) , já expressa a tomada de consciência de

sua realidade, em relação à crise de seu casamento com uma pessoa bem acima do

seu status social.

Observa-se, em outro bloco dialógico, entre Germano e Eduardo, uma

outra ideia a respeito da fé, através da alusão ao personagem central da parábola do

filho pródigo, que se encontra no livro de Lucas (15:11-32). Ao fazer este jogo

dialógico, o narrador expõe a escolha do filho pródigo pelos valores materiais, uma

vez que, ao pedir sua parte da herança do pai, segue para uma terra distante e

passa a viver dissolutamente. Evidencia-se o seu retorno ao lar paterno, num

discurso em que aqueles que se arriscam, não têm medo de errar, que podem ser

considerados ou se consideram à margem da sociedade, são estes que Deus

agracia e os aceita, pois, espiritualmente O Criador consegue enxergar o que as

pessoas ainda não veem, o que o outro ainda não é, Deus vê o avesso, olha com

outra perspectiva. Eduardo encontrava-se no dilema de permanecer neste mundo ou

retornar aos caminhos do Pai. Segundo John Drury (1997), quando ocorrem

parábolas em narrativas, elas, como parte da história, compartilham de propriedades

como envolver seus ouvintes ou leitores com um interesse pela própria narrativa. A

parábola do Filho pródigo é aludida por Germano através de interrogações, o que

estimula Eduardo a saber do que se trata:

– Me diga por que Deus gosta mais do filho pródigo, se é capaz. – Porque voltou. – Não senhor. E o outro, que nem saiu? – Então por quê? – Porque ele era mais simpático, só por isso. Assim deve ser a justiça de Deus: diferente da dos homens, a gente não sabe como é, Deus gosta mais de uns que de outros e isso não é injustiça não, ouviu? Ele sabe o que faz, tem suas preferenciazinhas. Deus gosta, por exemplo, mais dos poetas, dos mendigos, dos doidos, dos pródigos. E sabe por quê? – Não – confessou Eduardo – Porque o homem é o brinquedo de Deus. (SABINO, 2006, p.207-8).

Como histórias dentro de histórias, as parábolas, segundo Drury (1997,

p.459), “se movimentam ao longo da linha do tempo refletindo, do momento

intermediário que ocupam, sobre o passado, que foi contado, e o futuro, que ainda

está por ser contado”. A ideia de arrependimento, experiência e recompensa

45

àqueles que lutam por seus ideais, que simboliza a figura do filho pródigo, aparece

duas vezes na narrativa: na primeira confere ao romance uma mistura do oculto e do

declarado pela voz mística de Germano; na segunda, no próprio discurso de

Eduardo já amadurecido, ao se referir ao filho de Misael: “[...] o menino é bom, deixe

ele ir para a frente, não se assuste nunca com ele! O Filho pródigo teve vitelo, o

outro não” (SABINO, 2006, p.282). Desta vez, o fio do discurso religioso, que soou

na voz de Germano, é apanhado pela voz de Eduardo, que, no entanto, num

contexto de um conto mais lúcido, com um teor humanista e uma concepção mais

otimista da realidade o lança ao amigo Misael, sobre seu filho que deseja ser

escritor.

A perspectiva de um autor em relação à história toda, de acordo com

Drury (1997, p. 460):

equivale à de alguém dentro da história em relação à fase dela em que conta uma parábola. Para fazê-lo, ele se envolve para a ocasião no manto da profecia e mantém-se à parte: como Ivã em Os irmãos Karamazov ao contar sua inquietante parábola do Grande Inquisidor a seu irmão devoto Aliosha. Importa muito saber quem conta uma parábola. Pelo próprio ato de fazê-lo, ele se investe de algo da percepção como que divina do próprio autor – mas geralmente com apenas o que lhe basta como personagem.

Desta forma é o ponto de vista de Germano que parodia a parábola, não

o do autor pura e simplesmente, de modo que o precioso elemento da obscuridade é

preservado pela voz da personagem. Na voz de Germano soa uma espécie de

profecia, e deste modo a personagem plenivalente figura como se estivesse acima

da narrativa do tempo intermediário em que se encontra – tempo presente –, ou

seja, como se ela conhecesse o passado e o futuro de Eduardo. Ao mesmo tempo,

Germano é uma personagem histórica dentro da narrativa, representa uma voz

mística e paradoxal.

Observamos, ainda, um discurso que se orienta ao refúgio do bem e a

pureza do discurso bíblico da fé, que enseja a esperança e tende para a exaltação:

“– Creio em Deus Pai, todo-poderoso, criador do céu e da terra, e em Jesus Cristo,

um só seu filho” (SABINO, 2006, p. 280) e ainda “O amor como regra, não como

exceção. Elevado a perfeição, tudo e todos, seria talvez o amor de Cristo pela a

humanidade quando disse que seus irmãos eram aqueles que o ouviam. Que O

ouviam” (SABINO, 2006, p. 260). Esses excertos evidenciam um discurso religioso

46

(bíblico) revelando um tom messiânico de esperança em Cristo. Ao dialogar com a

Bíblia, Sabino introduz, na estrutura do romance, aspectos oriundos da história do

cristianismo.

Na consciência de Eduardo se introduz uma nova concepção do discurso

religioso pela voz do frei Domingos, que exercerá papel fundamental em seu

processo de formação. Frei Domingos o faz se sentir mais confiante e humano,

ajudando-o a perceber os outros. O próprio nome Eugênio, depois Domingos,

participa da ação que ele desempenha no romance. São nomes que remetem a um

simbolismo revelador: o primeiro bem nascido; o segundo o que nasceu no domingo,

apontando para nascimento, para uma possível renovação de Eduardo:

– Por que eles tinham que fazer uma coisa dessas comigo? E eu que já começava a acreditar nos outros... como a natureza humana pode ser tão sórdida? – Você está enganado. A natureza humana não é sórdida. Você diz: e eu que começava a creditar nos outros... A solução não é acreditar nos outros, mas em Deus. E tudo mais vem por acréscimo. – Não mete Deus nisso não, frei Domingos [...] (SABINO, 2006, p. 266 – grifos nossos).

O discurso religioso trazido pelo frei Domingos, do livro bíblico de Mateus

(6:33) – “Buscai, pois em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas as

cousas vos serão acrescentadas” – , soa diferente aos ouvidos de Eduardo e lhe

traz uma nova visão da vida, das pessoas e até mesmo de Deus. Os olhos do frei

enxergam além da realidade, perscrutam até a mente de Eduardo envergonhando-o

e, ao mesmo tempo, trazendo-lhe reflexões. Os olhos do frei Domingos diferem do

olhar paradoxal de Germano e do olhar cético de Mauro e Hugo. Frei Domingos, por

sua vez, olha como quem vê além, e parece dizer coisas que Eduardo ainda não

estava preparado para compreender.

As constantes citações de passagens bíblicas mostram que Sabino

assimilou aspectos do discurso religioso. Tais passagens se incorporaram à

narrativa como vozes representativas de uma concepção ético-religiosa do mundo,

participantes da estrutura polifônica da obra O encontro marcado em isonomia com

as outras vozes. O encontro marcado apresenta um discurso polêmico sobre

crucificação, salvação, negação, pecado, sacrifício e a possibilidade da existência de

milagres. O romance expressa, através do discurso religioso, o modo de ver e a

vivência do religioso pelo homem. Sabino auscultou relações dialógicas em

47

manifestações da vida humana, ou seja, em esferas da atividade humana, como a

religião e a literatura, uma vez que tece diálogos com estes discursos. O autor não

criou uma imagem acabada para seu herói, desprovida de um contexto social; da

Bíblia e da tradição literária foram extraídos elementos para a imagem das ideias de

Eduardo, sem preocupações de lhe dar uma visão integral. É evidente que o

contexto não se resume a estes diálogos, mas nestes reside a força de O encontro

marcado.

1.2 Diálogos com a tradição literária I: a literatura como agente de formação

A formação das personagens em O encontro marcado se dá, também,

pelo diálogo com alguns textos que constituem, neste romance, um grande e

múltiplo texto literário, vindo de tempos anteriores, que podemos chamar de tradição

literária. Assim, esta sessão tem o objetivo de realizar uma abordagem sobre o

diálogo do romance de Sabino com a tradição literária; não nos interessa aqui

especificar a linha individual de cada escritor citado, mas trazer o conjunto de

histórias vivenciadas pela personagem Eduardo Marciano e seus amigos, os quais

se relacionam em situações de um intenso confronto discursivo, convergindo ou

subvertendo os textos que leram e as ideias por eles discutidas.

Visto que na narrativa cada personagem, no diálogo com suas leituras,

traz uma multiplicidade de obras e autores citados ou aludidos, na qual há uma

recuperação do passado no presente, depreendemos deste conjunto universal de

textos a mescla de quatro linhas: a dramática mística; leituras ético-religiosas; de

subversão social e irônica; e uma amena linha psicológica, apenas como tendências

à perfeição da obra de arte. Para empreendermos nossa análise, vamos levar em

conta o todo das concepções, uma vez que são amplas e ainda podem sugerir

outras ramificações de acordo com outras épocas. Sabe-se, pois, que são atribuídos

à literatura vários conceitos e funções distintas, condizentes com a realidade cultural

e, portanto, social, de cada época.

Dalton Trevisan (1996, p. 56), ressalta que o livro de Sabino “não só é um

romance, como arte de romance”; o autor atribui isto ao modo como Sabino

apresenta as personagens, os diálogos e o tempo proposto no romance. Trevisan

observa, ainda, que o romance “tem qualquer coisa do livro Retrato do artista

48

quando jovem, na sua lucidez implacável, na sua confissão além das palavras, no

seu testemunho da verdade” (1996, p. 56). Por sua vez, Suzana Costa (2007, p.

101) em seu estudo sobre a hibridização do romance de Sabino com as crônicas,

ressalta a difícil e dolorosa educação, pela qual Eduardo Marciano passa, atribuindo

a partir deste fato a concepção de que “O encontro marcado é um romance de

formação às avessas”. Comentário, este, pertinente, pois, uma vez que Trevisan

associa O encontro marcado ao romance de James Joyce, com forte influência do

gênero Bildungsroman, ou como é mais conhecido no Brasil, romance de

aprendizagem ou de Educação20, e Costa o reconhece como romance de formação

às avessas, evidencia-se, deste modo, um forte pendor satírico e irônico da

construção de Sabino.

A formação literária das personagens do romance O encontro marcado21

também passa por uma formação humanística, sugerida logo na primeira parte do

texto. Formação esta que passa por alguns percalços já iniciados na fase do

Ginásio, quando o protagonista Eduardo, incentivado pelo professor de português,

começa a escrever contos e romances policiais, em seguida os gramáticos passam

a ser seus novos heróis. Ainda no Ginásio, Eduardo, ao brigar com o amigo Mauro,

foi mandado para a sala do diretor, Monsenhor Tavares, onde, além da conversa

sobre a sua falta de assiduidade nas aulas, inicia-se um diálogo, no qual vozes da

esfera literária começam a se entrelaçar na estrutura do romance. Questionado

sobre o que andava lendo na Biblioteca, Eduardo responde que já havia lido tudo,

menos o que era proibido aos alunos, entre eles Machado de Assis, Eça de Queiroz,

Flaubert e Balzac. Autores que, segundo Harold Bloom (2003), podem ser

considerados irônicos e trágicos em suas fantasias satíricas que refletem os seus

dilemas sociais. Mestres da ficção que convergem para dois aspectos afins: “o

impulso sexual masculino e o mistério do equilíbrio entre o feminino e o masculino,

nos processos naturais” (p. 667). Eis uma boa razão para o jesuíta Monsenhor

20

Romance que surgiu na Alemanha, na segunda metade do século XVIII. Gênero estudado por Bakhtin (2003) a partir das obras do escritor alemão Goethe “Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister” e “Os anos de viagem de Wilhelm Meister”. Nestes estudos se destacam três fatores e, consequentemente, três aspectos da teoria de Bakhtin: a imagem do homem em formação, o herói “não pronto”; uma leitura de tempo-espaço do mundo; peculiaridades do discurso no romance (o plurilinguismo e a representação plurivocal do romance). O estudo do tempo e do espaço no romance contribuiu para a formulação da categoria do cronotopo, abordada no ensaio As formas do tempo e do cronotopo no romance (1998), já iniciada na obra O problema da poética de Dostoiévsk (2006a), na qual é ressaltado o cronotopo do limiar e da praça pública. 21 Nas edições mais recentes do romance O encontro marcado, Fernando Sabino incluiu notas explicativas sobre os escritores citados em sua obra.

49

Tavares não permitir a leitura dos chamados “livros proibidos”. Irritado com a

resposta de Eduardo, o diretor voltava ao tom “familiar, conselheiral”, arrematando:

– Tem Euclides da Cunha.... – Já li. – Já leu? “Os sertões”? – Só “O homem” – admitiu ele: – “A Terra” é muito chato, só tem descrição... – Não diga isso, meu filho, não diga isso – murmurava o padre, sem ênfase, já pensando em outra coisa. – Tem Rui Barbosa... Você não gosta de Rui? – Não. – Por quê? – Acho que eles exageram muito a importância de Rui Barbosa, na falta de outro (SABINO, 2006, p. 41-2).

O valor de Euclides da Cunha e de sua obra Os sertões, já estabelecido

pela tradição, é questionado pelo jovem literato Eduardo, que, em seu discurso

dúbio, admite ter lido a segunda parte (“O Homem”) e considera a primeira (“A

Terra”) entediante. Numa oscilação constante, o herói não se prende aos valores

materiais, uma vez que seu mundo, seria um lugar vazio, superficial, ocupado

apenas por descrições, ou seja, valores que não fazem sentido para Eduardo. No

entanto, sua realidade está repleta de questões econômicas, sociais, políticas e

éticas, cujo sentido ele vai apreendendo em seu processo de tomada de consciência

de sua realidade. Além disso, é preciso ressaltar que o diretor permitiu que Eduardo

lesse os “livros proibidos”, o que causou o espanto dos outros alunos, e do próprio

Mauro, que saiu da sala assim que pediu desculpas ao amigo pelo incidente da

discussão, enquanto o outro, Eduardo, irredutível, permaneceu na sala, o que

culminou num diálogo entre o discurso religioso e o estético.

O narrador, além de expor a ideia de salvação e condenação no limite das

consciências de Eduardo e do Monsenhor Tavares, dialogicamente cruzadas,

destitui a forma monológica fechada da voz conservadora do padre e a inclui no

“grande diálogo” do romance, no qual se observa um diálogo entre o estético e o

religioso, numa plena dialogização de esferas discursivas, que reúne as ideias e

concepções de mundo diferentes ou consonantes. São encontros dialógicos de

ideias dispersas, nos quais o processo de luta com a palavra de outrem, segundo

Bakhtin (1990), tem uma influência imensa na “história da formação da consciência

individual” (p.147), posto que “uma palavra, uma voz que é nossa, mas nascida de

outrem, ou dialogicamente estimulada por ele, mais cedo ou mais tarde começará a

50

se libertar do domínio da palavra do outro” (idem). Tal processo “se complica com o

fato de que diversas vozes alheias lutam pela sua influência sobre a consciência do

indivíduo.” (id., ibid., p.148).

Pelo processo do diálogo intertextual, vozes literárias do passado ecoam

pelas vozes das personagens, que dinamizam no presente a expressão de uma

busca pela autoconsciência de si e da presença do outro. Eduardo passou a

escrever vários contos, sendo que dois foram premiados em concursos, o que o

impulsionou a se tornar escritor e a desejar publicar um livro. Seu pai, Marciano, o

incentivou a procurar seu amigo Toledo, escritor conhecido nos meios literários,

porém, desiludido por não conseguir se afirmar. Toledo repassa suas experiências

ao jovem Eduardo:

– Meu erro foi acreditar que a vida poderia fornecer material para a minha literatura. Viver escrevendo. Não escrevi o que devia – este foi o meu erro. – E seu romance, publicado agora? – É uma merda. – Então por que publicou? – Porque não havia outro jeito, já estava escrito. Escrever é renunciar. Gide disse que o diabo desta vida é que entre cem caminhos, temos que escolher apenas um e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove. Pois bem: a literatura é como se você tivesse que renunciar a todos os cem... Eduardo nunca ouvira falar em Gide (SABINO, 2006, p. 44).

Ao citar o escritor André Gide, Toledo arremata: “– Parece preceito

evangélico: aquele que perder a sua vida a salvará. Mas às avessas, procurar Deus

onde ele não se encontra. A atividade literária é exatamente isso” (SABINO, 2006, p.

44). Toledo tenta conferir a Eduardo a sua experiência: para dedicar-se à literatura

Eduardo deveria esquecer tudo. A ideia de escolha, renuncia, permanecerá viva na

consciência do protagonista, como palavra interiormente persuasiva. Do diálogo com

Toledo ficou o pensamento de que “escritor é mesmo gente esquisita”, Eduardo

repetia as palavras do pai ao ouvir Toledo emitindo “conceitos sobre Deus e o

mundo, sobre literatura, dizer que a vida é uma merda” (id., ibid., p.45). O escritor

emprestou a Eduardo livros de contos, em francês, de Merimée, Flaubert e

Maupassant, os quais ele passou a ler com a ajuda de um dicionário, e concluiu

imitando o seu novo amigo “se isso é que é boa literatura, então meus contos são

uma merda” (id., ibid., p. 46).

51

Ao terminar o Ginásio, Eduardo começou a trabalhar na redação de um

jornal, contra a vontade dos pais, desejosos que ele continuasse seus estudos. Lá,

conhece Veiga, que passou a publicar seus artigos de crítica literária no suplemento

de domingo, e também Hugo, apresentado por Veiga:

– É o melhor livro dele – dizia o rapaz – Prefiro “Fome”. Mais autêntico, mais humano – e o Veiga voltou-se para ele: - Você já conhece o Hugo? – Ainda não. – Ele disse que já te conhece. – Só de vista disse o rapaz e de ler. – De ler? [...] – O que é que vocês estão conversando? – Knut Hamsun – respondeu o rapaz. – Já leu? (SABINO, 2006, p.48).

Neste diálogo, a obra Fome, do escritor norueguês Knut Hamsun,

vencedor do prêmio Nobel de 1929, é citada por Veiga e Hugo, que se mostram

influenciados por uma “literatura proletária”. Tal literatura também marcará a vida de

Eduardo e Mauro, cuja amizade dos tempos do Ginásio volta a florescer a tal ponto

que são apelidados, juntamente com Hugo, pelos literatos do jornal, de “gênios

incompreendidos”. Mesmo trabalhando no jornal, Eduardo mantinha contatos com

seu amigo romancista, Toledo, que continuava a lhe emprestar livros, entre eles o

romance Crime e castigo, do escritor russo Dostoiévski, cujo herói marca a formação

de Eduardo, uma vez que se sente encarnado no próprio personagem Raskolnikoff,

nos seus devaneios literários e místicos:

Leu os romancistas brasileiros, alguns franceses, esqueceu tudo em favor de Dostoiévski. Sentia-se encarnado em Raskolnikoff, chegou a pensar em cometer o crime perfeito. Aos poucos se evidenciava para ele a superioridade do ser perseguido sobre o ser perseguidor. Mauro, com quem voltara a encontrar-se, partilhava de igual entusiasmo, era seu cúmplice na aventura: – Sem nenhum motivo. Matar alguém sem nenhum motivo, jamais descobrirão (SABINO, 2006, p. 53).

Candido (2004), no ensaio A personagem do romance, analisa alguns

tipos de personagens, levando em consideração o ser fictício e o grau de

afastamento em relação ao ponto de partida na realidade. O crítico considera que há

personagens que obedecem a certa concepção de homem reunida pelo autor de

forma “a supormos uma espécie de arquétipo que, embora nutrido de experiência de

vida e da observação, é mais interior do que exterior” (CANDIDO, 2004, p. 73).

52

Como exemplo, Candido aponta, além das personagens de Machado de Assis, “em

geral homens feridos pela realidade e encarando-a com desencanto” (idem),

algumas personagens de Dostoiévski,

encarnando um ideal de homem puro, refratário ao mal, – ideal que remonta a uma certa visão de Cristo [...] Aleixo Karamazov e, sobretudo, o Príncipe Muichkin, – além de tantos “humilhados e ofendidos”, que parecem resgatar o mundo pela sua condição, e que têm, no campo feminino, a Sônia Marmeládova, de Crime e Castigo (p. 73-4).

O protagonista Eduardo, no plano do idealismo, estaria mais para estas

personagens, uma vez que sua inspiração para o ascetismo o leva a resistir ao “mal”

e aos valores materiais com uma inclinação ao que é Divino. Donaldo Schüler (1989)

ao se referir às categorias gerais das personagens, inscreve o Dom Casmurro

machadiano na mesma categoria da personagem de Sabino – desarraigados –

considerando que “a personagem volta-se ao passado não para recordar o familiar,

mas para entender o estranho” (SCHÜLER, 1986, p. 45), tendo em vista que

Eduardo Marciano

Anda a procura da coisa, símbolo do que lhe falta. Por não saber o que é, a coisa pode significar tudo [...] símbolo de uma falta absoluta, lugar vazio que nunca será preenchido. [...] Vivendo na confluência de dois mundos que se excluem, não sabe decidir-se por nenhum. (p. 45-6).

Ao longo de sua procura, Eduardo se depara com valores sociais,

religiosos e literários. Vive conflitos que poderiam situá-lo na categoria, de indivíduo

problemático, de Georg Lukács (2003), uma vez que este protagonista busca valores

autênticos, num mundo inautêntico e reificado, ou seja, em uma sociedade

degradada. Contudo, o modelo reificado do mundo, segundo Bakhtin (2003, p.348)

“é substituído pelo modelo dialógico”. No romance se manifesta, em procedimento

composicional de representação, as vozes-sociais que Eduardo resguarda no

cadinho de sua consciência, conflitos entre o que ele era e o que gostaria de ser –

um escritor. Oscilação que o coloca na confluência de extremos que não se

harmonizam, assim a relação de Eduardo com os valores humanos e a fé cristã , se

dá em relação de conflito, pois este herói não deseja reconhecer a necessidade que

tem de ouvir a palavra do outro; o processo de busca de significação confere a

Eduardo Marciano o encontro com o olhar do outro, com a palavra do outro, uma vez

53

que, segundo o autor russo, a vida e a palavra se fundem no “diálogo inconclusível”,

por serem vias duplas de natureza dialógica, o que, por sua vez, exige uma forma

plural de composição do romance.

Bakhtin (2003, p. 350), ao expressar sobre a “relação integral de todo o

homem com um valor supremo e final”, aponta as personagens dostoievskianas

como, “tipos de pessoas que não conseguem viver sem um valor supremo e ao

mesmo tempo não podem realizar a escolha definitiva desse valor”. A personagem

Eduardo, realmente, não consegue viver sem um valor supremo e o busca no

esporte, no casamento, na fé, na literatura, entretanto ele não decide por qual valor

lutar. Assim o herói polifônico22 do romance O encontro marcado, além de buscar

“valores autênticos”, se coloca numa posição de fronteira, pois, para ele, não há um

valor supremo definitivo.

Em O romance e a voz, a concepção de Irene Machado, (1995, p. 292),

endossa a nossa percepção ao afirmar que, em Bakhtin, “o deslocamento do homem

consigo mesmo representa o desencontro entre o seu modo de ver o mundo e a

perspectiva do outro – autor ou personagens – o que gera a polifonia e a

multiplicidade de estilos da forma romanesca”. Segundo Bakhtin (2006a, p. 53), num

“clima social sumamente complexo e sutil em torno da personagem”, o autor “a leva

a revelar-se dialogicamente, a elucidar, captar aspectos de si mesma nas

consciências alheias e construir escapatórias, protelando, expondo sua última

palavra no processo da mais tensa interação com outras consciências”. A

personagem Eduardo e seus amigos, sem o apoio do grupo do jornal, percorrem um

longo caminho em busca do sentido da vida e, numa espécie de “polifonia literária”,

os três amigos juntos “faziam suas descobertas literárias” (SABINO, 2006, p. 54).

Ao se encharcarem de literatura de cunho estritamente político, os três

amigos começam a incorporar em suas falas versos de grandes autores. Desta

forma, é interessante traçarmos um panorama, ainda que geral, dos contextos em

que os versos citados nos trechos a seguir foram produzidos. Nosso objetivo não é

estudar o contexto de cada obra, sob o ponto de vista estritamente historicista, mas

22 Nosso objetivo não é colocar as personagens de Sabino no mesmo patamar das personagens de Dostoiévski, pois não se trata de um estudo comparativo. Obviamente, a personagem de Sabino, não alcançou, ainda, uma projeção universal, e talvez não seja tão profundo quanto um Raskolnikoff, contudo Eduardo Marciano revela uma capacidade de incorporar vozes, simultaneamente, de viver na fronteira do limiar, e de levar o leitor a visualizar cada gesto, cada palavra, cada tom de sua voz, como se Eduardo fosse um duplo da consciência de seus leitores. O que por sua vez confere ao romance uma pluralidade de manifestações dialógicas.

54

observarmos as relações de consonância ou conflito na composição da narrativa de

Sabino, uma vez que o deslocamento dos versos para o contexto do romance pode

culminar em fenômenos nos quais o discurso é duplamente orientado, ou seja,

ouvem-se no mínimo duas vozes, uma vez que o dialogismo permite a relação com

o enunciado do outro:

Que literatura proletária! Verlaine, isso sim; Rimbaud e Valéry. Juntos choravam Baudelaire, Neruda, Garcia Lorca, Fernando Pessoa, soltos pelas ruas: – Sucede que me canso de ser hombre! – La luz del entendimento me hace ser muy comedido. – O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas... (SABINO, 2006, p. 54).

Segundo Otto Carpeaux (1972), os autores franceses, entre outros,

citados na narrativa, são criadores de um mundo poético, caracterizado pela

musicalidade do verso, pela suntuosidade verbal e pelo sincretismo religioso.

Carpeaux entende que essa musicalidade e as expressões vagas destes autores

pareciam atentados contra a suprema conquista do intelectualismo francês, sendo

que o interesse desses escritores pela religião ou “por todas as formas, por mais

esquisitas que fossem, da religiosidade e do misticismo, era outro atentado contra a

indiferença do liberalismo em matéria religiosa e contra o ateísmo dos naturalistas”

(p. 2574). Carpeaux (1972) aponta esses autores franceses como poetas do

simbolismo, cuja prática poética fornece “a base de toda a poesia moderna” (p.

2575).

Desta forma, as personagens da narrativa O encontro marcado

condensam nos três versos dos poetas modernistas de língua de origem latina o que

já se instalava em toda a Europa e começa a surgir no Brasil no inicio do século XX:

o desejo de renovação artística e social que atingia toda uma comunidade. No

excerto acima, de autores considerados modernos, mas com raízes no simbolismo,

temos o primeiro verso de Pablo Neruda, o segundo de Garcia Lorca, e o terceiro de

Fernando Pessoa. São poetas que viveram no primeiro momento de crise que, no

século XX, iria dividir o tradicional e o moderno. Estes versos traduzem o sentimento

de incertezas de Eduardo que, após a leitura dos “clássicos”, resolve renegar o que

havia escrito e fazer novos contos, influenciado pelo comentário que Toledo fez, ao

dizer que faltava poesia em sua escrita. E, ainda, essa atitude dos amigos de

recitarem intelectualmente versos pelas ruas também são ecos nos quais ressoam

55

uma luta contra uma liturgia fechada, um sistema político autoritário que se fazia

presente, ou seja, era uma atitude contra o tradicionalismo de uma sociedade

paralisada quanto às formas de vida. Contudo o novo já se esboçava no campo da

criação artística, ainda que com um certo cansaço, comedimento, ou um silêncio

com todas as suas variações. Assim, o novo e o velho soam simultaneamente, numa

posição de fronteira, uma vez que não há como negar ou afirmá-los com o prejuízo

de desmistificar a soberania de cada um.

Nos versos do trecho acima não foram colocadas aspas, o que não altera

o tom, a voz nem a construção da frase, contudo as aspas não foram colocadas nos

versos a seguir por acaso. Os três amigos incorporaram também às suas falas

citações de grandes poetas brasileiros e saíam pelas ruas da cidade recitando os

versos de poetas modernistas, como Carlos Drummond de Andrade, Mário de

Andrade, Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes, numa ânsia de elevação literária,

de renovação, de pluralizar o mundo:

– “Mundo, mundo, vasto mundo”! – “Grito imperioso de brancura em mim”! – “Meu carnaval sem nenhuma alegria”! [...] – “Mijemos em comum numa festa de espuma”! (SABINO, 2006, p.57).

No início de um processo renovador em que o país estava vivendo, ou

seja de um momento cultural efervescente, como o modernismo, no qual começam a

ruir as formas tradicionais no campo cultural das atividades humanas a personagem

Eduardo e seus amigos já sentiam o sabor da renovação, embora à sua volta só

houvesse a estagnação do presente, uma vez que escreviam apenas para o jornal

no suplemento de domingo. Já eclodia em suas vozes, através dos versos citados,

um grito de renovação, embora preso pela indicação do uso de aspas. Em seus

mundos, Eduardo, Mauro e Hugo encontram uma diversidade de vozes, ao mesmo

tempo, trata-se de um mundo individual, comprometido, no entanto, com a realidade

social, a qual não sabiam colorir, uma vez que apenas a brancura de uma terra não

explorada imperava sobre eles, suas próprias vidas, onde buscavam a liberdade, em

versos ou vozes livres, de expressão. Em seguida, ironicamente, alguém sugeriu o

inusitado “– Vamos subir no Viaduto?” (ib. ibid.). Lá em cima observaram a cidade,

os trilhos da estrada de ferro, então sentiram o desejo de se equilibrarem, passado –

presente, tradição – renovação, fé – valores humano. Passando um pelo outro, os

56

três amigos oscilavam e propunham (“mijemos em comum numa festa de espuma!”)

um exercício de liberdade que deveria ser feito em conjunto por eles, ainda que o

conservadorismo os coibisse de se expressarem.

Os amigos estavam sempre a conversar por citações, os versos usados

entre aspas ou sem aspas são sentidos e empregados como palavra do outro,

conforme Bakhtin (2003), pode indicar, ainda, uma gradação infinita no grau de

assimilação desta palavra. Assim, numa construção híbrida23, Sabino não utiliza

aspas, como se as citações já estivessem totalmente incorporadas ao discurso das

personagens. No trecho a seguir, isto se reflete na estrutura do próprio enunciado,

no qual Eduardo, como numa espécie de “gíria familiar”, cita uma sequência de

versos de Drummond, evidenciando o estado em que se encontravam as

personagens que vivem intensamente a realidade poética e ficcional das obras que

leem a tal ponto que não fazem distinções entre o real e o imaginário:

– Perdi o bonde e a esperança, volto pálido para casa, cismando na derrota incomparável, sem nenhuma inclinação feérica, com a calma que Bilac não teve para envelhecer, tudo somado devias precipitar-te de vez nas águas, seria uma rima, não seria uma solução – eta vida besta, meu Deus. (SABINO, 2006, p. 70 – grifos nossos)

A personagem Eduardo se reflete num presente cindido pelo passado e

pelas indagações acerca do futuro. Neste discurso, temos a voz da personagem que

se revela lúcida, sem tendências a crer em algo extraordinário em sua trajetória, de

um ponto de vista cético; a voz de Eduardo, num tom satírico-humorístico, une o

verso do poema “Sete faces”, e o verso final do poema “Cidadezinha qualquer”, no

qual o eu poético se refere a uma cidade tranquila, onde se olham as coisas naturais

do dia a dia, uma vida simples e calma, no qual tudo se harmoniza “pomar amor

cantar” – algo entediante para o eu poético. Com a agitação em que Eduardo vivia –

trabalho, casamento, arte, fé –, aponta-se os conflitos de um sujeito, em que uma

harmonia seria apenas um paliativo, não seria uma resposta para seus dilemas, uma

vez que a vida corre o seu percurso (“devias precipitar-te de vez nas águas”) e o

23 Enunciado que, segundo índices gramaticais e composicionais, pertence a um único falante, mas onde na realidade, estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas “linguagens”, duas perspectivas semânticas, entre os quais não há nenhuma fronteira formal, composicional e sintática: a divisão das vozes e das linguagens ocorre nos limites de um único conjunto sintático; frequentemente, nos limites de uma proposição simples um mesmo discurso pertence simultaneamente às duas perspectivas que se cruzam numa construção híbrida. (BAKHTIN,1998, p.110). .

57

olhar de Eduardo percorre o eu que “se esconde no outro e nos outros, quer ser

apenas outro para os outros, entrar até o fim no mundo dos outros como outro, livrar-

se do fardo do eu único (eu - para -si) no mundo” (BAKHTIN, 2003, p. 383).

Com relação ao “discurso do outrem”, Sabino, ao utilizar na narrativa, o

discurso citado, faz referência ora ao nome da obra, ora ao do autor, e por vezes ao

seu verso consagrado. Na análise que Bakhtin (2006b, p.47) faz deste discurso, ele

o concebe como “discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao

mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação”,

ou seja, “enquanto aquilo de que nós falamos é apenas o conteúdo do discurso, o

tema de nossas palavras, o discurso de outrem constitui mais do que o tema do

discurso; ele pode entrar no discurso e na sua construção sintática” (idem).

Assim, observamos outras relações de sentido, quando Eduardo começa

a ler Marcel Proust24 com certa aversão, o que causou o protesto de Hugo, por se

tratar de seu autor de cabeceira:

– Você não tem sensibilidade para esse tipo de leitura. – Pois um dia hei de ter: quando você não tiver mais. E se afastou ressentido [...] – Pois vou começar a estudar inglês. É uma vergonha a gente ainda não ter lido “Ulysses”. [...] – Olha aqui, você lê, depois me conta. Agora não tenho tempo [...] (SABINO, 2006, p. 71).

Eduardo passa a ter novas experiências pela literatura, pelo diálogo com

autores de diversas linhas e pensamentos sobre a vida e a arte. Através do diálogo

com Hugo sobre Proust, apreende que “as relações humanas, os mais íntimos

contatos de ser, nada mostram do semelhante, enquanto a arte nos faz entrar num

domínio de conhecimentos absolutos” (CANDIDO, 2004, p. 64). Na vida Eduardo e

24

Bakhtin (2006a, p. 38), comentando as considerações das concepções errôneas “acerca do subjetivismo e do individualismo do psicologismo de Dostoiévski”, cita o crítico V.Kirpótin, que rechaça tal abordagem e enfatiza o caráter realista e social de sua obra: “Diferentemente do psicologismo degenerado e decadente como o de Prost ou Joyce, que marca o ocaso e a morte da literatura burguesa, o psicologismo de Dostoiévski, em suas criações positivas, não é subjetivo mas realista. Seu psicologismo é um método artístico especial de penetração na essência objetiva da contraditória coletividade humana, na própria medula das relações sociais que inquietavam o escritor, é um método artístico especial de reprodução de tais relações na arte da palavra... Dostoiévski pensava por imagens psicologicamente elaboradas, mas pensava socialmente”. Para Bakhtin, Kirpótin compreendeu precisamente este “psicologismo de Dostoiévski”, “como visão realista-objetiva da coletividade contraditória das psiques dos outros”, o que, consequentemente, segundo Bakhtin, o leva “à correta compreensão da polifonia de Dostoiévski”, embora, como afirma o crítico, Kirpótin “não empregue esse termo”.

58

seus amigos não encontram possibilidades de certezas e, assim, a literatura, mesmo

sem lhes dar verdades sólidas, oferece-lhes a possibilidade de uma visão mais

distanciada e complexa da vida; Eduardo chega a aprender inglês para ler o Ulysses

de James Joyce, pois achava uma vergonha o grupo não ter lido. Por sua vez,

Mauro, a este respeito, se mostrou indiferente limitando-se a erguer os ombros,

numa polêmica velada25 ele representa, nomeia, enuncia e só indiretamente ataca o

discurso dos amigos insinuando que não precisava que a arte lhe mostrasse o seu

mundo interior e seus temores; preferindo, de forma oculta, mais contundente e

realista, expressar a sua maneira de ver a vida: “[...] também estou trabalhando:

estou vendendo remédio” (SABINO, 2006, p. 71). A ideia de Eduardo não entra

diretamente no discurso de Mauro, apenas se reflete na voz de Mauro,

determinando-lhe o tom e a significação de hostilidade.

As vozes das personagens se apresentam plenivalentes, não de modo

isolado, mas em simultaneidade com a visão das contradições de sujeitos isônomos

regidos pela narração em terceira pessoa, que na segunda parte do romance,

apresenta uma personagem influenciada por novas leituras, por uma “nova linha de

pensamento”, mais ético-social, como a do teólogo Eric Gil. Ao experimentar várias

inquietações, Eduardo resolve escrever um livro, firmando suas convicções. Após

pensar em ideias socialistas cristãs, ele se questiona “– Serei um anarquista?” Eis a

resposta: “Não, era simplesmente romancista. E o romancista é um inocente, não

sabe nada senão escrever” (SABINO, 2006. p.181). Numa coexistência e interação

de diversidades, Eduardo volta-se para o estético, então resolve “Aprender a

escrever. Regressou à ficção” (id. ibid). No entanto, Eduardo apenas conseguia

escrever artigos sobre a arte de escrever, como se estivesse se preparando para ser

romancista.

Em discurso citado, estilo indireto livre, o narrador expõe o romance

qualificado por Eduardo como uma obra-prima, Guerra e paz, do escritor Leon

Tolstoi, considerando-a um marco divisor da literatura. A própria vida de Eduardo se

dividia entre a Guerra e a paz – A procura e O encontro. Para ele, não existia nem o

25 Bakhtin (2006a, p. 196) expressa que, às vezes, é difícil traçar uma linha nítida entre o discurso polêmico velado e o aberto. Mas as diferenças de significação são consideráveis: o polêmico aberto está orientado para o discurso refutável do outro. Já o polêmico velado está orientado para um objeto habitual, ou seja, ataca o discurso do outro, entrando em conflito com ele indiretamente.

59

antes nem o depois, mas o momento presente, o eterno limiar, oscilante entre o

velho e o novo, a tradição e a renovação, vozes de sua formação paradoxal:

A literatura se dividia em duas partes: antes e depois de “Guerra e Paz”. Isso era fácil de dizer, tudo na vida se dividia em antes e depois; antes e depois de casar, antes e depois de amar, antes e depois de escrever. [...] Para um escritor o importante não era antes nem depois, mas durante. Colocar-se naquela postura de quem vai escrever – eis tudo, o resto era fácil. Quando iria ele, afinal, levar sua vocação a sério, começar? Resolveu escrever um artigo sobre “Guerra e Paz” (SABINO, 2006, p. 213).

A voz de Eduardo soa num tom irônico, ao dizer que era comum se referir

à obra de Tolstoi como um divisor de águas. Para a personagem, tudo em sua vida

se dividia em antes e depois de – “casar, amar, escrever”. No entanto, Eduardo

estagnou-se, pois não existiu o depois de escrever, uma vez que não iniciou o seu

romance; a personagem argumenta que não conseguia separar a arte e a vida. O

crítico Harold Bloom (2003, p. 92) aponta que há em Tolstoi uma duplicidade; como

supremo artista literário, o escritor russo era capaz de, para escrever, recorrer à

sedução e, ao mesmo tempo, censurá-la, por seu ideal de pureza, por conceber que

a arte revela verdades ocultas, ele a rejeita, “mesmo quando nela triunfa”. Um

paradoxo que mostra um mundo enigmático, ao mesmo tempo, realista e ilusório.

A imagem do homem em formação, “não uma imagem objetificada, mas a

palavra” (BAKHTIN, 2003, p. 357), supõe uma constituição através do outro e do

mundo, posto que o indivíduo é histórico e social e não absorve apenas uma voz,

mas várias vozes que integram a sua realidade e as suas inter-relações dialógicas.

Assim, a religião e a literatura têm um importante papel na função de formar este

homem, uma vez que integram uma esfera social mais ampla.

Oriundos do social, o discurso religioso e o literário podem ser

considerados como instrumentos de formação do indivíduo, ligados diretamente à

atividade da comunicação humana. Discursos diferentes, abordando diversamente o

mesmo tema. Desta forma, consideramos que o romance O encontro marcado tece

fios que evidenciam a presença destas formas discursivas como instâncias que

constituem relações dialógicas e instauram um olhar imbuído de uma visão crítica, e

com tendências a ironizar o próprio processo de construção do gênero romance.

60

Numa metaficção26, Sabino dialoga com o próprio contexto no qual se insere: o

literário.

1.3 Diálogos com a tradição literária II: a autoconsciência narrativa

Esta seção objetiva investigar a autoconsciência narrativa do romance O

encontro marcado. Neste sentido, indicamos alguns percursos desta investigação: a

função do escritor e da arte, a questão do conceito de gênero discutida no próprio

romance, revelando a preocupação de Sabino com o fazer literário; e ainda, as

reflexões sobre teoria do romance, além do jogo dialógico que já evidenciam uma

reflexão autonarrativa manifestada na própria dialogicidade do romance de Sabino,

voltado para a própria realidade da linguagem.

Na narrativa de O encontro marcado, o desejo do protagonista Eduardo

Marciano de tornar-se romancista gera na obra a constante recorrência à

metalinguagem. Podemos dizer que toda a vida do protagonista é uma preparação

para este momento, o de seu triunfo como escritor. Dedicado aos estudos, resolve

“conhecer o léxico”, escreve um artigo sobre colocação de pronomes no jornalzinho

do Ginásio. Na adolescência escreve contos para concorrer em concursos, obtendo

o segundo lugar. Passa a ter conhecimentos sobre técnica do romance. Na primeira

parte da obra, todas as peripécias de Eduardo indicam a formação da personagem,

cujas leituras, variando em período, espaço, estilo e posições ideológicas, passa

pela Bíblia e pelas obras de autores brasileiros, portugueses, franceses, ingleses,

alemães, russos, italianos, espanhóis, noruegueses e de outras nacionalidades.

Entre todas as obras, Eduardo Marciano declara sua inclinação por

Guerra e paz, ao dizer “jamais nenhum romancista seria capaz de escrever algo de

mais completo e, no entanto, ninguém deveria ambicionar menos” (SABINO, 2006,

p. 213). Com esta proposição, o romance traz à luz uma das questões da narrativa

do século XX, na qual o “referente da ficção tornou-se a própria palavra” (LUCAS,

1996, p. 29).

26

Uma narrativa fundada numa metalinguagem, uma ficção fundada na elaboração de ficções, tendo como estratégia final a elaboração de um jogo intelectual com a linguagem e com a memória literária e artística. (AVELAR, 2005)

61

Como aponta Walter Benjamin (2008)27, em seu artigo A obra de arte na

época de sua reprodutibilidade técnica, ao tratar da crise da representação do objeto

e da perda da aura da obra de arte, a partir do advento das novas técnicas de

reprodução, surge um processo de especialização da arte. Neste momento, a arte se

especializou nela mesma, voltou-se para si mesma, ocorrendo uma autorreflexão, ou

mesmo a autoconsciência narrativa, uma metalinguagem. Segundo Sant’ Anna

(1998), foi devido a este processo que os artistas intensificaram seu diálogo, não

com a realidade aparente das coisas, mas refugiando-se numa postura modernista

de sondagem da própria linguagem. Para Sant’ Anna (1998), a paródia está ligada a

este processo típico do século XX, segundo seu entendimento a paródia é o próprio

avatar da arte moderna, que se deleita numa prática de linguagem, onde a

linguagem se dobra sobre si mesma, sendo, por isso, paródica. Sant’ Anna (1998, p.

8) observa que a intensificação do uso da paródia e seu intenso interesse pela

crítica na modernidade, não vêm a significar a originalidade da criação da paródia,

mas que neste período passa a ser vista com outras nuances, “surge a paródia

como efeito metalinguístico (a linguagem que fala sobre outra linguagem)”, podendo-

se distinguir não apenas uma paródia de textos alheios, mas também uma paródia

dos próprios textos.

Observamos, contudo, que este processo não é típico apenas da

modernidade, mas está enraizado em gêneros bem antigos. Ao discutir sobre a

influência da menipéia no processo de composição na obra de Dostoiévski, Bakhtin

(2006a) observou a paródia como um traço do gênero da menipéia, que sempre

parodia a si mesma, enfatizando ainda que “o elemento da autoparódia constitui

uma das causas da excepcional vitalidade deste gênero” (BAKHTIN, 2006a, p. 142).

Ora, podemos inferir28 que Bakhtin se refere à menipéia como um gênero que utiliza

a própria linguagem para referir-se a si mesmo, numa espécie de autorreflexão ou

processo de metalinguagem. Bakhtin (2006a) enfatiza, ainda, que a plenitude do

acesso do artista a todas as variações pelas quais evolui um gênero, torna rico e

27 Benjamim e Bakhtin são contemporâneos na passagem do século XIX para o XX. Teóricos que apresentam convergências no que se refere a uma dimensão estética convivendo com uma dimensão ético-política, uma vez que concebem a linguagem enquanto expressão viva e concreta das relações humanas. Ver o artigo “Linguagem e tradução: um diálogo com Walter Benjamim e Mikhail Bakhtin” (KRAMER, 2007). 28

Evidentemente esta inferência carece de um maior aprofundamento que poderá realizar-se em estudos posteriores, o que nos interessa aqui é fazer intersecções dialógicas com o pensamento bakhtiniano, a fim de evidenciar a autoconsciência narrativa no romance de Sabino.

62

flexível “o domínio que ele manterá sobre a linguagem de um dado gênero (pois a

linguagem de um gênero é concreta e histórica)” (idem).

Para Bakhtin (2006a), a linguagem é material e instrumento de si mesma,

é inter-relação dialógica. No entanto, a ênfase de Bakhtin sobre a linguagem está

relacionada às manifestações humanas, sobrepondo-se a signos abstratos.

Contudo, o crítico ressalta, na sua concepção dialógica da linguagem, a imaginação

ativa e criadora do homem e sua orientação dialógica para o “já dito”. Desta forma,

nossa análise sobre a autoconsciência narrativa, se dará numa interação simultânea

entre a dimensão criativa e crítica do sujeito com a vida social e os aspectos de uma

metaficção, uma vez que, para Bakhtin (1998), “a língua do romance não só

representa, mas ela é objeto de representação. A palavra romanesca é sempre

autocrítica” (p. 371).

Em Fernando Sabino, observamos uma perspectiva moderna na interação

desta abordagem, uma vez que Sabino, ao romper com a narrativa representativa,

ao afastar-se da referenciação ao objeto, ao dialogar com o próprio contexto literário

no qual se insere, produz conscientemente um romance do romance, um “discurso

no discurso”, e mais que isso: “um discurso sobre o discurso”, uma metaficção na

qual o “discurso de outrem” entra na construção temática e sintática da obra. Assim,

numa perspectiva bakhtiniana, apontamos a autoconsciência narrativa em O

encontro marcado. Posto que sua consciência crítica sobre aquilo que escreve faz

da narrativa de Sabino uma metaficção. Flora Bender (1981) atesta que muito do

que Sabino escreve indica uma metalinguagem, e esta ocorrência se dá, ao

questionar a função do escritor, os gêneros e o próprio ato de fazer literário29. É o

que podemos observar neste excerto:

– Estou dirigindo uma editora – lhe dissera Victor: – Faço questão de lançar um livro seu. Livro sobre o quê? Para quê? Só sabia escrever sobre a arte de escrever – o que também era uma arte. Acabaria escrevendo sobre a arte de escrever sobre a arte de escrever – e assim indefinidamente, enfiando-se na sua obstinação como um escravo entre dois espelhos, até o último andar da torre onde o haviam aprisionado (SABINO, 2006, p. 213).

29 Como na crônica de Fernando Sabino, intitulada “A última crônica”, na qual Sabino utiliza a metalinguagem, além do procedimento intertextual com o poema de Manuel Bandeira, “O último poema”.

63

Embora lutando obstinadamente para a concretização do sonho de

escrever seu romance, Eduardo passa a ter uma coluna no jornal, quando já está

estabelecido na cidade do Rio de Janeiro, cujo título, “A arte de escrever um

romance”, denota uma certa ironia do narrador, reforçada pela voz de Tércio: “– Por

que você em vez de ficar escrevendo sobre romance, não escreve logo um

romance?” (SABINO, 2006, p. 211). Ora, se Eduardo conhece sobre a arte de

escrever, porque não escreve o romance? Para escrever o seu romance, Eduardo

precisaria realmente de técnica? Fernando Sabino, embora faça críticas sobre

procedimentos técnicos de composição, afirma:

Enquanto escrevia as crônicas, eu tentava fazer literatura séria, escrevendo novelas de alta perquirição metafísica e muita pretensão literária, às voltas com problemas técnicos de composição, de estilo [...] Lia tudo o que me caía nas mãos de ensaios e estudos sobre o romance (STEEN, 2008, p. 189).

É importante enfatizar que esta fase se refere ao momento da publicação

do livro A cidade vazia (1950), obra composta de crônicas, e do livro contendo cinco

novelas A vida real, publicado em 1952. O comentário de Sabino reforça a ideia de

autoconsciência narrativa, o que podemos também constatar na fala de Joel Pontes

que, ao se referir à clarividência com que escreve Fernando Sabino, ressalta: “há um

plano estabelecido e cumprido que o próprio romancista se dá à ironia de nos

revelar” (PONTES, 1960, p.150). O narrador, em discurso direto, ainda, em relação

ao romance que a personagem Eduardo sempre pretendia escrever, reflete sobre a

questão de procedimentos técnicos:

– Estou pensando em abrir com esse artigo um livro sobre o romance – e, animado, começou a inventar: – “As Tentações da Facilidade” seria um dos temas: imposições de fim de capítulo, descrição dos personagens, etc... “A Reabilitação do Lugar-Comum” seria outro; outro ainda sobre a técnica, propriamente: o corte, a intersecção de diálogos, contraponto, etc... (SABINO, 2006, p. 211).

Este plano estabelecido é indicado, quando começamos a observar uma

linha bakhtiniana em seu romance, endossada pela voz da personagem, cujas ideias

também nos remetem ao pensamento bakhtiniano de que todo texto se constrói, a

partir de uma relação dialógica com outros textos:

64

Aprender a escrever. Regressou à ficção: aprender com os que sabiam, se preciso plagiar, mas plagiar com sabedoria, com verdadeiro aproveitamento das ideias, desenvolvendo-as noutras ideias – e não apenas pastichar: escrever para os dias de hoje como eles escreveram para o seu tempo. E isso não é plagiar, é recriar. Na literatura, como na natureza, nada se cria e nada se perde: tudo se transforma (SABINO, 2006, p. 182).

A modernidade estética esteve empenhada na produção de uma arte

fundada na inovação, na ruptura com a tradição e no apelo ao novo. Neste sentido,

a arte do passado devia ser combatida, discutida, renovada. Para este fim, a arte

moderna, principalmente a de vanguarda, recorreu constantemente à paródia, forma

de imitação que mantém uma relação crítica e de oposição com a obra original. Esta

é a atitude do primeiro modernismo brasileiro, especialmente nas figuras de Mário de

Andrade, em Macunaíma, e Oswald de Andrade, nos seus poemas-piadas. Por sua

vez, a pós-modernidade fez desacreditar o projeto da modernidade, instaurando no

campo estético uma desconfiança nos conceitos de originalidade e vanguarda,

redundando segundo, o crítico Fredric Jameson30 (1985, 2004), numa superação do

espírito crítico e paródico, a partir da ideia de “pastiche pós-moderno”. A aceitação

de que se está vivendo uma era pós-moderna pressupõe a ideia de um período

anterior e distinto, a Modernidade. Esta se estenderia do Renascimento até à

Segunda Guerra Mundial, caracterizada, em linhas gerais, como uma era definida

pelo ideal de progresso, o culto da razão e da ciência, a fé no indivíduo e a

aspiração de uma estética universal. Como apontou Pontes (1960), Sabino vivia

numa espécie de flutuação literária, já mostrando evidências de um estilo inovador,

ainda mantendo, porém, pontos característicos da modernidade.

Bakhtin (2006a) tem o romance polifônico como a recriação artística da

natureza plural da própria vida, onde as formas de linguagem são primordiais para a

relação dialógica da obra, na qual se trabalha com questões que levam as vozes

sociais a uma reflexão sobre a linguagem e a própria vida. Recriando o princípio de

Lavoisier, o narrador já coloca em prática a ideia de recriação literária, porém, não

no sentido do senso comum de pastiche, sinônimo de imitação rasteira. A

personagem critica o pastiche nesta concepção, uma forma pejorativa que denega o

30

O marxista contemporâneo Fredric Jameson aborda a questão da revolução cultural e o ecletismo de vários modos de produção caracterizada pelo conflito, na qual a linguagem também faz parte deste processo. Para Jameson, a dissolução do individual se dá pelo coletivo. Para Bakhtin, a linguagem deve materializar-se para que possam surgir enunciados vivos, concretos e plurais, no qual o sujeito é sempre social.

65

artista a uma posição desconfortável, como alguém sem empenho em uma criação

genuína. Observa-se na citação acima do romance O encontro marcado uma critica

a essa prática de pastiche.

Jameson (1985) aborda uma concepção de “pastiche pós-moderno” que,

em termos mais rigorosos e acadêmicos, envolve a imitação de um estilo, a dotação

de um elemento presente em um trabalho de outras pessoas. O pastiche seria, ainda

conforme Jameson (1985), uma espécie de "paródia vazia", um gesto imitativo

desprovido de intenções críticas:

O pastiche é, como a paródia, a imitação de um estilo singular ou exclusivo, a utilização de uma máscara estilística, uma fala em língua morta: mas a sua prática desse mimetismo é neutra, sem as motivações ocultas da paródia, sem o impulso satírico, sem a graça, sem aquele sentimento ainda latente de que existe uma norma, em comparação com a qual aquilo que está sendo imitado é, sobretudo, cômico (p. 18).

No entanto, uma outra crítica da pós-modernidade, Linda Hutcheon,

discorda das posições de pastiche defendidas por Jameson. Hutcheon (1985)

considera genérico o ponto de vista de Jameson (1985, 2004), segundo o qual o

pastiche pós-moderno (que ela continua a chamar de paródia) é mera recuperação

nostálgica e acrítica de estilos passados. A autora reconhece a existência da paródia

nesta forma jamesoniana de “pastiche”, mas aponta para a existência de uma outra

vertente, que ela denomina “paródia pós-moderna”. Esta é fundamentalmente irônica

e crítica em sua relação com os estilos do passado, desnaturalizando nossas

suposições acerca do passado. A teorização de Hutcheon (1985) tem a importância

de apontar para a persistência de uma retomada crítica e historicamente consciente

dos textos do passado, como acontece com autores como Gabriel García Márquez.

Por sua vez, Bakhtin (2006a) analisa a paródia como fenômeno discursivo

duplamente orientado, tendo como fator essencial a relação com o enunciado de um

outro, na qual se hostiliza o texto parodiado. Aponta, ainda, como observamos

anteriormente, a existência de uma autoparódia no estudo de gêneros antigos.

Hutcheon, por sua vez, propõe, em Uma teoria da paródia, uma ampliação dos

traços que permeiam a paródia. Segundo Hutcheon (1985, p. 146), os teóricos pós-

modernistas não utilizam com frequência a palavra paródia, “por causa da forte

interdição negativa sob a qual a paródia se encontra ainda e, por causa da sua

trivialização, devida à inclusão do ridículo na sua definição”. A paródia, segundo

66

Hutcheon (1985), não se restringe a desvio, negação e descontinuidade, ou seja,

não é mais somente o alvo de ironias pelo texto parodiador. Na “paródia pós-

moderna” (HUTCHEON, 1985), que a maioria chamaria de pastiche, o estilo e o

tema são retomados como uma forma de dar “continuidade” aos grandes estilos

passados; o texto parodiado, nesta perspectiva, segundo a autora, também opera

como um método de inscrever a continuidade sem a perda da distância crítica.

A ideia do narrador em estilo indireto livre, de recriação, apresenta

similaridades à concepção de Hutcheon de “paródia pós-moderna”, uma vez que o

narrador propõe a operação de um método de recriação, no qual inscreve uma

relação conflituosa entre renovação e continuidade da tradição literária, porém sem a

perda de um viés crítico. Há na personagem Eduardo Marciano um sentimento,

intenso de que existe uma norma, porém há um desejo latente de renovação, este

conflito inspira ecos cômicos e críticos na voz da personagem, pois queria aprender

a escrever com os que sabiam (tradição), até, se preciso, plagiar, mas com

sabedoria, com o verdadeiro aproveitamento das ideias, desenvolvendo-as noutras

ideias (renovação). Isso para Eduardo não era plagiar, mas recriar, uma vez que,

para ele, na arte e na vida, nada é originalmente novo, mas tudo se transforma em

novas perspectivas. Com a ideia de “recriação”, de “discurso sobre discurso” ou,

ainda, “paródia pós-moderna”, portanto, questionam-se também as bases da estética

moderna. Desta forma, entendemos que no romance de Sabino, no qual um

plurilinguismo se faz presente, há uma discussão sobre o desejo de continuidade e o

de desvio da tradição literária, através de uma relação lúcida, cômica e crítica com a

literatura, compondo uma estética de recriação de autoconsciência narrativa.

As relações de sentido entre os diferentes enunciados assumem uma

nuance dialógica, na qual “todo texto reporta-se a outros textos, todo discurso

remete a outros discursos” (FRANÇÓIS, 1998, p. 200). Assim, “são pensamentos

sobre pensamentos, vivências das vivências, palavras sobre palavras, textos sobre

textos” (BAKHTIN, 2003, p. 307). O autor de um romance, segundo o pensador

russo, cria uma obra única e integral,

Mas ele cria a partir de enunciados heterogêneos, como que alheios. Até o discurso direto do autor é cheio de palavras conscientizadas dos outros. O falar indireto, a relação com a sua própria linguagem como uma das linguagens possíveis (e não como a única linguagem possível e incondicional) (BAKHTIN, 2003, p.321).

67

Para Bakhtin (2003, p. 309), “não há nem pode haver textos puros”, diz

ele, “em cada texto existe uma série de elementos que podem ser chamados de

técnicos, portanto, por trás de cada texto está o sistema da linguagem”. A esse

sistema, afirma Bakhtin, “corresponde no texto tudo o que é repetido e reproduzido e

tudo o que pode ser repetido e reproduzido, tudo o que pode ser dado fora de tal

texto (o dado)”. Assinala, ainda, que, por outro lado, “cada texto (como enunciado) é

algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido (sua intenção em

prol da qual ele foi criado)” (ib. ibid., p. 310). Ao discutir com um suposto escritor

sobre teoria do romance, Eduardo cita displicentemente Pirandello31, autor da peça

Seis personagens em busca de um autor, título este muito sugestivo, quando se

trata de abordar a teoria bakhtiniana sobre polifonia, uma vez que alude, entre

outras questões, à relação de autonomia entre autor e personagem, que será

abordada no capítulo dois, além de se associar à questão da autoconsciência

narrativa.

Como aponta Corrêa, a obra “O encontro marcado é ficção, embora

construído a partir de uma realidade concreta, alusiva e reconhecível” (2007, p.52).

É o que exemplifica, ainda, o diálogo no qual o escritor Mário de Andrade32 é citado

por Veiga, redator do jornal, ao mostrar aos três amigos os contos que também

escrevia, ocasionando uma discussão sobre a ideia de gênero. Conforme Aguiar e

Silva (2006), a questão dos gêneros literários tem constituído, desde Platão até a

atualidade, uma das questões mais controversas da teoria e da práxis da literatura.

No plano literário, conforme o crítico, esse debate está ligado à concepções como as

de “tradição e mudança literárias, imitação e originalidade, modelos, regras e

liberdade criadora, e à correlação entre estruturas estilístico-formais e estruturas

semânticas e temáticas, entre classes de textos e classes de leitores” (p. 341). A

31 Carpeaux (1972), situa Luigi Pirandello como criador de uma nova dimensão teatral: “teatro no teatro”. Aponta, ainda, o caráter fictício das personagens que não têm certeza das suas próprias personalidades. 32 Marisa Lajolo (2001), sobre a questão o que é ou não literatura, se refere a Mário de Andrade, como um escritor de grande renome, que enfrentou a questão de maneira exemplar. Lajolo, comenta que o escritor paulista, irritado com as intermináveis discussões sobre o que era e o que deixava de ser conto, virou a mesa e puxou o tapete no seu livro Contos Novos: “Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade”, dizendo logo depois que “Conto é tudo aquilo que o autor chama de conto”.

68

tradição neoclássica pautada numa ideia horaciana33 de ordem e coerência da obra

de arte, na qual o gênero foi entendido como essência inalterável, apresenta, ainda,

outro aspecto da doutrina clássica dos gêneros literários, que consiste na

hierarquização estabelecida entre os diversos gêneros, distinguindo-se os gêneros

maiores dos gêneros menores.

Assim, do Romantismo à contemporaneidade há uma rejeição da teoria

clássica dos gêneros no que se refere à normatização, contudo alguns teóricos

mantêm-se na mesma posição. Inicia-se outra concepção de gêneros literários,

entendendo-os como fenômenos dinâmicos e heterogêneos. Luiz Costa Lima (2002,

p. 273), expressa as ideias de vários teóricos que estão inseridos nesta concepção,

dentre eles, refere-se a ideia bakhtiniana de que “cada gênero traz consigo um feixe

de expectativas e de seleção possíveis da realidade”.

Esta breve exposição sobre teoria de gêneros34 objetiva situarmos as

concepções que permeiam as vozes de Eduardo, Mauro, Hugo e Veiga

personificadas em pontos de vista. Os três amigos questionam a produção de Veiga,

redator chefe do jornal para o qual trabalhavam. Percebe-se que, entre os três

amigos, não há indicação clara de quem fala, como se as três vozes soassem para a

mesma ideia, embora de formas diferentes, mas centradas no mesmo ponto:

reforçar a tradição clássica e ironizar as concepções modernas:

– Isto não é conto nem aqui nem na China. – Corte toda a primeira página que talvez melhore. – Daria, quando muito, uma crônica. O autor protestava, tirando os óculos e citando Mário de Andrade: – Conto é tudo que chamamos de conto! (SABINO, 2006, p. 54-5).

Observamos a voz de cada personagem pela própria ideia semântica do

ponto de vista de cada um. Eduardo, num tom irônico, diz que o texto de Veiga não

33 Horácio concebia os gêneros literários “como entidades perfeitamente diferenciadas entre si, configuradas por distintos caracteres temáticos e formais, devendo o poeta mantê-los cuidadosamente separados de modo a evitar, por exemplo, qualquer hibridismo entre o gênero cômico e o gênero trágico” (AGUIAR E SILVA, 2006, p. 347). 34

A abordagem sobre gênero, historicamente problematizada, não será abordada, neste item com todas as suas especificidades, pois tal discussão não se constitui objeto do nosso estudo. Nem tão pouco abordaremos a concepção bakhtiniana sobre gêneros do discurso. Trazemos para a arena da discussão apenas pontos que evidenciem o jogo discursivo em torno da ideia de gênero, evidenciando a autoconsciência narrativa da obra em estudo. Para um aprofundamento sobre gênero, ver M. Bakhtin (2003) em Estética da criação verbal; Vitor Manuel Aguiar e Silva (2006) em Teoria da literatura; e Luíz Costa Lima (2002) em Teoria da literatura em suas fontes.

69

será um conto em qualquer lugar que ele esteja, mesmo na China, um país distante

e conhecido pelos contos de sabedoria milenar. Mauro, radical, sugere que para

melhorar o texto, dever-se-ia eliminar toda a primeira página, enquanto na voz de

Hugo, sugerindo que o texto daria talvez uma crônica, percebe-se um discurso de

menosprezo, como se a crônica fosse um gênero inferior a outros. Nestes discursos,

observa-se uma ideia de gênero por uma feição normativa, apresentando-se como

um conjunto de traços inflexíveis. Por isso, o que Veiga escreveu não poderia ser um

conto, talvez uma crônica; nesta indicação observa-se a tendência tradicional de

valorizar mais alguns gêneros do que outros. Eduardo partiu da ambivalência e da

ironia defensiva, Mauro do seu anarquismo e Hugo da sua falsa fragilidade.

Por sua vez, na voz de Veiga ouvem-se ecos da teoria contemporânea de

gênero, cuja posição é evitar os julgamentos de valor. Veiga, ao citar a frase “Conto

é tudo aquilo que chamamos conto”, faz ecoar outra voz; se um escritor consagrado

exprime essa ideia sobre gênero, por que os contos de Veiga não eram contos?

Mário de Andrade é o papa do Modernismo, ou seja, uma autoridade consagrada, e

Veiga é o redator chefe de um jornal, espaço, segundo a voz de Hugo, mais

apropriado para uma crônica. Observa-se uma ideia clássica de hierarquia de

gêneros que está relacionada aos conteúdos e estados de espírito humano e

também à “diferenciação do estatuto social das respectivas personagens ou dos

ambientes característicos de cada gênero” (AGUIAR E SILVA, 2006, p. 355). A ideia

de gênero flexível, bem mais próxima da concepção de gênero adotada por Bakhtin

(2003, p. 262) como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, se faz presente

em Veiga, que sai em defesa de uma liberdade criadora de que deve resultar o

trabalho artístico. A personagem Veiga defende, em sua citação, a mescla dos

gêneros, evidenciando que cada obra apresenta diferentes combinações de

características das linguagens de diversos gêneros literários ou não.

Observa-se um choque de gerações: rapazes com ideias bem

tradicionais, e um senhor com ideias bem renovadas, figurando a concepção de que

pela experiência se pode se renovar. Esta ideia é levada à consciência de Eduardo

que, em seguida, renega os contos que havia escrito para escrever outros, “novos

contos”. Numa ênfase diacrônica, a ideia de tradição e renovação, é colocada

através da abordagem sobre gênero. Eduardo queria ser romancista, no entanto

abre espaço para possibilidade de escrever outros gêneros ou mesmo misturar

percepções, numa total evidência de suas ambiguidades (por que não?), sugerida

70

em discurso indireto livre: “Eduardo fazia planos literários – um livro de ensaios, por

que não? Faltava um crítico à sua geração” (SABINO, 2006, p. 188). Eduardo partiu

da ambivalência e da ironia defensiva, pois o ensaísta, o crítico escreve sobre o que

sabe, a sua realidade; o romancista recria a realidade, escrevendo sobre o que não

sabe.

Segundo Bakhtin (2003, p. 364), os gêneros têm um significado

importante, uma vez que, ao longo de séculos de sua vida, afirma o crítico “os

gêneros (da literatura e do discurso) acumulam formas de visão e assimilação de

determinados aspectos do mundo”. Segundo Bakhtin, para “o escritor-artesão, os

gêneros servem como chavão externo, já o grande artista desperta neles as

potencialidades de sentido jacentes” (Id. ibid.) Desta forma, Sabino, ao expor sobre

uma variedade de gêneros, como o romance, o poema, o artigo, o conto, a crônica, a

carta, o ensaio, sobre linguagens do contexto literário, religioso e político, e ainda

abordar sobre procedimentos estilísticos, como paródia, pastiche, plágio, recriação e

polifonia, através de uma dialogicidade conflitante, endossa a concepção

bakhtiniana sobre o gênero romance como um fenômeno pluriestilístico, plurilíngue,

e plurivocal, que marca a autoconsciência narrativa da obra O encontro marcado.

Davi Arrigucci Jr. (2003), ao analisar a presença simultânea de criação e

crítica, e teoria e prática num texto, que determina uma tensão permanente na obra,

aponta que a metalinguagem inserida na teia de relações do texto torna-se “um dos

seus componentes e, como tal, entra no complexo jogo das articulações internas:

combina-se aos demais elementos do todo, atua sobre eles, modifica-os, abrindo

novas dimensões de leitura” (p. 32). Segundo o autor, não se pode compreender a

metalinguagem sem as necessárias vinculações com os outros elementos

estruturais. “Não se pode considerá-la, de forma simplista, como uma linguagem

crítica apenas colada à narrativa” (p.33). A narrativa de Sabino apresenta uma

relação intrínseca entre criação e crítica. Desta forma, é interessante uma última

discussão sobre a autoconsciência narrativa em O encontro marcado, apontando,

ainda, dois eixos: a função do escritor e da arte; e a crítica ao ato do fazer literário.

Quanto ao primeiro, abordamos a questão do contexto pós-segunda guerra mundial,

que traz a imagem de um mundo em ruínas, no qual o jovem escritor Eduardo

Marciano se preocupa com uma nova estética ou mesmo uma nova moral. Ao

idealizar a fundação de uma revista, ele questiona sobre a função do escritor:

71

Preocupava-se com o fenômeno da criação artística, a consciência profissional, a missão sublime do escritor, o artesanato. Nada de concessões; a arte pura não devia ser conspurcada, a verdadeira mensagem tinha de ser transmitida. Pensou mesmo em fundar uma revista de estética chamada Mensagem, mas já existia outra, sem mensagem alguma, com esse nome (SABINO, 2006, p. 55).

Sua estética é inspirada por preocupações morais ou ético-religiosas (“a

consciência profissional, a missão sublime do escritor”). Na vida, defendia a

liberdade de instintos, e, ao mesmo tempo, desejava uma pureza interior, desejo

este que tentou repassar para a sua arte, que, para ele, não deveria se corromper,

porém, não conseguiu. Eduardo Marciano inspira ecos do tradicionalismo e da

renovação e até o final permanece ambíguo. Ao mesmo tempo em que Eduardo se

preocupa com uma arte pura, queria transformar o mundo com uma arte que

revelasse a verdadeira mensagem, por isso “comunicava suas ideias aos amigos,

que faziam coro: – Salvar o mundo para quê?” (idem). Cabalmente Eduardo

responde que o artista é o profeta do passado. Qual a missão do profeta? Os

escritores profetas bíblicos recebiam mensagens divinas; ver pela primeira vez e

abrir um caminho para anunciar as verdades ocultas aos olhos humanos. Qual a

missão ou vocação de Eduardo? Para a personagem central, não só a literatura era

o seu dever e vocação, como o esteticismo o levara a encarar a literatura como uma

forma de religião secular. Ser romancista, ver o papel em branco, abrir caminho com

suas ambiguidades aos seus próprios olhos; eram para ele uma missão, no sentido

religioso do termo.

A autoconsciência narrativa de Fernando Sabino já o faz em 1956, ano

em que foi publicado o romance O encontro marcado, mencionar em sua obra

aspectos da teoria polifônica, como se observa no excerto a seguir:

À noite, juntavam-se aos literatos do jornal. Não havia ali quem não tivesse em casa algo inédito que seria o melhor do país, no dizer dos demais. O próprio Java era autor de um citadíssimo – por ele mesmo – romance proletário, que descrevia revoluções, o ruído da metralha, toques de corneta, gemidos, explosões: – É uma espécie de polifonia literária – explicava ele [...] – O processo, em si, não é novo. Na União Soviética... (SABINO, 2006, p. 54)

Desta forma, o romance de Sabino é um grande e marcante diálogo com

a vida e com a arte, diálogo que se faz sobre sua própria linguagem, revelando em

Sabino a preocupação ímpar com o ato do fazer literário. Nesse sentido, a

72

autoconsciência narrativa que marca o romance deste escritor se revela aqui em

outro aspecto: o próprio ato de fazer literário é objeto de crítica e ironia, fenômenos

discursivos que apontam para uma consciência dialógica. O autor esboça com

clarividência, ainda que crítica, uma espécie de projeto literário no qual as relações

dialógicas – propostas por Bakhtin – são as que explicam, mas obviamente não

encerram, as particularidades da construção da linguagem do romance de Sabino.

Relações situadas no campo do discurso que é por natureza dialógico, no qual

vozes-ideia se fazem ouvir. E nesse diálogo entre vozes plenivalentes, poderemos

ouvir também a voz da imagem do autor (narrador) e não a do eu confessional e

biográfico. A partir destes pressupostos, nos propomos a analisar, no capítulo

seguinte, perspectivas polifônicas presentes na narrativa de O encontro marcado.

73

II

PERSPECTIVAS POLIFÔNICAS NA NARRATIVA DE

O ENCONTRO MARCADO

O homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro (BAKHTIN, 2003, p. 341).

74

A obra de Mikhail Bakhtin está eivada da ideia de dialogismo, que

constitui o sustentáculo da formulação de seus principais conceitos, como o de

polifonia. Ao retomar a noção de dialogismo, conceito muitas vezes utilizado como

sinônimo de polifonia, queremos ressaltar a distinção entre estas duas categorias;

assim, dialogismo é o “princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do

discurso” (BARROS, 2007, p. 31), já que toda palavra é atravessada por outras

palavras; o dialogismo perpassa a língua, outros discursos e o próprio sujeito, dado

pela sua relação com o outro. A polifonia, por sua vez, aponta para a pluralidade de

vozes35 que se entrecruzam e interagem entre si, contribuindo para o processo de

autoconsciência das personagens (BAKHTIN, 2003, 2006a).

Apesar de serem categorias que se encontram imbricadas nos postulados

bakhtinianos, sendo realmente complexo separá-las, neste estudo analítico do

romance O encontro marcado fizemos uma divisão na qual cada capítulo aborda um

aspecto diferente, o que, no entanto, não significa que dialogismo e polifonia não

estejam de alguma forma referidos em todo o corpo do trabalho, pois são conceitos

que se inter-relacionam e que nos fornecem considerações importantes na análise

da obra em estudo. Desta forma, fez-se necessário trazermos ao leitor referências

teóricas que sustentem uma leitura de O encontro marcado pelo olhar de Bakhtin.

Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin (2006a) faz as

principais considerações sobre a polifonia na constituição do gênero romanesco,

suas características e aspectos que, apesar de serem analisados à luz das obras

dostoievskianas, podem ser aplicadas a outras obras. A abordagem teórico-literária

do romance polifônico desenvolvida por Bakhtin, a partir da análise da obra desse

escritor russo, abriu caminho para novas pesquisas com outros autores, seja

aplicando a teoria bakhtiniana ou revestindo-a de novos acentos. Bakhtin concebe

Dostoiévski como criador do romance polifônico, contudo não deixa de afirmar que

“depois de Dostoiévski, a polifonia cresceu soberanamente em toda a literatura

universal” (2003, p.318). Desta forma, ao nos depararmos com o universo polifônico

do romance O encontro marcado, de Fernando Sabino, nos debruçamos na análise

desta obra para apontarmos perspectivas polifônicas em sua narrativa.

35

Usamos a acepção bakhtiniana de voz, cuja definição é expressa da seguinte forma: “aqui entram a altura, o diapasão, o timbre, a categoria estética (lírico, dramático, etc.). Aqui entram ainda a ideologia e o destino do homem” (2003, p.348). Bakhtin afirma, ainda, que “as visões de mundo são personificadas em vozes” (2003, p. 352).

75

Bakhtin (2006a) caracteriza o romance moderno como dialógico, ou seja,

como um tipo de romance em que as diversas vozes sociais estão presentes e se

entrecruzam, analisando as formas de construção do sentido no romance de

Dostoiévski. O teórico pesquisa gêneros e formas literárias retomadas pelo autor na

construção de sua obra.

Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante. A consciência do herói é dada como a outra, a consciência do outro mas ao mesmo tempo não se objetifica, não se fecha, não se torna mero objeto da consciência do autor (2006a, p. 2-3).

O romance polifônico se caracteriza pela nova posição do autor, que dá

às personagens uma relativa independência interior – em relação à perspectiva

ideológica de quem escreve – na estrutura do romance. A liberdade e a

independência são promovidas pelo autor como estratégia de construção do seu

romance, por isso são relativas e sempre se situam no plano do autor.

Endossando o pensamento bakhtiniano, Paulo Bezerra (2008) aponta que

o dialogismo e a polifonia estão associados ao caráter multifacetado do universo

romanesco, à inserção de um grande número de personagens e ainda “à

capacidade do romancista para recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos

traduzida na multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica

representada” (p.191). Socorro Magalhães (1998, p.84), no mesmo sentido, ressalta

que “a polifonia consiste em representar, no estilo romanesco, o dialogismo da

linguagem”, segundo a autora, assim como ocorre na linguagem natural em que um

discurso sempre pressupõe outros com os quais mantém uma relação dialógica, a

linguagem das personagens do romance polifônico também leva em conta o

discurso do outro, num intenso confronto discursivo.

Assim, um dos elementos basilares para a construção do romance

polifônico situa-se na posição do autor em relação às personagens que, por sua vez,

são constituídas de vozes plenivalentes. Um aspecto se relaciona diretamente ao

outro, contudo abordaremos na primeira divisão desta seção (2.1) a posição

ideológica do narrador e reservaremos a abordagem sobre as vozes-consciência das

personagens para a divisão seguinte (2.2).

76

Nesta seção, propomo-nos analisar o tempo e o espaço na narrativa de O

encontro marcado, a fim de compreender as vozes sociais que atuam no contexto

sócio-histórico e cultural da narrativa. Isto nos levará a relacionar a polifonia à outra

categoria bakhtiniana, a do cronotopo36, uma vez que o narrador faz ouvir as vozes

sociais da nossa história expressas nos conflitos das personagens na convivência

entre o tradicional e o moderno nas práticas sociais. Dessa forma, o que se discute é

como o tempo e o espaço do romance de Sabino permeiam questões das

experiências e vivências dos sujeitos por meio dos pontos de vista das imagens das

personagens. A representação literária urbana construída em O encontro marcado

traz os cenários citadinos com seus múltiplos personagens sociais. Ao narrar a

trajetória de Eduardo Marciano, Sabino apresenta as vozes sociais, a temporalidade

e o espaço urbano como elementos intrínsecos da arquitetura dialógica e polifônica

do romance em pauta.

2.1 O lugar ideológico do narrador: uma voz reconhecível?

Em O encontro marcado, a narrativa se faz em terceira pessoa, o narrador

coloca a vida do protagonista e a relação com seus amigos diante do olhar do leitor

através da pergunta “Que significava o quintal para Eduardo?” (SABINO, 2006, p. 9).

Temos um narrador criando relações dialógicas com o leitor, convidando-o a olhar o

quintal de Eduardo Marciano e o seu mundo. A vida interior da personagem é

projetada no quintal, este espaço que guarda segredos, tesouros e memórias.

Porém, o mundo de Eduardo, não se restringe ao quintal, expande-se à medida que

a narrativa avança e novas vozes vão se incorporando à voz regente, vai-se criando,

assim, uma tessitura dialógica polifônica, na qual a voz do narrador deixa fluir um

sistema de valores, através da própria voz narrativa, mas, principalmente, através

das vozes das personagens que vão decifrando seus próprios mundos.

É comum se pensar que no romance polifônico o autor se recusa a dar-

se um "lugar ideológico", isto é, a se posicionar na arena de vozes que ele rege,

contudo o autor do romance polifônico tem sua voz reconhecível; a diferença é que

36

Para estudar a natureza das categorias de tempo e espaço representadas no romance, Bakhtin cria o conceito de cronotopo formado pelos radicais de origem grega, crónos, que significa tempo e tópos, espaço. Este termo, empregado nas ciências matemáticas, foi introduzido e fundamentado com base na teoria da relatividade de Einstein (FIORIN, 2006, p. 133).

77

ele não é dogmático, e assim recusa o monofonismo. A partir deste pressuposto,

objetivamos nesta seção discernir a voz do narrador: onde ele se posiciona, ou seja,

que lugar ideológico (ou lugar discursivo) ele ocupa? Eduardo, a personagem

principal, é seu alter-ego? É neste caminho que iremos percorrer a nossa análise e,

para empreendê-la, lançaremos mão de duas categorias estéticas sobre “autor real”

e “autor-criador ou imagem de autor” desenvolvidas por Bakhtin37 (2003, 2006a),

inicialmente, em Estética da criação verbal, e com novos acentos em Problemas da

poética de Dostoiévski.

O autor real é o autor biográfico, uma pessoa, o escritor. Enquanto o

autor-criador é “uma imagem de tipo especial, diferente de outras imagens da obra,

mas é imagem, e tem o seu autor que a criou” (BAKHTIN, 2003, p. 314), pode ser

vista numa voz que participa da obra. Assim, em O encontro marcado, Fernando

Sabino é o autor real, uma “individualidade ativa” (Id. ibid., p.191) que cria as

personagens e seus mundos, tendo como protótipo a realidade que o cerca, pois

conforme Bakhtin “conceber um romance polifônico sem posição do autor é

absolutamente impossível” (2006a, p.67); o autor-criador pode ser representado na

figura de um homem misterioso que dialoga com Eduardo Marciano, visto que “o

diálogo do autor com o herói é, no romance polifônico [...], um procedimento de

construção das personagens e, ao mesmo tempo, a afirmação da presença não

ostensiva porém eficaz do autor nesse processo” (BEZERRA, 2006a); esta imagem

de autor também pode ser representada pelo narrador que, por sua vez, constitui a

instância condutora da narrativa, substituto do autor, posto que em uma obra

literária, este autor pode estar “parcialmente objetivado como narrador” (BAKHTIN,

2003, p. 191).

O discurso do autor pode ser composicionalmente substituído pelo

discurso do narrador. Conforme Bakhtin, a narração de um narrador, enquanto

substituição composicional do autor, é usada como ponto de vista, como posição de

que o autor necessita para conduzir a narração. Contudo, Bakhtin esclarece que “o

37

Os primeiros escritos de Bakhtin foram publicados em 1919 numa revista provincial, em três segmentos: um ensaio de uma só página intitulado Arte e responsabilidade; o ensaio intitulado Autor e herói na atividade estética; e Para uma filosofia do ato; Esses textos encontram-se publicados na coleção russa de 1979, denominada “Estétika sloviésnovo tvórtchestva” . No final dos anos de 1929, e depois em uma segunda versão ampliada em 1963 foi publicado o livro “Problemas da poética de Dostoiévski” (MORSON & EMERSON, 2008).

78

discurso do narrador nunca pode ser puramente objetificado, nem mesmo quando

ele é um dos heróis e assume apenas uma parte da narração” (2006a, p. 190).

Segundo Bakhtin, “a orientação da narração – independentemente de

quem a conduza – o autor, um narrador ou uma das personagens – deve diferir

essencialmente daquela dos romances do tipo monológico” (2006a, p. 5). Posto que

em um enfoque polifônico, no qual as personagens são investidas de plenos direitos,

“a posição da qual se narra e se constrói a representação ou se comunica algo deve

ser orientada em termos novos fora a esse mundo novo [...]” (idem). Ou seja, deve

nortear-se em face de um universo de sujeitos isônomos, com certo grau de

autonomia e vida própria, personagens concebidas como consciências, como “marca

identitária do indivíduo” (BEZERRA, 2008, p. 195).

O romance concebido na perspectiva polifônica projeta-se através do

narrador como porta-voz de uma geração conflitante graças ao próprio período

histórico-social – ditadura Vargas e fim da segunda guerra mundial – no qual O

encontro marcado foi escrito, período este repressor que institui não apenas

questões políticas, mas também uma atmosfera de debates sobre religião e a

literatura através das vozes que tornam este romance um espaço discursivo no qual

o próprio autor deixa-se ouvir através de sua visão de mundo. Mas teria, realmente,

o narrador uma voz reconhecível?

Ao contrário do que se propaga, como lembra G. S. Morson & C. Emerson

(2008, p. 248), o romance polifônico não é desprovido da voz do autor; este dialoga

com seus personagens e sua voz também se faz ouvir na imagem do autor-criador

ou na voz narrativa. Sabino, enquanto autor real, imprime ao romance a sua visão de

mundo, mas a obra não se limita a uma visão particular do autor, que, no seu jogo

entre o real e o imaginário, vai prosseguindo em seu tom ficcional e deixa até certo

ponto as personagens livres em sua relação com o autor. A este respeito, escreve

Bakhtin:

A ideia do autor não deve ter na obra uma função todo elucidativa do mundo representado mas deve inserir-se nesse mundo como imagem do homem, como um posicionamento entre outros posicionamentos, como palavras entre outras palavras. Esse posicionamento ideal (a palavra verdadeira) e sua possibilidade devem estar ao alcance dos olhos mas não devem colorir a obra como tom ideológico pessoal do autor (2006a, p. 98).

79

Observamos, em O encontro marcado, conforme análise no primeiro

capítulo, a presença da religiosidade, (uma constante em toda a vida de Sabino),

através de reflexões sobre milagre, pecado, aborto, castigo, salvação, condenação,

além da própria existência de Deus, uma vez que estes temas estão diretamente

relacionados com a doutrina da fé no ser Supremo. A presença do outro como uma

instância definidora do ser humano e das relações sociais que o instituem reflete-se

também na voz do narrador, que inicia o romance com uma epígrafe na qual

permanece a ideia da busca de uma definição do eu e do seu lugar na sociedade.

Com um olhar atento e crítico, o narrador põe, no romance enunciados

que evocam uma visão de mundo incorporada por um discurso tecido por um autor

ativo, que conduz os diálogos internos da obra e cria relações dialógicas. O discurso

religioso na voz do narrador instancia vozes circunscritas pelo universo da fé que

insinuam um discurso condizente com a crença em Deus, como neste trecho no qual

a voz narrativa imprime ao seu discurso a ideia de que a própria natureza testifica

sobre a existência de Deus: “Olhou pela janela o céu estrelado, a imensidão infinita

do céu... não foi preciso muito para concluir que, sem Deus, jamais chegaria a

entender onde o universo começava e onde acabava, de onde vinha ele, para onde

iria” (SABINO, 2006, p. 42). Ou que às vezes polemiza sobre a existência de Deus:

“Sim, acreditava em Deus, mas um Deus longínquo, esquecido, voltado para outras

preocupações, que não o seu mesquinho problema de aprender a viver” (SABINO,

2006, p. 17).

No plano literário, observa-se uma visão das gerações presentes a uma

discussão acerca do modernismo e do parnasianismo, enquanto duas tendências

estéticas, representando o choque de gerações, uma vez que os três amigos,

Eduardo, Mauro e Hugo, defendem a postura modernista e o delegado Barbusse o

parnasianismo, como se observa no trecho deste diálogo: “Superado o

parnasianismo? Ora, vamos deixar de bobagem, meninos! Depois de Bilac o que foi

que houve no Brasil, hein? Me digam! Pois fiquem sabendo que Alberto de

Oliveira...” (SABINO, 2006, p. 59).

A discussão sobre problemas ligados à literatura é, às vezes, aliada ao

posicionamento do narrador em relação ao tradicional e ao novo; o professor de

português, por exemplo, era contra o Modernismo: “– Olhem aqui, vejam se isso é

poesia: “é preciso fazer um poema sobre a Bahia... Mas eu nunca fui lá”. Vejam este

outro: “Café com pão, café com pão, café com pão...” (SABINO, 2006, p. 24). O

80

professor ridiculariza os poemas “Lanterna mágica”, de Carlos Drummond de

Andrade, e “Trem de Ferro”, de Manuel Bandeira, numa postura de crítica à nova

tendência que se esboçou a partir da Semana de Arte Moderna em 1922. A voz do

narrador funde-se com a do próprio Sabino nas situações narrativas nas quais o

narrador revela grande consciência técnica, com inferências à teoria do romance,

citações e alusões que permitem a visualização do contexto literário do autor.

Sabino, porém, procura destacar suas imagens artísticas de acordo com as

perspectivas de cada personagem.

Segundo Bakhtin, a função direta do narrador, substituto do autor, é ver e

representar. O que é importante para o autor é não apenas “a maneira individual e

típica de pensar, ver, falar, mas acima de tudo a maneira de ver e representar: nisto

reside sua função direta como narrador, substituto do autor” (2006a, p.191).

Levando-se em consideração a concepção de que o narrador é o substituto do autor;

a importância daquele, sendo personagem ou não, é sua maneira de ver e

representar, ou seja, seu ponto de vista, sua visão de mundo.

Em O encontro marcado, observa-se uma cosmovisão não apenas crítica,

mas também emotiva, que se apresenta não como uma visão pronta e acabada do

mundo, mas como imagem do homem com suas contradições, angústias,

esperanças, tristezas e alegrias; no dizer de Bakhtin (2006a, p. 84) o “homem no

homem” com sua livre falta de acabamento, ou seja, o homem sujeito às marcas do

tempo, e que, no entanto, possui a chave que revela muitos mistérios, “a existência

sempre possível de um tesouro” (SABINO, 2006, p. 9). Sabino não se propõe a

conhecer a si mesmo, o próprio eu, mas a conhecer o outro, por isso é necessário

um deslocamento, olhando para o seu interior ele olha o outro com os olhos do

outro.

Na esteira bakhtiniana, Carlos Alberto Faraco (2008), em seu ensaio

Autor e autoria, se refere ao autor-criador, como “uma posição estético-formal cuja

característica básica está em materializar uma certa relação axiológica com o herói e

seu mundo” (2008, p. 38), ou seja, uma posição valorativa que pode agregar olhares

opostos em relação ao herói. Tais olhares manifestam-se desde a simpatia ou

antipatia, distância ou proximidade, reverência ou crítica, gravidade ou deboche,

entre outros.

Assim, que relações mantém o narrador de O encontro marcado com o

protagonista, uma vez que o romance apresenta um narrador em terceira pessoa,

81

que parece estar bem próximo das personagens? Com um olhar grave e

esperançoso, ante a situação do protagonista, é que o narrador constrói a narrativa

voltada dialogicamente para o herói Eduardo Marciano: “Foi para casa cansado de

política, cansado de Amorim, cansado mesmo de beber – era inútil: sentia-se cada

vez mais lúcido, senhor de cada um dos detalhes da vida, só lhe faltava uma visão

do conjunto” (SABINO, 2006, p. 221).

O protagonista Eduardo Marciano, considerado por alguns críticos – Fábio

Lucas (1996) e Delgado (2007) – como o alter-ego de Sabino, não se funde com o

autor, uma vez que a própria narrativa estabelece a distância entre a personagem e

o autor. Candido (1996, p.54) aponta o aspecto autobiográfico do romance de

Sabino ao dizer “o seu romance é uma autobiografia, ou autobiografia do

personagem que em você representa a constante das inquietações”. Mesmo em

romances considerados autobiográficos, como O encontro marcado, é necessário

um deslocamento sem o qual “não pode haver ato criador” (FARACO, 2008, p. 43).

É preciso um excedente de visão, um olhar de fora, no qual o “autor vê e sabe tudo

aquilo que seu personagem vê e sabe e mais aquilo que está fora do seu campo

visual e vivencial – aquilo que excede sua visão” (MACHADO, 1995, p. 311). Este

princípio de exterioridade se aplica à composição da obra, à relação entre autor e

personagem, como também à relação entre as personagens. Contudo, como afirma

Bakhtin, “as personagens criadas se desligam do processo que as criou e começam

a levar uma vida autônoma no mundo, e de igual maneira o mesmo se dá com o seu

real criador-autor” (2003, p. 6). Desta forma, o autor do romance polifônico renuncia

parte deste excedente para dar certa liberdade de voz às personagens. Entendendo

como Bakhtin, “se não tiver cortado o cordão umbilical que une a personagem ao

seu criador, então não estaremos diante de uma obra de arte mas de um documento

pessoal” (2006a, p.51).

Bakhtin, ao definir sua concepção de autor, esboça o seguinte comentário

no ensaio Reformulação do livro sobre Dostoiévski:

O nosso ponto de vista não afirma, em hipótese alguma, uma certa passividade do autor, que apenas monta os pontos de vista alheios, as verdades alheias, renunciando inteiramente ao seu ponto de vista, à sua verdade. A questão não está aí [...] mas na relação de reciprocidade inteiramente nova e especial entre a minha verdade e a verdade do outro. O autor é profundamente ativo, mas o seu ativismo tem um caráter dialógico especial. Uma coisa é o ativismo em relação a um objeto morto, a um material mudo, que se pode

82

modelar e formar ao bel-prazer; outra coisa é o ativismo em relação à consciência viva e isônoma do outro. Esse ativismo que interroga, provoca, responde, concorda, discorda, etc., ou seja, esse ativismo dialógico não é menos ativo que o ativismo que conclui, coisifica, explica por via causal, torna inanimada e abafa a voz do outro (2003, p. 339).

Nesse sentido, exige-se do autor do romance polifônico uma atividade

dialógica extremamente tensa, que nos permite analisar o lugar discursivo do

narrador sobre a ótica de que o autor não é passivo, ele tem um ponto de vista,

participa do diálogo, em isonomia com as personagens, enquanto imagem do autor

ou representado pelo narrador.

Cristóvão Tezza também aborda a questão da relação entre autor e

personagem, no ensaio A construção da voz no romance, da seguinte forma:

[...] a consciência de uma consciência, o autor criador de que nos fala Bakhtin, a relação básica autor-herói que cria as vozes do romance, não pode destruir completamente a voz representada, a voz do herói. O outro conservará sempre, na linguagem romanesca, o seu grau de autonomia, que pode ser imenso, como nos concertos polifônicos de Dostoiévski (1997, p. 215).

Esta relação entre autor e herói é discutida no romance O encontro

marcado, no qual as personagens de Sabino não são criadas como escravas

desprovidas de voz, mas detentoras do poder da fala, de um discurso, de pontos de

vista sobre o mundo. No final do romance surge um homem estranho, com outras

aparições na narrativa; trata-se de um elemento externo, como se observa no

seguinte trecho, no qual Eduardo discute sobre essa relação de autonomia entre

autor e personagem, sobre a condição da própria personagem Eduardo dialogando

com o seu autor-criador:

– Conheço um sujeito que está escrevendo um romance. – Sobre o quê? – Sobre você. Eduardo se voltou surpreendido: – Sobre mim? Que história é essa? – Um romance – repetiu o homem. – E o que é que eu tenho a ver com isso? Ele me conhece? – Você é personagem dele – o homem insistiu, lacônico [...] – Imagine você apenas personagem de um romance que está sendo escrito, só existindo na imaginação do romancista. – Pirandello – limitou-se Eduardo. – Um personagem [...] Vivendo apenas o que o romancista quer que você viva.

83

– É, mas neste caso não estaríamos conversando sobre isso. Teríamos de obedecer ao nosso papel. Você seria personagem também (SABINO, 2006, p. 278).

No romance de Sabino, quem é este “homem de terno cinza e camisa

azul com riscas”? Como e por que sabia dos acontecimentos à distância? A

presença de uma figura estranha à obra, que parece ter o conhecimento de tudo,

nos leva a analisá-lo como autor-criador, uma imagem de autor, que se situa no

mesmo plano das personagens, criada pelo autor real para dialogar com Eduardo;

um autor integrante de um diálogo interno e partícipe da narrativa, como se pudesse

marcar a hora e o lugar para um encontro dialógico com a personagem, a fim de

provocá-la, instigá-la a revelar-se. O homem misterioso prossegue o diálogo,

expressando exatamente a sua distância em relação ao herói:

– Não: eu seria a única pessoa do lado de fora com quem você pode conversar. Uma espécie de janela aberta para a realidade. Sua chance de se rebelar contra o seu criador, se libertar. Longe de mim você seria apenas escravo. – Escravo, como? – perguntou Eduardo, já meio confuso. – Escravo do romancista. Quando o romance é seu, o verdadeiro romancista é você. [...] – Diga ao tal sujeito que o romance dele acabou. [...] – Então era o caso de telefonar para o romancista e perguntar: e agora, o que é que eu faço? (SABINO, 2006, p. 278-9).

Este diálogo pode ser convertido num choque ideológico entre autor e

personagem, que se deslocou para o interior, para os mais sutis elementos

estruturais do discurso, confluindo-se para um ponto: a personagem não só dialoga,

mas também discute e rebela-se contra o autor-criador. Neste diálogo, observam-se

vozes contrapostas orientadas para o discurso refutável do outro, a imagem de autor

afirma que Eduardo, longe dele, seria apenas um escravo; e Eduardo afirma sua

liberdade em relação ao autor e às convenções que escravizam o homem,

impedindo-o de se autorrevelar.

O narrador apresenta uma espécie de indignação de Eduardo, que fica

irritado quando sente a possibilidade de ser definido e concluído enquanto

personagem, enquanto homem que deseja libertar-se, direcionar sua vida e ter

consciência de seus próprios atos. No romance polifônico, Bakhtin aponta uma

espécie de revolta do herói contra o enfoque literário à revelia, expressando o

84

sentido da revolta do herói em relação ao seu acabamento literário da seguinte

forma:

Não se pode transformar um homem vivo em objeto mudo de um conhecimento conclusivo à revelia. No homem sempre há algo, algo que só ele mesmo pode descobrir no ato livre da autoconsciência e do discurso, algo que não está sujeito a uma definição à revelia, exteriorizante (2006, p. 58).

Eduardo é autor de si mesmo, apreende sua própria vida esteticamente,

como se estivesse representando um papel, uma vez que se reconhece nas

personagens de Pirandello, mas de forma antagônica, pois enquanto as

personagens pirandellianas buscam uma identidade no autor que as criou,

permitindo a sua existência, Eduardo revolta-se contra o autor, a ponto de ter

existência, voz e vontade próprias.

No jogo entre o imaginário e o real, Sabino direciona as palavras para

uma segunda voz, construtora do todo artístico; segundo Bakhtin (2006a), quando

as ideias do autor entram no romance polifônico, mudam sua forma de existência,

“transformam-se em imagens artísticas das ideias” (p. 91), combinam-se com outras

imagens das ideias, com as vozes plenivalentes das personagens.

Ao conceber a voz narrativa por uma perspectiva polifônica, observamos

seu modo peculiar de terminar o romance sem violar a essência polifônica do “não-

acabamento”:

– Tínhamos um encontro – explicou. – Mauro, você e eu. No ginásio, se lembra? Você era o terceiro. Exatamente você. O monge não se lembrava. – Só eu fui... Mas não tem importância. – Não acreditei que você viesse. – Vim por um ou dois dias. Depois... Não tinha importância também o que aconteceria depois. (SABINO, 2006, p. 284)

A última palavra de Eduardo (“Depois...”) não se dá na completude, nem

mesmo o narrador pode lhe dar acabamento (“Não tinha importância também o que

aconteceria depois”). O encontro marcado termina polifônica e abertamente,

convidando o leitor a terminar a história, a traçar linhas pontilhadas e a refletir sobre

uma continuação futura, não resolvida, que o narrador propõe.

85

2.2 Tempo, espaço e vozes sociais: uma via cronotópica

Os diálogos polifônicos em O encontro marcado se realizam por meio de

cronotopos que manifestam a relação temporal entre passado e presente num

espaço provinciano da cidade de Belo Horizonte dos anos quarenta, espaço no qual

parte da narrativa se desenrola, e da agitada cidade do Rio de Janeiro nos anos

subsequentes. Orientamos esta análise evidenciando os confrontos discursivos entre

o ideólogo Eduardo Marciano e seus duplos paródico Mauro e Hugo, além de outras

personagens envolvidas no contexto sociopolítico e cultural que permeia a narrativa.

Ao analisar o romance O sósia, Bakhtin (2006a) trabalha a ideia de duplo, como

“desdobramento de personalidade” (p. 217), apontando que “quase toda

personagem central de Dostoiévski tem seu duplo parcial noutra pessoa e inclusive

em várias outras” (p.218).

No ensaio Formas de tempo e de cronotopo no romance, Bakhtin (1998)

analisa a evolução38 dos cronotopos ao longo dos tempos e as transformações pelas

quais o homem passa ao viver em um determinado tempo-espaço. Por sua

perspectiva, a relação entre espaço e tempo é indissolúvel, sendo o tempo o

“princípio condutor do cronotopo” (p. 212). Ao analisar, principalmente, as obras de

Dostoiévski, Goethe e Rabelais, Bakhtin observa a relação do tempo e do espaço no

romance, e como esse aspecto é importante para o entendimento da narrativa. A

partir desses estudos, o crítico formula seu conceito de cronotopo ao afirmar: “a

interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente

assimiladas em literatura, chamaremos cronotopo (que significa tempoespaço)”

(1998, p. 211).

Bakhtin (1998) entende o cronotopo como uma “categoria conteudístico-

formal” (p.212), mediada pela relação tempo-espaço que ocorre não somente na

sociedade, mas também na arte e na literatura. Essa relação permeia a narrativa

sabiniana, na qual predominam vestígios de um discurso construído através do

confronto entre o tradicional e o novo; vestígios que estão presentes nas vozes que

apontam as perspectivas sociais do momento ao qual pertence o romance e os

38 Na Antiguidade foram criados três tipos de romance e, por conseguinte, três cronotopos distintos, que ainda sobrevivem na tradição literária, porém com aspectos adaptados: romance de aventuras de provações; romances de aventura e de costumes; e o romance biográfico. Bakhtin (1998) inicia suas reflexões com o romance grego, no qual os heróis permanecem inalterados, e termina com o cronotopo da cultura popular de Rabelais.

86

valores e disputas ideológicas nas quais as personagens se envolvem. O romance O

encontro marcado remete-nos há um tempo histórico39 que revela especificidades de

um espaço também histórico. No entanto, não podem ser considerados apenas

como reflexo da realidade, uma vez que, em uma obra ficcional, conforme Bakhtin

(2003):

[...] os visíveis indícios complexos do tempo histórico na verdadeira acepção do sentido, são vestígios visíveis da criação do homem, vestígios de sua mão e de sua inteligência: cidades, ruas, casas, obras de arte, técnicas, organizações sociais, etc. Com base nesses elementos o artista interpreta as intenções mais complexas dos homens, das gerações, das épocas, das nações, dos grupos e classes sociais (p.225).

Ainda de acordo com Bakhtin (1998, p. 355), o significado dos cronotopos

em uma obra reside em dois aspectos que se inter-relacionam: o cronotopo temático

– centros organizadores dos principais acontecimentos do romance, que orientam

todo o enredo e por isso têm um valor temático maior – e os cronotopos figurativos –

em que os acontecimentos, os contextos e, muitas vezes, os cenários, revelam-se

graças aos índices do tempo em regiões definidas pelo espaço. Estes índices

servem para a compreensão dos acontecimentos bem como para construção do

sentido geral do romance, pois nos leva ao tema central. Segundo Bakhtin, o

cronotopo possui um caráter dialógico, uma vez que é produtor de sentido:

O cronotopo como materialização privilegiada do tempo no espaço é o centro da concretização figurativa da encarnação do romance inteiro. Todos os elementos abstratos do romance – as generalizações filosóficas e sociais, as ideias, as análises das causas e dos efeitos – gravitam ao redor do cronotopo, graças ao qual se enchem de carne e de sangue, se iniciam no caráter imagístico da arte-literária. Este é o significado figurativo do cronotopo (1998, p.356).

Bakhtin (1998) afirma, ainda, que cada cronotopo “pode incluir em si uma

quantidade ilimitada de pequenos cronotopos, pois cada tema possui o seu próprio

cronotopo” (p. 357); mas sempre haverá um que predomina. Para Bakhtin, toda

imagem de arte literária é cronotópica, assim como “a linguagem é essencialmente

cronotópica, como tesouro de imagens. É cronotópica a forma interna da palavra, ou

39

Bakhtin (2003) entende o tempo histórico como aquele que surge com o homem e se manifesta nas criações humanas, como as construções urbanas, as instituições sociais e as obras de arte.

87

seja, o signo mediador que ajuda a transportar os significados originais e espaciais

para as relações temporais” (1998, p. 356). Desta forma, compreendemos que a vida

e o romance estão vinculados um ao outro e se encontram em constante interação,

impregnados de valores cronotópicos que se referem a cada momento vivenciado

pelos sujeitos no tempo-espaço representado.

Ao analisar os cronotopos que determinaram as variantes mais

importantes do gênero romanesco nas primeiras etapas de sua evolução, Bakhtin

(1998) apontou motivos cronotópicos que entram como elementos constitutivos nos

enredos dos romances de várias épocas, como também em obras literárias de

outros gêneros, entre eles ressalta-se o do encontro, da estrada e o do praça

pública. Segundo Bakhtin, “em qualquer encontro a definição temporal (“num mesmo

tempo“) é inseparável da definição espacial (“num mesmo lugar”)” (1998, p. 222);

assim, a unidade indissolúvel das definições temporais e espaciais traz um elemento

valioso – “o cronotopo do encontro exerce, em literatura, funções composicionais:

serve de nó, às vezes, ponto culminante ou mesmo desfecho do enredo” (id. ibid.).

Essas considerações bakhtinianas nos remetem ao grande cronotopo do

romance de Sabino – o cronotopo do encontro, uma vez que ele organiza os

principais acontecimentos que se realizam em determinado lugar e momento;

organiza, inclusive, os demais cronotopos – passado e presente. Na narrativa há um

encontro marcado entre três amigos, na qual o narrador formula o universo das

experiências das personagens com imagens do mundo, organizadas a partir da ideia

de tempo e espaço, constituindo assim o cronotopo do encontro entre o tempo

passado (tradição) e o tempo presente (renovação), manifestados pelas vozes

sociais que, simultaneamente, modificam e preservam valores numa trajetória

espaço-temporal:

Últimos dias de aula. Eduardo, Mauro e Eugênio [...] conversavam no corredor sobre a vida que iam enfrentar lá fora, o destino que os esperava. Resolveram, os três, assumir um compromisso: qualquer que fosse o caminho que eles tomassem, vinte anos depois voltariam a reunir-se ali, naquele lugar. – Vinte, não: quinze – objetou Eduardo: – Vou morrer antes disso. – Então quinze – concordaram os outros dois, sem se importar que ele morresse. Onde estivessem, acontecesse o que acontecesse. – Neste mesmo lugar (SABINO, 2006, p. 46).

No decorrer da narrativa, percebemos a relação do tempo e do espaço,

pois é na materialização do cronotopo em que podemos observar um grande diálogo

88

de vozes sociais. Nesse sentido, O encontro marcado é uma obra que nos convida a

passear pelas ruas de Belo Horizonte dos anos de 1940, e a visitar os cenários do

centro e dos bairros da então capital federal, a cidade do Rio de Janeiro. O enredo

apresenta o pacto de amizade entre três amigos do ginásio católico, que após

formarem-se combinam um encontro para quinze anos depois, naquele mesmo

espaço, no qual os três jovens não queriam perder a esperança e os vínculos de

amizade que provavelmente iriam se dispersar, como aconteceu com Eugênio, que

surgirá novamente, apenas no final da narrativa, como Frei Domingos.

Eduardo e seus amigos viviam sob um regime autoritário o qual

repudiavam e esboçavam a oposição às conveniências, provocando a sociedade

burguesa com atitudes irreverentes, como “arrancar placas das paredes, trocar a

numeração das casas e o nome das ruas” (SABINO, 2006, p. 58), tirar a porta da

coletoria e a colocar na primeira casa que encontrassem com o portão aberto, além

de arrombar “a vitrine de uma casa de chapéus, pelo simples capricho de pôr na

cabeça um chapéu de caçador” (p. 78), o que os levou a serem presos pelo

delegado Barbusse, representação do poder. Era uma amizade típica dos filhos de

uma classe média tradicional, que, no entanto, praticavam ações transgressoras e

desafiadoras, como a de subir num viaduto a trinta metros do solo para homenagear

um poeta que havia feito aquilo antes. Trata-se de Carlos Drummond de Andrade,

que subia após ter bebido um copo de leite (BENDER, 1981), enquanto as

personagens da ficção precisam se alcoolizar para enfrentar tal desafio, que na

verdade era um desafio à sociedade burguesa da provinciana Belo Horizonte.

Os três jovens sentiam prazer em desafiar o perigo e possuíam um

instigante senso de humor, como passear com um esqueleto causando sustos aos

transeuntes e “sentaram-se no bar de costume, o esqueleto acomodado numa

cadeira, pernas cruzadas, cigarro à boca. – Chope para três. Hoje é ele que paga”

(SABINO, 2006, p. 56). Além de certa ironia ante aos problemas da vida,

partilhavam, nos bancos da praça, suas preocupações: “hoje nós estamos afiados

para puxar uma angustiazinha” (p. 85). Este sentimento de renovação do mundo

nunca abandonou Eduardo Marciano, ao longo de sua trajetória. Marciano foi um

garoto precoce, revelou seu talento de escritor muito cedo; quando adolescente,

inscreveu-se em uma maratona intelectual e ganhou o segundo lugar. Indo a

primeira vez ao Rio de Janeiro buscar seu prêmio, em dinheiro, por lá ficou a andar

pelas ruas pressentindo que sempre precisaria de um desafio para atingir alguma

89

conquista. “Saiu pela rua, mão no bolso, sentindo que naquele momento começava

a viver. Pobreza, fome, miséria – tudo era preciso para se tornar um escritor” (p. 26).

Seu Marciano foi buscá-lo e concordou com a decisão do filho, mas impôs uma

condição “– Você pode ser escritor [...] – mas tem de estudar primeiro. Ser escritor é

muito bom, mas ninguém vive disso. Quero você formado” (p. 27).

No entanto, Eduardo Marciano, Mauro e Hugo levavam uma vida boêmia

e juntos incorporaram uma forma de discurso contestador, esquerdista – “uma

espécie mais de modismo que de luta política” (GLAESER, 2006) – muito propagado

com o fim da Segunda Guerra Mundial. O pai de Eduardo, diferente dos pais dos

outros amigos, que se indignavam com a atitude boêmia dos filhos, era paciente e

chamava a atitude dos jovens de “estudantadas”. Eduardo tenta explicar a Seu

Marciano e aos pais dos amigos as atitudes que cometiam:

Pretendemos [...] o desencadeamento das forças comuns a todo homem, de toda a humanidade, sabe como é? Adormecidas, há séculos, pelas exigências da vida em sociedade. Subjugadas pelos preconceitos. A moral burguesa. As convenções sociais. O lugar comum. Essa coisa toda. Uma espécie de subconsciente coletivo [...] – Eduardo, escuta aqui uma coisa: está muito bonito que você escreva aí suas poesias, se encontre com seus amigos, façam surrealismo, etc... Só lhe peço uma coisa: termine seu curso de Direito, tire o seu diploma. (SABINO, 2006, p. 65)

É pelo diálogo que as personagens revelam seus pontos de vista, no qual

as vozes sociais se confrontam produzindo sentido nas palavras que se renovam na

tensão discursiva entre os sujeitos. Como afirma Marília Amorim (2008), “o diálogo

no sentido bakhtiniano não tem nada de harmônico, pois é muito mais uma arena de

discussões, discordâncias, mas também um profundo entendimento” (p.107). O

discurso de valorização do carreirismo, como forma de expressão de um futuro

melhor, mais uma vez se faz presente na voz provinciana de Seu Marciano, que

sempre cobrou do filho o diploma de Direito, apesar de tentar compreender suas

atitudes transgressoras. Uma vez que Eduardo e seus amigos combatiam a Ditadura

Vargas, numa linha de conduta democrática, eles endossavam algumas concepções

políticas marcadas pela valorização da liberdade individual e pela solidariedade

social:

Escreviam longos artigos que falavam em honra, liberdade, direitos do homem – burlavam os agentes do governo, que viam neles agitadores e comunistas ameaçando a segurança do regime. Todas

90

as noites o censor revia a matéria já composta, cortava, proibia, modificava – então eles se davam ao trabalho de ir à oficina, tornar a escrever, tornar a compor. – Abaixo os burgueses donos da vida. Abaixo os exploradores do povo, abaixo os fascistas, abaixo a tirania, viva a liberdade! (SABINO, 2006, p. 82)

Eduardo, Mauro e Hugo, misto de poetas, boêmios, e jornalistas,

constituem três imagens marcadas pelo idealismo e apontam para uma geração

desarraigada e sem saber a que valores se prenderem. Ao observarem na oficina do

jornal que outros jovens literatos estavam ocupando os seus lugares, protegidos

pelo redator Veiga, se decepcionaram e concluíram que haviam amadurecido antes

do tempo, e que a passagem do tempo é implacável, deixando suas marcas.

Eduardo expressa essa ideia ao dialogar com Mauro e Hugo:

– Agora é que nós devíamos estar fazendo essas coisas. Somos umas bestas, uma geração temporã, amadurecida antes do tempo. – Tudo murcha, Eduardo Marciano. – Apanhamos o fruto verde e deixamos que ele apodreça nas nossas mãos. – Deixe de literatura. (SABINO, 2006, p. 109)

Este sentimento do tempo expresso por Mauro, Hugo e Eduardo provém

do espaço aberto à multiplicidade de expectativas, em que cada voz expõe sua

visão sobre a temporalidade da própria vida: o tema de Mauro era discorrer sobre “a

incidência no tempo e no espaço” (“vivo em mim a humanidade inteira”), o de

Eduardo “o tempo em face da eternidade” (“Nascemos para morrer”) e o de Hugo “o

efêmero da existência” (“mas que cooooisa!”) (SABINO, 2006, p. 59-60). Os três se

encontram, às vezes, em tempos e espaços distintos, separados por ideais

diferenciados, mas se encontram num mesmo mundo inacabado – suas próprias

vidas. Neste momento, a realidade é refletida por Mauro, Hugo e Eduardo, que

recriam seus mundos e se renovam atribuindo novos sentidos às suas vidas. O

espaço da praça, na madrugada, faz-se propício para desafiar a crise da solidão, a

inquietude da temporalidade e a inspiração da imortalidade:

Encontraram-se por acaso numa festa de carnaval. Em meio à animação reinante, o efêmero das coisas juntou-se ao tempo-versus-eternidade, e não resistiram: foram chorar na Praça o tempo perdido. Mais tarde viriam a saber que, por um desses milagres de afinidades eletivas que os unia, Mauro, em casa, naquele mesmo instante chorava também. A incidência no tempo e no espaço. (SABINO, 2006, p. 60)

91

Eles queriam combater os ideais burgueses e eram capazes de tudo em

favor do inusitado; possuíam uma espécie de senha – “não analisa não” (SABINO,

2006, p.72) –, que no momento em que era pronunciada deveria fazê-los deixar o

que estivesse ocupando-os para acompanhar o outro, além de ficarem na praça

abordando temas habituais que traziam momentos de reflexões entre eles: “Tinham

de viver em cada momento a síntese de toda a existência, não analisar jamais”

(p.72)

O embate de vozes sociais em O encontro marcado evidencia a crise de

Eduardo na tensão de um sujeito que busca empreender uma “missão”, ou seja, seu

lugar na sociedade, através de sua vocação – ser escritor. O enredo e o processo de

constituição da personagem Eduardo Marciano transita entre cronotopos figurativos:

o cronotopo do passado que guarda as lembranças da infância e de sua juventude,

ao lado dos pais e amigos, na cidade de Belo Horizonte, em oposição ao do

presente, no qual o protagonista se encontra casado com Antonieta , filha de um

ministro do governo, e passa a morar na capital federal Rio de Janeiro. A transição

entre estes cronotopos provoca em Eduardo Marciano momentos de reflexão, pois

ao olhar o que está ao seu redor procura a cada instante o encontro com o outro,

debater com vozes-ideia, para conscientizar-se de sua condição, enquanto sujeito

que não se permite avançar para um futuro promissor e concretizar o seu ideal de

ser romancista.

Ao sentar-se no banco da praça, Eduardo observa os jardineiros que

aparavam a grama no jardim, sem nenhuma pressa, como se obedecessem ao ritmo

que lhes era imposto, harmonizando-se à ordem das coisas ao redor. Eduardo

considerou que os jardineiros sabiam viver: “era como se ele, apenas ele,

excedendo a si mesmo, num movimento brusco saltasse fora da engrenagem e,

desgovernado, pudesse ver de longe o mundo pacífico e feliz de que não sabia

participar” (SABINO, 2006, p. 133). O protagonista, com um olhar reflexivo em

relação à realidade e às inquietações em que vivia, não se conforma com o

sentimento de perda que se revela após não haver vencido um campeonato de

natação; devido a isso, vê-se obrigado a enfrentar os seus limites para retornar à

piscina e superar a sua marca. Bakhtin (1998) enfatiza que “um dos principais temas

interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao

seu destino e à sua situação. O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à

sua humanidade” (p. 425).

92

É importante ressaltar que a representação do tempo, por meio das

vivências das personagens, se manifesta em ideias e posicionamentos em que as

questões sociais se relacionam aos conflitos das personagens. A

contemporaneidade observada pelo autor, afirma Bakhtin (1998), compreende

principalmente o domínio da literatura e reflete a visão de cada época. Assim, em O

encontro marcado, o enredo evidencia o tempo e o espaço sociopolítico e cultural de

Belo Horizonte e Rio de Janeiro; neste jogo, as relações dialógicas entram numa

esfera semântica que extrapola o contexto puramente literário:

O domínio da literatura e, mais amplamente, da cultura (da qual não se pode separar a literatura) compõe o contexto indispensável da obra literária e da posição do autor nela, fora da qual não se pode compreender nem a obra nem as intenções do autor nela representadas. A relação do autor com as diferentes manifestações literárias e culturais assume um caráter dialógico, análogo às inter-relações entre os cronotopos do interior da obra (p. 360).

Segundo Bakhtin (1998), o gênero romanesco revela não apenas os

cronotopos de épocas passadas, mas também da contemporaneidade, pois de certa

forma representam a imagem da sociedade em que eles surgem. Assim, o narrador

figura o mundo de Eduardo por meio de motivos cronotópicos, ligando desta forma o

mundo real e o mundo representado que se interagem em O encontro marcado.

Para compreender as vozes sociais no romance, é necessário recorrer aos

cronotopos, que se cruzam e se confrontam, configurando o sujeito no mundo que

ele representa de acordo com o tempo e espaço no qual se encontra.

Mas qual a essência do tempo na narrativa de O encontro marcado? A

partir do primeiro capítulo, “o ponto de partida”, esboça-se um aspecto cíclico que

inicia na infância e chega à maturidade do protagonista Eduardo. A articulação do

enredo é temporal, as ações ocorrem entre estes dois pontos que indicam

acontecimentos marcantes na vida do herói. No entanto, a narrativa não é

construída sobre os acontecimentos, mas no que se realiza entre eles, através dos

diálogos, posto que entre a infância e a maturidade há uma transformação não

apenas biológica, pois tudo se altera no tempo determinado historicamente, nele os

espaços se modificam assim como a vida das personagens.

Um dos episódios marcantes na vida de Eduardo foi o suicídio do amigo

Jadir, jovem oriundo de uma família complicada, em que o pai bebia e a mãe era

irreverente, o suficiente para que não fosse uma boa companhia aos olhos de dona

93

Estefânia, mãe de Eduardo. Um dia antes, os dois amigos falavam sobre suicídio,

cada um emitiu sua ideia. Eduardo dizia que era covardia, a menos que se fizesse

um estrago louco antes, algo que o marcasse na História. Jadir, por sua vez,

afirmava que: "– Quem quer morrer mesmo, não pensa em nada disso, só pensa em

morrer" (SABINO, 2006, p.29). Acabou dando um tiro no peito. Isto naturalmente

tirou o sono de Eduardo por muito tempo.

Os acontecimentos em O encontro marcado podem ser previstos pela

experiência, além de serem antevistos por sonhos e profecias. A voz paradoxal de

Germano, oscilante entre o cristianismo e o misticismo, diz a Eduardo:

Um dia, faz tempo, li um livro, parece que de Dostoiévski. Me lembro de uma cena em que um rapaz vai visitar o místico, em companhia do irmão mais novo [...] então o padre não dá importância ao irmão mais novo, mas cai aos pés do rapaz e beija-lhe os sapatos chorando, depois diz: “Faço isso pelo que você ainda vai sofrer”. Pois bem: estou sentindo que devia fazer o mesmo por você. (SABINO, 2006, p. 185)

No cronotopo do encontro, o mundo e o homem não permanecem

imóveis, mas se apresentam como algo inacabado, numa dada formação social,

posto que se revela num contexto social que se constitui não apenas como pano de

fundo para as vozes sociais que são encenadas no interior da narrativa. O romance,

como afirma Fiorin (2006), “é o gênero mais aberto à mudança, à diversidade,

deslocando a percepção sobre o mundo e sobre a linguagem. Por isso, é o gênero

preferido por Bakhtin, para ilustrar suas ideias acerca da linguagem, da organização

social e da percepção” (p. 139).

A este cronotopo entrelaça-se o da praça pública, pois é neste espaço

que os amigos enfrentam a repressão das instituições, através de palavras e ações,

resistindo às imposições das autoridades. Na praça eles manifestam os seus

valores, posicionam-se diante das ideologias repressoras que cerceiam a liberdade

do homem. Desta forma, podemos dizer que os três jovens eram contrários à

repressão e buscavam representar suas vozes diante do contexto da Ditadura, ao

tentar destruir a hierarquia dos valores instituídos, criando novos confrontos entre as

palavras, posto que o sujeito se exterioriza através da palavra, em todas as

manifestações de sua existência.

A partir do pensamento bakhtiniano, Amorin (2008) aponta que, na

criação artística, há no mínimo dois olhares que não se misturam, que não se

94

fusionam, “o que em outros textos de Bakhtin irá corresponder a duas vozes (no

mínimo), e quando, em uma obra qualquer, se ouvem vozes, ouvem-se também,

com elas, mundos: cada um com o espaço e o tempo que lhe são próprios” (p.105).

O cronotopo do passado apresenta um Eduardo enraizado nos valores sociais

defendidos pelo discurso provinciano e autoritário dos pais, do padre Tavares e das

autoridades oficiais, como o delegado Barbusse. Contudo, Eduardo e seus amigos

não se deixam vencer; com o extremo dinamismo de uma “geração espontânea”,

partem para a obtenção de prestígio no espaço da cidade de Belo Horizonte, porém

através de aventuras pouco convencionais ante o olhar da sociedade mineira: “uma

noite a placa “É proibido pisar na grama” do jardim da igreja de Lourdes foi parar no

jardim da casa do delegado” (SABINO, 2006, p. 58).

Em O encontro marcado, as vozes plenivalentes se apresentam

tencionadas no período da juventude dos três amigos, envolvidos num contexto

político-histórico-social. Como observamos, os três amigos vivem conflitos

permeados pela voz dos oprimidos, a qual enuncia uma ideologia humanista

baseada na igualdade e na liberdade de expressão, mas cada personagem agia de

forma diferente. Mauro comandou uma manifestação política contra o reitor da

universidade, esvaziando a sala onde o reitor seria homenageado, porém Eduardo

não concordou com a atitude, enfatizando que “não se humilha ninguém

impunemente, travassem uma discussão, um debate, dessem ao homem

oportunidade de se defender, insultá-lo sem mais aquela e sair da sala não estava

direito.” (SABINO, 2006, p. 83).

O confronto discursivo entre as personagens evidencia os conflitos das

vozes sociais; Mauro se considera um revolucionário, além de uma postura radical,

seu discurso enuncia uma defesa aos proletários: “os intelectuais continuam

intelectuais, inteligentíssimos, muito perfumadinhos, o encanto da sociedade”

(SABINO, 2006, p. 85). Eduardo tinha outra visão, uma de suas ideias, lançada por

ele em sua polêmica com Mauro, é a de que a denúncia deve ser feita pela arte:

– Não nascemos para dar vaia em político no meio da rua, apedrejar casa de ninguém, pregar cartazes, pichar muros. Não somos moleques. Temos é de escrever, denunciar através da arte, dar nosso testemunho. Somos escritores, intelectuais, nossa missão é outra (SABINO, 2006, p. 84).

95

Eduardo é um intelectual e tem um objetivo social com seu país, tem uma

missão: quer denunciar as mazelas do mundo através da arte, da escrita, mas é

tomado por Mauro como um ser particular, egoísta, já que Mauro quer tornar-se um

homem público e se guia por ações e interesses sociopolíticos, como fazer discursos

em praça pública. De acordo com Miotello (2008):

O eu individualizado e biográfico é quebrado pela função do outro social. Os índices de valor, adequados a cada nova situação social, negociados nas relações interpessoais, preenchem por completo as relações Homem x Mundo e as relações Eu x outro (p.175).

Sabino procura converter cada contradição interior de Eduardo em dois

indivíduos, com o intuito de dramatizar essa contradição e desenvolvê-la. Mauro e

Hugo são os duplos de Eduardo que se apresentam no seu próprio caráter, na sua

própria sombra, posto que os pares de opostos, tão similares e tão díspares,

coexistem no protagonista e no pacto de amizade efetuado por eles. Duplos que se

refletem, mas não se fusionam, para que se mantenha o caráter dialógico,

manifestando as diferenças e tensões entre eles. Endossando os postulados de

Bakhtin (1976) segundo os quais “o ‘eu’ pode realizar-se verbalmente apenas sobre

a base do ‘nós’” (p. 12), a atitude de Eduardo de denunciar através da escrita pode

tornar-se um ato coletivo, uma vez que seu discurso pode coadunar ou se distanciar

dos valores do leitor, instigando-os a uma reação seja de conformismo com a

situação vigente, seja de contestação mais contundente para com uma sociedade

repressora. Eduardo dialoga com seus duplos, Hugo concorda com Eduardo, mas

silencia, ante a discussão dos dois amigos.

Assim, Eduardo percebe que não há mais diálogo possível entre eles, no

entanto, por possuir objetivos idealistas, vê seus amigos como duplos. Usando a

linguagem de Mauro, Eduardo se irrita quando Toledo o incentiva a aceitar o

emprego proposto pelo sogro e casar-se com Antonieta, uma vez que o protagonista

não quer se incorporar à esfera do poder, mas concretizar seu ideal de ser escritor,

numa luta entre seus valores idealistas e o mundo que o rodeia:

– Ainda está em tempo, Toledo. Eu não sou um vendido. – E eu sou - é isto o que você quer dizer. Qual, essa linguagem do Mauro não serve para você, por favor, perceba! Mauro se engrandece assumindo atitudes assim. Você apenas se compromete. – Não tenho medo do compromisso.

96

Toledo deu uma gargalhada: – Não, você não tem medo! Tem apenas um horror cego ao compromisso, e sabe por quê? Pois eu vou lhe dizer: porque para você o importante não é se comprometer, e sim cumprir o compromisso assumido (SABINO, 2006, p. 118).

Segundo Bakhtin (2006a), os “duplos parodiadores” se manifestam com

frequência no romance polifônico, no qual a personagem principal tem os seus

duplos que as parodiam de maneiras diferentes, “em cada um dos duplos o herói é

negado para renovar-se” (p. 128). Mauro é uma voz social caricata que representa a

síntese da imagem que se contrapõe a Eduardo. Cantando em plena rua, “Eduardo

começou a despir-se, ali mesmo. Hugo o imitou”, numa atitude de protesto, diante do

povo que já se aglomerava curioso com a situação. Mauro, observando tal situação,

exagera e deforma de maneira hostil os acentos de seu discurso, como se estivesse

se sobrepondo sempre acima do tom, uma vez que seu discurso é marcado por uma

linguagem política, que trata a todos como oprimidos. No trecho a seguir, podemos

verificar que Mauro, no processo de luta pela liberdade, espelha uma voz paródica

social, como se estivesse representando um papel teatral sem muito empenho de

sinceridade:

– Eis um comovente espetáculo, meus senhores! Um homem que protesta é o mais comovente, o mais legítimo, o mais generoso dos espetáculos, se em nome do povo, pelo povo e para o povo! Um homem que se despe é a imagem desse mesmo povo, perseguido e humilhado, despojado da própria roupa para vestir os poderosos! (SABINO, 2006, p. 93).

Hugo, a voz da efemeridade das coisas, encarna um discurso metafísico

registrado através das hesitações e perplexidades das personagens do romance

frente à fatalidade da vida e à inutilidade das coisas: “[...] nada valia nada, tudo

precário, equívoco contraditório. Vinha escrevendo um livro, uma espécie de ensaio

poético, em que procurava transmitir esse sentimento da inutilidade das coisas”

(SABINO, 2006, p. 59). Verifica-se isto, também, através da linguagem de Hugo, ao

parodiar cartilhas escolares, numa total evidência crítica à inutilidade das coisas: “[...]

não vou de jeito nenhum. Depois de jantar vou... Vou? Vovô. O viúvo viu a ave. Ah,

então vou, não é?” (p. 73).

Neste aspecto do duplo há uma relação entre as três personagens –

Mauro, Hugo e Eduardo – e seus mundos, que se encontram lado a lado e fazem

parte da consciência um do outro, refletindo-se umas nas outras. Entre eles existem

97

relações dialógicas. A voz social paródica de Mauro o faz ser um sujeito caricato,

uma vez que só enxerga as pessoas como desvalidos, coitados. Mauro deseja

persuadir Eduardo, que continua inflexível em seus valores, pois para ele é através

da arte que se conquista a liberdade de expressão; mesmo que paradoxalmente,

suas ações indicam um processo de mudanças propagado pelo intenso confronto

entre as personagens. Mauro “metera-se com outros estudantes entre os operários,

fazia discursos, incitava-os à greve. Fundara um jornal clandestino, violentamente

contra o governo, era vigiado pela polícia” (SABINO, 2006, p. 84). Enquanto

Eduardo, ao ascender socialmente, já não sabia no que acreditava, começa a ser

bajulado e tratado de modo diferente pelos conhecidos, por ser futuro genro de um

ministro. No fragmento a seguir, estão presentes os valores materiais de Eduardo no

discurso de Mauro e Hugo:

– Agora você não pode recuar: o jeito é ir para frente. Faça carreira, se insinue, interfira, influa. Você tem uma grave responsabilidade, está destinado a exercer um papel qualquer, quem sabe você é quem vai um dia tirar o país desta miséria. Hugo era mais prático: – Ou quem sabe você é quem vai nos arranjar um bom emprego? (SABINO, 2006, p. 141).

Segundo Bakhtin (2006a), nos romances polifônicos os heróis

reconhecem-se a si, “a sua ideia, a sua própria palavra, a sua orientação, o seu

gesto noutra pessoa, na qual todas essas manifestações mudam seu sentido

integral e definitivo, não soam de outro modo senão como parodia ou zombaria” (p.

218). Os conflitos provocados pelas diferenças ideológicas entre Eduardo, Mauro e

Hugo afastam cada vez mais os amigos. Inicia-se um novo cronotopo, uma vez que

há uma transformação no tempo e no espaço; agora temos um Eduardo mais

maduro e morando no Rio de janeiro, porém passado e presente se encontram nas

lembranças do protagonista, que começa a reviver os momentos de aventuras com

outros amigos nos bares cariocas. O cronotopo do presente principia-se com o

casamento de Eduardo e sua ascensão, tornando-se genro de um ministro do

governo, com emprego em uma repartição pública. Na capital federal se impõe outro

ritmo e “tudo acontecia numa sequência rápida, sem trégua, mal ele tinha tempo

para acomodar-se a uma transformação em sua vida, e logo vinha outra, ainda

maior” (SABINO, 2006, p.143).

98

Os cronotopos enriquecem o romance O encontro marcado, abrindo

espaço para várias vozes que revelam o sujeito vivendo situações de tensões com

ideias representadas no mundo, imagens que encarnam a dimensão do tempo e do

lugar em que se realizam, pois o romance, segundo Bakhtin (1998), “é uma

diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e

de vozes individuais” (p. 74). Dessa maneira, as vozes de Mauro, Hugo e Eduardo

vão compondo um discurso que se entrelaça a uma representatividade social, no

entanto a voz individual favorece o conhecimento da visão de mundo de cada uma

das personagens, posto que é “graças a este plurilinguismo social e ao crescimento

em seu solo de vozes diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo

seu mundo objetal, semântico, figurativo e expressivo” (Id. ibid.). O reconhecimento

da voz das personagens no romance se dá pelo espaço e tempo em que falam e

suas vozes agregam-se à do coro da narrativa. O discurso do autor, dos narradores

e das personagens, expressa Bakhtin (1998),

não passam de unidades básicas de composição com a ajuda das quais o plurilinguismo se introduz no romance. Cada um deles admite uma variedade de vozes sociais e de diferentes ligações e correlações – sempre dialogizadas em maior ou menor grau (p.75).

A voz social caricata da personagem Mauro, em seu entusiasmo pela

liberdade, esboça uma preocupação pseudo-religiosa, pois sua intenção era

questionar a instituição social na qual não acreditava, e não realmente ajudar os

desvalidos, como é próprio de alguém que é cristão. Ao olhar uma leva de retirantes

dormindo debaixo do viaduto, indignado e numa atitude de revolta, Mauro liga para o

palácio do arcebispo da cidade:

– Falar com o arcebispo? A esta hora? – Quem está falando? – É o irmão José, da portaria. Quem é o senhor? – Um cristão. Basta? – Um cristão? – Chama o arcebispo aí, homem de Deus. – A esta hora o arcebispo está recolhido, não pode atender – informou o irmão, cautelosamente. – Não pode atender? Até uma farmácia pode atender dia e noite e o representante de Deus não pode? [...] – Escuta, padre, quero que o Senhor transmita um recado urgente ao arcebispo. Na cidade, debaixo do Viaduto, tem mais de cinquenta famílias de miseráveis dormindo ao relento. São retirantes, parece. Cristãos, como qualquer um de nós. E como cristão, exijo que sejam todos albergados aí no palácio.

99

– Aqui no palácio? – espantou-se o padre. – Mas não há lugar para tanta gente... – Essa é muito boa: não há lugar! O senhor se esquece de que com sete peixes Cristo alimentou uma multidão inteira? – Não posso fazer milagres... [...] – São uns vendidos – disse ele, desligando o telefone. – Deviam dar o exemplo (SABINO, 2006, p. 81-2).

Da religião, repugnava-lhe o moralismo clerical, na política, debatia com a

mesma ênfase a opressão social e o dogmatismo do regime político da Era Vargas.

A voz do duplo Mauro, marcada pela crítica à moral burguesa, e também às

convenções de dogmas religiosos, incorpora, ainda, uma linguagem rica de

provérbios criados pela sua imaginação, parodiando aspectos de uma cultura

regional – “Quem manqueja de sua influência, cedo tardará”; “Quem as ganha, as

mágoas amarfanha”; “Quem de si faz alarde, cedo o rabo lhe arde” (SABINO, 2006,

p. 71) – numa visão questionadora de um governo opressor. O autor cria para este

personagem uma linguagem da rua, do povo, uma linguagem que é adequada à

visão de mundo de Mauro e que é um dos meios de introdução do dialogismo, do

plurilinguismo e da polifonia na composição da narrativa. Os conceitos de Bakhtin

estão enraizados no romance, assim como na vida social. A palavra de Mauro

precisa do outro para significar, uma vez que a imagem que fere os olhos de Mauro

faz com que ele estilize num tom paródico a passagem bíblica do milagre da

multiplicação (João 6:1-15), uma vez que, conforme o texto bíblico, são cinco pães e

dois peixinhos, a questão da referência somente ao peixe, reforça a ironia à

simbologia do cristianismo. O tratamento irônico é capaz de inverter o sentido do

enunciado, representando um desejo de ruptura, de contraposição às tradições

religiosas.

O discurso plurilinguístico do narrador recria o tempo-espaço, em que as

personagens constroem pontos de vista que provocaram forte reação das

autoridades oficiais de Belo Horizonte, uma cidade conversadora e, à época,

provinciana. O protagonista, Eduardo Marciano, e seus amigos se encontram no eixo

central do tema da temporalidade, como afirma Delgado (2007):

Tempo que, em seu movimento vital e em seu ímpeto inevitável, constrói ilusões, destrói certezas, gera dúvidas, cria e desata relacionamentos, traz novos afetos, aproxima e afasta pessoas e alimenta a vida com seus múltiplos movimentos. Movimentos temporais às vezes circulares – como a angústia de Marciano que sempre insiste em retornar. Outras vezes retrospectivos, quando as

100

pessoas dialogam com as lembranças, fazendo do diálogo, saudade. E também prospectivos, quando projetam o futuro, como acontecia, naqueles anos de um Brasil, que se projetava nacional desenvolvimentista (p. 145).

O movimento do tempo integra a vivência das personagens, abrindo

caminhos espaço-temporais que se cruzam. Em O encontro marcado irrompem

sensações temporais às quais percorremos sem nos prendermos nelas, já que a

narrativa veloz de Sabino faz com que cheguemos com rapidez ao final da trama,

com a impressão visual, como aponta Clarice Lispector (1996), “de linhas retas e

finas se entrecruzando e se cortando, e às vezes de faíscas de trem que está

correndo; a primeira pausa, a primeira mesmo, vem exatamente e apenas no fim” (p.

55). As lembranças da personagem Eduardo vinculadas ao tempo, espaço e vozes

sociais convergem com o motivo cronotópico do encontro. As personagens

oscilavam entre o ritmo da modernidade e a segurança do conservadorismo, assim

como a cidade que ora se deixa envolver pelo novo, ora pela segurança de

tradições. Assim, o romance de Sabino pode ser considerado como expressão de

um tempo histórico caracterizado pelo encontro conflituoso, porém instigante, entre a

tradição e a inovação. Eduardo busca na memória as lembranças de sua vivência

que se entrelaça às memórias social e citadina, tal como Delgado (2006) observou:

As cidades, como espaços de vivências coletivas, são paisagens privilegiadas de registros da memória. A pena dos escritores faz dessas paisagens personagens vivas de narrativas que, na interseção com a história, expressam, de forma policromática, a vida das pessoas no cotidiano de suas ruas, praças, cafés, escolas, museus, residências, universidades, fábricas, repartições públicas, bares, cinemas. As cidades são cristais de múltiplas faces espaciais e temporais, cristais de variadas luzes, entre elas as da memória, que, com sua temporalidade sempre em movimento, reencontra os lugares de ontem com sentimentos do presente (p. 117).

O encontro marcado pode ser considerado uma obra de representação

das vozes sociais de um determinado tempo-espaço sem estar, por isso, estagnado,

pois como observa Bakhtin (2003), “se não se pode estudar a literatura isolada de

toda a cultura de uma época, é ainda mais nocivo fechar o fenômeno literário

apenas na época de sua criação” (p. 362). O crítico vai além ao dizer, no ensaio

Discurso na vida e discurso na arte, que

101

A arte, também, é imanentemente social; o meio social extra-artístico afetando de fora a arte, encontra resposta direta e intrínseca dentro dela. Não se trata de um elemento estranho afetando outro, mas de uma formação social, o estético, tal como o jurídico ou o cognitivo, é apenas uma variedade do social. (BAKHTIN, 1976, p.9).

A revista Entre livros, com o título 50 personagens que são a cara do

Brasil, inclui Eduardo Marciano entre os “Tipos contemporâneos”; para Bruno Zeni

(2006), “a pergunta que O encontro marcado coloca é a da capacidade de a

imaginação influir na realidade e se incorporar a ela, reinventando-a” (p. 67). Ainda

segundo Zeni:

o livro é um retrato de geração que marcou época, no entanto, por sua qualidade literária sobrevive desvinculado dos traços mais ligados ao autor e sua época. A personalidade cativante do protagonista explica, em grande parte, a permanência do romance (2006, p. 67).

No romance de Sabino observa-se a relação do cronotopo passado e

presente, movimento que faz emergir em Eduardo Marciano um sentimento de

nostalgia. O cronotopo do presente constitui o tempo da conscientização de Eduardo

Marciano, após a separação de Antonieta, assim como o desenvolvimento da

provinciana Belo Horizonte. A personagem reflete sobre as ações passadas num

tempo-espaço que já não é o seu, pois aquele Eduardo que tinha pressa de viver

agora é lento, ou seja, menos acelerado, e se revela através de um homem marcado

pela ação do tempo, o que o contrasta com uma cidade agora agitada, como se ele

tivesse amadurecido antes do tempo, pertencendo a uma “geração temporã”

(SABINO, 2006, p.109), como afirmava:

Chegou a hora. Mocidade velha, cansada, desnorteada, exaurida, quando chegaria enfim a tua hora? Quantos séculos de angústia coletiva te fizeram? Quantas horas de aflição foram vividas, quantos corações se extenuaram no amor e na esperança para te entregarem desamparada ao mundo novo? e que será de ti neste mundo? Que será do mundo? Perguntas sem resposta e sem sentido que ele largava na praça avermelhada pelo crepúsculo. “Aqui outrora retumbaram hinos”, pensou, e logo se afastou (SABINO, 2006, p. 237).

A linguagem reflexiva e o enunciado utilizado entre aspas (“Aqui outrora

retumbaram hinos”) favorecem a construção de sentido, visto que Eduardo se

apropria de um verso do soneto “Saudade”, de Raimundo Corrêa, para expressar o

102

seu sentimento de nostalgia em relação à sua mocidade e à própria cidade de Belo

Horizonte. A aceleração do tempo e a descrição da praça, onde Eduardo e seus

amigos ficavam a “puxar angústia” (SABINO, 2006, p. 143), revela uma cidade em

processo de desenvolvimento e evidencia um cronotopo temático que propicia o

encontro de vozes-ideias que questionam e refletem sobre valores ainda não

superados.

A voz provinciana dos pais surge no presente como a voz que chama

Eduardo às suas origens, condena suas ações passadas e o faz refletir sobre os

acontecimentos em um processo de vai-vem entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro

que o leva à ideia de que o tempo não retorna e o que fica na consciência são as

lembranças do passado em forma de vozes:

Em Ouro Preto se deixou ficar, pelas ruas quietas e frias, tentando ordenar as ideias, descobrir o que ocorria consigo, afinal. Não podia entender, não entendia nada, era como se os pensamentos lhe viessem envoltos em nuvem, uma nuvem de tristeza, desânimo, aniquilamento. Sua vida não estava certa. Esses amigos com quem você anda não servem — a mãe dissera. (SABINO, 2006, p.176)

A voz provinciana dos pais representa os preconceitos próprios de uma

cidade conservadora, na qual as pessoas ficavam submetidas ao julgamento alheio,

especialmente quando se tratava de costumes. É o que acontece quando dona

Estefânia expressa sua opinião a respeito dos amigos de Eduardo e o seu pai

concebe a ideia de que ser escritor é apenas um passatempo. Já para Eduardo

escrever era profissão, e um de seus dilemas deve-se à dificuldade de exercer

somente a atividade de escritor e dela tirar seu sustento. Ser escritor era visto por

Antonieta apenas como ser artista e Eduardo se irritava com essa concepção de sua

esposa. No entanto, ele não conseguiu se afirmar em sua vocação de escritor e

ficou, por muitos anos, tolhido por um emprego burocrático, como funcionário da

prefeitura.

Ao viajar por suas lembranças, Eduardo pode refletir sobre suas atitudes,

conscientizar-se de que é um homem que idealizou um sonho que não se

concretizou, pois, na pressa para viver, ele se esquece de que a vida é uma dura

realidade, que havia outras pessoas em seu mundo; a personagem humaniza-se ao

perceber que “seu mundo era dos outros também” (SABINO, 2006, 261). O tempo,

para Eduardo, já não tinha importância, “não se contava senão em anos, para que

103

se pudesse ver a curva dos dias com mais perspectiva, já convertidos em

experiência” (p. 283). O reencontro com o antigo amigo do ginásio, agora Frei

Domingos, fez emergir o mundo contraditório de Eduardo Marciano, que já se

manifestava desde os seus primeiros anos. Podemos observar que a voz humanista

do monge revela a Eduardo um ângulo de visão diferente do seu:

– Você não vê sua própria contradição? Indignado porque te chamaram de assassino, pensa logo em assassinar quem te calunia. – O que eu poderia fazer de mais justo? – Muita coisa – disse o monge, pensativo: – Essa pobre mulher desgraçada, por exemplo, se atirando assim da janela, lembre-se dela, esqueça um pouco o seu problema... – Ela não tem mais nenhum problema: já morreu há muito tempo. – Pois então? Reze por ela [....] Era verdade, nunca lhe passara pela cabeça o drama vivido pela suicida (SABINO, 2006, p. 267).

Bakhtin (1998), ao fazer considerações acerca do cronotopo, explicita que

qualquer fenômeno, e nós incluímos as vozes sociais, é interpretado não só na

esfera da existência espaço-temporal, mas também na esfera semântica:

[...] esses significados, quaisquer que eles sejam, devem receber uma expressão espaço-temporal qualquer, ou seja, uma forma sígnica audível e visível por nós (um hieróglifo, uma fórmula matemática, uma expressão verbal e linguística, um desenho, etc.). Sem esta expressão espaço-temporal é impossível até mesmo a reflexão mais abstrata. Consequentemente, qualquer intervenção na esfera dos significados só se realiza através da porta dos cronotopos (p. 362).

Sabino imprime uma dinamicidade ao seu romance ao fazer uso de

intersecções dialógicas que, além de caracterizar o estilo narrativo do autor, recriam

imagens cronotópicas nas quais as personagens vivenciam o ritmo da vida:

Em verdade se encontrara com Vitor, mas à tarde, na rua. Vitor estava mais gordo, mais velho, diferente... Não parecia o mesmo. – Você é que nem parece o mesmo – dissera o outro. – Que aconteceu com você? – Que está acontecendo conosco? – perguntou-lhe Antonieta um dia. – Que você está pretendendo, afinal? – lhe perguntava Tércio. – Que está acontecendo com todo mundo? – ele próprio se perguntava [...] (SABINO, 2006, p. 206).

Numa sequência de interrogações sem respostas, cada personagem fez

uma pergunta a Eduardo, ressoando vozes que foram ditas em tempos e espaços

104

diferentes e que, no presente, se encontram em sua consciência. Ao olhar-se, na

cama, ao lado de Antonieta, ele reúne em sua mente, como uma sucessão de

acordes dissonantes, todas as perguntas que ele mesmo não sabia responder. Vitor

se refere à aparência física, a esposa ao seu casamento e Tércio à suposta amante

de Eduardo, cuja consciência desperta envolvida pela consciência do outro. As

vozes interrogativas das personagens revelam sua estrutura internamente social –

Vitor era um jornalista de oposição, e vê-se, agora, com outros ideais diferentes de

seu amigo Eduardo; Antonieta percebe que seu casamento foi um equívoco; e

Tércio faz a pergunta crucial “O que você está pretendendo, afinal?” – mostrando

que Eduardo não é outra coisa senão um acontecimento da interação de

consciências que apontam a interdependência das vozes que se revelam na

confissão de Eduardo. O que nos leva a indagar como ocorre a produção de sentido

entre os sujeitos discursivos? apreendendo que “o sentido de uma obra literária é

fruto de uma construção dialógica” (LOPES, 2003, p. 70), uma vez que é no diálogo

que a personagem se revela, se mostra como um ser inacabado, em processo de

construção polifônica, situado numa fronteira, num limiar em que interage com o

outro.

Os fatos histórico-sociais que se refletem na polifonia de Sabino são

importantes, uma vez que o romance, ao expor momentos críticos de um contexto

cultural e político, propicia reflexões acerca do período do regime autoritário que

dominava o país sob a ditadura de Getúlio Vargas. Como já apontamos, as

personagens são contemporâneas da segunda guerra mundial, o que traz também

marcas de um contexto universal. Neste período, os jovens amigos sonhavam com

ideais socialistas, e são questionados por Toledo ao indicar que a atitude dos

amigos não eram atitudes legítimas, mas apenas ideais de jovens sem experiência:

– Vocês pensam em reformar o mundo. Também já pensei assim. Com o tempo fui aprendendo umas tantas coisas. É preciso compreender, antes de julgar... A natureza humana é frágil, ninguém é perfeito. E é assim mesmo que o mundo tem de ir para a frente... Começaram a olhar Toledo com desprezo, não o poupavam: – Literato raté. – Academia com ele. Agora se diziam socialistas. Toledo, complacente, ouvia-lhes as ideais, as violentas ideias: tudo errado, administração corrompida, acabar com tudo, instaurar uma nova ordem. – Eu também sou socialista – dizia ele, tentando ainda captar a simpatias dos rapazes (SABINO, 2006, p. 79).

105

Eduardo e seus amigos queriam aderir aos encantos da modernidade,

porém não conseguiam se desprender dos preconceitos próprios de uma cidade

ainda provinciana. De um ângulo de visão aprofundada pela vivência pessoal,

Toledo quer imprimir a voz da experiência aos jovens amigos, no entanto, uma voz

conformista que lhes transmitia um certo desencanto, e a convicção de que a

trajetória para conquistar seus ideais seria árdua. No período do Estado Novo havia

uma rigorosa censura a qualquer manifestação política, e é exatamente nesse

período que os três jovens sonhavam reformar o mundo. O ideólogo Eduardo sonha

em fundar uma revista “que fosse representativa de nossa geração, desse o nosso

testemunho” (SABINO, 2006, p.70), o que não aconteceu pois “morreu ali mesmo,

transformada num plano qualquer de ganhar dinheiro” (Id. ibid.). Eduardo e seus

duplos tinham ideias similares, desejavam mudar o mundo e desprezavam aqueles

que não tinham os mesmos princípios, porém o que ele e seus asseclas ideavam

não era colocado em prática.

Sabino constrói uma significativa representação da vida urbana através

da trajetória do protagonista, Eduardo Marciano, que busca o seu reflexo em seus

duplos na tentativa de encontrar uma imagem de si. Tal representação envolve “um

retrato em movimento de uma conjuntura histórica específica da história republicana

brasileira, uma vez que o movimento de construção da representação é

simultaneamente o de apresentação da realidade da vida social” (DELGADO, 2007,

p. 152). Essa realidade é eivada de significados por valores e imagens que traduzem

as vozes peculiares à vida dos sujeitos num período repressor que, naturalmente,

não se restringe há um período específico, uma vez que “o sistema opressivo

perdura no tempo e no espaço, e a procura da verdade para a libertação do homem

é um anseio filosófico constante” (CORRÊA, 2007, p. 96).

A evocação de um tempo passado que fluiu com rapidez para o presente

faz emergir em Eduardo lembranças dos espaços públicos e privados da cidade, da

infância e da juventude perdida. Ao retornar à cidade, a personagem volta o seu

olhar para o exterior:

Encontrou a cidade diferente, mudada. Agitação pelas ruas, prédios novos, gente andando para lá e para cá, como se realmente tivesse urgência de ir a qualquer parte. Os elevadores funcionavam todo o tempo:

106

– Andares! – gritava o ascensorista, e ia dizendo: primeiro! segundo! terceiro! quarto! e assim até o vigésimo, quando então a porta se abria: terraço! Vejam só que bela vista (SABINO, 2006, p. 237).

Conforme Delgado (2007 p. 147), a capital mineira visitada pelos ares da

modernidade tardia nos idos da década de 1940, era ainda uma cidade provinciana,

convocada a se renovar e a abraçar as demandas de transformação modernizadora

que contagiavam o Brasil à época do Estado Novo. A paisagem urbana da cidade se

modernizava passando de cidade provinciana à categoria de metrópole moderna,

como se observa na narrativa de Sabino:

Nada importava mais, senão que haviam acabado com o banco da Praça. O novo prefeito fizera um estrago no jardim, pondo abaixo as belas touceiras de antigamente, substituindo tudo por uma grama rasa, bem aparada, ridícula. Os bancos agora eram mármore, como túmulos. Nada mais o ligava àquele lugar (SABINO, 2006, p. 237).

Quando Eduardo retorna a Belo Horizonte, para se reencontrar com os

amigos, percebe a cidade diferente. Seus olhos se surpreendem com o presente,

posto que a perspectiva que havia construído sobre os lugares da cidade de sua

juventude não reflete, exatamente, à realidade reencontrada, e que também não se

pode recuperar. As cidades mineiras são parte da vida da personagem central ou

nela influem, pois estão sempre ligadas a desencontros físicos e espirituais, como

observou Corrêa (2007, p. 58): “Juiz de Fora é Helga, que revisitada nada mais

representa para Eduardo. Uberaba é a incerteza das afinidades entre Antonieta, filha

de ministro, e Eduardo, filho de um funcionário público. Ouro preto é a compreensão

de sua angústia”.

É um tempo real na vida humana, que corresponde a um espaço também

real, em que as particularidades sociais ou culturais do lugar são parte constitutiva

do enredo e deixam traços em Eduardo, pois cada cidade corresponde a uma

pessoa que integrou a sua vida. Há uma ligação entre tempo e espaço, como se

Eduardo quisesse repetir os eventos, por um retorno ao tempo e por um

deslocamento do espaço. Porém, a imagem construída por Eduardo é de um lugar

familiar, mas com pessoas estranhas, pois foram alteradas pelo tempo. Eduardo age

como se estivesse nesse lugar pela primeira vez, não mantendo qualquer ligação

substancial com as cidades revisitadas.

107

As vozes sociais, em O encontro marcado, evidenciam a indissolubilidade

entre tempo-espaço, posto que os diálogos e as ações das personagens ocorrem

numa teia polifônica que se torna uma das marcas discursivas de Sabino,

entrelaçando-se ao cronotopo do romance. Evidenciam-se as relações humanas e

suas contradições que se configuram entre dois extremos, vozes de um presente

constituído de antagonismo expresso por um jogo de incorporação de vozes do

passado, em um espaço e tempo dual que é o reflexo da imagem do protagonista. A

inter-relação tempo-espaço-vozes se configura como uma espécie de ponto comum,

no qual emergem os valores dos sujeitos constituídos por meio das interações

sociais. Em O encontro marcado, estes movimentos cronotópicos – passado e

presente – permeiam a narrativa. No primeiro, o mundo das relações familiares, da

origem provinciana, refere-se ao particular das personagens, enquanto o segundo

conduz ao universal das relações sociais mais amplas. Tais perspectivas podem ser

simultâneas, posto que a fronteira do olhar converge para o mesmo ângulo – o do

encontro, território por excelência do confronto discursivo entre os sujeitos por

natureza polifônicos.

108

III

A FORMAÇÃO DA AUTOCONSCIÊNCIA DO PROTAGONISTA EDUARDO

MARCIANO

Agora só a liberdade importava: liberdade de um dia olhar o outro nos olhos e dizer: és tu [...] (SABINO, 2006, p. 238).

109

Na análise que Bakhtin (2006a) fez da obra de Dostoiévski, como

observamos anteriormente, um dos elementos polifônicos apontados é o tipo de

tratamento que o autor dá às personagens, conferindo-lhes uma “relativa liberdade e

independência [...] de sua voz em relação ao outro’’ (2006a, p. 46). Este elemento

constitui uma característica fundamental do romance polifônico. Bakhtin ressalta que

as personagens interessam ao romancista “enquanto ponto de vista específico sobre

o mundo e sobre si mesma”, e não como um “fenômeno da realidade, dotado de

traços típico-sociais e caracterológico-individuais definidos e rígidos, como imagem

determinada” (Id., Ibid.). Trata-se, portanto, de uma particularidade de princípio da

personagem, já que, enquanto ponto de vista, concepção de mundo e de si mesma,

a personagem requer métodos específicos de revelação e caracterização artística.

Assim, o que deve ser caracterizado pelo autor não é a imagem acabada da

personagem, mas a palavra da personagem sobre si e sobre o universo que a

permeia, como aponta Bakhtin

[...] não são os traços da realidade – da própria personagem e de sua ambiência – que constitui aqueles elementos dos quais se forma a imagem da personagem, mas o valor de tais traços para ela mesma, para a sua autoconsciência (2006a, p. 47).

No romance polifônico, toda a realidade se torna elemento da

autoconsciência da personagem, o autor inclui tudo no foco de visão da própria

personagem. Todos os elementos dos quais se forma a imagem da personagem,

citados por Bakhtin – as qualidades objetivas estáveis, a sua posição social, a

tipicidade sociológica e caracterológica, o habitus, o perfil espiritual e a aparência

externa – tudo de que se serve o autor, para criar uma imagem estável da

personagem, torna-se objeto de reflexão da personagem. O próprio herói se

autodefine, a realidade da própria personagem, o mundo exterior que a rodeia e os

costumes se inserem no processo de autoconsciência. Tais componentes não se

encontram no mesmo plano com a personagem, por isso não podem ser fatores

determinantes da personagem, pois ela focaliza a si mesma de todos os pontos de

vista possíveis. Mas Bakhtin expressa que a personagem necessita de uma outra

consciência que esteja ao seu lado como múltiplas vozes constituintes da tessitura

polifônica:

ao lado da autoconsciência da personagem, que personifica todo o mundo material, só pode coexistir no mesmo plano outra

110

consciência, ao lado do seu campo de visão, outro campo de visão, ao lado da sua concepção de mundo, outra concepção de mundo. À consciência todo-absorvente da personagem o autor pode contrapor apenas um mundo objetivo – o mundo de outras consciências isônomas a ela (2006a, p.49).

Para Bakhtin (2006a), a autoconsciência, enquanto dominante artístico da

construção da personagem, não pode se situar em concomitância com outros traços

de sua imagem, uma vez que ela absorve esses traços como matéria sua e os priva

de qualquer força que dá um acabamento à personagem. A autoconsciência da

personagem vive do seu caráter de imagem inacabada, em eterna formação.

Contrapondo-se a outras consciências, atinge a maturidade de refletir sobre si e seu

mundo, através de um processo dialógico, sem, contudo, chegar a respostas prontas

ou fechadas, mas à percepção dialógica da verdade. Para Bakhtin, Dostoiévski,

criador do romance polifônico, “buscava uma personagem que tivesse toda a vida

concentrada na pura função de tomar consciência de si mesma no mundo” (2006a,

p. 50).

3.1 A imagem de Eduardo pelo olhar do outro

No romance polifônico, a imagem da personagem como ser inconcluso se

constitui na interação com o outro e se renova no processo de formação da

autoconsciência. Eduardo Marciano pode ser percebido como um ser tomando

consciência de si e do outro no mundo. O protagonista Eduardo apresenta-se no seu

limiar, na fronteira do olhar do outro. No episódio em que a personagem Mauro

propõe celebrar um encontro casual, entre ele, Hugo e Eduardo, questionando até

quando estariam os três juntos, Mauro diz que esta era até então apenas a verdade:

“ninguém sabe, a verdade é esta” (SABINO, 2006, p. 85). Hugo questiona uma ideia

única de verdade: “o que você pensa que é verdade talvez não seja o que eu penso”

(Id., ibid.). Para Hugo, o ser humano é traduzido em palavras, mas “as palavras não

querem dizer nada, servem só para formar uma verdade comum a todos, que afinal

não é de ninguém” (Id., ibid.). Mauro propôs que fossem verdadeiros, dizer cada um

a sua verdade: “Dizer o que pensamos uns dos outros e de si mesmo. Dizer no duro,

sem contemplações” (Id., ibid.). O que Mauro propõe é uma percepção dialógica da

verdade, não uma observação silenciosa, mas sem contemplar, sem dar algo como

111

reconhecimento. Mauro pergunta a Hugo se ele aceita dizer cada um a sua verdade,

mas Hugo diz que não sabe, já que, para ele, “há certas verdades que eu não digo

nem a mim mesmo” (Id., ibid.).

É necessária outra consciência coexistindo ao lado da consciência de si

mesma no mundo. Eduardo aceita o desafio, desde que se comprometam a não

protestar e, ao fim, esquecer, o que seria impossível, pois os três se “haviam feito

graves, sérios. Sentiam no ar a ameaça, o perigo da experiência, sentiam medo” das

“verdades” que poderiam ouvir e absorver. Coube a Mauro, pelo sorteio, iniciar. Eis a

fala de Mauro:

– Bem: primeiro, o que eu penso de mim. Antes de mais nada, sou um sujeito inteligente, bastante inteligente. Mas de uma inteligência intuitiva, nada lógica, feita de iluminações, de clarões... Não sei se vocês estão me entendendo (SABINO, 2006, p. 86).

Mauro em seu discurso se autodefine como um sujeito que tem uma

percepção da realidade independente de qualquer processo de raciocínio; possui

uma inteligência dotada de profunda visão. Ele interrompe o seu discurso

perguntando aos amigos se estão lhe entendendo, como que para convidá-los a

fazer parte do diálogo. Ao continuar, Mauro declara que sua inteligência é de poeta:

“Sou um poeta. Agora: sou um desajeitado para viver. Não sei comprar uma camisa.

Sou grosseiro, vulgar, suado, me sinto proletário, emigrante, pesado, sujo. Amo as

pessoas e as coisas [...]” (SABINO, 2006, p. 86). Mauro é interrompido por Hugo,

que deseja ouvir sobre ele e Eduardo. Mauro inicia por Hugo:

– Você, Hugo, é um sujeito bom. Sua maior qualidade. Mas, como todo sujeito bom, é um fraco. Talvez influência da saúde, você é fraco e doentio, um sujeito que morre cedo. Não sei explicar... Você não tem mau caráter: tem caráter fraco, é isso. Indeciso, medroso. E como todo medroso, capaz de rasgos de coragem, subir no Viaduto, fazer um discurso em praça pública – Eduardo jamais fará um discurso (SABINO, 2006, p. 86).

Eduardo o interrompe para dizer-lhe: “não sou orador, sou escritor”.

Mauro prossegue em sua tentativa de definição de Hugo, não cria uma imagem

sólida, fixa, mas revela contradições inerentes ao ser humano – Hugo é um sujeito

bom, não tem mau caráter, mas tem caráter fraco, ao mesmo tempo que é indeciso

e medroso é capaz de rasgos de coragem, como “subir no viaduto, fazer um

discurso em praça pública” e capaz de “surpreender com um rasgo de heroísmo,

112

mas também capaz de nos surpreender com um rasgo de mesquinharia”. Mauro

também fala da inteligência de Hugo, como cheia de maliciosas insinuações e

ironias, o que, para Mauro, “não é bom sinal, pelo contrário: serve para a perfídia, a

maledicência, a traição [...]” (SABINO, 2006, p. 86).

Mauro é interrompido por Eduardo, que se incomoda com o discurso do

amigo ao dizer “chega”, “eu agora”. Mauro inicia o retrato de Eduardo:

– [...] Sua lógica é irresistível, mas impiedosa, irritante. É desses remédios que matam a doença e o doente. Você tem sentimento poético, e muito – no entanto é incapaz de escrever um verso que preste. Por quê? Sei lá. [...] Sua compreensão de mundo, da vida e das coisas é surpreendente, seu olho clínico é infalível, mas você é um homem refreado, bem comportado, bem educado, flor do asfalto, lírio de salão, um Príncipe de Gales, como diz o Hugo. Tem uma aura de pureza não conspurcada, mas é ascético demais, aprimorado demais, debilitado por excesso de tratamento. Não se contamina nunca, e isso humilha a todo mundo (SABINO, 2006, p. 87).

No discurso de Mauro, surge a pergunta “por quê?”, que pode ser de

Eduardo, quando Mauro diz que ele “tem sentimento poético, e muito – no entanto é

incapaz de escrever um verso que preste”, de imediato a resposta “Sei lá”. Mauro

fala apenas que há qualquer coisa que o contém, que o segura, como uma mão.

Nesse bloco dialógico, Hugo manifesta o seu mal-estar com a brincadeira, mas fala

de si incorporando a voz de Mauro, ao dizer: “Sei que sou um fraco, um vendido, um

covarde”. Hugo compara sua inteligência à de Mauro e Eduardo: “minha inteligência

não é capaz de iluminações, nem de distribuir justiça, como a de vocês. (SABINO,

2006, p. 87). Eduardo responde como o vê: “– Em suma, outro pobre-diabo”. Hugo

se refere a Mauro como um “poço de contradições”, e profere ideias, que, para

Mauro soam como xingamentos. Hugo absorve a voz de Mauro para falar de

Eduardo:

– E, você, Eduardo. Você, o puro, o intocado, o que se preserva... Seu horror ao compromisso porque você se julga um comprometido, tem uma missão a cumprir, é um escritor. Você e sua simpatia, sua saúde...Bem sucedido em tudo, mas cheio de arestas que ferem sem querer. Seu ar de quem está sempre indo a um lugar que não é aqui, para se encontrar com alguém que não somos nós. De nós três, o de mais sorte, o escolhido, nosso amparo, nossa esperança. E de nós três, talvez, o mais miserável, talvez o mais desgraçado, porque condenado à incapacidade de amar, pelo orgulho, ou à solidão pela renúncia (SABINO, 2006, p. 88).

113

Eduardo, após ouvir sobre a sua imagem, se recusa a continuar:

– Se nós mesmos, que nos conhecemos mais do que ninguém, somos de tal maneira precários no julgamento de cada um, é porque não sabemos nada, não somos donos de verdade nenhuma, temos de buscá-la fora de nós. A consciência é inútil, sem uma convicção adquirida. Isso que estamos fazendo é inútil, é masoquismo. Não temos importância, somos apenas três coisas largadas, desarvoradas, aflitas. Está acima de minhas forças dizer alguma coisa mais... (SABINO, 2006, p. 89).

Mauro e Hugo se acham conscientes, mas oscilam em suas contradições.

A consciência está ofuscada e sem uma verdadeira convicção não há uma

consciência plena. No plano das personagens, ao exporem seus pontos de vista

sobre si mesmas, as três personagens não esboçam traços típicos-sociais e

caracterelógicos individuais fixos, formando uma imagem de si e do outro como ser

acabado, mas há um questionamento que gera conflitos, a partir da relação do

homem com outras consciências.

Observa-se que Sabino, na construção do romance O encontro marcado, tece

fios dialógicos, mantendo seu “excedente mínimo de visão” aquele que é necessário

para compor o todo da obra, que tem como dominante artístico a autoconsciência de

Eduardo Marciano, esta personagem que “focaliza a si mesma de todos os pontos

de vista possíveis” (BAKHTIN, 2006a, p. 48). O teórico russo explica esta nova

posição do autor do romance polifônico, que passa a ter um excedente mínimo de

visão necessário para conduzir a história e deixa suas personagens relativamente

livres. Se no romance monológico o autor detém todo o excedente de visão, na obra

polifônica as personagens entram no diálogo tomando consciência de sua própria

realidade.

Bakhtin (2006a) expressa que o herói dostoievskiano – e por extensão o

herói polifônico –, nunca coincide consigo mesmo, por conter o outro dentro de si. A

autoconsciência de Eduardo vive de seu caráter de coisa inacabada, em eterna

formação, ao lado de consciências isônomas, legitimamente iguais a ela. De acordo

com a perspectiva polifônica, o processo de tomada de consciência é fundamental,

pois Bakhtin enfatiza que “a personagem de Dostoiévski é toda uma

autoconsciência” (2006a, p. 50). E o interessante é que esse processo se dá de

forma dialógica, uma vez que existem várias vozes e elas dialogam entre si em

114

busca de uma verdade, mas uma “verdade da própria consciência do herói”. (2006a,

p. 55).

Como já apontamos no segundo capítulo, as personagens Mauro e Hugo

configuram-se enquanto duplos de Eduardo, representantes de facetas de sua

própria consciência, que aparecem enquanto vozes para mostrar ao herói sua

própria inconclusibilidade e auxiliá-lo no processo de tomada de consciência de si,

dos outros e do mundo – traço este fundamental na formação do romance polifônico.

Os traços utilizados por Mauro e Hugo, para formar a imagem de

Eduardo, não podem concluí-lo ou fechá-lo, construir-lhe a imagem integral, ou seja,

determinar quem é ele, pois Eduardo, ao absorver todos os possíveis traços estáveis

da sua imagem, torna-os objeto de reflexão e toma consciência da própria realidade.

A partir da ideia de que a autoconsciência da personagem por si mesma, já basta

para quebrar o monologismo do romance, Bakhtin enfatiza que

a personagem se torna relativamente livre e independente, pois tudo aquilo que no plano do autor a tornaria definida, aquilo que a qualifica de uma vez por todas como imagem acabada da realidade, tudo isso passa agora a funcionar não como forma que conclui a personagem mas como material de sua autoconsciência (2006a, p. 51).

A obra O encontro marcado, pois, apresenta a formação da

autoconsciência de Eduardo, ou seja, uma tomada de consciência de sua realidade

que só se dá através do diálogo com outras consciências, através de uma percepção

dialógica. Essa autoconsciência é adquirida pelo olhar de outras consciências que

lhe dão acabamento estético por formar o todo integral da personagem, mas do

ponto de vista interno, esta autoconsciência permanece inacabada, tendo em vista

as contradições inerentes ao ser humano; a personagem permanecerá numa eterna

tomada de consciência. A autoconsciência manifesta uma inconclusibilidade, ao

existir no limiar de outras consciências, que se entrecruzam em dissonância ou

concordância, por um processo dialógico, mas em perspectivas diferentes.

Sabino renuncia ao seu “excedente essencial”40 para que as personagens

sejam relativamente livres e independentes, mas conserva um excedente mínimo

para criar a obra, como “aquele mínimo indispensável de excedente pragmático,

40 A renúncia ao “excedente essencial de significação do autor” que nos propõe Bakhtin, (2006a, p. 73), permite que as personagens sejam livres, uma vez que o excedente de visão do autor finaliza a imagem da personagem sem permitir-lhe que participe do grande diálogo do romance.

115

meramente portador de informação, necessário para levar a história adiante”, de

que nos fala Bakhtin (2006a, p. 73). Desta forma, encontra-se intrincado no contexto

polifônico o conceito de “excedente de visão”. Sabino utiliza o narrador na terceira

pessoa para levar ao conhecimento das personagens aquilo que não está ao

alcance de suas consciências. O autor não reserva para si um excedente essencial

do autor, mas coloca face a face a verdade de Mauro, Hugo e Eduardo a constatar-

se dialogicamente.

Como duplos de Eduardo, Mauro e Hugo são reflexos que não podem

fundir-se, pois o discurso dos duplos é divergente de si mesmo, as vozes se

confrontam e se opõem, mas ao mesmo tempo podem se revelar em consonância,

uma vez que, conforme analisamos no capítulo anterior, são desdobramentos de

Eduardo, cuja imagem se dá pela incompletude e não pelo acabamento. Conforme

Bakhtin (2006a), é preciso buscar essa consciência no “eu-para-outro”, que pode

dar-lhe apenas um acabamento estético de sua imagem integral; assim, é preciso

buscar a revelação da verdade de forma dialógica no outro e não no “eu-para-mim”.

Entre Mauro, Hugo e Eduardo e seus mundos existem relações

dialógicas, nas quais as personagens se entrelaçam e intercambiam suas

“verdades”, estão de acordo ou em desacordo, dialogam entre si. Sabino, ao retratar

as crises e reviravoltas na vida de Eduardo, representa a sua vida no limiar, por isso

o protagonista fica internamente inacabado, corroborando a concepção de Bakhtin

segundo a qual a “autoconsciência não pode ser acabada de dentro” (2006a, p.73)

Mauro e Hugo procuram em Eduardo apenas uma definição material, das

emoções e dos atos definidos. O autêntico Eduardo permanece à margem do

julgamento deles, ele será juiz de si mesmo. Bakhtin explicita que “a autoconsciência

enquanto dominante da construção de imagem do herói requer a criação de um

clima artístico que permite à sua palavra revelar-se e auto-alucidar-se” (2006a, p.

64). Segundo Bakhtin, “nenhum elemento de semelhante clima pode ser neutro: tudo

deve atingir o herói em cheio, provocá-lo, interrogá-lo, até polemizar com ele e

zombar dele, tudo deve ser sentido como discurso acerca de um presente e não a

cerca de um ausente [...]” (Id., ibid.).

Essa imagem de Eduardo é a representação do herói. Bakhtin, ao se

referir ao herói polifônico, afirma que “após escolher o herói e o dominante da sua

apresentação, o autor já está ligado à lógica interna do que escolheu, a qual ele

deve revelar em sua representação” (2006a, p. 65). A lógica da autoconsciência

116

admite apenas certos métodos artísticos de revelação e representação. Revelar e

representar o herói só é possível interrogando-o e provocando-o, mas sem fazer

dele uma imagem predeterminante e conclusiva.

A personagem Eduardo luta contra essas definições de sua

personalidade, feita por outras pessoas; ele escuta, incomodado, todas as palavras

reais e possíveis dos outros a seu respeito e procura antecipar todas as possíveis

definições de sua personalidade pelo outro. Quando Mauro diz que ele seria incapaz

de fazer um discurso, ele antecipa que não é um orador, mas um escritor.

Eduardo olha-se nos reflexos de seus duplos, conhece as refrações de sua imagem,

até sabe a sua própria definição em relação a si e ao outro, que é realmente neutra,

pois prefere considerar o ponto de vista de fora, do outro e não de si mesmo.

Contudo, as apreciações não lhe concluem a imagem, porque ele sabe que lhe cabe

a última palavra sobre si mesmo.

No ensaio Reformulação do livro sobre Dostoiévski, Bakhtin, ao se referir

à posição do autor em relação à personagem, expressa que

não se trata de fundir-se com o outro, mas de manter posição própria na distância e no excedente de visão e compreensão a este relacionamento [...]. Esse excedente nunca é utilizado como emboscada, como possibilidade de chegar-se a atacar pelas costas. Esse é um excedente aberto e honesto, que se exprime em discurso voltado para alguém e não à revelia. Todo o essencial está dissolvido no diálogo, colocado cara a cara (2003, p. 355).

Ao lado da consciência de Eduardo, coexistem, no mesmo plano, outras

consciências, como se observa no episódio em que Eduardo convida Mauro a ir à

Pampulha para se distraírem. Ao tomarem o ônibus Eduardo propõe:

– Experimente olhar a cidade com olhos de turista. Olha aquela casa ali, que esquisita. Estamos em Beirute. Olha a cara das pessoas. Todo mundo tem dois olhos para ver, que coisa estranha. É preciso ver a realidade que se esconde além, onde a vista não alcança (SABINO, 2006, p. 72).

No romance O encontro marcado, nada permanece exterior à consciência

de Eduardo, tudo se reflete nela em forma de diálogo. As apreciações e os pontos

de vista sobre sua personalidade, o seu caráter, as suas ideias e atitudes são

levadas à sua consciência, que dialoga com personagens – Mauro, Hugo,

Monsenhor Tavares, Antonieta, Toledo, Frei Domingos, Germano, os pais e outros –

cujas visões de mundo se entrecruzam com a sua visão. Aquilo que Eduardo vê e

117

observa é inserido no seu discurso, proporcionando respostas às suas perguntas e

novas interrogações, às quais ele contesta ou confirma. Temos, desta forma, o

múltiplo em um só indivíduo.

3.2 Interiorização do múltiplo em um só indivíduo

No romance O encontro marcado encontram-se diálogos do herói

Eduardo Marciano com ele mesmo, com os discursos externos e com a realidade

que o cerca. Estes diálogos são chamados por Bakhtin (2006a) de diálogos

interiores, monólogos interiores ou ainda microdiálogos. Diante de questionamentos

a respeito da vida, a conversa de Eduardo consigo próprio flui de tal forma que ele

emerge em seu mundo interior, adquirindo consciência diante do mundo que lhe é

apresentado.

Os trechos dialógicos expostos serão analisados tendo em vista a

“unidade da auto-enunciação monológica do herói” e a “unidade da narração”. Estas

unidades, conforme Bakhtin, integram junto com a “unidade do diálogo entre as

personagens”, as unidades composicionais do romance (2006a, p. 205).

Na unidade da auto-enunciação monológica de Eduardo, encontram-se os

diálogos interiores, nos quais iremos nos deter, a partir deste item, para

observarmos a interiorização dos múltiplos discursos em Eduardo que o levam a

uma reflexão da sua posição no mundo. O discurso interior de Eduardo se

desenvolve dialogicamente em relação a si mesmo e em relação ao outro.

Neste item, a análise do discurso indireto livre será efetuada fora dos

limites de análise deste tipo de discurso, o que nos interessa aqui são os diálogos

interiores de Eduardo e a voz narrativa. Atenta-se, assim, para a orientação dialógica

da narração voltada para Eduardo, considerando-se que, nestes discursos, observa-

se um choque e dissonância de acentos de vozes (BAKHTIN, 2006a, p. 227).

Nos diálogos interiores, Eduardo chama vozes de outras personagens,

lançando uma mirada para seu interlocutor ausente, mas presente no discurso. Ao

chegar ao Rio de Janeiro à procura de Antonieta, o herói é assediado sexualmente,

ainda no trem, por um homem; e temendo sobre o que pensariam a seu respeito, ele

inicia um processo de repetição das palavras, tendo como objetivo refletir sobre a

palavra do outro:

118

– Estava preocupada, já telefonei para tudo quanto é hotel. E daí? Jamais o encontraria. Nem sequer garantiria a sua vinda, viera sem mais nem menos, de trem... o professor Leitosa. Não, isso não: que diria Antonieta, se soubesse? Sílvio Garcia era possível que risse. Aceita laranjada com gim, e ainda diz que é bom. Traçar essa admiradora ainda hoje – estou fazendo o cafetão. Todos da mesma espécie, tudo se confundindo na mesma sordidez. O tempo passando, outro chope, ele ali sozinho, numa cidade estranha, fazendo o quê? Enfim, a vida tem dessas. Dessas contradições, costumava dizer seu Marciano (SABINO, 2006, p.100-101).

A fala de Antonieta com travessão, a do poeta Silvio Garcia, que acabara

de conhecer (“Aceita laranjada com gim e traçar essa admiradora ainda hoje”), a de

um conhecido, Amorim (“estou fazendo o cafetão”), seria uma pequena amostra do

mundo sórdido do qual Eduardo não tinha certeza de que participava, na sua eterna

contradição. Essa “mirada para o discurso social do outro” (BAKHTIN, 2006a, p.208),

ou seja sobre o que Eduardo está falando no seu discurso, sobre a ideia social

desse outro, sobre o próprio Eduardo. Este discurso determina também a maneira

de pensar e sentir, de ver e compreender a si mesmo e o mundo que o cerca,

levando Eduardo a uma autoconsciência. Para Bakhtin,

a atitude do herói face a si mesmo é inseparável da atitude do outro em relação a ele. A consciência de si mesmo fá-lo sentir-se constantemente no fundo da consciência que o outro tem dele, o “eu para si” no fundo do “eu para o outro”. Por isso o discurso do herói sobre si mesmo se constrói sob a influência do discurso do outro sobre ele (2006a, p. 208).

No romance O encontro marcado, a autoconsciência de Eduardo

Marciano revela-se no interior da consciência socialmente alheia, através do ponto

de vista e da visão social de outras consciências sobre ele. A busca de si mesmo

ecoa como uma polêmica velada que Eduardo trava sobre si mesmo com um outro,

mas é um interlocutor ausente ou estranho:

Que significava o casamento para ela? – pensava então, irritado. A gente casa é para isso mesmo: ter filhos e tocar o barco para a frente. Constituir uma família. Quem não pensar assim que não se case. E ele próprio? Afinal, que fizera de seu casamento senão um campo aberto às acomodações, e a todas as transigências, ludibriando, burlando a vigilância de Deus? – Mas escuta aqui, Eduardo Marciano, você acredita mesmo em Deus? – ele se interrogava ao espelho, fazendo caretas. Ou quem sabe acreditava apenas em certos preceitos, certas regras de conduta que não chegava sequer a praticar, certos ensinamentos recolhidos e conservados como roupas de alguém que já morreu?

119

Basta de interrogações. [...] Não pensar mais nisso, pois. (SABINO, 2006, p.217).

Este microdiálogo é intercalado com voz narrativa, à voz da personagem

e outras vozes na sua consciência. Após tentar se aproximar de sua esposa,

Antonieta, e de ser rejeitado por ela, Eduardo inicia uma série de reflexões acerca

do casamento, enquanto instituição, uma exigência social; observa-se no seu

discurso, “Quem não pensar assim que não se case”, uma alusão aos ensinamentos

do apóstolo Paulo (I Coríntios 7:11); interroga-se ao espelho repetindo a pergunta do

Monsenhor Tavares (“Você acredita em Deus?”), questionamento que o

acompanhará até o final da narrativa, ao qual Eduardo ainda não sabia responder.

Neste outro trecho dialógico com fragmentos de cartas, da

correspondência entre Eduardo, Hugo e Mauro, a voz narrativa limita-se a lhe

distribuir as palavras. Apresenta-se nesta forma epistolar a concepção de Hugo e

Eduardo, que se entrecruzam. Temos um discurso refletido do outro:

Dessa época, uma carta que escreveu a Hugo: “Sei apenas que estou vivo. Nada mais sei. Sinto em mim um sangue que talvez exista para ser derramado e não para correr frouxamente pelas veias. Existem palavras essenciais: amor, infância, pureza, espaço, tempo. Com elas eu escreveria um romance, cem romances. O amor como atitude estética diante da vida, realização da pureza no espaço e da infância no tempo. Tudo mais é literatura”. “Isso também é literatura” – respondeu-lhe Hugo. Para Mauro: “Literatura. Já não escrevo nada. Está tudo esgotado. Ou se faz alguma coisa de verdadeiramente novo, ou é melhor esperar os tempos novos. Alguma coisa nova se anuncia, eu vejo, eu sei, eu juro que alguma coisa nova está para surgir para nós e para o mundo – se eu estiver enganado, então o melhor é mesmo comer, beber e dormir, porque nem morrer será preciso. Estou na expectativa – descrente das fórmulas gastas, esgotadas. Tenho sentido falta de vocês” (SABINO, 2006, p. 163-4).

Para Bakhtin, a carta, como réplica do diálogo, “se destinada a um ser

determinado, leva em conta suas possíveis reações, sua possível resposta” (2006a,

p. 206). Essa consideração do interlocutor ausente, no caso Hugo, é curta, mas

intensa, levando Eduardo a escrever para Mauro e a refletir sobre sua estagnação

ante a escrita do seu romance que não se concretizou.

Eduardo tem consciência do impasse pelo qual se desenvolve a sua

relação com o outro: ao mesmo tempo em que ele quer participar das exigências da

vida, ele sente uma necessidade de fluir espiritualmente. Ele está sempre oscilando

120

entre dois mundos, andando em órbita. Precisa encontrar-se a si mesmo para

encontrar o outro; está em Eduardo, como lhe dissera Hugo, “a chave que abre

todas as portas” (SABINO, 2006, p. 88).

Pela relação com a consciência do outro se mantém uma perpétua

polêmica interior do herói com o outro e consigo mesmo, um diálogo inacabado, no

qual uma resposta suscita outras e vai-se tecendo fios dialógicos. O monólogo a

seguir é introduzido pelo narrador, mas a voz de Eduardo aparece nas

interrogações: “Escolhido por quem? Para quê? Desígnios de Deus?”. A sua voz

está voltada para a voz eclesiástica do padre (“você acredita em Deus?”), a do

experiente mas fracassado escritor Toledo (“O fruto que apanhava ainda verde,

deixava apodrecer na mão”), a voz conservadora do pai (“Você vive muito depressa),

a voz social caricata de Mauro, a voz de Hugo sobre a efemeridade das coisas e,

também, para a própria voz otimista do narrador: “por que não podia parar um

pouco, descansar, não dar mais um passo?” (SABINO, 2006, p. 143):

[...] Você não soube escolher - lhe dissera Toledo: foi escolhido. Escolhido por quem? Para quê? Desígnios de Deus? Lembrava-se do diretor do ginásio, séculos atrás: você acredita em Deus? Já nem sabia em que acreditava, não tinha tempo para pensar. Você vive muito depressa - o pai tinha razão, era isso, depressa demais. Essa ganância de viver. Gostaria de ser um homem sereno, comedido, um escritor como Machado de Assis. Era preciso ir devagar - saber envelhecer. O fruto que apanhava ainda verde, deixava apodrecer na mão. [...] Antonieta sua mulher, dia e noite, enfim conquistada: nada mais a fazer? Sozinho, o tempo passando, ignorava tudo que ficara para trás: Mauro fizera um poema e ele nem sabia, Hugo lhe mandara um telegrama, apenas um telegrama lhe mandara Hugo[...] (SABINO,2006, p.143).

Eduardo toma a palavra em primeira pessoa – “não posso responsabilizar

ninguém pelo destino a que me dei” –, dando sequência ao seu monólogo dialogado:

Sozinho: sozinho no mundo com uma mulher. O que significa isso? Significa que terei de amá-la, zelar por ela, sustentá-la, cumprir os chamados deveres de estado. Pois o que é que estou fazendo aqui, sozinho? Não sou um homem? Um marido, não sou? [...] Não adianta pensar, a mão de Deus é pesada mas me protege a cabeça, tudo que faço nasce feito, sozinho, não adianta chorar, meu Deus, nem tenho motivos para isso, muito pelo contrário, é preciso reagir, a literatura não adianta, e os livros na estante e o cinzeiro cheio de cinza e a luz da cozinha acesa, poderia fazer um café, Antonieta dormindo e o botão do pijama, meu Deus, livrai-me do pijama, quero ser reto, quero ser puro, quero servir, pois vai trabalhar, moço, deixa de vaidade, tu és muito pretensioso, uma missão a cumprir, ora vejam, perdulário que tu és, a vida é breve, não incomoda os que

121

trabalham, os trabalhos do homem são penosos, estou casado, estou cansado, estou abatido, em verdade estou destroçado, andei depressa demais, agora chega, basta, pára, pronto! Acabou (SABINO, 2006, p.144).

Eduardo utiliza um “discurso com evasiva” que, segundo Bakhtin, é o

recurso usado pelo herói para reservar-se a possibilidade de mudar o sentido último

e definitivo do seu discurso” (2006a, p. 236). Eduardo trava no seu interior uma

polêmica velada com o outro. Há uma tensa relação com a consciência do outro,

como também um tensa relação dialógica consigo mesmo. Ao fazer indagações,

Eduardo mergulha no seu mundo interior, registrando as divagações a respeito de si

mesmo e das pessoas ao seu redor. Mas qual a atitude de Eduardo face a si

mesmo, ao seu diálogo interior consigo mesmo? Eduardo não se liberta do poder

que a consciência do outro exerce sobre ele, ainda não reconhece esse poder, mas

luta contra ele, e nesse mundo submerso em que se encontra, o seu diálogo interior

se entrelaça e se combina com o outro. Desta forma, ele vai adquirindo consciência

de sua realidade, registrando suas emoções e ideologias diante do mundo que lhe é

apresentado.

Esse monólogo interior, que se realiza após o casamento com Antonieta,

soa como uma confissão, como representação de um acontecimento que se

desenrola no limiar da autoconsciência de Eduardo. A intriga do romance O encontro

marcado se fundamenta na tentativa de Eduardo de encontrar-se com o outro, e

nesta procura ele encontra a si mesmo. A voz de Eduardo se funde com a voz do

narrador, como se a narração estivesse dialogicamente voltada para o próprio

Eduardo, soando aos seus ouvidos como uma voz que leva adiante suas palavras e

ideias. No final desse monólogo, aos ouvidos de Eduardo, soa a voz otimista do

narrador:

De tudo ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro (SABINO, 2006, p.145).

Observamos, ainda, um diálogo interior com interrogações, no qual

aparentemente se encontra fincada a réplica do outro. Esta réplica inexiste, contudo

deixa marcas sobre o discurso de Eduardo, pois sua auto-enunciação parece está

dominada por uma tensa atitude face à palavra antecipável do outro sobre ele, ou

122

seja, face à reação do outro, ausente, diante do discurso confessional de Eduardo.

Segundo Bakhtin, “na auto-enunciação confessional, não só o tom, o estilo, mas

também a estrutura semântica interna dessas enunciações é determinada pela

antecipação da palavra do outro” (2006a, p. 206). Neste microdiálogo apresenta-se

um caráter polêmico da consciência de Eduardo e da afirmação de si mesmo;

quando Eduardo leu no jornal que sua marca anterior de campeão de natação havia

sido superada, e que seu amigo Rodrigo havia morrido afogado, sentiu o desejo de ir

à praia nadar e superar seus próprios limites. Ao entardecer, observou um banhista

abandonando a toalha na areia e se distanciando em alto mar. Eduardo saiu sem

olhar para trás:

Se ele se afogar, não tenho culpa – pensava Eduardo, aliviado. Afinal de contas não sou palmatória do mundo, sou? Rodrigo era um grande nadador e morreu afogado. Térsio nunca mais escreveu um poema e se diz poeta. Acaso serei insensível como um poste, reto, duro, seco e inexpugnável? Também não sou feito de carne e osso, para sofrer ou gozar, acertar ou errar? Também não sou frágil? Também? Quer dizer que eu tendo uma força, isto é, tendo sido por exemplo campeão de natação, tenho de salvar o afogado ou morrer com ele. [...] tenho de alterar o mundo para que ele passe a funcionar segundo a minha maneira de ser – por que não alterar a minha maneira de ser? (SABINO, 2006, p. 212).

A personagem Eduardo, por não coincidir consigo mesmo, utiliza o seu

excedente de visão do outro para falar de sua imagem, mas na negativa. Passando

o discurso para a afirmativa teríamos: sou a palmatória do mundo; um grande

nadador que morre afogado; nunca escrevi um romance, mas sou romancista; sou

insensível, reto, duro, seco e inexpugnável; sou de carne e osso, sofro, gozo, acerto

e erro; sou frágil, mas possuo uma força para salvar ou morrer. Na sua eterna

contradição, Eduardo acredita numa coisa, mas faz outra, poderíamos encerrar de

forma lacônica o seu diálogo interior – não tenho de alterar o mundo, mas a minha

maneira de ser. Esta mudança de perspectiva nos leva aos fenômenos examinados

por Bakhtin, nas obras dostoievskianas, ao considerar que na autoconsciência do

herói penetra a consciência que o outro tem dele, na auto-enunciação está lançada

a palavra do outro sobre o herói, assim a consciência do outro e a palavra do outro

suscitam fenômenos específicos, como as cisões, evasivas e protestos do herói, que

determinam a evolução temática da consciência de si mesma (BAKHTIN, 2006a, p.

210).

123

Neste outro diálogo, a reticência separa o discurso interior direto de

Eduardo, construído na primeira pessoa (“O que me impede de morrer”?), da voz

narrativa introdutória do monólogo. Mas a narração e o discurso de Eduardo, por

vezes, se fundem estruturalmente. Pode-se dizer que as palavras de Eduardo

seguem a voz narrativa, quando o herói inicia a narração de um dos episódios de

suas aventuras; em contrapartida, esta voz é a continuação imediata da voz de

Eduardo e está dialogicamente voltada para o herói:

Um bonde, dois automóveis. Conversa de notívagos na esquina, o vigia da construção. Um choro e criança, miado de gato, tosse de homem, são ruídos esparsos, débeis sinais de vida que não iludirão a morte, nessa hora em que todos se esquecem e dormem. Uma noite semelhante, no Hotel Elite.... O que me impede de morrer? Um dia fui dizer uma coisa no bar e percebi que não tinha nada a dizer. Não soube escolher, fui escolhido. Pois agora agüenta a mão, rapaz! Não vai chorar mais não, que não adianta. A princípio chorava tanto que se acostumara a encarar o pranto com certo bom humor: muito bem, está chegando a hora, daqui a pouco começa a choradeira. Ou então: isto é bom, principalmente antes do jantar – é duro sofrer assim, mas abre o apetite. Encarava-se ao espelho com simpatia, quando o sofrimento fazia escorrer lágrimas de seus olhos: ”Então, garotão, como vão as coisas? Tem cabimento um homem chorando dessa maneira? Não liga não, é assim mesmo, mais tarde passa...” (SABINO, 2006, p. 245).

O monólogo dialogado, cujo trecho citamos, ocorre no momento em que

Eduardo, sozinho em seu apartamento, após retornar de Belo Horizonte, volta o seu

olhar para a rua e debruçado à janela observa os ruídos da noite, vozes que para ele

nada significam, mas que penetram em sua consciência e o fazem lembrar-se de

momentos que ele deseja silenciar. A voz narrativa volta-se para Eduardo, na

tentativa de confortá-lo, diante do seu sofrimento (“Pois agora agüenta a mão, rapaz!

Não vai chorar mais não, que não adianta”). Conforme Bakhtin (2006a), a orientação

dialógica da narração deve está voltada para o herói e nasce da réplica do interior

do herói consigo mesmo. A fronteira entre a voz narrativa e a voz de Eduardo, neste

monólogo, é mais perceptível; na narração ecoa a própria palavra de Eduardo

separada por aspas (“Então, garotão, como vão as coisas?...”); o enunciado está em

terceira pessoa, embora pertença ao próprio Eduardo, que olha para si com o olhar

do outro, numa voz interiormente inacabada.

Quando a narração interfere, enquanto voz do outro, nos diálogos

interiores do herói, suas palavras são diretas e abertamente co-participantes desse

diálogo. Nessa situação, as palavras, segundo Bakhtin, são construídas pelo autor

124

“de modo a que elas possam ser assimiladas pela consciência e pela voz do próprio

herói, fazendo unidade dissonante com o seu discurso” (2006a, p. 255).

Neste outro diálogo interior de Eduardo, há uma simulação de

independência e de tranquilidade, o que Bakhtin chama de “diálogo tranquilizador”

(BAHKTIN, 2006a, p. 213). Essa simulação também leva Eduardo à repetição,

ressalvas, mas esses elementos não estão voltados para o exterior, para o outro,

mas para si mesmo, ou seja, Eduardo convence, anima e acalma a si mesmo,

representando o outro em relação a si mesmo. Contudo, ao lado da simulação de

indiferença, desenvolve-se outra linha de relação com o discurso do outro, o desejo

de não pensar no que estava acontecendo, mas a lembrança de Antonieta (“Se eu

tivesse de gostar de alguém”), e Gerlane (“Tenho mais o que fazer, Eduardo”)

vinham à sua mente impulsionando-o a querer viver o momento presente, esquecer

o divórcio e também a sua vida fragmentada, como o é a própria estrutura desse

monólogo:

[...] O que era preciso é que não se sentimentalizasse, ora diabo, não começasse a se sentir um pária, repelido por todo mundo, não era isso mesmo? Um miserável, ora tinha graça, um pobre coitado sem ninguém – e já falando em voz alta palavra soltas, enquanto arrumava a mala em passinhos lépidos entre o armário e a cama: – Meias. Camisas. Cuecas? É isso mesmo. Não analisa não. Põe isso aqui... isso aqui... e isso aqui. O que mais? Se eu tivesse de gostar de alguém... Dane-se! Toca para frente: dois lenços. Tenho mais o que fazer, Eduardo. Está bem, está bem, sua vaca. Só porque eu não quis... Uma gravata, duas, mais umazinha só... E pronto, acabou-se. Não quis o quê? Ah, Gerlane. Não se deixa abater. Algum livro? Tércio tinha razão: mulher, quando começa assim... Não, que livro nada! Nem passado e nem futuro, a vida presente, minha enfim, liberta, sem limitações. E chega! Descansar um pouco, ainda é cedo (SABINO, 2006, p.236).

A relação de reciprocidade entre Eduardo e a consciência do outro difere

nesse outro monólogo. O diálogo consigo mesmo permite substituir, com sua própria

voz, a voz de outra pessoa. Aparece aqui a função propriamente dita do diálogo

consigo mesmo – substituir a segunda voz. Eduardo trata a si mesmo como a outra

pessoa. Acalma e anima a si mesmo com o tom de um homem mais velho e seguro,

um ser que chegou à consciência de si, de sua dualidade. Neste monólogo, surgem

duas vozes, a primeira voz de Eduardo, insegura, tímida, e a segunda tranquila e

auto-suficiente. Segundo Bakhtin, “o diálogo não pode transformar-se num monólogo

integral e seguro” (2006a, p. 215). Assim, a segunda voz difere da primeira e se

125

sente independente; nela ecoa tons provocantes, em vez de tons tranquilizadores. A

segunda voz de Eduardo substitui o seu reconhecimento pelo outro, o que lhe falta.

Eduardo deseja levar a vida sem esse reconhecimento, porém esse “consigo

mesmo” assume a expressão “nós tínhamos um encontro”, proferida no final do

romance, encontro marcado consigo mesmo para reconhecer o outro, ou seja, o

consigo mesmo assume a forma plural e dialógica:

E pôs-se a conversar consigo mesmo, mãos nos bolsos, cadenciando os passos: – Antes de mais nada: para onde você vai agora? – Você não pode estar tão bêbado assim. – O que pretende fazer? – Você, personagem de romance. – Então era o caso de telefonar para o romancista e perguntar: e agora, o que é que eu faço? – Pela última vez: você acredita em Deus? Deteve-se no meio da rua, pernas abertas, olhos fixos no ar: – Acredito – respondeu com firmeza, e prosseguiu a caminhada. – Cuidado com o automóvel. Com que você conta? – Eu me conheço, mas é só. – Quem você está pensando que é? Scott Fitzgerald? Ele tem um romance que termina assim. – Ele termina onde eu começo. – É pouco. – Conto com minha experiência. Não sou inocente. – Experiência... E o mundo ao seu redor? Olhe só quanta injustiça, quanta miséria, tanta gente sofrendo. – Demagogia (SABINO, 2006, p.279).

A segunda voz de Eduardo, a voz que se integra a esse discurso do outro

com a pergunta: “Você acredita em Deus?”, soa constantemente e está em relação

recíproca marcante com o discurso de Eduardo, dando o mote para a intriga e

construindo o romance O encontro marcado, com base no embate entre os valores

humanos e a fé cristã, embate cujo ponto alto se encontra na continuidade do trecho

supracitado:

– Seu católico de merda. Sorriu e apressou o passo. – Você é muito inteligente, mas vai preso assim mesmo. Dobrou a esquina, relanceou os olhos em torno, pôs-se a recitar: – Creio em Deus Padre, todo – poderoso, criador do céu e da terra, em Jesus Cristo, um só seu filho... Não sabia terminar. Inundado de alegria, começou a dançar no meio da rua: – Acabou, acabou, acabou. Depois se deteve, dedo em riste:

126

– Dizer o indizível? O silêncio é a linguagem de Deus. A linguagem do homem é difícil, retorcida, suja, atormentada. Tudo que se escreve é apenas uma paródia do que já está escrito e ninguém é capaz de escrever. Tudo que se vê é apenas uma projeção do que não se vê, sua verdadeira natureza é substância. Basta olhar para as minhas mãos para sentir que elas ocupam o lugar das mãos de Deus... (id., ibid. 280)

Tais relações discursivas são referidas pelo poeta Carlos Drummond de

Andrade em o Encontro (1986)41, poema segundo o qual o romance de Sabino

apresenta uma luta entre o humano e o divino:

No encontro malogrado Entre a vida e Marciano (destrói o vento a haste sem que à flor cause dano) Deus murmura de lado Entre divino e humano: – Comigo é que o marcaste.

A ideia que perpassa o romance de Sabino é a do homem como ser

imerso na angústia que gera a necessidade de escolha, como ser lançado ao mundo

sem um núcleo essencial pré-elaborado, o homem como ser que abre seu próprio

caminho a partir das escolhas que realiza. Neste caso, de uma escolha como a

necessidade de pré-determinar o lugar de Deus (ou o seu não lugar, no caso de uma

afirmação de um Cosmo como fruto do acaso) como requisito para uma ação

afirmativa no mundo.

Com relação ao romance, podemos afirmar que todas as circunstâncias e

acontecimentos nele são representados para impulsionar as vozes interiores,

atualizando e aprofundando o conflito interior de Eduardo Marciano, que se encontra

tomando consciência de si e do outro. A intriga se desenvolve nos limites da

autoconsciência do protagonista Eduardo Marciano. Os episódios revelam o desejo

de Eduardo de passar sem a consciência do outro, sem ser reconhecido pelo outro,

ou seja, ele desejava evitar o outro e afirmar a si mesmo.

Nesses microdiálogos, há uma intensa dialogação interior. Ele se dirige a

si mesmo, tratando-se frequentemente por tu/você, como se falasse com outro, e

tenta persuadir a si mesmo, ao perceber que a vida, para ele, se resume a dois

41

Este poema, encontra-se nas edições comemorativas de 30 e 50 anos de publicação da obra O encontro marcado, sem indicação de página. Optou-se pela referência à edição de 30, por conter o título do poema.

127

polos: materialismo e fé cristã. Eduardo se tortura e se interroga, o seu diálogo

interior está repleto da palavra de outros, numa relação de intensa polêmica. Com

isto, ocorre uma interiorização de múltiplas vozes em Eduardo, como se a sua

consciência estivesse sendo construída com um mosaico de vozes.

Cada personagem que aparece em seu campo de visão surge em seu

monólogo interior como uma voz-ideia pertubando-o, confrontando-se umas com as

outras. Desde o inicio, a voz conservadora entra no campo de visão de Eduardo,

incorporando-se ao seu diálogo interior. Eduardo trava uma luta ideológica, mas

acaba por ocultar de si mesmo aquilo que sabe e está diante dos seus olhos. O

herói sente que precisa encontrar sua voz, combiná-la ou contrapô-la a outras vozes.

Desta forma, os fenômenos examinados, produzidos na consciência e no discurso

da personagem Eduardo Marciano pela palavra do outro, em O encontro marcado,

são apresentados numa visão do discurso de um sujeito dual.

3.3 A dualidade do sujeito na narrativa

O romance O encontro marcado apresenta alguns elementos que

permitem inseri-lo dentro da concepção polifônica descrita por Bakhtin, entre eles

está a autoconsciência do herói Eduardo Marciano e a representação do sujeito em

sua dualidade: o herói Eduardo é marcado pela dúvida, sempre numa dualidade em

que se acentua uma visão de mundo dividida entre dois polos: materialismo x fé.

Eduardo já resolvera o seu problema, exatamente como no sistema terrorista: o problema existia, não existia era a solução. Haveria de arrastar, vida afora, o seu dilema, oscilando entre “as exigências da vida e sua ânsia de pureza” – como dizia num verso (SABINO, 2006, p. 69).

A personagem Eduardo não admite ser definido socialmente, angustia-se

ante as exigências sociais e o seu ascetismo. Indefinido socialmente, ele procura os

deveres da vida como uma defesa. Eduardo tem sede de vitória e de criação, quer

ser o primeiro em tudo; ser romancista é uma de suas ambições que não chega a

concretizar-se, mas torna-se escritor de um jornal, no qual escreve sobre técnicas do

romance. A sua trajetória é permeada por estas duas visões de mundo, com as

quais ele convive como um sujeito inacabado.

128

A imagem de Eduardo é construída em torno da dualidade que envolve

valores materiais e sua ânsia de pureza. Procurando a afirmação de sua voz,

considera-se sujo, impuro, e é empurrado por uma força que o leva a várias

contradições. Ao mesmo tempo em que não se considera burguês e se irrita com

esta definição, suas atitudes o levam a isso: casa-se com a filha de um ministro e

aceita um emprego na prefeitura, arranjado pelo sogro. O herói discute com essas

vozes – materialismo e a fé cristã – que, cindidas na voz de Eduardo, criam em seu

discurso uma dissonância e uma dualidade interior. Assim, toda a vida de Eduardo

se resume a procura de si mesmo e da sua voz não-cindida por essas duas

perspectivas que nele se inserem.

Sobre essa dualidade de Eduardo funda-se toda a sua imagem, que lhe

determina as ideias. Ao discurso sobre si mesmo, se entrelaça o discurso ideológico

que está voltado para um maniqueísmo, no qual o mundo está dividido entre o bem

e o mal. Sua visão de mundo se desenvolve nas formas do diálogo, seja através de

monólogos interiores dialogizados, ou na forma de diálogo composicionais, nos

quais vozes se fazem ouvir com uma força extraordinária.

Os heróis dostoievskianos e, por extensão polifônicos, na concepção de

Bakhtin, são oniscientes e “se limitam a fazer sua opção dentro de uma matéria

plenamente significativa” (2006a, p. 252), ou seja, toda a realidade semântica é

levada à consciência do herói na forma de vozes. Contudo, segundo o crítico, esses

heróis “ocultam de si mesmos aquilo que em realidade já sabem e veem” (id., ibid.).

Ao ocultar de si mesmo a realidade que o cerca, Eduardo escolhe como centro dos

seus diálogos apenas aquilo que lhe é significativo. Esta ocorrência se manifesta

nas “ideias duplas” que caracterizam os heróis polifônicos; enquanto uma ideia é

evidente a outra se manifesta de forma velada, mas determina a construção do

discurso, lançando sobre ela a sua sombra.

Transpondo estas considerações para o romance O encontro marcado,

observamos que essas ideias duplas se manifestam em duas visões de mundo, dois

polos nos quais Eduardo se encontra sempre no limiar. Estes polos marcam o

processo de formação da autoconsciência de Eduardo, a estrutura da narrativa

reúne dois elementos de antítese: um Eduardo voltado para os valores materiais e

outro para o ascetismo. Estes contrários se encontram no discurso e nas atitudes da

personagem, se olham mutuamente, refletem-se um no outro. Sobre esta questão,

Bakhtin enfatiza que uma pessoa não pode passar sem outra consciência, o homem

129

nunca encontrará sua plenitude em si mesmo. Os opostos vivem em plena fronteira,

olham-se e se compreendem (2006a, p. 180).

O discurso com evasiva torna o herói polifônico ambíguo, pois a evasiva

deforma sua atitude em face de si mesmo. Ele não sabe que missão tem a cumprir,

fala de uma vocação, mas qual? Ser escritor? Construir um mundo com

conhecimentos e entregar-se a ele, para conscientizar a sociedade das suas

próprias mazelas, adaptando-se às hipocrisias de uma sociedade sem rumo? Não,

Eduardo nunca se adaptará, e o narrador expõe isto com muita clareza:

O que pretendia? Espere, era preciso crescer primeiro, voltar ao tamanho normal, à sua condição de homem, para saber responder a essa pergunta: pretendia, era lógico, viver de acordo com suas convicções. Mas era tão difícil, a vida tendia ela própria a afrouxar as mais empenhadas decisões do espírito, num permanente convite às acomodações. Vamos com calma: e quais eram mesmo as suas convicções? Errar não tinha importância, desde que não pactuasse com o erro, endossando-o, justificando-o. Não, ele não justificava nada. Errar todo mundo erra – em determinadas circunstâncias todo mundo erra, é natural, é compreensível. O que se dizia ser a parte frágil, o lado humano. E o outro lado? Isso é que os outros não viam, o outro lado. Ser humano, isto é, errar e aceitar, era o que chamavam experiência, ganhar experiência. Então só faltava erigir dessa oscilação entre o bem e o mal uma nova moral feita ao sabor do acaso, instável como a própria vida, uma ética de ocasião para justificar o erro – não, isso ele não faria. Daí sua conduta, aberta numa dualidade irremediável: de um lado o que ele queria ser e de outro o que realmente ele era (SABINO, 2006, p.206-7).

Eduardo, para afirmar-se, deve percorrer um longo caminho, uma longa

procura – e dessa procura ninguém sai indiferente, fica-se marcado para sempre.

A luta ideológica travada por Eduardo é uma luta pela escolha de meios de

significação, ele quer ser um escritor reconhecido, casar e constituir família. O

processo de formação da consciência ocorre sob um diálogo dual. Eduardo busca

uma solução para o problema: Quem sou eu? E percorre um longo caminho para

encontrá-la e perceber a principio sua vontade de ser escritor e ser bem sucedido

financeiramente, ser o primeiro em tudo, ser reconhecido como tal e, posteriormente,

suas atitudes de protesto contra o regime ditatorial, seu desejo de fluir

espiritualmente são fatos que impregnam o seu discurso e, ao mesmo tempo, estão

em ligação ideológica diante do mundo. Ou seja, a formação da autoconsciência de

Eduardo, representada no romance O encontro marcado, é um processo de

130

reconhecimento para si e para os outros, de algo que, no interior, ele já sabe e que

permanecerá em sua dualidade.

As vozes conservadoras do Monsenhor Tavares e do frei Domingos vão,

interiormente, persuadindo a voz de Eduardo. Vozes estas que Eduardo ao mesmo

tempo em que as oculta de si mesmo, trava com elas uma polêmica aberta ao

diálogo, posto que, mesmo quando ele diz que acredita em Deus, o faz

dialogicamente, em sua voz ou na voz de seus desdobramentos, exatamente porque

não deseja perceber este mundo oposto. O fato de acreditar ou não em Deus não é

a grande questão para o protagonista, mas a prática e a convivência com a fé cristã,

como se observa, mais uma vez, neste diálogo com frei Domingos, no qual Eduardo

mostra-se confuso em relação ao pecado ou ao erro:

– Não sei... Eu não posso continuar vivendo assim, um dia terei de escolher: aceitar tudo, ou fechar os olhos e me precipitar de cabeça no desconhecido... – Aceitar o quê? O pecado? – Não sei... Prefiro dizer o erro. O que me desagrada nessa história de pecado é o aspecto de imposição, de ordem, porque a sociedade exige... – Não é nada disso: é outra espécie de ordem...É preciso não pecar, mas docemente, suavemente, não por imposição: por amor. Se for preciso, contra a sociedade. Por que você não vem passar uns dias aqui conosco, para conversarmos mais longamente? Temos um quarto de hóspede.... (SABINO, 2006, p.267).

Segundo Bakhtin, as vozes que se fundem, mesmo nos limites de uma

consciência, “não podem ser um ato monológico, mas pressupõem a incorporação

da voz do herói a um coro” (2006a, p. 254). Assim, no plano do romance O encontro

marcado se desenvolve uma polifonia de vozes em luta e interiormente cindidas. A

voz de Eduardo cindiu-se entre uma voz ascética e outra materialista. A combinação

dissonante dessas duas vozes penetra em seus discursos, tornando-se a voz de

Eduardo numa voz dual. Uma voz o reconhece puro, austero e a outra o absolve

para a realização natural de sua vida:

Os homens – não era difícil amá-los – a todos, indistintamente – olhando ao seu redor e se deixando viver. Ele duro, ele cheio de arestas, defendido, cortante, hostil, se enojara de viver porque viver era fácil. Era só ainda ser e já ter sido. Pois bem – e agora?. Agora via em volta que seu mundo era dos outros também, carregando cada qual a sua cruz – pobres criaturas de Deus. [...] – “Não és bom nem és mau: és triste e humano” De quem é isso? Perguntou frei Domingos. – De Bilac.

131

– Pois não parece – disse o monge (SABINO, 2006, p. 261).

Eduardo perceberá que é a sua própria consciência que o persegue e o

leva a certa ambiguidade nas relações e que a dualidade presente no seu interior é

desdobramento dele mesmo, um ser plural. Na sua imagem, o que prevalece é o seu

caráter de criatura dual, agindo como se não soubesse o que queria, sempre

oscilando em suas decisões.

É interessante observarmos homologias entre este caráter dual do

protagonista e a estrutura do romance O encontro marcado que está dividido em

duas partes: A procura e O encontro. Verifica-se nesta divisão a própria dualidade de

Eduardo. Na primeira parte, Eduardo passa de menino a um jovem literato que tem

no pai não apenas o seu apoio, mas uma voz chamando às suas origens

provincianas. Além do pai, Eduardo convivia com seus amigos, que também eram

fascinados pela literatura e cheios de ideias: Mauro, expressão paródica da voz dos

oprimidos, e Hugo, encarnação do discurso metafísico sobre a inconsistência das

coisas do mundo. Ambos são personagens que existem, não apenas, para fazer

existir Eduardo, como uma espécie de desdobramentos ou duplos, de tal forma que

o que é dito por um, os outros poderiam dizer, no entanto possui cada um a sua

própria voz que se cinde em vozes de Eduardo.

Todas as personagens, como é comum no romance polifônico, exceto os

protagonistas, estão à margem de qualquer participação real na intriga que se

desenvolve completamente nos limites da autoconsciência dos heróis. Conforme

Bakhtin, elas “oferecem apenas a matéria bruta, como se lançassem o combustível

necessário ao intenso trabalho dessa autoconsciência” (2006a, p. 216).

Contrapondo a primeira e a segunda parte do romance, observa-se que

na primeira, de cunho mais social, o herói permanece num jogo dialético que tem

como suporte o enfrentamento das ideologias, no qual a voz dos oprimidos é a voz

geral que permeia o discurso de Eduardo e de seus amigos. A segunda parte

constitui o drama de um individuo dentro da sociedade; temos um herói que enfrenta

o mundo com suas angústias e dúvidas acerca do seu modo de viver. Estruturado

desta forma, perfazendo um autêntico movimento dialógico, mostra-se a

personagem Eduardo como um herói polifônico, que enfrenta o mundo com suas

angústias e críticas diante do caos em sua vida e no mundo em que está vivendo.

132

Como observamos, no decorrer da segunda parte, Eduardo, morando no

Rio de Janeiro, vivencia suas memórias e lembranças da época em que morava em

Belo Horizonte, neste novo contexto, surgem novos amigos com os quais o herói

não se assemelha. Pontes (1960), ressalta que “na segunda parte, acima do aspecto

documentário social, nota-se o drama de um tipo autêntico rodeado de fantoches-

drama não menos documentário, porém de caráter íntimo” (p. 151). As ações de

Eduardo nas diversas circunstâncias são expostas em seus diálogos interiores ou

nos diálogos com Germano, uma voz paradoxal e cristianizada; frei Domingos, voz

eclesiástica; além do diálogo com um homem misterioso com ares de literato ou

autor-criador, personagens que surgem por força do diálogo impresso pela própria

estrutura do romance.

Pelo modo de ação do romance, que está centrado na dualidade do

sujeito, Eduardo acaba por tornar-se um herói inacabado, pois ao mesmo tempo em

que ele é capaz de adentrar nas múltiplas situações do seu mundo e do mundo do

outro, e em cada uma das situações ir tomando consciência de sua realidade, ele

não consegue sintetizar as diversas vozes que lhe atravessam numa cosmovisão

minimamente clara e estável, “eis afinal o que Toledo lhe quisera dizer e não

conseguira. Numa idade em que os outros mal começam a existir, sem perceber

atingia vorazmente a parte mais definitiva de si mesmo” (SABINO, 2006, p. 283), ao

encontrar-se com o outro.

Dentre os episódios dessa segunda parte, temos o reencontro de

Eduardo com seus amigos, a separação da esposa, o filho abortado. O herói resolve

se despojar de tudo: dos amigos e bens materiais e aceita o convite de frei

Domingos para passar uns dias no convento. No entanto, conforme analisamos, esta

solução não nos parece definitiva. Esta observação pode ser, ainda, endossada pelo

pensamento do crítico Linhares (1978):

Ninguém dirá, creio, que Eduardo Marciano, o herói principal, venha a ser uma personagem definitiva. Conquanto nele se concentre o maior esforço do autor, nem assim seria lícito tachar a sua criação de completa, a ponto de não precisar o criador fazer outra coisa senão segui-lo, nada mais que segui-lo e surpreendê-lo em seus movimentos interiores, em suas ações e sentimentos. (p.37)

Conforme Faraco, o “herói polifônico é um ser relativamente livre e

autônomo que vê seu mundo, e tem consciência de si mesmo nesse mundo, ou seja,

um certo excedente de visão que lhe vem pela interação tensa com o olhar dos

133

outros sobre ele” (2008, p. 47). O autor-criador, por vezes, representa Eduardo de

um ponto exterior de observação, dando-lhe certo perfil sócio-caracteriológico,

através da própria narração, ou da voz de outras personagens, mas principalmente

faz o próprio herói construir sua imagem a partir do seu próprio campo de visão,

fazendo refletir-se em sua autoconsciência como um ser dual.

Ressaltamos, ainda, que em O encontro marcado, Eduardo encarna a

visão de mundo do jovem escritor, desarraigado e sem perspectiva, um intelectual,

que para criticar a ditadura, faz-se boêmio como protesto às imposições sociais,

enquanto os que seriam a voz da autoridade – representada pelos pais, delegado,

ministro e o padre – são a representação da voz da sociedade. O mundo de

Eduardo é construído a partir de referências constituídas nas interações com duas

esferas discursivas: a literatura e a religião. Assim, a consciência de Eduardo vai

apresentar um núcleo de sua formação social, de sua ideologia, o que seria

resultado das interações sociais com o “outro”, interações estas que se confrontam

ante a autoconsciência do herói.

A obra O encontro marcado revela a procura e o encontro de um ser

consigo mesmo e, em consequência, com o outro. O protagonista, Eduardo

Marciano, a cada momento, parece repetir com Bakhtin (2003):

na categoria do eu, minha imagem externa não pode ser vivenciada como um valor que me engloba e me acaba, ela só pode ser assim vivenciada na categoria do outro, e eu preciso me colocar a mim mesmo sob essa categoria para me ver como elemento de um mundo exterior plástico - pictural e único (p. 33).

Ainda segundo Bakhtin (2006a, p. 257), “esse outro tem caráter um tanto

abstrato: é o outro como tal”. Ao definir o esquema básico do diálogo em Dostoiévski

como sendo a contraposição do homem enquanto contraposição do “eu” ao “outro”,

o teórico russo nos fornece a categoria do “outro”, em que o herói reduz todas as

pessoas a um denominador comum: o outro. A personagem Eduardo também reduz

todas as pessoas ao “outro”; para o herói, o mundo se situa em dois espaços, um

ocupado por ele mesmo e o outro espaço, onde estão todos os “outros”. Cada

pessoa existindo como um “outro”, era o que Eduardo pensava sobre si na juventude

e continua pensando até a sua maturidade. Nessa categoria Eduardo coloca os pais,

os amigos, a esposa e Deus, com os quais polemiza e reage diante deles como

diante de “outros” para si.

134

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta leitura analítico-interpretativa possibilitou a análise dos principais

aspectos que norteiam a narrativa O encontro marcado, no que se refere à

manifestação dos processos de dialogismo e polifonia, entendidos, aqui, como arena

de luta com a palavra do outro nas esferas da vida cotidiana e da criação ideológica.

Constatamos que tais processos são encontrados no romance de Sabino de forma

plurilinguística, uma vez que a inserção de discursos de diferentes esferas sociais é

responsável não apenas pelo enriquecimento da linguagem, mas também pela visão

plural de mundo expressa em O encontro marcado. A postura consciente e crítica de

Sabino evidencia uma autoconsciência narrativa tecida por uma narrativa dialógica e

polifônica, na qual apreendemos as vozes sociais tradição - renovação, materialismo

- fé, que se fazem auscultar plenas de significado. Assim, o autor ou organizador de

um “grande diálogo”, através de fenômenos plurilíngues (jogo intertextual),

plurivocais (jogo polifônico) e pluriestilísticos (jogo com vários estilos), constitui uma

narrativa perpassada por enunciados híbridos, paródicos, estilizados, citados em

estilo direto e indireto livre, polêmicos velados, monólogos dialogizados, recursos

estilísticos que mantêm estreitos laços com a utilização do discurso de outrem, em

relações de conflitos ou concordância.

A concepção bakhtiniana a respeito do dialogismo, fio condutor do

primeiro capítulo, sob a face de diálogo entre textos, e por extensão do segundo

capítulo, por uma perspectiva polifônica, sob a face de confrontos discursivos entre

autor e personagem, e entre as próprias personagens, serviu de alicerce para a

análise do discurso do romance O encontro marcado, que culmina em um dos

elementos essenciais desta narrativa, a autoconsciência do herói. Com esta

abordagem, apreendemos que a formação da autoconsciência da personagem se

concretiza pela interação com outras consciências, com a palavra do outro.

Ressaltamos o tratamento dispensado, pelo autor, à linguagem da narrativa

analisada, uma vez que o jogo intertextual e polifônico inserem, na narrativa

sabiniana, diferentes vozes sociais, que carregam consigo seus discursos

plenivalentes permeados de uma cronotopicidade de natureza dialógica. Ao

analisarmos a atuação das vozes sociais na vivência da dinâmica tempo-espaço,

verificamos que a ação situada no tempo e no espaço também ressalta o aspecto

135

dialógico e polifônico do romance de Sabino, enquanto narrativa literária que se

mantém sobre as vozes sociais, em constante interação com o tempo passado-

presente e com espaços nos quais os diálogos entre o autor, as personagens e seus

duplos estão sempre na fronteira do limiar.

Constatamos, ainda, que o excedente de visão das personagens no

romance de Sabino aponta para o mesmo objetivo: olhar a necessidade que o

sujeito tem do outro, o que pode levar, também, a um estudo mais específico e

intenso sobre alteridade. A narrativa de Sabino, baseada em forte viés polifônico,

rompe o que seria a naturalidade deste encontro, coloca em perspectivas a vida das

personagens Eduardo, Mauro e Hugo, que lutam, de ângulos diferentes, pela

mesma ideia: a libertação de tudo o que, sendo imposto ao homem, seja na religião,

literatura ou política, os faziam prisioneiros de uma sociedade burguesa. Sabino dá

um tratamento dialógico às personagens, daí O encontro marcado ser um “grande

dialogo”, um grande encontro com consciências múltiplas. O indivíduo uno é aqui

desfeito num contexto dialógico e múltiplo, ou seja, na própria estrutura plural criada

por Sabino, na qual cada ideia se torna de fato um ser vivo e é inseparável da voz

humana materializada. Através da análise da narrativa de Sabino, verificamos que,

na perspectiva bakhtiniana, o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas em vista

do outro.

Desta forma, o herói romanesco, por possuir um caráter polifônico, reflete

uma imagem conflituosa como decorrência do próprio aspecto plural do romance

polifônico que se circunscreve na narrativa de Sabino. Verificamos, também, que os

recursos utilizados por Sabino proporcionam o enriquecimento da forma e do

conteúdo, uma vez que nos revela as possíveis visões de mundo das personagens,

revestidas por esferas da vida social, posto que as visões assumem múltiplas faces

através do olhar do discurso religioso, literário e político-filosófico, já que a

linguagem não pode ser separada de uma visão ideológica. Assim, através do

pensamento bakhtiniano, apontamos aspectos dialógicos e polifônicos como uma

das leituras possíveis do romance O encontro marcado. Caso Sabino ainda

estivesse em atividade literária, provavelmente nós o estaríamos contrariando, assim

como Flora Bender (1981), com o uso dos “ismos” e suas variantes, que por vezes

fluíram nesta análise; contudo, assim como Bakhtin, Sabino atingiu uma visão plural,

não apenas comprometida com os conflitos e debates de sua época, mas para além

do seu tempo.

136

Ressaltamos, ainda, que Fernando Sabino e M. Bakhtin – e por extensão

Dostoiévski – parecem ter algo em comum, o que nos levou a abordar uma obra tão

singular, como O encontro marcado, à luz da teoria bakhtiniana – a sensibilidade

para olhar o outro e perceber-se polifônico, como quer Bakhtin. Sobre a personagem

central, vale ressaltar outra constatação: Eduardo Marciano deseja ser um profeta

com olhar voltado não para o futuro, mas para a fronteira do limiar passado-

presente, tentando reconstituir-se no presente, para tentar anunciar aquilo que é ou

o que deseja ser, através da escrita do seu romance, o que na narrativa inacabada

não se concretizou. Na infância, a personagem queria ser artista, na juventude

queria ser escritor e na idade adulta queria apenas ser Eduardo, revoltando-se

quando sua esposa considera que ser escritor é ser artista. Como escritor, Eduardo

quis ser profeta, com uma mensagem pura através da arte, contudo enfrentou

conflitos entre a representação de papéis - profeta, artista, escritor – e o Eduardo

justo e equilibrado, com seu diploma de Direito, casado, servidor público, pai. Na

arte, procurou recriar a verdade, mas não conseguiu escrever o seu romance; na

vida, procurou ser alguém que só existia na sua imaginação de escritor. Assim,

permaneceu inacabado.

Ao priorizarmos a tomada de autoconsciência da personagem central, não

queremos dizer que os duplos de Eduardo Marciano não passaram por este

processo; a escolha se deu pelo carisma da personagem Eduardo. O próprio

Dostoiévski, também, teve suas inclinações; é evidente, segundo o crítico Harold

Bloom (2003), a antipatia de Dostoiévski, em Os irmãos Karamazov, por Ivan, o

intelectual orgulhoso, e a simpatia pelo realista Alyosha. E o que dizer de Dmitri?

“Para a maioria dos leitores, o protagonista do romance é Dmitri, sofredor poético”

(id. Ibid., p. 803). Mas, obviamente, a nossa escolha recai sobre o critério de que em

todo romance polifônico há um herói, ainda que outros sejam tão relevantes quanto

ele, no confronto discursivo e na análise da narrativa. Desse modo, verificamos que

o romance apresenta formas antagônicas de lidar com o conflito de vozes, e de

busca pela consciência de sua realidade. No contexto de O encontro marcado, há

inúmeras vozes: Mauro, uma explosão de sentidos; Hugo e sua linguagem gutural;

Eduardo....Como defini-lo, sem dizer o “já dito”? Fernando Sabino, através do

narrador, é o autor observador da tessitura polifônica, na qual sua voz se faz ouvir

como um “dialogador” que faz as personagens possuírem uma independência para a

137

realização de seus discursos, personagens que entre elas mesmas são conflitantes,

não possuem meios de anular ou negar o discurso do outro.

Em suma, constatamos que o romance O encontro marcado, revestido de

um singular plurilinguismo das relações sociais, preserva a liberdade e o não-

fechamento do sujeito, cuja expressão oscilante de um olhar tumultuado e inquieto

torna-se cada vez mais lúcido pelo olhar do outro. Este encontro inspira ecos de

vozes que se harmonizam, se enfrentam e se contradizem, posto que a consciência

do sujeito de sua própria existência humana e de sua realidade lhe é dada pelas

relações dialógicas com o outro.

Convivem, dessa forma, no mesmo espaço que circunda a narrativa O

encontro marcado: o autor (imagem de autor, narrador), as personagens e o

“terceiro”, de que nos fala Bakhtin – o leitor, que poderíamos dividir em três: a leitora

pesquisadora com sua linguagem, às vezes tendenciosa ao subjetivismo; o leitor

crítico, cujo olhar é avaliador; e o leitor crítico de Sabino. Haveria, ainda, outras

vozes? Para o crítico Gustavo Corção (1986), “na realidade é Deus o personagem

principal do romance”. Uma ideia conflitante, porém, como questionar Corção, sem

correr o risco de negar ou afirmar a soberania do discurso do outro?

Através de nossas indagações, buscamos apenas propor e instigar um

“novo” enfoque para futuras leituras do romance de Sabino. O novo está entre

aspas, exatamente para expressar a ideia bakhtiniana de que o eu se constitui sobre

a base do nós; nenhum discurso é original, pois há sempre um “já dito” a que

recorremos, no entanto há intenções que se revelam no fio do discurso, e isto

Sabino entendeu muito bem na sua engenhosa capacidade de expressão verbal.

Neste sentido, esperamos que o nosso trabalho sirva de apoio a outros olhares

interpretativos da obra sabiniana, um pouco esquecida nos meios acadêmicos. No

entanto, durante a nossa caminhada, percebemos que, nos últimos seis anos,

algumas pesquisas de dissertação sobre a obra de Sabino vêm se tornando

audíveis. Será este fato consequência de seu adeus, como sugeriu um crítico? O

caminho está aberto a outras indagações.

138

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