DIÁLOGO ENTRE O NATURALISMO E O NEONATURALISMO … · No Brasil, tais questões, aos poucos,...

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DIÁLOGO ENTRE O NATURALISMO E O NEONATURALISMO NA LITERATURA

BRASILEIRA

Autora: Roseli Nogueira de Lima1

Orientador: Caio Ricardo Bona Moreira2

RESUMO O presente trabalho teve como objetivo um breve estudo do naturalismo e de sua sobrevivência em uma linhagem da literatura brasileira contemporânea que poderíamos chamar de neo-naturalismo. Discutiu-se na pesquisa o interesse da literatura por indivíduos presentes em determinados grupos sociais relatados por obras literárias com “Quarto de Despejo”, da escritora Maria Carolina de Jesus, “Inferno”, de Patrícia Melo, e “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo, a fim de demonstrar na sala de aula que a literatura é uma ferramenta necessária a todos os indivíduos, pois, trata-se de uma fonte humanizadora essencial para refletir e ampliar discussões sobre temas universais presentes na sociedade e cotidiano dos adolescentes das escolas públicas atuais.

Palavras-chave: Literatura Brasileira – Naturalismo – Neonaturalismo.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo propõe uma análise da sobrevivência do naturalismo, ou

seja, de um estilo praticado pela literatura brasileira no final do século XIX, em obras

contemporâneas caracterizadas como neonaturalistas. Discutiremos os temas

sociais presentes em ambos os momentos para refletir e ampliar as discussões

sobre questões ligadas às diferenças culturais, preconceito e algumas

manifestações de violência tão presentes na sociedade e no cotidiano dos

adolescentes das escolas públicas atuais.

Apesar das incontáveis conquistas adquiridas pelo homem em toda a sua

história, o ser humano ainda sofre discriminação, preconceito, violência moral e

física em sua realidade cotidiana.

1 Professora Especialista – Língua Portuguesa - QPM SEED/PR – C.E.Alberto Gomes Veiga.

2 Doutor - Literatura – FAFIUV, Língua Portuguesa.

Com o intuito de expandir alguns dos horizontes presentes na realidade dos

educandos, partindo da ideia da função humanizadora da literatura designada por

Antônio Cândido, pretende-se ao longo deste trabalho apresentar algumas obras

literárias aos alunos, como “Quarto de Despejo”, da autora Maria Carolina de Jesus,

“Inferno”, de Patrícia Melo, e “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, para fins de análise,

estabelecendo parâmetros a serem comparados com a realidade vivida por cada um

deles.

Busca-se abordar a literatura do ponto de vista anacrônico, discutindo

possíveis relações entre os textos em questão, bem como entre a literatura e os

problemas sociais.

As Diretrizes Curriculares da Rede Pública de Educação do Estado do Paraná

– Língua Portuguesa (2008, p.57) afirmam que “a literatura, como produção

humana está intrinsecamente ligada à vida social” e para Cândido, citado pelas

DCEBs (2008, p. 57) “a literatura é vista como arte que transforma, humaniza o

homem e a sociedade”.

Portanto, trabalhar literatura na escola como se trabalha as outras disciplinas

presentes na grade, não é distinguir objetivos opostos, nem usar estratégias

diferentes. A literatura deve proporcionar atividades que transformem uma obra

numa fonte de saber e encantamento, exercendo, deste modo, fortes influências na

vida das pessoas envolvidas com ela.

Mostrar aos educandos que literatura é sedução na forma de descoberta do

indivíduo, motivar e criar condições em sala de aula para este trabalho prazeroso,

cabe também aos professores.

Além disso, é preciso viver a literatura no chão escolar, permitir ao alunado a

escolha dos livros, não direcioná-los a pilhas prontas e nem direcioná-los na escolha

das obras a serem lidas, o que se pode fazer é sugerir, nunca impor, propiciando

aos alunos o contado com um universo inteiramente novo e edificador.

2 A LITERATURA PARA DENTRO DA SALA DE AULA

É de suma importância rever o estudo da literatura no chão escolar. Bons

resultados podem ser atingidos quando aproximamos o alunado das obras literárias.

Para que isso aconteça, a literatura não deve estar apenas atrelada a estudos

mecânicos da periodização, como nos compêndios escolares tradicionais, visto que

a literatura não é “estanque”.

Para que ocorra a formação de leitores críticos, a literatura tem papel

fundamental, pois a partir da participação ativa do leitor no processo de construção

de sentidos de um texto, a leitura pode levar os educandos a questionar, refletir,

confrontar e ampliar seus horizontes.

Deve-se, sobretudo, fazer ressaltar sua abrangência social, econômica,

política e cultural no intuito de desenvolver no alunado uma visão relacional e

globalizante das ações e pensamentos humanos. Somente assim o aluno

compreenderá a importância deste aprendizado dentro de sua vida em todos os

seus estágios, pois a literatura, não corrompe, mas humaniza.

Nesse sentido, Antônio Cândido (1972), prevê três funções para a literatura,

sendo a primeira a função psicológica, ligada à capacidade que os seres humanos

têm de fantasiar ao se envolver com uma obra literária. A segunda, a função

formadora, está ligada à realidade do homem. É preciso partir de algo concreto para

poder fantasiar, este “algo” seria a realidade em questão. A última função da

literatura, segundo o autor, é a sua função social, elemento que permite a

identificação de determinada realidade a partir da observação. O leitor pode se

identificar ou compadecer-se com ela.

Depois de compreendidas essas três funções da literatura, podemos perceber

que a sua função principal é a de humanizar, pois ela tem a capacidade de

acrescentar aos indivíduos novos estratos em seu intelecto, alargando seus

horizontes. Sobre isso, Antônio Cândido escreve:

A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela. Dado que a literatura ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem freqüentemente aquilo que as convenções desejariam banir. É um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe (CÂNDIDO, 1972, p. 805).

Ou seja, o ensino da literatura deve ser considerado como atividade essencial

na formação do indivíduo, pois a partir dela, modelam-se as percepções e

impressões observadas a partir do meio em que os indivíduos estão inseridos.

Nesse mesmo contexto, apontam as Leis de Diretrizes e Bases sobre o ensino da

literatura:

A literatura, como produção humana, está intrinsecamente ligada à vida social. O entendimento do que seja o produto literário está sujeito a modificações históricas, portanto, não pode ser apreensível somente em sua constituição, mas em suas relações dialógicas com outros textos e sua articulação com outros campos: o contexto de produção, a crítica literária, a linguagem, a cultura, a história, a economia entre outros (DCEBs, 2008, p.8)

Como a literatura está intrinsecamente interligada à vida social - além de

estimular o imaginário e amenizar preconceitos ao vivenciar experiências próximas

ou distantes da nossa realidade, presentes na obra estudada -, poderemos nos

colocar no lugar dos personagens, modificando a nossa percepção da realidade, e

refletindo sobre preconceitos e estereótipos, contribuindo desse modo para a

edificação de uma sociedade mais justa e igualitária para todas as pessoas

independentemente de classe social, gênero ou raça.

Nessa mesma linha, Segundo as DCE-Diretrizes Curriculares da Educação

Básica da Língua Portuguesa (2008, p. 59), o texto literário permite múltiplas

interpretações, uma vez que é na recepção que ele significa.

De acordo com os PCNs, ressalta-se:

A apreciação estética dos bens culturais produzidos no local, no país ou em outras nações permite que se ampliem as visões de mundo, enriquecendo o repertório cultural dos alunos. A fruição desses bens é também questão de aprendizagem. O conhecimento mais amplo do patrimônio cultural leva a um diálogo mais consistente entre o repertório pessoal e os textos orais e escritos a que o aluno tem acesso e aos que ele produz. (BRASIL, 2002.p.69)

Ou seja, ao aproximar a Literatura do universo dos educandos, ao debater

uma obra literária, se transforma num grande desafio, em conquista, em

conhecimento significativo, fazendo o adolescente compreender melhor o mundo em

que vive, ampliando seus referenciais quanto ao patrimônio cultural da humanidade,

pois a literatura em si dialoga com outras manifestações artísticas e linguagens.

A literatura mantém um diálogo vivo entre obras de diferentes épocas.

Tomando como referencial esse ponto de vista, interessa neste contexto o diálogo

do presente com a tradição.

3 REALISMO E NEONATURALISMO

O século XIX foi marcado por uma série de transformações humanas que

repercutiram em toda humanidade, rompendo com uma série de paradigmas até

então estabelecidos, no que diz respeito ao pensamento até então vigentes àquela

época. Após o surgimento do liberalismo, espalhou-se a ideia das liberdades

individuais centradas no sujeito, dotado de capacidades, como membro ativo de uma

sociedade que visa ao bem comum de maneira universal. Porém, com o avanço

tecnológico, em especial o industrial, o homem foi se tornando cada vez mais refém

do espaço e tempo que vive, pois a política predominante oriunda do capitalismo

distancia cada vez mais as classes sociais existentes na sociedade, resultando em

sérios abismos e rupturas sociais que a cada dia sufocam mais os menos

privilegiados na pirâmide social.

Partindo dessas questões, surge uma série de questionamentos dentro das

mais diversas áreas – como, por exemplo, a sociologia, a filosofia e a arte – na

tentativa de entender esse momento complexo.

Lentamente, na literatura da segunda metade do século XIX - enquanto se

dava a agonia do Romantismo -, muitas eram as revelações que permeavam a

Europa, influenciando e moldando o novo tipo de pensamento que afrontava

diretamente os anacronismos do neoclassicismo e escapismos subjetivistas dos

românticos, causando uma considerável modificação dentro do contexto literário.

No Brasil, tais questões, aos poucos, começaram a emergir, ganhando

espaço dentro do cotidiano nacional, ao passo em que a realidade do sujeito,

começou a ser valorizada e objetivada de acordo com os elementos históricos,

sociais e biográficos, como ponto de partida para as percepções literárias dos

autores (COUTINHO, 2004).

Sobre tal aspecto, Afrânio Coutinho afirma:

Devem-se encarar o Realismo e o Naturalismo como movimentos específicos do século XIX. Porquanto, antes de se concretizarem, numa época histórica, eles eram categorias estéticas ou temperamentos artísticos, tendências gerais da alma humana em diversos tempos, surgindo a partir da união do espírito á vida pela objetiva pintura da realidade (COUTINHO, 2004, p. 179-180)

Considerando as grandes encruzilhadas de correntes literárias presentes no

século XIX, bem como o advento do surgimento da classe burguesa, industrial e

mecânica, permeadas por preceitos democráticos e as novas concepções de ideias

do mundo e da ciência, estas resultaram num imenso impacto cultural, no qual o

Brasil se dominou por completo. Pois na segunda metade do século XIX, os

elementos sociais, econômicos e políticos que constituíam a civilização brasileira, a

própria estrutura da sociedade, sofria grandes modificações, pois de um lado estava

a sociedade agrária, latifundiária e de outro, surge aos poucos, uma sociedade

burguesa e urbana.

Sendo assim, no que diz respeito aos anseios intelectuais, este não foi

diferente. Aos poucos, surge uma revolução nas ideias marcadas pelo progresso e

observação da realidade, fornecendo novos pensamentos de acordo com cada estilo

de vida observado. Deste modo, o Realismo e Naturalismo surgem nesse contexto

como revoltas ao subjetivismo romântico, dando uma nova face para a literatura,

aproximando-a da realidade do homem a partir de seus próprios anseios,

mostrando-a como ela é e não como ela deve ser.

Partindo deste pressuposto, Coutinho revela:

O realismo logrou impor a pintura verdadeira da vida dos humildes e obscuros, os homens e mulheres comuns que estão habitualmente em torno de nós, vivendo uma vida compósita, feitas de muitos opostos, bem e mal, beleza e fria, rudeza e requinte, sem receio trivial e monótono (COUTINHO, 2005, 186).

As características presentes nas obras que apresentam esse temperamento

ou estado de espírito, geralmente, se revelam mediante a tentativa da apresentação

das verdades, através da verossimilhança dos fatos presentes nas obras

comparados à vida real de uma pessoa, sem empregar um sentimentalismo artificial.

Outro ponto a ser considerado, é a representação das personagens,

marcados por um forte caráter, cujas emoções e próprias ações partem de acordo

com sua realidade.

Além de dispor de uma interpretação assídua da vida, o realismo também

retrata a vida contemporânea a partir de uma narrativa que se move lentamente,

apoiada nas impressões sensíveis da realidade.

Ou seja, em pormenores, o realismo é uma corrente literária, cujo principal

objetivo é representar os fatos como eles são em sua essência e vicissitude por

meio da observação e documentação. O homem é centralizado objetivamente e a

interpretação de sua vida parte de motivações humanas.

Já o Naturalismo, conforme Afrânio Coutinho, “acentua as qualidades do

Realismo, acrescentando uma concepção de vida que a vê como intercurso de

forças mecânicas sobre indivíduos, resultando os atos e o caráter de acordo com a

hereditariedade e ambiente” (COUTINHO, 2005, p. 181). Esse estilo reforça também

todas as atividades do homem, além de introduzir os aspectos mais sórdidos da

espécie humana, podendo apresentar certa vulgaridade na construção dos diálogos

e também linguagem fora dos padrões determinados pela norma culta da nossa

língua.

Os temas presentes no Naturalismo dão maiores preferências aos aspectos

mais repugnantes e cruéis da vida humana, como o crime, as taras, a miséria. Isso

para descrever o anormal e o patológico. Vemos esses temas do passado ainda

muito presente em obras contemporâneas.

Foi o Naturalismo que colocou em evidência o excluído, o negro, o

homossexual, o pobre o negro e os mulatos discriminados. Conhecimentos de

Biologia, da Psicologia e da Sociologia eram usados pelos escritores naturalistas

para justificar casos patológicos singulares.

O Naturalismo traz uma opinião estereotipada para demonstrar a percepção

da realidade através de fórmulas prontas e de modelos pré-estabelecidos. O caráter

é moldado pelo meio visto que o Determinismo arraigado nas obras literárias

naturalistas declara que a hegemonia do meio prevalece numa classe social sobre

seus pares. São exemplos de estereótipos opiniões como: a mulher é mais frágil que

o homem; o pobre é indolente; o adolescente é revoltado; o negro é sujo e inferior.

Na obra Inferno, de Patrícia Melo, e em Cidade de Deus, de Paulo Lins - livros

que compõe o estudo deste trabalho - percebemos a crueldade imperando entre os

pares de uma comunidade, sobressaindo a competição pelo poder do tráfico, a

prostituição, a desordem de valores éticos e morais denunciando a face caótica que

está imperando em nossa sociedade, características pertencentes, de certa forma,

no naturalismo do século XIX.

4 TRABALHANDO TEMAS DO REALISMO E NATURALISMO NA ESCOLA

A partir de questionamentos sobre a necessidade de se abordar temas como

preconceitos e discriminações, violência física e moral a que o ser humano está

submetido, a escola não pode se omitir a trabalhar estas questões. Ela deve se

envolver porque é preciso fazer o enfrentamento necessário às desigualdades

sociais.

Esta é uma ótima oportunidade para o professor de literatura, contextualizar

essas questões - hoje tão relevantes e polêmicas - dentro de sua sala de aula ao

tratar de temas como o realismo e naturalismo por exemplo.

Os conflitos sociais presentes na escola necessitam ser trabalhados para que

os alunos sejam agentes e propagadores do enfrentamento. Para isso, faz-se

necessário despertar os efeitos de sentido nos diferentes discursos, captar os

propósitos e posicionar-se contra valores e práticas sociais que não respeitem os

princípios sociais considerados. A literatura vem corroborar na vida social quando,

por meio da representatividade promove a ruptura de preconceitos, propiciando aos

educandos “alargar seus horizontes” no que diz respeito ao engajamento social.

É no processo interativo de formas comunicativas e sociabilização que os

gêneros do discurso são adquiridos e não no trabalho mecânico com compêndios

escolares. Sendo assim, Bakhtin esclarece:

A língua materna, seu vocabulário e sua estrutura gramatical, não as conhecemos por meio dos dicionários ou manuais de gramática, mas sim graças aos enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos na comunicação discursiva efetiva com as pessoas que nos rodeiam (BAKTHIN, 1992, p.268).

Ocorrências de bullyng em situações de preconceito, discriminação e toda

forma de opressão com o “diferente”, são vivenciadas diariamente na escola,

tornando-se cada vez mais preocupantes. O professor de literatura, ao abordar

essas temáticas em sala de aula, contribuiu para conscientização desses jovens, na

tentativa de fazer com que eles compreendam a gravidade desse problema e

comportamento agressivo presentes na realidade escolar, evitando-os de certo

modo em seu cotidiano.

A razão de aproximar a realidade dos alunos presentes hoje na sala de aula

com as obras de características naturalistas e neonaturalistas é com o intuito de

refletir e discutir sobre situações de conflitos sociais, na tentativa de alcançar uma

educação fraterna oferecendo aos educandos e educandas possíveis soluções para

os problemas sociais que se apresentem em sua vida de maneira eterna e não fugaz

como se vem apresentando atualmente.

5 OBRAS SELECIONADAS

Para realização de uma análise em sala de aula, sugerimos a leitura da obra

Quarto de despejo-diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, e de O

Cortiço, de Aluísio Azevedo. São bastante indicadas também obras como Inferno, de

Patrícia Melo, os filmes do cinema nacional Cidade de Deus e Amarelo Manga,

trazendo discussões sobre igualdade étnico-racial, inclusão, identidade, justiça

social, diversidade, respeito às diferenças estão globalmente.

Há um intervalo de mais de cinquenta anos entre a publicação de O Cortiço

(Aluísio Azevedo) e Quarto de despejo-o diário de uma favelada (Carolina Maria de

Jesus). Entretanto, os dois textos apresentam várias características em comum. Em

ambos, o assunto abordado foi extraído da realidade social conhecida pelos autores;

as personagens foram inspiradas em pessoas do povo; a realidade não é idealizada,

muito pelo contrário; os autores procuram mostrar a miséria, a feiura, o cotidiano de

comunidades que vivem à margem da sociedade; o meio em que vivem as

personagens é fator determinante em suas vidas.

Carolina Maria de Jesus, na obra Quarto de Despejo – diário de uma favelada

descreve a partir de seu dia a dia, a luta por sua sobrevivência e dos demais

favelados com uma linguagem simples e objetiva.

Em meio às lutas pela sobrevivência, Carolina Maria de Jesus escrevia com

suas variantes linguísticas, as quais conferiam maior verossimilhança aos seus

escritos. Mesmo frente a toda miserabilidade a que estava submetida, encontrava na

escrita de seu diário uma “fuga” dos momentos difíceis que passava.

A autora descreve a beleza da vida, porém, sempre trazida à dura realidade

cotidiana, vivendo céu e inferno concomitantemente. Ela escreve sobre sua vida

terrível, igual à de muitas outras e outros brasileiros marginalizados e excluídos.

Em Carolina de Jesus, percebemos a voz de uma coletividade anônima

presente nas grandes cidades brasileiras. Segundo Levine e Meihy (1994, p.231):

“Quarto de Despejo é uma das poucas obras que refletiam a realidade urbana

brasileira, sendo narrada por alguém que viveu na carne o problema da miséria”.

Apesar da linguagem da obra se apresentar de maneira coloquial, em momento

algum ela não deixou de expressar sua vasta riqueza, marcadas pela visão poética e

impressões autobiográficas da autora, perfeitamente perceptíveis logo no início do

diário, como no dia 02 de maio de 1958 ao dizer "(...) Eu fiz uma reforma em mim.

Quero tratar as pessoas que conheço com mais atenção. Quero enviar em sorriso

amável as crianças e operários".

Em seu diário no dia 18 de julho declara sobre crianças: “(...) eu não encontro

defeito nas crianças (...), sei que criança não nasce com senso. Quando falo com

uma criança lhe dirijo palavras agradáveis” (JESUS, 1993, p.13).

É justamente nessa diferença entre as maneiras de discurso que ocorrem no

cotidiano que focalizaremos as “palavras agradáveis” levando em conta o sentido de

efeito que ocorre no uso das mesmas entre locutor e locutário.

Carolina descreve a realidade em vários momentos de maneira lírica e o

cotidiano da favela com suas trivialidades são expostos através de um vocabulário

singular mesclado ao lirismo, formando uma combinação inusitada:

[...] Chegaram novas pessoas para a favela. Estão esfarrapadas, andar curvado e os olhos fitos no solo como se pensasse na sua desdita por residir num lugar sem atração. Um lugar que não se pode plantar uma flor para aspirar o seu perfume, para ouvir o zumbido das abelhas ou o colibri acariciando-a com seu frágil biquinho, O único perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga (JESUS, 2000, p.42)

Em Carolina percebe-se o relato sobre a fome cotidiana, a miséria, o

preconceito e o abuso, temas tão presentes que trazem consequências danosas à

sociedade. A literatura corrobora grandemente para discutirmos as formas de

opressão presentes na sociedade, como percebe-se na passagem a seguir: "Mal

sabe ele que na favela é a minoria quem toma café. Os favelados comem quando

arranjam o que comer. Todas as famílias que residem na favela, tem filhos (...)

credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isso aqui é o chiqueiro de São

Paulo (JESUS, 2000, p.30)

O trabalho de leitura ofertado aos alunos seguiu numa linha detalhada de

temas que combatem atitudes preconceituosas e discriminatórias no chão da escola

e na sociedade. Almejou, assim, não apenas propor uma reflexão por parte dos

alunos e alunas, mas também a superação de certas atitudes referentes aos temas

referidos, como o preconceito. No entanto, como denota a célebre frase de Einstein:

“Época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um

átomo”.

Nas DCEs da Língua Portuguesa do Estado do Paraná, encontramos:

A literatura, como produção humana, está intrinsecamente ligada à vida social. O entendimento do que seja o produto literário está sujeito a modificações históricas, portanto, não pode ser apreensível somente em sua constituição, mas em suas relações dialógicas com outros textos e sua articulação com outros campos; o contexto de produção, a crítica literária, a linguagem, a cultura, a história, a economia, entre outros (2008, p. 57).

Devemos aliar a literatura a metodologias que, além de tornar as nossas

aulas mais atrativas, ensinem princípios de cidadania. Segundo Zilberman:

A crise levou o ensino de literatura a se indagar sobre seu sentido e finalidade. De certo modo, a literatura precisa descobrir; considerando as novas circunstâncias, em que consiste sua natureza educativa (ZILBERMAN, 1990, p.19).

6 A NOVA LEITURA DO REALISMO NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA

A sociedade, ao longo dos anos, vem sofrendo grandes e profundas

mudanças no que diz respeito a sua estruturação e contexto social, sendo estes, os

principais responsáveis pela modelação do comportamento humano conforme o

contexto no qual o homem está inserido, refletindo em todas as esferas da

sociedade, inclusive dentro da própria literatura. Dentro dessa perspectiva, Karl

Schollhammer aponta:

Os indivíduos são um tipo de fantoche, envolvido em situações que flertam com o inumano; jogos complexos de um destino que opera além de sua compreensão e controle. Personagens dessubjetivadas são levadas por forças desconhecidas da fatalidade ou da consciência, que resulta num profundo questionamento existencial (2011, p.56).

Nas obras selecionadas nesta pesquisa, percebe-se esta nova leitura da

sociedade em que estão presentes as características atuais dos grupos sociais

representados nessas obras, geralmente a classe menos favorecida, composta por

pobres, favelados, marginais e miseráveis. Segundo Karl Schollhammer (2011), as

personagens do livro de Patrícia de Mello são tratados como meros portadores de

uma realidade de absoluta desumanidade, perdendo assim, profundidade diante

dessa proibição fundadora que os faz pessoas.

Patrícia de Mello, ao enfatizar seus personagens, parte dos traços marginais,

acrescentando-lhes certas características presentes na difícil e dura realidade que

cerca essa classe de pessoas. No livro O inferno (2000) o protagonista é ambicioso

e conquista o seu mundo, no entanto acaba se destruindo depois de aniquilar seu

adversário, seus desafetos, mas também todos os seus próximos e amados. Nesta

obra, a autora mostra a decomposição moral produzida em meio à corrupção, ao

oportunismo e à desaparição de estruturas e instituições sociais sólidas, um traço

que já podemos encontrar na literatura naturalista do final do século XIX.

Já na obra Cidade de Deus de Paulo Lins, o contexto social que se apresenta

parte da ótica dos favelados, demonstrando fielmente a sórdida realidade enfrentada

pelas pessoas cuja posição social os deixa à margem da sociedade, sem quaisquer

expectativas de mudança ou melhoria de vida. Segundo Schollhammer (2011), o

livro de Lins pode ser lido de várias maneiras, é um documento sobre a história da

Cidade de Deus, complexo habitacional para abrigar a população que havia sofrido

perdas de suas casas com as grandes enchentes no Rio de Janeiro em 1966. Ao

mesmo tempo, é uma narrativa memorialista em que o percurso do desenvolvimento

individual, partindo da infância inocente, atravessando o choque do mundo real na

adolescência e direcionando-se para o cinismo da maturidade – se reflete no tom de

voz, a cada passo mais duro no relato. O realismo, ou melhor, naturalismo

demonstrado nessa obra, condiz fielmente com o contexto no qual as pessoas

menos favorecidas estão envolvidas. De acordo com Karl Schollhammer:

Trata-se da ficcionalização dos fatos reais, tudo no livro é real, costuma insistir o próprio autor com fervor naturalista. A realidade transparece em cada ação dos malandros ou bichos soltos, muitas vezes de maneira comovente, e porque a construção da linguagem dos personagens é realizada com muito esmero (2011, p.45).

Falar de um novo realismo, ou de um novo naturalismo hoje é complicado e

exige muitos esclarecimentos como afirma Schollhammer (2011). Ao longo do

século XX, o Realismo fez seu retorno sob diferentes formas. O que encontramos

nesses novos autores é a vontade ou o projeto explícito de retratar a realidade atual

da sociedade brasileira, frequentemente pelos pontos de vista dos marginais ou

periféricos. Conforme o avanço da sociedade dilata-se cada vez mais o abismo

existente entre as classes sociais, disseminando a pobreza e a marginalização entre

os indivíduos, aumentando visivelmente os índices de violência no seio da

sociedade. A literatura não fecha os olhos para isso. De acordo com Schollhammer

(2011), não se trata, portanto, de um realismo tradicional ou ingênuo em busca da

ilusão de realidade e sim de um realismo que se expressa pela vontade de

relacionar a literatura com a realidade social ou cultural da qual emerge,

incorporando essa realidade, esteticamente, dentro da obra, situando-a na própria

produção artística contemporânea.

7 ESTRATÉGIAS DE AÇÃO (IMPLEMENTAÇÃO)

Em julho de 2012, apresentou-se à Direção e equipe pedagógica do Colégio

Estadual Alberto Gomes Veiga, da cidade de Paranaguá, o material a ser usado na

implementação do PDE junto à 3ª série H do Ensino Médio noturno.

Seguindo normas e orientações da Coordenação do PDE, iniciou-se o projeto

em setembro com a participação de todos os alunos da 3ª H. Na primeira aula,

trabalharam-se noções básicas de classes sociais, capitalismo, desigualdade social,

visando com isto que o aluno percebesse criticamente toda forma de opressão

presente na sociedade.

O material didático elaborado para a implementação do projeto “Diálogo entre

o Naturalismo e o Neonaturalismo na Literatura Brasileira” tinha como carro-chefe a

obra Quarto de despejo-o diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus.

Buscou-se trilhar caminhos que levassem os alunos ao estudo da literatura, tomando

como base uma reflexão não só sobre o diálogo entre obras de tempos

diferenciados, bem como a questão dos problemas sociais abordados em ambos os

tempos. Os recursos utilizados para a construção dos novos conhecimentos, a

comparação dos textos produzidos no Naturalismo com os do Neonaturalismo

corresponderam às expectativas e observou-se que os alunos dominaram muito

bem os recursos tecnológicos na busca de informações.

Contribuiu para a boa implementação o fato de os alunos serem de uma faixa

etária com senso crítico desenvolvido. Propôs-se um diálogo para abordar

problemas da modernidade e do mundo contemporâneo e com isto verificou-se as

relações de poder exercidas entre diferentes classes sociais. Percebeu-se que o

homem sempre dominou seu par pela violência, por ideologias opressoras e

sistemas econômicos hegemônicos. O naturalismo mostra uma face da vida

comunitária nunca antes revelada: a do cotidiano massacrante, a do amor adúltero,

a do egoísmo e falsidade, bem como da impotência do ser humano comum diante

dos poderosos. Temas estes retratados na obra de Carolina de Jesus e de Aluísio

Azevedo. É o ontem e o hoje presente nas obras literárias.

A partir dessas reflexões, foi mais fácil executar as atividades propostas no

projeto. A seguir, para reconhecer as sobrevivências do Naturalismo, assistimos a

fragmentos do filme Amarelo Manga, de Claudio de Assis. As reflexões oriundas da

projeção geraram textos que foram expostos em um mural escolar.

A atividade seguinte, que girava em torno do tema “A responsabilidade de

cada um para com seus pares” se deu a partir do filme Cidade de Deus, de

Fernando Meirelles. Na sequência, confeccionaram-se cartazes de alertas com os

temas: respeito, solidariedade, etc.

Os alunos leram a obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Pretendeu-se com

este trabalho estimular a reflexão sobre os valores éticos e morais que culminou

com uma produção de texto tendo como tema: “O homem lobo do homem?”

Os educandos demonstraram um grande interesse pelas aulas visto que o

horizonte de expectativas foi ampliado na oferta de textos e atividades diversas,

aguçando a postura crítica dos mesmos e transportando para suas realidades uma

temática sempre atual que são as mazelas sociais. Mostrou-se que a literatura é

contato, continuidade e atração. A literatura deve ser entendida como experiência

comunitária, experiência que auxilia no processo de transformação social. Na obra

de Carolina Maria de Jesus vemos claramente que ela mesmo, vivendo numa

mesma sociedade, a favela do Canindé (SP), olha os problemas numa perspectiva

contrária aos demais moradores: ora a comunidade era vista com olhos de poesia,

ora com profunda tristeza por sentir as mazelas de seus pares.

8 ANÁLISE DOS RESULTADOS

Para o desenvolvimento deste projeto de Intervenção Pedagógica como

ferramenta subsidiária às aulas de Língua Portuguesa do Ensino Médio do Colégio

Estadual Alberto Gomes Veiga, foi utilizada uma sequência didática em 12(doze)

aulas, com uso de textos que dialogam entre si, proporcionando desse modo, aos

alunos, uma possível análise dos problemas sociais abordados em textos literários.

Concluímos esta atividade de implementação com uma atividade prazerosa,

sendo possível a confecção de poesias, que tratavam da opressão. O trabalho foi

individual, mas a organização coletiva. Os trabalhos foram expostos no terminal

urbano de Paranaguá, onde educandos puderam declamar, contar ou apenas expor

seus trabalhos para comunidade.

Além desses quesitos, vale ressaltar a importância desta atividade para a

formação teórico-crítica dos alunos, sendo que estes puderam expor seus trabalhos

junto com seus sentimentos e indagações a respeito do meio no qual estão

inseridos.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, A. O cortiço. 30ª ed. São Paulo: Ática, 1997.

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