Diálogos sobre aristides_de_sousa_mendes

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Escola Conde de Oeiras / Paróquia de Carcavelos Aristides de Sousa Mendes Um Herói Português que Ousou Desobedecer a uma Norma de um Governo para Obedecer à Lei Suprema da Consciência “Prefiro estar com Deus contra os homens do que estar com os homens contra Deus” (A.S.M.) Apoios Pro Dignitat Fundação Aristides de Sousa Mendes Gráfica de Coimbra

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Diálogos Sobre Aristides de Sousa Mendes. Colóquio (resultado de um projecto) realizado na EB23 Conde de Oeiras.

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Escola Conde de Oeiras / Paróquia de Carcavelos

Aristides de Sousa Mendes Um Herói Português que Ousou Desobedecer a uma Norma de um Governo para Obedecer à Lei Suprema

da Consciência

“Prefiro estar com Deus contra os homens do que estar com os homens contra Deus” (A.S.M.)

Apoios Pro Dignitat

Fundação Aristides de Sousa Mendes Gráfica de Coimbra

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Diálogos Sobre Aristides de Sousa Mendes

Projecto Interdisciplinar Promovido por:

Coordenação: José Alves Baptista

Colaboração: • Embaixada de Israel • Ministério dos Negócios Estrangeiros • Museu República e Resistência

Impressão: G.C. - Gráfica de Coimbra, Lda.

Escola Conde de Oeiras Departamento de Ciências Sociais e Humanas:

• E.M.R.C. • Geografia • História

Paróquia de Carcavelos Equipa de casais de Nossa Senhora:

• Dr. José Soares • Dr. Rui Barreira • Dr. Tiago Gomes

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Abertura

Hino da Alegria

“Ode à Alegria”

Adaptação Portuguesa do Coral final da 9ª Sinfonia de Beethoven Alunos das professoras Angelina Monteiro e Isabel Hayden

Escuta irmão

A canção da alegria O canto alegre

De quem espera Um novo dia

Refrão

Vem, canta

Sonha cantando, Vive esperando

Um novo sol Vem,

E os homens Voltarão a ser irmãos

Se em tua vida Só existe A tristeza

O canto amargo De uma total solidão

Refrão

Vem, canta

Sonha cantando, Vive esperando

Um novo sol Vem,

E os homens Voltarão a ser irmãos

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Boas Vindas

Prof. Aires Pereira – Presidente do Conselho Executivo

Sejam bem-vindos. Na qualidade de anfitrião, cabe-me a tarefa de vos dar as boas-vindas e cabe-me a honra de vos cumprimentar e de vos agradecer a presença e agradecer porque “solidariedade” é reconhecida mundialmente como qualquer coisa que não deve perder-se, que se deve cultivar, e agradeço-vos porque vocês a cultivam ou não estaríeis de certo aqui.

Cumprimento a ilustre mesa. Não vos vou maçar porque palavras mais importantes que as minhas serão de certeza ditas por aqueles que tendo sido convidados, naturalmente vos querem deixar a sua mensagem. Vou passar a palavra ao Professor José Baptista que foi o grande responsável, o grande artesão deste acontecimento.

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Introdução

Muito obrigado Sr. Presidente pelas suas palavras e por todo o apoio que deu a este projecto. Antes de passar a apresentar os nossos convidados, gostaria de dizer que este colóquio é o culminar de um projecto que começou no Departamento de Ciências Sociais e Humanas, que foi aprovado pelo Conselho Pedagógico presidido pela Professora Ana Antunes, que rapidamente se alargou a toda a Escola e envolveu todos os alunos, quase todos os grupos disciplinares de todos os Departamentos, em especial os Grupos de Ed. Musical, E.V.T, E.V., Língua Portuguesa, etc.

Os cerca de oitocentos alunos da Escola visionaram um documentário sobre Aristides de Sousa Mendes; viram três exposições (uma do Museu República e Resistência, outra do Ministério dos Negócios Estrangeiros e outra da Embaixada de Israel) que juntámos numa só e intitulámos “ Vida e Obra de Aristides de Sousa Mendes”.

Para este Colóquio tivemos de fazer opções. Seguramente muitos gostariam de estar aqui para participar e colocar questões, mas dada a exiguidade do espaço tal não foi possível. Veio apenas um aluno por cada turma para que todas as turmas estivessem representadas. O mesmo aconteceu com os pais. Se tivéssemos mais espaço, estariam aqui seguramente largas dezenas ou talvez centenas de Encarregados de Educação. Mas pelas razões apontadas só pudemos convidar um representante dos pais por cada turma. Os professores desta Escola estão quase na totalidade assim como também as pessoas convidadas, excepto a Senhora Ministra da Educação que, tendo sido convidada, alegou dificuldades de agenda… Com todas estas opções e restrições, em parte contrárias à nossa vontade, penso que toda a comunidade educativa está aqui muito bem representada. Tenho a honra de apresentar os nossos convidados: à minha direita está o Senhor Embaixador de Israel, Aaron Ram, à minha esquerda o Dr. José Sousa Mendes, a Doutora Maria de Jesus Barroso e o Major Álvaro de Sousa Mendes. Obrigado a todos por terem aceite o nosso convite para deste modo nos ajudarem a compreender melhor a vida e a obra de Aristides de Sousa Mendes. E sem perder mais tempo, passaria já a palavra à Doutora Maria de Jesus Barroso para nos falar de Aristides de Sousa Mendes: O Homem e o Diplomata – Exemplo na Educação para a Paz.

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O Homem e o Diplomata – Exemplo na Educação para a Paz Intervenção da Senhora Doutora Maria de Jesus Barroso Soares:

Senhor Director, senhor Presidente da Mesa, senhores professores, alunos, senhoras e senhores, amigos que estão aqui reunidos.

Vamos fazer não propriamente uma palestra mas antes uma conversa. Vamos responder a perguntas que possam ser-nos feitas. Dará mais calor àquilo que nós queremos fazer e maior naturalidade. Um discurso já escrito é sempre mais seguro, melhor sim senhor, mas vamos antes conversar, estabelecer um diálogo. Quero começar por dizer que me sinto muito feliz de vir aqui a esta escola. Tenho uma simpatia muito especial pelas escolas, considero que são de facto uns lugares privilegiados para a educação e formação das crianças; para as formar, para as ajudar a descobrir os grandes valores humanos e para prepará-las para o exercício responsável da cidadania quando atingirem a idade devida. Sempre me movi entre os jovens e sinto-me por isso muito feliz por estar entre eles uma vez mais.

Sabemos que o mundo hoje está difícil, temos notícias de grandes problemas, angústia, sofrimentos em vários lados. Não podemos hoje dizer:”Eu não sei, é lá muito longe, eu ignoro, eu não vi”. Não, ninguém pode dizer isso e todos têm que dizer um pouco aquilo que o John Donne, que era um poeta inglês do Século. XVI, em determinada altura disse: ”Não há morte de um homem que não me diga respeito porque pertenço à Humanidade”. Ora é essa consciência de pertença à Humanidade que nós temos que transmitir, que fazer crescer nos nossos jovens, nos nossos alunos.

Eu começaria por ler só, como há muitos oradores, uma mensagem de um ilustre português, um homem de grande envergadura intelectual, cívica, moral, quando era ministro e que numa publicação que organizámos com um Museu e também com outras instituições sobre a vida de Aristides de Sousa Mendes, escrevia: “Heróis não são apenas os que lutam nos campos de batalha ou que vivem aventuras empolgantes. Herói é também o homem que, correndo contra o tempo, assina vistos de trânsito a milhares de judeus em fuga numa França ocupada pelos alemães contra a ordem expressa do ditador e sabendo que seria alto o preço a pagar por essa desobediência. Aristides de Sousa Mendes é uma figura marcante da modernidade: ao conforto da sua vida pessoal e familiar, ao sucesso da sua carreira diplomática contrapôs a defesa dos valores da solidariedade, do respeito pela diferença e, sobretudo, os valores impostos pela sua consciência de cidadão. Assim, homenagear Aristides de Sousa Mendes é procurar seguir o seu exemplo. Devo, pois, afirmar junto das gerações mais jovens a relevância deste exemplo de vida e de serviço. Ser-se cidadão livre e responsável hoje é tomar consciência de quem precisa de solidariedade e quem precisa de apoio e de respeito. O valor da dignidade humana tem de ser, assim, realçado contra a indiferença e o egoísmo”. (Guilherme d’Oliveira Martins). Quer dizer, nós não podemos ficar indiferentes às acções desencadeadas por cidadãos portugueses ou de qualquer outra nacionalidade que no mundo, pela sua actuação, cívica e moral, se posicionaram como referências muito importantes que perduram no tempo. Quando

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nós hoje nos lembramos, - para não falar só de Aristides de Sousa Mendes, - de outras grandes figuras, do Nelson Mandela que ainda é vivo, dum Luther King que desapareceu, de grandes figuras que de facto marcaram a Humanidade pelo seu amor a essa Humanidade, ao seu próximo, nós temos que não ficar apenas com esses conhecimentos para nós próprios, temos que os transmitir aos mais jovens. É por isso, aliás, que hoje estamos aqui com certeza, é porque os que dirigem esta casa querem fazer saber aos mais jovens qual foi o percurso destes homens, qual foi a sua história, porque é que hoje os lembramos, porque é que hoje consideramos que eles foram heróis e continuam a ser, embora já desaparecidos fisicamente alguns deles, continuam a ser heróis para todos nós. Aristides de Sousa Mendes nasceu há muitos anos no norte de Portugal, em Cabanas de Viriato, ao pé de Viseu, onde ainda existe uma sua casa que nós, aliás, queremos aproveitar para fazer dela um museu da paz É um sonho que já vem de longe. Mas vamos persistir nesse nosso sonho, nessa nossa determinação. Estou convencida que conseguiremos. De maneira que este homem que se meteu na carreira diplomática e que portanto tinha à sua frente um percurso fácil, feliz, cómodo, este homem, foi para determinados pontos, esteve em vários pontos do mundo, em missão diplomática. Esteve no Brasil, como cônsul, e aí se distinguiu exactamente pela sua acção, pela sua generosidade, pela sua competência. Ora este homem assistiu a uma guerra terrível que foi a II Guerra Mundial e recebeu ordens dos seus superiores em Portugal para não se imiscuir nos problemas que resultavam dessa Guerra Mundial. Recebeu mesmo ordens para não passar vistos ou fazer quaisquer concessões a cidadãos que se encontravam no sítio onde ele exercia as suas funções. Mas ele, que era um homem de consciência, um cidadão de uma consciência cívica muito forte e que era um cristão, um católico, pensava e muito bem, que não era só a teoria que lhe interessava, que lhe interessava pôr em prática essa teoria. Era preciso que a sua actuação fosse exactamente o pôr em prática essa teoria, esses princípios que ele tinha ingerido e que foram a inspiração de toda a sua actuação. Ele, encontrando-se a certa altura em Bordéus, como cônsul, é testemunha do horror que à sua volta se instala. Vê os rostos cheios de angústia, cheios de sofrimento e o desespero das pessoas que tinham notícia do que se passava com os alemães, os nazis. Eles tinham conhecimento de que existiam uns campos para onde eram enviados aqueles que eles aprisionavam e consideravam que não tinham o direito de ser cidadãos livres de um mundo livre. Por isso criaram os chamados campos de concentração. Eu penso que os nossos jovens já ouviram falar nisso e que era importante que vissem, acompanhados dos pais ou dos professores, de pessoas mais velhas, que fossem visitar um desses campos de concentração. Eu devo dizer que tenho um neto que quando estava na véspera de fazer treze anos e sabendo que eu ia a Weimar me disse: “Eu gostava muito de ir com a avó”. Eu fazia parte de uma comissão europeia que me obrigava a ir lá e disse-lhe: Sim senhor, a avó, se os pais deixarem, dá-te como prenda de aniversário a ida comigo. Perto de Weimar há o campo de Buchenwald que é um campo de concentração onde estiveram muitos cidadãos, onde foram mortos, exterminados muitos cidadãos de várias nacionalidades e onde esteve um grande escritor, felizmente ainda vivo, que se chama Jorge Semprún, (não sei se algum de vós já leu algum livro dele), que nasceu em Espanha mas que viveu e vive em França. Este Jorge Semprún, entre os vários livros que escreveu, escreveu um que se chamava “L’écriture ou la vie”, e ele diz aí, a certa altura, o seguinte, e que eu nunca

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mais esqueci: “Nós não escapámos da morte, nós regressámos da morte”. Porque estar num campo de concentração não era viver; estar num campo de concentração era morrer em cada hora, em cada minuto, em cada segundo. Ainda há pouco tempo saiu um livro de uma grande mulher francesa que se chama Simone Veil e que foi Primeira-Ministra de França; uma mulher de grande, grande envergadura moral e cívica. Ela tem ainda no braço o número de prisioneira no campo de Auschwitz e no seu livro “Une Vie” - que é um livro sobre a vida dela, uma autobiografia - ela fala nisso, fala na passagem por lá, pelo campo de concentração. Se lerem um dia, por exemplo, os livros de um italiano que morreu há poucos anos e que se chamava Primo Levi, vocês todos ficarão impressionados com o que lá está escrito. Primo Levi tem, entre outros, um livro que se chama “Se questo è un uomo” (“Se isto é um homem”). É um livro que se lê tendo que fazer pausas para respirarmos fundo, para aguentarmos a emoção que nos provoca cada página que lemos porque aquilo era de facto um horror, era a morte e não a vida. Passava-se em Auschwitz, onde esteve internado. Devo dizer-vos que eu visitei campos de concentração: de Buchenwald como disse, Auschwitz e um outro. Devo dizer--vos que Auschwitz foi o campo de concentração que maior impressão me fez porque vi os fornos crematórios, as bocas dos fornos onde as pessoas vivas, despidas e descalçadas, eram metidas. Tiravam-lhes o vestuário, os sapatos, tudo aquilo que possuíam, até os cabelos. Às mulheres era-lhes cortado o cabelo pelas guardas para fazerem almofadas. Imaginem, meus amigos, como se um ser humano normal fosse capaz de deitar a cabeça numa almofada sabendo que ela era de cabelos de gente que tinha estado num campo de concentração e tinha morrido ou num forno crematório ou numa câmara de gás. E nós vemos essas câmaras de gás, e vemos depois, no fim, vitrinas com sapatos, enormes, de homens, de mulheres e sapatos pequeninos de pezinhos de crianças. É uma emoção tão grande ao ver aquilo! Há, por exemplo em Auschwitz, uma vitrina com os cabelos das mulheres; há outra vitrina com as próteses dos deficientes porque os nazis, - o Hitler e a equipa que o secundava nos crimes que cometeu -, entendiam que um deficiente não tinha o direito de existir, só o tinha a raça pura, o homem perfeito. Eram portanto os arianos, esses é que tinham o direito de existir. Vejam a desumanidade disto, a desumanidade que isto revela da parte destes homens. Felizmente que eles não venceram a guerra e o Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português que teve notícia do que se passava, do que se fazia, do sofrimento que era infringido a esta gente, dos crimes que eram cometidos, o Aristides de Sousa Mendes, embora tendo ordens do governo português para não proteger ninguém, passou cerca de trinta mil visas, trinta mil passaportes para as pessoas poderem fugir dali e escaparem ao horror dos campos de concentração.

Forno crematório de Auschwitz

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Eu devo dizer-vos que quando o meu marido era Presidente da República organizei com o que era chefe da comunidade judaica então, o meu querido amigo Dr. Joshua Ruah e com o Conde Botelho, uma semana de homenagem ao Aristides de Sousa Mendes e veio gente de toda a parte do mundo para juntar-se a nós nessa homenagem. Um dos que veio, com um chapéu à texano (vocês sabem, aqueles chapéus muito largos) mostra-me um cartão com a assinatura do Aristides de Sousa Mendes e disse-me assim: “Este foi o visa que salvou a vida do meu pai”. E foram imensos, imensos, os que Aristides de Sousa Mendes salvou - gente da família dos Grão-Duques do Luxemburgo, da família de Habsburgo, de todas as partes do mundo, de classes mais elevadas ou de classes mais humildes, eram seres humanos para ele, seres humanos em sofrimento e ninguém tinha o direito de lhes tirar a vida. E ele que se sentia um católico fervoroso e sincero disse em determinada altura - e muito bem - que preferia ficar bem com Deus embora mal com alguns homens, do que bem com alguns homens desapiedados e mal com Deus. E isto fez que ele salvasse aquela gente toda, aquela enorme quantidade de seres humanos que salvou. Eu, pela primeira vez vi o nome dele no Museu do Holocausto, em Israel. Foi pouco depois do 25 de Abril. Convidaram-me para participar numa conferência de mulheres de todas as partes do mundo e como se realizava em Israel, fomos visitar o Museu do Holocausto. Quando cheguei ao fim do Museu do Holocausto eu tinha a cara completamente lavada de lágrimas porque ninguém assiste àquilo, ninguém toma conhecimento do que ali se conta sem ficar profundamente comovido, profundamente chocado. Também fui assistir em Washington à inauguração do Museu do Holocausto e nesses museus lá vi o nome do Aristides de Sousa Mendes: uma árvore no Museu do Holocausto, em Israel, que depois revisitei mais tarde e em Washington também. Portanto, ficou ali marcado como um justo, como um cidadão exemplar que salvou muitas vidas humanas. Salvou israelitas com certeza, salvou judeus (pelo menos dez mil) mas salvou gente doutras etnias, doutras convicções religiosas, doutras culturas porque o que lhe interessava eram os seres humanos. É isso que eu gostava que os nossos jovens também, ao verem e ao saberem do percurso de cidadãos como este, pensassem bem e fizessem que eles fossem referências para si próprios, fossem motivo de inspiração para a sua acção. O amor ao próximo, o respeito pela diferença, todos esses grandes valores que vocês aprendem a descobrir - em casa, que é a primeira escola que se frequenta, depois a escola propriamente dita onde os vossos professores, os agentes de educação, quem cuida da vossa formação vos ajuda a descobrir esses valores ou a reforçar esses valores. Eles serão importantes para quando, mais tarde, lhes for exigido o exercício da cidadania, o façam em perfeita consciência daquilo que fazem. Que o façam como cidadãos justos, cidadãos solidários, cidadãos respeitadores e amantes do próximo. Isso é fundamental! Só assim é que nós conseguiremos um mundo diferente daquele em que estamos a viver: - com guerras e massacres no Darfur, com genocídios no Ruanda, com guerra no Iraque, por exemplo. Não se compreende que neste século ainda se repitam os crimes que foram cometidos no passado. Não é verdade? Vocês com certeza nas vossas aulas de História e noutras aulas não só de História, têm conhecimento do que foram estas guerras, dos crimes que se cometeram. Eu trago-vos uma carta para vos ler e que é de um jovem que esteve num campo de concentração. É uma carta que foi publicada no “New York Times” aqui há anos. A carta diz:

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“Caro Professor, eu não acredito na educação”. E porque é que ele diz isto? Ele diz: “Eu sou um sobrevivente dum campo de concentração e eu vi nesse campo de concentração enfermeiras muito bem preparadas ensinarem como se matava melhor, com mais requinte. Eu vi engenheiros muito bem preparados como engenheiros ensinarem como se matava em maior número. Eu vi professores também muito bem preparados mas serem coniventes com esses crimes e até ensinarem a cometer mais brutalmente esses crimes”. E dizia ele: “Por isso eu não acredito na educação”.

E acrescentava: - a matemática, as ciências, a literatura, as línguas, a química, a física, tudo isso é muito importante e é necessário que saibamos porque isso são os conhecimentos de que nós necessitamos para podermos preparar-nos e exercer a cidadania também nos diferentes sectores em que nos inscrevermos. Mas dizia: “esses conhecimentos, esses saberes não valem nada se não forem acompanhados dos grandes valores humanos porque se não, o que nós estamos a preparar é cidadãos desumanizados, ‘Eichmans’ instruídos. Por isso eu não acredito na educação”, diz ele para o professor e faz um apelo ao professor: “Caro professor, faça, prepare os seus alunos para que

eles sejam de facto cidadãos conscientes, responsáveis, humanos e solidários”. “Eichmans”, vocês sabem quem foi o Eichmann não sabem? Foi um alemão que mandou matar milhares e milhares de cidadãos. Hannah Arendt, que é uma filósofa que já morreu também, conta que foi assistir ao julgamento dele e que ele mostrou que sabia filosofia, sobretudo a filosofia kantiana mas de que é que lhe serviu? De que é que lhe serviu saber essa filosofia? De que é que lhe serviu todo esse conhecimento e outros, se ele não tinha, não estava recheado dos grandes valores humanos que o fizessem respeitar e amar o seu próximo? E eu gostava que os nossos jovens se preparassem de facto para um mundo melhor, para transformarem este mundo num mundo de solidariedade, de paz, de justiça, de amor. Houve uma grande figura da Igreja que desapareceu há poucos anos que se chamava João Paulo II (O Papa João Paulo II) que falava exactamente na “Cultura do Amor”, na “Civilização do Amor”. É para essa civilização do amor que eu quero que vocês sejam preparados e a grande lição de Aristides de Sousa Mendes, foi uma lição de amor que eu queria que ficasse metida nas vossas cabecinhas e sobretudo nos vossos corações e que vos sirva de inspiração, para quando forem chamados a exercer a cidadania, poderem fazê-lo com a maior dignidade. Peço desculpa, fizeram muito bem dizer que eu só tinha três minutos. Eu não quero ser desobediente e há aqui muita gente para falar e melhor do que eu certamente. E, quando trago coisas escritas, vou começar a ler mas vejo os vossos olhos e dá-me vontade de falar com o coração, dá-me vontade de deixar os discursos que eu escrevi e de falar também aos vossos corações - do meu coração para o vosso coração. Porque eu tenho muita fé em vocês. Muito obrigada.

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O Drama Familiar – Perspectiva Histórica

Introdução: Depois desta excelente intervenção da Doutora Maria de Jesus Barroso, com palavras tão sábias e experientes, vamos ouvir o neto de Aristides de Sousa Mendes, Major Álvaro, para nos falar do Drama Familiar – Perspectivas Históricas. Intervenção do Senhor Major Álvaro de Sousa Mendes Senhor Embaixador, restantes membros da mesa:

Eu queria dizer que tenho muito gosto em estar aqui como neto de Aristides de Sousa Mendes e, enfim, numa perspectiva um bocadinho mais pessoal, talvez, falar do gesto de um homem que me impressionou desde sempre. Desde garoto que me habituei a ouvir a história do meu avô contada em casa; ela não podia, obviamente, ser contada fora, mas em casa ouvia sempre com muito amor, com muita atenção. Aquela história impressionava-me.

Vou dizer duas palavrinhas sobre aquilo que Aristides de Sousa Mendes, (o meu avô) e a família dele sofreram, o “drama” do que se passou após a acção dele, em 1940, em Bordéus. Decerto conhecem as circunstâncias em que Aristides de Sousa Mendes interveio em Bordéus. Ele foi colocado em Bordéus em Fevereiro de 1938. Eu creio que nessa altura ele já sabia que a Europa estava ameaçada por uma provável II Guerra Mundial e, o que veio a acontecer a partir do dia 1 de Setembro de 1939.

A guerra trouxe-lhe problemas muito grandes. Nessa altura ele já estava em Bordéus. Mas antes passou por Antuérpia, na Bélgica, onde teve, durante oito anos, um bom papel como diplomata. Acho que foi uma altura muito feliz da vida de Aristides de Sousa Mendes e também da sua família; ele era o decano do corpo diplomático, nessa altura, em Antuérpia e

aquilo que eu sei é que passaram momentos felizes. Tinham catorze filhos vivos, nessa altura, uma boa parte deles a estudarem nas

universidades, os outros nas escolas. Creio que foi um bom momento, embora dois dramas tenham atingido os meus avós: primeiro morreu-lhes o filho mais velho, Manuel, acabado de se formar em Direito; creio que quando estavam a festejar a formatura, em casa, ele foi acometido de um ataque e faleceu. A seguir morreu a menina mais nova, a Raquel. Em

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Antuérpia, de catorze passaram a doze filhos. Apesar de tudo, penso no entanto que foi um momento feliz. E penso mais, penso que o meu avô com a sua família, porque andaram por todo o mundo (Brasil, Estados Unidos, Espanha), enfim, por uma série de países, que foram sempre uma família muito feliz.

O meu avô tinha um grande prazer na família que tinha, acompanhava-os a todos, preocupava-se com os seus estudos, preocupava-se com as doenças, preocupava-se com tudo, como qualquer pai, naturalmente. Este foi um momento de facto feliz para eles, mas de grande tristeza, também: morre o filho mais velho, morre a filha mais nova. Eu tenho indicações de que o meu avô, quando foi nomeado para Bordéus, não era propriamente o sítio para onde ele gostaria mais de ir nessa altura, porque ele sabia que era uma zona de perigo. Mas ele não baixou os braços, pois sabia que alguma coisa o esperava, ele tinha a noção que alguma coisa de terrível se aproximava, que era a II Guerra e a guerra, de facto, começa no dia 1 de Setembro de 1939. Ele é confrontado com uma série de pedidos de refugiados.

Vocês sabem que as tropas nazis

começaram a invadir uma série de países e, quando começam a invadir países, há refugiados resultantes dessas invasões; o que se passa é que a maior parte dos países tinham representações diplomáticas em Bordéus, que acabou por ser nos últimos dias a capital de França. O Governo francês passa para Bordéus, em Junho de 1940, e portanto há muitos refugiados que afluem a Bordéus. Como digo, a maior parte das representações diplomáticas estavam fechadas, Aristides de Sousa Mendes era um dos poucos diplomatas daquela altura, em Bordéus, com portas abertas e é confrontado com uma série de pedidos. Ele tentou satisfazer o máximo de pedidos: começou por pedir ao Governo central, que era o Governo de Salazar, autorização para refugiados entrarem em Portugal, mas nessa altura as comunicações eram muito complicadas, eram difíceis; portanto, entre o pedido e a autorização as coisas eram complicadas, efectivamente. É claro que o meu avô não podia esperar, ele sentia que tinha que passar vistos a uma série de pessoas que estavam numa aflição indescritível, com os parentes a morrerem, o pai, a mãe, o avô, os filhos, enfim, uma série de problemas. Então, começou a passar vistos muitas vezes antes de receber a autorização e eu quero referir que normalmente a autorização, que vinha tarde e a más horas, era negativa. Aliás, houve uma circular que proibia os diplomatas de passarem vistos a uma série de pessoas que eram refugiadas. O meu avô passou vistos muitas vezes contra as ordens que recebia. É claro que isto tinha que ter o seu preço e o preço foi o castigo.

Aristides de Sousa Mendes durante três dias, 17, 18 e 19 de Junho de 1940, passou vistos, calcula-se que a trinta mil pessoas. Esteve dia e noite sem dormir, praticamente sem comer, com pouco descanso, pouco alimento, a passar vistos, numa ânsia tremenda para conseguir salvar um número máximo de pessoas. A vida em França, a vida em Bordéus, a vida da França como nação independente estava a chegar ao fim. As tropas nazis invadiam com toda a força a França.

Entre o dia 24 e 25 de Junho o meu avô foi chamado pelo governo português para regressar a Portugal. Regressa a Portugal, é-lhe instaurado um processo disciplinar que teve consequências tremendas na vida dele, consequências tremendas na vida da família dele que,

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nessa altura, como eu disse, eram doze filhos. Então o meu avô ficou sem vencimentos nessa altura, ficou numa situação deveras complicada para dar estudos aos seus filhos, para dar alimentação, para vestir, tudo isso era muito complicado. Ele convidou então os filhos a saírem do País, a irem para os países onde muitos deles tinham nascido, muitos nasceram nos Estados Unidos e foi para lá que foram, ou no Canadá e foi para lá que foram. Portanto, eles fugiram de Portugal porque o meu avô não tinha possibilidades nenhumas de alimentar uma família tão grande e convidou-os a fugir.

Desembarque na Normandia Eu queria contar aqui um episódio muito curioso nesta fuga, nesta saída dos meus tios

de Portugal. Houve dois que se ofereceram para o exército americano exactamente para lutar contra os nazis. Eu tenho apontamentos do meu avô dessa altura, em que ele revela esta história. Nós sabíamos, mas a história contada por ele é uma outra história, é uma história muito curiosa, em que ele manifesta a sua satisfação, a sua felicidade por dois dos seus filhos estarem a contribuir para a libertação; libertação esta que, como sabem, se deu em 1945 com o Desembarque na Normandia, onde estavam estes dois dos meus tios, que participaram nesse desembarque. Ele conta esta história, (eu tenho isso comigo, penso fazer em breve um pequenino folheto sobre isso para dar às pessoas, porque acho muito interessante) mas o que é interessante é a felicidade dele!

Porque ele também lutou contra as perseguições nazis, ele lutou da maneira que pôde: passando vistos que salvaram pessoas. Os meus tios também lutaram, dessa maneira, para acabar com o regime nazi.

Penso que não vou dizer mais nada. Vamos estabelecer um diálogo entre todos, entre vós, jovens, para fazerem perguntas a todos nós e é com todo o gosto que estamos aqui para responder. Muito obrigado.

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A Dimensão Humana e o Caminho Espiritual

Introdução:

Ouvimos um pedacinho do drama familiar e da perspectiva histórica. Seguidamente o Dr. José de Sousa Mendes vai falar-nos da dimensão humana e espiritual, isto é, porquê é que Aristides de Sousa Mendes, um homem com doze filhos, com uma carreira brilhante, arriscou toda a sua vida, toda a sua carreira, a carreira dos seus filhos para salvar pessoas anónimas, pessoas de que ele nunca ouviu falar?

Intervenção do Senhor Dr. José da Mata Sousa Mendes

Muito obrigado. Eu já cumprimentei os membros da mesa quando esta ainda não estava formada… Aliás, antes tive ainda um grande prazer: como cheguei um pouco mais cedo, pude presenciar aqui alguns eventos escolares, nomeadamente a corrida em que os alunos participaram. Eram várias dezenas, para não dizer centenas… Antes da largada, rodearam-me porque perceberam que eu era um familiar de Aristides, filho do irmão gémeo César.

Tive a grande felicidade de conviver com ele durante vários anos, quer directamente quer através dos contactos com o meu pai que sempre foi muito amigo do seu irmão, que por sua vez lhe retribuía a amizade. Isto durou até aos meus dezoito anos, quando já era caloiro na Faculdade de Direito de Lisboa. Um dia, 3 de Abril de 1954, Aristides faleceu no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa. Vi o seu corpo amortalhado, envolto no hábito de S. Francisco. Não estava presente nenhum dos seus filhos, a maioria a viver fora do país. Aristides morria na miséria.

Quero dizer que, ao subir as escadas, fiquei comovido ao ouvir o vosso coro, presenteando-nos com uma grande interpretação do “Hino da Alegria”. Foi um momento muito emocionante que para mim ainda se tornou mais emocionante talvez pelo seguinte: é que, ao subir, olhando para as várias fotografias expostas, no último lance das escadas, no lado direito, vi uma fotografia que diz: Varsóvia, e mostra um rapazito que, como alguns de vocês, aparenta ter uns seis ou sete anos. Deveria ser uma fotografia talvez dos anos 41 ou 42 do século passado. Ora eu, que nasci em Varsóvia, de onde sai já muito próximo do dia 1 de Setembro de 1939, data do início da invasão nazi da Polónia, tive a sorte que aquele pequeno não teve. Enquanto ele fora levado para um campo de concentração, eu tinha partido no último comboio que, da Polónia, atravessou a Alemanha antes de deflagrar a guerra, chegando a Portugal, Beira Alta, em meados do mês de Agosto de 1939. Portanto, eu fui um grande beneficiado do destino, melhor, da Providência divina. Isso não deixou de me emocionar bastante como agora mesmo ao falar não consigo esconder.

Ontem, realizou-se uma sessão muito interessante na Assembleia da República, onde tive também o prazer de estar, sobre a criação do Museu Virtual Aristides de Sousa Mendes. Quem está familiarizado, como todos vocês estarão, com a Internet pode ir ao site indicado e facilmente identificável, relativo a esse Museu Virtual, onde existe uma quantidade de informação acerca de Aristides, sobretudo relacionada com aqueles momentos mais gloriosos, digamos assim, da sua vida. Falei então, pela primeira vez com uma senhora, que admiro e que é a Presidente da Comunidade Judaica de Lisboa, a Jornalista Esther Mucznick e lembrei-me de que ela tinha escrito um artigo muito interessante no Público de 1 de Março de 2007 sobre o programa “Os Grandes Portugueses” portanto numa data anterior ao desfecho da votação incluída nesse programa. Nesse artigo ela pergunta: “O que é um grande português?”. Depois de enumerar vários critérios, interrogar-se: “Alguém que simplesmente tenha tido a coragem de seguir a sua consciência?” em seguida, conclui assim: “ Aristides de Sousa

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Mendes foi um homem que não mudou Portugal, não mudou o Mundo, não marcou a História mas seguiu outra forma de ser um grande português e um grande homem que é não desviar o olhar do sofrimento alheio, é ter a força da compaixão e a coragem de agir em conformidade”. Acho que é uma mensagem muito sintética e uma forma muito bonita de dizer sobre aquilo que realmente distinguiu – distingue! - Aristides.

Penso que a História não lhe dará razão quando diz que é um homem que não mudou Portugal, não mudou o Mundo, não marcou a História, porque tenho fé que vocês, que são as primícias das novas gerações de jovens, se seguirem as pisadas de Aristides, como é de esperar pelo entusiasmo que aqui nesta escola mostraram ter pela sua personalidade e pelos seus feitos, como também noutras escolas tem acontecido, provarão o contrário. Estou convencido que realmente haverá mudanças que mais tarde um observador atento poderá reconhecer como influenciadas em parte pela vida de Aristides.

A jornalista que referi, fala da consciência e eu pergunto: Aristides teve a coragem de seguir a sua consciência, mas que consciência era essa? A Senhora Doutora. Maria de Jesus já chamou a atenção para a fé de Aristides. Ele era um católico convicto, com uma fé muito forte recebida e apreendida no ambiente familiar. Foram os princípios, os valores que ele recebeu dessa família católica, sobretudo do pai, José de Sousa Mendes, que era um juiz isento, virtuoso e de espírito abnegado, que estão na origem das motivações que o levaram aos gestos que o celebrizaram. Em suma, ele seguiu a sua consciência, que era uma consciência formada na vida e nos ensinamentos de Jesus Cristo. Não tenho tempo agora para entrar em muitos pormenores, mas queria sublinhar um aspecto que tenho visto pouco referido ou mesmo ignorado pelas pessoas que se debruçaram sobre a personalidade de Aristides e seus actos.

Quando foi Cônsul-Geral em Antuérpia, onde esteve cerca de oito anos, foi talvez o período da sua vida em que desfrutou de maior desafogo material. Numa família grande todos sabemos que os recursos estão sempre aquém das necessidades. Aristides era um homem normal, também sujeito às tentações do espírito mundano. O Mundo é uma realidade boa, porque criado por Deus, mas o homem quando se afasta da Sua lei, perde o caminhão da felicidade. Há pessoas que, talvez por não viverem de convicções profundas, são capazes de se desviar a ponto de até cometer aquilo que aconteceu na Alemanha com a erupção do nazismo. Então, o que eu achei curioso e digno de nota é que Aristides nesse período de maior abundância em que vivia, apesar das suas fragilidades, ele mantinha a força profunda das convicções em que fora educado – em suma, a sua fé católica amadurecida pela experiência de universalidade adquirida ao longo da vida. E mostrou-o de uma forma indelével com o facto de, em 1933, ter mandado vir da Bélgica para a sua casa de Cabanas de Viriato, para o jardim que rodeava a casa que tinha acabado de ampliar e de melhorar, uma estátua de grande porte de Jesus Cristo! Penso que vocês conhecem a estátua do Cristo Redentor, o Cristo do Corcovado, no Brasil, no Rio de Janeiro. Ora esse Cristo que está no Brasil foi erigido nos anos vinte do século passado e é interessante ver que, pouco tempo depois dessa grandiosidade que é essa manifestação de amor dos brasileiros e sobretudo dos cariocas em relação a Cristo, Aristides fez o mesmo na sua propriedade de Cabanas! Isso, numa altura em que poderia ter pensado mais em mandar fazer o seu retrato ou um busto de si próprio, se não tivesse as convicções profundas que realmente tinha. Mas ele não se esqueceu dum outro

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pormenor – essencial: é que na mesma ocasião ele fez algo que merece registo: é que além do Cristo Glorioso, mandou erigir, junto à casa, um Cristo Crucificado, em tamanho natural. Penso que nenhum de vocês desconhece a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo e sabe que Ele, antes de chegar à glória da Ressurreição, sofreu a Sua dolorosa paixão que culminou na morte, terrível mas sublime, na Cruz, por amor e salvação de todos. Isto é muito interessante porque revela que alguma coisa Aristides esperava que lhe pudesse acontecer na sua vida de caminhante seguidor de Cristo. Revelação essa que se vem a concretizar em Bordéus: Porque é que ele foi colocado em Bordéus? Porque é que não foi outro diplomata para lá? O facto é que foi ele que foi. Na perspectiva cristã da vida e do homem o acaso não existe. O que existe é a providência de Deus que respeita e se entrelaça sempre com a liberdade do homem.

Era uma pessoa com determinadas

características que se revelaram poderosamente na compaixão, na solidariedade, no grande interesse pelas pessoas. Estou convencido que ele tinha realmente a percepção de que para se chegar ao Cristo Glorioso se tinha que passar pelo Cristo Crucificado e assim aconteceu. Perante aqueles acontecimentos brutais com que se viu confrontado, não teve, no seu íntimo, a mais pequena dúvida de que o caminho certo era o de salvar aqueles milhares de vidas em risco e isso realmente ressalta das suas raízes cristãs. Houve, certamente, como os biógrafos atestam, muitas razões imediatas que concorreram para o feito que praticou, nomeadamente os contactos que ele teve com o rabino Kruger com quem conviveu durante alguns dias e lhe mostrou quanto aquela situação urgia uma grande acção de salvamento, como Aristides veio a protagonizar, de forma continuada e generosa em Bordéus, Bayonne, Hendaye e Biriatou e, finalmente, em Portugal onde abriu as portas da sua casa a tantos refugiados necessitados de abrigo e protecção. Tudo isso é uma confirmação de quanto ele sentia e que ele próprio confessa em vários textos muito bonitos em que apresenta a sua defesa e justificação.

Ele passou por cima das ordens do governo que sabia serem ilegítimas, para poder salvar aquelas pessoas de um desastre, da perda de vida, em plena obediência à superior lei natural, à lei de Deus. Isto eu queria sublinhar muito porque uma pessoa, neste mundo em que vivemos, onde a nossa vida é transitória, aquilo que realmente nos marca são as nossas convicções, é a nossa consciência. Se temos uma consciência bem formada, se as nossas convicções são fortes, nós somos capazes de, com a ajuda de Deus, - o que aconteceu com Aristides -, somos capazes de fazer coisas que à partida julgaríamos que não estávamos à altura delas, mas com a força dessas convicções nós podemos ultrapassar-nos.

Era esta mensagem que eu queria aqui deixar neta escola, que tem objectivos tão importantes acerca da formação da personalidade de uma forma que vai muito para além das disciplinas, mas se baseia numa formação humana de tipo integral. Estou certo que aqui vão ter oportunidade de formar a vossa consciência à luz de valores perenes que são válidos para toda a Humanidade.

Aristides de Sousa Mendes com o rabino Kruger

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Um justo Entre as Nações. O Seu Lugar na História de Israel. A Importância da Sua Obra no Relacionamento Portugal/Israel. Introdução:

Israel é talvez o país que melhor tem sabido homenagear Aristides de Sousa Mendes. Por isso, quando o Senhor Embaixador de Israel aceitou o nosso convite e, diga-se de passagem, aceitou sem reservas, foi para nós uma grande satisfação. Vou dar-lhe a palavra para nos falar de Aristides de Sousa Mendes, um justo entre as nações, o seu lugar na História de Israel e a importância da sua obra no relacionamento Portugal/Israel. Intervenção do Senhor Embaixador de Israel, Aaron Ram:

Obrigada Professor José Baptista, Senhora Maria Barroso, Álvaro de Sousa Mendes, José de Sousa Mendes, professores e alunos:

Dá-me sempre muito prazer o encontro com jovens, em particular estudantes. Vocês são o futuro e é sempre bom falarmos com quem representa o futuro, sobretudo num tópico como o de Aristides de Sousa Mendes. Penso que Aristides de Sousa Mendes foi um grande homem e que podem estar orgulhosos do vosso compatriota. Um homem que do meu ponto de vista, e não apenas do meu ponto de vista, pois penso que é absolutamente objectivo dizer que Aristides de Sousa Mendes foi um feixe de luz num momento de trevas da história da humanidade. O Holocausto desafia a compreensão humana.

O que é que foi o Holocausto? Seis

milhões de pessoas foram mortas, destruídas, aniquiladas, liquidadas. É muito difícil compreender. Dei-lhes um número. O que é um número? É difícil um número expressar, fazer sentir, porque temos que compreender que cada uma destas seis milhões de pessoas eram como vós ou como eu, nasceram de pais que as amavam, cresceram talvez em infantários, andaram em escolas e universidades, que tinham os seus sentimentos, as suas emoções, o seu 1º amor, que foram amadas e tinham sonhos, tal como cada um de nós. Subitamente, um dia tudo acabou. Mas no meio da escuridão apareceram pessoas, algumas, poucas, que não cederam ao demónio do nazismo. Aristides de Sousa Mendes foi um dos que não cedeu. Eu próprio, sou hoje Embaixador de Israel em Portugal, mas os meus pais são basicamente sobreviventes do Holocausto. O meu pai perdeu toda a sua família. Ele tinha uma família bastante grande na Polónia, tinham nascido lá e foram todos mortos nos campos de extermínio nazis. A minha família foi exterminada em Treblinka. Havia seis campos de extermínio e centenas de campos de concentração. Há uma diferença: Os campos de extermínio são basicamente campos de morte, para onde eram enviados os judeus a fim de serem eliminados. Assim, a família do lado do meu pai foi exterminada em Treblinka e a família da minha mãe escapou para a Rússia. Mas depois, em 1941, quando os alemães

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atacaram a Rússia, foram capturados os judeus refugiados, e a família da minha mãe foi capturada pelos nazis e também foi liquidada. Não sei onde, não sei se num campo de extermínio ou se foram assassinados em qualquer lugar. A minha mãe também não sabe. Ela escapou e mais tarde encontrou o meu pai e o resultado é eu estar aqui hoje convosco.

O meu sentimento é que se tivéssemos mais pessoas rectas, verdadeiros anjos como Aristides de Sousa Mendes, talvez eu tivesse hoje muitos primos e outros descendentes, mas não os tenho porque não houve muitos Aristides de Sousa Mendes.

Aristides de Sousa Mendes foi um diplomata respeitado e de sucesso que perdeu tudo – os seus meios de subsistência, a sua casa, a sua profissão e até o seu nome – porque seguiu a sua consciência. Anos mais tarde afirmou: “Eu não poderia ter agido de outro modo e por essa razão aceito com amor tudo o que me aconteceu em consequência desse acto”.

Esta é uma verdadeira declaração de um grande homem. Nós não encontraríamos certamente muita gente que dissesse o mesmo. Depois de ser punido ele diz: ‘Eu faria novamente a mesma coisa’.

1940 não foi um bom ano para os Judeus da Europa. Um ano antes a Alemanha tinha invadido a Polónia, desencadeando assim uma sucessão de acontecimentos desastrosos em vários países por todo o mundo. Mas para os Judeus não foi só mais uma guerra, foi uma catástrofe enorme que se tornou num holocausto.

Aristides era Cônsul Geral em Bordéus, quando se confrontou com a sua consciência. Por ordem do Governo de Lisboa, do 1º Ministro Salazar, ele sabia que em nenhuma circunstância poderia passar qualquer visto a não ser que fosse previamente autorizado por Lisboa e analisado caso a caso. Aristides recusou-se a cumprir estas ordens quando lhe vinham pedir ajuda. Por outras palavras, Aristides deveria ignorar as muitas pessoas que lhe vinham pedir auxílio. Assim, as muitas pessoas concentradas junto ao nº 14 da Praça Luís XVIII – o local do Consulado Português em Bordéus – procuravam a sua salvação através de alguém cuja autoridade tinha sido virtualmente suspensa. Como diplomata o Cônsul Geral Sousa Mendes não tinha nada para lhes oferecer. O que aconteceu a seguir é a história pouco conhecida de um homem que conseguiu elevar-se acima de todas as suas conveniências pessoais e fez o impensável do ponto de vista diplomático. Revoltou-se contra as ordens de serviço recebidas e usou o consulado para agir ao serviço da humanidade. Usou os seus poderes contra todas as ordens emanadas, passando vistos indiscriminadamente a todas as pessoas que o procuravam, ajudando-as a entrar num país neutro, Portugal, e salvando-as assim dos horrores da guerra que de outra forma estariam à sua espera.

Aristides de Sousa Mendes era Cônsul de Portugal em Bordéus em 1940. Era considerado pelos colegas um diplomata de carreira, eficiente e dedicado. Quando a história o catapultou da noite para o dia para a posição de garante da salvação de vidas humanas em perigo iminente, ele demonstrou ser muito mais do que isso. Confrontado com a situação das pessoas que lhe pediam ajuda, provou que poderia fazer muito mais.

Estima-se que um milhão de refugiados escapou ao nazismo através de Portugal durante a II Guerra Mundial. O precedente foi forçosamente criado em 1940 por Aristides de Sousa Mendes, que pagou com o seu sofrimento por todos os seus actos. Primeiro em

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Bordéus, mais tarde em Baiona e nas ruas de Hendaye, perto da fronteira espanhola. Aristides de Sousa Mendes passou vistos indiscriminadamente a 30 000 refugiados para entrarem em Portugal. Aristides de Sousa Mendes abriu efectivamente um corredor de fuga para os refugiados, que não existia até então. Os milhares de vistos passados por Sousa Mendes foram respeitados em Irulan, na fronteira espanhola, porque o selo do consulado era o requisito oficial de um país para o outro. E, assim, os comboios de refugiados chegavam a Vilar Formoso.

Em Israel, Aristides de Sousa Mendes é considerado um herói, um homem que se comportou como um ser humano numa altura em que poucos o faziam. Ele tem um lugar de honra no Museu do Memorial Yad Vashem em Jerusalém. Entre os horrores em exposição há uma sala dedicada aos diplomatas que se levantaram e lutaram contra o horror da guerra com a única arma que possuíam, os vistos. Aí, Aristides de Sousa Mendes é reconhecido e respeitado, com a sua história, bem como com a sua foto, para que todas as gerações futuras de israelitas o vejam, recordem e honrem.

Aristides de Sousa Mendes Em Portugal, também com o tempo veio a ser respeitado e honrado. As crianças

portuguesas nas escolas estudam os seus actos e organizam exposições, tal como esta a que estamos a assistir, assegurando assim que Aristides de Sousa Mendes não será esquecido. A sua coragem, generosidade e os seus actos acrescentam uma página à História de Portugal, da qual os portugueses se podem orgulhar.

As palavras de Aristides de Sousa Mendes resumem a sua visão da vida: “Prefiro estar com Deus contra os homens do que estar com os homens contra Deus”.

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II Parte – Diálogos sobre A.S.M. Introdução:

Vamos dar início à segunda parte da nossa sessão para responder às questões dos alunos, professores, funcionários, pais e restantes convidados. Imagino que haverá muitas questões para colocar. Não obstante a exiguidade do tempo, vamos tentar que nenhuma questão fique por responder.

Pergunta: O que pensava a família da opção de Aristides de Sousa Mendes? Dr. José Sousa Mendes – Quando o Aristides tomou a decisão, depois de uma reflexão ponderada sobre os prós e os contras e comunicou à família, sobretudo à sua Mulher, a tia Gigi, como era conhecida pelos sobrinhos, toda a família se solidarizou, todos acharam que ele deveria fazer o que fez. Eu estou a falar em termos gerais porque houve um ou outro caso de alguma incompreensão, pelos riscos tremendos que se avizinhavam e que portanto implicou a necessidade ao Aristides de, em relação a um ou a outro filho, ter que dar uma explicação que o levasse a aceitar aquela posição de sacrifício que lhes estava a apresentar. Pergunta: A minha turma queria saber em que altura é que o Governo começou a aceitar que Aristides de Sousa Mendes fosse um herói. Doutora. Maria Barroso Soares – O Governo português considerou que o Aristides de Sousa Mendes era um herói quando foi finalmente conquistada a democracia para Portugal porque até aí ele tinha desobedecido às ordens dos governantes e portanto só quando Portugal conquistou a democracia, a liberdade, o respeito pelos direitos humanos, etc., é que houve quem falasse, quem denunciasse o que tinha sido feito, as acções que ele tinha cometido e o castigo de que ele tinha sido vítima e então o Governo português entendeu que era indispensável enaltecer perante o País a figura do Aristides de Sousa Mendes.

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Eu devo dizer que uma vez estava em Washington, quando o meu marido foi Presidente da República, e assisti à condecoração duma filha do Aristides de Sousa Mendes com a Ordem da Liberdade e depois, aqui em Portugal, quando nós organizámos uma semana de homenagem ao Aristides de Sousa Mendes, a finalizar as várias iniciativas que houve, nessa semana houve uma grande sessão no cinema Tivoli onde o Presidente da República de então estava presente. Eu tinha-lhe pedido, disse-lhe que vinha um filho do Aristides de Sousa Mendes e que era muito importante que o Governo português condecorasse o filho do Aristides de Sousa Mendes que vinha aí e ele foi condecorado no cinema Tivoli. O Senhor Major lembra-se perfeitamente. Hoje, em democracia, é diferente, são diferentes as mentalidades, são diferentes as condições em que nós vivemos e por isso é que vocês devem ser uns amantes da democracia para a manterem e fortalecerem. Pergunta: Qual a pergunta que gostaria de fazer ao seu antepassado, se este fosse vivo? Major Álvaro Sousa Mendes – Eu provavelmente não lhe faria nenhuma pergunta em especial, não me ocorre neste momento, era capaz de felicitá-lo, dar-lhe um grande abraço pelo gesto dele e dizer-lhe assim: Avô, gostei muito do teu gesto, foste um homem maravilhoso. Pergunta: Eu gostaria de perguntar ao Sr. Embaixador como surgiu a ideia de Aristides de Sousa Mendes ser considerado um homem justo em Israel. Embaixador Aaron Ram /Tradutor: – Em Israel, nos anos cinquenta, instituiu-se o Yad Vashem, que é um Museu em Jerusalém dedicado à memória das vítimas do holocausto. Quando o Museu foi criado, e para além de lembrar as vítimas, foi imediatamente pensado que também se deveriam relembrar pessoas que tivessem contribuído para salvar judeus. Foi um processo que demorou tempo, porque muitas dessas pessoas já não eram vivas e recorreu-se sobretudo ao testemunho dos sobreviventes. Foi nos anos oitenta que, depois dum processo rigoroso, se consagrou Aristides de Sousa Mendes como um herói que tinha salvo vidas e que foram comprovados esses factos. Foi plantada no Yad Vashen uma árvore em sua memória. Há uma avenida onde estão plantadas mais árvores, que é a avenida das pessoas rectas, e ele tem uma árvore com o seu nome nessa avenida. Israel simultaneamente passou a considerá-lo como cidadão honorário do País. Apesar disso é com alguma mágoa que se sente hoje que ele não viveu para recolher todas as homenagens que lhe foram feitas mais tarde. Em Dezembro de 2006, quando o Ministro dos Negócios Estrangeiros português Luís Amado esteve em Jerusalém visitou o Yad Vashem com o Embaixador e puseram um ramo de flores em sua memória. Quando estradas, ruas e praças tiverem o nome dos heróis, não apenas de Raoul Wallenberg mas também de Aristides de Sousa Mendes, aí sim, as pessoas conhecerão muito mais o Homem e a sua obra em Israel. Pergunta: Eu queria perguntar, em nome da minha turma, como vê a família neste momento os actos de Aristides de Sousa Mendes. Major Álvaro de Sousa Mendes – A família vê com muita satisfação e muito orgulho os actos de Aristides de Sousa Mendes e cada vez que se lembram do gesto do Aristides de Sousa Mendes que salvou tantas vidas, saber que hoje essas vidas estão muito mais multiplicadas. Ele salvou trinta mil, se calhar hoje existem duzentas mil pessoas, trezentas mil, de descendentes de refugiados com vistos com vistos passados por Aristides de Sousa Mendes. São muitas pessoas e essas pessoas, no fundo, devem a vida ao gesto desse homem.

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Pergunta: A família hoje em dia mantém contacto ou conhece algum familiar de refugiados a quem Aristides de Sousa Mendes tenha ajudado?

Major Álvaro de Sousa Mendes – Conhecemos várias pessoas. Eu posso contar a história duma senhora que veio ter connosco a Portugal há dois anos, que era a senhora Iva Netter, australiana. Ela fugiu da Holanda e da Alemanha em 1940 e foi exactamente ter a Bordéus. A história é muito engraçada porque a senhora estava numa cidade da Austrália, tinha sido refugiada e sabia disso e um dia qualquer passou numa biblioteca dessa cidade australiana e viu um livro que lhe chamou a atenção, que era um livro sobre refugiados, era um livro sobre Aristides de Sousa Mendes que estava traduzido em inglês e que ela requisitou; agarrou nele e não o deixou enquanto não o leu todo e depois chegou a casa, muito nervosa porque queria ver o passaporte que a mãe tinha deixado, que tinha sido da família, o passaporte com que eles tinham afinal passado para a Austrália. Foi então que descobriu que esse passaporte continha a assinatura de Aristides de Sousa Mendes. Lembrou-se também que tinha passado em Coimbra, em 1940, depois de entrar em Portugal por Vilar Formoso, (que foi um dos sítios por onde os refugiados chegaram a Portugal), e tinham visto Aristides de Sousa Mendes. Ela veio falar connosco muito satisfeita, trazia umas fotografias e disse que para ela tinha sido uma grande felicidade pensar que devia a vida a Aristides de Sousa Mendes; deu-nos uma cópia do passaporte, que eu tenho na Fundação e é uma coisa muito curiosa. A senhora ficou muito satisfeita por conhecer afinal alguém da família do homem que lhe salvou a vida, a ela e aos pais. Pergunta: O que aconteceu à família e aos bens em consequência da desobediência a Salazar? Dr. José Sousa Mendes – Essa desobediência, que nós devemos também ver pelo lado da obediência porque ele desobedeceu a ordens injustas, ilegítimas, porque quis obedecer à lei de Deus, à sua consciência formada nos valores cristãos. O que é que aconteceu? Aconteceu que a família foi empobrecendo cada vez mais em bens materiais, porque tudo se foi perdendo a pouco e pouco e sobretudo o Aristides perdeu a presença e o amparo e o amor próximo dos seus filhos praticamente todos porque praticamente tiveram que emigrar. Em todo o caso, eu, que conheci o Aristides nessa época de vacas magras posso testemunhar o seguinte: Ele, que apesar de todo o seu infortúnio, da desgraça que lhe desabou em cima, dos bens que perdeu,

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ele foi sempre uma pessoa de coragem. Estive várias vezes com ele em momentos de sofrimento, porque já tinha tido acidentes do coração, vasculares centrais e portanto tinha muita dificuldade em se deslocar, mas apesar de tudo ele tinha sempre um semblante alegre e testemunhava uma presença não rancorosa, não se mostrava com espírito vingativo, se assim se pode dizer. O que é realmente muito importante para concluir, é que ele vivia em paz consigo próprio e assim aconteceu que todas as suas tentativas de alterar a situação que lhe foi criada pelo governo de então e todas as diligências que ele fez foram votadas ao insucesso e portanto ele foi sempre perdendo a sua possibilidade de ter uma vida normal, foi perdendo cada vez mais a possibilidade de recompor o seu lar como deve ser, na presença sobretudo dos filhos e dos entes queridos em geral, da família. Doutora Maria Barroso Soares – Pois se ele foi demitido, perdeu toda a sua possibilidade de subsistência. O governo demitiu-o, porque ele desobedeceu às ordens dadas numa circular – circular nº 14 – em que se dizia que sem consulta às autoridades portuguesas não se podia passar vistos a “estrangeiros de nacionalidade indefinida”. Portanto, ele desobedeceu. Desobedeceu porque era uma lei injusta que ia contra a sua própria consciência de cidadão do mundo e por isso pagou o preço que pagaram todos aqueles que desobedeceram a leis injustas em tempo de ditadura. Assim, ficou sem dinheiro, com tantos filhos e teve, obviamente, muitas dificuldades. Eu ouvi dizer a amigos meus mais tarde (que eu nessa altura nem soube, era muito jovem) que várias pessoas da oposição lhe deram apoio. Foi o caso do poeta José Gomes Ferreira, por exemplo, segundo me contaram. Também me disseram que ele comeu a sopa dos pobres. Foi o preço que ele pagou por ter desobedecido às tais leis injustas, por ter salvo cidadãos, quando devia ter sido compensado por esses seus actos. Isso é que devia ter sido! Mas era preciso que aqueles que estavam à frente dos destinos da nossa Pátria fossem democratas e não ditadores. Prof. José Baptista – Estas questões foram dos mais novos, agora vamos passar a palavra aos mais velhos, aos alunos do 9º ano. Pergunta: Aristides de Sousa Mendes, ao longo da sua vida, desempenhou mais cargos? Doutora Maria Barroso Soares – Não podia porque no regime em que nós vivíamos não podíamos exercer qualquer cargo que quiséssemos e para o qual estávamos devidamente apetrechados. Eu sou formada em Ciências Histórico-Filosóficas e não pude exercer a minha função de professora para que estava preparada. Exerci durante dois anos só num colégio essa função, ao abrigo de uma disposição legal que permita que o Director da Escola se responsabilizasse pelo pretendente ao diploma do ensino particular até chegar a resposta do governo. Que foi, obviamente, não!. Portanto, um homem que fez o que ele fez não podia ter mais cargos nenhuns. E por isso sofreu a miséria, a perseguição, a injustiça, o sofrimento. Pergunta: Tendo Aristides de Sousa Mendes vivido na miséria no final da sua vida, por que razão os filhos não o ajudaram? Dr. José Sousa Mendes – Praticamente todos os filhos emigraram e tiveram que se adaptar às condições dos países para onde foram, para os quais não tinham uma preparação especial. Muitos deles tiveram que estudar e assim fizeram, tiraram cursos universitários e entretanto o tempo foi passando. O que não quer dizer que não tivessem procurado manter uma certa solidariedade, através inclusive de cartas que escreviam. Naquele tempo não havia as facilidades de comunicação que temos hoje mas eu lembro-me, por exemplo, que um dos filhos, o Luís Filipe, organizou uma forma de manter a família unida: em vez de escreverem cartas avulsas, escreviam num caderno que circulava por todos os filhos e que depois era

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enviado aqui para Portugal, para o pai, enquanto viveu, e depois já de ele ter morrido ainda esse caderno existia e ali podiam dar conta de como a sua vida estava a correr e foi a única maneira que encontraram para suavizar os últimos anos de vida do pai. Pergunta: A comunidade judaica em Portugal ajudou, ou não, Aristides de Sousa Mendes? Poderia ter ajudado ou não nesta altura? Embaixador Aaron Ram/Tradutor: O Embaixador Aaron Ram disse que não podia falar em nome da comunidade israelita. Fundamentalmente, como estas coisas só se sabem muitos anos depois e sempre postumamente, não terá havido grande ajuda. Talvez os dois filhos tenham recebido alguma ajuda por parte da agência judaica americana, que promove este tipo de acções humanitárias. Em relação a Aristides de Sousa Mendes penso que, como foram muito precoces os acontecimentos, nos anos quarenta, e como só muito mais tarde é que se vieram a conhecer, tendo o Estado de Israel sido formado em 1948, só bastante mais tarde é que Israel soube do que se tinha passado. Obviamente, se tivesse sabido antes a ajuda teria sido diferente.

Museu do Memorial Yad Vashem em Jerusalém Comunicação dos alunos do 9º ano: Com base neste Colóquio, os alunos do 9º ano decidiram manifestar a sua opinião sobre a vida e obra de Aristides de Sousa Mendes. Toda a gente sabe que Aristides de Sousa Mendes foi uma importante figura portuguesa, foi um homem que conseguiu dizer não à intolerância, foi fascinante a forma como este homem recusou acatar as ordens do governo português daquela altura para salvar a vida de milhares de pessoas. Esta grande figura foi capaz de extraditar de França muitos judeus e pessoas de diversas nacionalidades, tendo impedido que estes fossem mortos ou presos mas apesar de todas as boas acções que fez, Aristides de Sousa Mendes mostrou-nos que a traição ao governo daquele tempo podia ter consequências muito graves. De facto, Aristides de Sousa Mendes por tudo o que fez foi um verdadeiro herói.

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Comentário Final Introdução:

Numa altura em que os professores têm sido tão mal tratados na praça publica, em especial por quem tinha a obrigação de os defender e honrar, tenho o prazer de vos anunciar que temos na assistência um ilustre professor que dispensa apresentação. Tendo sido convidado para fazer parte da mesa, preferiu ficar com os professores no meio da assistência. Refiro-me ao professor Marcelo Rebelo de Sousa a quem peço para fazer um breve comentário.

Professor Marcelo Rebelo de Sousa:

Eu vou dizer só o que senti estando aqui, na assistência, durante este tempo, estas horas maravilhosas que pudemos partilhar. Em primeiro lugar senti uma enorme gratidão em relação à mesa, em relação à Senhora Doutora Maria Barroso, em relação ao Senhor Major Álvaro de Sousa Mendes, em relação ao Senhor Dr. José Sousa Mendes, em relação ao Senhor Embaixador de Israel, porque ligada à gratidão está uma ideia de emoção. Foi muito emocionante aquilo que ouvimos, foi muito emocionante aquilo que nos disse a Doutora Maria Barroso sobre os valores que Aristides de Sousa Mendes teve na sua vida, foi muito emocionante ouvir um neto e um sobrinho recordarem uma referência da família, foi muito emocionante ver a homenagem prestada por Israel na pessoa do Senhor Embaixador, emocionante até nas pequenas histórias, nos pequenos pormenores. Eu tenho a certeza de que estes jovens um dia mais tarde recordarão esta sessão e terão associada à ideia de Aristides de Sousa Mendes o que ouviram aqui dizer e ouviram dizer de pessoas que disseram com conhecimento de causa e, portanto, essa ideia é gratidão - muito obrigado à mesa -, e emoção, mas também educação. É muito formativo que, em colaboração com a paróquia, a escola, os professores, os alunos aqui tenham estado e que os alunos tenham colocado perguntas e tenham estudado a pessoa, estudado a vida e estudado a obra de Aristides de Sousa Mendes. Isto vale muito mais do que dez problemas de matemática, vale mais do que muitas páginas de física ou de química porque, - não é que o resto não seja importante diz a Doutora Maria Barroso -, mas na vossa vida o essencial serão os valores, os valores que tiverem na vossa profissão, na vossa família, na vossa vida local, na vossa vida nacional, se andarem pelo mundo, aquilo que fizerem por esse mundo, e Aristides de Sousa Mendes, pela boca dos que falaram aqui, é um exemplo para a vossa vida. É um exemplo porque é um exemplo de

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justiça, ele é um justo e porque é um justo é um herói. Ele é um justo e é um justo por duas coisas: primeiro porque fez sempre aquilo que a sua consciência lhe ditava; segundo, aquilo que a consciência ditava era fazer o bem. Porque podia fazer aquilo que a consciência ditava e a consciência ditar fazer o mal e a consciência ditava-lhe fazer o bem porque, como cristão, ele entendia que devia servir os ensinamentos de Deus, a palavra de Deus. Mas não era um cristão que fizesse o bem só para os cristãos, ele fez o bem a judeus, fez o bem a pessoas que não tinham crença nenhuma, não tinham religião nenhuma. Isto fez-me lembrar duas frases que eu muitas vezes retenho: uma é que nós somos justos quando somos humanos e ele foi humano; a segunda é: nós só somos justos quando não o somos sozinhos. Não é possível ser-se justo sozinho, somos justos ao serviço dos outros. Ele foi justo ao serviço dos outros, estava ali naquela posição e naquela posição serviu gente de muita nacionalidade, gente de muita religião, gente de muita convicção, serviu-os a todos e isso é um exemplo para a vossa vida.

Quando um dia mais tarde forem óptimos profissionais, forem muito competentes, estiverem em lugares muito diferentes na vossa vida do dia-a-dia, irão recordar que o mais importante é o serviço dos outros com humanidade e lembrar-se-ão: Eu tinha seis anos, sete, oito, dez, doze, treze, (o que vocês tiverem), e lembro-me de lá na escola se ter falado de um senhor que sofreu por ter servido os outros, que sofreu ele e sofreu a família, sofreram em conjunto, solidários, porque ele num certo momento da vida, podendo escolher o caminho mais fácil e o caminho mais fácil era fingir que não percebia o que se passava ali – chegava lá e dizia: Eu não posso dar Visas. A culpa não é minha, a culpa é do governo em Lisboa. Ele até podia lavar as mãos como Pilatos, “Eu não tenho nada a ver com isto, eu por mim até dava mas eu não posso dar, não me deixam dar”. E ele fez exactamente o contrário, foi contra as ordens de Lisboa para servir aqueles que estavam ali…

Atenção, apesar de tudo, mesmo quando há problemas económicos e financeiros, nós vivemos em liberdade e em democracia, que é diferente de viver refugiado, fora da sua pátria, fora da casa, no meio de uma guerra e viver perseguido. Há muitos milhões por esse mundo fora que vivem assim e o que eu pergunto são duas coisas: primeiro é se há muitos Aristides de Sousa Mendes por esse mundo fora, se não há muita gente que continua a fingir que não vê, a olhar para o lado no meio das tragédias que existem. A segunda coisa que eu me pergunto é onde é que está muitas vezes a comunicação social, que é capaz de estar a cobrir coisas perfeitamente insignificantes, mas se esquecem de dar notícia de encontros como este,

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importantes no tema e mais importantes ainda no local, nos participantes, no objectivo – fazer participar crianças e jovens numa evocação de valores pelos quais tem sentido viver.

E termino como comecei: gratidão, emoção, educação, valores. Viver fazendo o bem. E fazendo o bem ao serviço dos outros.

Dirão alguns que desobedecendo a ordens, ultrapassando os próprios poderes, tomando decisões que não lhe competiam.

Pergunto eu: e o que vale mais, cumprir as leis sacrificando vidas humanas ou não cumprindo as leis para que essas vidas sejam salvas?

Aristides de Sousa Mendes escolheu este segundo caminho. O mais difícil. O mais ingrato mas também o mais redentor, o verdadeiramente redentor.

Agradecimentos Finais

Obrigado Senhor Professor Marcelo Rebelo de Sousa pelas suas palavras, pela sua presença e sobretudo pela sua amizade. O mesmo agradecimento dirijo ao Sr. Embaixador de Israel, Aaron Ram, ao Dr. José da Mata Sousa Mendes, à Doutora Maria de Jesus e ao Sr. Major Álvaro de Sousa Mendes.

Em nome da Escola Conde de Oeiras e dos professores do Departamento de Ciências Sociais e Humanas quero também agradecer à Fundação Pró Dignitate, à Fundação Aristides de Sousa Mendes, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e ao Museu República e Resistência a preciosa colaboração na organização deste evento. Uma palavra de agradecimento também à Paróquia de Carcavelos, ao grupo de Casais de Nossa Senhora, em especial ao Dr. Rui Barreiras (professor da Faculdade de Medicina e médico no IPO de Lisboa) que traduziu a intervenção do Sr. Embaixador, ao Dr. Tiago Gomes que fez a gravação do colóquio para edição da brochura, e ao Dr. José Soares ( BCP) que colaborou na organização deste evento. Um agradecimento também a todos os professores, funcionários, encarregados de educação, e alunos que tornaram possível a realização deste projecto.

Um agradecimento muito especial à Fundação Pró Dignitate em partícula à Doutora Maria de Jesus e à Dra. Maria João Tomé que desde o primeiro momento se disponibilizaram para patrocinar a brochura deste colóquio para que as palavras que aqui foram ditas fiquem registadas por escrito de modo a não se perderem e, assim, servirem de inspiração a todos nós bem como às gerações vindouras. Finalmente, um sincero agradecimento a todos vós aqui presentes, professores, alunos encarregados de educação, amigos e convidados. Com a vossa presença, simpática e amiga, recebemos a confirmação de que projectos como este fazem sentido na Escola, apesar de nem sempre esta ter as melhores condições de trabalho. Foi em vós que pensámos ao organizar esta sessão e foi de vós que recebemos o melhor prémio e o melhor estímulo para continuarmos a trabalhar no sentido de contribuir para a humanizar cada vez mais a Escola e com ela toda a sociedade. Muito Obrigado. José Alves Baptista

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Encerramento: Autógrafos e Porto de Honra

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Corrida “Herói por uma Vida”

Os pequenos heróis: à semelhança de Aristides de Sousa Mendes, que salvou vidas anónimas, também os alunos contribuem para salvar vidas humanas, convencendo os pais a dar sangue e acompanhando-os na dádiva para uma dia mais tarde serem também eles dadores…heróis por uma vida!