Dialogos Interdisciplinares a Caminho Da Autoria

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Documento sobre interdisciplinaridade da Rede Municipal de São Paulo

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    SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAO

    Diretoria de Orientao Tcnico-Pedaggica

    DOT Ensino Fundamental e Mdio

    Dilogos interdisciplinares a caminho da autoria

    Elementos conceituais e metodolgicos para a construo dos

    direitos de aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar

    Verso de julho/2015.

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    SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAO

    Diretoria de Orientao Tcnico-Pedaggica

    DOT Ensino Fundamental e Mdio

    Dilogos interdisciplinares a caminho da autoria

    Elementos conceituais e metodolgicos para a construo dos

    direitos de aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar

    Sombra, 2007, de Franciele Duarte Santana. Essa fotografia foi produzida durante um trabalho sobre linguagem fotogrfica e sua insero no cotidiano, a partir da questo: Qual imagem significa sua escola?

    Verso de julho/2015.

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    Texto coletivo produzido pelos educadores da Rede Municipal de

    So Paulo a partir de encontros e debates realizados por DOT-P/DRE

    e DOT Ensino Fundamental e Mdio/SME

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    Sumrio

    APRESENTAO ......................................................................................................... 5

    1 REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE SO PAULO: PERSPECTIVAS

    HISTRICAS ................................................................................................................. 9

    1.1 Subsdios para reflexes .......................................................................................... 16

    2 CICLOS DE APRENDIZAGEM: ORGANIZAO DO ENSINO

    FUNDAMENTAL ......................................................................................................... 19

    2.1 Docncia compartilhada e projetos ......................................................................... 20

    3 SUJEITOS DA INFNCIA ................................................................................... 23

    3.1 As infncias presentes e o Ciclo Interdisciplinar ................................................... 27

    3.2 As infncias presentes no currculo do Ciclo Interdisciplinar .............................. 30

    3.3 Ciclo Interdisciplinar: infncias e territrios ......................................................... 32

    4 CURRCULO: APROXIMAES CONCEITUAIS ......................................... 35

    4.1 Currculo: o que temos? O que queremos? ............................................................ 38

    4.2 Currculo e formao .............................................................................................. 39

    5 INTERDISCIPLINARIDADE: DILOGOS ...................................................... 43

    5.1 Interdisciplinaridade: histrico das reflexes no municpio de So Paulo ........... 45

    5.2 Interdisciplinaridade: discutindo conceitos ............................................................ 48

    6 AVALIAO NO CONTEXTO DO CICLO INTERDISCIPLINAR ............ 51

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................................... 58

    BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 61

    EQUIPE RESPONSVEL PELO PROCESSO ESCRITA DO DOCUMENTO,

    ENCONTROS REGIONAIS E SEMINRIO ........................................................... 65

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    APRESENTAO

    O Programa de Reorganizao Curricular e Administrativa, Ampliao e

    Fortalecimento da Rede Municipal Mais Educao So Paulo trouxe mudanas

    significativas em busca da qualidade social da educao. A reorganizao curricular do

    Ensino Fundamental em ciclos de aprendizagem foi uma delas, o que nos leva a

    repensar questes cristalizadas na prtica pedaggica. Essa reorganizao se orienta em

    trs ciclos de trs anos cada: Ciclo de Alfabetizao (1, 2 e 3 anos); Ciclo

    Interdisciplinar (4, 5 e 6 anos) e Ciclo Autoral (7, 8 e 9 anos).

    O currculo do Ciclo de Alfabetizao se pauta no documento Elementos

    conceituais e metodolgicos para definio dos direitos de aprendizagem e

    desenvolvimento do Ciclo de Alfabetizao (1o, 2

    o e 3

    o anos) do Ensino Fundamental,

    produzido pelo Ministrio da Educao (2012), trazendo consideraes sobre o

    currculo na perspectiva dos direitos de aprendizagem. Para tanto, a Prefeitura de So

    Paulo aderiu ao Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa (Pnaic), que promove

    a formao dos professores alfabetizadores, alm do acompanhamento pedaggico

    desse ciclo.

    A construo curricular com base em direitos de aprendizagem trouxe questes

    pertinentes tambm aos Ciclos Interdisciplinar e Autoral, entre elas: Quais as bases para

    a construo de um currculo emancipatrio? Ou seja, o que no pode faltar em um

    documento sobre currculo para o Ensino Fundamental, pensando na Educao Bsica,

    na realidade do municpio, nas mltiplas linguagens e interesses presentes na vida e

    entre os estudantes, situados historicamente, como autores de transformao social?

    Como entendemos a escola pblica municipal na sociedade contempornea? Como se

    d o trabalho coletivo nos ciclos de aprendizagem? Como definimos a

    interdisciplinaridade? Quem so nossos estudantes? Qual relao nossos estudantes

    estabelecem com o conhecimento? Como se d o processo de acompanhamento das

    aprendizagens dos estudantes pelo coletivo escolar? Como se d a avaliao no contexto

    interdisciplinar ao longo do ano letivo?

    Permeados por essas questes, foram realizados entre setembro e novembro de

    2014, dentro da jornada de trabalho dos educadores, os Encontros Regionais para a

    Construo dos Direitos de Aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar.

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    Promovidos pelas equipes de Diviso de Orientao Tcnico-Pedaggica (DOT-

    P) das treze Diretorias Regionais de Educao (DREs) e envolvendo professores,1

    coordenadores pedaggicos e supervisores escolares, os encontros pautaram-se na

    discusso do documento-base Ciclo Interdisciplinar como direito: sua criao

    coletiva.2 Classificado como texto em discusso, a leitura desse documento contou com

    importantes intervenes dos participantes dos Encontros Regionais.

    O I Seminrio Municipal de Educao para a Construo dos Direitos de

    Aprendizagem foi organizado, em dezembro de 2014, a partir da sistematizao das

    contribuies dos Encontros Regionais e marcado pela presena de dez representantes

    de cada DRE, envolvendo educadores das Unidades Educacionais, das equipes de DOT-

    P e superviso escolar, que haviam participado dos Encontros Regionais.

    Os participantes dividiram-se em cinco grupos, de acordo com os eixos

    temticos do documento-base: ciclos de aprendizagem; sujeitos da infncia; currculo;

    interdisciplinaridade; avaliao. As discusses em cada eixo se deram em torno das

    contribuies elaboradas ao longo dos Encontros Regionais, sobre os aspectos

    conceituais do texto e sobre as necessidades de adequaes e/ou de mudanas para a

    construo e a garantia dos direitos de aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar.3

    A partir do seminrio, o grupo de trabalho responsvel pela finalizao do

    documento reuniu-se, periodicamente, para acolher as contribuies em um processo

    de reescrita, que agora se materializa como base para as aes de formao docente.

    Desde a escrita do documento e a realizao dos Encontros Regionais at o

    Seminrio e o momento de reescrita, esse processo, porque dialgico e coletivo,

    apontou eixos e princpios fundamentais formao de todas as reas do conhecimento

    e construo dos direitos de aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar e, posteriormente,

    do Ciclo Autoral. So eles: culturas infantis, popular e escolar; prtica pedaggica para

    a diversidade; conscincia poltica, tica e esttica no trabalho educativo; avaliao

    formativa e avaliao institucional.

    nesse sentido que a formao docente prioriza a composio de um currculo

    integrador para a Educao Bsica, que leve em conta as culturas existentes na cidade e

    1 Dois professores por perodo representavam cada uma das Unidades Educacionais de Ensino

    Fundamental e Mdio e CIEJA. 2 So responsveis pela elaborao desse documento as equipes de DOT-P/DRE e a equipe da DOT

    Ensino Fundamental e Mdio/SME. 3 Neste link, est disponvel uma verso do documento com as contribuies dos participantes dos

    Encontros Regionais: .

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    no meio escolar, alm de um olhar para os documentos curriculares produzidos na rede,

    tanto historicamente, quanto os que esto em produo. fundamental concentrar as

    reflexes na constituio do currculo, pois todas as aes desencadeadas desdobram-se

    no cotidiano da escola e ganham corpo na prtica educativa em todas as modalidades de

    ensino. O propsito fomentar e embasar uma construo curricular qualificada sobre

    as temticas importantes e que marcam a Educao Bsica.

    O presente documento busca, por meio desse dilogo com a rede, com o

    Conselho Municipal de Educao (CME), com o Grupo de Trabalho Intersecretarial de

    Educao em Direitos Humanos (GTI EDH) e com a universidade, delinear uma

    trajetria com o conjunto de educadores e educadoras, no sentido de aproximar e

    aprimorar as prticas docentes, de modo a garantir o direito aprendizagem. Compem

    essa trajetria reflexes e consideraes acerca do perfil dos estudantes no interior da

    organizao escolar, dos ciclos de aprendizagem, das relaes interdisciplinares e da

    avaliao na prtica educativa e no acompanhamento dos avanos e das dificuldades por

    parte dos educandos.

    Os desafios so grandes, porm, estimulantes quando se pensa na importncia

    deste momento histrico e na possibilidade de proposies e de elaborao de bases

    curriculares para o Ciclo Interdisciplinar e Autoral, constitudas de maneira coletiva.

    Com base nessas consideraes, organizou-se este documento em torno de cinco

    eixos, sistematizados em captulos, que podem ser lidos de modo independente: ciclos

    de aprendizagem; sujeitos da infncia; currculo; interdisciplinaridade; avaliao.

    Como fundamental para o entendimento de nosso tempo, apresentada, no

    captulo 1, a contextualizao histrica da Rede Municipal de Ensino de So Paulo, em

    seus aspectos polticos refletidos no currculo e nas prticas escolares.

    O captulo 2 traz a reflexo sobre os ciclos de aprendizagem e as especificidades

    do Ciclo Interdisciplinar, como a Docncia Compartilhada e os Projetos. No captulo

    seguinte, debruamo-nos sobre o sujeito deste ciclo: a criana e as infncias presentes.

    O currculo discutido, no captulo 4, a partir de aproximaes conceituais, ao par que a

    interdisciplinaridade captulo 5 expe consideraes de como se expressa esse

    currculo crtico e emancipatrio. No captulo 6, a hora e a vez da avaliao. So

    apresentadas definies conceituais e a reflexo de como ela se insere neste contexto, de

    maneira formativa, para analisar e organizar a prtica visando aprendizagem.

    Tendo percorrido parte de um rico caminho de dilogo e construo coletiva,

    entre encontros regionais, seminrio e grupo de trabalho, este documento chega agora a

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    todos os educadores e educadoras do Ciclo Interdisciplinar e Autoral. Sem o objetivo de

    esgotar todas as possibilidades do fazer educativo, nem de prescrever prticas docentes,

    este texto se constitui por meio de indagaes, reflexes e memria, a partir de escolhas

    que reafirmam o direito educao pblica com qualidade social para todas as crianas

    e jovens. pela conscincia da pluralidade de concepes que permeiam o fazer

    educativo que a opo deste documento pelo encontro, pelo debate e pelo coletivo.

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    1 REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE SO PAULO: PERSPECTIVAS

    HISTRICAS

    A construo dos direitos de aprendizagem no Ciclo Interdisciplinar dialoga

    com o percurso histrico de formao social, para que se reconhea o Estado Social e

    Democrtico de Direito como fundamental para pensar a educao. Assim, o principal

    divisor de guas, que marca nacionalmente o Estado Social e Democrtico de Direito,

    a Constituio Federal de 1988 expresso legal da superao de governos marcados

    pela ausncia de liberdades e direitos.

    Em seu artigo 205, a educao tratada como direito de todos e dever do

    Estado e da famlia, sendo promovida e incentivada pela sociedade, visando ao pleno

    desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao

    para o trabalho.

    Marcado pela defesa do pluralismo de ideias e de concepes pedaggicas, tal

    movimento possibilita a toda a sociedade brasileira envolver-se, democraticamente, com

    os rumos da educao. A preocupao em fixar contedos mnimos para o Ensino

    Fundamental, de maneira a assegurar a formao bsica comum e o respeito aos valores

    culturais e artsticos, nacionais e regionais compe o artigo 210 da Constituio.

    Na direo do fortalecimento dos direitos sociais e, mais especificamente, no

    campo da educao, foi promulgada a Lei no 8.069, em 13 de julho de 1990, que criou o

    Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA). Conforme seu artigo 57, o Poder Pblico

    estimular pesquisas, experincias e novas propostas relativas a calendrio, seriao,

    currculo, metodologia, didtica e avaliao, com vistas insero de crianas e

    adolescentes excludos do Ensino Fundamental obrigatrio.

    O desejo de acolhimento da criana e do adolescente destaca a necessidade de

    um conjunto de aes de planejamento e ensino que atenda aos direitos de uma vida

    plena por parte desses dois tempos da vida. O artigo 9o, inciso IV, da Lei de Diretrizes e

    Bases da Educao Nacional (LDB), Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, incumbe

    Unio estabelecer, em colaborao com os estados, o Distrito Federal e os municpios,

    competncias e diretrizes para a Educao Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino

    Mdio, que norteiem os currculos e seus contedos mnimos, de modo a assegurar

    formao bsica comum. O direito a uma formao bsica, nacionalmente assegurada,

    como procedimento colaborativo entre os entes federados, tem a Unio como referncia

    normativa em colaborao com estados e municpios.

  • 10

    No plano internacional, ocorreu, tambm em 1990, a Conferncia Internacional

    de Educao para Todos, organizada pela Unesco e realizada em Jomtien, na Tailndia.

    Nela, o Brasil se constituiu signatrio, tendo em vista que o direito de se tornar adulto

    alfabetizado, atravs de polticas de erradicao do analfabetismo, fora o objeto de

    deliberao do encontro, assim como a identificao e a superao das necessidades

    bsicas de aprendizagens. A situao brasileira no era confortvel e exigia das polticas

    pblicas medidas visando ao acesso, permanncia e qualidade educacional.

    Na esteira do processo de redemocratizao, ocorreu a elaborao da LDB, que

    reafirmava os preceitos indicados na ltima Constituio Federal. Os princpios

    norteadores da educao nacional se guiaram pela liberdade, pluralidade, gesto

    democrtica, padro de qualidade, vinculao entre a educao escolar, o trabalho e as

    prticas socais, entre outros. Esse conjunto reafirma as preocupaes gerais de uma

    educao vista a partir do exerccio de direitos.

    O Brasil, em 1997, logo aps a promulgao da LDB, participou da

    Conferncia Internacional de Educao de Adultos (V Confintea), em Hamburgo, na

    Alemanha, na qual houve o enfrentamento ao analfabetismo como deliberao,

    estabelecendo que a educao continuada ao longo da vida, e, portanto um direito

    subjetivo a ser exercido a qualquer tempo da vida.

    Nesse contexto, foram elaborados os Parmetros Curriculares Nacionais

    (PCNs). Decorrida mais de uma dcada de sua implementao, considerando as

    mudanas polticas, sociais e culturais e partindo do pressuposto de que currculo

    movimento e construo scio-histrica, entende-se a necessidade de elaborar novas e

    mais precisas orientaes curriculares nacionais para o Ensino Fundamental (BRASIL,

    2012, p. 10).

    Assim, como um dos desdobramentos desse processo, destacamos o

    documento Elementos conceituais e metodolgicos para definio dos direitos de

    aprendizagem e desenvolvimento do Ciclo de Alfabetizao (1o, 2

    o e 3

    o anos) do Ensino

    Fundamental, que aponta para o direito a uma construo curricular sempre atenta s

    mudanas sociais e aos novos desafios colocados para a educao.

    A organizao da Educao Bsica, considerando o disposto na LDB, no se

    restringe ao modelo seriado; permite semestralidade, ciclos e outras formas que atendam

    adequadamente ao direito de acesso e permanncia de crianas, jovens e adultos nas

    instituies educacionais, conforme seu artigo 23. Todo o acompanhamento do

  • 11

    desenvolvimento da criana e do jovem deve destacar a prevalncia dos aspectos

    qualitativos sobre os quantitativos.

    Nessa disposio, procura-se garantir o direito de toda criana, jovem e adulto

    de conhecer as matrizes identitrias presentes na formao do povo brasileiro, num

    contexto de fortalecimento da experincia democrtica e avesso perpetuao

    etnocntrica, trazendo a compreenso sobre a histria da frica e afro-brasileira, junto

    com os referenciais indgenas, para que recebam o tratamento necessrio para a

    reparao de dvida histrica. Reforando a cultura de promoo e proteo aos direitos,

    em 2003 editado o Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos (PNEDH),

    visando promover uma cultura de direitos em todo o pas.

    Esse quadro nacional e internacional retratado contribuiu para a caracterizao

    e compreenso de um percurso histrico singular no municpio de So Paulo, ps-

    Constituio de 1988.

    As proposies para a superao de um conhecimento hiperespecializado e

    fragmentado disciplinarmente comearam a ser objeto de preocupao do municpio de

    So Paulo, no final dos anos 1980, porque se evidenciava como um conhecimento

    distante do mundo real de nossas crianas, jovens e adultos. As consequncias dessas

    proposies demandaram um processo de construo curricular mais articulado e

    integrado, que melhor respondesse aos diferentes tempos da vida.

    posto que educao seja processo e, para tanto, no se faz assertivo pens-la

    de forma fragmentada. Para uma atuao crtico-reflexiva, educadoras e educadores tm

    como premissa maior o envolvimento com os pares, a fim de poder (re)pensar a prtica

    docente e delimitar os principais desafios para a atualidade e para o futuro.

    Entretanto, sabe-se que a reflexo ora proposta se far mais qualificada se

    houver a compreenso do histrico da Rede Municipal de So Paulo, pois cada ao

    presente fruto da histria; assim, imprescindvel tratar de alguns princpios poltico-

    pedaggicos das gestes municipais anteriores como subsdio para o entendimento

    desses processos educativos lembrando que esse percurso se reverbera em movimentos

    que ganham fora nas relaes sociais presentes no espao escolar.

    Nessa perspectiva, a seguir, h um breve relato das gestes dos ltimos 25

    anos, a partir de 1989, a fim de fazer uma aluso memria, entendendo o quo

    importante rever o passado para entender o presente e dar sentido para o futuro.

  • 12

    Retomar-se-, ento, o percurso histrico a partir da gesto de Luiza Erundina

    (1989-1992). Trata-se de um perodo de retomada da democracia, cujo mandato, da

    primeira mulher a assumir a Prefeitura de So Paulo, baseou-se na participao

    democrtica e na gesto popular.

    Paulo Freire, primeiro secretrio da educao naquela gesto, encontrou,

    grandes descompassos na constituio da carreira docente, na elaborao de uma

    poltica para a Educao de Jovens e Adultos, entre outros.

    Como princpios norteadores, defendia uma educao proposta como prtica da

    liberdade, autnoma, criativa e emancipatria. Em documento criado pela gesto,

    intitulado Aos que fazem educao conosco em So Paulo (SO PAULO, 1989), o

    secretrio Paulo Freire comunicava a inteno de construir, coletivamente, uma escola

    que se constitusse em:

    [...] um centro irradiador de cultura popular, disposio da comunidade, no para

    consumi-la, mas para recri-la. A escola tambm um espao de organizao poltica

    das classes populares. A escola como um espao de ensino-aprendizagem ser ento um

    centro de debate de ideias, solues, reflexes, onde a organizao popular vai

    sistematizando sua prpria experincia. O filho do trabalhador deve encontrar nessa

    escola os meios de autoemancipao intelectual, independente dos valores das classes

    dominantes. A escola no s um espao fsico. um clima de trabalho, uma postura,

    um modo de ser (SO PAULO, 1989).

    As quatro linhas de trabalho estabelecidas como eixos principais naquela

    gesto foram: democratizao do acesso, gesto democrtica, nova qualidade da

    educao e a expanso de atendimento da Educao dos Jovens e Adultos

    trabalhadores.4

    Naquele perodo, encontravam-se proposies acerca do resgate do

    conhecimento cientfico a servio da emancipao dos envolvidos no processo

    educativo e tambm de um currculo que se constitusse coletivamente, a partir das

    premissas que atendessem s especificidades da comunidade escolar. O dilogo aparecia

    como mediador de etapas de elaborao desse currculo: problematizao da realidade,

    reflexo e construo do conhecimento, a partir da sistematizao e anlise das

    informaes com vistas criao coletiva de novas possibilidades de propostas na

    definio dos Projetos Poltico-Pedaggicos.

    4 No que tange ao objetivo de atendimento da demanda excluda do acesso educao, houve, durante

    esse governo, um crescimento de 15% no nmero de matrculas, segundo Freitas, Sal e Silva (2002 apud

    Born, 2014), com foco na Educao Bsica e na Educao de Jovens e Adultos. Esta ltima foi

    particularmente privilegiada com a criao do Movimento de Alfabetizao (MOVA), que contou com a

    abertura de mais de mil salas em toda a cidade.

  • 13

    Nesse perodo, foram produzidos inmeros documentos na Rede Municipal de

    Ensino, os quais buscavam subsidiar a problematizao dessa construo curricular

    dentro das escolas.5

    Concomitante a esse movimento, em parceria com universidades e institutos de

    educao, foram criados grupos de referncia que participaram da elaborao dos

    chamados Cadernos de Viso de rea (SO PAULO, 1992), que se constituam em

    orientaes curriculares apoiando o trabalho dos educadores em conjunto com as

    equipes gestoras e apresentavam pressupostos gerais de cada rea do conhecimento sem

    a definio de contedos especficos.

    Essas orientaes curriculares produzidas coletivamente visavam proposio

    de um currculo interdisciplinar e seu ponto forte aparecia com a metodologia dos temas

    geradores, atendendo, assim, s especificidades de cada escola, bem como de seu

    entorno. Nessa perspectiva, propunha-se que o saber se constitusse na medida em que

    as reas se relacionassem interdisciplinarmente, objetivando uma leitura crtica da

    sociedade.

    Essa metodologia de trabalho corroborou com a proposio de um currculo

    interdisciplinar, pois a essncia do tema gerador pressupunha um estudo a partir da

    realidade dos envolvidos e de seus significados numa dimenso individual, social e

    histrica. Esse processo era construdo por meio de uma metodologia dialgica, que

    fomentava o exerccio de uma viso crtica por parte do docente e dos educandos,

    tomando a realidade como mediadora das relaes que se estabelecem no coletivo, a

    partir de uma inteno clara, fundamentada na democracia e na emancipao dos

    sujeitos.

    Tambm importante ressaltar que, nesse perodo, o Ensino Fundamental foi

    reorganizado em ciclos: o Ciclo Inicial (I), que abrangia as antigas 1a, 2

    a e 3

    a sries; o

    Ciclo Intermedirio (II), referentes s 4a, 5

    a e 6

    a sries; e o Ciclo Final (III), com as 7

    a e

    8a sries. Essa introduo dos ciclos, naquela ocasio, foi uma atitude pioneira em

    relao a outras redes de educao em nvel nacional.

    O perodo entre 1993 a 2000 caracterizou-se pela gesto dos prefeitos Paulo

    Maluf e Celso Pitta, respectivamente. Em 1993, o ento secretrio de educao Slon

    Borges do Reis, publicou o documento Implementao da Poltica Educacional (So

    Paulo, 1993), com as bases para a implementao da proposta educacional,

    5 Ao fim deste documento, na bibliografia, esto disponveis os principais documentos produzidos

    poca.

  • 14

    apresentando critrios de gesto educacional e plano de ao para os quatro anos de

    gesto.

    As propostas de curso de formao continuada nesse perodo tinham como

    principal objetivo apresentar aos professores da rede uma nova viso educacional,

    centrada na Qualidade Total. Essa proposta foi substituda por novos documentos

    intitulados Currculos e Programas organizadores de reas/ciclos.

    Em 1997, a pasta de educao foi entregue ao ento vice-prefeito, Rgis

    Fernandes de Oliveira. O primeiro documento pblico produzido se apresentou na

    forma de um balano das aes desenvolvidas, sob o ttulo de Projeto Viso Balano

    da Gesto 1o semestre de 1997. Tratava-se de uma apresentao organizacional da

    Secretaria Municipal de Educao (SME) e uma referncia organizao do ensino em

    ciclos.

    A construo dos ciclos pautada no dilogo, que haviam sido estabelecidos em

    1992, foi substituda, em 1998, quando foi publicada a Portaria no 1.971, que extinguia

    o Regimento Comum das Escolas Municipais de So Paulo e disciplinava a elaborao

    de regimentos individuais para cada estabelecimento de ensino. A elaborao desses

    novos documentos foi orientada pelas Diretorias Regionais de Ensino Municipal

    (DREMs), em reunies das quais participavam gestores escolares e supervisores, a fim

    de assegurar que o documento estivesse de acordo com as alteraes propostas pela

    portaria.

    Ainda nessa gesto, foi revista a reestruturao curricular em dois ciclos: o que

    correspondia ao Ensino Fundamental I, com os quatro primeiros anos de escolarizao

    do Ensino Fundamental, e o Ensino Fundamental II, com os quatro ltimos anos.

    Em seguida, no perodo entre 2001 e 2004, na gesto Marta Suplicy, foram

    estabelecidas quatro metas para a educao no municpio: democratizao do

    conhecimento, qualidade social da educao, democratizao da gesto e

    democratizao do acesso e permanncia do estudante na escola. Destaca-se que esse

    governo tinha trs linhas principais de ao: o movimento de reorientao curricular, a

    formao permanente e sistemtica e a reconsiderao da avaliao e do funcionamento

    da escola.6

    6 O principal canal de comunicao estabelecido entre a SME-SP e as escolas eram as revistas EducAo.

    Foram cinco volumes editados ao longo da gesto e eles se constituem como os principais documentos

    sobre as aes do governo no perodo. No EducAo no 01 Retomando a Conversa: construo da

    poltica educacional da Secretaria Municipal de Educao (SO PAULO, 2001a), o ento secretrio

    Fernando Jos de Almeida apresenta rede as intenes e propostas de ao. A retomada do ttulo se refere ao resgate das propostas educacionais existentes na gesto petista de Luiza Erundina,

  • 15

    Esse movimento de reorientao curricular, que se propunha como um dos

    eixos da nova gesto foi enfatizado e documentado em Currculo emancipatrio,

    possvel? (SO PAULO, 2001c, p. 3-4), no qual se refletiam as possibilidades de

    construo de um currculo baseado na escola e a partir dos conhecimentos dos

    educandos.

    Buscava-se romper com qualquer pretenso neutralidade, de modo que o

    currculo que se pretendia construir fosse aquele capaz de dialogar com as necessidades

    das classes excludas, assumindo uma posio de luta pela justia social. Essa posio

    foi reafirmada por meio de uma concepo de currculo na qual o conjunto das aes

    educativas deveria estar voltado para o desenvolvimento de conceitos e habilidades

    cognitivas e relacionais que permitiam a construo de conhecimentos e de valores

    visando, sobretudo, a autonomia dos educandos (SO PAULO, 2001b, p. 7).7

    No perodo entre 2005 e 2012 deram-se as gestes dos prefeitos Jos Serra e

    Gilberto Kassab. Nesse perodo, foi institudo o Programa Ler e Escrever prioridade

    na Escola Municipal, que objetivou desenvolver as competncias, tanto leitora como

    escritora, dos estudantes. Para tanto, foram elaborados materiais formativos para os

    professores e didticos para os estudantes, com base em consulta a um grupo referncia

    com representantes de docentes, por componente curricular e com participao de

    assessoria externa, evidenciando as aes concretas para se alcanar o trabalho em sala

    de aula.

    Por meio da Portaria no 4.507, de 30 de agosto de 2007, foi apresentado Rede

    Municipal o Programa de Orientaes Curriculares: Expectativas de Aprendizagens e

    Orientaes Didticas. Essa gesto buscou priorizar em seu programa e nos

    documentos propostos um currculo que teve, como princpio, uma concepo

    multidisciplinar. Esses documentos so de conhecimento dos profissionais de educao

    que atuam, neste momento, na Rede Municipal de Educao e tm se constitudo como

    referncia para o trabalho docente nos ltimos anos.

    particularmente no que tange construo de um currculo baseado nas escolas, que teriam maior

    autonomia, e na ampliao da participao popular nas decises educacionais (BORN, 2014). 7 A partir de 2001, foram apresentadas Rede Municipal duas aes que se tornaram as grandes marcas

    desse governo: o Projeto Vida, cujo principal objetivo era contribuir para o cumprimento do ECA, e uma

    srie de subprojetos com o intuito de atender s necessidades educacionais e sociais de alunos e seus

    familiares, dentre os quais: Projeto Escola Aberta, Projeto Educom-rdio, Projeto Recreio nas Frias,

    alm de programas sociais como Renda Mnima e Comear de Novo. Ainda nessa gesto, houve a criao

    dos Centros Educacionais Unificados (CEUs), cuja concepo atendia a trs objetivos especficos: 1)

    ofertar educao de qualidade que possibilitasse o desenvolvimento integral das crianas, dos

    adolescentes, dos jovens e adultos; 2) ter uma gesto compartilhada com a comunidade local; 3) servir

    como polo de inovao de experincias educacionais (SO PAULO, 2003).

  • 16

    1.1 Subsdios para reflexes

    A partir dessa contextualizao, a proposta pensar quais concepes e

    conceitos dialogam diretamente com a questo do currculo numa perspectiva

    interdisciplinar e da no fragmentao do conhecimento.

    O sistema de ensino pblico brasileiro tem passado por transformaes

    positivas, em que o acesso ao Ensino Fundamental foi praticamente universalizado e

    com as polticas sociais apoiando o ingresso de estudantes no Ensino Superior. No

    entanto, nossa dvida histrica com a educao ainda est longe de ser superada. O

    acesso escola, embora essencial, no suficiente para um propsito educacional

    democrtico. Alm de frequentar uma boa escola, ter um fluxo regular, que oferea aos

    estudantes condies de promoo etapa seguinte e sua concluso, esse percurso

    necessita ser amparado por uma concepo de educao comprometida com sua

    qualidade social.

    A qualidade social da educao passa pela oferta de condies de acesso e

    permanncia do educando como direito, considerada a decisiva importncia dos valores

    de direitos humanos permearem a formao para a vida democrtica e a convivncia

    social (BRASIL, 2012). No entanto, apresenta como pilar a construo de um espao

    pblico que privilegie a superao de desigualdades, reconhea as diferenas, possibilite

    o desenvolvimento do pensamento crtico, mas, principalmente, seja capaz de promover

    uma educao comprometida com a transformao da realidade.

    dentro desse contexto de mltiplas realidades que a Secretaria Municipal de

    Educao (SME) apresenta, em conjunto com as Diretorias de Orientao Tcnico-

    Pedaggica (DOT-P) das treze Diretorias Regionais de Educao (DREs), um debate

    comunidade escolar, a fim de que pressupostos epistemolgicos, metodolgicos e

    ideolgicos a respeito do fenmeno educativo possam ser discutidos, elaborados,

    ressignificados e apresentados como possibilidades de ao, considerando a prtica

    educativa.

    A garantia de direitos se relaciona busca da qualidade social da educao:

    Os direitos de aprendizagem so aliados dos direitos sociais (polticos, ticos,

    culturais, religiosos, entre outros) na afirmao do significado da educao no mundo

    contemporneo e do papel da escola na sociedade (CASALI apud SO PAULO, 2014,

    p. 16).

  • 17

    Considerando que, nesta etapa de discusso, o objeto de estudo o Ciclo

    Interdisciplinar, a reflexo sobre o currculo, interdisciplinaridade, avaliao e ao

    docente se mostra fundamental para o incio dos estudos e debates. Tais estudos tm

    como objetivo a construo participativa e reflexiva dos direitos de aprendizagem desse

    ciclo, no bojo do Programa Mais Educao So Paulo.

    O currculo, nesse caso, pensado como o conjunto das experincias que

    partem de aprendizagem e s quais os educandos esto expostos. Entretanto, alm delas,

    ele segue na direo de uma sntese enriquecedora como produo coletiva, que traz

    instrumentos e senso crtico para o enfrentamento da vida cidad. Todo esse processo

    curricular extrapola os contedos selecionados para o ensino e as determinaes

    previstas nestas ou naquelas orientaes curriculares, mas no prescinde delas.

    Reconhecendo que a educao e o currculo so sempre um campo em disputa,

    pode-se afirmar que a atual forma da organizao de parte das escolas ainda est

    prxima de uma concepo com objetivos contraditrios quanto estruturao de uma

    educao democrtica e emancipadora.

    No entanto, a histria mostra que a percepo crtica da realidade no a altera

    pelo pensamento. O olhar crtico sobre a realidade injusta condio necessria, mas

    no suficiente para sua transformao.

    Desse modo, quanto mais se associam as demandas do mundo contemporneo

    ao papel da educao pblica, bem como s prticas pedaggicas nela inseridas, mais

    haver concordncia de que ela poder ser no apenas um organismo de socializao da

    economia, conforme tem se caracterizado na ideologia neoliberal, como tambm de

    socializao da cultura, da poltica e das prticas sociais democrticas.

    Nesse cenrio, reconhece-se que o papel da formao docente apresenta-se

    redesenhado. A docncia um exerccio complexo, com ambiguidades, dificuldades e

    desafios de toda ordem. necessrio refletir sobre esses dilemas e atribuir-lhes novos

    sentidos. Um desses sentidos pode ser ressignificar o compromisso poltico diante da

    prpria prtica. Como intelectual, o professor detm uma funo social relevante, pois ,

    principalmente, a partir de sua inteno que os saberes que constituem a herana

    cultural podem ser construdos, potencializados e compartilhados. Sua formao inicial

    acontece com base nos currculos das universidades, mas sua continuidade exigida

    pelos desafios trazidos pelas prticas escolares. As cincias, as artes e as tecnologias

    oferecem continuamente novos instrumentos de interpretao do conhecimento, novas

  • 18

    linguagens e culturas. A formao ao longo da vida a plataforma de sua

    profissionalizao.

    Nesse contexto, fundamental a realizao de um amplo debate, tanto do

    ponto de vista epistemolgico, quanto ontolgico, que venha contribuir com a busca por

    uma educao significativa, democrtica e cidad.

    Essa busca por uma educao mais criativa, emancipatria e responsvel s se

    materializa quando a temtica passa a ser prioridade na agenda das polticas pblicas e

    quando a prtica pedaggica recebe visibilidade e compreendida como espao de

    autoria.

    assim que a perspectiva poltica presente na ao educativa permite captar

    melhor as posies de alienao ou emancipao que permeiam a prtica pedaggica.

    Por esse motivo, impossvel pensar o fenmeno educativo com neutralidade, porque,

    nessas condies, desconsidera-se o contexto histrico, poltico, econmico, social e

    cultural em que ele se desenvolve. Nesse caso, corre-se o risco de considerar a educao

    e o trabalho docente a partir de uma concepo de adaptao, e no de interveno na

    realidade.

    O significado da educao resultado daquilo que se define como sua

    finalidade. Desse modo, compreendendo a educao como emancipao, em hiptese

    alguma, ela pode ser considerada como um processo natural. preciso entender a

    educao como um projeto crtico, estratgico, de resistncia e de possibilidades.

    provvel que esse caminho esteja amparado na responsabilidade compartilhada, no

    fortalecimento de instituies coletivas, o que inclui polticas educacionais ancoradas no

    compromisso com a produo do bem comum, assim como nas relaes com as demais

    Secretarias Municipais de So Paulo, tendo em vista uma poltica pblica integrada a

    servio do muncipe, cidado de direitos.

    nessa perspectiva que esto pautados os dilogos com a rede municipal neste

    processo, no sentido de afinar a pluralidade de concepes sobre currculo,

    interdisciplinaridade, avaliao e ao docente, de modo a construir, potencializar e

    compartilhar os direitos de aprendizagem como um princpio das decises do sistema de

    ensino pblico, bem como das prticas do cotidiano da escola.

    Por isso, alm do contexto histrico da rede, so propostas, a seguir,

    consideraes e reflexes a respeito dos cinco eixos elencados como fundamentais

    construo curricular do Ciclo Interdisciplinar: ciclos de aprendizagem; sujeitos da

    infncia; currculo; interdisciplinaridade; avaliao.

  • 19

    2 CICLOS DE APRENDIZAGEM: ORGANIZAO DO ENSINO

    FUNDAMENTAL

    A vida s possvel reinventada.

    Ceclia Meireles

    A organizao do processo educativo em ciclos de aprendizagem coerente, e

    no menos desafiadora, com a perspectiva da gesto democrtica, do currculo crtico e

    emancipatrio, da avaliao formativa para a aprendizagem, da concepo

    interdisciplinar de saberes e de conhecimentos, bem como com a considerao dos

    educandos e educadores como sujeitos sociais e protagonistas dos processos de ensino-

    aprendizagem e de ser e estar no mundo contemporneo.

    Segundo a Nota Tcnica no 3 do programa Mais Educao So Paulo, (...) a

    organizao em ciclos de aprendizagem permite a construo/apropriao do

    conhecimento em perodos em que a singularidade dos estudantes seja respeitada em

    seus ritmos e considere sua condio social, cognitiva e afetiva (SO PAULO, 2014,

    p. 74).

    Essa organizao, que visa romper com a lgica da seriao, marcada pela

    adoo de um novo articulador para os tempos e espaos da escola, baseado no

    desenvolvimento social, cognitivo e afetivo dos estudantes e em suas experincias. Isso

    significa fazer da escola um lcus que permite aos estudantes serem cidados ativos e

    protagonistas do processo de construo da vida escolar, com a manifestao de suas

    identidades e possibilitando a interveno de forma consciente nos coletivos escolares e

    tambm no quadro social em que atuam e atuaro.

    Os ciclos de aprendizagem possibilitam outro paradigma das prticas

    pedaggicas a partir da reflexo contnua sobre o estudante e sobre a identidade

    docente. Faz-se necessrio refletir e rever o lugar e o papel do educador nos processos e

    prticas pedaggicas, estabelecendo outras relaes com os estudantes, os demais

    docentes, as famlias, a gesto escolar, mas tambm com as cincias, as artes, as

    tecnologias e as culturas. Essas relaes so efetivamente profissionais, dialgicas e

    horizontais, em que o educador no ensina para os estudantes, mas ensina e aprende

    com eles.

    As prticas pedaggicas so revistas e ressignificadas nos momentos

    compartilhados de reflexo sobre as aes (JEIF, Reunio Pedaggica, Conselho de

    Classe, Conselho de Escola) e na medida em que proposto o planejamento coletivo de

    cada ciclo de aprendizagem, alm do planejamento dos componentes curriculares. Ao

  • 20

    realizar o planejamento para o ciclo, necessrio repensar o percurso do estudante em

    tempos flexveis, levando em considerao os diversos ritmos de aprendizagens.

    A organizao em ciclos exige um arranjo da estrutura escolar para que os

    sujeitos envolvidos no processo educativo (educadores docentes e no docentes,

    estudantes e famlias) integrem-se, de maneira a viabilizar a educao com qualidade

    social que permite a construo das aprendizagens, a interdisciplinaridade e a

    continuao do aprender pela vida afora. Tal organizao implica ao e

    responsabilidades coletivas, assumidas pelos diferentes sujeitos que atuam no contexto

    educativo, na perspectiva da Cidade Educadora, por meio de decises e aes da equipe

    escolar, da comunidade, da sociedade e da gesto pblica, visando aos direitos de

    aprendizagem e s reais condies de aprendizagem dos estudantes.

    2.1 Docncia compartilhada e projetos

    O Ciclo Interdisciplinar composto de professores polivalentes (Professor de

    Educao Infantil e Ensino Fundamental I) e professores especialistas (Professor de

    Ensino Fundamental II e Mdio), que trabalham na regncia das turmas, dos

    componentes curriculares, com as possibilidades da docncia compartilhada.

    A docncia compartilhada no Ciclo Interdisciplinar tem como objetivo o [...]

    desenvolvimento de projetos, visando integrao dos saberes docentes e discentes, a

    partir da reflexo, anlise, avaliao e busca de respostas cada vez mais adequadas s

    necessidades de aprendizagem dos estudantes (SO PAULO, 2014, p. 79).

    O exerccio da docncia compartilhada consiste em um permanente processo

    de reinveno da identidade docente, sendo um desafio o seu exerccio, pois:

    A ao de compartilhar traz tenses para ambos os docentes, pois a exposio mais

    ntima e detalhada de suas crenas pedaggicas, o embate da proposta planejada para

    o aluno e a concretizao da mesma, assumindo riscos, realizaes e fracassos no

    coletivo da turma e com cada aluno, individualmente. Nesse contexto, cada um dos

    professores passa a fazer a desconstruo do seu modo de ser docente para construir

    outro (TRAVERSINI et al., 2012, p. 269).

    Ao compartilhar a docncia, h o compartilhamento dos saberes, dos

    conhecimentos e das prticas pedaggicas, trazendo perspectivas diversas sobre e com o

    estudante, de maneira mais ampla e integral. Esse processo de compartilhamento de

    decises imprescindvel nos tempos possveis: estudar em conjunto, exercitar a

    investigao na diversidade de formas de conhecer/aprender, identificar os objetivos dos

    conhecimentos abordados e o modo como tais conhecimentos podem ser/estar

    relacionados com os contextos vividos pelos estudantes.

  • 21

    A reinveno tambm se d na reorganizao da escola, priorizando o trabalho

    coletivo para planejamentos e avaliaes, no movimento de reflexo sobre a ao, assim

    como a potencializao das documentaes pedaggicas e publicaes conjuntas sobre

    as prticas escolares e projetos desenvolvidos.

    Dessa maneira, a docncia compartilhada o espao de vivncias iniciais e de

    aprofundamento da prtica interdisciplinar, por meio do desenvolvimento de projetos

    que compem o Projeto Poltico-Pedaggico da Unidade Escolar, sob a mediao e

    articulao do coordenador pedaggico, que exerce papel fundamental, pois possibilita

    um olhar integrador das prticas pedaggicas e dos processos de ensino-aprendizagem.

    O desenvolvimento de projetos potencializa a interdisciplinaridade, pois seu

    processo permite uma articulao e integrao entre as diferentes reas de

    conhecimento, para o aprofundamento das investigaes a serem realizadas a partir de

    um problema. necessrio esclarecer que todo projeto tem uma intencionalidade e,

    quando a inteno envolve a aprendizagem dos estudantes, imprescindvel a

    participao colaborativa e protagonista deles. Todo o desenvolvimento do projeto deve

    ser feito em conjunto com os estudantes, desde o levantamento das problemticas para

    investigao, os objetivos, as estratgias, os resultados, as formas de avaliao e de

    concluso do projeto, bem como as possveis mudanas de percursos, que devem ser

    decididas conjuntamente com todos os envolvidos.

    A observao sensvel e sistemtica dos educadores um mecanismo possvel

    para identificar as potencialidades de aprendizagem dos estudantes. A partir dessa

    observao, as intervenes docentes podem dar significado ao aprendizado dos

    estudantes, tanto no sentido de buscar formas de superao das dificuldades, como

    tambm, e muito importante, no intuito de mobilizar potencialidades e promover

    avanos naquilo que os estudantes fazem de melhor no contexto escolar. A participao

    colaborativa e o protagonismo se do a partir da funo articuladora dos educadores

    diante das situaes de aprendizagem e das interaes dos estudantes com tais situaes.

    A partir do olhar apurado e sensvel, o trabalho dos docentes deve se

    desenvolver para redimensionar suas perspectivas diante da realidade e avanos

    cognitivos dos estudantes. Quando o exerccio do planejamento, da troca, das reflexes

    metacognitivas, das publicizaes dos trabalhos se do em conjunto, partilhando

    perspectivas, ampliam-se as possibilidades de desenvolvimento de uma intencionalidade

    educativa interdisciplinar.

  • 22

    O desenvolvimento de projetos integrados e a docncia compartilhada no

    podem ser entendidos como uma metodologia a ser aplicada com um conjunto de regras

    e procedimentos, mas sim como possibilidades a serem construdas a partir das

    experincias de cada comunidade escolar.

    Alm disso, um aspecto necessrio nesse processo considerar os sujeitos de

    direitos que so as crianas, historicamente situadas em um contexto especfico e

    inseridas em uma pluralidade de culturas. Nesse sentido, h a necessidade de dedicar

    um tempo de nossas prticas e reflexes acerca das infncias e dessas crianas a quem

    se destina o processo educativo no Ciclo Interdisciplinar.

  • 23

    3 SUJEITOS DA INFNCIA

    Meninos brincando, 1958, de Portinari.

    O que infncia? mais adequado identific-la como infncia ou infncias?

    Quem a criana atendida pelo Ciclo Interdisciplinar? Quais seus interesses, direitos e

    necessidades? Quais os cuidados necessrios ao educar uma criana no Ciclo

    Interdisciplinar, pensando na indissociabilidade entre cuidar e educar:

    Cuidar exige colocar-se em escuta s necessidades, aos desejos e inquietaes, supe

    encorajar e conter aes no coletivo, solicita apoiar a criana em seus devaneios e

    desafios, requer interpretao do sentido singular de suas conquistas no grupo, implica

    tambm aceitar a lgica das crianas em suas opes e tentativas de explorar

    movimentos no mundo. (BARBOSA, 2009, p.68-69)

    Conceituar o perodo de vida chamado infncia no uma tarefa fcil, e s

    pode ser feito com a conscincia de que ela uma categoria social e temporalmente

    construda. Do latim, infans significa incapacidade de falar e, por conseguinte, um

    perodo de vida em que a voz no lhe tem sido atribuda socialmente.

    Por centenas de sculos, a criana no foi vista como sujeito, com

    caractersticas prprias, mas sim como um adulto em miniatura. A infncia limitava-

    se ao perodo mais frgil da criana, que, mal adquiria algum desembarao fsico, era

    logo vista misturada aos adultos, partilhando de seus trabalhos e jogos. Naquela

    perspectiva, ela era diferente do adulto apenas no tamanho e na fora. As outras

    caractersticas permaneciam iguais (ARIS, 1981).8 No entanto, cabe ressaltar que as

    diferentes culturas e lugares do mundo concebiam e concebem a infncia de modos

    distintos.

    8 H que se considerar que os estudos de Aris sobre a infncia esto centrados na Europa, entre a Idade

    Mdia e o surgimento da sociedade burguesa (GLIS, 1991).

  • 24

    O infanticdio foi tolerado em muitas culturas, o trabalho infantil era explorado

    e mltiplas formas de violncias eram estimuladas na famlia, nas prticas religiosas e

    escolares.9

    Em muitos setores do mundo ocidental, atores envolvidos em diversas reas do

    saber se comprometeram a buscar proposies definidoras do ser criana e da infncia.

    Esses diversos sujeitos sociais e produtores de conhecimento elaboraram discursos

    diferentes, mas que se confluram e influenciaram no modo de a sociedade organizar

    sua relao com a criana, legitimando aes, muitas vezes, autoritrias e violentas.

    Entre as diversas representaes que foram se constituindo sobre a infncia,

    algumas delas eram: criana-anjo inocente no discurso religioso; possuidores de uma

    natureza viciosa ou vicivel no discurso jurdico; ser em formao no discurso

    mdico e pedaggico. Foram vrias as formas encontradas para explicar a infncia. O

    ser criana que se instaurou no imaginrio social parece ser uma sntese de todas essas

    definies, quando comeam a surgir novas concepes sobre a infncia.10

    Entendeu-se por dcadas na histria do Brasil que a criana deveria ser

    moldada para ser o homem do futuro que se imaginava a partir do modelo europeu.

    Investia-se, ento, na criana, reconhecida como a base da estrutura social. Pela sua

    plasticidade e possibilidade de aperfeioamento fsico e moral, a infncia

    representava a maneira mais eficaz de assegurar o encaminhamento do pas rumo ao

    progresso e modernidade, e, enfim, tomar sua parte no conjunto das naes

    civilizadas.11

    A infncia tornou-se, a partir do incio do sculo XX, objeto de estudos

    cientficos, com a finalidade de entender tambm os sujeitos sociais por meio da

    criana, descrevendo seu comportamento e mensurando sua mente. Estudos herdeiros

    do Iluminismo entendiam-na como o estgio da vida no qual o homem encontra-se mais

    prximo da natureza e perfeio. Nesse estgio, sua alma ainda no teria sido

    9 O quadro comeou a mudar com a interferncia da Igreja contra o abandono e o infanticdio, com a

    crena de que seria pecado livrar-se da criana como ser humano dotado de alma (MARCLIO, 1998). 10

    Sarmento (2007, p. 30) denomina as imagens descritas acima como imagens da criana pr-sociolgica: a criana m, a criana inocente, a criana imanente, a criana naturalmente desenvolvida, a criana inconsciente. Imagens que coexistem e sobrepem-se, por vezes de forma tensa, outras vezes de modo sincrtico no imaginrio do mundo adulto moldando prticas cotidianas. Imagens abstratas e descontextualizadas, como se pudssemos tratar da essencialidade da infncia, produzindo assim efeito de

    invisibilizao de muitas infncias. 11

    Pode-se notar no exemplo acima citado, o que para Sarmento (2007, p. 29) constitui-se como

    princpios de reduo da complexidade, de abstracizao das realidades e de interpretao para fins normativos da criana ideal.

  • 25

    corrompida pela perverso adulta.12

    O surgimento da escola enquanto instituio

    educativa de massa se deu nesse contexto do aparecimento histrico das repblicas. A

    criana, por muito tempo, foi considerada como ser em devir. Pensar nela a partir da

    flexibilidade e do aprendizado a colocou no centro das atenes e convertida em objeto

    de interveno. Nesse sentido, a partir do desenvolvimento da chamada pedagogia

    cientfica, foi atribuda educao e escola, a responsabilidade de aperfeioar as

    crianas, em funo de uma ideia de progresso moral e material da nao.

    Embora Comenius (1592-1670), j no sculo XVII, defendesse a diversidade

    de formas de saber e o direito de aprender de todas as crianas, estudos mais recentes

    avanaram muito na direo do conhecimento da diversidade e das caractersticas das

    infncias. Ela, a infncia, no singular, nem nica. Considerada como categoria

    geracional das mais recentes, a infncia foi, somente entre os dois ltimos sculos,

    reconhecida como um perodo da vida diferenciado da vida adulta e as crianas

    reconhecidas como sujeitos de direitos, respeito e, enfim, cidados.

    Nos ltimos anos, temos concebido as crianas como seres humanos concretos, um

    corpo presente no aqui e agora em interao com outros, portanto, com direitos civis. As

    infncias, temos pensado como a forma especfica de conceber, produzir e legitimar as

    experincias das crianas. Assim, falamos em infncias no plural, pois elas so vividas

    de modo muito diverso. Ser criana no implica em ter que vivenciar um nico tipo de

    infncia. As crianas, por serem crianas, no esto condicionadas as mesmas

    experincias (BRASIL, 2009, p. 22).

    Por muito tempo, a ateno dada a elas nos estudos das reas de conhecimento

    das cincias humanas estava sempre pautada em sua relao com a famlia ou, como

    alunos, nas categorias de estudo mais centradas nas questes da famlia, da escola, do

    abandono e da educao, ou seja, sempre com a predominncia do adulto, e no da

    criana. Nessa perspectiva, a infncia ainda era vista, e muitas vezes ainda tratada

    exclusivamente, como estgio preparatrio para o ingresso no mundo adulto.

    Ocultavam-se as crianas, negando-lhes seu ser no momento presente, preocupados

    exclusivamente com seu vir a ser e com a perspectiva de transformar-se em. Desse

    modo, a infncia era concebida como tempo de passagem.

    A emergncia da chamada sociologia da infncia e o desenvolvimento de

    estudos antropolgicos mais recentes sobre ela definiram novos paradigmas para os

    12

    Ideologia marcada pelas leituras rpidas do pensamento de Rousseau (GHIRARDELLI, 1997).

  • 26

    estudos: o reconhecimento da infncia como categoria estrutural em relao s

    perspectivas geracionais.13

    A partir desse novo olhar, deslocou-se a compreenso da infncia como projeto

    de adulto e estgio preparatrio para a vida para a perspectiva de criana no presente,

    como sujeito de mudanas scio-histricas, como categoria na estrutura social. Nesse

    sentido, a perspectiva a-histrica, universal e natural de infncia est posta

    definitivamente em xeque.

    Em sua origem histrica, a escola pblica separava as crianas dos espaos de

    convvio coletivos e as institucionalizava a servio da formao de um cidado do

    futuro. Para tanto, pautava-se pela disciplinarizao das crianas, sob um regime

    paternalista, que no considerava os direitos da infncia e as culturas infantis.

    A compreenso de uma Pedagogia da Infncia, que contempla as meninas e os

    meninos como construtores de culturas infantis em suas aes ldicas, repletas de

    prazeres e de sentidos quando brincam ou jogam, entra em contradio com a

    necessidade escolar da construo de produtos, como a lio.

    Para respeitar os princpios da infncia numa perspectiva interdisciplinar, faz-

    se necessrio um planejar competente e metodologicamente fundado sobre os espaos,

    as condies e os materiais pedaggicos que sero ofertados para as vivncias dessas

    infncias. Como superar a crena da perda do tempo destinado a aes que no visam

    construo necessria de um produto material?

    Todos os segmentos da escola devem ser convidados a repensarem suas

    crenas e convices a respeito da infncia na escola. No entanto, apenas as alteraes

    das crenas sobre as crianas no mudam a realidade. A criao de metodologias e

    instrumentos que viabilizem o acompanhamento pedaggico, a observao sistemtica,

    o registro preciso, o acompanhamento do percurso educacional de tais crianas como

    sujeitos e como grupos sociais o resultado poltico-pedaggico dessa nova viso sobre

    as crianas.

    Alm disso, houve grandes conquistas no campo da legislao, mas nossas

    crianas, infelizmente, ainda so vtimas de abusos e maus tratos. Dentro e fora das

    escolas, a cultura de naturalizao das violncias e a violao a direitos vm degradando

    as condies de socializao. A escola necessita estar atenta e fomentar aes que

    13

    A infncia , simultaneamente, uma categoria social de sujeitos activos, que interpretam e agem no

    mundo. Nessa aco estruturam e estabelecem padres culturais. As culturas infantis constituem, com

    efeito, o mais importante aspecto na diferenciao da infncia (SARMENTO, 2007).

  • 27

    dirimam a violncia e agresso contra crianas e adolescentes. Tarefa, alis, de toda a

    sociedade.

    3.1 As infncias presentes e o Ciclo Interdisciplinar

    Segundo o ECA, considera-se criana pessoa at 12 anos de idade

    incompletos, incluindo, portanto, as crianas da Educao Infantil, do Ciclo de

    Alfabetizao e do Ciclo Interdisciplinar. A diviso do Ensino Fundamental em ciclos

    de aprendizagem leva a uma primeira caracterizao dos estudantes do Ciclo

    Interdisciplinar: do ponto de vista da idade cronolgica, so crianas de 8 anos

    completos a 11 anos completos, em sua maioria, e, do ponto de vista do processo de

    escolarizao, so estudantes a quem foram garantidos os direitos de aprendizagem

    previstos para o Ciclo de Alfabetizao.

    impossvel traar uma definio homognea da criana do Ciclo

    Interdisciplinar, sem o risco de uma conceituao abstrata e empobrecedora, ainda que,

    da perspectiva biolgica, ocorram transformaes que possam caracterizar a infncia na

    especificidade da faixa etria e ainda que, com base na psicologia do desenvolvimento,

    sejam apontadas determinadas caractersticas dos sujeitos e de seus processos de

    aprendizagem.

    A caracterizao faz sentido quando pensada do ponto de vista sociocultural e

    inserida em determinados grupos em relao a gnero, etnia, territrio, condio

    socioeconmica e interesses dos grupos.

    As crianas tm sido vistas pelos adultos, especialmente os que so

    responsveis por sua educao e tambm pelos formuladores das polticas pblicas a

    partir do que lhes falta, do que precisa ser provido pelo adulto, ou a partir do que ela

    apresenta de indesejvel, segundo o olhar e a perspectiva do adulto, sendo, portanto,

    supostamente merecedora de limites a serem estabelecidos pelas instituies sociais.

    Nos dois casos, o processo educativo gera formas de controle dos adultos sobre a

    criana.

    Reconhecer as potencialidades biolgicas, psicolgicas e socioculturais em

    desenvolvimento nos estudantes, compreendendo-os como sujeitos sociais e admitindo

    a diversidade da infncia e das culturas infantis, so premissas fundamentais ao trabalho

    dos educadores em relao s crianas do Ciclo Interdisciplinar. Ao estimular na escola

    o protagonismo do educando, promove-se, em toda a comunidade educativa e no

    prprio estudante, o reconhecimento de suas singularidades, das potencialidades, da

  • 28

    solidariedade, da responsabilidade com o bem comum e da construo do senso crtico

    autnomo.

    As prticas pedaggicas devem compreender a diversidade e as diferenas

    entre os sujeitos, sua singularidade, como forma de reinveno do espao escolar.

    Questionar o etnocentrismo, os processos de colonizao e as relaes de poder e

    dominao existentes na sociedade e nas instituies educacionais, bem como favorecer

    relaes participativas e coerentes entre o ambiente escolar e os sujeitos sociais que nela

    convivem, refletem opes que buscam desconstruir e desnaturalizar as desigualdades.

    O mundo que habitamos formado por uma imensa diversidade. A diversidade se

    manifesta tanto nas caractersticas fsicas, psquicas, sociais, culturais e biolgicas dos

    seres humanos quanto na natureza, nos instrumentos e artefatos e nas organizaes

    sociais. Nessa perspectiva, a diversidade traz em si uma imensa riqueza para os seres

    humanos, para a cultura e para a natureza. Porm, como vivemos em uma sociedade

    hierarquizada e excludente, muitas vezes as diversidades acarretam desigualdades e

    engendram modos de excluso e de segregao. Ou seja, a diversidade muitas vezes

    torna-se o ponto de partida das desigualdades (BRASIL, 2009, p. 59-60).

    Ao considerar a organizao desse ciclo e as concepes em torno da

    aprendizagem, importante reconhecer as crianas como sujeitos que vivem no mundo

    em sua plenitude afetiva, cognitiva e social, mesmo se constituindo em seres

    provisrios, como todos os sujeitos que pensam e que criam culturas.

    por essa razo que o Ensino Fundamental de nove anos necessita de outra

    configurao da cultura escolar, no sentido de rever sua organizao e as formas de

    interao, assim como fortalecer as aes que valorizam as crianas.

    Um dos aspectos relativos organizao interna, que reflete certas concepes

    do processo educativo, diz respeito garantia de um espao fsico constitudo de

    elementos acolhedores do trabalho coletivo, da imaginao e de ludicidade. Espao

    fsico entendido como toda a escola, e no apenas a sala de aula.

    Outro aspecto relevante para progredir em direo a uma educao com a

    criana pensar, planejar e viver a educao como foro de cultura.

    Cultura

    Em contraposio a noo hierarquizante e universal, compreende-se cultura pelo vis do multiculturalismo. Isto , a partir da pluralidade de manifestaes e valores, de significados e sistemas simblicos, de subjetividade nas interpretaes e do conhecimento como fato poltico. Nesse mbito, emergem embates sobre as diferenas e entre os diferentes, gerando novos conhecimentos que se orientam no sentido de desconstruir o que est

  • 29

    enraizado por conta do preconceito, da discriminao e do desrespeito aos direitos conquistados.

    Nesse sentido, ao tratar a educao como foro de cultura e a pedagogia como lcus da prtica de partilha, de negociao e de recriao de significados, emerge um(a) professor(a) que, nas palavras de Bruner, um acontecimento humano, e no mero dispositivo de transmisso (GOBBI; PINAZZA, 2014, p. 32).

    imprescindvel olhar para as crianas respeitando e fomentando suas

    manifestaes culturais e potencialidades, enquanto criadoras de cultura, com direitos

    de serem falantes/ouvintes, leitoras/escritoras, autnomas e autorais (BRASIL, 2012,

    p. 19). Dessa maneira, outros elementos devem ser considerados para melhor

    compreendermos esse estudante no contexto escolar da Rede Municipal de Ensino.

    necessrio pensar nas contribuies das diferentes reas de pesquisa e

    conhecimento como a psicologia, a sociologia, a neurocincia, a histria, a geografia,

    a antropologia, entre outras, que vm estudando, nas ltimas dcadas, o perodo de vida

    e as caractersticas das infncias situadas na contemporaneidade. Os diferentes olhares

    convergem para admitir que as mudanas histricas, sociais, polticas, econmicas e

    culturais tm impacto no modo de pensar sobre a infncia, assim como no modo de as

    crianas viverem experincias diversas nessa fase. de fundamental importncia que,

    nos momentos de estudo e encontros entre professores, profissionais do quadro de apoio

    e gestores, se aproximem essas diferentes reas a fim de refletir, formar e informar

    acerca dos temas abrangentes dessa fase.14

    Nesse sentido, podem ser identificadas representaes sociais sobre a infncia

    e sobre o papel da escola em suas vidas, que levam necessidade de problematizao do

    olhar dos adultos, especialmente dos educadores, sobre a(s) infncia(s), na busca de

    desvelar as concepes que permeiam as prticas educativas, assim como das escolhas

    sobre que educao tem sido defendida e que tipo de sujeitos a escola forma.

    14

    Do ponto de vista da psicologia histrico-cultural: [...] a questo que se nos apresenta a de trabalhar na construo de teorias que partam da necessidade de compreender a organizao das etapas da vida

    humana como fenmeno histrico. Pode ser que terminemos mais uma vez falando em bebs, crianas,

    adolescentes, adultos e idosos. Mas ser importante dar substncia a esses ciclos da vida, atrelando-os aos

    modos concretos de insero dos sujeitos no seu mundo social, em situaes histrico-culturais

    especficas, nas quais limites maturacionais universais interajam com a heterogeneidade cultural, gerando

    uma espcie de cultura das idades (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 2002).

  • 30

    3.2 As infncias presentes no currculo do Ciclo Interdisciplinar

    Busca-se neste documento estudar formas de superar a ciso entre a Educao

    Infantil e o Ensino Fundamental, atuando na construo de um currculo integrador para

    a infncia. Nesse processo, ainda que existam especificidades em cada um dos ciclos de

    aprendizagem do Ensino Fundamental, h uma riqueza de possibilidades de construo

    de conhecimento pela criana que deve ser considerada, a saber: a imaginao, a

    criatividade, o movimento, a livre expresso, as diversas situaes de interao entre os

    pares, a explorao do mundo ao seu redor e as mltiplas linguagens presentes nesse

    universo.

    Um grande equvoco, nesse sentido, a lgica que leva o processo de

    escolarizao no Ensino Fundamental a banir da escola e da sala de aula o brincar,

    elemento importante e constituinte da infncia e de seu processo de construo de

    conhecimento.

    O brincar um direito e fundamental ao desenvolvimento integral das

    crianas. No obstante, fazem-se necessrias as condies institucionais para que o

    currculo contemple espaos educativos para alm da sala de aula, com condies ao

    convvio de crianas, jovens e adultos no mesmo espao escolar. Por essa razo,

    importante incentivar a criatividade e a autonomia, que, por vezes, no so priorizadas

    nos diferentes ciclos do Ensino Fundamental. Isso demanda uma superao da

    fragmentao entre os diferentes ciclos da Educao Bsica, desde a Educao Infantil:

    [...] existe uma fragmentao na concepo dos tempos de infncia, ou seja, h uma

    ciso da infncia pautada exclusivamente na perspectiva cronolgica, como se a criana

    deixasse de o ser a partir do momento que deixasse a Educao Infantil e fosse para o

    Ensino Fundamental. (SO PAULO, 2014, p. 43)

    Assim, devem-se considerar atribuies docentes validando aes de

    planejamento de tempo, espao e materiais voltados para o ldico, o faz de conta e as

    brincadeiras na escola, sem que o professor sinta-se cobrado, como se tal escolha

    pudesse ser entendida a partir de ideias como perder tempo com coisa que no sria.

    Deve-se entender que o brincar livremente mobilizador de aprendizagens. Esse direito

    ao brincar precisa ser problematizado, pois:

    [...] existe um distanciamento entre aquilo que enunciado nos PPPs e o que praticado

    no cotidiano das Unidades Educacionais. [...] O espao fsico/ambiente, por exemplo,

    nem sempre condizente com a concepo de educao que coloca o brincar como

    central ao processo de aprendizagem. O espao/ambiente das Unidades Educacionais

    no tem permitido, muitas vezes, que se possa aprender brincando ou brincar

    aprendendo... (SO PAULO, 2014, p. 41-42).

  • 31

    Assim como potencializar as relaes das crianas entre seus pares, importante

    analisar as interaes intergeracionais. Nessas relaes tm havido, cada vez mais,

    expresses de resistncia das crianas a processos de institucionalizao, sempre que as

    relaes de poder so verticalizadas e assimtricas. Essas expresses de resistncia

    podem aparecer nas formas do que costumam ser caracterizadas, pelos adultos, como

    indisciplina, dificuldades de aprendizagem ou, ainda, apatia e desinteresse por parte das

    crianas.

    A chamada indisciplina precisa ser compreendida em suas causas, e no como

    um problema relacionado qualidade ou competncia do indivduo. Ela pode ser um

    indcio de que as relaes de poder precisam ser revistas e demandam reflexes por

    parte do coletivo escolar para serem trabalhadas em sua complexidade, em busca de

    relaes democrticas e abalizadas pelo valor do respeito, para a autonomia e

    conscincia crtica nas relaes de aprendizagem.

    Ao mesmo tempo em que as crianas do Ciclo Interdisciplinar esto inseridas

    em uma sociedade letrada e escolarizada, e entendendo o acesso a essa sociedade como

    um direito, sabido que a conquista da alfabetizao no condio suficiente para o

    exerccio pleno da cidadania. A vivncia da cidadania tem seu espao na escola e num

    currculo cidado, e a ampliao das vivncias cidads acontece na participao em

    outras dimenses da cultura, da poltica e da economia do pas.

    As crianas, muitas vezes desrespeitadas como sujeitos de direitos, so parte de

    uma sociedade de consumo, que exerce o poder por meio de grandes corporaes

    interessadas em imprimir uma cultura hegemnica infncia, sujeita disseminao de

    valores e de esteretipos que atendem a determinados interesses, os quais levam

    excluso social e violncia simblica produzida no interior das instituies.

    Muitos dos estudos contemporneos tm como finalidade a definio e a

    compreenso da criana como consumidor ou como mero competidor. A propaganda

    muito bem elaborada e veiculada pelos meios de comunicao de massa tem um poder

    que deve ser considerado e confrontado pela escola. As crianas so seduzidas pela

    televiso numa relao de apatia e passividade que as sujeita valorizao do poder do

    dinheiro para o consumo da felicidade a partir da aquisio dos produtos que l

    aparecem. Faz-se necessrio refletir se esses meios de comunicao de massa

    contribuem para o encurtamento do tempo da infncia e como a escola deve alargar esse

    tempo, que nico e to necessrio criana.

  • 32

    Na escola, para que haja uma relao profcua entre todos os atores no processo

    de construo de conhecimentos, a criana precisa se sentir pertencente. Essas crianas

    so cidados de direitos no tempo em que o vivenciam, a cada dia em que esto na

    escola. esse tempo presente e singular que tem de ser transformado e envolto de

    significado.

    Percebe-se, portanto, que um novo olhar para a infncia supe uma articulao

    curricular entre espao fsico, tempo, recursos materiais e humanos numa viso

    humanizadora e emancipatria.

    3.3 Ciclo Interdisciplinar: infncias e territrios

    ... Eu caminhava e memorizei a vizinhana. Fiz um mapa mental e me localizava nele.

    noite, na cama, eu ensaiava o esquema do meu pequeno mundo e criava desafios: achar a loja

    usando apenas os quintais das casas. Imaginar uma rota da escola at a casa do meu amigo.

    [] Caminhar foi o meu projeto antes de ler. O texto que eu lia era a cidade; o livro que eu escrevi era um mapa.

    (DILLARD, 1987, p. 42-44 apud CHRISTENSEN, 2010)

    O desafio de caracterizar os sujeitos do Ciclo Interdisciplinar exige pensar a

    palavra infncia no seu plural, tanto no sentido de considerar como sujeitos todos os

    envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, como no intuito de considerar a

    diversidade da infncia na cidade de So Paulo, em sua histria.

    So crianas pertencentes a diferentes configuraes familiares, de diferentes

    classes sociais, gneros e etnias, com deficincias e com potencialidades, que criam

    entre pares culturas locais, as quais precisam ser consideradas em sua integralidade e em

    suas singularidades.15

    Construir um currculo para a infncia na perspectiva do Ciclo Interdisciplinar

    e em uma metrpole com a dimenso e o conjunto de diferenciaes como os

    encontrados na cidade de So Paulo prope, escola pblica municipal e ao conjunto de

    educadores que nela atuam, o exerccio de promover a leitura de mundo das infncias

    que acolhe, no sentido de investigar suas condies concretas de existncia, bem como

    as prticas sociais presentes em seu cotidiano.

    Quem so essas crianas? De onde vm?

    O que conhecem da realidade onde esto?

    Quais so suas formas de ser e estar em sua moradia, na escola, no bairro, na cidade?

    Com quem se relacionam em seu cotidiano?

    15

    Em janeiro de 2015, a Rede Municipal de Ensino de So Paulo tinha 3.200 estudantes bolivianos, 393

    haitianos e um total de 4.323 crianas de pais estrangeiros, refugiados ou migrantes.

  • 33

    Costumam brincar? De que formas? Com quem?

    Elas trabalham? Cuidam de irmos e outros parentes? Que responsabilidades assumem?

    Assistem televiso? Quais programas demonstram ter maior interesse?

    Quais mdias esto presentes na vida do estudante?

    Jogam vdeo game? Com que tipos de games se identificam?

    Usam celular? De que formas e durante quanto tempo fazem uso dessas mdias?

    Como sua moradia? Como so suas refeies e com que frequncia se alimentam?

    Como elas se constituem como meninas e meninos?

    Frequentaram instituies de Educao Infantil?

    Que conhecimentos/noes constituram nesse percurso/processo?

    Essa investigao, que processo contnuo de todo educador e tarefa da rede,

    possibilita a identificao de quem so esses sujeitos, o que pensam essas diversas

    crianas, quais os interesses que as movem, como se relacionam com o conhecimento

    em suas diferentes dimenses, que tipo de vnculos existe entre os pares, quais os meios

    de criao e de expresso, quais seus valores, quais os modos de expresso cognitiva,

    afetiva e corporal, qual o grau de autonomia presente no grupo, o que esperam aprender,

    como acontecem na vida dessas crianas as experincias ticas, estticas e polticas

    informaes preciosas para um trabalho pedaggico no processo de ensino-

    aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar.

    O conhecimento e a cultura que as crianas trazem no podem ser considerados

    de ordem inferior ao conhecimento cientfico do qual so portadores os professores, os

    adultos que compem a escola ou que elaboram e estruturam o currculo. Ao contrrio,

    trata-se de um conhecimento autoral situado em determinada realidade, em ambientes

    especficos e ricos em potencial de curiosidade epistemolgica , que precisa ser

    reconhecido e explorado no processo, para que no se incorra no risco de sufocar, negar

    ou tornar esse conhecimento invisvel no ambiente escolar. Trata-se de saberes

    diferentes, e no inferiores. O professor, no processo de construo dos conhecimentos

    no contexto escolar, deve atuar garantindo o protagonismo do educando, sem perder a

    sua funo como coordenador da ao educativa, que se faz entre ele, a realidade, os

    estudantes e o conhecimento, em todas as suas fontes de investigao, na lgica de uma

    educao que construa uma Cidade Educadora.

    Alm do papel da educao na transformao da sociedade, preciso

    considerar o conhecimento como uma relao no hierarquizada entre cincia e arte; e

  • 34

    estas no apenas como patrimnio cultural acumulado a que todos tm direito ao acesso,

    mas tambm como processo permanente de construo de conhecimentos.16

    A garantia de direitos de aprendizagem aos sujeitos da infncia do Ciclo

    Interdisciplinar na escola pblica municipal passa pelo reconhecimento da potncia

    existente nas crianas, pelo reconhecimento do professor como intelectual reflexivo,

    pelo olhar de profissional sensvel e pela escuta sistemtica, rigorosa e atenta de todos

    os educadores que compem a instituio escolar. Os direitos de aprendizagem so

    garantidos tambm pela promoo da autoria e do protagonismo infantil presentes nas

    interaes entre adultos e crianas, entre professores e estudantes, entre todos os

    profissionais da educao e entre escola e famlia.

    Rigorosidade

    A rigorosidade metdica, conforme a Pedagogia da autonomia, implica criar condies que possibilitem o educando a aprender criticamente.

    A possibilidade de conexo do que se conhece da realidade imediata com o

    conhecimento produzido na escola e pela humanidade existe medida que o estudante

    se percebe como sujeito autnomo e portador de saberes. O desafio cotidiano das aes

    pedaggicas desenvolvidas nas Unidades Educacionais est na busca da materializao

    do encaminhamento didtico-educacional desses aspectos em seu Projeto Poltico-

    Pedaggico, garantindo uma educao pblica com qualidade social.

    A construo e consolidao de um currculo supe a compreenso conceitual,

    as reflexes coletivas e individuais, bem como a conscincia da necessidade de,

    permanentemente, problematizar nos espaos de formao os elementos do currculo em

    busca de construir coletivamente as condies para um currculo autntico, que

    considere os princpios ticos, polticos e estticos, traduzidos nos direitos de

    aprendizagem dos sujeitos do Ciclo Interdisciplinar.

    16

    Quando procuramos pensar as crianas e suas manifestaes expressivas e artsticas na interseco arte-

    cincia, o fsico e crtico de arte Mrio Schenberg (1987) nos oferece pistas bastante promissoras.

    Observa que o conhecimento cientfico deve ser proporcionado pelo desimpedimento da imaginao

    artstica e/ou pela fantasia [] O pensar criativo rompe fronteiras. Para Schenberg (1987), a imaginao fantstica pode tornar-se guia para a ao, sendo to ou mais eficaz que o simples raciocnio lgico

    (GOBBI; PINAZZA, 2014, p. 35).

  • 35

    4 CURRCULO: APROXIMAES CONCEITUAIS

    A palavra currculo est to presente no cotidiano escolar e nas

    representaes que se constroem sobre a escola que foi naturalizada e considerada

    como algo dado, imutvel e estvel. Referir-se ao currculo como algo pronto e

    imutvel, na maior parte das vezes, referir-se equivocadamente a um rol de

    conhecimentos selecionados que deve ser ensinado em um dado recorte temporal,

    direcionado a determinado pblico (ano/ciclo) e inserido numa dada rea do

    conhecimento (currculo de matemtica, currculo de lngua portuguesa, currculo de

    cincias da natureza etc.).

    preciso atentar para o fato de se tratar de um conceito, construdo social e

    historicamente, e que abarca em seu interior uma multiplicidade de interpretaes,

    concepes e relaes que no podem ser ocultadas ou naturalizadas.

    A origem semntica desse conceito encontra-se na palavra latina curriculum,

    que significa, em traduo livre, caminho, percurso e, em educao, assume o sentido

    de constituir o percurso ou a carreira docente. Originalmente, esse termo comea a ser

    utilizado para designar o plano de estudos proposto pela escola aos professores e

    estudantes.17

    Partindo, pois, da premissa de que se trata de um conceito e de que este se

    constri histrica e socialmente, cumpre observar que no seria possvel traar uma

    definio de currculo como a mais acertada ou ideal. Cada concepo carrega consigo

    um projeto de escolarizao, uma viso de formao dos sujeitos envolvidos no

    processo, influenciada pelas teorias e pelos modelos de nao ou polticos que se fazem

    hegemnicos em um dado contexto.

    A produo e a experincia de um currculo como percurso no podem ser

    dissociadas de um aspecto que parece central, qual seja o da reproduo e produo do

    conhecimento. Autores de diferentes correntes tericas convergem para o

    conhecimento, em suas diferentes acepes, como o centro nevrlgico do currculo.

    A construo social do conhecimento pressupe organizao e/ou

    sistematizao dos meios para que essa construo se efetive. O currculo o mtodo

    cientfico de construo coletiva do conhecimento escolar, bem como a articulao de

    17

    De tudo aquilo que sabemos e que, em tese, pode ser ensinado ou aprendido, o currculo a ensinar uma seleo organizada dos contedos a aprender, os quais, por sua vez, regularo a prtica didtica que

    se desenvolve durante a escolaridade (SACRISTN, 2013, p. 17).

  • 36

    sua transmisso, apreenso e produo, que inclui as relaes entre os sujeitos

    participantes e a definio de um suporte terico que o sustente (RIBEIRO, 1993).

    No ambiente escolar, o conhecimento estaria organizado em contedos de

    ensino, o que nos direciona para mais um conceito que pode estar carregado de

    polissemia.18

    O conceito de contedo de ensino no tem significado esttico nem

    universal, sendo uma construo social. Assim, os contedos expressam funes e

    valores que a escola difunde em seu contexto concreto. Essa perspectiva direciona a

    abordagem do contedo a outra leitura, analisando as determinaes que recaem sobre a

    escola, visto que o ensino no opera no vazio. 19

    A observao do espao escolar permite identificar, alm da ideia de rol de

    contedos, outros elementos de aprendizagem que revelam diferentes concepes do

    currculo: dado comportamento que o educando deve ter no espao escolar, a

    valorizao de determinados contedos em detrimento de outros, a postura dos

    professores, a relao perante a avaliao, entre tantas outras camadas. As avaliaes, a

    distribuio das carteiras na sala, a arquitetura, o mobilirio, o acesso s tecnologias so

    um dos sem nmero de componentes curriculares, frequentemente omissos por haver a

    reduo do currculo aos contedos, como se eles no tivessem formas.

    A partir dessa observao, possvel identificar um conceito de currculo,

    sempre considerado como histrica e socialmente situado, que abrange outros aspectos,

    bem como nos ajudam a refletir sobre qual currculo queremos construir. No espao

    escolar, o currculo se associa ao conjunto de esforos pedaggicos desenvolvidos com

    intenes educativas.20

    Currculo pode ser definido como um projeto seletivo de cultura, cultural,

    social, poltica e administrativamente condicionado, que preenche a atividade escolar e

    que se torna realidade dentro das condies da escola tal como se acha configurada

    (SACRISTN, 2000, p. 34). Seria, portanto, o que as escolas desenvolveriam para os

    18

    Ver Sacristn (1998, p. 150). 19

    O termo contedos nos apresentado carregado de uma significao antes intelectualista e culturalista,

    prpria da tradio dominante das instituies escolares nas quais foi forjado e utilizado. Ao mencion-lo,

    pensamos em elementos de disciplinas, matrias, informaes diversas e coisas assim. Por contedo se

    entenderam os resumos de cultura acadmica que compunham os programas escolares parcelados em

    matrias e disciplinas diversas. , por outro lado, um conceito que reflete a perspectiva dos que decidem

    o que ensinar e dos que ensinam, por isso, quando fizemos aluso aos contedos, costumamos nos referir

    ao que se pretende transmitir ou que os outros assimilem, o que na realidade muito diferente dos

    contedos reais implcitos nos resultados que o/a aluno/a obtm (SACRISTN, 1998, p. 150). 20

    Ver Moreira; Candau (2008, p. 18).

  • 37

    estudantes e com eles, por meio do Projeto Poltico-Pedaggico, que contm aspectos

    culturais e educacionais, entendidos ou considerados mais adequados.21

    possvel identificar trs conjuntos de condicionantes na estrutura desse

    currculo: a seleo cultural, as condies institucionais e os fatores de cunho filosfico-

    terico, ou seja, as concepes curriculares, conforme apresentado na Figura 5.

    Figura 5 Estrutura do currculo: elementos determinantes Fonte: SACRISTN, 2000, p. 36.

    Trata-se, portanto, do conjunto de experincias educativas s quais os

    educandos esto expostos no ambiente escolar. Tal proposio implica considerar que a

    composio de um currculo abarca atores diversos, foras convergentes e divergentes,

    conjunturas socioculturais e econmicas, e se efetiva no interior de cada ambiente

    educativo, nas trocas promovidas entre educadores e educandos, explicitando um

    conjunto de variveis presentes nesse processo de construo.

    21

    Ver Sacristn (2013, p. 24).

    CURRCULO COMO

    CULTURA DA

    ESCOLA

    Contedos

    Cdigos

    Explcito

    Oculto

    SELEO CULTURAL

    O que se seleciona

    Como se organiza

    CONDIES INSTITUCIONAIS Poltica curricular Estrutura do sistema educativo Organizao escolar

    CONCEPES CURRICULARES

    Opes polticas

    Concepes psicolgicas

    Concepes epistemolgicas

    Concepes e valores sociais

    Filosofias e modelos educativos

  • 38

    Essas relaes entre os atores e interesses diversos abarcam dimenses visveis

    e dimenses ocultas, criando representaes no previstas no plano de aula, como a de

    que existem conhecimentos teis e inteis, vlidos e invlidos; valores legtimos e

    ilegtimos; condutas aprovveis e reprovveis um currculo, tambm, oculto.

    Por essa razo, h a necessidade de observao, percepo, registro sistemtico

    e analtico junto aos atores presentes na escola. Exige-se, assim, um estudo que busque

    identificar o que os educandos carregam para dentro do espao educativo e que aponte

    para as possibilidades de ampliao da leitura de mundo e de repertrio cultural e

    cognitivo de todos os envolvidos.

    4.1 Currculo: o que temos? O que queremos?

    Refletir a respeito do currculo muito mais do que pensar sobre o que ensinar.

    tambm compreender o que o currculo faz com as pessoas, contemplando assim a

    perspectiva da construo/elaborao das aprendizagens dos estudantes e dos

    educadores, considerando que ser humano se deseja formar, em um pas marcado pela