Dialogo No Inferno Entre Maquiavel e Montesquieu

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    FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador

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     José Castilho Marques Neto

    Editor Executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre

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    Editores Assistentes

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      7 .  Apresentação

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      19 .  Simples advertência

      P I  23 .  Primeiro diálogo [Encontro de Maquiavel e Montesquieu no inferno]

      37 .  Segundo diálogo [A resposta de Montesquieu]

      45 .  Terceiro diálogo [Desenvolvimento das ideias de Montesquieu]

      59 .  Quarto diálogo [Maquiavel faz a crítica do regime constitucional]

      73 .  Quinto diálogo [Montesquieu combate a fatalidade do despotismo]

      85 .  Sexto diálogo [Continuação do mesmo assunto]  93 .  Sétimo diálogo [Maquiavel generaliza o sistema que propõe empregar]

      P II

     107 .  Oitavo diálogo [A política de Maquiavel em ação]

     123 .  Nono diálogo [Da Constituição]

     137 .  Décimo diálogo: [Continuação do mesmo assunto] 151 .  Décimo primeiro diálogo: [Das leis]

     165 .  Décimo segundo diálogo: [Da imprensa]

     183 .  Décimo terceiro diálogo: [Das sociedades secretas]

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     197 .  Décimo quarto diálogo [Das instituições anteriormente existentes]

     207 .  Décimo quinto diálogo [Do sufrágio]

     219 .  Décimo sexto diálogo [De certas corporações]

     233 .  Décimo sétimo diálogo [Da polícia]

      P III

     247 .  Décimo oitavo diálogo [Das finanças e do seu espírito]

     259 .  Décimo nono diálogo [Do sistema orçamentário]

     273 .  Vigésimo diálogo [Continuação do mesmo assunto] 289 .  Vigésimo primeiro diálogo [Dos empréstimos]

      P IV

     301 .  Vigésimo segundo diálogo [As grandezas do reino]

     311 .  Vigésimo terceiro diálogo [Dos meios que Maquiavel empregará para

      consolidar seu império e perpetuar sua dinastia]

     327 .  Vigésimo quarto diálogo [Particularidades da fisionomia do Príncipe

    tal como Maquiavel o concebe]

     343 .  Vigésimo quinto diálogo [A última palavra]

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    Quando Maurice Joly publicou o seu Diálogo noinferno entre Maquiavel e Montesquieu, em 1864, a

    França vivia sob a mão de ferro de Napoleão III.Nascido Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho doprimeiro Napoleão, ele havia, em 1848, sido elei-to deputado da Assembleia Constituinte francesae, no final do mesmo ano, foi eleito presidente da

    República com enorme maioria dos votos. Em1851, planejou um golpe contra o Parlamento,mandou prender e deportar numerosas figuraspúblicas de várias tendências políticas e, em 2 dedezembro, assinou um decreto que dissolvia aAssembleia Legislativa. Com esse golpe de Esta-do, Napoleão ganhou poderes ditatoriais. No anoseguinte, chamou um plebiscito pelo qual, com

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    quase a totalidade dos votos, instituiu o Império

    e transformou-se em Imperador da França com otítulo de Napoleão III. Em 1870, na guerra contraa Prússia, o imperador foi capturado pelo exércitoprussiano em Sedan. A Assembleia Nacional, quepor pressões dos liberais havia sido restaurada,

    decidiu pela sua deposição e proclamou a TerceiraRepública Francesa.

    Foi a respeito de Napoleão III que Marx escre-veu o famoso livro O 18 Brumário de Luís Bonapar-te, publicado em 1852. Referindo-se ao fato de Luís

    Bonaparte ter tentado imitar seu tio, o primeiroNapoleão, Marx construiu a conhecida passagem:“Hegel observa em uma de suas obras que todosos fatos e personagens de grande importância nahistória do mundo ocorrem, por assim dizer, duas

    vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vezcomo tragédia, a segunda como farsa”.

    Farsa ou não, o fato é que os poderes imperiaisassumidos por Napoleão III desencadearam as re-ações de liberais e republicanos franceses, dentreeles, Maurice Joly, que havia abandonado pelo meioseus estudos de direito e estava em Paris em 1851,época da ascensão de Luís Bonaparte.

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    Maquiavel é representado no Diálogo  segundoa visão tradicional que faz dele o defensor do usoda força na política. Essa visão tradicional, que teriadado conteúdo ao termo “maquiavelismo” como sím-

    bolo da astúcia dos governantes, foi constituindo-sedesde a época do próprio Maquiavel e atravessou osséculos. Frederico II da Prússia, em 1740, publicou,em francês, uma crítica de O príncipe, de Maquiavel,intitulada O anti-Maquiavel, na qual afirmava que ia

    “tomar a defesa da humanidade contra um monstroque quer destruí-la” e oferecer um antídoto ao ve-neno contido no livro do pensador florentino. ParaFrederico II, O príncipe era uma das obras mais pe-rigosas que já tinham sido publicadas e certamente

    corromperia os governantes ambiciosos, ensinando-lhes máximas contrárias ao bem dos povos.2 

    Curiosamente, a personagem fictícia de Maquia-vel no diálogo de Joly mostra conhecer essa tradição,

    2 Frederico II.  L´anti-Maquiavel. La Haye, 1740, prefácio do autor.

    Claude Lefort analisou longamente essa tradição interpretativa, da

    qual Frederico da Prússia é um dos representantes, em seu livro

    Machiavel, Le travail de l´oeuvre (Paris, Gallimard, 1972).

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    refere-se mesmo a O anti-Maquiavel de Frederico,

    defende-se das acusações dizendo que “o maquiave-lismo é anterior a Maquiavel”, não aceita a paterni-dade dessa doutrina que lhe atribuem e afirma queseu único crime foi o de “dizer a verdade, tanto aospovos quanto aos reis; não a verdade moral, mas a

    verdade política; não a verdade como devia ser, mastal como ela é” – ou seja, descreve o Estado tal comoele é, assim como os médicos descrevem as doenças.Enfim, resume sua doutrina para Montesquieu: “to-dos os homens aspiram a dominar e, caso pudesse,

    ninguém deixaria de ser opressor”. Acrescenta que “aliberdade política é apenas uma ideia relativa; a ne-cessidade de viver é o que domina tanto os Estadosquanto os indivíduos”. Assim, crê que não ensinounada aos príncipes que eles já não soubessem por

    sua prática.A personagem de Montesquieu no Diálogo  de

     Joly parece ser mais fiel ao pensamento do filósofo.Em suas réplicas ao discurso de Maquiavel, Montes-quieu afirma que a força é só um acidente na histó-ria das sociedades constituídas, e que não são os ho-mens que garantem a liberdade, mas as instituições,e essas se fundam em princípios, tais como o da le-

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    galidade, de modo que as relações entre o príncipe e

    os súditos repousem sobre as leis. É claro que ocor-rem abusos, mas os abusos não condenam as insti-tuições. Na Europa moderna, diz Montesquieu, odespotismo é afastado pela instituição da separaçãodos poderes do Estado, de tal modo que o mecanis-

    mo de regulação e o controle recíproco entre essespoderes impeçam a opressão e garantam as liberda-des dos cidadãos e o respeito às leis constitucionais.

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    O Diálogo no inferno de Maurice Joly foi objetode uma das maiores fraudes de que se tem notícia, ede consequências graves. Em 1905 foi publicado na

    Rússia, sob os auspícios da polícia secreta do czarNicolau II, um livro apresentado como um conjun-to de atas que relatavam reuniões secretas de sábios

     judeus, as quais revelavam um plano para dominaro mundo. Ora, afirmar a existência de um grandecomplô judaico era uma forma de desviar a atençãodo povo russo das dificuldades reais daquele mo-mento. Esse livro é o famoso Protocolos dos sábios de

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    Sião, que se tornou instrumento de libelos antisse-

    mitas, servindo mais tarde de inspiração para o re-gime nazista.Desde o início de sua divulgação, contudo, a farsa

    começou a ser denunciada. Reportagens do jornalinglês Te imes, em 1921, mostraram afinal que

    havia muitas partes dos Protocolos que eram cópiasliterais de passagens do Diálogo no inferno de Mau-rice Joly. Os planos de dominação de Napoleão IIIda França foram transformados, nos Protocolos, noplano de domínio do mundo por parte dos judeus,

    e as palavras da personagem Maquiavel do livro de Joly foram postas na boca dos sábios de Sião. Váriosoutros estudos seguiram-se provando a fraude.

    Mas essa nefasta apropriação do texto de Joly nãonos deve impedir de discernir o sentido do Diálogono inferno. Na conversa entre os dois filósofos, a falade Maquiavel, que “corta como faca”, assevera que “ aliberdade política é apenas uma ideia relativa”, que“em todos os lugares, a força aparece antes do direito”,que a própria palavra “direito” é vazia. Por isso dá pre-ferência ao “governo absoluto”, por causa da “incons-tância da plebe”, de seu “gosto inato pela servidão”. Opovo, deixado por sua conta, “só saberá se destruir”.

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    Ora, para a personagem Montesquieu, quando

    se trata de política, “é necessário chegar a princí-pios”: a violência não pode ser erigida em princípio,a astúcia não pode ser máxima de governo. Não sepode apresentar como fundamento da sociedadeprecisamente aquilo que a destrói. Em um regime

    constitucional, no qual a fonte da soberania é a na-ção e no qual as leis garantem os direitos civis, pode-se alcançar a conciliação entre a ordem e a liberdadee entre a estabilidade e a transformação, garantir aparticipação dos cidadãos na vida pública e proteger

    a liberdade individual.Desse modo, no embate imaginado por Joly en-

    tre O espírito das leis e O príncipe, o que está em jogoé a defesa dos regimes de liberdade contra os regi-mes autoritários. Concebido para criticar o regime

    de força de Napoleão III na França do século XIX,o Diálogo no inferno de Maurice Joly pode ainda ser,quase 150 depois de publicado pela primeira vez,fonte de reflexão para os leitores do século XXI.

    Maria das Graças de SouzaProfessora de Filosofia da Universidade de São Paulo

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    M MOu a política de Maquiavel no século XIX,

     por um contemporâneo

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    Logo havíamos de veruma calma terrível, durante a qual

    tudo se uniria contra a potência

    violentadora das leis.Quando Silas quis devolver a paz a Roma,

    ela não pôde mais recebê-la.

    Montesquieu, O espírito das leis

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    Este livro tem traços que podem aplicar-se a todosos governos, mas ele tem um objetivo mais preciso:personifica em particular um sistema político quenão variou um dia sequer em suas aplicações, desde

    a data nefasta e já bem distante de sua entronização.Neste caso, não se trata de um libelo nem de um

    panfleto. O sentido dos povos modernos é civili-zado demais para aceitar verdades violentas sobrea política contemporânea. A duração excepcional

    de certos eventos ocorre para corromper a própriahonestidade; porém, a consciência pública continuaalerta e o céu, algum dia, vai acabar por misturar-secom o grupo que se posiciona contra ele.

    Avaliamos melhor certos fatos e princípios quan-do conseguimos vê-los fora do quadro em que semovem habitualmente perante nossos olhos; a mu-dança do ponto de vista, às vezes, aterroriza o olhar!

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    Aqui, tudo se apresenta sob a forma de uma fic-

    ção; seria supérfluo dar sua chave por antecipação.Se este livro tem algum valor, se ele encerra um en-sinamento, é preciso que o leitor o entenda, sem es-perar uma explicação. Aliás, esta leitura não deixaráde ter diversões notáveis. Contudo, é necessário agir

    com cautela, conforme convém aos textos que nãosão frívolos.

    Ninguém vai perguntar qual foi a mão que redi-giu estas páginas: de certa forma, uma obra comoesta é impessoal. Responde a um apelo da consciên-

    cia; ela foi concebida por todo mundo, ela é executa-da por alguém, o autor apaga-se, pois ele não passade um redator de um pensamento que se encontrano sentido geral, ele é apenas um cúmplice mais oumenos obscuro da coalizão do bem.

    Genebra, 15 de outubro de 1864 

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    M  Nas margens desta praia deserta,disseram-me que havia de encontrar a sombra dogrande Montesquieu. É ela mesma que se encontraa minha frente?

    M Aqui, o nome de Grande não cabea ninguém, ó Maquiavel! Mas eu sou aquele a quemprocura.

    M Dentre as personagens ilustres cujas

    sombras povoam este lugar de trevas, não existe ne-nhuma que eu mais gostaria de encontrar do queMontesquieu. Transferido para estes espaços des-conhecidos pela migração das almas, agradeço aoacaso que, enfim, me coloca na presença do autor de

    O espírito das leis.

    M O antigo secretário de Estado daRepública florentina não esqueceu a linguagem cor-

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    tesã. Porém, o que teriam para trocar aqueles que

    superaram estas margens sombrias, para além deangústias e lamentações?

    M É o filósofo ou o homem de Estadoquem assim se expressa? O que importa a morte para

    aqueles que viveram para o pensamento, dado que opensamento não morre? No que me concerne, nãoconheço condição mais tolerável do que aquela queaqui desfrutamos até o dia do Juízo Final. Ficar ali-viado dos cuidados e preocupações da vida material,

    viver no domínio da razão pura, poder dialogar comos grandes homens que ocuparam o mundo como rumor de seus nomes; acompanhar de longe asrevoluções dos Estados, a queda e a transformaçãodos impérios, meditar sobre suas constituições re-

    centes, sobre as mudanças verificadas nos costumese nas ideias dos povos da Europa, sobre o progressode sua civilização, na política, nas artes, na indústria,bem como no âmbito das ideias filosóficas, que tea-tro para o pensamento! Quantos temas para se sur-preender! Quantos pontos de vista novos! Quantasrevelações inesperadas! Quantas maravilhas, se pu-dermos acreditar nas sombras que descem até aqui!

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    Para nós, a morte é como uma aposentadoria longa

    na qual acabamos por reunir as lições da história eos títulos da humanidade. O próprio nada não con-seguiu romper todos os laços que nos unem à terra,pois a posteridade ainda se ocupa com aqueles que,como você, imprimiram grandes movimentos ao es-

    pírito humano. Seus princípios políticos dominam,neste momento, em mais de metade da Europa; e sealguém pode liberar-se do temor efetuando a som-bria passagem que conduz ao inferno ou ao céu,quem mais bem situado do que aquele que se apre-

    senta com títulos de glória perante a justiça eterna?

    M Maquiavel, você não fala nada de simesmo: é um excesso de modéstia, quando se deixano mundo a fama imensa do autor de O príncipe.

    M Creio perceber a ironia que se ocultapor trás de suas palavras. Assim, o grande francês, au-tor de obras políticas, julgar-me-ia como a plebe quesó conhece a meu respeito o nome e um preconceitocego? Esse livro me trouxe uma fama fatal, sei disso:tornei-me responsável por todas as tiranias; ele metrouxe a maldição dos povos que personificaram emmim seu ódio pelo despotismo; ele envenenou meus

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    M Já sabia disso, Maquiavel, e por essa

    razão jamais pude entender como o patriota floren-tino, como o servidor se transformara no fundadordessa escola sombria que lhe deu por discípulos to-das as cabeças coroadas, adequada para justificar osmaiores crimes da tirania.

    M  E se lhe disser que esse livro nãopassou de uma fantasia de diplomata; que nem sedestinava à impressão; que recebeu uma publicida-de alheia a seu autor; que ele foi concebido sob a

    influência de ideias então comuns a todos os prin-cipados italianos ávidos por crescer às custas unsdos outros e dirigidos por uma política astuciosana qual o mais pérfido era reputado o mais hábil...

    M É isso que realmente pensa? Dado

    que me fala com tamanha franqueza, posso con-fessar-lhe que penso o mesmo, e que eu partilhavatal opinião com vários daqueles que conheciam suavida e haviam lido atentamente suas obras. Sim,sim, Maquiavel, e essa confissão o nobilita, outroranunca disse o que pensava ou somente o disse sob opeso de sentimentos pessoais que perturbaram porum momento sua elevada razão.

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    M Aí é que se engana, Montesquieu, a

    exemplo daqueles que julgaram como você. Meuúnico crime foi o de dizer a verdade tanto aos povosquanto aos reis; não a verdade moral, mas sim a ver-dade política; não a verdade como devia ser, mas talcomo é, tal como sempre será. Não sou eu o fundador

    da doutrina cuja paternidade me atribuem: é o cora-ção humano.O maquiavelismo é anterior a Maquiavel.

    Moisés, Sesóstris, Salomão, Lisandro, Felipe eAlexandre da Macedônia, Agátocles, Rômulo, Tar-quínio, Júlio César, Augusto e mesmo Nero, Carlos

    Magno, Teodorico, Clóvis, Hugo Capeto, Luís XI,Gonçalves de Córdoba, César Bórgia, eis os ances-trais de minhas doutrinas. É claro que deixo de citaralguns até melhores, que vieram depois de mim ecuja lista seria longa, e a quem O príncipe nada acres-

    centou além do que já sabiam, pela prática do poder.Em sua época, quem me prestou maior homenagemdo que Frederico II? Ele me contestava, com a penaem mãos, no interesse de sua popularidade e na po-lítica ele aplicava rigorosamente minhas doutrinas.

    Por qual inexplicável viés do espírito humanome ofenderam pelo que eu havia escrito nessa obra?Seria o mesmo que censurar o sábio por pesquisar

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    as causas psíquicas que levam à queda dos corpos

    que nos ferem ao cair, ao médico por descrever asdoenças, ao químico por fazer a história dos vene-nos, ao moralista por pintar os vícios, ao historiadorpor escrever a história.

    M Oh! Maquiavel, pena que Sócra-tes não esteja aqui para desencovar o sofisma quese oculta em suas palavras! Por mais que a naturezatenha me preparado para a discussão, é meio difícilresponder-lhe: você compara ao veneno e à doença

    os males engendrados pelo espírito de dominação,de astúcia e de violência, e são tais doenças que seusescritos ensinam a comunicar aos Estados, são taisvenenos que você ensina a destilar. Quando o sábio,o médico, o moralista buscam o mal, não é para en-

    sinar a propagá-lo: é para curá-lo. Ora, é isso queseu livro não faz; pouco importa, e nem fico menosdesarmado. Desde que não erige o despotismo emprincípio, desde que o considera como um mal, pa-rece-me que assim só você o condena, e, pelo menos

    nisso, podemos estar de acordo.

    M  Nada disso, Montesquieu, porquevocê não compreendeu todo o meu pensamento. Eu

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    lhe abri o flanco para uma comparação em que era

    bem fácil triunfar. Nem a própria ironia de Sócratesme inquietaria, pois era um sofista que se utilizava,mais habilmente que outros, de um falso instru-mento, a logomania. Não é sua escola tampouco aminha: deixemos então as palavras e as compara-

    ções para atermo-nos às ideias. Eis como formulomeu sistema e duvido que você o enfraqueça, por-que ele se compõe apenas de deduções de fatos mo-rais e políticos de uma verdade eterna: no homem, oinstinto perverso é mais forte que o bom. O homem

    é mais atraído pelo mal do que pelo bem; o medo ea força têm sobre ele mais domínio que a razão. Se-quer me detenho a demonstrar tais verdades; entrevocês, só houve a trama idiota do barão d’Holbach,do qual J.-J. Rousseau foi o grão-mestre e Diderot o

    apóstolo, para poder contradizê-los. Todos os ho-mens aspiram a dominar e, caso pudesse, ninguémdeixaria de ser opressor. Todos ou quase todos es-tão prontos a sacrificar os direitos alheios a seuspróprios interesses.

    O que retém entre eles esses animais devoradoresque chamamos de homens? Na origem das socieda-des, era a força bruta e sem freios; mais tarde, foi a

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    lei, ou seja, sempre a força, regulada por formalida-

    des. Você consultou todas as fontes da história: emtodos os lugares, a força aparece antes do direito.A liberdade política é apenas uma ideia relativa;

    a necessidade de viver é o que domina tanto Estadosquanto indivíduos.

    Em certas latitudes da Europa, existem povosincapazes de moderação no exercício da liberdade.Se a liberdade prolonga-se, ela se torna excessiva:chega a guerra civil ou social e o Estado perde-se,seja fracionando-se e desmembrando-se em conse-

    quência de suas próprias convulsões, seja que suasdivisões o transformam em presas para o estran-geiro. Em condições similares, os povos preferemo despotismo à anarquia. Estariam errados? Umavez constituídos, os Estados têm dois tipos de ini-

    migos: os internos e os externos.Que armas empregarão eles contra os estrangei-

    ros? Os dois generais inimigos comunicarão recipro-camente seus planos de campanha, para mutuamen-te se colocarem em defesa? Conseguirão interditaros ataques noturnos, as armadilhas, as batalhas comnúmero desigual de tropas? Não, sem dúvida, não émesmo? E tais combatentes se apressariam em rir. E

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    essas armadilhas, esses artifícios, todas as estratégias

    indispensáveis à guerra – você não quer que sejamusadas contra os inimigos internos, contra os faccio-sos? Sem dúvida, aí usaremos menos rigor; mas, nofundo, as regras serão as mesmas. É possível condu-zir pela razão pura massas violentas que só se mobi-

    lizam por sentimentos, paixões e preconceitos?Que a direção dos negócios seja confiada a um

    autocrata, a uma oligarquia ou ao próprio povo,nenhuma guerra, nenhuma negociação, nenhumareforma interior poderá ter êxito sem recorrer às

    combinações que você parece reprovar, mas que te-ria sido obrigado a empregar se o rei da França oencarregasse do menor negócio de Estado.

    Reprovação pueril como aquela que atingiu O príncipe! Será que a política não tem nada a ver com

    a moral? Algum dia viu um único Estado conduzir-se segundo os princípios que regem a moral priva-da? Mas toda guerra seria um crime, mesmo quan-do tivesse uma causa justa. Toda conquista, tendoa glória como único móvel, seria um crime. Qual-quer tratado com o qual uma potência tivesse feitopender a balança para seu lado seria um vil engano;toda usurpação de poder soberano seria um ato que

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    mereceria a morte. Nada seria legítimo, exceto o que

    se baseasse no direito! Porém, já lhe disse há pou-co, e o reitero, mesmo diante da história contempo-rânea: todos os poderes soberanos tiveram a forçacomo origem ou, o que é a mesma coisa, a negaçãodo direito. Será que eu o proibi? Não, mas o enca-

    ro enquanto uma aplicação extremamente limitada,tanto nas relações entre nações quanto nas relaçõesentre governantes e governados.

    Aliás, a própria palavra direito não é de uma va-cuidade infinita? Onde começa, onde acaba? Quan-

    do o direito existe e quando não? Dou alguns exem-plos. Eis um Estado: a má organização dos poderespúblicos, a turbulência da democracia, a impotênciadas leis contra as facções, a desordem que reina portodo lado vão precipitá-lo na ruína. Um homem ou-

    sado eleva-se das fileiras da aristocracia ou do seiodo povo: ele rompe todos os poderes constituídos;ele usurpa as leis, ele remaneja todas as instituiçõese oferece 20 anos de paz a seu país. Teria ele o direi-to de fazer o que fez?

    Pisístrato apropria-se da cidade com um golpe eprepara o século de Péricles. Brutus viola a constitui-ção monárquica de Roma, expulsa os Tarquínios e

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    cria com golpes violentos uma República cuja gran-

    deza é o mais imponente espetáculo que se tenha ofe-recido ao universo. Mas a luta entre o patriciado e aplebe que, enquanto foi contida, garantiu a vitalidadeda República, conduz à dissolução e tudo via perecer.Surgem César e Augusto: são sempre violentadores.

    Contudo, graças a eles, o Império romano que suce-deu à República durará mais que ela e, ao sucumbir,cobrirá o mundo inteiro com seus despojos. E então,o direito estava com esses homens audaciosos? Se-gundo você, não. Entretanto, a posteridade cobriu-

    os de glórias. Na realidade, eles serviram para salvarseu país. Eles prolongaram sua existência através dosséculos. Você constata que, nos Estados, o princípiodo direito é dominado pelo do interesse e o que sededuz de tais considerações é que o bem pode emergirdo mal: que se chegue ao bem pelo mal, como se chegaà cura pelo veneno, como se salva a vida com a lâmi-na do ferro. Preocupei-me menos com o que é bome moral do que com aquilo que é útil e necessário:tomei as sociedades pelo que elas são, e deduzi suasconsequências sob a forma de regras.

    Falando em abstrato, a violência e a astúcia sãoum mal? Sim, mas será preciso usá-las bem para

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    governar os homens, enquanto os homens não fo-

    rem anjos.Tudo é bom ou ruim, conforme o uso que se fi-zer e o fruto que daí se extrair. O fim justifica osmeios: e agora, meu republicano, se me perguntassepor que darei sempre preferência ao governo abso-

    luto, eu lhe diria que, testemunha em minha pátriada inconstância e da covardia da plebe, de seu gostoinato pela servidão, de sua incapacidade para conce-ber e respeitar as condições da vida livre; para mimtrata-se de uma força cega que se dissolve cedo ou

    tarde, se não estiver nas mãos de um único homem.Respondo que o povo, deixado por sua conta, sósaberá se destruir: jamais saberá administrar, nem

     julgar, nem fazer a guerra. Eu lhe diria que a Gréciasó brilhou nos eclipses da liberdade; que, sem o des-

    potismo da aristocracia romana, e que, mais tarde,sem o despotismo dos imperadores, a deslumbrantecivilização da Europa jamais teria florescido.

    Haveria de procurar meus exemplos nos Esta-dos modernos? Eles são tão evidentes e numerososque escolheria os primeiros de que me lembro.

    Sob quais instituições e sob quais homens as re-públicas italianas brilharam? Com que soberanos

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    a Espanha, a França, a Alemanha construíram sua

    potência? Sob os Leões X, os Júlios II, os FelipesII, os Barbarruivas, os Luíses XIV, os Napoleões,todos homens com mãos terríveis e que empunha-ram bem mais os copos de suas espadas do que asconstituições de seus Estados.

    Porém, fico espantado em ver que falei tão lon-gamente para convencer o ilustre escritor que meescuta. Uma parte destas ideias não consta, se estoubem informado, de O espírito das leis? Esse discursoferiu o homem grave e frio que meditou, sem pai-

    xão, sobre os problemas da política? Os enciclopedis-tas não eram Catões: o autor das Cartas persas nun-ca foi santo, tampouco um devoto fervente. Nossaescola, que tacham de imoral, estaria mais ligada aoverdadeiro Deus que os filósofos do século XVIII.

    M Suas últimas palavras encontram-me sem cólera, Maquiavel, e escutei-o com atenção.Quer escutar-me e permitir-me em relação a você amesma liberdade?

    M Permaneço mudo, escutando em umrespeitoso silêncio aquele que foi chamado de o le- gislador das nações.

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    M Suas doutrinas não trazem nadade novo para mim, Maquiavel. E, se sinto certo em-baraço em refutá-las, é bem menos porque elas in-quietam minha razão do que por carecerem de base

    filosófica, sejam elas falsas ou verdadeiras. Compre-endo que você é, antes de tudo, um homem político,e que os fatos o tocam mais de perto que as ideias.Entretanto, haverá de convir que, quando se tratade governo, é necessário chegar a princípios. Você

    não deixa nenhum lugar, em sua política, nem paraa moral, nem para a religião, nem para o direito. Sótraz na boca duas palavras: força e astúcia. Caso seusistema se reduza a afirmar que a força desempenhaum grande papel nos negócios humanos, que a habi-lidade é uma qualidade necessária ao homem de Es-tado, você bem compreende que se trata de uma ver-dade que não precisa de comprovação. Mas, se você

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    erige a violência em princípio, a astúcia em máxima

    de governo, se não leva em conta em seus cálculosnenhuma das leis da humanidade, o código da tira-nia não passa do código da brutalidade, pois os ani-mais também são hábeis e fortes e não existe, de fato,entre eles, nenhuma lei além da força bruta. Contu-

    do, não creio que seu fatalismo chegue a tal ponto,pois você reconhece a existência do bem e do mal.

    Seu princípio é de que o bem pode advir do mal,e que é permitido fazer o mal quando disso poderesultar um bem. Assim, você não diz que é bom

    em si mesmo trair sua palavra, nem que é bom usara corrupção, a violência e o assassinato. Mas diz: po-demos trair quando for útil, matar quando necessá-rio, apoderar-nos de bens alheios quando for vanta-

     joso. Apresso-me a dizer que, em seu sistema, tais

    máximas só se aplicam aos príncipes, e quando setrata dos interesses deles ou dos Estados. Em con-sequência, o príncipe tem o direito de violar seus ju-ramentos; ele pode derramar sangue aos borbotõespara apropriar-se do poder e para mantê-lo. Podedespojar aqueles que baniu, subverter todas as leis,editar novas e tornar a violá-las; dilapidar as finan-ças, corromper, oprimir, punir e bater sem cessar.

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    M Mas não foi você próprio quem disse

    que, nos Estados despóticos, o medo era necessário,a virtude inútil, a honra perigosa; que era precisouma obediência cega, e que o príncipe estaria perdi-do caso ele parasse de erguer o braço um instante.1

    M Sim,eu disse isso: porém, ao cons-tatar, como você, as terríveis condições que per-mitem manter o poder tirânico, era uma forma decensura e não visava erigir-lhe altares. Era para des-pertar o horror em minha pátria que, sorte dela, ja-

    mais curvou a cabeça a um jugo semelhante. Duvidoque não veja que a força não passa de um acidentena marcha das sociedades constituídas e que até ospoderes mais arbitrários são obrigados a procurarsua sanção em considerações estranhas às teorias do

    uso da força. Todo opressor age não só em nome deinteresses, mas sim em nome do dever. Eles o violame o invocam ao mesmo tempo. Assim, a doutrina dointeresse sozinha é tão impotente quanto os meiosque ela emprega.

    1 O espírito das leis, capítulo IX, livro III.

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    M  Aqui tenho de interrompê-lo: ao

    atribuir um lugar ao interesse, estaria justificandotodas as necessidades políticas que não estão deacordo com o direito.

    M Está invocando a razão de Esta-

    do. Então, observe que não posso dar como basedas sociedades exatamente aquilo que as destrói.Em nome do interesse, príncipes e povos, bemcomo cidadãos, só cometerão crimes. E no inte-resse do Estado, está me dizendo! Porém, como

    eu reconheceria se, de fato, ele obtém vantagens aocometer essa ou aquela iniquidade? Não sabemosque o interesse do Estado, frequentemente, nãoé apenas o interesse do príncipe ou dos favoritosque o circundam? Não fico exposto a consequên-

    cias similares considerando o direito como basepara a existência das sociedades, porque a noçãode direito traça limites que o interesse não deveultrapassar.

    E caso me pergunte qual é o fundamento do di-reito, vou dizer-lhe que é a moral, cujos preceitosnada têm de duvidoso nem de obscuro, porque es-tão escritos em todas as religiões e igualmente im-

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    pressos em caracteres luminosos na consciência do

    homem. É desta fonte pura que devem provir todasas leis civis, políticas, econômicas, internacionais.Ex eodem iure, sive ex eodem fonte, sive ex eodem,

     principio.

    Mas é aqui que se evidencia sua inconsequência:

    você é católico, cristão, adoramos o mesmo Deus,você aceita seus mandamentos, admite a moral, ad-mite o direito nas relações dos homens entre si, eesmaga todas essas regras quando se trata do Esta-do ou do príncipe. Em suma, segundo você, a política

    não tem nada a ver com a moral. Você permite aomonarca aquilo que nega ao sujeito. Dependendo dequem pratica determinadas ações, você as glorificano forte e as condena no fraco: passam de crimes avirtudes, conforme a hierarquia de quem a executa.

    Você louva o príncipe por tê-las praticado e mandao indivíduo para a cadeia. Você não desconfia que,com tais máximas, não há sociedade que consiga so-breviver; você acredita que o indivíduo manterá pormuito tempo suas afirmações ao ver seu soberanotraí-las; que ele respeitará as leis quando souber queaquele mesmo que as outorgou, passou a violá-las, eque ele as ignora todos os dias; você acredita que ele

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    hesitará em escolher o caminho da violência, da cor-

    rupção e da fraude, quando ele vir passando por aíaqueles que deveriam conduzi-lo? Pare de enganar asi mesmo: saiba que cada usurpação do príncipe nodomínio da coisa pública autoriza uma infração se-melhante no âmbito do indivíduo, que cada perfídia

    política engendra uma perfídia social e que cada vio-lência nas altas esferas legitima violências nas ruas.Isso vale no que concerne aos cidadãos entre eles.

    No que diz respeito às relações com os gover-nantes, não necessito dizer-lhe que é o fermento

    da guerra civil introduzida pelo Estado no seio dasociedade. O silêncio do povo não passa de umatrégua dos vencidos, para quem a queixa é um cri-me. Aguarde seu despertar: você inventou a teoriada força, não tenha dúvida de que ele a memori-

    zou. Na primeira ocasião, irá romper suas cadeias;provavelmente, vai rompê-las com o pretexto maisfútil e há de retomar com a força o que a força lhearrancou.

    O máximo do despotismo é o perinde ac cada-ver dos jesuítas. Matar ou ser morto: eis sua lei; éo embrutecimento hoje, a guerra civil amanhã. Aomenos, assim é que as coisas vão acontecendo em

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    todas as latitudes da Europa. No Oriente, os povos

    cochilam em paz na vileza da servidão.Portanto, os príncipes não podem se permitir oque a moral privada não permite: esta é minha con-clusão, ela é formal. Você pensou que poderia meembaraçar, citando o exemplo de vários grandes ho-

    mens que, por meio de ações ousadas violando as leis,haviam logrado para seus países a paz, até mesmo aglória. E daí retira seu grande argumento: o bem seorigina do mal. Não me convence muito: ninguémme demonstrou que tais homens audaciosos fizeram

    mais bem do que mal. Tampouco estou convencidode que as sociedades tenham sido salvas ou sustenta-das por eles. Os meios de salvação que eles trazem nãocompensam os germes de dissolução que eles pró-prios introduzem nos Estados. Muitas vezes, alguns

    anos de anarquia são bem menos funestos para umreino do que vários anos sob despotismo silencioso.

    Você admira os grandes homens: eu só admiro asgrandes instituições. Creio que, para serem felizes, ospovos necessitam mais de homens íntegros do quede homens geniais. Todavia, posso aceitar que algu-mas das ações violentas cuja apologia você faz bene-ficiaram certos Estados. Essas ações poderiam ser

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     justificadas em sociedades antigas onde reinavam a

    escravidão e o dogma da fatalidade. Vamos encontrá-las na Idade Média e mesmo nos tempos modernos.Porém, à medida que os costumes se amenizaram,que as luzes se difundiram entre vários povos da Eu-ropa e, principalmente, à medida que os princípios da

    ciência política ficaram mais conhecidos, o direito aca-bou substituindo a força tanto nos princípios comonos fatos. Sem dúvida, os redemoinhos da liberdadesempre existirão, e muitíssimos crimes ainda serãocometidos em seu nome: porém, o fatalismo político

    não mais existe. Se, em sua época, você pôde dizerque o despotismo era um mal necessário, não pode-ria repeti-lo hoje pois, no estágio atual dos costumese das instituições políticas entre os principais po-vos da Europa, o despotismo tornou-se impossível.

    M  Impossível? Se conseguir provar-seisso, aceitaria dar um passo em direção a suas ideias.

    M Vou demonstrar-lhe isso facilmen-

    te, caso queira ouvir-me um pouco mais.

    M  Com prazer, mas preste atenção:creio que se empenha demasiado.

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    M  Uma massa espessa de sombrasdirige-se para esta praia: a região onde estamos, bre-vemente, será invadida. Passe para este lado, senãoficaremos logo separados.

    M Em suas últimas palavras, nada en-contro daquela precisão que caracterizava sua lin-guagem no início de nossa entrevista. Creio queexagera as consequências dos princípios que estão

    contidos em O espírito das leis.M Nessa obra, de propósito, evitei

    criar longas teorias. Se você a conhecesse não ape-nas pelo que lhe contaram sobre ela, veria que osdesdobramentos particulares que aqui lhe apre-sento decorrem facilmente dos princípios quepropus. Além do mais, não tenho dificuldades emconfessar que o conhecimento que adquiri dos

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    novos tempos não modificou nem completou cer-

    tas ideias minhas.M  Você afirma seriamente que o des-

    potismo é incompatível com o estado político dospovos da Europa?

    M  Não me referi a todos os povos.Caso queira, citarei aqueles cujo desenvolvimentoda ciência política conduziu a este grande resultado.

    M Quais são esses povos?

    M A Inglaterra, a França, a Bélgica,uma parte da Itália, a Prússia, a Suíça, a Confedera-ção germânica, a Holanda, a própria Áustria, ou seja,conforme verifica, quase todo o território da Euro-pa por onde se estendia outrora o mundo romano.

    M conheço um pouco o que aconteceuna Europa, desde 1527 até os dias de hoje, e lheconfesso que estou muito curioso por ouvi-lo justi-ficar sua proposição.

    M Bem, escute porque talvez eu consi-ga convencê-lo. Não são os homens, são as instituiçõesque garantem o reino da liberdade e bons costumes

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    {47}

    nos Estados. Da perfeição ou da imperfeição das ins-

    tituições depende todo o bem, mas dependerá tam-bém todo o mal que pode resultar para os homens desua reunião em sociedade. E quando exijo instituiçõesmelhores, você bem compreende que, de acordo coma boa sentença de Sólon, entendo as instituições mais

     perfeitas que os povos possam sustentar. Isso significaque não concebo para eles condições de existênciaimpossíveis e que, por isso, me afasto desses deplorá-veis reformadores que pretendem construir as socie-dades sobre hipóteses racionais sem levar em conta

    o clima, hábitos, costumes e, inclusive, preconceitos.Na origem das nações, as instituições são o que

    conseguem ser. A Antiguidade mostrou-nos civili-zações maravilhosas, Estados nos quais as condiçõesde governo livre eram admiravelmente concebidas.

    Os povos da Era Cristã tiveram mais dificuldadepara colocar suas constituições em harmonia como movimento da vida política; mas aproveitaram osensinamentos da Antiguidade e, com civilizaçõesinfinitamente mais complicadas, conseguiram che-gar a resultados mais perfeitos.

    Uma das primeiras causas da anarquia, comotambém do despotismo, foi a ignorância teórica e

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    homens de ferro, gênios audaciosos. E esse mun-

    do, pleno de belezas sombrias em sua desordem,pareceu-lhe como pareceria a um artista cuja ima-ginação se impressionasse mais do que seu sentidomoral. Em minha opinião, isso é o que explica O príncipe. E você não teria estado tão longe da verda-

    de quando, há pouco, com uma finta italiana, parame sondar, se divertira em atribuir-me um capri-cho de diplomata. Porém, depois de você, o mundomovimentou-se: hoje, os povos olham-se enquantoárbitros de seus destinos. De fato e de direito, eles

    destruíram os privilégios, destruíram a aristocracia.Eles engendraram um princípio que seria muito di-ferente para você, descendendo do marquês Hugo:eles estabeleceram o princípio da legalidade. Elesnão veem nesses que os governam senão mandatá-

    rios. Eles realizaram o princípio da legalidade pormeio de leis civis que ninguém lhes poderia arran-car. Eles consideram tais leis como seu sangue, poiselas de fato custaram muito sangue a seus ancestrais.

    Há pouco lhe falava de guerras: elas continuam avicejar, estou ciente. Contudo, o primeiro progressoé que elas não dão mais aos vencedores a proprieda-de dos Estados vencidos. Um direito que você mal

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    conheceu, o direito internacional, hoje regula as re-

    lações das nações entre si, como o direito civil regeas relações dos indivíduos em cada nação.Após ter garantido seus direitos privados por leis

    civis, seus direitos públicos por tratados, os povosquiseram acertar as diferenças com seus príncipes, e

    garantiram seus direitos políticos por meio de cons-tituições. Durante muito tempo, entregues à arbi-trariedade pela confusão dos poderes, que permitiaaos príncipes fazer leis tirânicas para aplicá-las tirani-camente, eles separaram os três poderes, legislativo,

    executivo e judiciário, por meio de linhas constitu-cionais que não podem ser ultrapassadas sem quesoe o alarme para todo o corpo político.

    Por meio desta única reforma, que é um fatoimenso, criou-se o direito público interno, e desta-

    cam-se os princípios superiores que o constituem.A pessoa do príncipe deixa de ser confundida coma do Estado; a soberania surge como tendo sua fon-te, parcialmente, no próprio seio da nação, que faz adistribuição de poderes entre o príncipe e os corpospolíticos independentes uns dos outros. De jeitonenhum pretendo fazer, perante o grande homemde Estado que me escuta, uma teoria ampliada do

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    gislativa, não tardaria em abusar de sua potência

    e fazer que o Estado corresse grandes perigos. Oregime que se constituiu definitivamente, transaçãobem-sucedida entre a aristocracia, a democracia ea instituição monárquica, participa em simultâneodessas três formas de governo, por meio de uma

    ponderação de poderes que pareceria ser a obra-prima do espírito humano. A pessoa do soberanopermanece sagrada, inviolável. Mas conserva umaquantidade de atribuições capitais que, para o bemdo Estado, devem permanecer em seu poder, dado

    que seu papel essencial é o de procurador da execuçãodas leis. Não mais dispondo da plenitude dos po-deres, sua responsabilidade apaga-se e passa para acabeça dos ministros que ele associa a seu governo.A lei, que só ele pode propor ou associar-se com

    outro corpo do Estado para fazê-lo, é preparadapor um conselho de homens veteranos no trato dacoisa pública, submetido a uma câmara alta, here-ditária ou vitalícia, que examina se suas disposiçõesnão têm nada contrário à constituição, votada porum corpo legislativo emanado do sufrágio da na-ção, aplicada por uma magistratura independente.Se a lei tiver defeitos, ela é rejeitada ou emendada

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    pelo corpo legislativo: a câmara alta opõe-se a sua

    adoção no caso de ela ser contrária aos princípiosem que se baseia a constituição.O triunfo deste sistema tão profundamente con-

    cebido e cujo mecanismo pode ser combinado de milmaneiras, segundo o temperamento dos povos aos

    quais se aplica, foi conciliar a ordem com a liberdade,a estabilidade com o movimento, fazer participar atotalidade dos cidadãos na vida pública, pelo desloca-mento alternativo das maiorias, que influem nas câ-maras a partir da nomeação de ministros dirigentes.

    As relações entre o príncipe e os súditos repousa,conforme se vê, num vasto sistema de garantias cujasbases inabaláveis encontram-se na ordem civil. Nin-guém pode ser atingido em sua pessoa ou em seusbens por um ato de autoridade administrativa. A li-

    berdade individual está sob a proteção dos magistra-dos. Em matéria criminal, os acusados são julgadospor seus pares: acima de todas as jurisdições, existeuma jurisdição suprema encarregada de cassar as de-tenções que violem as leis. Os próprios cidadãos sãoarmados, para a defesa de seus direitos, pela institui-ção de milícias burguesas que ajudam a polícia dascidades. O indivíduo mais simples pode, por meio

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    de petição, fazer chegar sua queixa às assembleias

    soberanas que representam a nação. As prefeiturassão administradas por oficiais públicos eleitos. Todoano, grandes assembleias provinciais, igualmentesaídas de sufrágio, reúnem-se para exprimir as ne-cessidades e desejos das populações circundantes.

    Ó Maquiavel, eis a imagem enfraquecida de al-gumas das instituições que hoje florescem nos Es-tados modernos, em especial, em minha bela pátria.Porém, como a publicidade é a essência dos paíseslivres, tais instituições não poderiam viver muito

    caso não funcionassem à luz do dia. Uma potênciaainda desconhecida em sua época, e que acaba denascer, veio dar a eles o derradeiro sopro de vida.Trata-se da imprensa, proscrita durante muito tem-po, ainda desmerecida pela ignorância, mas a quem

    serviria o elogio de Adam Smith, ao falar do cré-dito: é uma via pública. Com efeito, por meio delase manifesta todo o movimento das ideias entre ospovos modernos. A imprensa funciona no Estadocom funções policiais: exprime necessidades, tra-duz queixas, denuncia abusos e atos arbitrários.Faz apelos à moralidade com todos os depositáriosde poder: só isso bastaria para defrontá-los com a

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    opinião pública. Ó Maquiavel, em sociedades assim

    reguladas, que lugar você poderia ocupar perante aambição dos príncipes e as tiranias? Não ignoro asconvulsões dolorosas que fizeram triunfar tais posi-ções. Na França, a liberdade afogada no sangue du-rante o período revolucionário só foi superada com

    a Restauração. Nesta, outras comoções tiveram lu-gar. Já então, todos os príncipes, todas as institui-ções de que lhe falei tinham adotado os costumes daFrança e dos povos que gravitavam na esfera de suainfluência. Terminei, Maquiavel. Os Estados, como

    os soberanos, hoje só se governam segundo regrasde justiça. O ministro moderno que se inspirasseem suas lições não ficaria um ano sequer no poder.O monarca que pusesse em prática as máximas deO príncipe levantaria contra si a reprovação de seus

    governados: seria banido da Europa.

    M Acredita nisso?

    M Perdoa minha franqueza?

    M Por que não?

    M Posso deduzir que suas ideias te-nham mudado um pouco?

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    M Proponho-me a demolir, uma a uma,

    todas as suas belas afirmações e demonstrar-lhe quesó minhas doutrinas têm importância hoje, apesardas ideias novas, apesar dos novos costumes, apesardos pretensos princípios de direito público, malgra-do todas as instituições que acabou de citar. Antes,

    permita que lhe faça uma pergunta: até onde vocêchegou na história contemporânea?

    M As noções que juntei sobre os vá-rios Estados da Europa vão até 1847. Os acasos de

    minha marcha errante através desses espaços infini-tos e a multidão confusa de almas que aí se amon-toam não me permitiram encontrar nenhuma queme informasse além da época que acabo de referir.Desde que desci ao estágio das trevas, passei quase

    meio século entre os povos do velho mundo, e sódepois de um quarto de século tornei a encontrarpovos modernos. Convém dizer que a maior partevinha dos rincões mais remotos do universo. Nemsei exatamente em que ano nos encontramos.

    M Quer dizer, Montesquieu, que aquios últimos são os primeiros! O homem de Estadoda Idade Média, o político dos tempos bárbaros

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    acaba sabendo mais que o filósofo do século XVIII

    sobre a história dos tempos modernos. Os povosencontram-se no ano da graça de 1864.

    M Rogo-lhe, Maquiavel, faça-me sa-ber logo o que aconteceu na Europa desde o anode 1847.

    M Se me permite, não antes de desfru-tar o prazer de derrotá-lo no cerne de suas teorias.

    M Como preferir: mas fique sabendo

    que não tenho nenhuma inquietude em relação aisso. São necessários séculos para mudar os princí-pios e a forma de governo sob os quais os povos sehabituaram a viver. Nenhum ensinamento políticonovo poderia resultar dos 15 anos que acabam de

    passar. Em todo caso, se for assim, não seriam asdoutrinas de Maquiavel que acabariam triunfando.

    M É o que você pensa: agora, escute.

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    M Ao ouvir suas teorias sobre a divisãodos poderes e sobre os benefícios que lhe devem ospovos da Europa, eu não podia deixar de admirar,Montesquieu, até que ponto a ilusão dos sistemas

    chega a apoderar-se dos maiores espíritos.Seduzido pelas instituições da Inglaterra, você

    acreditou poder fazer do regime constitucional apanaceia universal dos Estados. Mas não considerouo movimento irresistível que arranca as sociedades

    a suas tradições da véspera. Não se passarão doisséculos antes que essa forma de governo, que vocêadmira, na Europa, se torne apenas uma lembrançahistórica, algo superado e caduco como a regra dastrês unidades de Aristóteles.

    Em primeiro lugar, permita que examine seumecanismo político em si mesmo: você equilibra ostrês poderes e encerra cada um em suas atribuições.

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    Este fará as leis, o outro as aplicará e um terceiro

    escutá-las-á: o príncipe reinará e os ministros go-vernarão. Coisa maravilhosa essa balança consti-tucional! Você previu tudo, todas as regras, excetoo movimento: o triunfo de tal sistema não seria aação. Seria a imobilidade, caso o mecanismo funcio-

    nasse com precisão. Porém, na realidade, as coisasnão acontecem assim. Na primeira ocasião, haverámovimento pela ruptura de uma das alçadas quedelimitou tão cuidadosamente. Você acredita queos poderes vão ficar muito tempo nos limites cons-

    titucionais que lhes designou, e que eles não irãosuperá-los? Qual assembleia legislativa não preten-derá a soberania? Qual magistratura não se dobraráa pressões? Sobretudo, qual príncipe, soberano deum Estado ou chefe de uma República, há de acei-

    tar o papel passivo a que foi condenado? Quem, emsuas reflexões secretas, não pensará em derrubar ospoderes rivais que embaraçam sua ação? Na realida-de, você pôs em litígio todas as forças antagônicas,suscitou todas as operações, deu armas a todos ospartidos. Entregou o poder ao assalto de todas asambições e fez do Estado uma arena em que se di-laceram as facções. Em pouco tempo, a desordem

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    vai imperar: retóricos incansáveis vão transformar

    as assembleias deliberativas em duelos oratórios. Jornalistas audaciosos e panfletários desenfreadosvão atacar todos os dias a pessoa do soberano, vãodesacreditar o governo, os ministros, os funcioná-rios do poder...

    M  Faz tempo que ouço tais repri-mendas aos governos livres. Para mim, elas não têmvalor: os abusos não condenam as instituições. Co-nheço muitos Estados que vivem em paz e há mui-

    to tempo respeitando tais leis: lamento aqueles quenão podem viver assim.

    M Calma! Em seus cálculos, só tomouem consideração minorias sociais. Existem popula-ções numerosas acorrentadas ao trabalho pela po-

    breza, como sucedeu antigamente com a escravidão.Pergunto-lhe, que importam suas ficções para a fe-licidade deles? Na verdade, seu grande movimentopolítico nada logrou além do triunfo de uma mino-ria privilegiada pelo acaso conforme ocorrera com aantiga nobreza quanto ao nascimento. Que importaao operário curvado sobre seu trabalho, acabrunha-do pelo peso de seu destino, que alguns oradores

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    tenham o direito de falar, que alguns jornalistas te-

    nham o direito de escrever? Você criou direitos que jamais passarão de virtualidades para o povo, dadoque ele não saberia usá-los. Tais direitos, cujo des-frute ideal a lei oferece e cuja necessidade lhe recusao exercício real, não passam de ironia amarga em

    seu destino. Respondo-lhe que, algum dia, ele serádominado pelo ódio e os destruirá com as própriasmãos para entregar-se ao despotismo.

    M Quanto desprezo Maquiavel tem

    pela humanidade, e que ideia faz da vilania dos povosmodernos? Deus todo-poderoso, eu não acreditariaque você os concebe tão vis! Maquiavel, diga o quedisser, você ignora os princípios e as condições de exis-tência da civilização atual. Hoje, assim como existe a

    lei divina, o trabalho é a lei comum. E, longe de ser umsigno de servidão entre os homens, ele se constitui nolugar de associação, no instrumento de sua igualdade.

    Os direitos políticos não têm nada de ilusóriopara o povo nos Estados em que a lei não reconheceprivilégios e onde todas as carreiras estão abertas àsatividades intelectuais. Sem dúvida, e em nenhumasociedade poderia ser diferente, a desigualdade das

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    inteligências e das fortunas provoca desigualdades

    inevitáveis no exercício dos direitos individuais. Po-rém, não basta que esses direitos existam para que oobjetivo de uma filosofia esclarecida seja alcançado,para que a emancipação dos homens seja asseguradana medida em que ela pode ser? Mesmo para aqueles

    nascidos nas condições mais humildes, não significanada ter o sentimento de sua independência e a dig-nidade dos cidadãos? Mas este é apenas um dos la-dos da questão, pois se a grandeza moral dos povosdepende da liberdade, eles não se encontram menos

    estritamente ligados por seus interesses materiais.

    M Eis onde eu queria chegar. A escolaà qual você pertence elaborou princípios cujas con-sequências ela parece não captar: você acredita que

    eles conduzam ao reino da razão. Gostaria de mos-trar-lhe que conduzem ao reino da força. Seu sis-tema político, considerado em sua pureza original,consiste em dar uma parcela de ação mais ou menosigual aos diversos grupos de força que compõem associedades, consiste em equilibrar as atividades so-ciais: você não deseja que o elemento aristocráticoprevaleça sobre o democrático. Entretanto, o caráter

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    de suas instituições é dar mais força à aristocracia

    do que ao povo, mais força ao príncipe do que à aris-tocracia, proporcionando assim poderes à capacida-de política daqueles que devem exercê-los.

    M Tem razão.

    M Você faz com que diferentes classesda sociedade participem das funções públicas se-gundo seu grau de aptidão e seus conhecimentos.Emancipa a burguesia pelo voto, controla o povopor meio da taxa para eleger ou ser eleito, as liber-dades populares criam a potência da opinião, a aris-tocracia oferece o prestígio das grandes maneiras, otrono lança sobre a nação o estrépito da instânciasuprema. Você conserva todas as tradições, todas as

    grandes lembranças, o culto de todas as coisas gran-diosas. Na superfície, o que se vê é uma sociedademonárquica, mas tudo é democrático no fundo,porque, na realidade, não existem barreiras entre asclasses, e o trabalho é o instrumento de todas as for-

    tunas. Não é mais ou menos assim?

    M Sim, Maquiavel: e você pelo menosbusca compreender as opiniões que não partilha.

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    M Bem, todas essas coisas bonitas passa-

    ram ou vão passar feito um sonho. Porque você temum novo princípio segundo o qual todas as institui-ções se decompõem com uma rapidez fulminante.

    M Qual seria esse princípio?

    M É o da soberania popular. Havemosde encontrar, não duvide, a quadratura do círculoantes de chegar a conciliar o equilíbrio dos poderescom a existência de um princípio semelhante entreas nações onde ele é admitido. O povo, por uma con-

    sequência inevitável, algum dia, apoderar-se-á de to-dos os poderes que foram reconhecidos como pro-venientes dele. Será capaz de mantê-los? Não. Apósalguns dias de loucura, por cansaço, vai atirá-los aoprimeiro soldado aventureiro que encontrar pelo

    caminho. Já viu em 1793 em seu país como os cor-tadores de cabeças franceses trataram a monarquiarepresentativa: o povo soberano afirmou-se pelo su-plício de seu rei, depois negligenciou seus direitos.Entregou-se a Robespierre, a Barras, a Bonaparte.

    Você é um grande pensador, mas não conhece ainesgotável covardia dos povos: não falo daquelesde minha época, mas da sua. Rastejantes perante

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    a força, sem piedade com a fraqueza, implacáveis

    com os erros, indulgentes com os crimes, incapazesde suportar as contrariedades de um regime livre,e pacientes até o martírio diante das violências dodespotismo audacioso, quebrando os tronos nosmomentos de cólera, e aceitando patrões a quem

    perdoa excessos, sendo que o menor destes bastariapara decapitar vinte reis constitucionais.

    Assim procure a justiça: procure o direito, a esta-bilidade, a ordem, o respeito pelas formas tão com-plicadas de seu mecanismo parlamentar com mas-

    sas violentas, indisciplinadas, incultas, às quais vocêdiz: Vocês são o direito, os senhores, são os árbitrosdo Estado! Oh! Tenho a certeza de que o prudenteMontesquieu, o político circunspecto, que elaboravaprincípios e omitia suas consequências, não escre-

    veu em O espírito das leis o dogma da soberania po-pular. Porém, conforme afirmava há pouco, as con-sequências decorrem por si mesmas dos princípiosenunciados. A afinidade de suas doutrinas com asdo Contrato social faz-se sentir plenamente. E mais:desde que os revolucionários franceses, jurando inverba magistri, escreveram que “uma constituição sópode ser a obra livre de uma convenção entre as-

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    sociados”, o governo monarquista e parlamentar foi

    condenado à morte em seu país. Em vão tentou-serestaurar os princípios; em vão seu rei, Luís XVIII,retornando à França, tentou remontar os poderes asua fonte, promulgando as declarações de 89 comoprocedentes de outorga real; essa piedosa ficção da

    monarquia aristocrática estava em contradição fla-grante demais com o passado: ela devia desman-char-se com o barulho da revolução de 1830, comoo governo de 1830, por sua vez...

    M Conclua.

    M Não vamos antecipar-nos. O que vocêsabe do passado, tanto quanto eu, autoriza-me, apartir de agora, a dizer que o princípio da soberaniapopular destrói qualquer estabilidade, ele consagra

    indefinidamente o direito das revoluções. Ele põeas sociedades em guerra aberta contra todos os po-deres humanos e mesmo contra Deus. Ele é a pró-pria encarnação da força. Ele faz do povo uma bes-ta feroz que adormece quando está encharcada desangue e que é acorrentada. Eis a marcha invariávelque seguem todas as sociedades cujo movimento éregulado por este princípio: a soberania popular en-

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    gendra a demagogia, a demagogia engendra a anar-

    quia, a anarquia conduz ao despotismo. Para você, odespotismo é a barbárie. Bem, você vê que os povosretornam à barbárie pelo caminho da civilização.

    Mas isso não é tudo: afirmo que, sob outrospontos de vista, o despotismo ainda é a única for-

    ma de governo efetivamente apropriada ao estadosocial dos povos modernos. Você me dizia que seusinteresses materiais os vinculavam à liberdade e,aqui, você entra muito bem em meu jogo. Em geral,quais são os Estados que precisam da liberdade?

    São aqueles que vivem para os grandes sentimen-tos, para as grandes paixões, para o heroísmo, paraa fé, até para a honra, da mesma forma pela qualse exprimia em sua época ao falar da monarquiafrancesa. O estoicismo pode tornar um povo livre:

    o cristianismo, em certas condições, poderia ter omesmo privilégio. Compreendo as necessidades daliberdade em Atenas, em Roma, entre as naçõesque só respiravam pela glória das armas, para quema guerra satisfazia todas as expansões, que tinhamnecessidade de todas as energias do patriotismo, detodos os entusiasmos cívicos para triunfar contraseus inimigos.

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    As liberdades públicas eram o patrimônio natu-

    ral dos Estados em que as funções servis e indus-triais eram delegadas aos escravos, onde o homemera inútil se não fosse cidadão. Concebo ainda aliberdade em determinadas épocas da Era Cristã,e nomeadamente nos pequenos Estados ligados

    entre si por sistemas de confederação análogos aosdas Repúblicas helênicas, como na Itália e na Ale-manha. Aí encontro uma parte das causas naturaisque tornavam a liberdade necessária. Ela teria sidoquase inofensiva na época em que o princípio da

    autoridade não era questionado, quando a religiãoconstituía um império absoluto sobre os espíritos,quando o povo tutelado pelas corporações marcha-va docilmente conduzido por seus pastores. Casosua emancipação política tivesse então sido levada

    adiante, teria acontecido sem perigos, pois ela teriaocorrido conforme os princípios nos quais se baseiaa existência de todas as sociedades. Porém, em seusgrandes Estados, que só vivem para a indústria, comsuas populações sem Deus e sem fé, numa época emque os povos não mais se satisfazem com a guerra, ecujas atividades violentas voltam-se necessariamen-te para dentro, a liberdade, com os princípios que

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    lhe servem de fundamento, só pode ser uma causa

    de dissolução e de ruína. Tenho de acrescentar queela é tão inútil para as necessidades morais dos indi-víduos quanto para os Estados.

    Do cansaço das ideias e do choque das revolu-ções surgiram sociedades frias e descrentes que che-

    garam à indiferença tanto em política como em re-ligião, que não dispõem de nenhum estímulo alémdo desfrute material, que vivem em função de seusinteresses, que só cultuam o ouro, cujos costumesmercantis disputam com os dos judeus tomados

    por modelos. Você acredita que seja por amor à li-berdade que as classes subalternas tentam assaltaro poder? É por ódio aos proprietários. No fundo, épara arrancar-lhes suas riquezas, instrumento dosprazeres que elas invejam.

    Os donos do poder imploram um braço enérgico,um poder forte. Eles só exigem uma coisa: protegero Estado contra as agitações que sua constituiçãofrágil não poderia resistir, dar-lhes a segurança ne-cessária para que possam fazer seus negócios e de-les desfrutar. Que formas de governo você preten-de aplicar a essas sociedades que a corrupção tudocorrói, onde as fortunas só se adquirem pela fraude,

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    onde a moral só é possível com leis repressivas, onde

    o sentimento da pátria foi extinto não sei por qualcosmopolitismo universal?Não vejo salvação para tais sociedades, verdadei-

    ros colossos com pés de barro, exceto pela institui-ção de uma centralização exacerbada, que põe toda

    a força pública ao dispor dos que governam. Só vejosaída numa administração hierárquica semelhanteà do Império romano, que regule mecanicamentetodos os movimentos dos indivíduos, em um vastosistema de legislação que retome todas as liberda-

    des que foram imprudentemente distribuídas. En-fim, um poder que esmague imediatamente tudo oque lhe resistir, todo protesto. O cesarismo do Bai-xo Império parece-me realizar bastante bem o quedesejo para o bem-estar das sociedades modernas.

    Graças a esses aparelhos que já funcionam, é o queme dizem, em vários países da Europa, elas podemviver em paz, como na China, no Japão e na Índia.Não podemos permitir que um preconceito vulgarnos faça desprezar essas civilizações orientais, cujasinstituições aprendemos a apreciar a cada dia. Porexemplo, o povo chinês é muito trabalhador e muitobem governado.

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    M  Hesito na resposta, Maquiavel,porque em suas últimas palavras existe algo de zom-baria satânica, que me faz suspeitar que seus discur-sos não estejam totalmente sincronizados com seus

    pensamentos. Sim, você domina essa eloquência fa-tal que apaga as marcas da verdade e é igualmente ogênio sombrio cujo nome ainda apavora as geraçõesatuais. Contudo, de bom grado reconheço que, pe-rante um espírito tão poderoso, perderíamos com

    seu silêncio. Quero escutá-lo até o fim e até mesmolhe responder embora, desde já, tenha pouca espe-rança de convencê-lo. Acaba de pintar um quadrosinistro da sociedade moderna: não posso garantirque seja fiel, incompleto sim, porque em tudo existeo bem e o mal, e você só apontou o mal. Aliás, nãome permitiu verificar até que ponto está certo, poisnão sei de quais povos nem de que Estados está fa-

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    lando, quando esboçou esse quadro terrível dos cos-

    tumes contemporâneos.M Admitamos que tomei como exem-

    plo a mais avançada nação da Europa quanto à civi-lização e a quem, digo logo, poderia ser aplicado oretrato que acabo de fazer...

    M Então é da França que está falando?

    M Certamente.

    M Você tem razão, porque a França

    foi onde menos penetraram as doutrinas sombriasdo materialismo. Ela permanece o teatro das gran-des ideias e das grandes paixões cuja fonte vocêacredita estar destruída, e dela surgiram esses gran-des princípios de direito público aos quais você não

    dá espaço no governo dos Estados.

    M Você pode acrescentar que é o campode experiências consagrado das teorias políticas.

    M Não conheço nenhuma experiên-cia que tenha servido, de maneira durável, para o es-tabelecimento do despotismo, na França ou alhures,entre as nações contemporâneas. E é isso que, antes

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    de mais nada, faz-me considerar suas teorias sobre a

    necessidade do poder absoluto como pouco adequa-das à realidade das coisas. Até hoje, não conheço se-não dois Estados, na Europa, completamente livresde instituições liberais, que tenham modificado, emtodas as suas partes, o elemento monárquico puro: a

    Turquia e a Rússia. E ainda: observe de perto os mo-vimentos internos que atuam no interior desta últi-ma potência, talvez aí encontre os sintomas de umatransformação próxima. É verdade que você anun-cia, para um futuro mais ou menos próximo, que

    os povos, ameaçados por uma dissolução inevitável,voltarão ao despotismo como se fosse a salvação. E oque eles se tornarão sob a forma de grandes monar-quias absolutas, análogas às da Ásia, não passa deuma previsão: em quanto tempo isso vai acontecer?

    M Em menos de um século.

    M  Você é um adivinho: um séculoé sempre um século. Mas deixe que lhe diga agoraporque sua previsão não se cumprirá. Hoje, as so-ciedades modernas não devem ser encaradas comolhos do passado. Os costumes, os comportamen-tos, as necessidades, tudo mudou. Portanto, não se

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    pode confiar sem reserva nas induções da analogia

    histórica quando se trata de julgar seus destinos.Sobretudo convém evitar que se considerem comoleis universais fatos que não passam de acidentes, etransformar em regras gerais as necessidades de taissituações ou de tal época. O fato de que o despo-

    tismo tenha surgido várias vezes na história, comoconsequência de perturbações sociais: segue-se queele deve ser tomado como regra de governo? Porter servido de transição no passado, deveria eu con-cluir que ele é apto para resolver as crises das épocas

    modernas? Não é racional dizer que outros malesexigem outros remédios, outros problemas exigemoutras soluções e outros costumes sociais, outros cos-tumes políticos? Uma lei invariável das sociedades éque elas tendem ao aperfeiçoamento, ao progresso;

    por assim dizer, a sabedoria eterna condenou-as aisso: ela rechaçou o movimento em sentido con-trário. Tal progresso precisa ser alcançado por elas.

    M Ou então, morrem.

    M Não vamos assumir posições ex-tremas. As sociedades não morrem jamais quandoestão prestes a nascer. Quando se constituíram da

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    maneira que lhes convinha, suas instituições podem

    alterar-se, entrar em decadência e perecer. Porémelas duraram vários séculos. Foi assim que os povosda Europa passaram por transformações sucessivas,do sistema feudal ao sistema monárquico, e deste aoregime constitucional. Este desenvolvimento pro-

    gressivo, cuja unidade é tão respeitável, nada tem defortuito: surgiu como consequência necessária domovimento que acontece nas ideias antes de tradu-zir-se nos fatos.

    As sociedades não podem ter outras formas de

    governo exceto aquelas que estão em consonânciacom seus princípios, e é contra essa lei absoluta quevocê se levanta, ao considerar o despotismo compa-tível com a civilização moderna. Dado que os povosconsideraram a soberania como emanação pura da

    vontade divina, submeteram-se sem reclamar aopoder absoluto. Dado que as instituições foram in-suficientes para garantir sua marcha, eles aceitaramo arbitrário. Porém, desde que seus direitos foramreconhecidos e solenemente afirmados, desde o diaem que as instituições mais fecundas puderam re-solver por meio da liberdade todas as funções docorpo social, a política em benefício dos príncipes

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    foi derrubada. O poder tornou-se uma espécie de

    dependência do domínio público: a arte do governotornou-se uma questão administrativa. Hoje, as coi-sas estão ordenadas de tal modo, nos Estados, queo poder dirigente só se manifesta enquanto motordas forças organizadas.

    Certamente, se você supõe tais sociedades infec-tadas por todas as corrupções, por todos os víciosde que me falava há pouco, elas caminharão rápidopara a decomposição: mas como não vê que o argu-mento que usa é uma verdadeira petição de princí-

    pio? Desde quando a liberdade submete as almas edegrada seus caracteres? Não são estas as lições dahistória: porque ela confirma, em todos os lugares,com caracteres de fogo, que os maiores povos foramos mais livres. Se os costumes aviltaram-se, como

    você diz, em alguma parte da Europa que ignoro, éporque o despotismo passou por ali, é porque a li-berdade ali estaria extinta. Assim é preciso mantê-laonde ela está e restabelecê-la onde já não estiver.

    Neste momento, não se esqueça, estamos no ter-reno dos princípios. E, se os seus diferem dos meus,peço que sejam invariáveis. Ora, não sei mais em queterreno piso quando o escuto elogiar a liberdade na

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    Antiguidade, e proscrevê-la nos tempos modernos,

    rechaçá-la ou admiti-la conforme os tempos e lugares.Mesmo supondo que tais distinções sejam jus-tificadas, não impedem que o princípio permaneçaintacto, e é unicamente ao princípio que me atenho.

    M Como um piloto hábil, vejo que evitaos escolhos, permanecendo em alto-mar. As genera-lidades são um grande apoio na discussão: mas con-fesso que estou muito impaciente para saber comoo grave Montesquieu se sairá com o princípio da

    soberania popular. Até agora, não consegui saber seela fazia parte de seu sistema. Você o admite ou não?

    M Não posso responder a uma ques-tão colocada nesses termos.

    M Tinha certeza que sua própria razãoseria perturbada por esse fantasma.

    M Você se engana, Maquiavel. Con-tudo, antes de lhe responder, tenho de lembrar-lheem que se constituíram meus escritos e o caráter damissão que puderam desempenhar. Você tornoumeu nome solidário com às iniquidades da Revo-lução Francesa: é um julgamento bem severo para o

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    filósofo que caminhou com passos tão prudentes na

    busca da verdade. Nascido em um século de eferves-cência intelectual, às vésperas de uma revolução quedevia varrer de minha pátria as antigas formas dogoverno monárquico, posso dizer que nenhuma dasconsequências do movimento que se fazia no âm-

    bito das ideias escapou desde então a meus olhos.Não posso desconhecer que o sistema da divisão depoderes acabaria por deslocar, necessariamente, asede da soberania.

    Este princípio, malconhecido, maldefinido, so-

    bretudo, mal-aplicado, podia engendrar equívocosterríveis e sacudir a sociedade francesa de alto a bai-xo. O sentimento desses perigos tornou-se a regrade minhas obras. Assim, ao passo que inovadoresimprudentes, atacando imediatamente a fonte do

    poder, preparavam sem saber uma catástrofe formi-dável, eu me dedicava unicamente a estudar as for-mas de governos livres, a extrair os princípios pro-priamente ditos que presidem seu estabelecimento.Homem de Estado mais que filósofo, jurisconsultomais que teólogo, legislador prático, se a ousadiade tal termo me é permitida, antes que teórico, euacreditava fazer mais por meu país ensinando-lhe

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    a governar-se do que pondo em questão o próprio

    princípio da autoridade. Entretanto, não agrada aDeus que eu tente obter um mérito mais puro àscustas daqueles que, como eu, procuraram de boa-fé a verdade! Todos cometemos erros, mas que cadaum assuma a responsabilidade por suas obras.

    Sim, Maquiavel, e é uma concessão que não hesi-to em fazer-lhe: há pouco tinha razão quando diziaque foi necessário que a emancipação do povo fran-cês ocorresse conforme princípios superiores, quepresidem a existência das sociedades humanas, e

    esta reserva deixa-lhe prever o julgamento que apre-sentarei sobre o princípio da soberania popular.

     Primeiro, não admito uma designação que pare-ce excluir da soberania as classes mais esclarecidasda sociedade. Esta distinção é fundamental, dado

    que ela transformará um Estado em democraciapura ou em Estado representativo. Se a soberaniareside em algum lugar, ela reside na nação inteira:assim, eu invocaria primeiro a soberania nacional.Mas a ideia de tal soberania não é uma verdade ab-soluta, ela é apenas relativa. A soberania do poderhumano corresponde a uma ideia profundamentesubversiva, a soberania do direito humano. É esta

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    doutrina materialista e ateia que precipitou a Revo-

    lução Francesa no sangue, e lhe infligiu o opróbriodo despotismo após o delírio da independência.Não é correto dizer que as nações são donas abso-lutas de seus destinos, pois o mestre soberano é opróprio Deus, e elas nunca poderão ficar alheias ao

    poder dele. Se elas possuíssem a soberania absoluta,elas poderiam tudo, mesmo contra a justiça eterna,mesmo contra Deus: quem ousaria ir tão longe?Porém, o princípio do direito divino, com a signifi-cação que comumente se encontra ligada a ele, não

    é um princípio menos funesto, pois conduz os po-vos ao obscurantismo, ao arbitrário, ao nada; ele re-constitui logicamente o direito de castas, ele faz dosovos um rebanho de escravos, como na Índia, pelamão dos sacerdotes, e tremendo sob a vara do pa-

    trão. Como poderia ser diferente? Se o soberano é oemissário de Deus, se ele é o próprio representanteda divindade na terra, ele tem todo o poder sobre ascriaturas humanas submetidas a seu império, e estepoder só terá freios com as regras gerais de equida-de, das quais será sempre fácil livrar-se.

    É no âmbito que separa estas duas opiniões ex-tremas, que se travaram as furiosas batalhas do es-

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    M Eu gostaria de chegar a consequên-cias precisas. Até onde a mão de Deus se estendesobre a humanidade? Quem faz os soberanos?

    M São os povos.

    M Está escrito: Per me reges regnant. Oque significa ao pé da letra: Deus faz os reis.

    M Eis uma tradução para o uso do

    príncipe, Maquiavel. E, neste século, ela lhe foi to-mada por um de seus mais ilustres partidários,1 mas não é a da santa Escritura. Deus instituiu asoberania, ele não instituiu os soberanos. Sua mãotodo-poderosa parou ali, porque é onde começa o

    livre-arbítrio humano. Os reis governam segundo

    1 É evidente que Maquiavel aqui se refere a Joseph de Maistre, cujo

    nome se encontra mais adiante (nota da edição francesa).

    S

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    meus mandamentos, eles devem reinar segundo

    minha lei, este é o sentido do livro divino. Casofosse diferente, seria preciso dizer que os príncipes,bons e maus, são garantidos pela Providência. Se-ria necessário inclinar-se tanto perante Nero quan-to diante de Tito, tanto perante Calígula quanto

    diante de Vespasiano. Não, Deus não quis que asdominações mais sacrílegas pudessem invocar suaproteção, que os tiranos mais vis possam reivindi-car sua investidura. Aos povos e aos reis ele deixoua responsabilidade dos próprios atos.

    M Duvido muito que isso seja ortodo-xo. Seja como for, em sua opinião, são os povos quedispõem da autoridade soberana?

    M  Ao contestar isso, fique atento

    para não se contrapor a uma verdade de puro sensocomum. Não se trata de uma novidade na história.Em tempos antigos, na Idade Média, onde quer quea dominação tenha se estabelecido fora da invasãoou da conquista, o poder soberano nasceu pela von-tade livre dos povos, sob a forma original da eleição.Para citar apenas um exemplo, foi assim que, naFrança, o chefe da dinastia carolíngia sucedeu aos

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    descendentes de Clóvis, e a dinastia de Hugo Cape-

    to à de Carlos Magno.2

     Sem dúvida, a herança veiosubstituir a eleição. A qualidade dos serviços presta-dos, o reconhecimento público e as tradições anco-raram a soberania nas principais famílias da Euro-pa, e nada era mais legítimo. Porém, o princípio da

    onipotência nacional constantemente encontrou-seno fundo das revoluções, ele foi sempre invocadopara a consagração dos poderes novos. É um prin-cípio anterior e preexistente que não fez nada alémde realizar-se mais estreitamente nas diversas cons-

    tituições dos Estados modernos.

    M Mas se são os povos os que escolhemseus chefes, eles também podem derrubá-los? Seeles têm o direito de estabelecer a forma de governo

    que lhes convém, quem os impedirá de mudá-la aoseu bel-prazer? Não será o regime da ordem e daliberdade que sairá de suas doutrinas, mas sim a eraindefinida das revoluções.

    M  Você confunde o direito com oabuso que pode resultar de seu exercício, os princí-

      2  O espírito das leis, capítulo IV, livro XXXI.

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    M Quando os povos errarem, serão pu-

    nidos como os homens que pecaram contra a lei moral.M De que modo?

    M Eles serão punidos por marés dediscórdia, pela anarquia, pelo próprio despotismo.

    Não existe outra justiça na terra, esperando a de Deus.M Você acaba de pronunciar a palavra

    despotismo, sempre voltamos a ela.

    M Esta objeção não é digna de seu

    grande espírito, Maquiavel: sujeitei-me às conse-quências mais extremas dos princípios que vocêcombate, isso bastaria para que a noção de verda-deiro fosse falseada. Deus não concedeu aos po-vos nem o poder, nem a vontade de mudar assim

    as formas de governo que são o modo essencial desua